ISSN 0103-6963
Denise
Campos
e
Silva
Kuhn,
Diana
Klinger,
Elizabeth Gonzaga de Lima, Fernanda Maria A. Coutinho, Jean Pierre Chauvin, Leonardo P. de Almeida, Lilia Loman, Luciene A. de Azevedo, Maria das Graças G. Villa da Silva, Maria de Lourdes Netto Simões, Maria Lúcia D. Mendes, Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira, Sandro Ornellas, Suely da Fonseca Quintana, Vera Lúcia A. de Moraes
Literatura Comparada
Conceição Aparecida Bento, Daniela Birman, Deise Q. Pereira,
REVISTA BRASILEIRA DE
Arnaldo Franco Junior, Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz,
REVISTA BRASILEIRA DE
Literatura Comparada
200 8
12
12
abralic associação brasileira de literatura comparada
REVISTA BRASILEIRA DE
Literatura Comparada
S達o Paulo 2008
Diretoria
Presidente Vice-presidente
A B R A L I C 2007/08
Sandra Margarida Nitrini (USP) Helena Bonito Couto Pereira (Mackenzie)
1º Secretária
Maria Célia Leonel (Unesp)
2º Secretária
Andrea Saad Hossne (USP)
1º Tesoureira
Vera Bastazin (PUC-SP)
2º Tesoureira
Orna Messer Levin (Unicamp)
Conselho
Eduardo Coutinho (UFRJ)
REVISTA BRASILEIRA DE
Gilda Neves Bittencourt (UFGS) José Luís Jobim (UERJ/UFF) Lívia Reis (UFF) Ívia Iracema Duarte Alves (UFBA) Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto (USP) Tânia Regina Oliveira Ramos (UFSC) Rita Terezinha Schmidt (UFRGS)
Suplentes
Literatura Comparada
Márcia Abreu (UNICAMP) Zênia de Faria (UFG)
Conselho editorial
Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Yves Chevrel.
ABRALIC CNPJ 04.901.271/0001-79 Universidade de São Paulo (USP) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Avenida Prof. Luciano Gualberto, 403 Butantã – São Paulo – SP Tel./Fax: (11) 3091-4312 E-mail: mschmidt@usp.br
ISSN 0103-6963 Rev. Bras. Liter. Comp.
São Paulo
n.12
p.1-411
2008
5
2008 Associação Brasileira de Literatura Comparada
Sumário
A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.
Editores
Apresentação Orna Messer Levin Pedro Brum
Orna Messer Levin Pedro Brum
Comissão editorial
Sandra Margarida Nitrini Helena Bonito Couto Pereira Andrea Saad Hossne Vera Bastazin Maria Célia Leonel
Preparação/Revisão
Nelson Luís Barbosa
Revisão do inglês
Lilia Loman
Diagramação
Estela Mleetchol ME
Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Rio de Janeiro: Abralic, 1991v.1, n.12, 2008 ISSN 0103-6963 1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada. CDD 809.005 CDU 82.091 (05)
7
Artigos Escrita de si como performance Diana Klinger
11
Autoficção e literatura contemporânea Luciene Almeida de Azevedo
31
O espelho tem duas faces: a escrita de si e o sonho do outro Deise Quintiliano Pereira
51
Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária Leonardo Pinto de Almeida
69
Al Berto, a escrita, o corpo a vida Sandro Ornellas
91
Morrer é uma arte? Sylvia Plath e os suicídios do autor Lilia Loman
121
Alexandre Dumas: faiseur de l´histoire? Maria Lúcia Dias Mendes
133
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em Milton Hatoum Daniela Birman
157
Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade e o jogo da memória em The fallen idol e When we were orphans Maria das Graças Gomes Villa da Silva
191
A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memórias do cárcere Conceição Aparecida Bento
217
6
7
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Apresentação
Experiência autoritária e construção da identidade em A queda para o alto, de Herzer Arnaldo Franco Junior
239
Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey Jean Pierre Chauvin
253
Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários de Lima Barreto Elizabeth Gonzaga de Lima
271
Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas Suely da Fonseca Quintana
297
Minhas queridas: letras de amor e saudade Vera Lúcia Albuquerque de Moraes e Fernanda Maria Abreu Coutinho
313
Letras femininas: a escrita do eu no universo de Luci Collin Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira
329
Escrita do eu em tempos de comunicação e trânsitos: a voz de Valdelice Pinheiro Maria de Lourdes Netto Simões
353
A escrita da memória como fundamento identitário do eu Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz
365
Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s The Dream Play: expressionism in the Theatre Denise Campos e Silva Kuhn
389
Pareceristas
405
Normas da revista
407
A Revista Brasileira de Literatura Comparada n.12 reúne, sob o tema “Escritas do eu”, um conjunto bastante diversificado de artigos que procuram abordar teórica e analiticamente, sob uma óptica comparatista, as relações entre a escrita literária e a expressão da subjetividade. A grande quantidade de trabalhos submetidos à Comissão Organizadora, dos quais foram selecionados dezenove artigos, parece-nos indicativa do interesse hoje existente pelas pesquisas que tocam em questões relacionadas às configurações da subjetividade moderna, às redefinições do pacto ficcional, ao registro da memória pessoal e coletiva, aos delineamentos de identidade cultural, dentre tantas outras aqui apresentadas. O presente número da Revista oferece aos leitores a oportunidade de entrar em contato com modos variados de abordagem do tema proposto. Além do enfoque dado a escritores nacionais ou estrangeiros, destaca-se a atenção a diversos gêneros literários, passando pelos mais tradicionais como a poesia, o teatro e a prosa ficcional, até os considerados híbridos ou limítrofes ao literário propriamente dito, tais como as memórias, os diários e as correspondências. Tal diversidade mostra a riqueza do debate crítico, trazendo estímulos para novos questionamentos e avaliações. O artigo de abertura da Revista, “Escrita de si como performance”, de Diana Klinger, discute de que maneira a noção de autoficção assumida pela literatura contemporânea após a crise da representação consiste em uma forma de encenação de si, estratégia que o segundo artigo, “Autoficção e literatura contemporânea”, de Luciene Almeida de Azevedo, também busca analisar, no intuito de avaliar
8
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
a hipótese de que o conceito de literário, definidor da fronteira entre o ficcional e o real, esteja sendo re-configurado na noção de autor como aquele que encena uma imagem de si. Em “O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro”, de Deise Quintiliano Pereira, retoma o projeto autobiográfico de Sartre para analisar as questões sobre alteridade e singularidade. Leonardo Pinto de Almeida, no artigo “Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária”, examina a relação entre subjetividade e experiência literária a partir das reflexões de Michel Foucault e Maurice Blanchot, destacando os conceitos teóricos que diferenciam as funções de escritor e autor. No estudo sobre o poeta português, “Al Berto, a escrita, o corpo a vida”, de autoria de Sandro Ornellas, a escrita é vista como metonímia do sujeito, materialidade de um corpo que é ao mesmo tempo social, cultural e político, além de elaboração da própria sexualidade, até a eliminação do próprio corpo. A morte, ou ainda o suicídio da poetisa Sylvia Plath serve de ponto de partida também para o artigo de Lílian Loman, “Morrer é uma arte? Sylvia Plath e os suicídios do autor”, que propõe uma leitura desconstrutivista do seu efeito sobre a obra poética, buscando delinear as tensões entre a crítica biográfica e a auto-representação. Na perspectiva de escrita da memória, o artigo de Maria Lucia Dias Mendes, “Alexandre Dumas: faiseur de l´histoire?”, se debruça sobre as páginas do escritor para mostrar de que modo as mudanças históricas são por ele registradas, podendo seu testemunho ser lido também como um romance de aprendizagem. O registro do passado dá sustentação ao ensaio de Daniela Birman, “Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em Milton Hatoum”, no qual a memória e o esquecimento fazem parte de um processo de constituição da experiência da subjetividade consolidada na voz narrativa. Já no artigo de Maria das Graças Gomes Villa da Silva, “Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade e o jogo da memória em The fallen idol e When we were orphans”, é a experiência individual da orfandade o que permite apro-
Apresentação
9
ximar as duas obras de ficção no exame detido das imagens produzidas pelo trauma e pela memória. A experiência do encarceramento em Memórias do Cárcere é examinada por Conceição Aparecida Bento no seu estudo sobre a escrita autobiográfica de Graciliano Ramos, “A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memórias do cárcere”. O espaço prisional no qual nasce a prosa memorialística é assim analisado como um topos de articulação de uma tradição literária brasileira. De maneira similar, a experiência da reclusão permite que Arnaldo Franco Junior, no artigo “Experiência autoritária e construção da identidade em A queda para o alto, de Herzer”, observe a constituição da identidade de jovens marginalizados em um texto contemporâneo, que se apresenta como um misto de depoimento autobiográfico e poesia. De outra parte, Jean Pierre Chauvin examina no artigo “Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey” a noção de prosa memorialística pseudobiográfica, à luz da tradição da malandragem na literatura brasileira. A escrita pessoal nascida em situação de recolhimento é tema igualmente do artigo de Elizabeth Gonzaga de Lima, “Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários de Lima Barreto”, que analisa os diários do autor em parte redigidos no Hospital Nacional de Alienados. Já o artigo de Suely Fonseca Quintana discorre sobre a escrita íntima de Lúcio Cardoso no artigo “Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas”. Ainda no âmbito dos registros particulares e afetivos, o artigo “Minhas queridas, letras de amor e saudade”, de Vera Lúcia Albuquerque de Moraes e Fernanda Maria Abreu Coutinho, se debruça sobre a correspondência de Clarice Lispector com suas irmãs em busca de confissões íntimas reveladoras da sensibilidade da escritora. Em “Letra femininas: a escrita do ‘eu’ no universo de Luci Collin”, de Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira, a enunciação da identidade feminina é focalizada na obra em prosa de Luci Colin, escritora paranaense contemporânea, na qual as relações de gênero são questionadas a partir de revelações
10
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
11
íntimas e multipercepções que mostram um distanciamento da escrita quanto às convenções narrativas. A voz feminina em suas múltiplas enunciações artísticas e críticas está focalizada no artigo “Escrita do eu em tempos de comunicação e trânsitos: a voz de Valdelice Pinheiro”, de Maria de Lourdes Netto Simões, sobre a obra da poetisa de Itabuna, e sua relação com a identidade cultural da Bahia. Por fim, as reflexões filosóficas sobre a memória como fundamento da identidade subjetiva é abordada no artigo “A escritura da memória como fundamento identitário do eu”, de Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz, que contém um relato memorial, enquanto Denise Campos e Silva Kuhn, em “Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s The Dream Play: expressionism in the Theatre”, elegem a dramaturgia de Tennessee Williams e August Strindberg para estudar a criação teatral como manifestação da visão subjetiva de seus autores. Esse conjunto de artigos, como sugerimos, é uma mostra instigante de enfoques possíveis de “escritas do eu”. Agradecemos a todos que colaboraram com este número da Revista Brasileira de Literatura Comparada e esperamos que a diversidade aqui apresentada, além de confirmar a riqueza do debate crítico em nosso âmbito de atuação, sirva de estímulo para novos questionamentos e avaliações.
Escrita de si como performance Diana Klinger*
RESUMO:
O texto se propõe discutir o conceito de autoficção como um conceito específico da narrativa contemporânea. A autoficção é pensada como um discurso ambivalente: ela faz parte da cultura do narcisismo da sociedade midiática contemporânea, mas se coloca numa linha de continuidade com a crítica estruturalista do sujeito e com a crítica filosófica da representação. Assim, ela tem pontos de contato tanto com a teoria da “performance de gênero” (por exemplo, na obra de Judith Butler) em que a subjetividade é pensada como “desnaturalização” do eu, quanto com a arte cênica da performance. Dessa perspectiva, a autoficção seria uma das formas que assumem a literatura depois do fim do paradigma moderno das letras. PALAVRAS-CHAVE:
Autoficção, performance, representação, crí-
tica do sujeito. ABSTRACT: This text aims to discuss autofiction as a concept specific to contemporary literature. In it, I consider autofiction as an ambivalent discourse: participating in the narcissistic culture of contemporary mass media, it simultaneously continues the structuralist critique of the subject and twentieth-century philosophy’s critique of representation. Thus, it shares aspects of performance theory from within gender studies (for example, in the work of Judith Butler), where the subject is thought as a denaturalization of the self, as well as with performance art. From this perspective, autofiction is one of the forms that literature takes on after the paradigm of modern literature is in decline.
Orna Messer Levin Pedro Brum
* Pesquisadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista de Faperj.
KEYWORDS:
Autofiction, performance, representation, critique of the subject.
Uma das questões que atravessam a prosa literária atual na América Latina é a presença problemática da pri-
12
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
meira pessoa autobiográfica. Ela aparece, por exemplo, nos dois últimos romances de João Gilberto Noll (2002; 2004), Berkeley em Bellagio e Lord que narram a experiência do escritor na Europa, fazendo que seja difícil descolar a figura do narrador da figura do autor. Também se coloca essa questão na obra de Silviano Santiago (1985; 1995): em Stella Manhattan e em Viagem ao México. Silviano cria – mediante a intromissão de um narrador em primeira pessoa que expõe os bastidores da escrita – a ilusão de uma contemporaneidade entre escritura e experiência. A questão da relação do eu ficci onal com o sujeito autoral já estava em pauta, de maneira alegórica, no romance Em liberdade (Santiago, 1981), e retornará nos contos de Histórias mal contadas (Santiago, 2005), e na forma de uma “autobiografia falsa” em O falso mentiroso (Santiago, 2004). Na literatura hispano-americana, a questão aparece sintomaticamente em inúmeras narrativas recentes: por exemplo, na obra inteira do colombiano Fernando Vallejo, assim como na do cubano Pedro Juan Gutierrez, estruturadas em ambos como sagas autobiográficas, nas quais se mantém, respectivamente, o mesmo narrador em todos os romances que relatam uma e outra vez as mesmas histórias pessoais e familiares, sob diferentes pontos de vista. Esse jogo com o autobiográfico aparece também nas novelas do argentino Daniel Link (2004; 2006) La ansiedad e Montserrat, na novela Como me hice monja, de Cesar Aira (1993), em El juego del alfiler, do colombiano Darío Jaramillo Agudelo (2002), nos textos do mexicano Mario Bellatín (2005), por exemplo Lecciones para uma liebre muerta, ou nos romances do uruguaio Mario Levrero (1996; 2005), El discurso vacío e La novela luminosa, romance que inclui o diário de sua própria escrita. Trata-se de escritores, como apontou o crítico Reinaldo Laddaga (2007, p.14), que “têm publicado livros nos quais se imaginam [...] figuras de artistas que são menos os artífices de construções densas de linguagem ou os criadores de histórias extraordinárias, do que produtores de ‘espetáculos de realidade’, dos quais é difícil dizer”, continua Laddaga, “se
Escrita de si como performance
13
são naturais ou artificiais, simulados ou reais”. Essas obras se situam além do paradigma moderno das letras, baseado em narrativas autônomas em relação com a figura do autor e em uma busca de uma linguagem literária claramente diferenciada da cultura de massas. A autoficção abrange um amplo leque de possibilidades: em alguns casos (como o de César Aira ou Marcelo Mirisola), o autor coloca o seu nome no protagonista de um relato disparatado ou inverossímil. Em outros casos, os relatos têm índices referenciais mais concretos, de maior carga biográfica (João Gilberto Noll, Silviano Santiago, Daniel Link). Por exemplo, Montserrat é uma novela construída a partir de fragmentos, a maioria deles publicados primeiro no blog de Daniel Link. Na novela aparecem muitos personagens conhecidos do entorno do escritor e, no entanto, o livro começa com uma aclaração de que “os fatos e personagens são ficcionais e qualquer semelhança com a realidade é pura homonímia ou coincidência.” Já Fernando Vallejo faz precisamente o contrário, quando afirma que nos seus livros ele só conta a verdade, e nem sequer muda os nomes dos personagens. O narrador assume, cinicamente, todos os clichês do “politicamente incorreto” e, para tanto, a primeira pessoa imprime ao texto uma carga política muito forte. Outro caso interessante, como “gesto literário”, é o de uma narrativa que “cria um personagem” que é o autor: por exemplo, “Cucurto”, personagem criado nos textos de Santiago Veja, ou Pedro Lemebel, em que os textos são parte da performance do autor. Escrita de si como “sintoma” da época atual. O fato de muitos romances contemporâneos se voltarem para a própria experiência do autor não parece destoar de uma sociedade marcada pela exaltação do sujeito. Uma sociedade na qual a mídia tem insistido na visibilidade do privado, na espetacularização da intimidade e na exploração da lógica da celebridade. Uma cultura midiática que manifesta uma ênfase tal do autobiográfico, que leva a pensar que a televisão se tornou um substituto secular do
14
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
confessionário eclesiástico e uma versão exibicionista do confessionário psicanalítico. Assistimos hoje a uma proliferação de narrativas vivenciais, ao grande sucesso mercadológico das memórias, das biografias, das autobiografias e dos testemunhos; aos inúmeros registros biográficos na mídia, retratos, perfis, entrevistas, confissões, reality shows; ao surto dos blogs na internet, ao auge de autobiografias intelectuais, de relatos pessoais nas ciências sociais (a chamada antropologia pósmoderna), a exercícios de “ego-história”, ao uso dos testemunhos e dos “relatos de vida” na investigação social, e à narração auto-referente nas discussões teóricas e epistemológicas (Arfuch, 2005, p.51). O que considero, porém, mais interessante da boa narrativa contemporânea é que ela não é apenas um reflexo da cultura midiática, mas se situa também no contexto discursivo da crítica filosófica do sujeito que se produziu ao longo do século XX. Essa crítica começa com a desconstrução da categoria do sujeito cartesiano operada por Nietzsche, que implica assumir os efeitos da morte de Deus e do homem, ou seja, da figura construída tanto pela tradição da filosofia moderna, fundada no cogito cartesiano, quanto pela tradição cristã na qual interioridade, renúncia e consciência de si seriam seus eixos fundantes. A crítica nietzschiana do sujeito implica também a desconstrução da categoria a ele associada de verdade. Em A genealogia da moral, Nietzsche (2004, p.36) argumenta que na origem da moral se encontra o ressentimento contra a vontade de força, de dominação. Mas seria um erro da razão entender que o atuar é determinado por um atuante, um “sujeito”. “Não existe tal substrato; não existe ser por trás do fazer, do atuar, do devir; ‘o agente’ é uma ficção acrescentada à ação – e a ação é tudo”. E mais adiante conclui que, “o sujeito foi até o momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e seu ser assim como mérito”.
Escrita de si como performance
15
Foi o estruturalismo que deu continuidade à crítica do sujeito em meados do século XX. O estruturalismo estabeleceu um paradigma transdisciplinar cujo eixo seria uma concepção lógico-formal da linguagem. Assim, na sua reformulação do conceito de inconsciente freudiano, J. Lacan (1985) afirma que ele está estruturado como uma linguagem e que nele existem relações determinadas: é a estrutura que dá seu estatuto ao inconsciente. Seguindo o mesmo raciocínio de Lacan, também R. Barthes (1977, p.85) pensa o sujeito como signo vazio: “o sujeito é apenas um efeito da linguagem”. O Foucault dos anos 1960 também toma esse caminho. Em As palavras e as coisas, Foucault (1966, p.398) fala aliás do apagamento do homem “como na beira do mar, um rosto de areia”. Em seu texto “O que é um autor?”, Foucault (1994) faz uma análise do conceito de autor centrando-se na relação do texto com o sujeito da escrita; quer dizer, no modo como o texto aponta para essa figura que – agora só aparentemente – é exterior e anterior a ele. O ensaio é uma declaração da morte do autor que, como ponto de partida toma as palavras do personagem de Beckett em Esperando Godot: “Que importa quem fala, alguém disse que importa quem fala”. Nessa indiferença, Foucault reconhece um dos princípios éticos fundamentais da escrita contemporânea; éticos porque se trata de um princípio que não marca a escritura como resultado, mas que a domina como prática. Na escritura, diz Foucault (1994, p.793), “não se trata da sujeição de um sujeito a uma linguagem, trata-se da abertura de um espaço no qual o sujeito que escreve não deixa de desaparecer”. Foucault percebe uma passagem de uma relação da escrita com a imortalidade (por exemplo, a epopéia grega estava destinada a perpetuar a imortalidade do herói, e nas Mil e uma noite Sherazade conta uma história a cada noite para não morrer) para uma relação da escrita com a morte. Diz Foucault (1994, p. 793): “a obra que tinha o dever de conduzir à imortalidade do herói tem recebido agora o direito de matar, de ser assassina do seu autor”.
16
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Fala-se da “morte do autor”, porque têm desaparecido os caracteres individuais do sujeito escritor, de maneira que “a marca do escritor já não é mais que a singularidade de sua ausência”. Esse é o espaço filosófico-filológico que Nietzsche abriu ao se perguntar, não o que eram o bem e o mal em si mesmos, mas o que era designado como tal e, então, quem é que sustenta esses conceitos. Segundo Foucault (1966, p.317), à pergunta de Nietzsche – “quem fala?” – Mallarmé responde que quem fala, “em sua solidão, em sua frágil vibração, em seu nada, fala a palavra mesma”, em seu “ser enigmático e precário”. Mallarmé – diz Foucault – “não pára de apagar-se a si mesmo de sua própria linguagem” (ibidem). Adverte, porém, Foucault que não é tão simples descartar a categoria de autor, porque o próprio conceito de obra e a unidade que essa designa dependem daquela categoria. Por isso Foucault busca localizar o espaço que ficou vazio com o desaparecimento do autor (“um acontecimento que não cessa desde Mallarmé”), e rastrear as funções que esse desaparecimento faz aparecer. De fato, para Foucault, o autor existe como função autor: um nome de autor não é simplesmente um elemento num discurso, mas ele exerce um certo papel em relação aos discursos, assegura uma função classificadora, manifesta o acontecimento de um certo conjunto de discursos e se refere ao estatuto desse discurso no interior de uma sociedade e no interior de uma cultura. Nem todos os discursos possuem uma função autor, mas em nossos dias, essa função existe plenamente nas obras literárias. Para a crítica literária moderna, o autor é quem permite explicar tanto a presença de certos acontecimentos numa obra como suas transformações, suas deformações, suas modificações diversas. O autor é também o princípio de uma certa unidade de escritura – é preciso que todas as diferenças se reduzam ao mínimo graças a princípios de evolução, de amadurecimento ou de influência. Finalmente, o autor é um certo “lar de expressão” que, sob formas mais ou menos acabadas, se manifesta tanto e com o mesmo valor em obras, em
Escrita de si como performance
1
Segundo Josefina Ludmer, esses gêneros costumam ser associados pela crítica ao feminino e, portanto, sofrem uma dupla marginalização.
17
rascunhos, em cartas, em fragmentos etc. Quer dizer que, para Foucault, o vazio deixado pela “morte do autor” é preenchido pela categoria “função autor” que se constrói em diálogo com a obra. Com o intuito de evitar a sacralização burguesa do nome do autor, a teoria literária devedora do formalismo russo ou do estruturalismo “passa a conceber a literatura como um vasto empreendimento anônimo e como uma propriedade pública, em que escrever e ler são percursos indistintos, autor e leitor papéis intercambiáveis, nesse universo onde tudo é escrita” (Melo Miranda, 1992, p.93). A crítica que sustenta essa acepção da literatura desconfia de qualquer relação exterior ao texto, marginalizando e considerando “gêneros menores” por serem gêneros da realidade, ou seja, textos fronteiriços entre o literário e o não-literário, a toda uma série de discursos relacionados com o eu que escreve: crônicas, memórias, confissões, cartas, diários, auto-retratos (Ludmer, 1984, p.47-54).1 No clássico ensaio “A morte do autor”, Roland Barthes se pergunta, a propósito de uma passagem de Sarrasine, de Balzac: “Quem fala assim? É o herói da novela, interessado em ignorar o castrado que se esconde sob a mulher? É o indivíduo Balzac, dotado por sua experiência pessoal de uma filosofia da mulher? É o autor Balzac, professando idéias “literárias” sobre a mulher? É a sabedoria universal? A psicologia romântica?”. Barthes (1988, p.65) conclui que é impossível responder a essas perguntas porque “a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo, aonde foge nosso sujeito, o branco-e-preto aonde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve”. Será, no entanto, que a destruição “da identidade do corpo que escreve” não é menos um produto da “escritura” do que de uma concepção modernista da escritura? Não será que ela não depende de uma perspectiva da autonomia da arte, segundo a qual “a realidade externa é irrelevante, pois a arte cria sua própria realidade” (cf. Hutcheon, 1988, p.146)? Sendo assim, a escritura como destruição
18
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
da voz e do corpo que escreve seria um conceito datado, e talvez historicamente ultrapassado. Por isso – como assinala Beatriz Sarlo (1995, p.11) –, se nós, os leitores, ainda nos interessamos pelos escritores é porque “não fomos convencidos, nem pela teoria nem por nossa experiência, de que a ficção seja, sempre e antes de tudo, um apagamento completo da vida”. A partir disso, uma pergunta se torna inevitável: como pensar o sujeito da escrita depois da crítica estruturalista do sujeito, de sua descentralização? O “retorno do autor” – a auto-referência da primeira pessoa autobiográfica na narrativa contemporânea – talvez seja uma forma de questionamento do recalque modernista do sujeito. “Retorno” remeteria assim não apenas ao devir temporal, mas especialmente ao sentido freudiano de Wiederkehr, de reaparição do recalcado. Parto, então, da hipótese de que essas narrativas contemporâneas respondem ao mesmo tempo e paradoxalmente ao narcisismo midiático e à crítica do sujeito. Há dois anos, na pesquisa que concluiu no meu livro Escritas de si, escritas do outro. O retorno do autor e a virada etnográfica (Klinger, 2007), considerava que o conceito de “autoficção” (posto em circulação em 1971 pelo escritor francês Serge Doubrovsky) podia dar conta desse paradoxo. No entanto, tenho percebido que em muitas das discussões acadêmicas e jornalísticas esse conceito tem adquirido uma amplitude tal que parece abranger desde Infância¸ de Graciliano Ramos, até os blogs pessoais. Por isso, se acreditamos – como acredito – que alguma coisa tem mudado na literatura recente, torna-se importante especificar a noção de autoficção como uma característica própria da narrativa contemporânea, que pode ter pontos de contatos, mas se diferencia de outras narrativas anteriores. Para isso, é necessário chegar numa definição precisa do que consideramos “autoficção”. Parto da hipótese de que a autoficção se inscreve no coração do paradoxo deste final de século XX: entre um desejo narcisista de falar de si e o reconhecimento da im-
Escrita de si como performance
19
possibilidade de exprimir uma “verdade” na escrita. Assim, a autoficção se aproxima do conceito de performance, que, como espero mostrar, também implica uma desnaturalização do sujeito. O termo inglês “performance” significa “atuação”,“desempenho”, “rendimento”, mas começou a assumir significados mais específicos nas artes e nas ciências humanas a partir dos anos 1950 como idéia capaz de superar a dicotomia arte/vida. Do ponto de vista da antropologia, uma performance é “toda atividade feita por um indivíduo ou grupo na presença de e para outro indivíduo ou grupo” (Schechner, 1988, p.30). Assim, para Victor Turner (apud Taylor, 2003, p.19), as performances revelam o caráter profundo, genuíno e individual de uma cultura. Pelo contrário, o performático significa, na teoria de gênero da crítica norte-americana Judith Butler, não o “real, genuíno”, mas exatamente o oposto: a artificialidade, a encenação. A argumentação de Butler (2003, p.197), ainda que voltada para uma gender theory, pode ser muito proveitosa para pensar o conceito de autoficção. Para Butler, o gênero é uma construção performática, quer dizer, uma construção cultural imitativa e contingente. O gênero é “um estilo corporal, um ato, por assim dizer, que tanto é intencional como performativo, onde performativo sugere uma construção dramática e contingente de sentido”. Butler argumenta que a noção de gênero como essência interior de um sujeito e como a garantia de identidade é uma ilusão mantida para os propósitos da regulação da sexualidade dentro do marco obrigatório da heterossexualidade reprodutiva. Assim entendido, o gênero é considerado uma ficção regulatória e encarna uma performatividade por meio da repetição de normas que dissimulam suas convenções. A performance dramatiza o mecanismo cultural de sua unidade fabricada. Butler analisa o caso da paródia do gênero que realiza o travesti e diz que essa paródia não presume a existência de um original que essas identidades parodísticas imitariam. “A paródia que se faz é da própria idéia de um original” (ibidem, p.199).
20
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
A perspectiva de Butler interessa precisamente pela desconstrução do mito de original, pois ela argumenta que a performance de gênero é sempre cópia da cópia, sem original. Da mesma maneira, a autoficção também não pressupõe a existência de uma sujeito prévio, “um modelo”, que o texto pode copiar ou trair, como no caso da autobiografia. Não existe original e cópia, apenas construção simultânea (no texto e na vida) de uma figura teatral – um personagem – que é o autor. Para se compreender essa relação entre escrita e performance é preciso levar em consideração a crítica à noção de representação da episteme moderna, que se produz nos campos mais diversos, da estética à metafísica, passando pela política. Vou limitar minha argumentação à critica de Derrida, que considero bastante significativa. Segundo Derrida (1996, p.78ss.) apesar da força dessa corrente, a autoridade da representação se impõe ao nosso pensamento mediante uma história densa e fortemente estratificada. Com efeito, toda epistemologia moderna está fundada sobre a noção de representação. O antropólogo Paul Rabinow (1986, p.234) define assim o conhecimento: “conhecer é representar adequadamente o que está fora da mente”. A partir dessas premissas, Derrida se pergunta: o que é a representação em si mesma? Qual é o eidos da representação? E diz que, antes de saber como e o que traduzir por representação, devemos nos perguntar pelos conceitos de tradução e de linguagem, conceitos dominados freqüentemente pelo conceito de representação, seja interlingüística, intralingüística ou inter-semiótica (entre linguagens discursivas e não-discursivas) na arte, por exemplo. Em cada caso nos encontramos com pressuposto, ou o desejo, de uma identidade de sentido invariável, que regula todas as correspondências. Esse desejo seria o de uma linguagem representativa, linguagem que representaria um sentido, um objeto, um referente, que seriam anteriores e exteriores a essa linguagem. Sob a diversidade das palavras de línguas diferentes, sob a diversidade dos usos da mesma palavra, e sob a diversidade dos contextos e dos
Escrita de si como performance
21
sistemas sintáticos, o mesmo sentido ou o mesmo referente, o mesmo conteúdo representativo conservaria sua identidade irredutível. O representado seria uma presencia e não uma representação. A crítica a essa noção de linguagem representativa não pode evadir o pensamento de Heidegger. Segundo o filósofo alemão, diz Derrida, no mundo grego não havia uma relação com o ente como uma imagem concebida como representação (Bild): o mundo era pura presença (Anwesen). É com o platonismo que o mundo se anuncia como Bild; o platonismo prepara, destina, envia o mundo da representação. É na Modernidade que o ente se determina como objeto trazido perante o homem, disponível para o sujeito-homem que teria dele uma representação. A representação chegou a ser o modelo de todo pensamento do sujeito, de todo o que lhe sucede a esse e o modifica em sua relação com o objeto. O sujeito, diz Derrida, não se define apenas como o lugar e a localização de suas representações: ele mesmo, como sujeito, fica aprendido como um representante. O homem, determinado em primeiro termo como sujeito, se interpreta ao mesmo tempo na estrutura da representação. O sujeito, segundo Lacan, é aquilo que o significante representa para outro significante. Estruturado pela representação, como alguém que tem representações, é também sujeito representante, alguém que representa alguma outra coisa. Quando o homem determina tudo o que existe como representável, ele mesmo se põe em cena, no círculo do representável, colocando-se a si mesmo como a cena da representação, cena na qual o ente deve se “re-apresentar”, ou seja apresentar novamente. Assim se remete da representação em relação com o objeto à representação como delegação, substituição de sujeitos identificáveis uns com os outros. Derrida formula a desconstrução da noção de representação a partir da noção de envio (Geschick). Um envio não constitui uma unidade, e não tem nada que o preceda. Não emite senão remetendo: “tudo começa no remeter, ou seja, não começa”. Essas pegadas, esses rastros, são re-
22
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
missões a um passado sem origem do sentido, remissões que não têm estrutura de representantes nem de representações, de significantes, nem de signos, nem de metáforas etc. As remissões do outro ao outro, as pegadas de différance, não são condições originárias e transcendentais. São um envio, um destino (Geschick) que “não está nunca seguro de se juntar, de se identificar, de se determinar” (Derrida, 1996, p.78). Da mesma forma se pode pensar a autoficção como “envio”, remissão sem origem, sem substrato transcendente. Então, é a partir da crítica à noção de representação e de sujeito que se pode formular um conceito de autoficção que seja específico da literatura contemporânea. O sujeito que “retorna” nessa nova prática de escritura em primeira pessoa não é mais aquele que sustenta a autobiografia: a linearidade da trajetória da vida estoura em benefício de uma rede de possíveis ficcionais. Não se trata de afirmar que o sujeito é uma ficção ou um efeito de linguagem, como sugere Barthes,2 mas que a ficção abre um espaço de exploração que excede o sujeito biográfico. Na autoficção, pouco interessa a relação do relato com uma suposta “verdade” prévia a ele, que o texto viria saciar, pois como aponta Cristopher Lasch (1983, p.42), “o autor hoje fala com sua própria voz mas avisa ao leitor que não deve confiar em sua versão da verdade”. Confundindo as noções de verdade e ilusão, o autor destrói a capacidade do leitor de “cessar de descrer”. Assim, o que interessa na autoficção não é a relação do texto com a vida do autor, e sim a do texto como forma de criação de um “mito do escritor”. É preciso dizer algumas palavras do que entendemos aqui por mito. Em Mitologias, Roland Barthes (2003) oferece uma sagaz descrição do mecanismo de criação do mito, partindo da estrutura ternária do conceito de signo de Saussure. Significante, significado e signo são três termos formais, aos quais se podem atribuir diferentes conteúdos. Por exemplo, para Freud, o significante é constituído pelo conteúdo manifesto de um comportamento, enquanto o significado é seu
Escrita de si como performance
2
Também Philippe Sollers, em seu texto “Logique de la fiction”, in Logiques (Seuil, 1968, p.15-43. Coll. Tel Quel), citado por Emilie Lucas-Leclin (2005, p.3).
23
sentido latente. O terceiro termo é a correlação entre os dois primeiros. Quer dizer que os sonhos e os atos falhos são signos, ou seja, eventos concebidos como economias realizadas graças à junção da forma (primeiro termo) e da função intencional (segundo termo). Barthes concebe o mito em analogia com o signo saussuriano e o inconsciente freudiano, pois ele reproduz o mesmo esquema tridimensional. O mito se constrói a partir de uma idéia semiológica que lhe preexiste no sistema da língua: o que é signo (junção de três termos) no primeiro sistema é significante (primeiro termo) no segundo. O signo, termo final do sistema da língua, ingressa como termo inicial no segundo sistema, mitológico. Barthes chama esse signo (significante no segundo sistema) de “forma”, e o significado, de “conceito”. O terceiro termo, no sistema do mito, é a significação. O mito porém se aproxima mais do inconsciente freudiano do que do signo lingüístico, pois num sistema simples como a língua o significante é vazio e arbitrário e, portanto, não oferece nenhuma resistência ao significado. Pelo contrário, “assim como para Freud, o sentido latente do comportamento deforma seu sentido manifesto, assim no mito o conceito deforma o sentido” (Barthes, 2003, p.313). O mito, dirá Lévi-Strauss (1987, p.233), é linguagem, mas linguagem que opera num nível muito elevado e cujo sentido consegue decolar – cabe usar uma imagem aeronáutica – do fundamento lingüístico sobre o qual tinha começado a se deslizar. A autoficção é uma máquina produtora de mitos do escritor, que funciona tanto nas passagens em que se relatam vivências do narrador quanto naqueles momentos da narrativa em que o autor introduz no relato uma referência à própria escrita, ou seja, a pergunta pelo lugar da fala (O que é ser escritor? Como é o processo da escrita? Quem diz eu?). Reconhecer que a matéria da autoficção não é a biografia mesma e sim o mito do escritor nos permite chegar próximos da definição que interessa para nossa argumentação. Qual a relação do mito com a autoficção?
24
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
O mito, diz Barthes (2003, p.221), “não é uma mentira, nem uma confissão: é uma inflexão”. “O mito é um valor, não tem a verdade como sanção.” A autoficção participa da criação do mito do escritor, uma figura que se situa no interstício entre a “mentira” e a “confissão”. A noção do relato como criação da subjetividade, a partir de uma manifesta ambivalência a respeito de uma verdade prévia ao texto, permite pensar a autoficção como uma performance do autor. É no sentido de artifício, como “comportamentos duplamente exercidos, comportamentos restaurados, ações que as pessoas treinam para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar” (Schechner, 2003, p.27), que pensamos a identidade autoral no caso das narrativas contemporâneas mencionadas no início. O conceito de performance deixaria ver o caráter teatralizado da construção da imagem de autor. Estou propondo uma sutil diferença entre o sujeito escritor e a figura do autor. Dessa perspectiva, não haveria um sujeito pleno, originário, que o texto reflete ou mascara. Pelo contrário, tanto os textos ficcionais quanto a atuação (a vida pública) do escritor são faces complementares da mesma produção da figura do autor, instâncias de atuação do eu que se tencionam ou se reforçam, mas que, em todo caso, já não podem ser pensadas isoladamente. O autor é considerado como sujeito de uma performance, de uma atuação, que “representa um papel” na própria “vida real”, na sua exposição pública, em suas múltiplas falas de si, nas entrevistas, nas crônicas e auto-retratos, nas palestras. Portanto, o que interessa do autobiográfico no texto de autoficção não é uma certa adequação à verdade dos fatos, mas sim “a ilusão da presença, do acesso ao lugar de emanação da voz” (Arfuch, 2005, p.42). Assim, a autoficção adquire outra dimensão que não a ficção autobiográfica, considerando que o sujeito da escrita não é um “ser” pleno, cuja existência ontológica possa ser provada, senão que o autor, a figura do autor, é resultado de uma construção que opera tanto dentro do texto ficcional quanto fora dele, na “vida mesma”.
Escrita de si como performance
25
Daí que o texto de autoficção se aproxime também da performance como arte cênica. O texto autoficcional implica uma dramatização de si que supõe, da mesma maneira que ocorre no palco teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictício, pessoa (ator) e personagem. A dramatização supõe a construção simultânea de ambos, autor e narrador. Imaginando uma analogia entre a literatura e as artes cênicas, poder-se-ia traçar uma correspondência entre o teatro tradicional e a ficção, por um lado, e a arte da performance e a autoficção, por outro. Na cena teatral existe um paradoxo, que Julian Olf (apud Cohen, 2002, p.95) chama de dialética da ambivalência, que pode ser enunciado como a impossibilidade de “ser” e representar simultaneamente. O ator não pode ser e construir um outro ser ao mesmo tempo. Quando o ator entra na cena teatral, ele passa a “significar”, a virar signo, desdobrando-se em ator e personagem. O ator situa-se assim entre dois pólos: o da atuação e o da representação. Essa ambivalência é insalvável: o ator nunca poderá estar somente “atuando”, mesmo que ele represente a si mesmo, nem poderá estar completamente possuído pelo personagem. Ora, esse paradoxo está em relação a um outro, que atinge tanto a representação teatral quanto o texto ficcional: como no texto de ficção, no espetáculo teatral espaço e tempo são ilusórios, no teatro e no romance tudo remete ao imaginário. Quanto mais o ator (ou o autor do texto) entra no personagem, e mais real tenta fazê-lo, mais reforça a ficção, e portanto, a ilusão. Por isso a arte da performance rejeita a ilusão, ela é precisamente “o resultado final de uma longa batalha para liberar as artes do ilusionismo e do artificialismo” (Glusberg, 2003, p.46). A arte da performance supõe uma exposição radical de si mesmo, do sujeito enunciador, assim como do local da enunciação, a exibição dos rituais íntimos, a encenação de situações autobiográficas, a representação das identidades como um trabalho de constante restauração sempre inacabado (Ravetti, 2002, p.47). Na arte da performance, a ambivalência do teatro persiste, mas ao contrário desse,
26
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
o performer está mais presente como pessoa e menos como personagem. Da mesma forma que na performance, na autoficção convivem o escritor-ator e o personagem-autor. E não se procura aumentar a verossimilhança, pois ela, como vimos, aumentaria paradoxalmente o caráter ficcional. No texto de autoficção, entendido nesse sentido, quebra-se o caráter naturalizado da autobiografia numa forma discursiva que ao mesmo tempo exibe o sujeito e o questiona, ou seja, que expõe a subjetividade e a escritura como processos em construção. Assim, a obra de autoficção também é comparável à arte da performance na medida em que ambos se apresentam como textos inacabados, improvisados, work in progress, como se o leitor assistisse “ao vivo” ao processo da escrita. Literatura como performance, isto é, como uma prática inserida num contexto sociocultural mais amplo, no qual a figura do autor interfere na leitura do texto. Reinaldo Laddaga (2006, p.7) afirma que estamos perante uma profunda transformação da configuração da modernidade estética, na qual a literatura se destinava “a um espectador ou um leitor retraído e silencioso, que a obra devia subtrair [...] do seu entorno normal para confrontá-lo com a manifestação da exterioridade do espírito ou do inconsciente”. Isso ainda era válido para a literatura latino-americana digamos até os anos 1980: da obra de Borges, Carpentier, Lezama Lima, Guimarães Rosa até Garcia Marquez, Carlos Fuentes, Julio Cortázar ou Clarice Lispector, para citar apenas alguns exemplos. Os novos narradores, diz Ladagga (2006, p.10), sabem que suas operações se realizam numa época de superabundância informativa, na qual é improvável encontrar esse tipo de leitor que deseja se isolar do entorno de comunicações ordinárias para se confinar na confrontação solitária com um artefato de linguagem. Por isso, a escrita de si como performance também supõe uma revisão na noção de valor literário: a autoficção não pode ser lida apenas a partir das qualidades estéticas do texto. A autoficção só faz sentido se lida como show, como espetáculo, ou como gesto. Isso é característico, também, de certa literatura que Josefina Ludmer (2007) cha-
Escrita de si como performance
27
ma de “pós-autônoma”. Estas obras performáticas podem ser lidas junto com aquelas narrativas que, segundo Ludmer (2007), “aparecem como literatura mas não podem ser lidas com os critérios ou com as categorias literárias (específicas da literatura) como autor, obra, estilo, escrita, texto e sentido. E, portanto, é impossível lhes atribuir um ‘valor literário’: já não tem, para essas escritas, literatura boa ou ruim”. Sendo assim, a autoficção mostraria algo a mais do que uma tendência da narrativa contemporânea. Talvez ela seja um dos signos de um esgotamento da cultura moderna das letras.
Referências ARFUCH, Leonor. El espacio biográfico. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2005. BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1977. . O rumor da língua. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo; Campinas: Brasiliense; Editora da Unicamp, 1988. . Mitologias. Trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Difel, 2003. BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminisimo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2002. . La deconstrucción en las DERRIDA, Jacques. Envío. In: fronteras de la filosofía. Barcelona: Paidós, 1996. FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966. . Qu’est-ce qu’un auteur? In: limard, 1994. v.I.
. Dits et écrits. Paris: Gal-
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2003. HUTCHEON, Linda. A poetics of postmodernism: history, theory, fiction. New York: Routledge, 1988. KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro. O retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
28
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
LADDAGA, Reinaldo. Espectáculos de realidad. Ensayos sobre la narrativa latinoamericana de las últimas décadas. Rosario: Beatriz Viterbo, 2007. LACAN, Jacques. O seminário. Livro XI. Trad. Leyla PerroneMoisés. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
Escrita de si como performance
29
TAYLOR, Diana. Hacia una definición de performance. O Percevejo, Rio de Janeiro, ano 11, n.12, p.17-24, 2003.
Obras de ficção AIRA, César. Como me hice monja. Rosario: Beatriz Viterbo, 1993.
LASCH, Cristopher. A cultura do narcisismo. A vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.
BELLATÍN, Mario. Lecciones para uma liebre muerta. Madrid: Anagrama, 2005.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estructural. Buenos Aires: Paidós, 1987.
CUCURTO, Washington. Cosa de negros. Buenos Aires: Interzona, 2003.
LUCAS-LECLIN, Emilie. Reflexion sur le retour du “je” en littérature à travers la notion d’ “autofiction”: à partir de La Bataille de Pharsale de C. Simon, du Roland Barthes par Roland Barthes, et de W ou le souvenir d’enfance de G. Perec. Paris, 2005. Tese (Doutorado) – Université de la Sorbonne. LUDMER, Josefina. Las tretas del débil. In: GONZÁLEZ, Patricia Elena; ORTEGA, Eliana. (Ed.) La sartén por el mango. Encuentro de escritoras latinoamericanas. Río Piedras: Ediciones Huracán, 1984. . Literaturas post-autónomas. Revista Z, novembro 2007. Disponível em: <http://www.pacc.ufrj.br/z/ano4/1/josefinaludmer. htm>. Acesso em: 10 dezembro 2007. MELO MIRANDA, Wander. Corpos escritos. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1992. NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. Trad. Paulo Cézar Lima de Costa. São Paulo: Cia. das Letras, 2004. RABINOW, Paul. Representations are social facts: modernity and post-modernity in anthropology. In CLIFFORD, James; MARCUS, George E. (Ed.) Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986. RAVETTI, Graciela. Narrativas performáticas. In: RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia. (Org.) Performance, exílios, fronteiras. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.
GUTIERREZ, Pedro Juan. Trilogia suja de Havana. Trad. José Rubens Siquiera. São Paulo: Cia. das Letras, 2005. JARAMILLO AGUDELO, Darío. El juego del alfile. Madrid: Pretextos, 2002. LEMEBEL, Pedro. Loco afán: crónicas del sidario (chronicles). Santiago: LOM, 1996. . De perlas y cicatrices. Santiago: LOM, 1998. . La esquina es mi corazón. Santiago: Seix Barral, 2001. LEVRERO, Mario. El discurso vacío. Montevideo: Ediciones Trilce, 1996. . La novela luminosa. Montevideo: Alfaguara, 2005. MIRISOLA, Marcelo. O azul do filho morto. São Paulo: Editora 34, 2002. NOLL, João Gilberto. Berkeley em Bellagio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. . Lorde. São Paulo: Francis, 2004 LINK, Daniel. La ansiedad . Buenos Aires: El Cuenco de Plata, 2004. . Montserrat. Buenos Aires: Interzona, 2006. SANTIAGO, Silviano. Stella Manhattan. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
SARLO, Beatriz. Prólogo a Graciela Speranza. In: SPERANZA, Graciela. Primera persona. Conversaciones con quince narradores argentinos. Buenos Aires: Norma, 1995.
. Em liberdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1981.
SCHECHNER, Richard. Performance theory. New York: Routledge, 1988.
. O falso mentiroso. Memórias. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
. O que é performance? O Percevejo, Rio de Janeiro, ano 11, n.12, p.26-50, 2003.
. Viagem ao México. Rio de Janeiro: Rocco: 1995.
. Histórias mal contadas. Contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. VALLEJO, Fernando. Los días azules. Buenos Aires: Alfaguara, 1985a.
30
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
31
VALLEJO, Fernando. El fuego secreto. Buenos Aires: Alfaguara, 1985b.
Autoficção e literatura contemporânea
. Los caminos a Roma. Buenos Aires: Alfaguara, 1988.
Luciene Almeida de Azevedo*
. Años de indulgencia. Buenos Aires: Alfaguara, 1989. . Entre fantasmas. Buenos Aires: Alfaguara, 1993. . La virgen de los sicarios. Madrid: Alfaguara, 1998. . El desbarrancadero. Buenos Aires: Alfaguara, 2001. . La rambla paralela. Buenos Aires: Alfaguara, 2002.
RESUMO: Sob a hipótese de que o conceito de literário está sen-
. Mi hermano el alcalde. Buenos Aires: Alfaguara, 2004.
do reconfigurado, o objetivo principal do trabalho é o comentário teórico sobre o conceito de autoficção, entendido como uma estratégia da literatura contemporânea capaz de eludir a própria incidência do autobiográfico na ficção e tornar híbridas as fronteiras entre o real e o ficcional, colocando no centro das discussões novamente a possibilidade do retorno do autor, não mais como instância capaz de controlar o dito, mas como referência fundamental para performar a própria imagem de si autoral que surge nos textos. O foco investigativo se concentrará na produção de alguns autores que se lançaram na rede, como Clarah Averbuck, João Paulo Cuenca, Santiago Nazarian. PALAVRAS-CHAVE: Autoria, autoficção, blog, literatura contem-
porânea. ABSTRACT:
Under the hypothesis of that the concept of literary is being reconfigured, the main objective of the essay is the theoretical commentary about the concept of autoficção as a strategy of contemporary literature, by setting in the center of the arguments afresh the possibility from the recurrence author’s. The focus will be concentrated in the production of some authors whom if they had launched in the net, some names: Clarah Averbuck, João Paulo Cuenca, Santiago Nazarian, KEYWORDS :
Authorship, autoficção, blog, contemporary
literature.
* Professora doutora de Teoria Literária da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) – Uberlândia (MG).
“A necessidade canônica, quando se vai trabalhar com o contemporâneo, de saída nos coloca diante dessa questão: O que é literatura?” (Beatriz Resende)
32
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Na cena-Matrix da contemporaneidade, há quem ainda se incomode com a labilidade das fronteiras virtuais fagocitando um já precário real, seja para reavivar a retórica-Baudrillard do “ai como era gostoso o meu Real”, seja para demonizar a espetacularização à la Debord. Para os que apostam nesse panorama desolador, a literatura estaria perdendo sua capacidade adorniana de resistência e se entregando facilmente aos prazeres da superficialidade, regozijando-se com o banal, chafurdando no ordinário e investindo em conteúdos ridículos. Assim, tendo invadido a cena literária contemporânea, o blog é entendido como o mais novo dispositivo propulsor de artificialismos que investe na espetacularização do sujeito e se constitui como uma ferramenta a mais, prestes a colaborar com a “tagarelice do personalismo e a banalidade da auto-expressão narcisista” (Jaguaribe, 2006, p.115). Na esteira do sucesso dos reality shows e das fórmulas de vida na lição auto-ajuda, a demanda pela autenticidade das imagens e narrativas da “vida real” contaminaria a escrita de si cultivada pelos escritores de blogs que, por sua vez, reafirmariam o narcisismo de uma sociedade midiática. Para aquele que aceite enfrentar o desafio de pensar o contemporâneo é quase impossível escapar do fato de que os salões virtuais da web invadiram a cena literária contemporânea e muitos dos novos autores escolhem os blogs1 para divulgar sua ficção. O novo suporte coloca em questão não apenas a dúvida pelo próprio estatuto da ficção (Isso é, ainda, literatura?), mas também a legitimação do jovem autor e as próprias estratégias de representação do que tem a dizer. Isso fica claro quando os autores são cobrados por sua falta de expertise literária (“os escritores de blog... não são artistas, leitores ou peritos [...] [são] autores que quase não leram” (ibidem, p.110)) ou pela falta de lastro biográfico significante que os desautorizaria a contar uma vida tão ordinária. Lidos nessa clave, a ausência de uma aprendizagem artística e a idolatria da “pessoa comum” cultivadas pela imensa seara blogueira é um correlato do cotidiano
Autoficção e literatura contemporânea
1
Blogs são páginas pessoais nas quais os autores podem expor desde experimentações literárias até os mais banais comentários sobre o seu cotidiano. À maneira de um diário íntimo, o blog é construído cronologicamente mediante a possibilidade diária de atualização (cf. Azevedo, 2005).
33
mergulhado na mediocridade e em subjetividades incapazes de singularidades diferenciadoras, pois, apesar da exacerbada presença do biográfico nos textos postados, convivemos com um paradoxal declínio da interioridade psicológica (Sibilia, 2006), com subjetividades construídas para serem apenas vitrines de exposição de um eu produzido artificialmente, uma identidade fake. E se, porém, a contrapelo das análises apocalípticas, sem que tampouco tomemos a via da Poliana integrada, pudéssemos ler a produção dos blogs literários apostando em uma relação com as marcas do nosso presente que não se nega ao diálogo com a espetacularização? Se aceitamos a hipótese, a aposta na exposição do eu, o exercício da textualização de si podem ser lidos “em sintonia com o narcisismo da sociedade midiática contemporânea, mas, ao mesmo tempo, produz[irem] uma reflexão sobre ele” (Klinger, 2006). Na falta das grandes narrativas, dos grandes romances formativos do eu, das certezas de um cânone estável no qual se apoiar, talvez valha a pena apostar que a cena literária do século XXI, precária e instável, já apresenta novas estratégias de representação, “elementos singulares que estão em trânsito, propensos a circunscreverem modalidades inéditas de experiências” (Fatorelli, 2006, p.19). Nesse sentido, talvez seja possível pensar a auto-exposição da intimidade também como estratégia para driblar, e brincar com, a superficialidade contemporânea. Em vez do pacto pelo efeito de real que a narrativa das experiências pessoais persegue e da legitimação da autenticidade do que é contado por quem, de fato, viveu o que conta, podemos considerar que a presença avassaladora do autobiográfico na ficção blogueira é uma estratégia autoficcional que investe na criação de “eus” de/no papel. No universo da visibilidade total (“Sorria, você está sendo filmado”), estimulado aliás pela internet (Orkut, webcams e fotologs não nos deixam mentir), os blogs são dispositivos que permitem a invenção de si. (Re)Inventarse em outros é uma estratégia ficcional tão antiga que le-
34
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
vou Platão a expulsar os poetas da Cidade Ideal, mas mesmo um procedimento tão antigo pode ter renovado seu estatuto uma vez consideradas as circunstâncias de seu (re)aparecimento. Assim, entendemos que a incorporação do autobiográfico é uma estratégia para eludir a própria autobiografia e tornar híbridas as fronteiras entre o real e o ficcional, colocando no centro das discussões novamente a possibilidade do retorno do autor, não mais como instância capaz de controlar o dito, mas como referência fundamental para performar a própria imagem de si. Nesse sentido, a problemática principal que ronda os posts diários dos blogs e as narrativas dos autores que garantiram publicação em papel depois que se lançaram na rede dramatizando suas experiências cotidianas não está calcada na garantia de veracidade, mas em um protocolo de desaparecimento (“Como faremos para desaparecer?”, perguntava Blanchot). Um jogo de esconde-esconde que alude a uma visibilidade enganadora investindo na impossibilidade de confirmar se tudo (ou quase nada?), afinal, é verdade ou não. A figura do autor (eu que escreve ou ego scriptor?) é ao mesmo tempo evocada como referente do texto e ao mesmo tempo borrada pela indecidibilidade que inquieta o leitor chamado a participar de um pacto em que as regras não estão dadas de antemão.
Autoficção: um conceito esquizofrênico? Partindo do pressuposto de que é possível ler também nos blogs um investimento na figuração de si que se apropria antropofagicamente da exacerbada auto-exposição da intimidade que está no “espírito do tempo”, de ambiente virtuais ou não, como uma forma de driblar a espetacularização do eu e a visibilidade transparente, acreditamos que é possível pensar a autoficção como uma estratégia representacional possível exercitada pelos blogueiros em seus posts e nos livros publicados, como um dispositivo que responde ao contexto contemporâneo. O termo autoficção foi empregado pelo francês Serge Doubrovski para nomear um exercício ficcional criado
Autoficção e literatura contemporânea
35
como resposta à análise de Philippe Lejeune (1996, p.31) sobre a autobiografia que, em seu conhecido livro sobre o pacto autobiográfico, assim se manifestava:
2
“O herói do romance, uma vez declarado como tal, pode ter o mesmo nome do autor do romance? Nada impediria tal fato, e talvez fosse uma contradição interna da qual se poderia tirar alguns efeitos. Mas, na prática, nenhum exemplo se apresenta a essa pesquisa.” Todas as traduções deste ensaio são minhas, salvo indicação contrária.
3
“A personalidade e a existência em questão são as minhas, e a de pessoas que compartilham minha vida.”
4
“eu me falto ao longo... de mim”.
Le héros d’un roman déclaré comme tal, peut-il avoir le même nom que l’auteur? Rien n’empêcherait la chose d’exister, et c’est peut-être une contradiction interne dont on pourrait tirer quelques effets. Mais, dans la pratique, aucun exemple ne se présent à l’esprit d’une telle recherche.2
Sentindo-se desafiado, Doubrovski escreve Fils (1977), romance em que faz coincidir herói e autor do romance (“La personnalité et l’existence en question ici sont les miennes, et celles des personnes qui partagent ma vie”,3 citado por Laouyen, s. d.), lançando mão da estratégia autoficcional baseada na construção polifônica de vozes e nas diferentes perspectivas narrativas. O conceito de autoficção, tal como entendido por Doubrovski (apud Laouyen, s. d.), inscreve-se na fenda aberta pela constatação de que todo contar de si, reminiscência ou não, é ficcionalizante, e que todo desejo de ser sincero é um trompe-oeil: “Je me manque tout au long... de moi”.4 Bem próximo da estratégia adotada por Silviano Santiago (2004; 2005) em O falso mentiroso e Histórias mal contadas que, empregando o procedimento de embaralhar as fronteiras entre vida e ficção, faz o narrador jogar com as margens do gênero e encenar um balanço de vida, malcontando histórias cultivadas pela memória inquietante de uma intrincada rede de leituras, especialmente de nossos escritores modernistas, desaparecendo como referente autoral do texto, para converter-se em “parasita literário de si mesmo” (para falarmos como outro autoficcionista, o espanhol Enrique Vila-Matas). A autoficção é entendida, então, como um apagamento do eu biográfico, capaz de constituir-se apenas nos deslizamentos de seu próprio esforço por contar-se como um eu, por meio da experiência de produzir-se textualmente. Eu descentralizado, eu em falta que preenche os vazios do semi-oculto com as sinceridades forjadas que escreve.
36
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Contestando, no entanto, o procedimento de utilização do termo por Doubrovski, Vincent Colonna (apud Laouyen, s. d.) investe no conceito, entendendo-o como uma estratégia representacional da literatura contemporânea: “Une autofiction est une ouvre littéraire par laquelle un écrivain s’invente une personnalité et une existence, tout en conservant son identité réelle (son véritable nom)”5 (grifos meus). A sutil diferença em relação ao entendimento do termo por Doubrovski vem da permanência defendida por Colonna da figura do escritor-autor como elemento de referência fundamental ao jogo autoficcional. O que claramente contraria a posição do autor de Fils uma vez que esse parece defender o esvaziamento ou a impossibilidade do lugar autoral que é preenchido pelo trabalho com o significante. Em síntese, todo valor à écriture, lema que poderia ser adotado por boa parte das tendências teóricas do século XX. A reapropriação que Colonna faz do conceito tal como é entendido por Doubrovski parece ir ao encontro do que afirma Puertas Moya (2003, p.586): Derrida e De Man han llegado a poner en duda [...] la existencia de una referencialidad concreta del texto autobiografico con respecto al yo, pero admiten que esta ilusión es un efecto estético que no invalida [...] una literatura referencial del yo existencial, asumido com mayor o menor nitidez, por el autor de la escritura; frente a la literatura fictícia, en la que el yo, sin referente específico no es asumido existencialmente por nadie en concreto.6
Apesar, porém, da popularidade que parece ganhar em muitas ficções contemporâneas, o conceito enfrenta resistências. Para Gerard Genette, ele não é nem mesmo inovador, já que é um dos mais básicos procedimentos ficcionais o fato de o autor fingir sua entrada na ficção. Assim, a postura de negação radical de Genette em relação ao termo é sintomática de uma dificuldade de caracterizar teoricamente a autoficção como um gênero, uma
Autoficção e literatura contemporânea
vez que o conceito parece se aproveitar da desestabilização empreendida pela própria autobiografia ao forçar as fronteiras do literário para dar uma volta a mais no parafuso, embaralhando ainda mais a questão: “o que interessa na autoficção, não é a relação do texto com a vida do autor, e sim a do texto como forma de criação de um ‘mito do escritor’. A autoficção é uma máquina produtora de mitos do escritor” (Klinger, 2006). Insistindo-se, contudo, na tentativa de caracterização do termo, que diferença fundamental haveria, então, entre a estratégia da autoficção e a autobiografia como desmascaramento?
5
“Uma autoficção é uma obra literária na qual um escritor se inventa uma personalidade e uma existência, conservando sua identidade real (seu verdadeiro nome).”
7
6
“Derrida e De Man colocam em dúvida [...] a existência de uma referencialidade concreta do texto autobiográfico com respeito ao eu, mas suas posições não parecem suficientes para invalidar [...] uma literatura referencial do eu existencial, assumido, com maior ou menor nitidez, pelo autor da escritura frente à literatura fictícia na qual o eu sem referente específico, não é assumido existencialmente por ninguém concretamente.”
37
“Nós pressupomos que a vida produz a autobiografia como um ato produz conseqüências, mas não poderíamos sugerir com a mesma justiça, que o projeto autobiográfico possa ele mesmo produzir e determinar a vida e, o que quer que o escritor faça, ele é governado pelas exigências técnicas do auto-retrato e determinado dessa forma pelos recursos de seu medium?”
Nous présupposons que la vie produit l’autobiographie comme un acte produit des conséquences, mais ne pouvons-nous pás suggérer, avec la même justice, que le projet autobiographique puisse lui-même produire et déterminer la vie et que, quoique fasse l’écrivain, il soit en fait gouverné par les exigences techniques de l’autoportrait, et déterminé ainsi, de part en part, par les ressources de son medium?7 (De Man, 1979, p.98)
Aqui, arriscaríamos a dizer que a instabilidade mesma do desmascaramento já provado pela autobiografia é desdobrada na reconciliação com a figura do autor que superou o paradigma da morte: do sujeito, do autor. Nesse sentido, se a desconstrução da ilusão referencial foi necessária, agora podemos fazer as pazes não para restabelecer qualquer centro orientador, mas para investir no jogo de continuar representando. Para rebater a negatividade de Genette, diríamos que o que é realmente novidade na autoficção é a vontade consciente, estrategicamente teatralizada nos textos, de jogar com a multiplicidade das identidades autorais, os mitos do autor, e ainda que essa estratégia esteja referendada pela instabilidade de constituição de um “eu”, é preciso que ela esteja calcada em uma referencialidade pragmática, exterior ao texto, uma figura do autor, claro, ele mesmo também conscientemente construído.
38
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Assim, a estratégia básica da autoficção é o equilíbrio precário de um hibridismo entre o ficcional e o autoreferencial, um entre-lugar indecidível que bagunça o horizonte de expectativa do leitor: Le lecteur se trouve face à une assertion dont la véracité reste indécidable. Devant cette categorie textuelle, on doit prendre en compte deux injonctions antinomiques: lire le texte comme une fiction et comme une autobiographie. Pourtant la synthèse entre ses deux registres peut paraître impossible, car comment distinguer le référentiel de l’imaginaire, le littéral du métaphorique?8 (Kouroupakis & Werli, s. d.)
Se concordamos, então, que autobiografia e ficção compartilham fronteiras discursivas e que o elemento de interseção é o “eu”, diríamos que a autoficção atua com base na expectativa de representação de um “eu” sempre cambiante em que as próprias fronteiras parecem rasuradas. Ao invés da relativa estabilidade “imagens ficcionais se naturalizam em nossa vivência do cotidiano e, em troca, experiências cotidianas se metamorfoseiam em manifestações ficcionais” (Costa Lima, 1986, p.300), a autoficção desestabiliza ainda mais a já precária condição desse “eu”, apresentando-se como uma escrita de si na qual o pacto mimético se metamorfoseia ficcionalmente e a invenção de si se naturaliza como vivência cotidiana. O verdadeiro eu é duplamente considerado uma ficção, não há um código hermenêutico que oriente a leitura, o sentido vacila justamente pela anfibologia do entre-lugar (Kouroupakis & Werli, s. d.): “É mentira, mas é tudo verdade. Qualquer semelhança com a realidade não terá sido mera coincidência” (Averbuck, 2002, p.79).9 A diferença é uma sutileza em relação à famosa afirmação de Barthes (2003) em seu exercício autobiográfico: “tudo isto deve ser considerado como dito por um personagem de romance”. Aqui, tudo é ficção. Mas a encenação do eu levada a cabo na autoficção necessita do substrato referencial, ainda que ele próprio seja um ato performático configurado no texto. Assim, o eu de papel é
39
Autoficção e literatura contemporânea
10
Cecília Gianetti nasceu no Rio de Janeiro, em 1976. É jornalista. Tem contos publicados em antologias e participa do projeto amores expressos. 8
“O leitor encontra-se diante de uma asserção cuja veracidade é indecidível. Diante dessa categoria textual, devem-se levar em conta duas injunções antinômicas: ler o texto como uma ficção e como uma autobiografia. No entanto, a síntese entre esses dois registros pode parecer impossível, pois como se haveria de distinguir o referencial do imaginário, o literal do metafórico?”
11
João Paulo Cuenca nasceu no Rio de Janeiro, em 1978. Começou a publicar ficção no blog. Co-autor de Parati para mim (Planeta, 2003) e autor de Corpo presente (2003). Também participa do projeto amores expressos, viajando para Tóquio.
uma figuração entre outras. A ilusão referencial é, e ao mesmo tempo não é, correlata à construção da figura que ganha estatuto ficcional paradoxalmente por meio da produtiva onipresença impotente da referência: “Quando conto alguma coisa do meu dia-a-dia pode desconfiar que é invenção” (Cecília Gianetti, 2007-04-29, blog).10 Assim, o autor assume um duplo estatuto contraditório: um lugar vazio impossível de garantir a veracidade referencial e simultaneamente um intruso que se assume interlocutor de si, colocando-se abertamente na posição de autor, fingindo-se outros: “Aos poucos vou me largando por aí. Os pedaços soltos pelos lugares mais improváveis. Alguns servem para encher papel, viram palavras” (João Paulo Cuenca, 2003-10, blog).11
O si mesmo de uma invenção de outros “Então agarra o que você tem mais próximo: fale de si mesmo. E ao escrever sobre si mesmo comece a se ver como se fosse outro, trate-se como se fosse outro: afaste-se de si mesmo conforme se aproxima de si mesmo.” (Vila-Matas, 2005, p.145)
9 Algumas das autoapresentações de Clarah Averbuck: “Nariz de pugilista, coração de moça e cabeça dura” (no blog adiós lounge). “Decidiu nunca mais trabalhar para passar o resto de sua vida em casa, escrevendo como uma maluca e tentando aprender a tocar direito... contenta-se em morar com seus três gatos na rua mais glam de São Paulo” (na orelha de Máquina de pinball).
No ensaio “O paradoxo e a mimese”, o comentário que Lacoue-Labarthe (2000, p.162) faz do texto de Diderot, Paradoxo sobre o comediante, coaduna-se ao dispositivo esquizofrênico que a autoficção faz disparar: “A apocrifia do autor é aqui mais temível ainda do que aquela que Platão temia”. A impessoalização do poeta é um dos motivos apresentados pelo filósofo grego para condenar a mimese por provocar uma decepção no espectador, que seria, dessa forma, enganado pela performance: “Quando profere um discurso como se fosse outra pessoa, acaso não diremos que ele se assemelha o mais possível o seu estilo ao da pessoa cuja fala enunciou?” (Platão, 1996, p.117). Sendo o poeta um verdadeiro hypocrités, um ator da mimese, sua impropriedade residiria em “não ser nada por si mesmo, nada ter de próprio, a não ser uma ‘igual apti-
40
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
dão para todo tipo de papéis’” (Lacoue-Labarthe, 2000, p.170). O dispositivo autoficcional se configuraria, então, como uma dobra a mais dessa decepção, uma vez que a intrusão do eu referencial (O autor? Quem fala?) coloca a autenticidade na clave da ficção: eu sou outros, mas os outros são um eu que, em vez de exigir a suspensão da descrença, aponta sempre para um incompatível pacto com um impossível verossímil. Todo o esforço pela caracterização de um conceito fugidio não seria, porém, vão, uma vez que sua definição parece se tornar indistinguível da própria definição de autobiografia (“o mesmo em sua mesmidade, é ele mesmo um outro e, por sua vez, não se pode dizer ‘ele mesmo’, e assim por diante até o infinito” (ibidem, p.172)) e em última instância do estatuto da ficção como um todo? Jean-Marie Schaeffer (1999), em seu livro Pourquoi la fiction?, comenta o engano a que foram conduzidos os leitores de Marbot. Uma biografia, publicado por Wolfgang Hildesheimer. Apesar de o livro insistir na informação paratextual, agregando-a ao título, de que se tratava de um estudo biográfico de Marbot, o personagem nunca existiu, tratava-se de uma biografia imaginária, um texto ficcional. A confusão parece estimulada pela publicação, alguns anos antes, de outra biografia publicada por Hildesheimer, dessa vez verdadeira, sobre Mozart. Além disso, o interesse pela vida de Marbot justificava-se, pois significava o resgate de uma figura histórica que havia compartilhado o universo intelectual efervescente e as companhias de Goethe, Byron, Shelley e muitos outros artistas do início do século XIX, apimentada pela suposição de que o ilustre desconhecido teria mantido uma relação incestuosa com a mãe, o que poderia ter motivado seu desaparecimento súbito. A suspeita do suicídio e a propensão ao pessimismo são atribuídas à sua amizade com Schopenhauer. A construção do personagem é cuidadosamente construída com dados referenciais: algumas reproduções de quadros acompanham o texto e indiciam o retrato não apenas de Marbot, mas também de seus pais pintados por
Autoficção e literatura contemporânea
12
“Então, Marbot é uma ficção ou um engodo? Ou então, trata-se de uma ficção e de um engodo? Ou de um engodo ainda que a intenção do autor tenha sido compor uma ficção?”
41
Delacroix (claro, tratava-se de anônimos aos quais o (falso) biógrafo batizou com o nome de seus personagens), além de trechos da correspondência de Goethe com Eckermann, do diário íntimo do próprio Delacroix aos quais foram acrescidas devidamente, aproveitando-se as passagens reais, menções à existência de Marbot. Embora, meses depois, o próprio Hildesheimer tenha se encarregado de lamentar a leitura equivocada, fez questão de eximir-se da culpa por qualquer decepção e engano proporcionados aos leitores, ainda que admitisse o caráter escondido e frágil das marcas ficcionais (o “falso biógrafo” alega que bastaria uma consulta a quaisquer das referências do index que acompanhava o livro para que o leitor pudesse se certificar da construção de Marbot como persona fictícia). No entendimento de Schaeffer (1999, p.135), no entanto, o argumento é frágil, uma vez que os índices maciços do texto apontam para a “maximização do componente mimético”, o que induziria o leitor ao erro e faria fracassar a ficção: “Alors, Marbot est-il une fiction ou un leurre? Ou bien s’agit-il d’une fiction et d’un leurre? [...] Ou d’un leurre quoique l’intention de l’auteur ait été de composer une fiction?”12 (ibidem, p.136). O interesse de Schaeffer no “caso Marbot” está fundamentado em seu esforço por caracterizar a própria condição de existência do ficcional. Seu pressuposto é o de que a ficção precisa ser “uma fantasia lúdica compartilhada” (“feintise ludique partagée”) completando-se, portanto, na relação intersubjetiva que estabelece com seu leitor. Por isso, o crítico francês aposta na falha de Hildesheimer, já que o leitor não é suficientemente orientado a compartilhar da fantasia porque é bombardeado por informações que, alocadas verossimilmente ao longo do texto, o desviam da ficção, induzindo-o ao erro. Dessa forma, Schaeffer (1999, p.138) defende que é necessária a “estipulação explícita da ficcionalidade”, e Hildesheimer teria violado todas as condições capazes de garantir um pacto: o contexto autorial (o fato de já ter se
42
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
aventurado ao território da biografia, escrevendo a vida de Mozart não muito tempo antes), o paratexto (insistir na incorporação do gênero ao título), a mimese formal (imitando procedimentos enunciativos do gênero biográfico: fotos, documentos, cartas, a fim de garantir o estatuto ontológico do personagem). Assim, o grande imbroglio criado por Hildesheimer para seu próprio texto é o fato de ter atravessado o limite entre o universo histórico (referencial) e o universo ficcional, expondo o último a uma excessiva contaminação pelo primeiro: “Le plus difficile n’est pas de faire prendre pour réelle des entités fictives, mais de réduire au statut fictionnel des entités qui ont été introduites comme réelles”13 (Schaeffer, 1999, p.137). É a esse mesmo impasse que o leitor da escrita de si umbiguista dos blogs e da ficção publicada em papel por esses autores está exposto. O narrador toma a consistência espessa de um eu narrador-personagem que atua para embaralhar uma suposta busca por autenticidade cujo parâmetro seria a figura do autor real. A autoficção, se nos aproveitamos da reflexão de Schaeffer, investe mesmo no engodo para inscrever-se ficcionalmente, uma vez que desrespeita as condições para o estabelecimento da ficção. Condições essas exploradas também por Puertas Moya (2003) na tentativa de relacionar alguns traços que tornassem pertinente a distinção entre romance autobiográfico e autoficção. Segundo o crítico espanhol, o romance autobiográfico garante um fator textual de identificação entre o personagem (o nome ou uma auto-alusão referencial) e o autor, indício que é reforçado por fatores de identificação paratextual que oferecem ao leitor elementos de relação com o personagem (prólogos, resenhas, dedicatórias), o que corresponderia, na argumentação de Schaeffer, à importância atribuída ao contexto autorial e ao paratexto para garantia da ficção. Além de tudo, para Puertas Moya (2003), o leitor poderia encontrar forte apoio no fator extratextual que revelaria informações sobre o autor (entrevistas, declarações, tes-
Autoficção e literatura contemporânea
14
13
“O mais difícil não é tomar por reais entidades fictícias, mas reduzir ao estatuto ficcional entidades que foram introduzidas como reais.”
Jeremiah “Terminator” LeRoy é o pseudônimo usado pela autora americana Laura Albert. “LeRoy” teria supostamente nascido em 31 de outubro de 1980, na Virginia, e sofrido vários abusos durante a infância e adolescência. Baseado nisso, seus livros seriam autobiográficos, mas uma notícia divulgada em outubro de 2005 plantou o boato de que J.T. LeRoy era uma farsa criada pela frustrada escritora Laura Albert com o objetivo de alcançar o sucesso. Em janeiro de 2006, o jornal The New York Times revelou que a pessoa que se apresentava como LeRoy é, na verdade, uma atriz e modelo, e se chama Savannah Knoop. Savananh é meio-irmã de Geoffrey Knoop, marido de Laura Albert, que a criaram em São Francisco. Geoffrey Knoop confirmou em entrevista recente que LeRoy é mesmo um personagem, e Laura Albert é a verdadeira autora dos livros. Consultado em: <http://pt.wikipedia.org/ wiki/JT_LeRoy>.
43
temunhos). Mas em tempos de JT Leroy,14 como acreditar que a verdade está lá fora? Se consideramos a estratégia do dispositivo autoficcional, diríamos, então, que a sua condição de possibilidade, sua inscrição no terreno ficcional, é mesmo o desrespeito que empreende às tais condições evocadas. Se não, vejamos. O contexto autorial não é requisito confiável, uma vez que a figura autoral é tão cuidadosamente construída quanto cada um dos “eus” criados no papel. As fotos de divulgação que acompanham as publicações impressas estimulam um verdadeiro procedimento de mise-en-abyme: nas orelhas dos livros de Santiago Nazarian, flagramos o autor em performances de bodyart salpicado de sangue ou apenas, mais pueril, com um fiapo de baba de iogurte escorrendo pelo queixo, no romance cujo título sugestivo é Mastigando humanos. Um romance psicodélico (!!). Ato performático confirmado pelo autor: “eu achei que o molde ideal do personagem seria eu mesmo... Eu procuro fortalecer esse conceito de universo nazariano não só no conteúdo do livro, mas também nas capas, nas fotos de divulgação” (Santiago Nazarian em entrevista). E que dizer então da provocante foto que toma toda a contracapa de Máquina de pinball de Clarah Averbuck? Como descobrir quem é a Clarah e quem é Lady Averbuck ou Camila Chirivino? As personas, que vão se substituindo umas às outras com a velocidade da bolinha do jogo, como sugere o título do livro, não encontram nenhum repertório de referência. A espetacularização elude a possibilidade de qualquer autenticidade: Aqui você poderá me ver usando “eu” quantas vezes por parágrafo bem entender, sendo macho pra caralho, sendo “guei” pra caralho, abusando de piadas internas, não dormindo, utilizando caps indiscriminadamente, praguejando, me referindo a mim mesma na terceira pessoa, morrendo de dor, afogando o Sôo, rindo da minha própria desgraça e achando tudo ótimo. Três vivas para o umbiguismo. (Clarah Averbuck, 2007-01-23, no blog)
44
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Autoficção e literatura contemporânea
Se considerarmos as informações paratextuais, também não teremos melhor resultado. Depois da leitura da (im)provável história costurada por alguns ganchos, quase sempre viagens entre Rio, São Paulo, Porto Alegre e Londres, e descabelados envolvimentos românticos, lemos num texto à maneira de nota ao final do livro: a autora vendeu o corpo para comprar um laptop carinhosamente apelidado notebuck. É mentira, mas é tudo verdade. Qualquer semelhança com a realidade não terá sido mera coincidência. Dúvidas, consulte um advogado. (Averbuck, 2002, p.79)
16 Simone Campos, carioca, publicou seu primeiro romance aos dezessete anos, com sucesso de crítica e público. A partir daí, foi convidada a escrever contos para diversas coletâneas. O segundo romance saiu em 2006, após cinco anos de trabalho, quando Simone estava com 23 anos (conforme o blog).
É mesmo pelo fato de serem autores jovens, que não podem contar ainda com cacife biobibliográfico, que as eventuais informações extratextuais com as quais o leitor possa contar (o próprio blog em que escrevem, como suporte de autopromoção, e as entrevistas de divulgação de seus livros) se transformam em um jogo de espelhos indecidível; afinal, como acreditar na sinceridade da performance? Ele é bastante autobiográfico. Aquele apartamento é exatamente o apartamento em que eu morei em Porto Alegre. Inclusive, minha janela dava para o pátio do Inmetro. A rotina do personagem é a rotina que tive em alguns períodos da minha vida. Ele come o que eu como, veste-se como eu me visto, pensa como eu pensaria. (Santiago Nazarian)15
Talvez, porém, a consideração mais interessante para nossa argumentação resida no fato de que a condição mais importante para garantir o pacto ficcional, a “fantasia lúdica compartilhada”, na opinião de Schaeffer, seja a mimese formal, a ponto de o crítico asseverar que para evitar o engano da má-leitura e o fracasso da ficção em Marbot bastaria que Hildesheimer não insistisse em estampar na capa do livro, à maneira de um subtítulo, a palavra biografia sem que fosse necessário mudar uma vírgula do próprio texto. Na autoficção, é a burla à forma da mimese que se constitui na condição mesma de existência da ficcionalidade, uma vez que os blogs em sua definição são diários
15
Santiago Nazarian, a respeito do personagem de seu livro, Feriado de mim mesmo, em entrevista. Na orelha de se livro Mastigando humanos, lê-se: “Santiago Nazarian é o jovem autor dos romances Feriado de mim mesmo, A morte sem nome e Olívio, além de ter contos publicados em diversas antologias. Mora em São Paulo, é tradutor, roteirista, carnívoro moderado e herpetólogo amador”.
17 “Mara Coradello não teria a menor paciência para tentar seduzir leitores em sua minibiografia. Publicou, em 2003, O colecionador de segundos. Em 2004, participou de algumas coletâneas, entre elas, Prosas cariocas, Paralelos: 17 contos da nova literatura e 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira. Pode ser lida no blog Caderno Branco, e fazer dessa página seu diário não é intenção dela. Mara Coradello não se considera uma escritora de internet, simplesmente porque escrevia nos caderninhos desde que se entende por gente, nessa afirmação não há nenhum juízo de valor. No momento escreve um romance que considera na verdade uma história comprida. Está sem editora. E procura” (conforme o blog escritorassuicidas).
45
virtuais, construídos cronologicamente mediante a possibilidade diária de atualização, e sugerem uma auto-exposição íntima, um escancaramento da subjetividade: “Mas você só fala de si mesma! – Bom, queria que eu falasse do quê? De você?” (Clarah Averbuck, 2003-08-26, no blog). É essa condição de burla à mimese formal que leva Luiza Lobo (2007, p.29) a falar em “autofalsasbiografias”, uma vez que não é possível nenhum estatuto ontológico, nem das personas, tampouco do autor. Nesse sentido, a “evasão de privacidade” ocupa ao mesmo tempo dois lugares incompatíveis: os posts falam o tempo todo em primeira pessoa, são verdadeiras válvulas de escape do umbiguismo, mas não garantem a transparência do eu que desaparece por trás de suas performances, configurando o movimento simultâneo de evocação e evasão de uma intimidade que faz vacilar o horizonte de expectativa de seu leitor. A extensão dessa superfície de interseção é proporcional ao seu grau de ficcionalidade: “se um dia encontrasse meu anti-eu e morresse mas nada de morte senão a do meu eu que só pensa em si enquanto ajudo este aqui a matar o dele próprio” (Campos, 2000, p.31).16 O que garante o dispositivo da autoficção e sua legitimidade é a própria desconsideração pelas condições apontadas por Schaeffer para caracterizar o estatuto da ficcionalidade, burlando as obrigações, os códigos que a regem. Nesse sentido, a autoficção propõe um novo pacto a fim de que possa ser ludicamente compartilhada, inscreve-se no paradoxo de uma representação que investe em uma história factual (afinal, como é possível saber?) em primeira pessoa, revelando-se um engano, um fingimento de enunciados de realidade: “o mistério de me abandonar. Posso dedilhar novas lorotas para parecer uma escrita, uma prosa, um qualquer subtítulo novo de literatura” (Mara Coradello, no blog).17 Se entendermos o gênero como a “camada de redundância necessária para que o receptor tenha condições de receber e dar lugar a uma certa obra” (Costa Lima, 2002, p.268), como um dos filtros possíveis pelos quais podemos
46
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
nos perguntar como determinado discurso é reconhecido como literário, chegaremos mais perto de compreender porque a autoficcção parece criar para si própria uma indefinição: as fronteiras entre o biográfico e o ficcional aparecem aqui mescladas no seu limite, a desarticulação da mimese formal (um diário? Então, é tudo verdade? Ou ficção, e tudo passa a ser inventado?) força os limites do ficcional, pondo-o em xeque (isso é literatura?) e violentando o horizonte de expectativas do leitor a fim de propositalmente provocar o engodo que instaura a ficção. A autoficção trabalharia assim para aprofundar a desconfiança platônica sobre a ficção e para desestabilizar o argumento aristotélico da impossibilidade de contaminação entre mimese e realidade. A estratégia da autoficção é mesmo a de parasitar, contaminar, conspurcar a ficção com a hibridização de seus procedimentos de atuação: Uma pessoa está desde semana passada tentando escrever algo e nada sai. Nem burilar, essa arte esquecida, essa pessoa consegue. Essa pessoa queria ir para outra pessoa, como quem compra um bilhete para a Espanha, entrar em outra pessoa, ficar uns dias lá vendo tudo que vê e sente essa outra pessoa, de fora e de dentro ao mesmo tempo. Nesse dia essa pessoa escreveria como ninguém. Porque essa pessoa está cheia de seus assuntinhos de sempre, seus temas recorrentes e tem saudades de se impessoalizar. Se ver num papel, principalmente se ver em outra pessoa. (Mara Coradello, no blog)
Assim, embora para a argumentação de Schaeffer seja imprescindível que a ficção não se constitua como mero engodo, uma vez que isso arriscaria a ficção ao limite da fantasia, arriscaríamo-nos a dizer que a autoficção inscreve-se no território do próprio engano (leurre), indiciado não apenas no próprio hibridismo formal da uma intimidade evadida, mas também na postura desnorteada do leitor que não sabe a quem ou a que confiar sua competência de leitura, sendo justamente esse precário equilíbrio que a legitima como ficção, cujo “estatuto pragmático é radicalmente instável” (Schaeffer, 1999, p.144).
Autoficção e literatura contemporânea
47
Sem dúvida, a autoficção é um conceito controverso e ambíguo, mas para quem apostava no declínio das escritas de si a virtualidade dos blogs vem lançar o desafio de novos dilemas capazes de falar de outros processos de construção narrativa encenando o texto e as próprias subjetividades: “Ainda não tenho coragem para falar de mim – e quem tem?... Preciso de alguém que faça isso por mim” (Campos, 2000, p.70).
Referências AVERBUCK, Clarah. Máquina de pinball. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002. AZEVEDO, L. A. de. Blogs: escrita de si na rede dos textos. In: X ENCONTRO REGIONAL DA ABRALIC, “Sentidos dos lugares”, 2005. Rio de Janeiro, 2005. p.88-91. BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. CAMPOS, Simone. No shopping. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000. COSTA LIMA, Luiz. Júbilos e misérias do pequeno eu. In: . Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1986. . A questão dos gêneros. In: . (Org.) Teoria da literatura em suas fontes. Sel. Introd. e rev. técnica Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v.1 DE MAN, Paul. Autobiography as de-facement. In: . The rhetoric of romanticism. New York: Columbia University, 1979. DOUBROVSKI, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1977. FATORELLI, Antonio. Entre o analógico e o digital. In: FATORELLI, Antonio; BRUNO, Fernanda. (Org.) Limiares da imagem: tecnologia e estética na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. JAGUARIBE, Beatriz. Realismo sujo e experiência autobiográfica. In: FATORELLI, Antonio; BRUNO, Fernanda. (Org.) Limiares da imagem: tecnologia e estética na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. KLINGER, Diana. Escritas de si e escritas do outro. Autoficcção e etnografia na literatura latino-americana contemporânea. Rio de
48
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Autoficção e literatura contemporânea
49
Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
pesquisa/404nOtF0und ISSN 1676-2916>. Acesso em: 3 maio 2007.
KOUROUPAKIS, Ariane; WERLI, Laurence. Analyse du concept d’autofiction (s. d.). Disponível em: <http://www.uhb.fr/alc/cellam/ soi-disant/01Question/Analyse/2.html>. Acesso em: 22 maio 2007.
VILA-MATAS, Enrique. O mal de Montano. Trad. Celso Mauro Paciornik. São Paulo: CosacNaify, 2005.
LACOUE-LABARTHE, Philippe. O paradoxo e a mimese. In: FIGUEIREDO, Vírgina de Araújo; PENNA, João Camillo. (Org.) A imitação dos modernos. Ensaios sobre arte e filosofia. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
Blogs
LAOUYEN, Mounir. L’autofiction: une réception problématique (s. d.). Disponível em: <http://www.fabula.org/forum/colloque99/ 208.php#FN60#FN60>. Acesso em: 15 maio 2007. LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1996. (Coll. “Points”). LOBO, Luiza. Segredos públicos. Os blogs de mulheres no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. NAZARIAN, Santiago. Mastigando humanos. Um romance psicodélico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. . O indivíduo e seus limites. Entrevista especial para a República do Livro, concedida a Carlos Minehira. Disponível em: <http:/ /www.republicadolivro.com.br/info.php?not=622&oque= 2&amp; amp;cd_editora=0>. Acesso em: 3 março 2007. PLATÃO. A República. Introd., trad. e notas de Maria H. da R. Pereira. 8.ed. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1996. PUERTAS MOYA, Francisco Ernesto. La escritura autobiográfica en el siglo XIX: el ciclo novelístico de Pio Cid considerado como la autoficción de Angel Canivet. La Rioja, 2003. Tese (Doutorado) – Universidade de la Rioja. Disponível em: <http://dialnet.unirioja. es/servlet/fichero_tesis?articulo=1249573& orden=0>. Acesso em: 20 junho 2007. SANTIAGO, Silviano. O falso mentiroso. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. . Histórias mal contadas. Contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. SCHAEFFER, Jean-Marie. Pourquoi la fiction? Paris: Seuil, 1999. SIBILIA, Paula. Os diários íntimos na Internet e a crise da interioridade psicológica. 404nOtF0und, ano 6, v.1, n.54, abril/ 2006.Publicação do Ciberpesquisa – Centro de Estudos e Pesquisas em Cibercultura. Disponível em: <http://www.facom.ufba.br/ciber
CECÍLIA GIANETTI: <http://www.escrevescreve.blogger. com.br>. CLARAH AVERBUCK: <http://www.brazileirapreta.blogspot. com>. <http:// www.adioslounge.blogspot.com>. JOÃO PAULO CUENCA: <http://www.carmencarmen.blogger. com.br>. MARA CORADELLO: <http://www.cadernobranco.blogger. com.br>. <http://www.escritorassuicidas.com.br>. SANTIAGO NAZARIAN: <http://www.santiagonazarian. blogspot.com>. SIMONE CAMPOS: <http://www.simonecampos.blogspot.com>.
51
O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro Deise Quintiliano Pereira*
RESUMO: Por intermédio do projeto autobiográfico sartriano, cuja
produção literária nos propõe inúmeras maneiras de “escritura de si”, este trabalho traz à luz as discussões sobre a singularidade e a alteridade, o eu e o outro, o “bio” e o “gráfico”, inscrevendo nossa proposta de abordagem na verificação de como o percurso escritural desse projeto nos permite passar em revista nuanças que balizam a problemática identidade do escritor. PALAVRAS-CHAVE:
Autobiografia, gênese, escritura de si.
ABSTRACT: This paper, by means of the Sartrian autobiographic project, which literary production propose us several manners of “self-writing”, highlights debates on singularity and alterity, myself and other, “bio” and “graph”, inscribing our proposal of approach in verifying how the scriptural trajectory of this project allow us to revisit the nuances that mark out the problematic identity of the writer. KEYWORDS:
Autobiography, genesis, self-writing.
A gênese autobiográfica: o “bios” e o “graphein”
* Professora doutora do Departamento de Letras Neolatinas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – Rio de Janeiro (RJ).
As biografias compõem uma parcela significativa da produção literária sartriana, propondo-nos diferentes maneiras de “escritura de si”. Dentre essas, destaco a novela L’enfance d’un chef; o “diário de guerra”, os Carnets de la drôle de guerre; as entrevistas autobiográficas; as biografias de escritores; a narrativa autobiográfica, Les mots – intitulada ao longo do decênio da gênese autobiográfica de Sartre (1953-1963) – João Sem Terra, irmão do rei Ricardo Coração de Leão. Com a elaboração desses textos, Sartre
52
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
tenta responder à pergunta obsessiva que o leva a produzir biografias: como a alteridade, a investigação do outro, conduz à ipseidade, ao conhecimento de si mesmo? A imprecisão dos limites que cindem o “auto” do “biográfico”, na obra sartriana, começa a delinear-se com base num relato do escritor, em carta enviada a Simone Jolivet, uma namorada da juventude: “Só consigo me interessar pela narrativa da vida de grandes homens. Vou tentar encontrar nelas uma profecia da minha própria vida” (Sartre, 1983, p.14). Mediante um rastreamento minucioso de suas múltiplas facetas, os personagens nos quais o escritor busca essa resposta são sempre um ser privilegiado. Isso pode ser verificado nas suas biografias de Flaubert, Baudelaire, Jean Genet, bem como nos ensaios sobre Mallarmé, Tintoretto e Leconte de Lisle. Em sua crítica literária, Alain Buisine (1988, p.54) reconhece o caráter de busca identitária que norteia o projeto (auto)biográfico sartriano: “seja romancista ou pintor, poeta ou escultor, Sartre passa de um para outro apenas na esperança, infinitamente deceptiva e adiada, de compensar seu próprio enfraquecimento identitário, construindo uma imagem de si mesmo aos seus próprios olhos”. Isso ocorre porque, para Buisine (1985, p.117), “toda pintura remete à crucial questão do [meu] autoportrait: uma situação verdadeiramente aterrorizadora visto que ela torna possível o fato de toda imagem olhada por mim interrogar-me simultaneamente sobre minha própria imagem”. Tal afirmação permite-nos vislumbrar nos fundamentos do projeto (auto)biográfico sartriano um diálogo com a proposta de Montaigne de constituir um autoportrait. Todavia, enquanto Montaigne se considera objetivamente, como se fosse “outro”, visando atingir o autoconhecimento, Sartre parte de um conhecimento mais universal do homem, isto é, da “realidade humana”, na tentativa de promover uma consideração objetiva de sua própria singularidade. Tamanha é a absorção de Sartre pela escrita (auto)biográfica que uma análise mais detida desse modo literário de
O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro
1
Sartre aqui faz eco à fórmula malrauxciana expressa em Antimémoires: “Quase todos os escritores que conheço adoram sua infância, eu detesto a minha” (Malraux, 1967, p.10), e até mesmo a Gide (1952, p.62), em Si le grain ne meurt: “Em vão, busquei nesse passado uma luz que permitisse iluminar algum aspecto da criança obtusa que eu era”.
53
expressão possibilitaria inferir, na trilha de Gerd Bornheim, (1998, p.26), que “todas as suas pesquisas são como aprestos necessários para a exploração do fato biográfico”. Também, segundo Bornheim (1998, p.36), na obra de Sartre, a sucessão de fatos e episódios exteriores transformam-se no caudal de uma história viva, onde não se verifica “nem exterioridade inaugural, nem interioridade viciosa, mas o esforço de síntese entre o indivíduo e o século, o homem e o mundo”, esse homem sempre visto em situação. Assim, Sartre confere à (auto)biografia um caráter mais racional e científico, o que permite a Philippe Lejeune reconhecer nele o primeiro escritor a fundar a técnica da biografia baseada na adoção de um método verdadeiramente original. De acordo com Lejeune (1995, p.202), Sartre cria novas estruturas narrativas que implicam uma renovação geral da antropologia e dos modelos de descrição e explicação do homem. O ponto de partida da tarefa (auto)biográfica sartriana não é a nostalgia da infância: “o leitor já deve ter compreendido que detesto a minha infância e tudo o que lhe diz respeito”1 (Sartre, 1964, p.135). O que importa é sobretudo a preocupação teórica, a ambição sistematizante de um escritor que já refletia, desde sua primeira obra filosófica, La transcendance de l’ego, sobre a questão do sujeito. Apoiada no engajamento, a concepção literária sartriana prima pela objetividade e pela transparência: “a função de um escritor é chamar um gato de gato. Se as palavras estão doentes, cabe a nós curá-las” (Sartre, 1948, p.281). Essa perspectiva insinua-se igualmente nos escritos (auto) biográficos do autor, nos quais a linguagem representa um instrumento de apreensão da realidade. Nesse sentido, os Carnets de la drôle de guerre permitem a compreensão do estatuto maior que Sartre (1995, p.329) atribui ao projeto (auto)biográfico: “engajei-me numa forma de existência fulgurante e um tanto excessiva, sem vida interior e sem segredos”. O fascínio pela objetividade seria ainda referido no seu “Autoportrait à soixante-dix ans”:
54
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Acho que a transparência deve substituir completamente o segredo. Sonho com o dia em que dois homens não guardarão mais segredos um do outro porque não guardarão de ninguém. […] Cada um de nós deveria poder dizer, diante de um entrevistador, o que há de mais profundo em si. [...] Eu tento ser o mais translúcido possível. [...] Eu tento ser o mais claro possível com vistas a revelar inteiramente minha subjetividade. (Sartre, 1976, p.141-3)
Sartre parece, então, evocar um retorno ao “biográfico”, contra as conquistas da modernidade, isto é, a um “biografismo”, tributário da autenticidade e da veracidade dos fatos narrados. Assim sendo, o escritor refutaria hibridismos, polifonias e polissemias que são a marca de uma retórica biográfica contemporânea. Limitando-se ao exercício de acumulação de documentos exatos e verificados, ordenados numa narrativa que conduz univocamente do nascimento à morte, essa proposta cria certa ilusão retrospectiva: “Eis a miragem: o futuro mais real que o presente. Não é de se admirar: numa vida terminada, é o fim que consideramos a verdade do começo” (Sartre, 1964, p.168-9). Alain Buisine (1991, p.10), todavia, bem observa que o ecletismo pós-moderno enfraquece as defesas da historiografia “científica” e que de todos os questionamentos lançados, o sujeito não saiu intacto, nem idêntico a ele mesmo: O biográfico, pelo menos nas suas mais interessantes experimentações contemporâneas, não esqueceu as lições de nossa modernidade. […] O que me parece hoje decisivo é que a autobiografia não é mais o outro da ficção. Não há mais de um lado a imaginação romanesca, que se autoriza todas as invenções e do outro a reconstituição biográfica laboriosamente obrigada a submeter-se à exatidão referencial dos documentos. A própria biografia é produtora de ficções, começando mesmo a compreender que a ficcionalização faz parte do gesto biográfico.
O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro
55
Não são mais dicotomizadas, então, as distinções entre imaginação literária e documento autêntico (ou autenticidade), ficção romanesca e “verdade” de uma vida, intuições pessoais do biógrafo e revelações dos seus mais próximos, projeções (auto)biográficas e existência efetivamente vivida. As (auto)biografias refletem, dessa sorte, a impossibilidade de limitar-se à esfera de acumulação documental verídica, que vise à “une aveuglante vérité”, capaz de refletir uma “translucidité totale”. Uma análise mais detida da elaboração (auto)biográfica sartriana demonstra que, progressivamente, o escritor dribla a aparente ingenuidade de retorno a um paradigma de confissão rousseauísta, formidavelmente definido por J. Starobinski (1971) em Jean-Jacques Rousseau: la transparence et l’obstacle, onde é o desejo de transparência que institui o obstáculo mais contundente a um “dizer verdadeiro”: “quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda a verdade de sua natureza; e esse homem serei eu. Apenas eu. Sinto meu coração e conheço os homens” (Rousseau, 1959, p.5). Sartre (1976, p.143-4) parece perceber essa impossibilidade, admitindo, em determinado momento, a Michel Contat: “Tudo ver, ser inteiramente visto, […] como qualquer um, tenho um fundo escuro que se recusa a ser dito – O inconsciente? – Absolutamente. Falo de coisas que sei... a gente não pode dizer tudo, você bem sabe”. Contrariando sua proposta inicial de transparência, o escritor revelaria ainda: “como todo escritor, eu me escondo” (ibidem, p.105). Tal constatação insinua-se ainda na ficção sartriana. Personagem de l’Age de raison, Mathieu vê ruir o projeto de transparência total, numa reflexão sobre seu relacionamento com Marcelle: Nós nos dizíamos sempre tudo, ele pensa. Marcelle me dizia tudo, ah! [...] Ele estava lá, sentado na banqueta do café, os olhos fixos no chão como se alguma coisa tivesse se quebrado. Aconteceu, a conversa aconteceu. Nem visto, nem ouvido, eu não estava lá, eu não soube de nada,
56
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro
[...] as palavras foram ditas. Eu não soube de nada. (Sartre, 1982, p.655-6)
Desmascarando as estratégias sartrianas de elaboração de um discurso confessional, Philippe Lejeune (1975, p.197-243) demonstra de que modo, em Les mots, o desejo assumido pelo autor de domínio total dos sentidos inaugura uma modalidade (auto)biográfica – a “fábula teórica”, governada por uma ordem dialética.2 Lejeune esclarece, também, como o desejo de transparência de “soi à soi” e “aux autres” implica, em Sartre (1971-1972), o resultado de uma reconstrução teórica. A indagação sartriana que figura no incipit de L’idiot de la famille “o que se pode saber de um homem hoje?” não é, então, válida apenas para a compreensão de Flaubert e de sua biografia, mas para a definição de todo o projeto (auto)biográfico sartriano. O modo de compreensão de si que Les mots propõe revela-se, assim, indissociável das investigações teóricas enunciadas na Critique de la raison dialectique. Por isso, em oposição à noção de autobiografia, num sentido clássico, Serge Doubrovsky elabora o conceito de “autoficção”, visando dar conta da dimensão fluida que reveste os “fatos biográficos”. Essas constatações levam ainda Doubrovsky (1991, p.19) a considerar que “o que era na autobiografia tradicional história, torna-se sutilmente, em Sartre, demonstração, os dois registros confundindo-se numa unidade indissolúvel”. A originalidade da proposta sartriana reside no fato de essa fusão ideal dos dois discursos traduzir-se numa impossibilidade assumida por Sartre (1976, p.146): “Les mots é uma espécie de romance também, um romance no qual acredito, mas que apesar de tudo continua a ser um romance”. O recurso à forma romanesca para a exploração do fato (auto)biográfico impossibilita sua inscrição como lugar de uma evidência, de uma transparência, da verdade: “um romance é o lugar de um discurso problemático que o domínio de nenhum sentido a priori poderia governar. Desde o início, o texto propõe uma leitura plural, irredu-
2
Para uma compreensão mais apurada da análise de Lejeune, aplicada à autobiografia sartriana, proponho a leitura dos seguintes textos: Le pacte autobiographique (Lejeune, 1975), “Je est un autre” (Lejeune, 1980), Moi aussi (Lejeune, 1986), Les brouillons de soi (Lejeune, 1998).
57
tível àquela que o escritor, em nome de uma ideologia, poderia tentar impor-lhe” (Doubrovsky, 1991, p.20). Apesar da aparente dissonância no plano teórico, a realização concreta do projeto sartriano conforma-se às aspirações de tal perspectiva (auto)biográfica, uma vez que o caminho de acesso à subjetividade, em Sartre, é intermediado pela construção ficcional. Em Saint Genet comédien et martyr (Sartre, 1952, p.83), o escritor admite: “Isso aconteceu assim ou de modo diferente, com toda verossimilhança. Pouco importa: o que conta é que Genet viveu e não cansa de reviver esse período de sua vida como se tivesse durado apenas um instante”. O ficcionismo biográfico insinua-se, igualmente, no estudo dedicado a Flaubert: “Eu confesso: isto é uma fábula. Nada prova que tenha acontecido assim. E pior ainda, a ausência dessas provas – que seriam necessariamente fatos singulares – remete-nos, apesar da fábula, à esquematização, à generalidade, minha narrativa aplica-se, assim, aos neófitos em geral, não a Gustave em particular” (Sartre, 19711972, p.139). Essa posição corrobora a hipótese de que o biógrafo sempre reinventa o biografado, sendo ainda ratificada por Kerbrat (1997, p.29-30), ao afirmar que a autobiografia não tem meios para realizar sua promessa de exatidão, pretendendo ser exata sem possuir as condições de sê-lo. Em suas recordações de guerra, Sartre assume resolutamente a defesa da ficção. Ao ler no jornal a crítica de Emile Bouvier, professor e crítico literário: “Duvido que o Sr. Sartre torne-se um grande romancista, pois ele parece rejeitar o artifício e no artifício há arte”, o escritor reage violentamente: “que idéia esquisita ele faz de mim, se acredita que rejeito o artifício. Ora bolas, bem sei que num romance é preciso mentir para ser verdadeiro. Mas adoro esses artifícios, sou mentiroso por gosto, senão não escreveria nada” (Sartre, 1995, p.374-5). Uma reversão radical opera-se, pois Sartre admite que a obra é capaz de rivalizar com a vida, podendo até mesmo esclarecê-la: “A obra nunca revela os segredos da biogra-
58
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
fia, podendo ser apenas o esquema ou o fio condutor que permite descobri-los na própria vida” (ibidem, p.109). Como observa Vincent Coorebyter (1998, p.108), o paradoxo do “mentiroso” força-nos a desconfiar dos modos como Sartre tentava compreender-se, descrevendo-se em diferentes momentos da sua existência, a ponto de não se saber mais “se o texto é um produto da vida ou a própria vida um produto do texto autobiográfico”. Aliás, Alain Buisine (1990, p.51, 52, 66) já havia lançado essa hipótese em “Naissance d’un biographe: Soldat Sartre, Secteur 108”. Pura coincidência ou antecipação de fatos, os personagens de La nausée prefiguram, em boa parte, o percurso do homem Sartre: engajamento, prisão na guerra, fraternidade entre os prisioneiros, biografias etc. Referindo-se ao seu estudo sobre Flaubert, Sartre concede, finalmente, que as biografias são articuladas como “des fictions vraies”, “des vérités fictives”: “Gostaria que lessem meu estudo como um romance porque, de fato, é a história de uma aprendizagem que conduz ao fracasso de toda uma vida. Gostaria, ao mesmo tempo, que o lessem pensando que é a verdade, que é um romance verdadeiro” (Sartre, 1976, p.94). Numa entrevista concedida por ocasião da estréia de Séquestrés d’Altona, Sartre (1995, p.279) já defendia essa posição ao afirmar: “é a partir de pequenos acontecimentos verdadeiros que são inventados pequenos acontecimentos falsos”.3 Nas recordações de guerra, o escritor prenunciara a perda definitiva da “ilusão biográfica”: “Fui penetrado até as vísceras do que chamarei ilusão biográfica, que consiste em acreditar que uma vida vivida possa assemelhar-se a uma vida contada”. Estatuto de verdade que subjaz à proposta autobiográfica,4 a promessa de definir-se com exatidão, numa representação fiel da realidade, não se coaduna com as premissas de autonomia e liberdade criadora, inerentes ao pacto literário/ficcional. Nesse sentido, os diários e a autobiografias revelam-se uma impossível via de acesso à subjetividade, pois, como afirma Kerbrat (1997, p.103): “a autobiografia
O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro
5
3
Le Monde, 17 de setembro de 1959, entrevista concedida a Claude Sarraute.
4
Inúmeras são as discussões teóricas que envolvem a ficcionalização das biografias e os tênues limites que dissociam (ou associam) ficção e realidade no pacto literário. A esse respeito, remeto aos já referidos textos de Philippe Lejeune (1975; 1980. 1986; 1998), bem como a Paul de Man, “Autobiography as De-facement” in The rhetoric of romantism (1984); Linda Hutcheon, A poetic of postmodernism: history, theory, fiction (1988) e ainda às pertinentes análises sobre o romance biográfico de M. Bakhtin, Esthétique de la création verbale (1984, p.221ss.), e Esthétique et théorie du roman (1978, p.237-398).
Existe uma gravação do texto integral de Les mots, interpretado por Michel Bouquet, com uma introdução falada de Arlette ElkaïmSartre, filha adotiva do autor, datada de 1988, distribuída em cinco audiocassetes, com duração de 6h e 30 min., distribuidora Auvidis.
59
designa-se pelo seu título, ela é auto-referencial, é uma ‘écriture de soi’, isto é, um modo de expressão que presta conta da sua própria dificuldade de elaboração”. Os escritos autobiográficos de Sartre são acompanhados, ratificados e até mesmo desmentidos por um sem-número de entretiens recolhidos e registrados, às vezes filmados, por aqueles que lhe são mais próximos. Esse conjunto de textos é acrescido de manuscritos, fichas, dossiês, folhas soltas, folhas esparsas datilografadas e fotocópias, produzidas durante o que se convencionou denominar o decênio autobiográfico sartriano (1953-1963). O resultado dessas elaborações surge num texto final publicado em capítulos, em 1963, na Revista Les Temps Modernes, e compilado, no ano seguinte, no livro Les mots, pela editora Gallimard.5 As questões de método, com as quais Sartre se ocupava há muito tempo, são sintetizadas, de maneira original, em Les mots. O romance desenvolvese num processo dialético que marca, paradoxalmente, a dependência e a independência de Sartre com relação à história, o que ressalta a potência verdadeiramente original desse projeto. A gênese narrativa da história de Poulou – cognome do jovem Sartre – inscreve-se no âmago de uma certa burguesia e de suas representações sociais e culturais. Como afirma Burgelin (1994, p.32), a história, sob a pena de Sartre, não é nem rigorosa no detalhe, nem cronologicamente correta, mas o sentimento de viver na história, de ter uma relação substancial e alimentadora com ela, faz parte do húmus sartriano. É preciso passar pela Alsácia de 1850 para se compreender a história de Sartre, e a tistória oferece-lhe os recursos da construção de um romance e de um mito. Essa é a extraordinária démarche sartriana, na elaboração de Les mots – fundar seu próprio mito –, um mito inexoravelmente ligado à narrativa das origens. Assim sendo, em Les mots, Sartre faz-se mitólogo de sua infância. É esse estatuto de mito que dá à narrativa sua tonalidade, oscilando incessantemente entre a ingenuidade de um discurso aparentemente infantil, forjado
60
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
por um escritor adulto, e a astúcia de uma construção mental fortemente articulada, perpassada, no seu eixo vertical, por uma gênese (auto)biográfica expressa pela análise do “retrato” de artistas mortos, no sentido lato e sartriano do termo.
O lógos epitáphios na espectralidade escritural A morte como idéia, como imagem, como discurso é um dos temas recorrentes no projeto (auto)biográfico sartriano, incidindo particularmente em Les mots: “A morte era minha vertigem porque eu não amava viver: é o que explica o terror que ela me inspirava. Identificando-a à glória, convertia-a em minha destinação. Quis morrer” (Sartre, 1964, p.157). Nas recordações do narrador, os limites que separam a vida da morte são tênues: “vive-se, morre-se, não se sabe quem vive ou quem morre; uma hora antes da morte, ainda se está vivo” (ibidem, p.160). Os traços, as marcas, as faces da morte são significantes engendrados de modo decisivo na urdidura dos escritos sartrianos. Seria possível, então, identificar o aspecto eminentemente testamentário como elemento que fundamenta essa obra. O estudo de Alain Buisine (1986, p.17-37) reforça essa leitura ao demonstrar as relações metafóricas que podem ser estabelecidas entre o livro e o túmulo, a biblioteca e o cemitério, o literário e o funerário. No próprio julgamento do ato crítico, segundo Buisine, a dimensão tanatográfica da escritura sartriana pode ser vislumbrada: “a maioria dos críticos são homens que não tiveram muita sorte e que no momento em que iam se desesperar, encontraram um lugarzinho tranqüilo de vigia de cemitério. Deus sabe se os cemitérios são aprazíveis: não há nenhum mais divertido do que uma biblioteca” (Sartre, 1948, p.77). A narrativa (auto)biográfica deixa transparecer igualmente o aspecto mortuário que repousa sob a face sagrada dos “objetos culturais”. Esses são reverenciados e manipulados por Karl com uma “destreza de oficiante”, na “biblioteca-sarcófago”, assim descrita pelo narrador:
O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro
61
Eu ainda não sabia ler e já reverenciava essas pedras erigidas: em pé ou inclinadas, apertadas como tijolos nas prateleiras da biblioteca ou nobremente espacejadas em aléias de menires, eu folgava num minúsculo santuário, circundado de monumentos atarracados, antigos, que me haviam visto nascer, que me veriam morrer. (Sartre, 1964, p.35-6)
Ambas as referências convergem para a identificação do livro e da biblioteca como símbolos funerários e do escritor como uma voz que se eleva de um além-túmulo: O livro, com efeito, não é absolutamente um objeto, muito menos um ato, nem mesmo um pensamento: escrito por um morto sobre coisas mortas, ele não tem mais nenhum lugar na face da terra, [...] restam apenas manchas de tinta sobre o papel mofado e quando o crítico reanima essas manchas, quando ele as transforma em cartas e palavras, elas lhe falam de paixões que ele não sente, de raivas sem objeto, de temores e esperanças fúnebres. (Sartre, 1948, p.78)
Essa hipótese é comprovada pela semiótica funerária de Jean-Didier Urbain (1978, p.197-8): “da Holanda à Espanha, de Portugal à Itália, na França, na Áustria, na Alemanha, em bronze, em pedra, em mármore, em azulejos multicoloridos, fechado ou aberto, o livro, como símbolo funerário, é muito difundido”. A voz do soldado Sartre incorpora-se a esse discurso: “para mim, um livro lido é um cadáver. Só resta jogá-lo fora” Sartre (1995, p.486) A fusão do escritural com o sepulcral faz-se também notar nos textos (auto)biográficos sartrianos. Na homenagem a Baudelaire, Sartre (1947, p.237) anuncia incessantemente como a trajetória do poeta reflete uma morte que não cansa de retornar: “lançando-se de uma única vez e para sempre no plano reflexivo, Baudelaire escolheu o suicídio simbólico, ele se mata rapidamente”. Recolhido sob o título Mallarmé – la lucidité et sa face d’ombre, o esboço da biografia sartriana sobre Mallarmé exalta no fazer poético desse “maníaco desesperado” a simbologia da “decadência” e da “queda”, que também remete à idéia da morte: “dir-se-ia que a poesia negativa do
62
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
segundo Império escolheu esse extremista para realizar nele seu suicídio solene” (Sartre, 1986, p.83). Pintor de uma cidade já morta, o canto dirigido ao Tintoretto – “Le séquestré de Venise” – não é menos funesto: “porque mais tarde, Veneza arranjou tudo para marcar uma criança por sua velhice futura. Nada acontece e nada permanece, o nascimento é o espelho da morte” (Sartre, 1964, p.293-4). Os símbolos da morte disseminam-se, igualmente, em profusão, no ensaio crítico sobre Jean Genet: “suas obras são mediações da morte; a singularidade desses exercícios espirituais é que eles quase nunca dizem respeito à sua morte futura, a seu ser-para-morrer, mas a seu ser-morte, à sua morte como acontecimento passado” (Sartre, 1952, p.10). Essas considerações levam Jean Cocteau a vislumbrar no texto sartriano a canonização precoce de Genet, sendo referida por Annie Cohen-Solal (1985, p.413): “Só se canoniza um ser póstumo. Genet foi embalsamado bem vivo”. No resgate do “homem” Gustave, o aspecto mortuário revela sua face mais macabra: “A conseqüência disso, curiosamente, é que ele nunca teve muito medo de morrer. O que ele poderia temer se isso já tinha acontecido?” (Sartre, 1971-1972, p.476). No prefácio do romance Aden Arabie (Nizan, 1932), de seu amigo Paul Nizan, o lugar do autor é definido por Sartre em razão de sua identidade póstuma. Segundo essa identificação, a vida apenas reedita todas as possibilidades da morte: “ele tinha fogo, paixão e além disso aquele olhar implacável que petrificava tudo. Nizan para julgar-se no dia-a-dia havia se situado do outro lado de seu túmulo” (Sartre, 1964, p.106). Não se limitando aos escritos (auto)biográficos, a simbologia da morte é um fio que se emaranha à tecelagem dos textos sartrianos, de maneira obsessiva, conforme permitem-nos concluir as leituras de Huis clos, Morts sans sépulture, La mort dans l’âme, Le mur, Les mains sales, Les mouches, além de uma peça de juventude, elaborada durante a “drôle de guerre”, com o sugestivo título J’aurai un bel
O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro
63
enterrement (“Terei um belo enterro”) (Cohen-Solal, 1985, p.119). Tantas convergências, e outras tantas que poderiam ser ainda aqui evocadas, encontram sua melhor expressão nas palavras de Alain Buisine (1986, p.19), para quem: Sartre faz de cada um de seus leitores um necrófilo em potencial. Nesse sentido, a multidão que se espreme no seu funeral assiste ao coroamento propriamente literário da sua carreira: seu cadáver constituindo possivelmente sua obra mais explícita, a que menos exige comentários já que seu corpo identifica-se enfim com seu corpus. É preciso compreender o enterro de Sartre como uma leitura pública na qual o escritor conseguiu fazer de sua morte sua última obra publicada.
Por isso é que, para Buisine, o emprego do termo “biografias” é inadequado para definir o conjunto de estudos sartrianos dedicado a escritores. Melhor seria defini-lo como “pseudobiografias”, porquanto os personagens biografados revivem continuamente a sua própria morte. O projeto (auto)biográfico sartriano, como as biografias em geral, está, assim, intimamente associado ao elogio fúnebre e à retórica do epitáfio. Essa perspectiva encontra eco nas palavras de Derrida (1988, p.44), numa das conferências proferidas in memoriam a um amigo: “a palavra e a escritura funerárias não viriam após a morte, elas trabalham a vida naquilo que chamamos autobiografia. E isso acontece entre ficção e realidade”. Dessas reflexões resulta que, em todo o projeto (auto)biográfico sartriano, a grande homenagem dirige-se fundamentalmente à morte, ou melhor, à glorificação da própria morte. A idéia de glorificação mediante a própria morte e da salvação pela lembrança póstuma insiste e persiste nos fios narrativos de Les mots: “ignorado, abandonado, que delícia em converter-me em Grisélidis, em vagar pelas ruas de Paris sem duvidar um só minuto de que o Panthéon me espera” (Sartre, 1964, p.144). Numa entrevista concedida a Madeleine Chapsal, o escritor explicita sobre que bases se fundava o projeto de imortalidade de Poulou:
64
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro
A vida terrestre é um período de provas para merecer a glória celeste. Isso pressupõe obrigações precisas, ritos a observar. [...] Eu pegava tudo isso e transpunha tudo em temos de literatura: seria desconhecido toda a minha existência, mas merecia a vida eterna por minha aplicação em escrever e por minha pureza profissional. Minha glória de escritor começaria no dia de minha morte. (Sartre, 1972, p.32-3)
Morto-vivo, pelo status de escritor e pelo “reconhecimento” da posteridade, Poulou ultrapassaria a fantasmagoria maior que assombrava sua existência: Essa vida que eu considerava fastidiosa e que eu soubera apenas tornar instrumento de minha morte, eu a remontava em segredo para salvá-la ; eu a encarava através dos olhos futuros e ela me surgia como uma história tocante e maravilhosa, que eu vivera por todos, que ninguém, graças a mim, precisava mais reviver e que bastaria contar. (Sartre, 1964, p.162)
Vertiginosamente, morte e vida confundem-se nas recordações do narrador: “Fi-lo com verdadeiro frenesi: escolhi como porvir um passado de grande morto e tentei viver ao revés. Entre nove e dez anos, tornei-me completamente póstumo” (ibidem, p.162). Pela problemática da philía desvelam-se, pois, sentidos que norteiam o projeto (auto) biográfico sartriano, os quais se inscrevem na tentativa de fazer equivaler vida e morte, pelo elogio fúnebre – pelo (auto)epitáfio. No texto Ecrire pour son époque, a metáfora do herói de Maratona é significativa para justificar a permanência do escritor em vida, por intermédio de sua obra: “Disse-se que o mensageiro de Maratona estava morto uma hora antes de chegar a Atenas. Ele estava morto e ainda corria; ele corria morto, anunciando, morto, a vitória da Grécia. É um belo mito que mostra que os mortos agem, ainda um tempinho, como se vivessem”.6 Com efeito, como nos lembra Buisine (1986, p.21), só há para Sartre escritura póstuma, “saudades eternas”, pala-
7
6
Cf. Temps Modernes, junho de 1948, compilado no artigo “Écrire pour son époque” in Les écrits de Sartre (Contat & Rybalka, 1970, p.676).
O tema do “quem perde ganha” é recorrente nos escritos de Sartre, explicitando-se, notadamente, no capítulo da análise sartriana de Flaubert, intitulado “Le qui perd gagne comme attente du miracle” (cf. Sartre, 1971-1972, p.2070). Ainda jovem, o romancista-amador Sartre já escrevia ao término de cada capítulo: “No fundo, sua derrota era uma vitória” (Cohen-Solal, 1985, p.113).
65
vras que figuram freqüentemente nos livros de cemitério. Por isso é que “estar morto é a única maneira propriamente sartriana de viver” (ibidem, p.23). Para Sartre, nascimento e morte representam, assim, duas faces de uma mesma moeda, conforme o escritor esclarece no ensaio inacabado sobre Mallarmé: “A vida, só há uma para a família, repassada de geração para geração. O destino do recém-nascido fixa-se nesse ponto, de maneira que não se sabe mais se se festeja um nascimento ou uma morte” (Sartre, 1986, p.85). Suas reflexões filosóficas seguem essa mesma direção: “a morte é um puro fato, como o nascimento, ela vem a nós pelo exterior e nos transforma em exterioridade. No fundo, ela não se distingue absolutamente do nascimento e é essa identidade do nascimento e da morte que denominamos facticidade” (Sartre, 1943, p.604). O relato do soldado Sartre liga-se a essa reflexão: “Essa vida era uma composição em forma de rosácea na qual o fim encontrava o começo” (Sartre, 1995, p.276). Essa interpretação seduzme a insistir, uma vez mais, na relação entre o projeto (auto) biográfico sartriano e o título original de Les mots, fortalecendo o seu significante acústico: “João Se Enterra”. A glória literária de Sartre realiza-se, portanto, no projeto da “criança imaginária”, da criança-defunto que vive somente sob o sursis da imaginação: “o estatuto imaginário dessa criança é que ela não existe, nunca existiu e não poderia nunca existir. A criança imaginária simboliza a criação do imaginário. E o imaginário marca a transformação do mundo em idéia” (Miething, 1989, p.159). Na materialidade textual, o projeto (auto)biográfico sartriano corporifica-se, teatralizando a presença da morte na contingência da vida, inscrevendo na morte de Narciso, o nascimento de um escritor-póstumo, que reedita o jogo sartriano do “quem perde ganha”.7 Glorificada pelo (auto)epitáfio e mediada pelo processo de leitura, essa vitória implicaria a ressurreição do autor, conforme demonstra a semiótica funerária de JeanDidier Urbain (1978, p.199):
66
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Somos apenas algumas frases no Livro da vida. […] Depositado sobre o túmulo, pequeno paralelepípedo, ele contém a vida. O livro factício fechado […] é, incontestavelmente, uma metáfora miniaturizada do ataúde. Com o livro factício aberto, chega-se à leitura, a leitura do nome, do sobrenome, dos elos de parentesco, do retrato. […] Podese dizer que o livro aberto é a expressão metafórica do caixão ou do túmulo aberto: a leitura é “isomorfa à ressurreição”.
Em todo o projeto (auto)biográfico de Sartre, insinua-se, assim, uma representação teatral, em que a encenação da morte metaforiza o caráter funesto da vida, podendo ser sintetizada na cena final de Huis clos – na qual se identificam, finalmente, a morte sempre adiada daquela já experimentada: INES, debatendo-se e rindo. Que é que você está fazendo? Que é que você está fazendo? Está louca? Não sabe que estou morta? ESTELLE Morta? (Deixa cair a faca de cortar papel. Um tempo. Inés apanha-a e põe-se a golpear-se com raiva.) INES Morta! Morta! Morta! Nem a faca, nem o veneno, nem a forca. Está tudo acabado, compreende? E estamos juntos para sempre. (Ri.) ESTELLE (numa gargalhada) Para sempre, meu Deus! Que engraçado! Para sempre! GARCIN (que ri, olhando as duas) Para sempre. (Caem sentados cada qual sobre o seu sofá. Um longo silêncio. Deixam de rir e entreolham-se. Garcin levanta-se.) GARCIN Pois é, continuemos! CAI O PANO
O espelho tem duas faces: a escritura de si à sombra do outro
67
Referências BAKHTIN, Mikhail. Esthétique et théorie du roman. Paris: Gallimard, 1978. . Esthétique de la création verbale. Paris: Gallimard, 1984. BORNHEIM, Gherd. O idiota e o espírito objetivo. Rio de Janeiro: Uapê, 1998. BUISINE, Alain. Le philosophe louche. Revue des Sciences Humaines, n.198, p.109-40, avril-juin 1985. BUISINE, Alain. Les mots et les morts. In: BURGELIN, C. Lectures de Sartre. Paris; Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1986. p.17-38. . Sartre-Flaubert, le dialogue des morts. Magazine Littéraire, n.250, p.54-6, février 1988. . Naissance d’un biographe: Soldat Sartre, Secteur 108. Les Cahiers de Philosophie, n.10, p.50-71, 1990. . Biofictions. Le Biographique. Revue des Sciences Humaines, v.88, n.4, p.8-13, oct.-déc. 1991. BURGELIN, Claude. Les mots de Jean-Paul Sartre. Paris: Gallimard, 1994. COHEN-SOLAL, Annie. Sartre. Paris: Gallimard, 1985. CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Écrire pour son époque. In: Les écrits de Sartre. Chronologie bibliographie commentée. Paris: Gallimard, 1970. p.670-6. COOREBYTER, Vincent de. Le miroir aux origines. In : IDT, G. (Org.) Sartre: trois lectures. Centre de Recherches Interdisciplinaires sur les textes modernes. Etudes sartriennes VII. Paris: Université de Paris X, 1998. p.73-115. . The DE MAN, Paul. Autobiography as De-facement. In: rhetoric of romantism, New York: Columbia University Press, 1984. DERRIDA, Jacques. Mnemosyne. In: Mémoires pour Paul de Man. Paris: Galilée, 1988. DOUBROVSKY, Serge. Sartre: autobiographie/autofiction. Le Biographique. Revue des Sciences Humaines, v.88, n.4, p.17-26 e p.25464, oct.-déc. 1991. GIDE, André. Si le grain ne meurt. Paris: Gallimard, 1952. HUTCHEON, Linda. A poetics of postmodernism: history, theory, fiction. New York; London: Routledge, 1988.
68
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
69
KERBRAT, Marie-Claire. Leçon littéraire sur l’écriture de soi. Paris: Presses Universitaires de France, 1997.
Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975. . Je est un autre. Paris: Seuil, 1980.
Leonardo Pinto de Almeida*
. Moi aussi. Paris: Seuil, 1986. . Les brouillons de soi. Paris: Seuil, 1998. MALRAUX, André. Antimémoires. Paris: Gallimard, 1967. MIETHING, Cristoph. La grammaire de l’ego. Phénoménologie de la subjectivité et théorie autobiographique. In: CALLEGRUBER, Mireille; ROTHE, Arnolds. (Ed.) Autobiographie et biographie. Colloque de Heidelberg. Paris: Nizet, 1989. p.149-62.
RESUMO: Este artigo objetiva analisar a relação entre a subjetividade e a experiência literária em sua prática escrita. Para tanto, observamos as vicissitudes da escrita literária seguindo as reflexões de Michel Foucault e Maurice Blanchot acerca do tema. Com isso, indicamos duas figuras representativas dessa prática: o escritor e o autor, para construir um modo de compreensão acerca da subjetividade literária. Concluímos que o escritor é produzido com o seu encontro com o próprio escrever, enquanto o autor seria um índice discursivo inventado posteriormente à experiência para produzir o controle discursivo. A experiência literária seria então um lugar privilegiado para analisarmos a produção de subjetividade no seio da experiência.
NIZAN, Paul. Aden-Arabie. Avant-propos de Jean-Paul Sartre. Paris: François Maspero, 1932. . Œuvres ROUSSEAU, Jean-Jacques. Les confessions. In : complètes. Paris: Gallimard, 1959. (Bibliothèque de la Pléiade). SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant. Paris: Gallimard, 1943 . Baudelaire. Paris: Gallimard, 1947. . Qu’est-ce que la littérature? Paris: Gallimard, 1948. . Saint Genet, comédien et martyr. Paris: Gallimard, 1952.
PALAVRAS-CHAVE:
. Les mots. Paris: Gallimard, 1964.
ABSTRACT: This paper aims to analyze the relation between the subjectivity and the literary experience in its written practical. For in such a way, we observed the destins of the literary writing following the Michel Foucault´s and Maurice Blanchot´s thought concerning this subject. With this, we indicated two representative figures of this practical: the writer and the author, to understand the literary subjectivity. We concluded that the writer is produced with its meeting with the proper act to write, while the author would be a discoursive index invented later to the experience to produce the control. The literary experience would be then a privileged place to analyze the production of subjectivity in the experience.
. L’idiot de la famille. Paris: Gallimard, 1971-72. (Três volumes). . Situations IX – mélanges. Paris: Gallimard, 1972. . Situations X – politique et autobiographie. Paris: Gallimard, 1976. . Œuvres romanesques. Édition établie par Michel Contat et Michel Rybalka. Paris: Gallimard, 1982. (Bibliothèque de la Pléiade). . Lettres au Castor et à quelques autres. Paris: Gallimard, 1983. (Dois volumes, abarcando a correspondência de 1926 a 1963). . Mallarmé – la lucidité et sa face d’ombre. Paris: Gallimard, 1986. . Les carnets de la drôle de guerre. Paris: Gallimard, 1995. [Reedição do livro publicado em 1983, com o acréscimo do 1o diário, escrito entre setembro e outubro de 1939].
KEYWORDS:
STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: la transparence et l’obstacle. Paris: Gallimard, 1971. URBAIN, Jean-Didier. La société de conservation. Etude sémiologique des cimetières d’Occident. Paris: Payot, 1978.
Subjetividade, experiência literária, escrita.
* Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) – Rio de Janeiro (RJ).
Subjectivity, literary experience, writing.
Introdução A intuição foucaultiana sobre as questões da linguagem se complexifica em textos que visam lidar com o pro-
70
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
blema da subjetividade. Em “La pensée du dehors”, escrito em que analisa algumas marcas do pensamento de Maurice Blanchot, Foucault (1966) argumenta que a reflexão sobre o ser da linguagem aponta para o apagamento do agente subjetivo. Questão bastante complicada para um certo humanismo vigente até os dias de hoje! Foucault (1966, p. 525) mostra como um exame apurado do ser da linguagem foi, ao longo da história, preterido, pelo fato de que “l’être du langage n’apparaît pour luimême que dans la disparition du sujet”.1 O ser da linguagem é uma repetição que se manifesta de inúmeras maneiras a partir de reduplicações, de dobras do ser da linguagem sobre si. O suposto agente da escrita seria atraído por esse movimento repetitivo e, nesse modo de experienciar a linguagem, teria sua existencialidade dissolvida, constituindo-se como apenas mais uma das saliências dessas dobras de linguagem. Saliência de dobras, ponto de interseção de forças reativas e ativas no seio do escrever. Como, no entanto, poderíamos entender esse desaparecimento do sujeito na manifestação do ser da linguagem que escolhemos como objeto de estudo: a literatura? Como poderíamos entender a prática do escrever e suas figuras representativas: o escritor e o autor?
A experiência literária Quando somos levados pelo movimento derradeiro do escrever, as palavras se manifestam, tomam corpo em expressões de linguagem. As palavras, de certa forma, filtram idéias, apuram os elementos impuros do pensamento. Elas transgridem os liames suaves impostos pela presença viva e desconcertante da linguagem. No entanto, deixam marcas – representadas pelos tipos negros, impressos no papel em branco – que são como limites imanentes ao ato de escrever. As idéias filtradas se ordenam sob a celulose inerte do papel. O escrever seria, então, uma experiência em que encontramos a transgressão e o limite como movimentos imanentes a esse ato. Com isso, como
Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária
71
poderíamos pensar a subjetividade, relacionando-a ao escrever? Como entenderíamos essa busca constante – ligada à literatura – e as relações tecidas com as figuras do escritor e do autor? Ou, dito em poucas palavras: Quais seriam as vicissitudes que levam a emergência da subjetividade literária na experiência escrita? Consideramos que a literatura se caracterizaria por uma escrita abandonada a si mesma, em sua busca e questionamento constantes. Nela, podemos notar uma escrita que tem como fim ela mesma, não havendo nenhum objetivo prévio a ser seguido, nem uma tradição a ser repetida. São belas as palavras, empregadas por Marguerite Duras (1993, p.65), em seu livro Écrire, quando mostra que:
1
“o ser da linguagem aparece por ele-mesmo somente no desaparecimento do sujeito”.
2
“Existe uma loucura de escrever que está em si mesma, uma loucura de escrever furiosa, mas não é por isso que ela estaria na loucura. Ao contrário, a escrita é o desconhecido. Antes de escrever, não sabemos nada disto que vamos escrever. Se soubéssemos alguma coisa sobre isto que iremos escrever, antes de fazer, antes de escrever, nunca escreveríamos.”
Il y a une folie d’écrire qui est en soi-même, une folie d’écrire furieuse mais ce n’est pas pour cela qu’on est dans la folie. Au contraire. L’écriture c’est l’inconnu. Avant d’écrire on ne sait rien de ce qu’on va écrire. [...] Si on savait quelque chose de ce qu’on va écrire, avant de le faire, avant d’écrire, on n’écrirait jamais.2
A loucura da escrita levaria o sujeito para uma zona desconhecida. Como saber o que escrever, se não há nenhuma palavra antecedente a ser repetida no movimento da criação literária? O escritor deve ser tomado pela escrita! Escrever junto ao vazio, escrever com o vazio, ou seja, descobrir a resposta à pergunta por que escrever?, escrevendo. Paradoxo interminável que se nutre do próprio ato e de sua pesquisa incansável, como mostra Robbe-Grillet (1965, p.152), em Por um novo romance, quando afirma que “o romance moderno, [...], é uma pesquisa, mas uma pesquisa que sucessivamente cria ela mesma as suas próprias significações”. Quando pensamos na busca literária, podemos refletir que, se a literatura tem sua essência no próprio escrever – negando assim toda idéia de estabilidade ligada às noções de tradição e fundamento –, aquele que escreve não pode ser o índice de explicação da literatura, já que, muitas vezes, esse só escreve por não saber o que dizer.
72
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária
Em relação a essa questão, vemos na obra blanchotiana inúmeros indicativos que assinalam esse fato. Em “O paradoxo de Aytré” – texto contido em A parte do fogo – quando analisa a relação entre o desmoronamento da linguagem e a literatura, Blanchot (1997, p.73) afirma que:
tário do artista que explica sua obra é sentido, no caso, pelo simples fato de que, se ele realmente soubesse por que a escreveu, não haveria escrito, pois a literatura coloca tudo em questão: a existência do homem, das coisas e da própria linguagem. Em O espaço literário, Blanchot (1987) mostra que a escrita literária e aquilo que chamou de a solidão da obra apontam para um desaparecimento. A solidão da obra arrastaria o “eu” para o fora – vazio de onde brotam as produções linguageiras – e transforma o sujeito que ali mergulha. Pensando sobre a experiência literária, ele – ao longo de sua obra – salienta ser ela uma experiência total. O sujeito é atraído pela questão do escrever, defrontando-se com o abismo da linguagem. Ela não se estabilizaria, pois a estabilidade aponta para uma captura – um mecanismo transcendente de apreensão – da criação. Blanchot (1987, p.31), ao se indagar sobre a experiência de Mallarmé, indica que o poeta se confronta com a morte – com o vazio da linguagem proporcionado pela morte de Deus – ao sondar o verso:
O escritor nem sempre inicia com o horror de um crime que lhe faria sentir sua instabilidade no mundo, mas ele não pode sonhar em começar de outro modo senão por certa incapacidade de falar e de escrever, por uma perda de palavras, pela própria ausência dos meios que tem em superabundância. Desse modo, lhe é indispensável sentir primeiro que ele não tem nada a dizer.
O desmoronamento é o índice de que o estereótipo e sua linguagem rígida começam a falhar com a literatura. O escritor é levado a escrever sem saber o que dizer e, mais ainda, sem saber até onde isso o levará. Muitas vezes, pedimos que um autor comente seu texto e observamos que sua resposta soa derrisória ou até descabida. RobbeGrillet (1965, p.14), com sua sutileza peculiar, salienta um fato que talvez possa ajudar-nos a entender por que um autor falando de sua obra soe tão mal: Ante semelhantes questões, dir-se-ia que a sua [inteligência] já não lhe serve de nada. O que ele quis fazer foi apenas o próprio livro. Isto não quer dizer que se agrade sempre dele; mas a obra continua a ser, em qualquer caso, a melhor e a única expressão possível do seu projecto. Se tivesse sido capaz de lhe dar uma definição mais simples, ou reduzir as duzentas ou trezentas páginas a qualquer mensagem em linguagem clara, explicar palavra por palavra o seu funcionamento, em suma, justificá-lo, não teria sentido necessidade de escrever o livro. Pois que a função da arte nunca é ilustrar uma verdade – ou mesmo uma interrogação – previamente conhecida, mas formular as próprias perguntas.
Por meio desse trecho de Por um novo romance, podemos ressaltar, então, que o mal-estar causado pelo comen-
73
Quem sonda o verso deve renunciar a todo e qualquer ídolo, tem que romper com tudo, não ter a verdade por horizonte nem o futuro por morada, porquanto não tem direito algum à esperança, deve, pelo contrário, desesperar.
3
“A escrita teria sido sempre sem referência nenhuma, ou então é... Ela é ainda como no primeiro dia. Logo, ela é sempre a porta aberta ao abandono. Há o suicídio na solidão do escritor. Estamos sós até em nossa própria solidão. Sempre inconcebível. Sempre perigosa. Sim. Um preço a pagar por ter ousado sair e gritar.”
Podemos ver nessa bonita passagem que o escritor é levado no momento da escrita para uma experiência radical em que nada estaria garantido. O escritor atraído pelo fora – pelo vazio da linguagem – encontra-se desesperado, ou, para usar as palavras de Marguerite Duras (1993, p.38), abandonado ante a tarefa de criar: L’écriture a toujours été sans réferénce aucune ou bien elle est... Elle est encore comme au premier jour. […] Donc c’est toujours la porte ouverte vers l’abandon. Il y a le suicide dans la solitude d’un écrivain. On est seul jusque dans sa propre solitude. Toujours inconcevable. Toujours dangereux. Oui. Un prix à payer pour avoir osé sortir et crier.3
74
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária
Nietzsche (2002, p.156), em um belíssimo aforismo, coloca em evidência o problema relativo às categorias de sujeito e agente:
Abandono inquestionável: o escritor se encontra diante de um mar aberto, pois tudo está em jogo: a linguagem, o homem e as coisas. A literatura abriria um espaço, no seio das dobras de linguagem, em que o escritor é levado a formular os pensamentos que darão luz à obra ao longo da experiência total do escrever. Essa experiência coloca em questão o próprio sujeito que escreve. Em uma entrevista cedida a Dominique de Roux, Gombrowicz (1996, p.50) exemplifica esse problema em poucas palavras: À dire vrai l’artiste ne pense pas, si par le mot « penser » l’on entend l’élaboration d’un enchaînement de concepts. En lui la pensée naît du contact avec la matière qu’il forme, comme quelque chose d’auxiliaire, comme l’exigence de cette matière même, comme l’exigence d’une forme en train de naître: il s’agit de réussir l’oeuvre, de la rendre apte à vivre, ce n’est pas de vérité qu’il s’agit. Mes « pensées » se formaient en même temps que mon oeuvre, dans une symbiose quotidienne avec son monde, qui, lentement, se révélait.4
A escrita e o escritor se formam conjuntamente no contato, no encontro que se estabelece entre eles, na experiência total da escrita literária. A literatura, então, se formaria, ao longo do escrever, criando seus códigos, seus pensamentos, seus limites e seu suposto agente. Partindo dessa idéia referente à experiência literária, como poderíamos pensar o encontro literário e sua relação com a subjetividade? Existiria alguma diferença entre as figuras do escritor e do autor?
Morte do autor ou morte do escritor? O espaço literário, aberto pela morte de Deus, nos coloca uma questão importante: Já que a literatura não repete, não relata algo que a precederia, e sim ela é uma experiência radical que se caracterizaria como um encontro com o abismo das palavras e das referências, qual seria o agente da escrita literária? Questão mais complicada do que aparenta ser!
75
O que nos dá a extraordinária firmeza da crença na causalidade não é o grande hábito da seqüência de eventos, porém a nossa incapacidade de conseguirmos interpretar um acontecimento de outro modo que não seja como um acontecer a partir de intencionalidades. É a fé no vivente e pensante como o único agente atuante – na vontade, na intencionalidade –, de que todo acontecer seja um agir, de que todo agir pressuponha um agente atuante: é a crença no “sujeito”. Será que essa crença no conceito de sujeito e de predicado não [é] uma grande b...?
4
“Diríamos que o artista não pensa, se, pela palavra ‘pensar’, entendemos a elaboração de uma cadeia de conceitos. Nele, o pensamento nasce do contato com a matéria que ele forma, como alguma coisa de auxiliar, como a exigência de uma forma que estaria por nascer: trata-se de conceber a obra, de torná-la apta a viver; não é da verdade que se trata. Meus pensamentos se formam ao mesmo tempo que minha obra, em uma simbiose cotidiana com seu mundo que, lentamente, se revelaria.”
Nutrindo-se dessa crença no sujeito que pressupõe um agente da ação, os estudos literários e psicológicos construíram o conceito de autoria. Seguindo a lógica decorrente desse pensamento, o autor seria a verdade da obra. Mas como se poderia conjeturar a verdade da obra literária? E mais ainda: como intuir que, sabendo as vicissitudes da vida do sujeito escritor, desvelaríamos o que a obra quer ilustrar? Movimento complicado que rendeu inúmeros acontecimentos históricos até a figura autoral ser inventada e estabelecida! Foucault (2001b), naquela conferência de 1969 sobre o autor, apresenta uma reflexão que se debruça sobre as características principais da autoria, passando pelas questões relativas às noções de obra, escrita, referência, invenção, e assim por diante. Neste artigo, aprofundar-nos-emos, na questão da diferenciação entre a figura autoral com sua mitologia decorrente, e o escritor em sua dissolução existencial na experiência total do escrever com intuito de marcar dois modos de lidar com a escrita: uma maneira de afirmação total da experiência literária – vista com o escritor –, e outra de reatividade ao potencial transgressivo da escrita – associada à figura autoral. Nesse ponto de sua obra, Foucault trata de três problemas gerais relativos à autoria: no primeiro, analisa o
76
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
desaparecimento do escritor ou autor; no segundo, observa o papel que o nome do autor toma na trama discursiva e suas características funcionais; no terceiro, examina as figuras autorais que chamou de fundadores de discursividade. A questão concernente à relação entre a escrita e a morte – analisada com muita propriedade em “A linguagem ao infinito” (Foucault, 2001a) – é retomada por ele nessa conferência para analisar as idéias que giram em torno da noção de agente da escrita. Foucault (2001b, p.269) afirma, logo no inicio de sua exposição, que na experiência da escrita, aquele que é levado a escrever tem sua existencialidade apagada, dissolvida ao longo do ato de criar, como podemos ver no seguinte trecho: “Essa relação da escrita com a morte também se manifesta no desaparecimento das características individuais do sujeito que escreve”. Escrita e desaparecimento estariam intrinsecamente ligados à criação. Usando a noção da experiência total do escrever – de Blanchot –, poderíamos observar que a escrita em sua relação com o vazio abismal da linguagem – o fora – leva o escritor a se perder em sua singularidade no momento derradeiro da criação. O desaparecimento do escritor ou autor, salientado por Foucault (2001b), cria uma ressonância com a expressão barthesiana da morte do autor. No entanto, notemos que ambos não distinguem as figuras do escritor e do autor, dificultando um pouco o entendimento para uma análise apurada da questão da subjetividade no âmbito da escrita literária. Encontraremos essa distinção ao longo de toda obra de Blanchot, no texto de Brunn, mas será, tão-somente, Roger Chartier (1998, p.32), quando entrevistado por Lebrun, que fará uma menção precisa a essa diferença, ao indicar que “o inglês evidencia bem esta noção e distingue o writer, aquele que escreveu alguma coisa, e o author, aquele cujo nome próprio dá identidade e autoridade ao texto”. É por meio disso que podemos começar a apreender essa diferença: o escritor seria aquele que, ao mergulhar
Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária
77
no abismo da linguagem, escreve; e o autor seria justamente o nome que territorializa a criação no campo discursivo. Quando Foucault (2001b) apresenta aquilo que chamou de desaparecimento do escritor ou autor, ele afirma que existem noções que escondem esse desaparecimento, como a noção de obra e de escrita. Pois tanto uma quanto outra remeter-se-ia à questão: Quem escreveu? Ao longo dessa análise, Foucault (2001b, p.294) também aponta que a função-autor seria o conjunto de características que tomam o lugar desse desaparecimento: [...] o autor deve se apagar ou ser apagado em proveito das formas próprias ao discurso. Isto posto, a pergunta que eu me fazia era a seguinte: o que essa regra do desaparecimento do escritor ou do autor permite descobrir? Ela permite descobrir o jogo da função autor.
5
Poderíamos dizer, no entanto, que isso não impediu de maneira alguma que Foucault entendesse a dinâmica relação entre o nome do autor e o discurso. Ao longo desse texto de 1969, ele trata com propriedade da função que o nome do autor exerceria em relação à trama discursiva e da invenção dessa função.
Nessas condições, o jogo da função autor seria revelado pelo desaparecimento do escritor ou do autor. Pois bem, ao afirmar isso, Foucault, por falta da distinção sublinhada, teve de cunhar a noção de função autor para sair da complicada tarefa de entender esse desaparecimento.5 Gostaríamos de salientar que aquele que escreve – o escritor – desaparece (como assinalado por Foucault). No entanto, o autor é inventado depois, como uma prótese imaginária para dar conta da questão do agente da escrita. Por isso, não são somente as noções de escrita e de obra que obliteram o desaparecimento do escritor, pois a noção de autoria é uma das mais importantes e requintadas invenções no âmbito discursivo que impede o entendimento da morte do sujeito que escreve. Poderíamos afirmar que a tríade escrita-obra-autoria remete à questão do agente da escrita, fundamentando, desse modo, a mitologia autoral. Em “A morte do autor” – texto de 1968, contido em o Rumor da língua –, Barthes (1984, p.65), em uma belíssima remissão a um trecho de Sarrasine de Balzac, nos mostra bem, como o problema do desaparecimento do escritor se coloca:
78
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Na novela Sarrasine, falando de um castrado disfarçado em mulher, Balzac escreve esta frase: “Era a mulher, com seus medos repentinos, seus caprichos sem razão, suas perturbações instintivas, suas audácias sem causa, suas bravatas e sua deliciosa finura de sentimentos”. Quem fala assim? É o herói da novela, interessado em ignorar o castrado que se esconde sob a mulher? É o indivíduo Balzac, dotado, por sua experiência pessoal, de uma filosofia da mulher? É o autor Balzac, professando idéias “literárias” sobre a mulher? É a sabedoria universal? A psicologia romântica? Jamais será possível saber, pela simples razão que a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve.
Desaparecimento de quem escreve, destruição de toda voz, de toda origem: esse trecho indica como o escritor em seu ato de criar mundos, personagens, se perde e se dissolve, ao tingir a brancura do papel, com tipos negros escritos por sangue e lágrimas. Sua morte aponta para impossibilidade de um entendimento da obra locando a verdade, na vida daquele que a escreveu. Mas, como compreender a obra a partir de uma morte, de um vazio? Pergunta enigmática que remete ao próprio enigma da criação! Nesse célebre texto de 1968, Barthes tem uma boa intuição acerca da possível resistência que a leitura apresentaria ante as palavras a serviço do poder que estariam atreladas as noções de obra, autoria e crítica. Ele, no entanto – como Foucault –, confunde ainda a figura mitológica do autor (a função-autor) com o escritor. E, ao longo de seu texto, fica meio duvidoso o lugar ocupado pelo desaparecimento da autoria que ora aparece como dissolução da existencialidade desse que escreve, ora surge como destruição do autor como referência na teia dos discursos concernentes à literatura. Essa louvável confusão, pois, tenta ser uma posição combativa ao poderio do lugar tomado pelo nome do autor nos estudos literários, aponta para uma certa ingenuidade. O autor está longe de morrer!
Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária
79
Em se tratando dessa proclamação de Barthes, expressada em 1968, Brunn (2001, p.32) – não fazendo uma menção direta ao escrito barthesiano – coaduna com nossa posição crítica em relação à suposta morte do autor ao salientar que:
6
“A teoria literária, ao proclamar a morte do autor, não condenou o nome do autor, mas esclareceu seu funcionamento de uma nova maneira; o estatuto dado ao autor, aqui ainda, aparece inseparável do estatuto dado ao texto, da definição mesma de texto.”
La théorie littéraire, lorsqu’elle a proclame la mort de l’auteur n’a pas condamné le nom d’auteur, mais a eclairé son fonctionnement d’une nouvelle façon; le statut donné à l’auteur, ici encore, semble inséparable du statut donné au texte, de la définition même au texte.6
Para pensarmos a dissolução da existencialidade deste que escreve, gostaríamos de frisar que o escritor seria o sujeito atraído pelo fora no momento da criação literária – ele e o escrever seriam componentes fugidios do acontecimento (encontro) da escrita literária –, enquanto o autor seria o nome que restringe, organiza, ordena o mundo dos livros e dos discursos. Com isso, gostaríamos de indicar que com o surgimento da escrita moderna não haveria desaparecimento da figura autoral – como Barthes (1984) pontua –, pois ambas nascem na Modernidade, sendo a autoria uma reação ao potencial transgressivo da literatura. Então, a escrita literária aponta para o desaparecimento do escritor e não do autor, pois a literatura até os dias de hoje é assombrada pela figura fantasmática e mitológica do autor. Obra e autor são dois conceitos fechados que restringem o fluxo transgressivo da literatura, sendo usados como meros instrumentos pelo movimento da cultura para apreender o objeto literário. Em se tratando do desaparecimento do escritor, Blanchot (1997) refina essa idéia ao longo de toda sua obra. No seu livro intitulado A parte do fogo, podemos observar inúmeros pontos que assinalam para a essência fugidia da literatura, ou mais ainda, para a ligação dessa com o desaparecimento do escritor na experiência da escrita. Não é à toa que Foucault (1999, p.229), em “Loucura, literatura, sociedade”, afirma que Maurice Blanchot
80
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
demarcou muito bem o que seria esse espaço aberto pela escrita literária: Não se sabe se o drama da escrita é um jogo ou um combate, mas foi Blanchot quem delimitou com perfeição esse “lugar sem lugar” no qual tudo se desenrola. Por outro lado, o fato de que um de seus livros se intitule L’espace littéraire e um outro La part du feu parece-me a melhor definição da literatura. É isso. Deve-se ter isso na cabeça: o espaço literário é a parte do fogo. Em outros termos, o que uma civilização entrega ao fogo, o que ela reduz à destruição, ao vazio e às cinzas, aquilo com que ela não poderia mais sobreviver, é o que ele chama de espaço literário.
Essa bonita homenagem a Maurice Blanchot aponta para um ponto importante em relação ao espaço literário. Ele é a parte do fogo, como diz Foucault. Em seu meio tudo é consumido, tudo é colocado em xeque: as coisas, o mundo e o próprio sujeito que escreve. Poderíamos fazer um jogo retórico para compreendermos essa afirmação foucaultiana e associarmos ao problema da subjetividade no âmbito da escrita literária à questão relativa ao fogo. Para Heráclito (cf. De Souza, 1996), pensador pré-socrático que dizia que tudo flui, o elemento originário da phisis era o fogo. O fogo dissolve, destrói tudo! No entanto, em que consistiria o uso dessa imagem para nossa discussão? A literatura é a parte do fogo, pois mediante sua força de atração, ela produz um movimento estranho de desaparecimento-aparecimento das coisas, do mundo e do homem. Nela, a linguagem flui pela torrente desse rio que desemboca no fora. Quando o sujeito entra aí, nunca sai o mesmo! São inúmeras as passagens que discutem essa característica da literatura em A parte do fogo, como em “Kafka e a literatura”, em que Blanchot (1997, p.21) afirma que o escritor “no momento em que escreve, [...] está na literatura e está nela completamente”. Esse comprometimento com o espaço literário é, justamente, o que ele chamou de experiência total do escrever, a qual nos referimos anteriormente.
Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária
81
Em “O paradoxo de Aytré”, ao comentar o texto de Paulhan, Aytré perde o hábito, apresenta uma belíssima imagem dessa parte do fogo em que se dissolve o mundo e o sujeito que escreve, ao se indagar sobre o começo da literatura. Para essa pergunta, ele assegura que a literatura começa pelo desmoronamento da linguagem. E com isso, mostra como o militar Aytré é levado a escrever belas passagens, em razão do desmoronamento de sua linguagem comum que era usada como mero instrumento de comunicação. Refletindo sobre isso, Blanchot (1997, p.75) afirma: Se disséssemos, talvez para censurá-lo, que as palavras de Aytré, longe de ameaçar a ruína, se tornam, à medida que ele “perde o hábito”, mais escolhidas, mais requintadas, mais felizes, tratar-se-ia apenas de ingenuidade, pois para esse sargento o recurso a uma língua mais literária ou mais bela significa apenas a perda irreparável da única língua que lhe era segura, a que lhe bastava para escrever.
Aytré perde o hábito do uso de uma língua segura, e essa perda o leva a escrever com uma certa beleza literária os relatórios de campanha. Aytré encontra o abismo da linguagem e, nesse encontro, perde também seu referencial, sua linguagem e também a si mesmo. Não será à toa que, nesse mesmo livro de Blanchot, encontraremos, associadas ao escrever, as idéias de abismo das palavras, de salvação e perda de si, de direito à morte, e da essência fugidia da literatura, pois será por meio desse modo de entendê-la que o autor francês construirá uma imagem clara do que seria essa parte do fogo que é o espaço literário. Em “A palavra sagrada de Hölderlin”, ao comentar o verso Das Heilige sei mein Wort (“O sagrado seria minha palavra”), Blanchot (1997, p.119) traça algumas considerações sobre a relação do poeta com a poesia, entendendo o poeta como fruto do encontro que dá à luz o poema: “O poeta só existe se presente o tempo do poema; ele é o segundo em relação ao poema, do qual, no entanto, é o poder criador”. Esse comentário também tem a mesma ressonân-
82
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária
cia reflexiva em seu texto sobre a poesia de René Chair, Mas é discorrendo sobre Hölderlin, em uma das passagens mais belas de A parte do fogo, que Blanchot (1997, p.130) apresenta o desaparecimento e a morte no seio do escrever:
lento e à inspiração. Sobre isso, Blanchot (1997, p.294) sublinha o seguinte: Seus talentos, ele põe na obra, isto é, necessita da obra que produz para se conscientizar deles e de si mesmo. O escritor só se encontra, só se realiza em sua obra; antes de sua obra, não apenas ignora o que é, mas também não é nada.
A morte foi a tentação de Empédocles. Mas para Hölderlin, para o poeta, a morte é o poema. É na poesia que ele deve atingir o momento extremo da oposição, o momento em que ele é levado a desaparecer e, desaparecendo, a elevar ao máximo o sentido daquilo que só pode ser realizado nesse desaparecimento. Impossível, a reconciliação do Sagrado com a palavra exigiu da existência do poeta que ela se aproximasse ao máximo da inexistência.
Nota-se, portanto, que a poesia exige a morte desse que escreve para tomar corpo em expressões de linguagem. Outra obra de um poeta que será comentada nesse livro, e que também dimensiona a questão da parte do fogo, é a de Baudelaire e sua expressão de que tudo é abismo. Glosando o artigo de Sartre (1947) sobre Baudelaire e seu suposto fracasso existencial, Blanchot apresenta uma relação estreita entre a produção literária e o abismo das palavras. Ele afirma que Baudelaire almejava um ideal estético que o possibilitaria escrever como um verdadeiro homem das letras. No entanto, é justamente quando esse escritor encontra o abismo da linguagem que ele começa verdadeiramente a escrever. Desse bonito artigo sobre Baudelaire podemos pensar que, ao se defrontar com o abismo das palavras, o escritor se encontra com a linguagem literária, colocando sua própria existência em questão, pois, afinal de contas, tudo é abismo. No ultimo texto de A parte do fogo, deparamos com mais afinco com certos problemas levantados ao longo de todo o livro. Nesse capitulo intitulado “A literatura e o direito à morte”, Blanchot (1997) retorna ao problema da contradição inerente ao escrever, que faz o escritor existir apenas quando ele se encontra defronte à questão do próprio escrever. Esse fato se coloca como um grande problema para entendermos as questões relativas ao ta-
83
7
“O paradoxo da poesia consiste no seguinte: o poeta coloca a serviço de uma atividade – a atividade poética – uma disposição que nega todo valor à atividade – quaisquer que sejam suas formas – e que não tem mais sentido quando serve para alguma coisa. Ele anseia por se perder para se achar como colecionador de palavras e criador de mitos. [...] Uma tal conseqüência não pode deixar de ser insuportável para ele. Se a poesia é a mortificação das formas e dos valores de utilidade, não é possível que um homem, beneficiário do gênio poético, sonhe em ‘utilizá-la’, em fazer dela um bem próprio, explorando-a como um reino ou uma conquista pessoal. É necessário obter dele o reconhecimento de que esse gênio não lhe pertence; o dom não é dado a ninguém porque ninguém poderia usá-lo como se o tivesse como uma propriedade sua.”
O escritor teria seu talento e sua inspiração revelados no encontro com o escrever. Antes da obra, o sujeito como escritor não existe. E ele só existe no momento do acontecimento da escrita; ele existe para, assim, morrer: grande contradição do talento, da inspiração e da própria escrita literária. Essa questão já apareceria antes, em um texto de 1943, intitulado Faux pas, quando Blanchot (1943, p.155) analisa a atividade poética e sua relação com a utilidade e a propriedade: La paradoxe de la poésie consiste en ceci: le poéte fait servir à une activité – l’activité poétique – une disposition qui dénie toute valeur à l’activité – quelles qu’en soient les formes – et qui n’a plus de sens si elle sert à quelque chose. Il est avide de se perdre pour se trouver comme rassembleur de mots et créateur de mythes. [...] Une telle conséquence ne peut manquer de lui être insupportable. Si la poésie est la mise à mort des formes et des valeurs d’utilité, il n’est pas possible qu’un homme, bénéficiaire du génie poétique, songe à l’ « utiliser », en fasse son bien, l’exploite comme moyens de règne ou de conquète personnels. Il est nécessaire d’obtenir de lui la reconnaissance que ce génie ne lui appartient pas, n’est pas à lui; le don n’est donné à personne, parce que personne n’en peut user comme s’il en avait la propriété.7
O dom da escrita não é uma propriedade, pois ela surge no encontro do sujeito com o fora, do sujeito com o vazio da morte. Atividade que mortifica as formas e o uso da escrita como utensílio útil, e com isso leva o escritor para uma zona inexoravelmente vazia, onde ele não pode-
84
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
ria, de modo algum, se nutrir de um uso útil da obra para si mesmo. Esse texto de 1943 apresenta com beleza esse paradoxo do escrever: o talento e a inspiração vêm com o escrever e também morrem no escrever, como então responder a pergunta quem escreve? Será, no entanto, no notável livro de 1955, chamado muito propriamente de O espaço literário, que Maurice Blanchot (1987, p.227) tratará com contumácia do problema da dissolução do escritor na experiência da escrita literária: Dizer que o poeta só existe após o poema quer dizer que ele recebe sua “realidade” do poema, mas que só dispõe dessa realidade para tornar possível o poema. Nesse sentido, ele não sobrevive à criação da obra. Vive ao morrer nela. Isso significa ainda que, após o poema, ele é o que o poema olha com indiferença, é ao que ele não remete e que a nenhum título é citado e glorificado pelo poema como sua origem. Pois o que é glorificado pela obra é a obra, e é a arte que nela se reúne.
Na escrita literária, há uma espécie de despossessão de si e da própria obra. O escritor não é senhor de si nem da obra na experiência da escrita, pois essa se caracteriza por seu desaparecimento. Para discutir essa despossessão de si, Blanchot (1987) afirma que a escrita literária tem uma relação indissociável com aquilo que chamou de uma exigência da obra. Antes de refletirmos sobre essa exigência, gostaríamos de pontuar que a obra em questão no argumento blanchotiano não é de maneira alguma a noção de obra formulada por Foucault (2001b), em “O que é um autor”, quando ele indica que a obra é um conceito que oblitera o desaparecimento do escritor. Muito pelo contrário, aqui a exigência de obra estaria mais próxima das noções de désouvrement ou de ausência do livro, cunhadas por Blanchot (1969) em um texto posterior, chamado L’entretien infini. Após esse pequeno adendo, voltemos ao texto de 1955 para comentar a relação da exigência da obra com o desa-
Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária
85
parecimento do escritor. Analisando esse problema, Blanchot (1987, p.50) afirma: A obra exige do escritor que ele perca toda a “natureza”, todo o caráter, e que, ao deixar de relacionar-se com os outros e consigo mesmo pela decisão que o faz “eu”, converta-se no lugar vazio onde se anuncia a afirmação impessoal.
Dissolução do eu e afirmação impessoal seriam características da experiência radical do escrever suscitada pela exigência da obra. Essa exigência arrasta o eu para uma zona desconhecida que nada mais seria do que a própria solidão constitutiva da obra. O eu é arrastado para o buraco negro da linguagem, tornando o escritor um ninguém: espaço vazio de desaparecimento. Detectando esse problema referente à solidão da obra, Blanchot (1987, p.19) aponta que justamente a prática do diário – e poderíamos acrescentar que em alguns escritores a atividade de critica literária toma o mesmo lugar – serve para retomar de alguma forma esse eu perdido: O Diário não é essencialmente confissão, relato na primeira pessoa. É um Memorial. De que é que o escritor deve recordar-se? De si mesmo, daquele que ele é quando não escreve, quando vive sua vida cotidiana, quando é um ser vivente e verdadeiro, não agonizante e sem verdade. [...] O Diário – esse livro na aparência inteiramente solitário – é escrito com freqüência por medo e angústia da solidão que atinge o escritor por intermédio da obra.
A radicalidade da experiência da escrita literária está genuinamente ligada à solidão da obra que exige que a escrita se coloque ela mesma em questão, arrastando tudo para uma zona de indiscernibilidade que chamamos de fora ou de o abismo da linguagem. Observemos que essa reflexão acerca da literatura e sua relação com o escritor nos incita outro problema: se o escritor desaparece na experiência da escrita e, assim, se diferencia da figura autoral, como poderíamos entender a noção de autoria e sua mitologia decorrente?
86
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
A noção de autoria e o espaço literário Em O espaço literário e em Le livre à venir, Blanchot (1987; 1959) salienta que a figura autoral é justamente um índice da degradação da obra de arte. Degradação da arte, pois essa preferência do artista à obra aponta para uma captura que visa definir e – conseqüentemente – empobrecer a experiência criativa. O autor serviria para explicar a obra, quando não há mais experiência a ser vivenciada. Ele é um índice de degradação, porque o seu nome funciona como um elemento totalmente transcendente à experiência da escrita, sendo usado, normalmente, como instrumento explicativo de algo sem explicação: a criação. Não foi, no entanto, por acaso que a autoria tomou esse lugar no seio dos estudos literários. Ela foi inventada mediante inúmeros acontecimentos na história que a tornaram uma figura indissociavelmente ligada à literatura. Foucault, na conferência de 1969 na qual se indaga sobre o problema concernente à autoria, reflete sobre a invenção da função autor e acerca das suas características observáveis no âmbito discursivo. Como já assinalado antes, o escritor morre no movimento criativo do escrever, e no lugar vazio de sua morte reina o jogo da função autor. Essa função nada mais seria do que o nome que territorializa a criação, tendo, assim, inúmeras repercussões para o pensamento, pois limita a proliferação discursiva. A autoria tem como função capturar, aprisionar o fluxo transgressivo. Sobre esse fato, Foucault (2001b, p.287), em uma nota de 1979 – encontrada em “O que é um autor?” –, salienta que: O autor torna possível uma limitação da proliferação cancerígena, perigosa das significações em um mundo onde se é parcimonioso não apenas em relação aos seus recursos e riquezas, mas também aos seus próprios discursos e suas significações. O autor é o princípio de economia na proliferação do sentido.
A função autor é, portanto, um antídoto contra a proliferação cancerígena da linguagem. É curioso aproximar-
Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária
87
mos essa expressão foucaultiana ao argumento de Karl Kraus (1988), quando esse autor vienense afirma que a criação se dá por um câncer na linguagem. Realmente, o nome do autor seria o remédio para esse câncer, para a proliferação incessante das palavras! Em que, no entanto, consistiria esse princípio econômico do discurso? Quais seriam as características que atravessam a funcionalidade do nome do autor na trama discursiva? Como podemos observar, o autor não seria o agente da escrita literária, e sim um nome que tem uma função bem especifica: a de delimitação discursiva. Em A ordem do discurso, Foucault (1996), estudando os mecanismos que delimitam o discurso, observa que o nome do autor seria um procedimento interno ao discurso que o rarefaz. O nome do autor unifica diversos saberes por meio de sua funcionalidade, limitando, assim, o discurso. Sobre a funcionalidade do nome do autor, tanto Brunn (2001) quanto Foucault (2001b) estão de acordo em relação à peculiaridade que esse nome exerce na trama discursiva, já que ele tem uma função diferente daquela do nome próprio. Foucault (2001b) assinala que o nome do autor tem características comuns ao nome próprio: a designação, a indicação e a descrição. No entanto, esse nome não aponta para uma existencialidade como o nome próprio. Ele traça uma relação de unificação com uma multiplicidade de textos. Esse nome tem na classificação seu principio fundamental. O nome do autor desempenha uma função de classificação dos discursos. Ele é uma forma de poder não-individual na qual a assinatura – ou o nome do autor – indica uma retomada da linguagem do poder para fazer da literatura aquilo que ela não é: uma escrita a serviço do poder. A assinatura seria um sinônimo de poder, pois marca a particularidade discursiva que esse nome tem em qualificar o discurso, servindo, assim, de princípio de garantia, de identificação e de autenticação do texto.
88
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Brunn (2001) coloca muito bem o problema da escrita e sua relação com o nascimento, posterior à experiência, da figura mitológica do autor. Ele afirma que o nome do autor seria um contrato genérico, porque poria em relação um nome e uma representação, após a experiência do escrever terminada. Na verdade, esse contrato seria muito mais do que um elemento para datar as obras. Ele é utilizado como meio para possibilitar o relacionamento entre inúmeros textos que o nome de seu autor consagra sob a mesma égide.
Conclusão Como podemos observar, o autor, longe de ser o agente da escrita literária, é um efeito posterior – transcendente à experiência – encarregado de impedir a proliferação discursiva, e, mais ainda, designado para servir de unidade geral para os escritos literários. Enquanto a experiência da escrita literária vivenciada como uma experiência total proporciona um encontro que produz concomitantemente o escritor e a obra. Ambos são fenômenos da produção da escrita. A experiência literária seria então um lugar privilegiado para analisarmos a produção de subjetividade no seio da experiência.
Referências BARTHES, Roland. A morte do autor. In: gua. São Paulo: Brasiliense, 1984. p.65-70.
Subjetividade e o escrever, um ensaio sobre a experiência literária
89
CHARTIER, Roger. A aventura do livro do leitor ao navegador. São Paulo: Editora Unesp; Imprensa Oficial do Estado, 1998. DE SOUZA, José Cavalcante. et al. (Org.) Pré-socráticos, fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Nova Cultural Ltda., 1996. (Col. “Os pensadores”). DURAS, Marguerite. Écrire. Paris: Gallimard, 1993. FOUCAULT, Michel. La pensée du dehors. Revue Critique. Maurice Blanchot, Paris, t.XXII, n.229, p.533-46, junho 1966. . A ordem do discurso. Lisboa: Loyola, 1996. . Loucura, literatura, sociedade. In: . Ditos e escritos I. Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. p.210-34. . A linguagem ao infinito. In: . Ditos e escritos III. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001a. p.47-59. . O que é um autor? In: . Ditos e escritos III. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001b. p.264-98. GOMBROWICZ, Witold. Testament, entretiens avec Dominique de Roux. Paris: Gallimard, 1996. KRAUS, Karl. Ditos e desditos. São Paulo: Brasiliense, 1988. NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos finais. Brasília: Editora da UnB, 2002. ROBBE-GRILLET, Allain. Por um novo romance. Mafra: Publicações Europa-América, 1965. SARTRE, Jean-Paul. Situations I, essais critiques. Paris: Gallimard, 1947.
. O rumor da lín-
BLANCHOT, Maurice. Faux pas. Paris: Gallimard, 1943. . Le livre à venir. Paris: Gallimard, 1959. . L’entretien infini. Paris: Gallimard, 1969. . O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. . A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. BRUNN, Alain. L’auteur, textes choisis & présentés par Alain Brunn. Paris: GF Flammarion, 2001.
91
Al Berto, a escrita, o corpo, a vida Sandro Ornellas*
RESUMO:
Leitura de textos do poeta português Al Berto, em que a escrita aparece saturada de traços do próprio corpo, pensado como metonímia do sujeito. Sua escrita vai da elaboração de um “si mesmo” e de uma sexualidade abertamente homoerótica até a reflexão dos espaços ocupados pelo corpo e o flerte com a própria morte desse corpo. Lê-se a escrita em sua materialidade, naquilo, portanto, que ela também tem de corpóreo, com desdobramentos no modo de se encarar a cultura e a sociedade, também consideradas como corpos, no caso, corpos políticos. Assim, os textos de Al Berto, ao tratarem do corpo e do sujeito próprios, também dialogam fortemente com o corpo e o sujeito socioculturais com que interage.
PALAVRAS-CHAVE:
Al Berto, escrita, corporeidade, poesia portuguesa contemporânea.
ABSTRACT: Reading of Portuguese poet Al Berto’s texts in which the writing shows itself steeped in his own body’s traces, such body being thought as subject’s metonymy. His writing gains outlines that go from the elaboration of a “own self” and of an openly homoerotic sexuality up to a consideration concerning the spaces taken up by the body and the flirtation with the very death of such body. The writing in its materiality is read in what the writing also has of corporeal, with consequential evolution in the way that culture and society are viewed, also seen as bodies, more specifically, as political bodies. Thus, Al Berto’s texts, while they consider own body and subject, they also strongly dialogue with the social-cultural body and social-cultural subject which they interact with. * Professor doutor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) – Salvador (BA).
KEYWORDS:
Al Berto, writing, corporeity, contemporaneous Portuguese poetry.
92
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Al Berto, a escrita, o corpo, a vida
Vida e escrita Portugal, anos 1970: emergência de contradições por volta do final da ditadura. O salazarismo exilara, interna e externamente, intelectuais e artistas, e o seu fim revelou a total ausência de um projeto político-cultural unificado (cf. Ribeiro, 1997). A deriva tornar-se-ia mais vertiginosa e a movimentação não mais conseguiria ser em bloco (talvez nunca tenha conseguido), senão efêmera, ágil, tática, por brechas e rompantes: mais próxima de uma radical experimentação das subjetividades do que da pedagogia neo-realista pelos espíritos e instituições – a ordem unida acabava de ser estilhaçada em nome de um corpo ainda inominável. É nesse tipo de delírio do corpo coletivo, que voluntariamente tende à entropia, que encontramos Al Berto. A Revolução dos Cravos, no 25 de abril de 1974, só vale por esse belo nome de delicada insubmissão graças a gente como ele – deslocada de sua “nação”, deslocada das tradições de seu “povo”, mas encarnadas em uma escrita de si, escritas da vida, dos corpos, das vontades, dos desejos. Eles formavam um outro povo, o povo que faltava. Al Berto é contemporâneo da liberdade política e, simultaneamente, da entrada do país para valer no processo de globalização da cultura, que leva os seus críticos a se voltar contra os caminhos tomados pelas novas gerações. O “nomadismo aproblemático” – identificado à cultura musical que toma conta do Portugal pós-74 – reflete o quanto certos mitos culturais lusitanos ainda são renitentes para uma parcela mais intelectualizada e tradicional do país. Chega-se mesmo a afirmar que “a vertente da ‘grande música’ cultivada pelas classes cultas nunca foi, entre nós, uma componente particularmente significativa em termos de imaginário cultural” (Lourenço, 2001, p.17). Se concordarmos com essa afirmação de Eduardo Lourenço, Al Berto imediatamente migra para fora das grandes linhagens culturais do país (o povo que falta é sempre excluído). E suas afinidades passam a ser com poetas-cantores da música pop – como Jim Morrison, Nick Cave,
1
A canção original começa com os versos “Here are the young men, the weight on their shoulders,/ Here are the young men, well where have they been?” e está no disco Closer, de 1980.
93
Lou Reed e Ian Curtis, para o qual escreveu um poema que se inicia com um verso isolado e em itálico, traduzido da canção “Decades”, do próprio Curtis: “presentes aqui os jovens, com a canga nos ombros”.1 No verso vemos esse conflito entre uma velha e tradicional cultura portuguesa e uma nova cultura jovem internacionalizada. Desse conflito também sairá grande parte da dilemática homoerótica presente nos textos de Al Berto, mesmo desde antes daqueles assumidamente soropositivos, como veremos adiante. Al Berto pertence à estirpe dos poetas sangüíneos, daqueles que fazem questão de deixar claro escrever para viver. Mesmo nos momentos de maior sensaboria diante da vida, nos momentos mais difíceis da sua saúde, a escrita está presente, e registra, reelabora, inventa, seleciona, dispersa, reúne, pulsa. Com o poeta junto a ela – de corpo presente. O corpo, nesse caso, não é simplesmente índice do que poderíamos chamar de “cotidiano”. O corpo é o próprio acontecimento. Para todos os sujeitos, para todas as escritas. Pois é pelo seu movimento que marcamos a singularidade dos acontecimentos nas brechas dos grandes relatos e narrativas – o gesto, o ato, a postura, a tensão, o deslocamento, o movimento das articulações do corpo produzem o que há de intempestivo nas brechas da atualidade, produzem acontecimentos. Não se trata aqui de uma observação fenomenológica de um “mundo-emsi”. Queremos apenas afirmar que Alberto Raposo Pidwell Tavares grafa a assinatura “Al Berto” como sujeito (escrito) de um discurso da sua própria vida. Essa, por sua vez, age contra toda sorte de aparelhagem de controle e vigilância sociais, buscando – na enunciação voluntária de uma vida desregrada, notívaga e deambulatória, na transgressão do uso de drogas, na sexualidade aberta e afirmativamente homoerótica e nas referências que mesclam modelos literários cultos a ídolos da cultura pop – formas desviantes das leis morais, sociais e mesmo literárias. Al Berto é a linha de fuga de Alberto, tanto quanto esse será a desterritorialização fatal do corpo daquele. O mais reincidente escrito de Al Berto é um (pseudo) diário-íntimo, de nome O medo, escrito e publicado em
94
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
três partes: 1982, 1984 e 1985. Texto que não é somente seu, pois desenha a sensibilidade dos que rasgam leis, expõem o próprio corpo como matéria da vida, como caminho a percorrer, e por isso morrem – vitimados pelos gestos de transgressão. Al Berto sabia o temor e o estranhamento que provocava, e ainda provoca, em um país como Portugal. Os moralistas continuam a cobrir o mundo com os véus de uma escrita salvacionista, divinizada, teológica, mesmo que sob a capa da racionalidade, do saber lógico, linear – escrita fonética que ecoa e traduz (autorizada) uma Voz, de Deus ou da Razão, pouco importa. Daí que Al Berto, então, é mesmo perigoso. Pelejou incansavelmente contra o destino que não estivesse inscrito no próprio corpo – mesmo nos seus momentos de maior debilidade, de maior fragilidade, de maior vacilação, esse foi o seu programa de vida. Ele sabia bem demais que a hipergrafia não é tão simplesmente uma disfunção neurológica, na qual a mão escreve frenética e incontrolavelmente, sem que a “consciência” atente, ou saiba, o que se escreve. O corpo, no entanto, sabe. O corpo sempre sabe o que escreve. 25 de fevereiro caminhar no deserto, reencontrar a magia das palavras e usá-la com maior ou menor inocência, como se a usássemos pela primeira vez, como se acabássemos de as desenterrar das areias. as palavras, esses oásis envelhecidos que me revestem o corpo como um trapo que sempre me tem pertencido. confesso que sou um superviciado de palavras, outros são-no de heroína ou de barbitúricos. na verdade passei bastante anos ingerindo speeds e escrevendo. alinhava palavras, rasgava-as, voltava a escrevê-las obsessivamente. tudo o que possuía era uma resma de milhares de folhas de papel escritas à queima-roupa noite após noite. escrevia até romper o dia, até que os dedos me doessem e os tendões do pulso paralisassem. então, relia e rasgava. tinha a certeza de que não eram aquelas as palavras que me reflectiam. sabia que ainda não conseguira chegar
Al Berto, a escrita, o corpo, a vida
2
A partir de agora, todas as citações de Al Berto serão identificadas apenas pelo número da página do livro de poemas completos, O medo (2000).
95
às palavras que, mal as acabamos de escrever, se iluminam por dentro. ainda não atingira a visão clara das coisas silenciosas, o início, o outro imperecível. ingeria cada dia mais drogas, e a dado momento tive a visão do que deve ter sido o primeiro homem a alinhavar, pela primeira vez, o seu nome. parei aterrorizado. ali estava, enfim, a morte da inocência, e a revelação do destino que me propunha cumprir: escrever, escrever sempre. a partir desse momento acumulei infindáveis cadernos escritos; era esta a única maneira de remediar o medo e de não possuir nada, e de ter possuído tudo. (Berto, 2000, p.363)2
O que o corpo escreve, é isso que lhe tem valor. Sem medo das palavras que se repetem – é nos gestos que se repetem que se mede a força de um corpo, na repetição dos movimentos, desde aqueles mais amplos até os de sintonia fina, delicados e preciosos. A contundência marca a vida de um corpo. O resto é fantasma que ronda, persegue, controla, oprime e culpa. Al Berto, portanto, sabe que a palavra se torna valor quando junto ao corpo, quando ela passa a ter um gosto, um sabor, um efeito, um pouco à maneira do que Roland Barthes (1978, p.139-40) chama de “palavra transicional”: como os objetos transicionais, elas têm um estatuto incerto; é, no fundo, uma espécie de ausência do objeto, do sentido, que elas colocam em cena: apesar da dureza de seus contornos, da força de sua repetição, são palavras fluidas, flutuantes; elas procuram tornar-se fetiches.
No fragmento do diário citado antes, uma semiótica de sangue se desenha. A seleção e o adestramento, a tomada de partido que Al Berto tão bem conhecia. “Caminhar no deserto”: o nomadismo criador versus a estéril anacorese. A ida do corpo ao deserto é, na verdade, uma ida à ambivalência da própria escrita, pois aí reencontramos as palavras na sua mais franca mobilidade. Não há nenhuma busca de um significado e de um corpo limpos, virgens e naturais nessa caminhada. Mesmo para os anacoretas, o
96
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
deserto é antinatural (cf. Tucherman, 1999, p.51-4), o deserto é um desejo que precisa ser preenchido e percorrido pelos corpos em movimento. Alguns, entretanto, vão a ele para ocupá-lo permanentemente, delimitá-lo, cercálo. Reorganizá-lo sob o ascetismo de uma escrita despótica, lógica e linear. No fragmento, Al Berto sabe que as palavras, mesmo quando usadas como “pela primeira vez”, são “trapo” que vicia ao cobrir o corpo, e, como drogas, encena o limite, o risco como método, como experimentação, como fabricação da própria vida pela arte das doses, sabendo haver sempre a overdose à espreita. Nessa arte, há tanto o lado do prazer como o do perigo – em toda arte, na verdade. Sempre que busca a arte das doses, Al Berto está ciente de que seu corpo multiplicará as populações que se acumulam e lhe percorrem – das mais libertárias às mais fascistas. O corpo, então, é o grande meio de parir a criação poética, a experiência estética e a insubmissão política. Drogar seu corpo sempre foi uma opção determinante para alguns artistas. Não pelas drogas em si, mas pela experiência que elas proporcionam ao se optar por elas (cf. Moraes, 1984, p.36). Al Berto acumulou “infindáveis cadernos escritos”, escreveu, escreveu e escreveu – palavra essa que em seus textos é o grande objeto usado para experimentar da vida. Autoficção. No fim da escrita, o fim da vida. Mesmo nos instantes em que Al Berto afirma algo para além da escrita – e existem os momentos em que faz afirmações como: “palavras são perigosas máscaras fúnebres que se colam à cara e não precisam de boca, de voz” (p.451) –, é incapaz de parar de escrever. Ele sabe que escrever é adestrar seu destino, é a força que mantém seu corpo vivo, até contra qualquer outra razão, pois a razão está no corpo-que-escreve. 11 de março definha-se texto a texto, e nunca se consegue escrever o livro desejado. morre-se com uma overdose de palavras, e nunca se escreve a não ser que se esteja viciado, morre-se, quando já não é necessário escrever seja o que
Al Berto, a escrita, o corpo, a vida
97
for, mas o vício de escrever é ainda tão forte que o fato de já não escrever nos mantém vivos. morre-se de vez em quando, sem que se conheça exactamente a razão, morrese sempre sozinho. nunca fui um homem alegre. morro todos os dias, como poderia estar alegre? sento-me e medito na busca de novas palavras. tornou-se quase inútil escrevê-las; chega-me saber que, por vezes, as encontro, e nesses momentos readquiro a certeza dalguma imortalidade. (p.365)
Como seu corpo sofre com a Lei que se lhe impõem. Todo o seu medo de se ver submetido à ordem dos Homens, da Lei, de Deus, que se fez Verbo – e escrita fonetizada. Todo o seu labor por romper com essa concepção de escrita, por fazer o corpo falar na escrita, por tornar inteligível o ruído do corpo para além dos aparelhos disciplinares presentes na escrita – para além da assepsia da própria letra. Eis sua tarefa: remitificar a prática de escrever, elaborar uma outra escrita, um neografismo que se estenda do corpo e invista contra os civilizadores aparelhos de repressão e culpabilização da vida, contra uma pedagogia da escrita (cf. Certeau, 2001, p.224). Seu desejo é o de uma performance mágica e alegre – alegria que se adquire, no entanto, pelo conhecimento da servidão. Al Berto escreveu um diário valendo-se da prosaica escrita linear, mas a transgredindo na absoluta ausência de maiúsculas, na paixão aleatória da coordenação das orações, na sintaxe fragmentada, na incompletude dos movimentos frasais, na ruptura dos limites entre o sujeito e objeto nos discursos. Mas o corpo sofre, ao forçar criar essa porta, e às vezes quer parar de escrever – porém prossegue, assim como vive: “escrevo contra o medo” (p.227). A forma de diário íntimo, dada ao livro O medo – também o nome que sublinha a reunião completa de seus poemas –, faz pensar em quais “si mesmos” Al Berto (se) escreve, quais sujeitos se delineiam nos tracejados das linhas impressas, quais subjetividades se constroem na materialidade das escolhas fonéticas, sintáticas e morfológi-
98
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Al Berto, a escrita, o corpo, a vida
cas das frases. Muito da voz “confessional” que se lê em seus textos, ao uso desabusado do “eu”, está marcada pela ambivalência da sua escrita, quando o “si mesmo” confunde-se com um “outro” que escreve e é escrito na vertigem dessa multidão que deriva por intermináveis linhas. eis a deriva pela insônia de quem se mantém num túnel da noite. os corpos de Alberto e Al Berto vergados à coincidência suicidaria das cidades. eis a travessia desse coração de múltiplos nomes: vento, fogo, areia, metamorfose, água, fúria, lucidez, cinzas. (p.11)3
A intimidade que ele simula, bem como na maior freqüência com que retorna à fabricação do (pseudo-)diário íntimo O medo, aproxima-o dos antigos hypomnemata – “cadernos pessoais [...], uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas” –, mesmo sem possuir o papel de “guia de conduta”, oferecido, “qual tesouro acumulado, à releitura e à meditação ulterior” (Foucault, 1992, p.135). Ao invés de se forjar pela releitura e pela repetição uma memória que se cola à escrita como repositório do tesouro da língua, ativa-se um corpo para a permanente metamorfose de uma escrita simulada, desde a sua assinatura até o pensamento que aí se produz. É na constituição desse corpo que Al Berto investe quando da produção do (pseudo)diário-íntimo, dos seus “infindáveis cadernos escritos”, cuja força está justamente na presença explícita de uma materialidade da escrita: constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um “corpo” [...]. E, esse corpo, há que entendê-lo não como um corpo de doutrina, mas sim [...] como o próprio corpo daquele que, ao transcrever as suas leituras, se apossou delas e fez a sua respectiva verdade. (Foucault, 1992, p.143)
Nos textos, as viagens se fazem, as leituras avultam, os amores de realizam, as notas se registram, os inventários assomam, as cópias – implícitas ou explícitas – ensaiam formas diferentes e fabricam sua postura, o gesto, a
3
Essa é parte da abertura – “atrium” – do primeiro livro de Al Berto, chamado À procura do vento num jardim d´agosto, e não existia na primeira edição do livro. Foi acrescentada nas edições seguintes, um pouco à maneira de um programa formulado a posteriori. Essa informação me foi fornecida por Gustavo Cerqueira Guimarães, pesquisador brasileiro da obra de Al Berto, a quem agradeço.
99
técnica, o corpo próprio – estrangeiro, híbrido, mestiço, andrógino, hermafrodita, monstruoso pela sua desmedida. O que há – de fato – é um movimento de ruptura com as fronteiras de todas as espécies, ruptura com a própria idéia de que o texto poético seja sempre um comentário (crítico) sobre a vida – e não uma forma de experiência da vida na sua dimensão mais concreta e real. Al Berto soube se forjar um especialista extremamente arguto e competente na arte de elaborar formas de sensibilidades e formas sensíveis – seu texto é a realização, a formalização dessas vontades do seu corpo; bem distante das modalidades moralizantes de se pensar, se ler e se interpretar o gesto da criação.
Homoerotismo A escrita belamente homoerótica de Al Berto passa por caminhos importantes. A sua homotextualidade opera o que outras grandes escritas outrora também operaram no que respeita ao corpo masculino, ajudando a repensar o corpo-do-homem. Além disso, essa escrita funciona em uma poderosa interface com a especificidade do corpo gay – das suas vontades, dos seus desejos, da sua constituição física, afetiva e, importante, estética –, na qual se cruzam diversos fluxos semióticos: sexualidade, gênero, drogas, aids, morte e vida. Há aí o agudo problema da homotextualidade e da publicização da sexualidade – que Al Berto assumiu, não sem conseqüências seriíssimas, porém exemplares. A potência presente nos textos de Al Berto se dissemina como um modo de politização do privado, fazendo da escrita de sentimentos, desejos e dramas pessoais meio próprio para a interpretação de uma comunidade que se estabelece estrangeira às temporalidades das modernas sociedades e instituições nacionais. Essa comunidade é, sobretudo, afetiva (cf. Lopes, 2002, p.34) – assentada na singularidade mutante, que rivaliza com o gregarismo fixo, transformando os grupos – e investe contra a autoconservação, como perpetuação do poder e da forma. A singula-
100
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
ridade é a irrupção de uma força eminentemente extemporânea agindo por fora das instituições socioculturais contemporâneas. O caso singular existe pela sua inatualidade e acaba forçando as malhas conservadoras do presente com sua aparência perigosa e seus gestos de risco. A política de Al Berto, então, não funda nenhum corpo institucional, mas um corpo selvagem, intérprete experimental das pulsões que atravessam inúmeras formações discursivas. Quando se diz que a estética homoerótica escandaliza por publicizar a intimidade, deve-se ressaltar o quanto a sua “promiscuidade” tem de força política e transformadora e o quanto ela tem da repetição e conservação de um corpo político pelo discurso institucional do poder. A poesia de Al Berto filia-se a toda uma linhagem de escritores que ativam uma orientação homoerótica em seus textos, carreando junto a si todo um espectro de formas temáticas. A marginalidade, a estrangeiridade, homens maduros, jovens andrógenos e a condição da arte e do artista passaram a ser formas temáticas onipresentes na literatura homoerótica, e têm nos romances de Jean Genet e em Morte em Veneza, de Thomas Mann, alguns de seus principais modelizadores no século XX. A orientação homossexual foi metaforizada incessantemente na literatura como doença, como alguma deformidade, como alguma forma de peste que se encontra em alguns, como algum inseto ou animal no interior do corpo, como veneno e, mais perto do presente, como uma inominável e misteriosa doença. É por essas metáforas que a morte sempre rondou as formas de homotextualidade, como uma espécie de signo de punição e de castigo, do qual parece não se escapar. Adoecer sem esse signo de punição, sem o profundo sentimento de culpa que colam ao corpo e ao desejo homoerótico foi o maior desafio ao longo de toda a vida escrita de Al Berto. Em seus textos, estão presentes absolutamente todas essas metáforas – que vão se diluindo ao longo do tempo, ao longo da sua experiência soropositiva, ao longo da experiência de escrever vidas e de experienciar escritas. O primeiro poema de “Réstia de sangue”, no livro
Al Berto, a escrita, o corpo, a vida
101
A noite progride puxada à sirga, de 1985, colocado ao lado do livro de Mann, figura o adoecimento logo à chegada “a qualquer cidade imaginada”. mas adoecera repentinamente era como se dali nunca tivesse saído escrevia pouco diziam que estava louco dormitava indefeso na melancolia da tarde coleccionava postais ilustrados deslocava-se ao olhar aquelas imagens dormia em Florença ou visitava Veneza onde nunca conseguia entrar no verão seguinte encolheu-se ao sol da janela a febre estiolara-lhe os nervos e o peito ardiam-lhe os olhos na ilusão de mais um dia amava ainda mais Veneza e as borboletas que duram pouco dizia-me que era sorte sua ter vivido tanto tempo (p.473).
A metaforização da doença é um discurso obscurantista e moralizante sobre a diferença, sobre o outro que se possui no corpo e que ameaça a “normalidade” do corpo social – daí a noção de “grupos de risco” (Bessa, 1997, p.21 e 104). Na Antigüidade, contrair uma “doença” implicava o risco do julgamento moral de toda a comunidade, do corpo manifestando seu “erro” ante os ditames e as vontades dos deuses. Daí as pestes e as pragas relatadas nos textos sagrados. Na Modernidade, um corpo “doente” revelaria um indivíduo “doente”, cujos sintomas poderiam ser determinados pelas ciências médicas e sua auscultação daquele corpo nas suas partes específicas, também individualizadas. Porém, por mais que se pense que a revolução médica tenha operado uma troca do julgamento moral pela avaliação da saúde, como afirma Richard Sennett (1997, p. 214), é certo que essa “troca” continuou sustentando um julgamento de valor arbitrário e moralista (cf. Sontag, 1984). Na política moderna, o sujeito é forjado e controlado por práticas individualizantes a partir da efetuação da clivagem dos espaços em público e privado, com suas respectivas regulamentações. O discurso político obscu-
102
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
rantista, mistificador e moralizante passa a ser o instrumento da “opinião pública” para fabricar o corpo individual, regular o corpo selvagem em um corpo social e legislar o corpo político, em detrimento dos casos singulares que lhes escapam. No caso dos homossexuais, são incriminados e punidos por seus desejos mais legítimos e intransferíveis. Isso nos leva a pensar a melancolia que atravessa permanente os textos de Al Berto como um acerto de contas político com a geração da segunda metade dos anos 1970 e início dos anos 1980, nos quais a “suave força [da melancolia] nasce de uma percepção da passagem do tempo, das ruínas que se avolumam [...] O melancólico as sabe infinitamente ínfimo e a morte está sempre próxima” (Lopes, 1998, p.15). Ressaltando esse acerto de contas a partir de uma sensibilidade que não é apenas individual, o desejo homoerótico – mesmo que melancólico – empreende uma crítica ao seu controle sociocultural e ao seu cerceamento moral via privatização e reclusão à intimidade, reelaborando formações discursivas e redefinindo a política na passagem para o século XXI. Al Berto é ainda em parte tributário das representações do desejo homoerótico sob a forma de metáforas mistificadoras e moralizantes. Difícil ultrapassá-las, pois a literatura, de resto, ainda é comumente lida como dona privilegiada de “uma pesada carga de ‘conteúdo’, ao mesmo tempo reportagem e julgamento moral” (Sontag, 1987, p.344), o que dificulta ser avaliada como um estado de intensidade experimental, como corpo na sua presença material e exterior mais valiosa, repetindo leituras moralizantes e interiores. O tipo de textualização da qual Al Berto também é devedor, por sua vez, sabe que o corpo não pertence mais simplesmente à ordem do legível, das representações, do universo fechado, da escrita despótica, entregue ao olhar contemplativo. O corpo – e também a doença – passam a ser traço, inscrição, marca, materialidade gravada sobre o suporte que o sustenta, e a doença – que só difere da saúde em grau – é também a vontade de
Al Berto, a escrita, o corpo, a vida
103
uma escrita selvagem, pensante, polimorfa e erótica. A metáfora nessa prática de escrita não é mais de tipo romântica, contemplativa e hermenêutica, que ainda embala a escrita de Thomas Mann, por exemplo. A metáfora passa a ser o tipo de afecção de que um corpo é capaz, afecção estampada no trabalho do estilo. arrumo meus papéis escritos para o último livro com um tigre prodigioso cravado nos ombros mantenho os dedos sujos de tinta há vários dias e sempre que não consigo escrever fumo devagar encontro tempo necessário para não fazer nada de meu corpo corroído pela febre ergo-me atravesso a sala desligo a televisão que nunca vejo aberta junto à janela aberta a mãe tece a camisola em lã mal cardada um vestígio de dor envolve-me que acontecerá à minha sombra? terei tempo de assobiar à morte? terei tempo de levar comigo a roupa de que mais gosto? que horas são? além perto da mãe talvez não seja só febre isso que me assola pode ser um indício de peste qualquer mal que alastra pela mansa noite a contamina os dias fechados na desolação não consigo imaginar que se morre sozinho sem sombra sem doenças sem sangue
A sensação de um terrível mal-estar, de algum mal físico e, especialmente, psicológico, impede de discernir ao certo que questões se colocam no e para o corpo no início do texto. Isso é claro na sua primeira metade, nas quatro estrofes iniciais, que sustenta uma descrição de es-
104
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
tados enfermiços, um bloco de sensações absolutamente servil pela debilidade diante das afecções ali inscritas. Ao tentar manter uma falsa neutralidade descritiva, o corpo enveredou pelo conservadorismo e pela impotência. A bela imagem do segundo verso – “um tigre prodigioso cravado nos ombros” – dimensiona bem o tamanho do mal-estar e também o tamanho do desconhecimento da “febre” que corrói o corpo, ainda dependente da figura materna. Já a segunda metade do poema, nas três estrofes finais, efetua um movimento mais potente no sentido de abrir alguma fresta na rede metafórica desse mal-estar, desse “tigre prodigioso”, dessa “febre”, dessa “camisola em lã mal cardada”. A “dor” toma (o) corpo crescentemente, o “mal” se “alastra” e “contamina”, a “morte” se aproxima e as dúvidas, maiores, desorganizam a rede metafórica do texto, que – de narrativo e descritivo – passa a mais incisivamente direto na série de interrogações da quinta estrofe, na substituição da “febre” pela “peste” (compartilhada na sua insinuante singularidade), na sexta estrofe, e na proximidade da morte na última estrofe. A doença deixa de ser interpretada como imagem moral de uma má-consciência e passa a ser experimentada como crise para a renovação do corpo, estado de fortalecimento e multiplicação dos seus atos. A doença é o signo da descontinuidade da vida, da transformação rumo à saúde e a recusa ao estado mórbido da hereditariedade e gregarismo (cf. Klossowski, 2000, p.218-95). A coletividade é, no caso de Al Berto, polimorfa, formada por combates que renovam seu colorido e esplendor. É o que se lê no final do poema: “não consigo imaginar que se morre sozinho / sem sombras sem doenças sem sangue”.
Fuga e metamorfose A experiência da morte para Al Berto se apresentou como a experiência da grande viagem para a qual se preparou durante toda a vida. A morte foi o ponto culminante da sua vida, o laço final e confirmatório dos experimentos que produziu no seu corpo como território maior. Na ver-
Al Berto, a escrita, o corpo, a vida
105
dade, a melhor maneira de experimentar a morte como ponto alto da vida é lutando contra ela, o que Al Berto fez exemplarmente, com a paixão dos que guerreiam em campo aberto, sem dissimulações, só os ágeis movimentos das batalhas festivas, rituais onde se reafirma o desejo como móvel da vida, como no poema “Tentativas para o regresso à terra, 4”, do livro Trabalhos do olhar, de 1984. a noite dilata a viagem pressentimos a nervosa luta dos corpos contra a velhice mas nada há a fazer resta-nos descer com as raízes do castanheiro até onde se ramificam as primeiras águas e se refaz o desejo. (p.194)
O ritual do castanheiro – de fundo xamânico – é preparatório para a grande viagem que o envelhecimento indica. O corpo viaja pelas estradas como um corpo peregrino, que abandona a culpa e se liberta dos pecados. Essa é a visão da estrada – o corpo viajante envereda por caminhos cuja libertação está no traço iniciático, de introdução à alteridade, a uma outra realidade e a uma outra vida. O nome “Al Berto” já é traço derivado de outras e inúmeras viagens de sua parte, sujeito residual. E, como todo desenraizamento, a fuga é excessiva e sofrida. É simultaneamente morte e renascimento, numa relação em que encontramos viagem, religiosidade neopagã e processos sociais, muitos presentes na contemporaneidade (cf. Mafesolli, 2001). Assim também se dá com a arte das doses, prática que recupera uma ênfase no corpo por parte de um mundanismo voltado para o espaço sagrado no seu perigoso flerte com a morte – agora não mais a morte decorrente do envelhecimento, mas da posse experimental do seu próprio corpo, da sua exposição às forças intensivas de drogas. O corpo drogado empreende uma viagem experimental por paisagens que são pura artificialidade, simulacros da grande viagem da morte, performances contestatórias da ordem que submete o corpo, da escrita despótica que – abstrata –
106
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
o domestica. As drogas produzem uma viagem que reescreve o corpo de Al Berto pelo princípio do nomadismo, da errância e da dispersão. E a viagem que Al Berto escreve não é metafórica. Ele viaja realmente quando se droga, viaja quando morre, viaja quando escreve – seu corpo é levado por uma vontade de geo-grafizar a existência e a vida. E o corpo o faz precisamente à maneira dos grandes xamãs, como se lê na fala do “Curandeiro”, do primeiro livro, À procura do vento num jardim d’agosto. / deitado na serenidade dum gume sugando a veia enquanto não te defines / altura mais clara da noite / membrana distendendo-se no vapor sulfúrico da noite que nos sitia / ligeiras membranas / voluptuosamente flutuantes em fusão umas com as outras / simulacro do sonho / gesto esquecido na memória de ser hoje laranjapeixe / membrana de ar onde se movimentam os dias numa hemorragia de cuneiformes sementes / escrita tumular / delírio espesso e fragmentário do infernal filmes da cidade / florido corpo esvaziando-se na sépala dum fumo ou do marfim do olhar lento dos mortos / espaço de um trabalho errante / ferida reaberta por baixo do precário penso / [...] / fenda viva vulva por onde escapamos / tropeçando em nosso próprio excesso mudamos de cor e de idade / mudamos de rosto e morremos / sumptuoso esperma das estrelas / corpo sísmico na moela da viagem / tropeçando resistindo num último alento rastejando com o sexo dentro dos cinzeiros / Alice espera-te à sombra do maravilhoso cogumelo / [...] / percorro-me mas raramente encontro uma saída / tacteando paredes de labirinto escrevo / o corpo pulsa num arrepio / as luzes apagam-se e a queda recomeça / visto-me com penumbra e deixo que o vento me arraste / disperso-me pela paisagem / (p.61-2)
As enumerações frasais imantam as palavras com uma sacralidade rítmica que se tensiona com o extremo mundanismo das seqüências de imagens. A grande viagem proporcionada pelo uso da droga – simulacro e suplemento da morte – materializa-se em uma sintaxe cuja linearidade é rompida brutalmente pela descontinuidade visualmente marcada nas barras. Impõe-se aí um tempo espiralado no
Al Berto, a escrita, o corpo, a vida
107
qual o corpo desenha grafismos que apontam, acima de tudo, para uma experiência de choque sensorial muito comum em festas populares de origem pagã e em rituais de iniciação. No texto de Al Berto – no qual a escrita se processa sempre flutuante e tática, no sentido de ser um gesto pontual, que se esfarela ao piscar dos olhos – o corpo escreve movido por uma permanente experiência de impermanência, pulsão de deslocamento e fuga. A potência do seu corpo aparece no texto quando escrito precisamente na tactilidade dessa sua experiência de deslocamento – walk writing em que a produção da experiência se inscreve como materialidade do texto (cf. Vasconcelos, 2000, p.56). Encontra-se essa escrita deambulatória na sua elaboração mais exemplar com o precioso texto “A morte de Rimbaud”, que fecha – em quatro partes – seu último livro Horto de incêndio. Nele, Al Berto realiza a despersonalização fatal para a sua última viagem. Em primeira pessoa do singular, incorpora a assinatura “Rimbaud” como aquela pela qual se metamorfoseará no grande fugitivo, no maldito, no eterno adolescente, maior de todos os artistas rebeldes, ladrão do fogo olímpico, que se recusa a viver em culpa e pecado e entrega seu corpo à fuga sem fim das noites em movimento. a verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade, com um sussurro cortante nos lábios. e atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes que ligam uma treva a outra treva. caminho como sempre caminhei, dentro de mim – rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens. o absinto, esse álcool que me permitiu medir o tempo no movimento dos astros. e vi a vida como um barco à deriva. vi esse barco tentar regressar ao porto – mas os portos são olhos enormes que vigiam os oceanos. sevem para levarmos o corpo até um deles e morrer. [...] o regresso nunca foi possível. o verdadeiro fugitivo não regressa, não sabe regressar. reduz os continentes a distâncias mentais.
108
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
aprende a fala dos outros – e, por cima dele, as constelações vão esboçando o tormentoso destino dos homens. [...] não semearei o meu desgosto, por onde passar. nem as minhas traições. (p.609-10)
Diversamente de seus ancestrais portugueses, ao viajar, Al Berto não quer mais mudar o outro, mas se mudar em outro – mudar a si próprio, experimentar um outro no próprio corpo, submeter-se a si mesmo para não ser mais submetido. Tornar-se senhor de si próprio. Na verdade, o fugitivo deseja, sobretudo, ser outro, mínimo, escuso, oculto, menor na sua falta como povo. E Al Berto tanto correu, tanto escapou, tanto fugiu que “fugir tornou-se uma obsessão, ou então é a melhor maneira de encenar o desespero” (p.613). O movimento é o desejo mais premente em Al Berto – traçar linhas e mais linhas de fuga como estratégia de vida, linhas escritas sobre o próprio corpo, não como Leis para o Caminho, a Verdade e a Vida. Senão como seu próprio caminho, sua própria verdade e sua própria vida. Nessa erótica, sua escrita recusa a sacralização monoteísta e a linearidade do pensamento único e escolhe o extravasamento das pulsões, o arrombamento da clausura pela potência da traição. Não qualquer traição, mas aquela aos grandes impérios, às grandes religiões, às grandes instituições, aos grandes discursos salvacionistas e disciplinadores. Al Berto se sabe traidor. Sabe haver traído Pai, Pátria, Deus, Família, Estado, Sexo. Mas jamais traiu o seu desejo de fugir, o seu desejo minoritário. Só foge quem é menor diante dos grandes poderes fixos (cf. Deleuze & Parnet, 1999, p.53-6). É contra a hiperidentidade da cultura portuguesa (cf. Lourenço, 1988) que Al Berto escreve. Seus cadernos escritos optam pela desidealização do corpo sociopolítico e pela tomada de partido por uma escrita selvagem, contra a escrita tradicionalmente imperial, com que a memória cultural portuguesa é significada. Leiamos os fragmentos abaixo, do longo poema “A seguir o deserto”:
Al Berto, a escrita, o corpo, a vida
109
[...] a viagem devora-me cega-me o brilho dos alicerces ainda sólidos da casa ultrapasso-os por fim atinjo o lodo as ardósias onde o cuspo dos deuses inscreveu a memória daquele que foge pressente-se já a pequenez do país submerso quando atei a minha idade ao coração da terra era porque a morte se aproximara suicidei-me há muito se era isso que desejava saber [...] assim continuo a desejar países serenos lagos suaves palavras gravadas no envelhecido estanho dos gestos e conheci o imutável bolor do rectangular país a histeria peninsular o buraco onde coalhou o pressagioso nevoeiro de Quibir que país é este? onde a espera definha noutra espera [...] eu tossia cada vez mais a doença contaminava o corpo e tudo o que vivera comigo esfacelava-se nas arestas dos dias quando partiste comecei a gravar o que me evocava a tua passagem os nomes das plantas os meses as funções dos objectos os perfumes o vestuário e tossia sangue para que os meus actos adquirissem transparência a doença tinha a enormidade dum mar interior mas apesar de tudo amava-te e nunca vi coração tão forte como o teu basta olhar o asfalto ferido das cidades ou lamber-te para sentir a terra e o azedo que outros corpos esqueceram no teu [...] grito: que se libertem as índias da memória os arquipélagos de remoto ópio os trópicos do meu sangue os líquenes inexplicáveis a visão do início
110
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
as primitivas tribos de povos estelares as pragas de gafanhotos e de sífilis a peste que se revele no fundo de mim a peste [...] procuro-te obsessivamente na melancolia das mãos porque só o acto de morrer muitas vezes compensa e foi necessário que fizéssemos uma serra para cortar os pulsos de uma espada e fizemos e com uma cana-da-índia de rota fizemos uns foles para atear o fogo mas no fundo sabemos que não podemos continuar a adiar a morte pintei nos ombros umas asas de coral para me evadir abandonei a casa e as notas rabiscadas rapidamente as emendas as manchas de tinta azulada nos dedos os manuscritos ilegíveis a poeira dum olhar preso ao vício feliz das palavras a escrita a indelével respiração do poema o fluxo do grito o eco lacustre dos dedos tamborilando no sono a casa vazia e a janela onde debrucei o que me restava da vida levei dez dias de viagem até que a noite me recebeu como um ressurgido do outro lado do corpo e nada direi sobre o deserto nem deixarei sequer um inédito (p.337-46)
Está tudo aí. O parti pris pela estrangeiridade, a fuga como método, a vida produzida pelas linhas de fuga, a afirmação da vida na crise impressa pela morte como transformação maior, contra a lógica da repetição presente em casa, a recusa à memória nacional e a exposição que os males da hiperidentidade causaram ao seu corpo, à sua saúde. Junto ao “imutável bolor do país rectangular”, a doença é minoritária, contra o gregarismo nacional, pela figura do interlocutor, amado a quem basta lamber “para sentir a
Al Berto, a escrita, o corpo, a vida
111
terra e o azedo que outros corpos esqueceram no teu”; doença agora como parte do tratamento contra a mórbida saúde do nacionalismo português, do passado monumental, dos heróis e do Estado bélico. Enfim, de uma escrita sumamente despótica a controlar os corpos.
Espaços Para os grandes fugitivos, como Al Berto, a estrada é sempre flutuante, móvel e desestabilizadora da memória. a estrada é talvez uma idéia que nunca acaba, nada tem a ver com os kms a percorrer. a estrada é como o desejo não realizado, não tem princípio nem fim, existe flutuante, intensamente, até que esquecemos. (p.358)
Percursos são poucos, finitos. Donos de uma sintaxe clássica, de um léxico compartilhado, com pouca inventividade e transgressão. A língua é um percurso feito e refeito, posto e imposto. Jamais desfeito. Desfazê-lo, transgredi-lo é se marginalizar, é se desencaminhar. Já as estradas são infinitas – aleatórias, por isso infinitas – atravessadas por toda espécie de singularidades. A estrada é o principal sujeito do movimento. Ela se desloca junto com os passos, que exalam alegria na recolha dos resíduos e dos fragmentos que por ela encontram. Por elas são encontrados trechos com estilos alheios, imprevistos movimentos frasais, buracos sem sinalização nem pontuação, tropeça-se em palavras, fragmentos de outros corpos, que se metamorfoseiam pelo espaço, trocam de pele, de rosto, envelhecem ou rejuvenescem, alimentando-se, suando, urinando, salivando, falando, olhando, ejaculando, sangrando, lagrimejando, escrevendo, transformando a vida. Fazendo uma analogia entre a estrada e o traçado da escrita, podemos afirmar com Félix Guattari (1992, p.153) que durante a leitura de um texto escrito, o traçado da articulação fonemática libera, de modo descontínuo, suas seqüências significativas de articulação monemática. Ainda aí um
112
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
outro Agenciamento de enunciação desencadeia outras modalidades de espacialização e de corporeidade. O espaço da escritura é, sem dúvida, um dos mais misteriosos que se nos oferece, e a postura do corpo, os ritmos respiratórios e cardíacos, as descargas humorais nele interferem fortemente. Tantos espaços, então, quantos forem os modos de semiotização e de subjetivação.
Na leitura dos grafismos dessa linha-estrada, recolhemos resíduos de todos os tipos, resíduos de outras escritas-corpos, em maior ou menor quantidade, deixado no espaço para que a ele o leitor possa se unir – revitalizá-lo, revitalizando-se. Estar sempre em movimento trouxe conseqüências para Al Berto. Seu corpo não habitará lugar algum, somente percorrerá espaços, atravessá-los-á noite e dia como um projétil insone e voraz – objetivamente atrás do desejo de movimento, de deslocamento por espaços que se mostrarão sempre os mesmos. Na sua deambulação, permanecer em algum lugar, construir um lugar permanente custaria a própria vida do corpo. E este só existe quando escreve, quando se move na escrita, no ato de escrever, concentrando ossos, tendões e neurônios. Movimenta-se para lembrar que se está vivo, para produzir vida no corpo, produzir a vida do corpo, para fazê-lo escapar às identificações gregárias fabricadas pelo lugar, identificações despóticas que subjugam o corpo do outro, seus desejos desterritorializados e insubmissos às convenções sócio-culturais, às instituições e fundações que se lhe são impostas pelo corpo do Pai-Pátria-Patrão-Estado-Igreja-Rei-Escola-Deus. Al Berto quer livrar-se do peso e da fixidez do lugar em prol da leveza e da mobilidade do espaço, da desterritorialização singular, maleável, até mesmo violenta, mas que anseia abdicar da lógica das representações. Não se trata de se pensar binariamente o lugar como antropológico e o espaço como utilitário (cf. Augé, 1994, p.76-7). O aproveitamento do espaço é o da composição de singularidades que se forjam pela ordem dos afetos, dos desejos, das pulsões sempre mutáveis. Podemos dizer que a série
Al Berto, a escrita, o corpo, a vida
113
“espaço” – descontínua, aleatória e infinita – é uma linha de acontecimentos que se traça junto à série “corpo”. Ambas (inter)agem permanentemente como produtoras de subjetivação. Abandonar família, casa, cidade, país, orientar-se homossexualmente, recusar as instituições literárias e culturais é correr o risco por espaços de vida, de criação e transformação. Nesse risco, o corpo de Al Berto é afetado dolorosamente pelas mega-máquinas da aparelhagem de Estado. O que a aids significou para seu corpo comunitário é exemplo disso. A sua fragilidade diante dessa rede centralizadora sempre foi enorme. Assim, como na opção pela viagem iniciatória radical – preparação da grande viagem da morte –, os espaços percorridos pelo corpo são da mesma ordem de radicalidade e contundência: casas, cidades, países anônimos, devastados como corpos terminais, extensões de um corpo entrópico. ... há uma cidade a rebentar na humidade vertiginosa da noite e um homem com olhar de açúcar encostado ao néon melancólico das esquinas espera o próximo shoot de heroína... há uma cidade por baixo da pele e uma casa de sangue coagulado na memória atravessada por canos rotos e um corpo pingando mágoas... há uma cidade de alarmes e um tilt lancinante de flipper dentro do meu pulmão adolescente e uma dor de chuva fustigando o sexo adormecido no soalho do quarto de pensão... há uma cidade de visco e de esperma ressequido e uma pastilha elástica presa ao fundo do copo... há um sorriso e um engate e um càmone e um arrebenta e uma boca de lodo aberta sobre o rio... há uma cidade de fome e lixo enquanto o ciúme escorre das mãos do amantes... há um dedo de lâminas usadas e um beco sem saída onde se enroscou um puto e um cão de febre... há uma cidade crescendo no grito e na gasolina no fogo nucturno da minha vertigem presa nas alturas de cimento armado onde coabitam sexos mergulhados em naftalina... há um osso branco que perfura a insônia e a madrugada e esta cidade de nojo e de fascínio... há uma navalha cortando o betão das avenidas e um pássaro de enxofre nas feridas duras dos cabelos... há uma cidade de estátuas desmanteladas contra o espelho de um bordel e a luz do teu olhar
114
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
dentro duma janela antiga... há uma cidade que se escapa para fora da noite espia avança e mata... há uma cidade de trapos queimados e de vozes ardendo e uma toalha para limpar o sono de poucos brinquedos... há uma alucinação furiosa que me incendeia a veia e revela teu rosto lívido que se suicida... há uma cidade de papel engordurado que eu amachuco nos dentes e todo o meu corpo sangra... treme... e tem medo... e morre... (p.147)
Cidade e corpo se plasmam. Entre propriedades anatômico-fisiológicas e sócio-espaciais, seu corpo e se funde à cidade, intercambiam-se e se fazem extensões um do outro. Sensações se condensam em uma escrita em espiral, que se movimenta entre reticências e enumerações descritivas, num percurso circular que aponta para o motivo musical do texto (“há... há... há... há...”) – só levemente deslocado de um trecho para outro pela sutil permuta entre propriedades entre cidade e corpo (“há uma cidade crescendo no grito e na gasolina no fogo nucturno da minha vertigem presa nas alturas de cimento armado onde coabitam sexos mergulhados em naftalina...”). Aí, a continuidade não se faz tão-somente pela espacialização visual do texto. Ela está presente no espaçamento marcadamente temporal das reticências. Temporal porque prolonga o sentido do que está escrito em um tempo nãoescrito, de que as reticências não são simplesmente índice, mas o próprio sentido. O excesso de repetição conduz às vias da desterritorialização do sentido do escrito. A impressão de um significado flutuante é resultado da pressão de se ler o “por debaixo de” ou “entre” as palavras, quando o que realmente flutua é o significante corpóreo, o seu corpo próprio, que é texto escrito, instável na visceralidade da sua performance: toda a cultura impõe aos seus membros não somente modelos de comportamento, mas também espaços implícitos onde se desenvolvem a inventividade e a expressão individuais Estas zonas ficam sujeitas ao significante flutuante: não é ele o testemunho de toda arte, toda poesia, toda a invenção mítica e estética? (Gil, 1997, p.48)
Al Berto, a escrita, o corpo, a vida
115
Isso, no entanto, só é viável porque Al Berto se esforça ininterruptamente por desfazer-se da memória cultural que gravaram sobre seu corpo, memória despótica de extração histórico-teológico-familiar. Sua memória é outra, parida pelo corpo, da sua força, da sua potência, da sua ação, do seu gesto. E não uma memória criadora de formas centralizadoras, fantasmáticas e divinizantes de existência, a domesticar o corpo. Sua memória também pulsa, vibra, sangra, treme, vive e morre, pois não é apenas representação, mas uma memória feita de carne, feita de dor e prazer físicos. A memória para o poeta é principalmente a sua espacialização, sua inscrição flutuante e instável, por onde o corpo pode navegar à cata novos fragmentos para a sua montagem, como no trecho abaixo, de “Quinta de Santa Catarina, 2”. animais estrangulados, matérias plásticas, um tijolo com os furos cheios de avencas, um cão atropelado, manchas de sangue seco. o fundo do tanque em cimento, o perfume da roupa lavada. uma sombra debruça-se para o tanque, em cima da mesa os óculos, a régua que pertenceu ao avô, a resma de papel, a colher em prata lavrada, uma lâmpada fundida, água. mais água, um envelope molhado, as canetas, os lápis, a máquina de escrever. tornou-se difícil prever até onde os olhos conseguem nomear, arquivar, arrumar para sempre os pequenos resíduos da adolescência. hoje, escrever é um ato nocturno. respiro dolorosamente. escrevo sempre deitado ou encolhido sobre a mesa. o silêncio e as sombras deslizam à minha volta. espreitam por cima do ombro para verem o que estou a escrever. ouço a música que vem do fundo da minha solidão. música aquática, arestas do sangue, medrosos dedos tamborilando nos vidros poeirentos. teu nome, este som frio de árvores esfacelando a cal das paredes. escrevo com o medo e o susto dentro de cada palavra. a vida atinge a espiral vertiginosa da noite. é esta palavra que me serve para te nomear e não outra: medo. os textos progridem com a desolação da casa, latejam sobre o papel, doem-me os dedos e os olhos, os órgãos do corpo que nunca vi. o peito desgasto pela doença. por uma fenda nas madeiras cresce a alba. perfura, entra
116
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
pela janela, devassa a intimidade penumbrosa do quarto. paro de escrever, estou muitíssimo cansado. na exaustão da noite dei comigo a enumerar as coisas amadas. ponhoas nos lugares onde sempre estiveram, dou-lhes uma idade, uma utilização, e antes que a manhã se abata sobre a casa recrio o mundo. depois, espero o sono. incham-me as pálpebras, adivinho os sonhos anteriores à minha idade. o corpo escorrega pelo abismo florido das galáxias. nada sei de mim durante essas horas. absolutamente nada. (p.132)
O espaço é tocado na sua intimidade. O olhar se estende até os objetos e as coisas que o habitam e compõem com o sujeito um singular espaço de imanência. A unidade vai pouco a pouco se estabelecendo entre o corpo e o espaço ao redor. Todo corpo se move por um espaço. E o corpo é atento a isso, ao mundo ao redor, que o cerca, o desafia, o mobiliza, o toca. A cada instante o espaço do corpo muda, assim como o corpo também muda. Os limites do corpo não estão necessariamente na carne, mas se espraiam pelo espaço que o envolve – e até mesmo pelos espaços que já o envolveram, pois sempre resta algo de material, algum resíduo da presença do corpo ali. Na água isso é visivelmente constatável: “o espaço do corpo é isso: você está imersa numa grande banheira tomando banho, cai uma aranha sobre a superfície da água perto de seus pés e você se arrepia! Aquela aranha não lhe tocou, mas tocou” (Gil, 1993, p.254). Mas também na cidade, na casa, no quarto, no carro, na máquina de escrever, no lápis, no papel, na escrita, no computador, no mundo virtual. A idéia de corpo da nação, corpo da cidade, corpo docente, corpo familiar, corpo policial, etc. não é simplesmente metafórica. Há uma espacialização do corpo, cuja dimensão pode chegar a impressionantes distâncias. O “espírito de corpo” é uma metáfora deformadora e despótica dessa relação. No texto, lista-se e descreve-se objetos presentes no espaço da casa até se sentir também tocado pelo espaço enumerado no ato de escrever. Depois de confirmar a casa conter tanto o corpo quanto os textos, “espero o sono. incham-me as pálpebras, adivinho os sonhos anteriores à minha idade. o
Al Berto, a escrita, o corpo, a vida
117
corpo escorrega pelo abismo florido das galáxias. nada sei de mim durante essas horas. absolutamente nada”. É uma experiência física, na qual a casa e os corpos mostram tamanha coordenação, tamanha imediaticidade entre eles.
Observações finais Al Berto é sempre listado em estudos dedicados à recente poesia portuguesa como ligado à geração de poetas surgidos nos anos 1970. Na mesma década, a Revolução dos Cravos se fez como canto do cisne dos anos 1960 e das suas políticas de subjetividades utópicas e libertárias. Assim também se deu com a independência das colônias africanas de Portugal, compondo o rol de eventos que encerram os aos 1960, segundo Fredric Jameson (1991, p.88-9). A imagem dos cravos exemplifica perfeitamente o pacifismo e a alegria primeira na mudança de regime, o que pode vincular os acontecimentos de abril em Portugal nos anos 1970 com o desfecho dos chamados sixties. Não é ocioso lembrar que um dos emblemas contraculturais desses anos é o flower power – o poder das flores –, e que a utopia pacifista e o libertarismo político-sexual comandavam boa parte dos gestos políticos mais importantes. Mesmo nos momentos mais violentos das revoltas de Paris em 68, as flores foram arremessadas pelos estudantes contra os policiais, num gesto que traz a recusa ao sentido autoritário da palavra poder, bem como elabora uma estetização da denúncia, sua performance, muito de acordo com o espírito de festa do período (cf. Matos, 1981, p.15-6). Assim também se deu com os tanques e soldados nas ruas de Lisboa, que foram enfeitados com os cravos que a população trazia às mãos. Esse traços são os que se quis apontar nessa leitura de Al Berto, pois a recusa do poeta a um tipo de sociedade cujos laços comunitários são de base familiar, uma sociedade que sempre teve o Estado como tutor do seu destino (cf. Santos, 1996, p.94-6), o posiciona à margem de um sistema cultural tradicional e por vezes autoritário. Al Berto
118
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
e sua produção poética estão plenamente amalgamados às políticas de subjetividade que percorrerão os anos 1970 ainda no influxo dos anos 1960. A sua voz impõe pausas e agencia figuras que ainda sofrem com a recusa de alguma crítica, ou então tem tratamento demasiadamente “tradicional”, o que pouco condiz com a perspectiva libertária e autoficcional do poeta. A relação entre vida e texto é geralmente recusada em nome da assepsia de misérias críticas que se colocam sob feições metodológicas das diversas leituras textuais – quando é justamente a tensão da escrita pela vida, e da vida pela escrita, que é caracteriza Al Berto. Por isso, as figuras discursivas que Al Berto mobiliza na sua escrita são justamente figuras de vida, que se impõe quase que como uma linha única, que se espicha e coleta possíveis “nós” na sua teia-vida: homoerotismo, drogas, fugas e viagens, morte, todos amarrados pela figura maior da subjetividade (do) poeta.
Al Berto, a escrita, o corpo, a vida
119
GUATTARI, Félix. Caosmose: por um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. JAMESON, Fredric. Periodizando os anos 60. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. KLOSSOVSKI, Pierre. Nietzsche e o círculo vicioso. Rio de Janeiro: Pazulin, 2000. LOPES, Denílson. Nós os mortos: Melancolia e neo-barroco. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1998. . O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. LOURENÇO, Eduardo. Nós e a Europa, ou as duas razões. Lisboa: Imprensa Nacional, 1988. . A nau de Ícaro; seguido de Imagem e miragem da lusofonia. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas. Rio de Janeiro: Record, 2001.
Referências
MATOS, Olgária. Paris 1968: as barricadas do desejo. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.
AUGÉ, Marc. Não-lugares. Uma introdução à antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 1994.
MORAES, Reinaldo. Drogas, beat & the great bitch. In : BIVAR, Antonio. et al. Alma beat. Porto Alegre: L&PM, 1984.
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Cultrix, 1978.
RIBEIRO, Antonio Sousa. Configurações do campo intelectual português no pós-25 de abril: o campo literário. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. (Org.) Portugal: um retrato singular. Porto: Afrontamento, 1997. p.487-512.
BERTO, Al. O medo. 2.ed. Lisboa: Assírio e Alvim, 2000. BESSA, Marcelo Secron. Histórias positivas: a literatura (des)construindo a aids. Rio de Janeiro: Record, 1997. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes, 2001. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In. Lisboa: Vega, 1992.
. O que é um autor?
GIL, José. Entrevista (por Denise B. de Sant’Anna). In. Cadernos de subjetividade: dossiê corpo. São Paulo: EDUC/Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP, v.1, n.1, 1993. . Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio d’Água, 1997.
SANTOS, Boaventura de Sousa. O social e o político na transição pós-moderna. In: . Pela mão de Alice. São Paulo: Cortez, 1996. SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1997. SONTAG, Susan. A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Graal, 1984. . Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987. TUCHERMAN, Ieda. Breve história do corpo e de seus monstros. Lisboa: Vega, 1999. VASCONCELOS, Maurício Salles. Rimbaud da América e outras iluminações. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
121
Morrer é uma arte? Silvia Plath e os suicídios do autor Lilia Loman*
RESUMO:
O suicídio do autor é comumente foco de interesse da crítica estritamente biografista. Vida e obra tornam-se evidências de uma morte anunciada que é simultaneamente fim e início de tudo. Embora exacerbe indubitavelmente o desejo por equivalências absolutas, o suicídio é, entretanto, em si ambivalência, duplicada pela autodestruição, no texto, daquele cuja mão mata e escreve. Nessa breve reflexão sobre a poética da morte de Sylvia Plath, o suicídio será visto como fator desestruturador, catalisador de um diálogo entre a morte (biológica) do autor e a Morte (barthesiana) do Autor. Os poemas analisados serão, assim, palco de suicídios plurais, encenados no texto em sua singularidade.
PALAVRAS-CHAVE:
Sylvia Plath, suicídio, morte do autor.
ABSTRACT:
The suicide of the author is commonly the focus of interest of strict biographical criticism. Life and work become pieces of evidence of a foretold death which is simultaneously the beginning and the end of everything. Suicide undoubtedly exacerbates the desire for absolute equivalences, it is, however, an ambivalence that is duplicated by the movement of self-destruction in the text triggered by the hand that kills and writes. In this brief reflection upon Sylvia Plath’s poetics of death, suicide is seen as an element of disruption that catalyses the dialogue between the (biological) death of the author and the (Barthesian) Death of the Author. The poems here analysed are, therefore, to be seen, as the stage of plural suicides performed in the text in their singularity;
KEYWORDS: * Professora doutora, pó-doutoranda do Programa de Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Sylvia Plath, suicide, death of the author.
Introdução Ainda pouco conhecida no Brasil, Sylvia Plath tornou-se um mito nas décadas que seguiram ao seu suicídio.
122
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
A autora, que em 2008 completaria 75 anos, possui uma vasta fortuna crítica, especialmente em países de língua inglesa, e sua vida póstuma inclui profanação de lápides, difamações e produções cinematográficas.1 Entretanto, na época de sua morte, Plath era vista como uma poeta de menor espectro cujo nome era indissociavelmente ligado ao de Ted Hughes, seu marido. Sendo inegável o impacto que seu suicídio exerce como elemento de fascinação, questionamentos acerca da interpretação e até mesmo da qualidade de sua obra inevitavelmente surgiram. A presente reflexão não tem como proposta responder a tais questionamentos, mas pretende, com efeito, examinar alguns aspectos individuais à poética de Sylvia Plath que concernem, por sua vez, a temas gerais do estudo da literatura, em particular o antagonismo entre o apelo do referente e a anti-representação.
Morrer é uma arte? Silvia Plath e os suicídios do autor
1 O longa-metragem Sylvia (2003) foi dirigido por Christine Jeffs e estrelado por Gwyneth Palthrow e Daniel Craig, tendo recebido grandes oposições da filha de Hughes e Plath, Frieda Hughes. O episódio da profanação ocorreu no fim dos anos 1980, quando um grupo contrário a Hughes raspou o seu sobrenome da lápide de Plath em seu túmulo em Devon.
O “eu” deslocado: testemunhos póstumos Biografias de suicidas pressupõem a morte como prólogo ou o primeiro capítulo. Em uma espécie de curto reverso da existência, The death and life of Sylvia Plath2 de Ronald Hayman (1992) narra a vida da poeta entre o capítulo de sua morte (“The end of a short life”) e de sua vida póstuma (“Posthumous life”).3 Na medida em que a morte se torna o início e o fim, não só a cronologia é revertida, mas, em casos como o de Plath, a obra também se apresenta como “evidência” a ser decifrada, o trajeto de um fim já anunciado. A morte como referente tornase, anterior a tudo e, portanto, perigosa. Essencialmente, a morte (biológica) da autora como ato isolado, evento, óbito só adquire importância para o teatro textual no momento em que passa a estabelecer relações. O suicídio como “fator externo” torna-se, assim, um elemento problematizador na medida em que é visto como um texto. Evocando Derrida (1999, p.194), “Il n’y a pas de hors texte” [“Não há fora-texto”]. A noção de perigo é também essencial e deve ser entendida com cuidado. O perigo pres-
2
“A morte e a vida de Sylvia Plath.” Note a inversão da ordem natural das palavras. Todas as traduções são de minha responsabilidade, exceto indicado.
3
“O fim de uma vida curta” e “Vida póstuma”, respectivamente. 4
Traduzido no Brasil como “Bondade”, em Poemas, pela Iluminuras (Plath, 1994).
123
supõe um risco, uma ameaça, uma iminência: trata-se de um presságio, de um indício, não de um fim em si. O suicídio torna-se um fator problematizador, pois apela não somente à simplificação ou explicação do texto literário, como “significado central, originário ou transcendental” (ibidem, p.232), mas também surge como elemento de desestruturação e ambivalência. O autor, “morto” no advento da escritura, assombra o leitor que tenta ludicamente reordenar suas características perdidas. Cria-se, assim, um jogo de dualidades a partir do desdobramento de um duplo autor-suicida/matador-vítima que escreve/lê, morre/mata levando o leitor às margens de seu objeto de desejo maior (a apropriação do referente), e da perda total (dissolução de significados). Da mesma forma, em Plath, o jogo especular autobiográfico – com seus reflexos e distorções – é exacerbado pelo caráter reflexivo do suicídio. Seguindo o conceito desenvolvido por Paul de Man (1984, p.70), entendemos aqui por autobiografia o movimento de leitura, baseado em diferença e similitude, presente, em algum grau, em todos os textos. A tentação por encontrar evidências de um fim preconcebido pede pela legitimação pelo “indelével” elo autobiográfico. Method and madness biografia publicada em 1976 por Edward Butscher, é um exemplo claro da busca pela reflexibilidade absoluta, que, ao usar o poético como evidência do real, acaba por criar uma supra-realidade, na qual as identidades são extremas e, portanto, impossíveis. Nesse universo de perfeitos retornos, Butscher (1976, p.361) afirma, por exemplo, que a última estrofe do poema “Kindness”4 é dedicada a Ted Hughes e indica claramente a mudança depressiva no estado mental de Plath. Em outras palavras, reduzido a uma única realidade idêntica a um referente então desnudado no poema, a poesia de Plath deixaria de ser poesia, perdendo o caráter literário, e o suicídio, nesse sentido, seria a morte da palavra poética. Entretanto, a questão que se coloca é que a tentação pelo retorno ao “eu”, pela apropriação do objeto de desejo, ou seja, do referente, de fato, sabota suas próprias
124
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
tentativas. Se, por um lado, há uma intensificação da busca pelo original entre “corpo” e “corpus”, “um” e “outro”, por outro, multiplicam-se inevitavelmente as refrações e digressões inerentes ao jogo especular autobiográfico, acarretando em diferença e como aponta Paul de Man (1984), desfiguramento. Assim, imitando tal jogo especular, suicídio e autobiografia assemelham-se em seu movimento de desestruturação do “eu”. Um dos poemas mais iconicamente associados à fantasia suicida de Plath é “Lady Lazarus”. A imagem bíblica de Lázaro, que teria levantado dos mortos, tem desdobramentos por diversas literaturas em textos escritos por autores vivos ou falecidos, suicidas ou não. Hilda Hilst (2001), por exemplo, escreveu o conto “Lázaro”, assim como o autor tcheco Karel Capek (1975). Em Plath, o jogo especular criado pelo texto, do “evento” da escritura à sua renovação contínua pela enunciação, cria uma identificação suprema e, portanto, impossível, que, como uma miragem, oferece a plenitude e a desfaz. No filme Sylvia (2003), traz a afirmação de tal identidade de forma explícita, porém deslocada e desfigurada por séries de personificações: “I was dead”, diz a personagem, “Like Lazarus, Lady Lazarus, that’s me”.5 Enquanto tal diálogo com o cinema não é pertinente para a presente reflexão, o sentido de apropriação e identidade é central ao jogo especular autobiográfico. Ao legitimar o nome próprio impresso no livro, já se inicia um processo de personificação: um “vai-e-vem” de identidades entre este e o autor morto com o advento da escritura, agora fragmentado por semelhança e diferença. Como elemento de desestruturação, o suicídio do autor permite que a coincidência entre o “eu” que escreve e o “eu” que morre e mata ocorra, mas que o faça de maneira múltipla. Além disso, a possibilidade de morrer novamente, trazida pela imagem de Lázaro, implica também um retorno, ou ainda, numa digressão. O poema “Lady Lazarus” começa com a finitude e satisfação de um ato realizado: “Fiz outra vez./ A cada dez anos/ Eu consigo –”.6 O emergir teatral da morte de Lady Lazarus pode ser visto como a
Morrer é uma arte? Silvia Plath e os suicídios do autor
125
parábola do retorno e dissolução de todo autor. Por um lado, “Lady Lazarus” apresenta-se em domínio da morte da qual repetidamente retorna e se gaba: Morrer É uma arte, como tudo o mais. Nisso sou excepcional. Faço isso parecer infernal. Faço isso parecer real. Digamos que eu tenha vocação. (Plath, 1994, p.63)
Por outro, porém, a última conquista traz o descompasso do retorno de um corpo que, de volta à vida, carrega as marcas da morte. Como a escritura, a morte é, ao mesmo tempo, conquista e perda imediata, por meio da qual o sujeito se desfaz repetidamente: Um tipo de milagre ambulante, minha pele Brilha como um abajur nazista, Meu pé direito
5
“Eu estava morta como Lazaro. Lady Lazaro, sou eu.”
6
O poema encontra-se traduzido em Poemas (Plath, 1994, p.60-5); entretanto, nesta estrofe, optei especificamente por uma tradução minha que abarcasse o sentido literal de “I have done” (fiz) e “manage” (conseguir), permitindo melhor leitura do texto. Os demais versos desse poema seguirão a tradução da edição citada.
Um peso de papel, Face sem feições, fino Linho judeu. [...] (ibidem, p.61)
Mediante um processo de “re-des-figuramento”, o “eu” poético se faz e se desfaz entre “um” (sujeito/matador/ativo) e “outro” (objeto/vítima/passivo) – um duplo que, ao retornar da morte, encontra uma nova alteridade: os vivos. Tal aspecto intersticial efetiva-se de forma especialmente intensa no original em inglês em razão das particularidades do tempo verbal present perfect, empregado no verso inaugural: “I have done it again”. Sem equivalente exato na língua portuguesa, o present perfect implica justamente uma ligação entre o passado e o presente. Nesse caso, a figura de Lady Lazarus e a própria escritura fazem essa ligação: mais do que isso, elas são passado e presente, vida e morte, ausência e presença. Como a biografia de um suicida, o poema traça uma trajetória a partir de um fim em direção ao mesmo fim
126
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
que, entretanto, não são jamais coincidentes. Há, dessa forma, um crescente processo de fragmentação na medida em que a imagem do que renasce é justaposta por aquela do que havia morrido: Livre-me dos panos Oh, meu inimigo, Eu te aterrorizo? – (ibidem, p.61)
O aspecto teatral da volta de Lady Lazarus reforça a noção de trajetória: ela parece desfilar para a “platéia comendo amendoins” que “se aglomera para ver”. Sua morte não é um evento isolado, mas um processo inacabado: “E como um gato tenho nove vidas./ Esta é a terceira” (ibidem, p.61). O poema encena simultaneamente uma exumação e um strip-tease em um velar e desvelar da carne recémmorta/renascida. A morte, antes voluntária, torna-se, então, um sacrifício coletivo: Milhões de filamentos! A platéia comendo amendoins Se aglomera para ver Desenfaixarem minhas mãos e meus pés – O grande strip-tease. (ibidem, p.62)
O descompasso faz-se ainda maior diante de uma alteridade ao mesmo tempo externa – “a platéia comendo amendoins” – e interna: o “outro” que se opõe e coincide com o “eu” – suicida e autor, matador e vítima, ativo e passivo etc. Da mesma forma, o jogo especular com o nome do autor é problematizado pela semelhança ilusória que a fantasia de Plath traz. Além de gerar desvios, digressões inevitáveis, a simplificação sugerida pelo suicídio como significado transcendental torna o teatro textual palco de sacrifícios e renascimentos. Por um lado, o ato da escritura faz-se autodestrutivo: o autor dissipa-se no texto, despersonalizando-se; por outro, em um impulso contrário, seu nome próprio reafirma simultaneamente sua
Morrer é uma arte? Silvia Plath e os suicídios do autor
127
ausência e sua presença, evocando-o. Assim, ao instituir um diálogo entre a Morte do Autor e a morte do autor, o suicídio intensifica o jogo especular, aumentando as possibilidades de significação. Dentre as identidades refratárias da interface M/morte do A/autor, o paralelo entre o fim da vida e a última produção poética constitui uma espécie de leitmotif de autores-suicidas. Fatos e conjecturas freqüentemente flertam a partir de correlações quase inevitáveis: Esenin escreveu o último poema em sangue, Mayakovsky incluiu um poema aos Briks em sua carta suicida, Mishima entregou o último volume de Mar de fertilidade na manhã de sua morte. “Edge” (“Auge”), provavelmente o último poema escrito por Plath, cerca de uma semana antes de sua morte, é considerado um grand finale tanto da autora como da suicida, ou, como Elizabeth Hardwick (apud Stevenson, 1989 p.298) sugere, a heroína trágica e a autora de seu enredo, para o qual é sacrificada. De fato, tendo em vista o conceito de autobiografia de Paul de Man (1984) como prosopopéia ou um discurso “epitáfico”, é possível afirmar que, ao legitimar o nome do autor-suicida, o leitor resgata-o do/a morte/anonimato e paradoxalmente assume, por meio da leitura, o papel de executor. A redução absoluta da interface M/morte do A/ autor é perpetuamente resiliente, pois abre um universo psicótico que pressuporia o fim de toda significação: a equivalência do “um” pelo “outro”. Em sua biografia, Butscher (1976, p.162), por exemplo, incorpora “Edge” ao texto, intercalando versos às suas palavras como um “testemunho póstumo” da autora. Ao usar a palavra poética como evidência irrefutável de seu relato, Butscher rompe com a oposição entre as funções poética e referencial, colidindo-as, desencadeando dualidades irreconciliáveis que ao caracterizar, desfiguram. Legitimar o elo especular autobiográfico – ou ainda, auto-tanato-biográfico – em “Edge” é dar a voz a um eu já deslocado pela escritura e pela autodestruição. Porém, a voz, de fato, provém da própria morte pela e na escritura.
128
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Morrer é uma arte? Silvia Plath e os suicídios do autor
Filtrado por imagens de paralisia e suspensão, o poema parte, como “Lady Lazarus”, de um ato terminal: “The woman is perfected/ A mulher está perfeita”. O uso da terceira pessoa despersonaliza a voz; o corpo morto, entretanto, mantém o “sorriso de satisfação” (Plath, 1994, p.95). Apesar da prevalência da impressão de finitude, o diálogo entre o ativo e o passivo segue subjacente a todo o poema. Há uma fluidez e até mesmo uma palpitação quase imperceptível que perpassa os versos por entre as dobras da toga, os pés nus, as crianças enroladas, os odores noturnos que sangram. Heroína trágica e testemunha de muitos fins, a lua também sabe que a morte não é única:
ção: “both of us drawn to it like moths to an electric bulb. Sucking on it!”. Vale notar o papel duplo de Sexton como autora: ela, afinal, escreve um epitáfio para Plath, assim como para si própria. O primeiro poema, “Wanting to die” (“Querendo morrer”) é incluído como resposta a vozes alheias que questionam o fascínio irresistível pela morte – a platéia que se aglomera. Retornando a cada morte, a cada espera, como uma quase-presença, o “eu” se trasveste também de “Lady Lazarus”: Since you ask, most days I cannot remember. I walk in my clothing, unmarked by that voyage. Then the almost unnameable lust returns. [...]
A luz não tem nada que estar triste, Espiando de seu capuz de osso.
But suicides have a special language. Like carpenters they want to know which tools. They never ask why build.
Ela já está acostumada a isso. Seu lado negro avança e draga. (ibidem, p.95)
[...] Death’s a sad bone/ bruised, you’d say.
Primeiros suicídios: Sexton e Plath “Often, very often, Sylvia and I would talk at length about our first suicides; at length, in detail and in depth between the free potato chips. [...] We talked death with burned-up intensity, both of us drawn to it like moths to an electric bulb. Sucking on it!”7 (Sexton, 1970, p.175)
Na poética de Anne Sexton, contemporânea de Plath que se suicidaria onze anos depois, a morte também não é singular. Publicado originalmente em 1966, The barfly ought to sing inclui relatos de encontros ocasionais em que suicídios eram discutidos entre martínis e batatas fritas intercalados a dois poemas de Sexton. Um curioso processo de des-figuramento autoral é tecido por todo o texto: poesia, prosa, escrita e fala se confundem, pontuadas pelo diálogo entre ação e passividade. Como se fosse assombrada pela vida, a morte é iluminada, chamuscada, animada pelo discurso até que se torna o próprio foco irresistível de atra-
129
8
7
“Freqüentemente, muito freqüentemente, falávamos longamente sobre os nossos primeiros suicídios; longamente, em detalhes e com profundidade entre as batatas fritas grátis [...]. Nós falávamos com uma intensidade ardente, ambas atraídas ao assunto como mariposas a uma lâmpada elétrica. Sugando-o!”
“Já que você pergunta, a maioria dos dias não consigo me lembrar./ Eu caminho vestido, imaculado por aquela viagem./ E então, a quase inominável ânsia retorna.” “Mas suicidas têm uma linguagem especial./ Como carpinteiros eles querem saber quais ferramentas./ Eles nunca perguntam porque construir.” “A morte é um osso triste, machucado, você diria.” “mas mesmo assim ela me espera, ano após ano,/ para tão delicadamente desfazer uma velha ferida,/ para esvaziar minha respiração de sua prisão ruim.”
and yet she waits for me, year after year, to so delicately undo an old wound, to empty my breath from its bad prison. [...]8 (Sexton, 1970, p.176)
Deslocado, o “eu” que narra os encontros em Boston obscurece-se com as “primeiras mortes” e, de sujeito enunciador, passa a ser o objeto das memórias ao lado de Plath. Ao contrário do Ritz, o espaço de tais encontros é na realidade o poema, onde se procuram apenas as melhores ferramentas, sem jamais se discutir a razão de se construir. Como a lua em “Edge”, “ela já está acostumada a isto” (Plath, 1994, p.95). O próximo poema, “Sylvia’s death” (“A morte de Sylvia”) traz um “eu” presente que se faz ausente ao se referir a morte do outro. Há aqui uma inversão do que para Derrida (2001, p.25) é um desejo, característico do luto, de se rasgar o tecido da linguagem que reduziria os mortos pelos vivos, o outro pelo mesmo. Em vez de manter
130
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Morrer é uma arte? Silvia Plath e os suicídios do autor
o “outro” presente por meio da linguagem, essa é usada para se apropriar de sua ausência. O poema é pontuado por vocativos – “O Sylvia, Sylvia!” – que, ao evocar, diminuem a distância entre “eu” e “você”, “vida” e “morte”. Thief!how did you crawl into, crawl down alone into the death I wanted so badly and for so long. the death we said we both outgrew, the one we wore on our skinny breasts, the one we talked of so often each time we downed three extra dry martinis in Boston9 (Sexton, 1970, p.179-80)
Nota-se que, na medida em que o “eu” se desfigura como ausência, há, por sua vez, um apelo para que se legitime não apenas o nome próprio da autora, mas também a sua fragmentação em suicida e autor – assim como a de Plath. Ao contrário da última estrofe de “Kindness” que, segundo Butscher, se dirigiria a Hughes, “Sylvia’s death” é dedicado por Sexton no texto a Plath. Enquanto o poema mantém indubitavelmente sua autonomia a despeito de qualquer conhecimento prévio sobre as autoras, a interface M/morte do A/autor força a desconstrução de dualidades. Desde o seu título e autor, o poema é em si uma miragem que ilude e corrompe com identidades dissonantes, convidando o leitor a aglomerar traços, “cicatrizes”, a “desenfaixar” o autor “morto” no texto, recriando-o.
9
“Ladra!-/ como pode arrastar-se,! Arrastar-se sozinha para/ dentro da morte que eu queria tanto e há tanto tempo, a morte que ambas havíamos dito ter esquecido,/ aquela que vestíamos em nossos peitos magros aquela da qual conversávamos tão freqüentemente cada vez/que bebíamos martínis extra secos em Boston.”
131
apenas sua morte. Na realidade, dentro dos estudos literários, é senso comum que a extensão ou a verdade de tal intimidade pouco importa para a leitura do poema. No entanto, visto como texto, o efeito do suicídio de ambas as autoras – aqui entrelaçados em intertextualidade – constitui, como foi aqui brevemente demonstrado, um fator problematizador. A insistência da temática da morte em autores como Plath e Sexton, que vieram a cometer o suicídio, traz ao texto a fascinação pelo fim como significado transcendental. O crítico Al Alvarez (1988, p.67) chega a considerar que poesia e morte são inseparáveis nos últimos escritos de Plath, fazendo que eles sejam lidos como se tivessem sido escritos postumamente. Dois fins antagônicos atraem-nos para os textos: o impulso de anti-representação com a Morte do Autor e a morte do autor-suicida que escreve e morre no texto. Partimos, assim, de um fim duplo e somos atraídos para outros. A leitura ressuscita o “eu” ausente, desloca-o tentando apropriá-lo, desnudar o corpo. O suicídio oferece a miragem, mas o desafio de sua decodificação permanece: E há um preço, um preço muito alto Para cada palavra ou um toque Ou uma gota de sangue. (Plath, 1994, p.65)
Referências ALVAREZ, Al. Sylvia Plath. WAGNER, Linda W. (Ed.) Sylvia Plath: the critical heritage. London: Routledge, 1988. p.56-67. BUTSCHER, Edward. Method and madness. New York: Seabury, 1976.
Conclusão
CAPEK, Karel. Apocryphal stories. Harmondsworth: Penguin Books, 1975.
Em carta para Ted Hughes, em 1967, Sexton (1977, p.308) satiriza a familiaridade inspirada por “Sylvia’s death”, dizendo que, de fato, tinha pouco a acrescentar sobre a morte de Plath. Alega que o poema havia feito todos acreditarem que ela conhecia Plath bem, quando conhecia
DE MAN, Paul. Autobiography as de-facement. In : . The rhetoric of romanticism. New York: Columbia Univesity Press, 1984. p.67-82. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995.
132
133
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire?
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1999. . The work of mourning. Chicago; London: University of Chicago Press, 2001.
Maria Lúcia Dias Mendes*
HAYMAN, Ronald. The death and life of Sylvia Plath. London: Minerva, 1992. HILST, Hilda. Lázaro. In: ___. Fluxo-floema. São Paulo: Globo, 2001. p.107-42. PLATH, Sylvia. Poemas. São Paulo: Iluminuras, 1994.
Em Mes mémoires, Alexandre Dumas narra sua vida e suas aventuras em um estilo que remete ao romanesco. Superando a definição tradicional das memórias, delineia a trajetória de seus companheiros de batalha: os românticos. A partir da escrita das memórias, Dumas compreende as mudanças históricas da qual sua geração foi protagonista e registra seu testemunho da história.
RESUMO:
SEXTON, Anne. The barfly ought to sing. In: NEWMAN, Charles. The art of Sylvia Plath: a symposium. London: Faber, 1970. . A self-portrait in letters. Ed. Linda Grey Sexton and Lois Ames. Boston; New York: Houghton Mifflin, 1977. STEVENSON, Anne. Bitter fame: a life of Sylvia Plath. London: Penguin Books, 1989.
PALAVRAS -CHAVE: Memórias, história, romantismo francês, Alexandre Dumas. ABSTRACT: In Mes mémoires, Alexander Dumas tells his life and
his adventures in a style that it sends to the romanesque style. Surpassing the traditional definition of the memoirs, he delineates the trajectory of his friends of battle: the romantic group. From the writing of the memories, Dumas understands the historical changes of which its generation was protagonist and he writes like a witness of history. KEYWORDS:
Memoirs, history, French romanticism, Alexandre
Dumas. “Au sein plus précis du terme, les livres de mémoires seraient donc des livres de Histoire mis en perspective personelle.” (Georges Gusdorf, La découverte de soi)
* Doutora em Língua e Literatura Francesas pelo Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) – São Paulo (SP)
Assim como Victor Hugo, que se coloca no rochedo de Guernesey, no papel do proscrito, como a personificação da consciência de todos os tiranos do mundo, ou Alfred de Vigny, que deseja ser a encarnação da nobreza melancólica, Alexandre Dumas deseja criar uma imagem de si para a posteridade. “Il semble qu’il y a dans les hommes repré-
134
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
sentatifs, conscientemment ou nom, ce désir d’imposer une image particulière de soi”1 (Gusdorf, 1948, p.246). A partir, contudo, das mudanças trazidas pelo romantismo em relação à consciência de si mesmo, tornando-a mais ligada a uma perspectiva histórica, a construção dessa imagem tão desejada passa a ser cada vez mais fugidia. Se até então existia uma conduta de vida a ser seguida, uma linha que levava ao arrependimento e à conversão, o romantismo vai afirmar uma renúncia às determinações fixas e temporais, reconhecendo que cada indivíduo está em constante mudança, que “l’individu est pour lui-même un enjeu, non pas un principe a priori, mais une exigence de vie qui se cherche à travers les vicissitudes des temps”2 (Gusdorf, 1991b, p.354). O auto-retrato pintado com traços firmes e definitivos não será mais possível. Até mesmo na literatura romanesca, anterior ao romantismo, as personagens eram dotadas de uma natureza fixa e inabalável: os acontecimentos de que elas participam não afetam seu caráter; as peripécias restringem-se ao mundo exterior das personagens, não modificam em nada o seu interior. O romantismo inventa o Bildungsroman, o romance de formação, que procura traçar o percurso do desenvolvimento de uma personalidade, da infância à maturidade. Mostrando a maturação do caráter, para a qual contribuíram as provas e as vicissitudes que a vida impõe, esse tipo de romance delineia a trajetória de uma personagem no tempo. Uma das primeiras obras do gênero é Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister (1795-1796), de Johann Wolfgang von Goethe, depois vieram Le rouge et le noir (1830), de Stendhal; Les illusions perdues (1836-1843), de Balzac; e L’éducation sentimentale (1869), de Flaubert, dentre outras. Mes mémoires é uma obra memorialística, escrita durante oitos anos (1847-1855), ao mesmo tempo que Dumas escrevia romances folhetins, dramas românticos, causeries, artigos para jornais. Iniciada com o intuito narrar as memórias do autor, acaba se tornando uma grande
Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire?
1
“Parece que há nos homens representativos [de sua época], conscientemente ou não, este desejo de impor uma imagem particular de si.” (As traduções são de nossa autoria.)
2
“o indivíduo é para si mesmo um desafio e não mais um princípio a priori, mas uma exigência de vida que se busca mediante as vicissitudes do tempo”.
135
bricolage de narrativas diversas, escritas para a ocasião ou adaptadas, um mosaico do que teria sido a França de sua época. Dumas, apropriando-se de procedimentos que conhecia bem do folhetim e do teatro, como o uso do diálogo do drama romântico, os enredos que tendem à peripécia, a construção das descrições e das personagens, cria uma narrativa que tem origem na sua biografia, mas distendese à medida que passa a desejar abarcar a história. A obra Mes mémoires também pode ser lida, até certo ponto, como um romance de aprendizagem, que mostra a trajetória de um herói em busca do amadurecimento. Há, segundo Gusdorf (1991b, p.355), uma estreita correspondência entre o romance de formação e a autobiografia, uma vez que, na autobiografia, mas aos moldes do romance de formação, o autor transpõe a sua própria experiência, delineando a sua trajetória e mostrando a formação de sua personalidade. Em alguns casos, o período retratado vai exatamente até a passagem para a maturidade – como na obra de Goethe, Memórias: poesia e verdade – como se os anos de juventude fossem mais interessantes, mais reveladores do caráter da personagem (no caso do romance) ou do autor (nas autobiografias). Em Mes mémoires, até o capítulo CXX, em que Dumas narra o triunfo da apresentação de Henri III et sa cour, pode-se acompanhar todo o percurso percorrido pelo autor, como em um romance de formação. Nessa primeira parte da obra, descreve-se como se deu a transformação do rapaz despreparado, saído da pequena Villiers-Cotterêts, em famoso autor de dramas românticos, a partir da mudança de Dumas para Paris, das dificuldades para se estabelecer, do deslumbramento que a cidade lhe causou e, especialmente, da lenta maturação intelectual que propiciou ao herói vencer a sua ignorância. O objetivo de Dumas é viver de sua pena. A literatura, nesse final da Restauração, representa uma chance de ascensão social: Je n’ai pás reçu l’éducation de M.Casemir Delavigne, qui a été élevé dans les meilleurs collèges de Paris. Non, j’ai vingt-
136
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
deux ans; mon éducation, je la fais tous les jours, aux dépens de ma santé peut-être, car tout ce que j’apprends – et j’apprends beaucoup des choses, je vous jure – je l’apprends aux heures oú les autres s’amusent ou dorment [...]. Écoutez bien ce que je vais vous dire, dût ce que je vais vous dire vous paraître bien étrange: si je croyais ne pas faire dans l’avenir autre chose que ce que fait M.Casimir Delavigne, [...] à l’instant même, je vous offrirais la promesse sacrée, le serment solennel de ne plus faire de littérature.3 (Dumas, 1989, t.I, p.834)
A excelente réplica ao seu diretor Oudart anuncia uma ambição: associar integração social (desejo de ter a mesma educação de M. Casimir Delavigne) à busca de outra literatura diferente da que faz Delavigne. O rompimento do romance de formação se dá exatamente na noite de estréia de Henri III et sa cour, em que há o coroamento das duas ambições: após a luta contra a sua própria ignorância, o herói consegue ter, perante uma sociedade que dificilmente aceita o desconhecido, um nome. Alexandre torna-se Alexandre Dumas. Peu d’hommes ont vu s’opérer dans leur vie un changement aussi rapide que celui qui s’était opéré dans la mienne, pendant les quatre heures que dura la représentation d’Henri III. Complètement inconnu le soir, le lendemain, en bien ou en mal, je faisais l’occupation de tout Paris. Il y a contre moi des haines de gens que je n’ai jamais vus, haines qui datent du bruit importun que fit mon nom à cette époque. J’ai des amitiés aussi qui datent de là.4 (ibidem, p.945)
Esse momento caracterizado pela mudança significativa na vida de Dumas, descrito nas memórias, completa-se no episódio em que o eu torna-se nós. O eu solitário, solto em um mundo hostil, descobre que tem aliados. A aventura torna-se coletiva, o grupo – Victor Hugo, Alfred de Vigny e Alexandre Dumas – passa a ser o motor das ações. J’eus une petite loge placée sur le théâtre même, et dans laquelle on tenait deux personnes.
Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire?
5
3
“Eu não recebi a educação de M. Casemir Delavigne, que foi educado nos melhores colégios de Paris. Não, eu tenho vinte e dois anos; minha educação eu a faço todos os dias, talvez em detrimento de minha saúde, pois tudo que eu aprendo – e eu aprendo muitas coisas, eu vos juro – eu aprendo nas horas em que os outros se divertem ou dormem [...]. Escutais bem o que eu vou vos dizer, o que eu vos direi vos pareça bem estranho: se eu não acreditasse que eu posso fazer outra coisa no futuro diferente do que o que faz M. Delavigne, neste mesmo instante, eu vos ofereceria a promessa sagrada, o juramento solene de nunca mais fazer literatura.”
4
“Poucos indivíduos viram acontecer uma mudança tão rápida em suas vidas quanto aquela que vi acontecer na minha, durante as quatro horas que durou a representação de Henri III. Completamente desconhecido no início da noite, no dia seguinte, bem ou mal, eu fazia a ocupação de toda Paris. Há contra mim rancores de gente que eu nunca vi, ódios que datam do ruído inoportuno que fez o meu nome nesta época. Tenho também amizades que datam daí.”
“Eu tinha um pequeno camarote localizado sobre o palco e no qual havia duas pessoas. Minha irmã tinha um camarote na frente, onde ela recebeu Boulanger, de Vigny e Hugo. Eu não conhecia nem Hugo e nem de Vigny, eles apelaram para mim em desespero de causa. Eu conheci os dois nesta noite.”
137
Ma soeur eut une première loge où elle donna l’hospitalité à Boulanger, à de Vigny et à Victor Hugo. Je ne connaissais ni Hugo ni de Vigny; ils s’étaient adressés à moi en désespoir de cause. Je fis connaissance avec tous deux ce soir-là.5 (ibidem, p.943)
Consciente ou não, Dumas retoma nesse momento a narração de Les trois mousquetaires: o jovem Alexandre (D’Artagnan), recém-chegado a Paris com a sua ignorância (o cavalo amarelado) e, após ser ridicularizado, encontra-se com os verdadeiros mosqueteiros (Hugo e Vigny), e é aceito. O período seguinte – da apresentação de Henri III et sa cour até as vésperas da Revolução de Julho – é relatado gloriosamente: a amizade e a fraternidade entre os jovens românticos têm como símbolo maior o sarau de Charles Nodier, o Arsenal. É o período das Batalhas Românticas, cujos frescor e juventude são ressaltados no momento em que Dumas, já transcorrido um bom tempo, escreve. Ele constrói para si e para seus amigos uma imagem ligada à aventura, às mudanças promovidas pelo romantismo. Movido por uma espécie de saudosismo, reencontra-se com a alegria e a leveza de sua infância e juventude, o deslumbramento de seus primeiros sucessos; afinal, escrever o passado é uma forma de esquecer o presente que assusta por sua incerteza. O presente tumultuado por uma República que se deixou envolver por Louis Napoléon e o futuro imprevisível tornam ainda mais fácil a mitificação das suas conquistas e a criação de uma aura de felicidade. Os inimigos são reconhecidos: os escritores clássicos (Arnault, Lemercier, Viennet, Jouy), o jornal Constitutionnel, o liberalismo na política, a censura. As batalhas são muitas: as críticas a Henri III, a proibição da apresentação de More de Venise de Vigny (24 de outubro de 1829), a batalha de Hernani (25 de fevereiro de 1830) e a proibição de Christine ou Stockholm, Fontainebleau et Rome de Dumas (30 de março de 1830). Entretanto, os soldados estão a postos:
138
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
On voit que tous ces grands démolisseurs étaient fort jeunes, et que les poètes révolucionnaires ressemblent fort aux trois généraux de la Révolution dont j’ai parlé, je crois, qui commandaient l’armée de Sambre et Meuse, et qui avaient soixante et dix ans à eux trois: Hoeche, Marceau, mon père.6 (ibidem, p.1069)
Essa geração empunha a pluma em defesa dos ideais, os mesmos que levaram seus pais a usar a espada. Hugo, Vigny e Dumas são guerreiros eternizados nas passagens em que Dumas comenta cada vitória como se fosse do grupo todo. Quase ouvimos o lema dos mosqueteiros “tous pour un, un pour tous!”: A deux heures, le jour de la représentation, nous étions dans la salle. Nous comprenions bien que la victoire remportée par de Vigny était une victoire sans portée. Ce n’était pas de Shakespeare, de Goethe et de Schiller que les gens sensés doutaient, c’était de nous. Nous demandions un théâtre national, original, français, et non pas grec, anglais ou allemand: c’était à nous de le faire.7 (ibidem, p.1099)
Para comandar as batalhas, Victor Hugo, reconhecido por todos como o maior; as armas usadas saíram de “l’arsenal de notre maître à tous – Shakespeare”8 (ibidem, p.1069). O tom torna-se heróico, a amizade funda uma república ideal cujos objetivos parecem ser os mesmos. Na segunda parte, que é escrita em Bruxelas, no período em que Dumas se exila para fugir da ameaça de ser processado por suas dívidas, o saudosismo é permeado de melancolia. Longe da França, rodeado por republicanos proscritos pelo golpe de Estado, Dumas muda o tom de suas memórias: o romance pessoal passa a refletir suas desilusões políticas, seu envolvimento nas “Trois Glorieuses” (Revolução de 1830) e, no final, apesar de tratar de acontecimentos até 1833, a narrativa possui um tom nostálgico, citando os amigos que já não estão mais presentes e as críticas à censura que imperava no momento em que escreve.
Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire?
6
“Vemos que todos esses grandes demolidores eram muito jovens, e que os poetas revolucionários pareciam muito com os três generais da Revolução da qual já falei, eu acho, que comandavam a armada de Sambre e Meuse e teriam setenta anos os três: Hoeche, Marceau, meu pai.”
7
“Às duas horas, no dia da apresentação, nós estávamos na sala. Nós compreendíamos bem que a vitória conquistada por Vigny era uma vitória sem alcance. Não era de Shakespeare, Goethe ou de Schiller que as pessoas duvidavam, era de nós. Nós pedíamos um teatro nacional, original, francês e não grego, inglês ou alemão. Cabia a nós fazê-lo.”
8
“o arsenal do mestre de todos nós – Shakespeare”.
139
Seriam as dívidas e o exílio a causa da diferença marcante entre as duas partes das memórias? Ou seriam a tomada de consciência e a perda de suas ilusões? O fato é que as memórias se transformam mais uma vez: o eu passa a ser o povo. A narração oscila entre o eu e o coletivo, o destino pessoal e a história. Agora o nós é político: engloba os companheiros de luta, os republicanos de todas as tendências (Dumas, Arago, Lothon, Charras). O destino pessoal confunde-se com a construção da história. A partir de então, as memórias adquirem um tom épico, em que se misturam intimamente os registros do pessoal, do plural e do histórico. São as biografias, as conquistas e os objetivos do grupo de revolucionários que sobressaem na narrativa, em detrimento do lado pessoal de Dumas. Ao optar por escrever a sua vida de uma forma romanesca, Dumas põe em relevo a sua técnica de romancista: decide-se por preencher as lacunas da memória com elementos utilizados nos romances (incluindo diálogos). Ao contrário do diário pessoal – que esmiúça as crises e atos cotidianos muitas vezes de modo excessivamente retórico –, Dumas, em suas memórias, ao evitar um detalhamento maior, deixa lacunas, o que produz mais eficazmente o efeito de realidade, contribuindo para que a personagem pareça mais real, assim como faz em seus romances: Les inconvénients de cette catégorie de documents [mémoires et confessions] sont pourtant très importants. Danger d’abord de la nature rétroactive d’un pareil examen de conscience: il se produit après coup. [...]. Or, après coup, l’auteur des mémoires sait comment vont tourner les événements qu’il raconte. Son travail comporte le vice de toute oeuvre historique: c’est une reconstituition beaucoup plus qu’une relation simplement fidéle de l’existence telle qu’elle fut vécue au jour le jour, dans son incertitude persistante et dans sa nouvauté. D’emblée, le récit est orienté vers l’aboutissement, le dernier mot su par avance et qui projette son ombre sur le travail tout entier du narrateur. De là le caractére de stylisation des œuvres de ce genre, et non seulement parce qu’elles constituent d’ordinaire un plaidoyer, conscient ou non, une apologie, mais déjà par la inévitable et
140
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
excessive cohérence qu’elles introduisent dans l’image qu’elles donnent de la vie personnelle. L’ensemble est trop centré, trop voulu, le héros y domine sa carrière qu’il semble trop comprendre et prévoir à mesure.9 (Gusdorf, 1948, p.34)
Assim, a vida de Dumas, do modo como é descrita em suas memórias, possui uma linha clara e expressiva. Ao priorizar descrições heróicas e grandiosas, omitindo ações e reações mais cotidianas, o autor consegue dar corpo romanesco ao que seria, de início, apenas um relato de lembranças individuais e pessoais. Se, de fato, há pontos em comum entre o romance de formação e a autobiografia, entretanto é preciso aprofundar um pouco essa discussão, não esquecendo a profunda relação dessa obra de Dumas com a história. As memórias têm como característica principal descrever a trajetória de um indivíduo em sua época, mostrando as relações que ele construiu com o seu tempo. Em Mes mémoires, Alexandre Dumas (1989, t.I, p.834) pretende ir além: Quand j’ai commencé ce livre, croyez-vous, vous qui me lisez que ç’ait été dans le but égoïste de dire éternellement moi? Non, je l’ai pris comme un cadre immense pour vous y faire entrer tous, frères et soeurs en art, pères ou enfants du siècle, grands esprits, corps charmants, dont j’ai touché les mains, les joues, les lèvres, vous qui m’avez aimé, et que j’ai aimés; vous qui avez été ou qui êtes encore la splendeur de nôtre époque; vous-mêmes qui m’êtes restés innconnus; vous-mêmes qui m’avez haï! Les mémoires d’Alexandre Dumas! Mais c’eût été ridicule! Qu’ai-je donc été par moi-même, individu isolé, atome perdu, grain de poussière emporté dans tous les tourbillons? Rien! Mais en adjoignant à vous, en pressant de la main gauche la main droite d’un artiste, de la main droite la main gauche d’un prince, je deviens un des anneaux de la chaine d’or qui relie le passé à l’avenir. Non, ce ne sont pas mes mémoires que j’écris; ce sont les mémoires de tous ceux que j’ai connus, et comme j’ai connu tout ce qui était grand, tout ce qui était illustre en France, ce que j’écris, ce sont les mémoires de la France.10
Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire?
9
“Os inconvenientes dessa categoria de documentos [memórias e confissões] são, entretanto, muito importantes. Primeiro, o perigo natural da natureza retroativa de tal exame de consciência: ele se produz posteriormente. Ora, posteriormente, o autor das memórias sabe como vão se dar os acontecimentos que ele narra. Seu trabalho carrega o vício de toda obra histórica: é muito mais uma reconstituição do que uma relação simplesmente fiel da existência tal qual ela foi vivida no quotidiano, em sua incerteza persistente e em sua novidade. De início, a narração é orientada em direção ao desfecho, a última palavra sabida de antemão e que projeta a sua sombra sobre o trabalho inteiro do narrador. Daí a característica de estilização de obras desse gênero, e não somente porque elas constituem habitualmente uma defesa consciente ou não, uma apologia, mas jà pela inevitável e excessiva coerência que elas introduzem na imagem que elas dão da vida pessoal. O conjunto é por demais centrado, intencional, o herói domina a sua carreira, a qual parece compreender demais e prever seus atos na medida certa.”
10
“Quando eu comecei este livro, acreditais, vós que me ledes que teria sido pelo objetivo egoísta de falar eternamente sobre mim mesmo? Não, eu o tomei como
um painel imenso para vos fazer entrar todos, irmãos e irmãs na Arte, pais e filhos do século, grandes espíritos, corpos charmosos, dos quais eu toquei as mãos, os rostos, os lábios, vós que me haveis amado e que amei; vós que fostes ou que ainda sois ainda o esplendor de nossa época; vós mesmo, que ainda me ficaram desconhecidos; vós mesmo, que me odiou! As memórias de Alexandre Dumas! Mas teria sido ridículo! Que teria sido eu por mim mesmo, indivíduo isolado, átomo perdido, grão de poeira carregado em todos os turbilhões? Nada! Mas me associando à vós, apertando com a mão esquerda a mão direita de um artista, com a mão direita a mão esquerda de um príncipe, eu me tornarei um dos anéis da corrente de ouro que liga o passado ao futuro. Não, não são as minhas memórias que eu escrevo; são as memórias de todos aqueles que eu conheci, e como eu conheci tudo que foi grande, tudo que foi ilustre na França, o que eu escrevo são as memórias da França.”
11 “Cada ser humano é, em certa medida, ou melhor, em uma medida incerta, o artesão de sua vida, cujo sentido ele deve escolher e manter a medida que as circunstâncias se renovam.”
141
Movido pelo desejo de abarcar toda a sua época, não apenas de narrar a sua vida e sua trajetória, Dumas abre espaço em suas memórias a todos aqueles com quem conviveu. Nesse trecho (o melhor para definir a finalidade de seu projeto), Dumas toca em três questões cruciais para o romantismo: a individualidade, a integração com o grupo e a história. É a partir delas que Dumas criará um tríptico, que será completado no decorrer de sua narrativa. As mudanças trazidas pelo romantismo descobrem a historicidade da existência humana. Nas épocas anteriores, a identidade pessoal era definida à margem dos acontecimentos da história, sob a invocação de um julgamento anterior, estabelecido em razão de uma predestinação ontológica ou teológica (Gusdorf, 1991b, p.357-8). O indivíduo trazia desde o berço uma espécie de insígnia que definia a posição que ele deveria ocupar no mundo, o seu status quo. A existência individual é liberada das amarras das quais ela sempre foi prisioneira, sugerindo que cada um se comporte à sua maneira, segundo as condutas ditadas por suas necessidades profundas. Se o herói da tragédia deve seguir inexoravelmente a linha da vida fixada pelos deuses, que definiram o seu destino, o romantismo promove o romance e o drama, cujas peripécias sempre renovadas significam que nada é imutável no desenrolar da realidade humana: “Chaque être humain est, dans une certaine mesure, ou plutôt dans une mesure incertaine, l’artisan de sa vie, dont il doit choisir le sens, et le mantenir à travers le nouvellement des circonstances”11 (ibidem, p.358). Dumas constrói a sua história em paralelo com as mudanças na história da França, consciente de que a sua trajetória pode exemplificar as transformações pelas quais a nação passou. A perspectiva assumida nessa obra está impregnada dos valores de sua época: individualismo (consciência de que o indivíduo tem um papel crucial a cumprir diante dos acontecimentos de seu tempo); nacionalismo (a França é tida como a maior nação, responsável por encaminhar as outras para a modernidade) e o romantismo.
142
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Dumas descreve sua trajetória como uma grande aventura movida pelos ideais do romantismo, dentre eles a exortação do talento individual que é a chave para o sucesso. Essa aventura da qual ele tomou parte nada mais é senão o romantismo francês levado às últimas conseqüências: Dumas (1989, t.II, p.387) vivenciou os valores e as aspirações de seu grupo, sua vida é um reflexo disso – “Que voulezvous! C’est de l’histoire, comme Poitiers, comme Azicourt, comme Malplaquet!”.12 Para um romântico, entretanto, a compreensão do seu tempo vinha atrelada ao Zeitgeist, o espírito do tempo: o génie pessoal chega à consciência de si apenas a partir do confronto com o génie de sua época, esse pano de fundo comum a todos, do qual se destacam as individualidades particulares com o relevo que as constitui (Gusdorf, 1991b, p.352). E Dumas (1989, t.I, p.566) evocará todos aqueles que participaram da sua trajetória, de um modo ou de outro, para compor o seu mosaico: “C’est là surtout ce qu’on trouvera dans ces mémoires, en grande partie consacrés au développement de l’Art en France pendant la première moitié du XIXe siècle [...]”.13 Em Mes mémoires, os românticos aparecem quase na mesma proporção que o próprio autor. Eles são citados em acontecimentos cruciais, têm suas vidas relatadas em biografias, suas obras copiadas, elogiadas e muitas vezes defendidas. Enfim, têm sua genialidade e importância documentadas. A partir de sua chegada a Paris, especialmente depois da grande noite de estréia de Henri III et sa cour, Dumas mistura a sua vida à vida de seu grupo de amigos. Em Mes mémoires, a narrativa reflete o desejo de incorporar as vivências e as glórias de seu grupo, a sua existência, enfim, como é explicitado por ele no trecho a seguir, escrito em Un dîner chez Rossini: Je ne sais si après moi, il restera quelque chose de moi; mais, en tout cas et à tout hasard, j’ai pris cette pieuse habitude, tout en oubliant mes ennemis, de mêler le nom de mes amis, non
Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire?
12
“O que quereis vós? É a História, como Poitiers, como Azicourt, como Malplaquet!”.
13 “É sobretudo isso que se encontrará nestas memórias, em grande parte consagradas ao desenvolvimento da Arte na França durante a primeira metade do século XIX [...]”
14 “Eu não sei se depois de mim restará alguma coisa minha; mas em todo caso e em todo acaso, eu adquiri esse hábito generoso de, esquecendo os meus inimigos, misturar meu nome aos dos meus amigos, não somente ao que diz respeito à minha vida íntima, mas sobretudo à minha vida literária. Dessa maneira, à medida que eu avanço em direção ao futuro, eu carrego comigo tudo o que fez parte de meu passado, tudo o que se mistura ao meu presente, como faria um rio que não se contentava em apenas refletir as flores, os bosques, as casas de suas margens, mas que obrigava a imagem dessas casas, desses bosques e dessas flores a segui-lo até o oceano.”
15
“Nós havíamos dito, e nunca será demais repetir, essas memórias não são apenas nossas: são da pintura, da poesia, da literatura e da política dos cinqüenta primeiros anos do século.”
143
seulement à ma vie intime, mais encore à ma vie littéraire. De cette façon, au fur et à mesure que j’avance vers l’avenir, j’entraîne avec moi tout ce qui a eu part à mon passé, tout ce qui se mêle à mon présent, comme ferait un fleuve qui ne se contenterait pas de réfléchir les fleurs, les bois, les maisons de ses rives, mais encore qui forcerait de le suivre jusqu’à l’Océan l’image de ces maisons, de ces bois et de ces fleurs.14 (Dumas, 2007)
Podemos afirmar que Mes mémoires é uma obra em que Dumas se propõe a narrar a sua trajetória, ligando-a completamente à sua época. Trata-se de um monumento escrito para a reafirmação dos valores do romantismo, valores que foram a base de sua vida, dentre os mais importantes: o talento individual, os ideais políticos e o sentimento de estar inserido em sua geração. São, portanto, várias as passagens em que Dumas reafirma o seu compromisso com a sua geração. Por sentir-se parte de uma comunidade, parte de um grupo, ele leva esse sentimento às últimas conseqüências: cede o espaço que, por definição, deveria ser dedicado à narração de sua vida, à manifestação de sua individualidade, para tornar as suas memórias as memórias dos românticos: Nous l’avons dit, et nous ne saurions trop le répéter, ces Mémoires ne sont pas nos Mémoires seulement: ce sont ceux de la peinture, de la poésie, de la littérature et de la politique des cinquante premières années du siècle.15 (Dumas, 1989, t.II, p.521)
Henri Bergson (1959), em Matière et mémoire, escreve que o processo de localização de uma lembrança no passado não se dá de maneira imediata, apenas retirando das profundezas as lembranças de modo a chegar até aquela que é desejada. O trabalho de localização consiste em um esforço crescente de expansão pelo qual a memória, que está sempre inteira à disposição, distende o período a ser pesquisado e acaba por distinguir, em um amontoado de recordações até então confusas, aquelas que deseja recuperar. O acesso às lembranças torna-se possível graças aos “pontos de apoio”: um acontecimento ou um estado de
144
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
consciência cuja posição no tempo é bem conhecida em relação ao momento atual, e que por sua intensidade ou complexidade aumenta a chance de relembrar outros acontecimentos e de mesurar-lhes sua importância. Maurice Halbwachs (1994) vai além, ao afirmar que os indivíduos não alcançam a completude das suas lembranças sozinhos, é necessário que sejam acionadas as memórias do grupo social. À medida que tentamos localizar uma lembrança utilizando os “pontos de apoio” de nossa memória, não apenas os localizamos, graças às nossas lembranças individuais, mas fazemos submergir, com essas, os cadres sociaux, a visão de mundo que serve de suporte à nossa consciência presente. Essa memória coletiva define o indivíduo, considerando que é apenas como membros de um grupo que os seres humanos podem se representar a si mesmos. Não são todos os eventos que surgem das brumas de nossa memória, nem se trata da série cronológica exata dos antigos acontecimentos, mas as lembranças que vêm à tona correspondem àquelas que se ligam também às nossas preocupações atuais. E a razão dessa aparição não está nelas, mas na relação que propiciam com nossas idéias e percepções, no presente. Como conseqüência, nossas lembranças são forçosamente reconstruções baseadas em nossa identidade no presente (Halbwachs, 1994, p.35). Em Les cadres sociaux de la mémoire, Halbwachs (1994) procura, por meios dos estudos dos sonhos, mostrar que o passado não se conserva verdadeiramente na memória individual. Nela subsistem impressões, fragmentos, imagens que não constituem lembranças completas, pois apenas as memórias coletivas permitem preencher as lacunas da memória individual. As lembranças pessoais não são auto-suficientes, o indivíduo não se lembra realmente do passado, ele o reconstitui a partir das necessidades do presente, mediante a reflexão. O trabalho da consciência precede a evocação das lembranças e é por meio das referências dadas pela memória coletiva, pelos chamados “cadres sociaux de la mémoire”, que o indivíduo compõe uma imagem do passado, de sua existência dentro do grupo, de sua identidade:
Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire?
16 “Toda lembrança, por mais pessoal que seja, mesmo aquelas dos acontecimentos que apenas nós fomos testemunhas, mesmo aquelas dos pensamentos e sentimentos que não foram expressos, está em relação com todo um conjunto de noções diferentes das que possuímos, com pessoas, com grupos, com lugares, com datas, com palavras e formas de linguagem, também com pensamentos e idéias, quer dizer, com toda a vida material e moral das sociedades das quais nós fazemos ou não parte.”
17 “Ah! Se um homem nos tivesse deixado sobre os séculos XVI, XVII, XVIII, o que eu tento fazer pelo século XIX, como eu teria bendito esse homem, e que rudes trabalhos ele me teria poupado!”
18
“Nem é preciso comentar que, ligado como eu estive a todos os grandes pintores e todos os grandes medalhões da época, cada um deles passará por sua vez nestas memórias, gigantesca galeria em que cada nome ilustre deixará sua estátua viva.”
145
Tout souvenir, si personnel soit-il, même ceux des événements dont nous seuls avons été les témoins, même ceux de pensées et de sentiments inexprimés, est en rapport avec tout un ensemble de notions que beaucoup d’autres que nous possèdent, avec des personnes, des groupes, des lieux, des dates, des mots et formes du langage, avec des raisonnements aussi et des idées, c’est-àdire avec toute la vie matérielle et morale des sociétés dont nous faisons ou dont nous avons fait partie.16 (ibidem, p.34)
Em Mes mémoires emerge uma espécie de memória coletiva da França dos românticos. Alexandre Dumas mistura as suas memórias individuais com outros registros da memória coletiva, com os quais monta um mosaico de sua época. À medida que a narrativa avança, Dumas insere cada vez mais biografias, trechos de obras, relatos de acontecimentos históricos, construindo um painel de seu tempo. Sua intenção é deixar um registro de sua época para as gerações futuras: “Ah! Si um homme nous eût laissé sur le XVIe, le XVIIe et le XVIIIe siècle ce que j’essaye de faire pour le XIXe, combien j’eusse bénni cet homme, et que de rudes travaux il m’eût épargnés!”17 (Dumas, 1989, t.I, p.644). Com a pretensão de construir uma imagem prestigiosa de si e de sua obra, reafirma a importância de seu projeto: “Il va sans dire que, lié comme je l’ai été avec tous les grands peintres et tous les grands statuaires de l’époque, chacun d’eux passera à son tour dans ces Mémoires, gigantesque galerie où chaque nom illustre laissera sa vivante statue”18 (ibidem, p.609). Desejando eternizar as conquistas dos românticos, Dumas se detém, notadamente, nas mudanças que provocaram nas artes: Nous signalerons les autres changements, au fur et à mesure qu’ils s’opéreront dans les arts. Constatons seulement que nous sommes entrés dans l’ére des transitions. – Dès 1818, Scribe a commencé pour le vaudeville; de 1818 à 1820, Hugo de Lamartine jettent, au millieu du monde littéraire, l’un avec les Odes et Ballades, l’autre avec les Méditations, les premiers essais d’une poétique nouvelle; de 1820 à 1824, Nodier publie des romans de genre qui ouvrent une voie nouvelle, celle du pittoresque; de 1824 à 1835, s’accomplira le révolution drama-
146
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
tique, que suivra presque immédiatement celle du roman historique et de fantaisie. Alors, le XIXe siècle, sorti des langues paternelles, prendra sa couleur et conquerra son originalité.19 (ibidem, p.608)
O autor sincretiza em suas memórias a narrativa das trajetórias de personalidades que lhe parecem importantes: Il est bon de marquer le point de départ des artistes éminents, grands comédiens ou grands poètes; c’est là sourtout ce que Je cherchais une occasion de passer en revue toute les hommes et les œuvres littéraires de l’Empire, sont j’avais guère pu parler, à cause de l’âge que j’avais quand florissaient ces hommes, quand ces œuvres étaient jouées.20 (ibidem, p.667)
Talvez mesmo sem se crer essencialmente objetivo, o autor cria o efeito de isenção em consideração a seus leitores por meio da linguagem empregada: J’écris l’histoire de l’art pendant la première moitié du XIXe siècle; je parle de moi comme d’un étranger; je mettrai les pièces sous les yeux de mon arbitre naturel, c’est-à-dire du public; il jugera sur pièces, comme on dit au palais.21 (ibidem, t.II, p.727)
O interesse maior da narrativa dumasiana é delinear as trajetórias de seus contemporâneos, por serem importantes para a compreensão de sua própria trajetória: Ce sont les premières lignes de l’auteur de Mathilde et des Mystères de Paris qui aient été imprimées; il nous semble curieux de les consigner ici. Nos mémoires, nous l’avons dit, sont les archives littéraires de la première moitié du XIXe siècle; d’ailleurs, il est toujours intéressant pour les artistes d’étudier le point de départ d’un homme arrivé au sommet élevé où est parvenu notre illustre confrère.22 (ibidem, p.1009)
Narrando as conquistas de seu grupo, Dumas tem a dimensão das transformações das quais todos foram protagonistas. Por meio da biografia de outros escritores, de outros artistas, recupera o sentido da sua existência, pois compreende o seu papel naquele tempo. As memórias de
Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire?
19
“Nós assinalaremos outras mudanças à medida que elas ocorrem nas artes. Constatamos somente que nós entramos em uma era de transições. – Desde 1818, Scribe começou pelo vaudeville; de 1818 a 1820, Hugo e Lamartine se lançam no mundo literário, um com Odes et Ballades, o outro com as Méditations, os primeiros ensaios de uma poética nova; de 1818 a 1824, Nodier publica romances de gênero que abrem uma via nova, a do pitoresco; de 1824 a 1835, se completará a revolução dramática, que será seguida, quase que imediatamente, pela do romance histórico e de fantasia. Então, o século XIX, saído das línguas paternas, adquire sua cor e conquistará sua originalidade.” 20
“É necessário marcar o ponto de partida dos artistas eminentes, grandes atores ou grandes poetas; é isso, sobretudo, o que eu procuro: uma ocasião de passar em revista todos os homens e as obras literárias do Império, sobre as quais eu não havia falado, por causa da idade que eu tinha quando floresciam esses homens, quando essas obras eram encenadas.”
21
“Eu escrevo a história da arte durante a primeira metade do século XIX; falo de mim como de um estranho; coloco as peças sob os olhos de meu árbitro natural, quer dizer, do público; ele julgará diante dos fatos, como se diz no palácio.”
22
“São as primeiras linhas do autor de Mathilde e dos
Mystères de Paris que tinham sido impressas; parece-nos curioso relatá-las aqui. Nossas memórias, nós dissemos, são os arquivos literários da primeira metade do século XIX; além disso, é sempre interessante para os artistas estudar o ponto de partida de um homem que chegou ao cimo, onde chegou nosso ilustre colega.”
23
“Quando localizamos uma lembrança, e quando a precisamos ao localizá-la, quer dizer, em suma, quando nós a completamos, dizemos às vezes que nós a ligamos àquelas [lembranças] que a rodeiam; na verdade, é porque outras lembranças relacionadas a ela subsistem em nossa volta, nos objetos, nos seres entre os quais vivemos, ou em nós mesmos: pontos de sustentação no espaço e no tempo, noções históricas, geográficas, biográficas, políticas, dados de experiência do senso comum e visões de mundo familiares, que nós estamos procurando determinar com uma precisão crescente o que até então era apenas o esquema vazio de um acontecimento passado. Mas, visto que a lembrança deve assim ser reconstruída, não se pode dizer, senão por metáfora, que foi em estado de vigília que nós a revivemos; não há mais razão para admitir que tudo o que nós vivemos, vimos e fizemos, subsiste tal qual, e que nosso presente não arrasta atrás de si todo o nosso passado.”
147
Alexandre Dumas passam a ser a voz das memórias de seu tempo, a imagem que ele constrói dos seus contemporâneos colabora com a imagem que ele deseja fixar para si: Quand nous évoquons un souvenir, et quand nous le précisons en le localisant, c’est-à-dire, en somme, quand nous le complétons, on dit quelquefois que nous le rattachons à ceux qui l’entourent: en réalité, c’est parce que d’autres souvenirs en rapport avec celui-ci subsistent autour de nous, dans les objets, dans les êtres au milieu desquels nous vivons, ou en nous mêmes: points de repère dans l’espace et le temps, notions historiques, géographiques, biographiques, politiques, données d’expérience courante et façons de voir familières, que nous sommes en mesure de déterminer avec une précision croissante ce qui n’était d’abord que le schéma vide d’un événement d’autrefois. Mais, puisque le souvenir doit ainsi être reconstruit, on ne peut pas dire, sinon par métaphore, qu’à l’état de veille nous le revivons; il n’y a pas non plus de raison d’admettre que tout ce que nous avons vécu, vu et fait, subsiste tel quel, et que notre, présent traîne derrière lui tout notre passé.23 (Halkbwachs, 1994, p.35)
Dumas também foi testemunha dos grandes acontecimentos históricos de seu tempo e, mesmo que a narrativa de suas Memórias termine em 1833, a perspectiva que adquiriu com esses acontecimentos está, de certa forma, entranhada na visão que forjou de sua época. Durante sua vida, viu a campanha da França e a queda de Napoleão (1814-1815); a queda dos Bourbon, dos dois ramos da família (1830 e 1848); a colonização da Argélia (1846); o governo de Napoleão III (1851), a abolição da servidão na Rússia (1858); a unificação da Itália, com Garibaldi (18601861) e a vitória da Prússia (1866). Desses acontecimentos, Dumas teve participação efetiva nas “Trois Glorieuses” (Revolução de 1830) e nas manifestações republicanas que se seguiram à tomada de poder por Louis-Philippe (18301832). Lutou na Revolução de 1848 e participou da campanha eleitoral que sucederam a proclamação da república em 1848, ocasião em que se candidatou a deputado. Lutou também na campanha de Garibaldi na conquista da Sicília e de Nápoles (1860).
148
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
É esse passado que Dumas deseja testemunhar. Parte atuante no grupo que era o motor das transformações, testemunha ocular e atuante dos acontecimentos que mudaram o seu tempo, Dumas escreve suas memórias pensando em deixar registrada sua versão da história, como se sentisse impelido ao registro: Mais nous qui arrivons parmi les derniers, nous, spectateur presque désintéressé de tous ces grands événements, nous que notre caractère a fait sans haine privée, nous que notre position a fait sans haines politiques, c’est à nous, éclaireur de la postérité, placé sur la limite du monde aristocratique qui tombe, et du monde démocratique qui s’élève, de chercher la vérité partout où elle est ensevelie, et de la glorifier partout où nous la trouverons.24 (Dumas, 1989, t.I, p.397)
Nesta época em que os limites entre escrever literatura e escrever história estão indefinidos, Dumas acredita ser possível escrever história, assim como a sua geração escreveu a história, promovendo mudanças cruciais no curso dos acontecimentos. A história parecia estar sendo construída a cada momento, nesta época de revoluções, de transformações, na qual a historiografia ansiava por encontrar novas maneiras de expressão. Dumas sente que pode também, mediante seu testemunho, escrever a história. Afinal, como ele mesmo escreve em outra obra: [...] ce que j’ai de talent se substitue à ce que j’ai d’individualité, ce que j’ai d’instruction à ce que j’ai de verve: je cesse d’être acteur dans ce grand roman de ma propre vie, dans ce grand drame de mes propres sensations; je deviens chroniqueur, annaliste, historien; j’apprends à mes contemporains les événements des jours écoulés, les impressions que ces événements ont produites sur les personnages qui ont vécu réellement ou que j’ai créés avec ma fantaisie. Mais des impressions que les événements de tous les jours, ces événements terribles qui secouent la terre sous nos pieds, qui assombrissent le ciel sur nos têtes, des impressions que ces événements ont produites sur moi, il m’est défendu de rien dire.25 (Dumas, 2005)
Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire?
24
“Mas nós que chegamos entre os últimos, espectadores quase desinteressados de todos esses acontecimentos; nós, que nossa personalidade nos fez sem ódios pessoais, nós que nossa posição fez sem rancores políticos, cabe a nós, arautos da posteridade, situado no limite do mundo aristocrático que desaba e do mundo democrático que se edifica, buscar a verdade onde quer que ela se esconda e glorificá-la onde quer que a encontremos.”
25
“[...] o que eu tenho de talento substitui o que eu tenho de personalidade; a minha instrução substitui o que eu tenho de verve: eu deixo de ser ator do grande romance da minha própria vida, nesse grande drama de minhas sensações; eu me torno cronista, analista, historiador; eu ensino aos meus contemporâneos os acontecimentos dos dias passados, as impressões que esses acontecimentos produziram sobre as personagens que viveram realmente ou que eu criei pela minha imaginação. Mas as impressões que os acontecimentos do cotidiano, esses acontecimentos terríveis que balançam a terra sob os nossos pés, que obscurecem o céu sobre nossas cabeças, as impressões que estes acontecimentos produziram em mim, me é proibido calar”.
26
“Há vinte anos, todo mundo soube em seus mínimos detalhes o que iremos dizer; hoje, todo mundo esqueceu. A história passa muito rápido na França!”
27 “os poetas conheciam a História tanto quanto os historiadores – senão ainda mais”.
149
Dumas vê-se como uma testemunha da história, que tem o compromisso de redigir a sua visão dos acontecimentos para as gerações futuras: “Il y a vingt ans, tout le monde a su dans ses moindres détails ce que nous allons dire; aujourd’hui, tout le monde l’a oublié. L’histoire passe si vite en France!”26 (Dumas, 1989, t.II, p.780). Mais uma vez, o tênue limite que separa literatura e história é ultrapassado: Dumas escreve um testemunho, uma visão pessoal dos acontecimentos a que teve acesso, mas acredita que o que escreve está à altura da historiografia. Como participou ativamente das transformações de sua época, tanto políticas quanto artísticas, essa aproximação entre vida e acontecimento lhe dá a sensação de que seu testemunho tem um peso tão grande quanto a obra de um historiador. Afinal, sente-se gabaritado para isso: “les poètes savaient aussi bien l’Histoire que les historiens, – s’ils ne la savaient pas mieux”27 (Dumas, 2006). No período pós-revolucionário (tanto em 1815, com a Restauração, quanto depois de 1830, com a Monarquia de Julho), a formulação de uma narrativa historiográfica que trate da Revolução Francesa e do Império é uma preocupação essencial e leva o historiador a adquirir prestígio. Há uma urgência de escritos que propiciem a compreensão das transformações recentes, mas, ao mesmo tempo, as dificuldades para a escrita de uma história contemporânea parecem intransponíveis. Nesse cenário, as memórias aparecem como um meio termo, enquanto o “tempo da história” não chega. Essa noção se difunde tanto entre historiadores da época – um exemplo é o historiador François Guizot (1787-1874) que escreveu uma obra intitulada Mémoires pour servir à l’histoire de mon temps, 1858-1867, em oito volumes – quanto para memorialistas. Entre o tempo do acontecimento e o tempo da história, no qual todos os fatos serão revelados e esclarecidos, instala-se o tempo da memória. Nesse momento, os memorialistas legitimam os seus escritos e pretendem uma exclusividade no acesso ao passado recente. À espera do
150
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire?
historiador que virá, os memorialistas se apropriam do terreno da contemporaneidade: Entre complémentarité affichée et rivalité réelle, la relation entre mémorialistes et historiens, dans le discours des Mémoires, est habituellement naturalisée sur l’axe temporel comme une succession chronologique nécessaire. Cette succession déroulerait les deux étapes d’une fable du savoir: il y aurait d’abord un temps de la mémoire (et donc des mémorialistes), puis un temps de l’histoire (et donc des historiens).28 (Zanone, 2002)
Para Dumas, as diferenças entre as duas maneiras de narrar o passado não são muito claras, assim como para a sua época. Às vezes afirma que pretende escrever as memórias da França, outras a história da arte, da literatura e do teatro, como se memória e história tivessem o mesmo significado. Em outras passagens, diferencia o seu trabalho daquele do historiador, ressaltando o descompromisso de sua narrativa e a necessidade de muitas vezes parar a narrativa para dar maiores explicações sobre o acontecimento: Mais, une fois pour toutes, ce n’est point de l’histoire que nous faisons, ce sont des souvenirs que nous jetons sur le papier, et souvent nous nous apercevons qu’au moment où nous avons pris le galop pour suivre les divagations de notre mémoire, nous avons laissé derrière nous des événements de la première importance. Alors, nous sommes forcé de revenir sur nos pas, de faire nos excuses à ces événements, comme le roi à M. Casimir Perier, de les prendre, pour ainsi dire, par la main, et de les ramener à nos lecteurs, qui peut-être ne leur font pas toujours un aussi gracieux accueil que celui que la cour du Palais-Royal fit au président du Conseil dans la soirée du 14 mars 1831.29 (Dumas, 1989, t.II, p.458)
O autor ressalta também que, por estar escrevendo memórias, pode tratar de temas e personagens que normalmente seriam considerados inadequados à história: Et puis attendez, une dernière chose: celle-là, je suis sûr de la dire le premier; celle-là, je la tiens de son plus proche parent,
28
“Entre a complementaridade fixada e a rivalidade real, a relação entre memorialistas e historiadores, no discurso das memórias, é habitualmente naturalizada sob o eixo temporal como uma sucessão cronológica necessária. Essa sucessão desenvolve as duas etapas de uma fábula [crença] do saber: havia primeiro um tempo da memória (e, portanto, dos memorialistas), depois um tempo da história (e, portanto, dos historiadores).” 29
“Mas, de uma vez por todas, não é história o que fazemos, são lembranças que lançamos sobre o papel, e muitas vezes percebemos que no momento em que nos pomos a galope para seguir as divagações de nossa memória, nós deixamos para trás acontecimentos da maior importância. Então, somos forçados a voltar sobre nossos passos, de nos desculpar com estes acontecimentos, como o rei fez à M. Casimir Perier, de tomá-los, por assim dizer, pela mão, e conduzi-los até nossos leitores, que talvez não nos façam sempre uma recepção tão graciosa como aquela que a corte do PalaisRoyal fez ao presidente do Conselho na sessão do dia 14 de março de 1831.”
30 “E depois, esperai, uma última coisa: esta, eu estou certo de ser o primeiro a dizer, consegui de seu parente mais próximo, de seu amigo mais fiel, de seu último general, daquele que nunca se desesperou, quando todos se desesperavam; daquele que é indigno de figurar em uma narrativa de um historiador, é verdade; mas eu não escrevo uma história, eu escrevo memórias.”
31
“Agora, não credes que é um romance que nós fazemos aqui. Eu não diria que é uma bela e boa história, mas sim uma feia e triste história.” 32 “Para qualquer um que possui uma pluma e escreve diante da história, é um dever dizer a verdade: eu creio tê-la sempre dito. Para qualquer um que possui uma pluma e escreve diante da história, é uma covardia não repudiar a calúnia, e eu a repudio.”
33
“Entretanto, estas memórias falhariam em seu objetivo se, atravessando uma época, não se mostrassem ao público impregnadas da cor desta época. Tanto pior se a época é enlameada, a lama que eu tive em meus pés jamais sujei [também no sentido moral] nem minhas mãos e nem meu rosto.”
151
de son plus fidèle ami, de son dernier général, de celui qui n’a pas désespéré, quand tout le monde désespérait; celle-là est indigne de figurer dans un récit d’historien, c’est vrai; mais je n’écris pas une histoire, j’écris des mémoires.30 (ibidem, t.I, p.279)
Em outros momentos, ele parece acreditar que está escrevendo historiografia: “Maintenant, n’allez pas croire que ce soit du roman que nous faisions ici. C’est je ne dirai pas de la belle et bonne histoire, mais de la laide et triste histoire”31 (ibidem, p.406). Em outro momento, demonstra a consciência de estar escrevendo um testemunho, passível de ser comprovado pela posteridade: Pour quiconque tient une plume, et écrit en face de l’histoire, c’est un devoir de dire la vérité: je crois l’avoir toujours dite. Pour quiconque tient une plume, et écrit en face de l’histoire, c’est une lâcheté de ne pas repousser la calomnie, et je la repousse.32 (ibidem, t.II, p.270)
Dumas tem um compromisso com a história, procura criar uma reprodução narrativa completa do que teriam sido aqueles dias. Retoma os acontecimentos históricos e, mediante recursos narrativos literários, recria e recompõe o que teria sido a época retratada, em seus aspectos bons e ruins: Seulement, ces Mémoires manqueraient leur but si, en traversant une époque, ils ne se montraient pas au public imprégnés de la couleur de cette époque-là. Tant pis quand l’époque est fangeuse, la boue que j’ai eue aux pieds n’a jamais éclaboussé ni mes mains ni mon visage.33 (ibidem, p.1009, nota 1)
As publicações de um grande volume de memórias, no início do século XIX, alimentaram o imaginário histórico de uma geração e influenciaram a escrita das obras de historiografia da época, fornecendo elementos que contribuíram para a estruturação e para a criação da couleur locale: Et que sont d’autre les grands ouvrages historiques qui marquent époque, les quinze volumes de l’Histoire du Consulat et de l’Empire, de Thiers, les dix volumes de l’Histoire des ducs
152
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
de Bourgogne, de Barante, les trente et un volumes de l’Histoire des Français, de Sismondi qu’une mosaïque habilement ficelée d’extraits de chroniqueurs et de mémorialistes? Michelet pourra se vanter d’être à la fois le premier à s’être plongé dans les archives et le denier à travers qui l’on entend la voix des acteurs. Son histoire, surtout celle de la Révolution, est encore dominée par l’enchantement de la mémoire. Après lui, le charme est rompu.34 (Nora, 1997, p.1390)
Toda a novidade dessa escritura histórica repousa na exploração das memórias. Os testemunhos dos antigos memorialistas e cronistas, isentos de reflexão filosófica, transmitiam os acontecimentos de sua época nas cores e no estilo originais, que pareciam trazer a mais imediata representação do passado. Essa avalancha de memórias que invade a França foi sem dúvida o último momento em que as Memórias são a memória da França. Nessa primeira fase do desenvolvimento de uma historiografia crítica, sem consciência da especificidade dos arquivos, as memórias são classificadas como documentos e tratadas do mesmo modo que os manuscritos e os outros documentos impressos. Ao mesmo tempo, as pesquisas nos arquivos se voltam para as memórias. Há a preocupação em inserir as memórias individuais na memória coletiva, a história biográfica na história nacional, conforme escreve Michelet (1930, t.I, p.222): La France agit et raisonne, decrete et combat; elle remue le monde; elle fait l’histoire et la raconte. L’histoire est le compte rendu de l’action. Nulle part ailleurs vous ne trouverez de Mémoires, d’histoire individuelle, ni en Angleterre, ni en Allemagne, ni en Italie [...] Le présent est tout pour la France. Elle le saisit avec une singulière vivacité. Dès qu’un homme a fait, vu quelque chose, vite il écrit. Souvent il exagère. Il faut voir dans les vieilles chroniques tout ce que font nos gens [...]. La France est le pays de la prose [...] le génie de notre nation n’apparaît nulle part mieux que dans son catactère éminemment prosaïque.35
Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire?
Segundo Nora, a relação estabelecida entre indivíduo e História na França é muito particular. Uma relação de filiação e de identificação, crenças solidificadas, que combinam a epopéia, a nação e o gosto pela prosa, retratados juntos no trecho escrito por Michelet. É por meio das narrativas pessoais, dos testemunhos que a história se faz presente e torna possível uma identificação imediata para o leitor:
34
“E o que são as grandes obras históricas que marcam época, os quinze volumes da Histoire du Consulat et de l’Empire, de Thiers, os dez volumes da Histoire des ducs de Bourgogne, de Barante, os trinta e um volumes da Histoire des Français, de Sismondi, senão um mosaico habilmente costurado de extratos de cronistas e de memorialistas? Michelet poderá se vangloriar de ser o primeiro a mergulhar nos arquivos e o último por intermédio do qual se ouve a voz dos atores. Sua história, sobretudo aquela da Revolução, é ainda dominada pelo encantamento da memória. Depois dele, a magia foi quebrada.”
35
“A França age e raciocina, decreta e combate; ela abala o mundo; faz a história e a narra. A história é o resumo da ação. Em nenhuma outra parte não encontraríeis memórias, histórias individuais, nem na Inglaterra, nem na Alemanha, nem na Itália [...]. O presente está inteiro na França. Ela o toma com uma vivacidade singular. Desde que um homem fez, viu qualquer coisa, ele escreve. Freqüentemente ele exagera. É necessário ver nas velhas crônicas tudo o que fizeram nossas gentes [...]. A França é o país da prosa [...] o gênio da nossa nação não aparece melhor em outra parte que em seu caráter prosaico.”
153
36 “[...] as memórias são a história encarnada, a França múltipla e multiforme. E nunca esse sentimento foi mais forte que nos dias que se seguiram as perturbações de sua história e dos abalos de seu poder, as guerras de religião, a Fronde, grandes produtoras de memórias; nunca tão intenso do que depois da mais grave crise de sua história, a grande ruptura da Revolução e do Império, nesse período sintetizador de toda a herança perdida do Antigo Regime [...]”.
[...] les Mémoires, c’est l’Histoire incarnée, la France multiple et multiforme. Et jamais ce sentiment n’est plus fort qu’aux lendemains des troubles de son histoire et des ébranlements de son pouvoir, les guerres de religion, la Fronde, grandes productrices de mémoires, jamais plus intense qu’après la plus grave crise de son histoire, la grande césure de la Révolution et de l’Empire, en cette période récapitulative tout l’héritage perdu de l’Ancien Régime [...].36 (Nora, 1997, p.1394)
Alexandre Dumas, apesar de estar inserido nessa tradição memorialista, já escreve suas memórias tendo em vista outra perspectiva: a publicação. Suas memórias foram escritas em um momento de ruptura, segundo Nora (1997), em que os caminhos da escritura das memórias tomam outros rumos. Deixam de ser escritas nos moldes das memórias de Chateaubriand (publicadas postumamente, escritas como a última voz de uma aristocracia em extinção) e passam a ser escritas como as memórias de François Guizot (que explicita a vontade de publicar as memórias enquanto está vivo, para poder responder às críticas, para poder produzir uma narrativa que dispensa as referências à infância e à juventude, entrando logo na narração da vida pública, demonstrando, assim, a ambição de escrever apenas para justificar suas ações e a causa pela qual lutou). Dumas começa a escrever as suas memórias embalado pelo sucesso da publicação das memórias de Chateaubriand, e segundo os moldes das memórias tradicionais, narrando a sua trajetória e o seu envolvimento com o romantismo. Posteriormente, o que vai se tornando mais marcante na sua produção memorialística é a memória co-
154
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
letiva, que aparece sob a forma das biografias de seus amigos românticos e das respostas às críticas a eles dirigidas. Mes mémoires repousa na tentativa de criar um acordo entre dois mundos: o primeiro é o do romanesco, e o outro, o da história. Alexandre Dumas procura conciliar a narrativa romanesca que tem como tema sua própria vida (usando recursos que são ficcionais, falando de si como uma personagem), e a narrativa de testemunho, que insere a sua experiência na história uma vez que se trata de uma narrativa que se alimenta do mesmo material que a historiografia). O resultado dessa mistura improvável é que as memórias de Alexandre Dumas, por mais que possuam fragmentos em que sobressaem os aspectos pessoais, estão muito próximas da esfera de ação coletiva, reproduzindo os movimentos e as transformações de seu tempo, como se estivesse escrevendo memórias de todos aqueles com quem teve contato (ou que foram relevantes na sua época). Certamente, Dumas o faz com um estilo próprio, usando recursos de que dispõe, com o desejo de eternizar sua época, escrevendo realmente as memórias da França. Por ser um testemunho, está sujeito às deformações, às dificuldades de se chegar a uma imagem imparcial tanto de si mesmo quanto do seu tempo: On pourrait croire l’autobiographie plus aisée à mener à bien que la simple biographie, l’auteur étant le premier témoin de ce qu’il raconte, la matière même et le héros de son récit. Mais cette proximité même est un obstacle; regardée de trop près, une image se brouille et perd ses proportions réelles, sa configuration. L’historien, ayant dépouillé la totalité des documents disponibles, se met à œuvre, la conscience tranquille; il lui faut rassembler les fragments, reconstituer la mosaïque; en s’y prenant comme il faut, il finira bien par mener son travail à bonne fin. Celui qui entreprend d’écrire sa propre vie ne peut entretenir en lui cette bonne espérance.37 (Gusdorf, 1991a, p.133)
A imagem que Dumas deseja fixar de si próprio passa pela construção de um testemunho sobre a sua geração, na França de sua época:
Alexandre Dumas: faiseur de l’histoire?
38
37
“Podemos crer que a autobiografia, mais hábil em executar que a simples biografia, o autor sendo o primeiro testemunho da matéria que narra, o herói de sua narrativa. Mas essa proximidade é em si um obstáculo; vista de mais perto, uma imagem se turva e perde suas proporções reais, sua configuração. O historiador, contando com a totalidade dos documentos disponíveis, põe as mãos à obra, com a consciência tranqüila; para ele, é necessário juntar os fragmentos, reconstituir o mosaico e, se ele fizer da maneira correta, terminará por finalizar seu trabalho da maneira correta. Aquele que se põe a escrever a sua própria vida não pode se manter com essa esperança.”
“O autor de memórias, mesmo quando põe em evidência as iniciativas tomadas, as responsabilidades assumidas, os resultados obtidos, não fala de si, fala sempre de outra coisa; o que o interessa, é o train du monde, o curso das coisas e suas vicissitudes, sob a influência das forças, a obra em seu desenvolvimento. Em princípio, a perspectiva está centrada no lugar ocupado pelo testemunho, ao passo que o historiador se coloca em um lugar abstrato para o qual são obrigados a convergir todos os pontos de vista.”
155
L’auteur de mémoires, même lorsqu’il met en évidence les iniciatives prises, les responsabilités assumées, les résultats obtenus, ne parle pas de soi, il parle toujours d’autre chose; ce qui intéresse, c’est le train du monde, le cours de choses et ses vicissitudes, sous l’influence des forces à l’œuvre dans l’environnement. En principe, la perspective est centrée sur la place occupée par le témoin, alors que l’historien, lui, siège en un lieu abstrait vers lequel sont censées converger toutes les prises de vues.38 (ibidem, p.260)
Dumas escreve sua trajetória começando como um romance de aprendizagem, passando pelos momentos heróicos da Revolução de 1830 e depois se afirma como um testemunho da história. Dumas não confia na história, prefere deixar seu lugar na memória do futuro garantido, redigindo a sua visão dos acontecimentos. Na época em que Dumas escreve, o eu é o mundo, o motor das transformações desse mundo. Depois do fim da utopia em 1848, pouco a pouco as memórias vão saindo de cena, dando mais espaço às autobiografias, aos diários. A busca de si deixa de ser feita através do mundo e passa a ser feita pela interiorização do indivíduo. O que Dumas testemunha é sobretudo um modo de ver a história: uma história feita de revoluções, de idéias e de homens. Uma história possível de ser construída. A narrativa de Dumas reflete as aspirações da época, a sensação de que cada indivíduo carrega em si as aspirações do coletivo.
Referências BERGSON, Henri. Matière et mémoire. In: PUF, 1959.
. Oeuvres. Paris:
DUMAS, Alexandre. Mes mémoires. Paris: Robert Laffont, 1989. . Les gentilshommes de la Sierra-Morena. In: . Mille et un fantômes. Disponível em: <http://www.dumaspere.com/pages/ biblio/sommaire.php?lid=r34>. Acesso em: fev. 2005. . Le figurine de César III. In: . Causeries. Disponível em: <http://www.dumaspere.com/pages/biblio/chapitre.php?lid= m1&cid=25&highlight=histoire&pos=14816#>. Acesso em: jan. 2006.
156
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
157
DUMAS, Alexandre. Um dîner chez Rossini. Disponível em: <http:/ /www.dumas pere.com/pages /biblio/sommaire.php?lid=r33>. Acesso em: fev. 2007.
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em Milton Hatoum
GUSDORF, Georges. La découverte de soi. Paris: Presses Universitaires de France, 1948.
Daniela Birman*
. Les écritures du moi. Lignes de vie 1. Paris: Odile Jacob, 1991a. . Auto-bio-graphie. Ligne de vie 2. Paris: Odile Jacob, 1991b. HALKBWACHS, Maurice. Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Albin Michel, 1994.
RESUMO: Examinaremos neste artigo as experiências de subjetivação atravessadas pelos narradores dos dois primeiros romances do escritor Milton Hatoum: Relato de um certo Oriente e Dois irmãos. Segundo buscaremos sustentar, ao se dedicarem à escrita do livro que lemos e a um trabalho com a memória e com o esquecimento, esses dois personagens passam por um processo de erosão e constituição de si por meio do qual eles elaboram seu passado e criam o eu que nos narra. Enquanto no Relato de um certo Oriente o destaque é dado à dimensão negativa desse processo, à erosão de si, em Dois irmãos o acento está naquela positiva, no acompanhamento de Nael em sua conquista e assunção de um nome.
MICHELET, Jules. Introduction à l’Histoire universelle. Paris: Bibliothéque Larousse, 1930. t.I, p.179-234. NORA, Pierre. Les mémoires d’État: de Commynes à de Gaulle. In: . (Dir.) Les lieux de la mémoire. La République. La Nation. La France. Paris: Gallimard, 1997. p.787-850. ZANONE, Damien. Temps des historiens, temps des mémorialistes: complémentarité et rivalité. Revue d’Histoire du XIXe siècle, Le temps et les historiens, 2002. Disponível em: <http://rh19. revues.org/ document432.html>. Acesso em: jan. 2007.
PALAVRAS - CHAVE :
Hatoum, experiência de subjetivação,
memória. ABSTRACT: This article examines the different forms of subjectivation experienced by the narrators of the first two novels by Brazilian author Milton Hatoum: Relato de um certo Oriente and Dois irmãos. As I look to show, in dedicating themselves to writing the book we are reading and to the work of memory and forgetting, these two characters undergo processes of self-erosion and self-constitution through which they elaborate their past and create the self that narrates to us. While in Relato de um certo Oriente prominence is given to the negative aspect of this process, the erosion of self, in Dois irmãos the emphasis is positive, accompanying Nael as he acquires and assumes a name. KEYWORDS:
* Doutorado em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ).
Hatoum, experience of subjectivation, memory.
Introdução No final do Relato de um certo Oriente, romance de estréia de Milton Hatoum (1989), a narradora anônima
158
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
da trama nos descreve os obstáculos enfrentados para organizar sua carta ao irmão, correspondência que constitui o livro que lemos. Para contar a seu remetente a história de formação e esfacelamento da família deles e a morte da mulher que os criou, a personagem recolheu depoimentos de parentes e amigos, gravando fitas e fazendo anotações em dezenas de cadernos. Ela se debateu, contudo, com a extrema dificuldade em ordenar os testemunhos reunidos e as lembranças revividas. A narradora termina por arranjar o relato recorrendo à própria voz, comparada àquela de um pássaro: Quantas vezes recomecei a ordenação de episódios, e quantas vezes me surpreendi ao esbarrar no mesmo início, ou no vaivém vertiginoso de capítulos entrelaçados, formados de páginas e páginas numeradas de forma caótica. Também me deparei com um outro problema: como transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros? Tantas confidências de várias pessoas em tão poucos dias ressoavam como um coral de vozes dispersas. Restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes. Assim, os depoimentos gravados, os incidentes, e tudo o que era audível e visível passou a ser norteado por uma única voz, que se debatia entre a hesitação e os murmúrios do passado. (Hatoum, 1989, p.165-6)
Como pretendemos mostrar, essa comparação da narradora com a figura de um pássaro gigantesco e frágil, que plaina sobre as vozes do passado, sugere um processo de criação de si alcançado por meio da escrita e da elaboração dos sofrimentos da infância. Tal procedimento terá continuidade na obra do autor. Com efeito, no segundo romance do escritor, Dois irmãos (Hatoum, 2000), o narrador também reinventa a si mesmo por meio da redação do livro que lemos e do trabalho com a memória. Assim, ao chegar ao final de sua história, após ter interpretado criticamente a ordem clientelística à qual era submetido e superado a dúvida sobre a identidade de seu pai que o
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
1
Ao ressaltarmos a experiência de subjetivação dos personagens, chamamos a atenção para a possibilidade de constituição de um sujeito que não seja nem, por um lado, aquele soberano, fundador e enraizado num solo nem, por outro, aquele definido unicamente pela erosão de si, pela transgressão dos limites e das normas do seu meio. Esta “terceira margem” foi indicada por Michel Foucault (1985, 1994a, 1994b), acreditamos, quando ele se dedicou ao estudo das práticas de si e da estética da existência na cultura greco-romana da Antiguidade. Com efeito, ao se debruçar sobre os exercícios que estóicos praticavam sobre si mesmos, ele apontava para um processo de elaboração de si que podia ser entendido para além da simples aplicação ou interiorização de regras universais. A estética da existência é antes interpretada pelo autor como um exercício por meio do qual o sujeito se constitui através de uma prática de liberdade, que não era uma obrigação imposta a todos e se referia a um determinado critério estético (variável segundo a época histórica).
159
corroia, ele parece ter rompido com a condição de extrema exclusão em que se encontrava no passado e constituído um novo eu. Nesse momento do livro, o narrador, que havia permanecido anônimo ao longo de mais de 200 páginas, nos revelará pela primeira vez chamar-se Nael. Neste artigo, sustentaremos a hipótese de que esses dois narradores de Hatoum atravessaram uma experiência de subjetivação1 criando, por meio da escrita, da escavação da memória (e do trabalho do esquecimento), um eu para relatar sua história e aquela da família na qual cresceram. Ao os acompanharmos nesse processo, buscaremos ainda indicar diferenças de acento entre as dimensões negativa e positiva dessa experiência. No Relato de um certo Oriente, o destaque maior é dado à ruptura de si, ao despedaçamento dos antigos limites faciais, aos deslocamentos e às hesitações da personagem fantasmagórica. Esses movimentos, contudo, também implicarão uma dimensão positiva, visto que a ordenação da carta da narradora a levará à invenção de uma voz inspirada no vôo de um pássaro, voz essa com a qual ela partilhará sua história libertando-se de parte do peso do passado. Já em Dois irmãos, o relevo está na conquista e assunção de um nome na sociedade da qual o narrador era excluído. Essa conquista, como veremos, também envolverá a recusa (e destruição) de uma determinada máscara, aquela que o mantinha invisível ou submisso.
O buraco no meio do rosto A narradora do Relato de um certo Oriente é uma mulher que havia sido criada meio como filha, meio como neta, por Emilie, matriarca da família de origem libanesa que ocupa o centro da trama. Recém-saída de uma clínica psiquiátrica, ela retorna a Manaus, sua cidade natal, depois de quase duas décadas de ausência. A partir dos acontecimentos que se desenrolam com a sua chegada, ela vai relembrando e descobrindo histórias do seu passado e da família que a adotou.
160
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Uma primeira característica que merece ser ressaltada na narradora consiste na sua ausência de nome. Ela é marcada, com efeito, por um duplo movimento. Por um lado, constitui um personagem da trama em questão, que nos mostra, de diferentes formas, ser a principal fonte e a instância organizadora do relato. Por outro, esconde-nos seu nome, dados fundamentais sobre sua história (onde mora, o que faz, de onde veio) e outros atributos das figuras romanescas clássicas, como sua descrição física e seu perfil “moral”. Sua caracterização acompanha, dessa forma, a deterioração dos personagens romanescos identificada na passagem do século XIX para o XX, em que as antigas figuras, outrora pintadas como num retrato (cf. Rosenfeld, 1969), se transformaram em personagens descentradas, sem a obrigação de obedecer a uma coerência ditada por seu caráter ou meio social. Ao longo do Relato de um certo Oriente, escutaremos, portanto, uma voz impessoal e anônima, destituída de características individuais, como o caráter, a personalidade, a profissão. Despojada, em suma, de sua “identidade mundana”. Mais do que descrever o contexto histórico ou sentido genérico no qual podemos inserir certas marcas características da narradora, interessa-nos indagar o que a ocultação do nome indica no interior da trama em questão. Esse anonimato, que dá ares enigmáticos à personagem e faz que sua presença se torne evanescente e por vezes espectral, parece apontar para a ausência de origem, entendida como um ilusório solo fundador, lugar primeiro, que deteria a verdade e a essência dos que dali procederam (Foucault, 1979). Desse modo, ao entrar em cena sem rosto, a narradora enfatiza a inexistência dessa identidade primeira e verdadeira, inexistência com a qual ela se defronta em sua viagem de retorno a Manaus e em sua exploração identitária. A escolha do anonimato, nesse caso, constitui um modo de destacar a ausência de origem, em vez de optar pelo uso de uma máscara, assumindo-a como tal ou fazendo-a passar por uma imutável essência. Além disso, ao optar pelo anonimato, a narradora repete o movimento de sua mãe biológica, que, como ela
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
2
Maria da Luz Pinheiro de Cristo (2000) foi quem nos chamou a atenção para o vínculo entre o anonimato da narradora do Relato de um certo Oriente e o fato de sua mãe nunca ter lhe chamado pelo nome.
3
Não sabemos com segurança quem nomeou a narradora, que parece ter chegado ainda bebê na casa de Emilie.
4
A tradução do termo Unheimlich por inquiétante étrangeté é de Marie Bonaparte, uma das primeiras tradutoras de Freud para o francês. Embora seja criticada, visto que o potencial inquietante do Unheimlich provém de sua dimensão familiar (e não estranha), a tradução é empregada na edição citada do ensaio de Freud ao qual fazemos referência, além de ser utilizada, embora não unicamente, por Julia Kristeva (1988) em texto no qual nos apoiaremos. Portanto, mantemos o emprego do termo “inquietante estranheza”, ao lado de “insólito”, considerado mais apropriado e também usado por Kristeva.
5
As traduções dessa obra são de nossa autoria.
161
mesma conta, “nunca pronunciou meu nome” (Hatoum, 1989, p.163).2 Ela se coloca ao mesmo tempo no lugar da mãe, calando-se, e no seu, aquele da filha que jamais escutou o próprio nome na voz da mulher que a abandonou. Ao repetir o movimento que constitui fonte de sofrimento para ela, a personagem também enuncia que sua condição, como filha, é daquela que não tem origem. Afirma, assim, que não pode ser vista numa relação de continuidade com a família de onde vem seu nome – se considerarmos essa família a de sua mãe biológica ou aquela de Emilie.3 E, como não existe esse vínculo de continuidade, de integral pertencimento e imutável identidade, essa família não pode ser lida como uma origem. Consideramos ainda pertinente relacionar o caráter evanescente e o anonimato da narradora à noção de Unheimlich, descrita por Freud (1985) em seu conhecido ensaio sobre O homem da areia, de E. T. A Hoffmann. Nesse texto, o psicanalista define a especificidade da experiência de inquietante estranheza 4 como um pavor que procede daquilo que nos é há muito familiar. Segundo nos indica Julia Kristeva (1988), embora essa experiência seja associada à angústia, ela não se confundiria, contudo, com esta. A psicanalista destaca ainda uma certa potência do afeto Unheimlich que nos interessa em particular: sua condução a um processo de despojamento das características individuais: [...] A inquietante estranheza preserva esta parte de malestar que conduz o eu, além da angústia, à despersonalização. [...] é uma desestruturação do eu que pode seja perdurar como sintoma psicótico seja se inscrever como abertura em direção ao novo, numa tentativa de adaptação ao incongruente. (Kristeva, 1988, p.277-8)5
O Unheimlich provoca, assim, um abalo no antigo eu, na máscara até então usada, que leva à despersonalização, à ruptura com os limites da antiga identidade. Certamente a narradora viveu esse tenso mal-estar, provocado pelo estranhamento daquilo que lhe foi familiar. E o resultado do abalo é evocado na descrição da colagem criada por ela
162
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
na clínica psiquiátrica, que pode ser identificada a um rosto destruído: “O desenho acabado não representa nada, mas quem o observa com atenção pode associá-lo vagamente a um rosto informe. Sim, um rosto informe ou estilhaçado” (Hatoum, 1989, p.163). Ao realizarmos uma leitura do romance atenta a essa problemática, localizamos diversos episódios que insinuam o surgimento do afeto da inquietante estranheza na trama. Boa parte do Relato de um certo Oriente, com efeito, pode ser lida como um passeio por acontecimentos do passado que têm a potência de despertar o Unheimlich. Entre os fatores, especificados por Freud, capazes de engendrar tal retorno do recalcado (e o efeito do insólito), citamos aqueles explicitamente presentes nas experiências relatadas pela narradora. São estes: a defrontação com as figuras da morte (da avó Emilie, da prima Soraya Ângela) e da loucura (a dela própria e a de outrem, na clínica psiquiátrica). Lembramos, nesse contexto, que a personagem viu, quando criança, o corpo ensangüentado de Soraya Ângela estendido no chão, coberto por um lençol. A cena constituiu “uma das imagens mais dolorosas” (ibidem, p.21) da sua infância e foi relembrada em duas ou três cartas enviadas ao irmão, sugerindo-nos a existência de um trauma infantil que ela busca elaborar por meio da memória e da narrativa epistolar. O afeto Unheimlich se insinua ainda quando a narradora se defronta com a morte de Emilie. Ao saber, pois, que a matriarca foi encontrada quase sem vida na guarita do telefone, ela se lembra ter escutado a campainha do aparelho, na manhã mesma da morte, quando estava na casa materna. O momento foi marcado por uma curiosa e assustadora sincronia de sons “entre as pancadas do relógio da copa e o trinado do telefone” (ibidem, p.12). Desse modo, ao relacionar a morte de Emilie na guarita e o trinado escutado de manhã cedo, a narradora não evita o sobressalto: Lembrei-me assustada de que, de manhãzinha, antes de sair de casa, havia escutado o telefone tocar duas ou três vezes. Talvez tenha sido o último apelo de Emilie, a
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
163
sua maneira de me encontrar e dizer adeus. (Hatoum, 1989, p.138, grifo nosso).
O insólito também surgirá no romance num episódio em que a narradora estranha sua cidade natal e a si mesma. O citado episódio é relatado no sexto capítulo, no qual a personagem nos conta a visita a um bairro cujo acesso lhe fora proibido quando criança: Atravessei a ponte metálica sobre o igarapé, e penetrei nas ruelas de um bairro desconhecido. Um cheiro acre e muito forte surgiu com as cores espalhafatosas das fachadas de madeira, com a voz cantada dos curumins, com os rostos recortados no vão das janelas, como se estivessem no limite do interior com o exterior, e que esse limite [...] nada significasse aos rostos que fitavam o vago, alheios ao curso das horas e ao transeunte que procurava observar tudo, com cautela e rigor. Havia momentos, no entanto, em que me olhavam com insistência: sentia um pouco de temor e de estranheza, e embora um abismo me separasse daquele mundo, a estranheza era mútua, assim como a ameaça e o medo. E eu não queria ser uma estranha, tendo nascido e vivido aqui. (Hatoum, 1989, p.123)
Embora os sentimentos de ameaça e medo não tenham emergido da visita a um local familiar, a narradora sublinha o vínculo do mal-estar experimentado com o fato de ter deparado com a diferença num mundo que julgava ser o seu: aquele de sua própria cidade. Ela ressalta, com efeito, seu desejo em não querer ser uma estrangeira ali, no espaço onde nasceu e cresceu. O estranhamento de si (e abalo nos limites do eu) vivido pela personagem se dá, portanto, mediante a defrontação com o Outro, por meio da qual ela não o exclui, mas vive a alteridade existente em si mesma. E o afeto Unheimlich emerge, desse modo, dessa confrontação com a diferença que desestabiliza as bases da identidade, mostrando que essa não é fixa, essencial, nem, portanto, se enraíza num solo. Lembramos, nesse contexto, a afirmação de Kristeva (1988, p.278), segundo a qual “o choque do outro, a identificação do eu com este bom ou
164
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
mau outro que viola os limites frágeis do eu indeterminado estariam na fonte de uma inquietante estranheza”. Ressaltamos ainda que a cidade natal não pode ser entendida aqui como uma origem, fundamento de uma identidade una e sólida, que a narradora reencontraria ao regressar. Pelo contrário. No lugar da noção de origem, temos a idéia de originário, aquela camada que, segundo Foucault (1987), indica-nos que não possuímos um solo fundador nem somos contemporâneos do que nos faz ser, visto sermos constituídos por construções mais antigas do que nós, com historicidades próprias. Segundo Foucault (1987, p.347-8): o originário no homem é aquilo que, desde o início, o articula com outra coisa que não ele próprio; é aquilo que introduz na sua experiência conteúdos e formas mais antigas do que ele e que ele não domina; é aquilo que, ligando-o a cronologias múltiplas, entrecruzadas, freqüentemente irredutíveis umas às outras, o dispersa através do tempo e o expõe em meio à duração das coisas. Paradoxalmente, o originário no homem não anuncia o tempo de seu nascimento, nem o núcleo mais antigo de sua experiência: ligao ao que não tem o mesmo tempo que ele; e nele libera tudo o que não lhe é contemporâneo [...].
No lugar da origem como fundamento temos, portanto, o originário, indicando-nos que a cidade natal é atravessada por construções e ordens múltiplas, as quais não dominamos e às quais às vezes nem temos acesso. Com efeito, apenas com a substituição da idéia de origem por aquela de originário, substituição que desvincula nosso lugar de procedência das idéias de identidade e essência, nossa visão da cidade de onde viemos poderá abranger espaços e indivíduos nos quais não reconhecemos e com os quais não nos identificamos. Será, portanto, a partir da defrontação com a essa camada que a narradora poderá perceber Manaus como atravessada pela heterogeneidade e pela diferença – noções incompatíveis com idéias comumente aceitas de solo, raiz ou origem.
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
165
Consideramos essa problemática da defrontação com a ausência de origem e com o originário fundamental a nossa leitura do romance – e à interpretação de Dois irmãos, como veremos mais adiante. Pois, ao perceber, por meio do estranhamento de sua cidade e da recusa de uma total identidade com sua família, que seus vínculos de parentesco e sua relação com o lugar de onde veio não são naturais, necessários nem absolutos, a narradora poderá sentir que seus modos de ser e pensar também não o são, abrindo-se para novos possíveis. E sem o reencontro de uma identidade “natural” na sua viagem de retorno, ela deverá se dedicar à invenção de uma voz para nos narrar sua história. Essa fala artificial se deixará afetar pelas outras que ela escutou, as quais reunirá num vocabulário híbrido. A personagem também se debruçará sobre o passado de sua família e sobre sua infância, buscando transformar o que foi vivido como traumático ou aquilo que constituiu fonte de sofrimento (e que pressiona e limita seu presente) em experiência. Por meio de seu trabalho de memória, ela articulará suas recordações àquelas de seus parentes e amigos, fará uso da imaginação, mergulhará em acontecimentos recalcados ou esquecidos e abrirá a leitura do passado ao infinito da memória. A partir daí, ela criará o eu que nos narra, inspirado na figura de um pássaro.
A paralisia do passado Na abertura do Relato de um certo Oriente, a narradora nos descreve seu despertar no dia seguinte ao de sua chegada a Manaus, na casa que, descobriremos em seguida, é aquela de sua mãe biológica. A partir de sua conversa com a empregada da família, um dos temas principais do romance é evocado: a memória (e a paralisia do passado). Ou ainda: a necessidade de a narradora trazer à tona uma dimensão temporal e espacial à qual não tem acesso direto, mas pode ser apropriada pelo presente. Desse modo, após ser remetida ao universo da sua infância, quando a empregada lembra-lhe hábitos singulares de Emilie, ela escreve:
166
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
A conversa com os animais, os sonhos de Emilie, o passeio ao mercado na hora que o sol revela tantos matizes do verde e ilumina a lâmina escura do rio. Na fala da mulher que permanecera diante de mim, havia uma parte da vida passada, um inferno de lembranças, um mundo paralisado à espera de movimento. (Hatoum, 1989, p.11, grifos nossos)
O passado surge, portanto, inerte em sua fala, paralisado. E a abertura do Relato de um certo Oriente sugere assim que a narradora vive uma situação semelhante à de Sherazade e de diversos personagens das Mil e uma noites: o imperativo de narrar ou morrer. Pois, embora paralisado, o passado, como mostraremos, faz pressão sobre seu presente, e não quer ser esquecido. Narrá-lo constitui, pois, um modo de ao mesmo tempo colocá-lo em movimento e de recriá-lo. Mais do que isso. Trata-se também de salvar o presente. Contudo, diferentemente de Sherazade, a morte, no caso da narradora, é representada simbolicamente pelo seu sofrimento psíquico. É importante ressaltar que apenas depois de fazer referência a esse mundo “à espera de movimento” a personagem iniciará seu trabalho com a memória, passando à segunda parte do primeiro capítulo, na qual recorda cenas da infância e a morte de Soraya Ângela. Mas ela não será a única a escavar o passado familiar. Segundo afirmamos, a narradora também recorrerá a depoimentos de parentes e amigos. E se debaterá no final com a dificuldade de ordenar esses testemunhos. Ela optará por transformar tais personagens em narradores secundários do romance, encarregados de determinados trechos da história. A transmissão do relato é partilhada, dessa forma, entre ela mesma, responsável pela organização de todos os depoimentos, e pelos narradores secundários, cujos discursos são reproduzidos em discurso direto e numa dicção sóbria. Prossigamos. O entorpecimento do passado da narradora merece ser pensado a partir de uma preocupação identificada nas teses “Sobre o conceito da história”, de Walter Benjamin (1994b). Essas revelariam a influência da estética de Proust, escritor que não apenas se debruçou sobre suas lembranças, mas
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
167
explorou, como afirma Jeanne Marie Gagnebin (1994), a busca das semelhanças e das analogias entre o que se passou e o tempo presente. A autora expõe a inquietação e os cuidados “semelhantes” entre o tradutor de Proust e o autor: A mesma preocupação de salvar o passado no presente graças à percepção de uma semelhança que os transforma os dois: transforma o passado porque este assume uma forma nova, que poderia ter desaparecido no esquecimento; transforma o presente porque este se revela como sendo a realização possível dessa promessa anterior, que poderia ter-se perdido para sempre, que ainda pode se perder se não a descobrirmos, inscrita nas linhas do atual. (Gagnebin, 1994, p.16)
A importância de Proust para o modelo de história e de narrativa defendido por Benjamin é crucial, visto que o filósofo identificou na memória involuntária do escritor o esforço de construção da experiência (Benjamin, 1989). Com efeito, tal memória permite ao indivíduo – que vive em meio ao choque e só conhece fatos inacabados, que não vieram nem foram incorporados à tradição, fazendo que esses lhes sirvam de ensinamento e se integrem a seu cotidiano – tecer reminiscência e esquecimento; criar uma constelação que reúna imagens do passado e do presente, rompendo com qualquer ideal de continuidade da narrativa e investindo na dimensão intensiva do tempo. É nesse contexto que Benjamin afirma (1994b, p.229-30): “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’. Assim, a Roma antiga era para Robespierre um passado carregado de ‘agoras’ que ele fez explodir do continuum da história”. Dessa maneira, se o sujeito não possui uma memória coletiva por meio da qual os acontecimentos sobre os quais narra, ouve ou vê possam se inserir numa tradição ou se relacionar entre eles – o que faz que os fatos com os quais depara se encerrem na esfera do privado, levando-o a permanecer preso ao sentimento de perplexidade, à incomuni-
168
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
cabilidade e à pergunta sobre o sentido do mundo –, por meio da memória involuntária ele poderá incorporar os acontecimentos e choques que viveu num exercício que não os limita a um sentido uno (ou na eterna busca desse sentido), mas os abre para a dimensão infinita da memória. Afinal, “um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois” (Benjamin, 1994a, p.37). Desse modo, a singularidade e o incomensurável, descritos e levados ao apogeu no romance, são penetrados pelo infinito, que os abre a incontáveis leituras. E, numa constelação que una presente e passado, esses poderão ganhar outras interpretações e sugestões de continuação para a história que está sendo lembrada. O sentimento de perplexidade, a dimensão do indizível e a irredutibilidade do que se passou poderão permanecer, mas sem dúvida a sensação de incomunicabilidade e o isolamento serão enfrentados de outra forma, menos conformista. Não se procura, pois, com essa abertura da narrativa para a dimensão infinita da memória um único sentido para a vida e a morte, uma forma de concluir a história, mas produzir outras interpretações para ela e sugerir outras formas de continuá-la. De acordo com essa perspectiva, o vínculo entre passado e presente que pode ser entendido como necessário não é da ordem da continuidade nem obedece a um projeto de restituição da história ou de revelação da verdade oculta que guiaria sorrateiramente o tempo. Seu caráter necessário deve partir das exigências do presente e de suas apostas e esperanças para o futuro. Ele integra, portanto, a dimensão de interpretação e de apropriação da história. Assim, ao basear a exploração do passado de sua família em atos de memória (dela e dos narradores secundários), a narradora não poderá “explicar”, encontrar um sentido único, a ordem correta e a finalidade dos acontecimentos. Ela deparará, ao contrário, com diferentes lei-
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
169
turas, esquecimentos, interpretações, e com a dimensão afetiva e singular das lembranças de cada um. Portanto, ao organizar os relatos recolhidos, ela aprenderá que esses não trazem em si uma finalidade, e que sua disposição deverá ser criada por ela. Ao mesmo tempo, poderá perceber que as leituras das histórias são múltiplas, e que ela é capaz de imaginar novas interpretações e continuações para o que viveu, inventando outros possíveis para o seu presente. O mergulho da narradora no passado, contudo, não parte unicamente do desejo de se lembrar, mas também daquele de se esquecer. A dificuldade em esquecer a distingue, pois, do irmão, que abandonou Manaus para sempre, “como se a distância ajudasse [...] a exorcizar o horror” (Hatoum, 1989, p.134). No extremo oposto dele, a personagem não consegue fugir do mundo visível: “de tanto me enfronhar na realidade, fui parar onde tu sabes: entre as quatro muralhas do inferno” (ibidem, p.135). Desse modo, concluímos, seu distanciamento da terra natal não foi capaz de apagar seu “inferno de lembranças”. E o passado pressiona e limita seu presente. Esquecimento e memória são, portanto, considerados nesta interpretação do romance como indissociáveis, dois princípios que guiariam o movimento de retorno, o ato de recolhimento de relatos e a escrita da narradora. Podemos aproximar seu trabalho em conjunto daquele identificado no exame realizado por Benjamin da grande obra de Proust. Segundo essa análise, o esquecimento representa um papel fundamental na memória involuntária do escritor francês. Não se trata de uma presença negativa, das lacunas que não puderam ser preenchidas pela memória, mas de um trabalho produtivo e ativo. Benjamin pergunta-se, com efeito, se a memória involuntária do escritor não se aproximaria mais do esquecimento do que da chamada reminiscência. Em tal rememoração, o trabalho é produzido à noite, e destruído pelas forças diurnas: Não seria esse trabalho de rememoração espontânea, em que a recordação é a trama e o esquecimento a urdidura, o oposto do trabalho de Penélope, mais que sua cópia? Pois
170
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
aqui é o dia que desfaz o trabalho da noite. Cada manhã, ao acordarmos, em geral fracos e apenas semiconscientes, seguramos em nossas mãos apenas algumas franjas da tapeçaria da existência vivida, tal como o esquecimento a teceu para nós. Cada dia, [...] com suas reminiscências intencionais, desfaz os fios, os ornamentos do olvido. (Benjamin, 1994a, p.37)
O trabalho do esquecimento seria assim destruído pelas forças da racionalidade que predominam durante o dia, pela certeza das reminiscências intencionais e confortadoras que ele arruína durante a noite, perfurando-as com lacunas, pelo posicionamento alerta da consciência, que controla a irrupção de imagens esquecidas ou recalcadas e, portanto, o trabalho de cruzamento, constelações e associações entre imagens do presente e do passado que não obedece à lógica e aos princípios racionais. Podemos, portanto, entender essa atividade do esquecimento citada por Benjamin como um princípio constitutivo da escrita proustiana. Outra interpretação dessa atividade seria compreendê-la como um dos alvos da escrita e da memória involuntária: o resgate do passado que, mediante a sua reatualização, busca superá-lo e, portanto, esquecê-lo de certa forma. Tal papel, acreditamos, é inseparável da escrita da memória desdobrada por nossa narradora. Ao explorar a dimensão involuntária da memória, Proust também enfrentaria o envelhecimento, pois o escritor “está convencido da verdade de que não temos tempo de viver os verdadeiros dramas da existência que nos é destinada. E é isso que nos faz envelhecer, e nada mais” (Benjamin, 1994a, p.46). Por intermédio da memória involuntária o sujeito teria acesso a fatos deixados inacabados em seu passado, entendidos como responsáveis pelo seu envelhecimento. Por isso, podemos dizer que ela salva o passado, impedindo sua submersão no esquecimento (e, supomos, a pressão desse, que não foi inteiramente apagado, sobre o presente). É nesse sentido que Benjamin (1994a, p.45) fala da “obra da mémoire involontaire, da força rejuvenescedora capaz de enfrentar o implacável envelhecimento”.
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
171
Neste ponto, podemos já relacionar parte do que vem sendo dito à necessidade da narradora de colocar em movimento seu passado paralisado e ao presente da personagem, marcado pela experiência-limite da loucura. Como podemos concluir a partir de sua carta, o período de internação numa instituição psiquiátrica será decisivo para a viagem de regresso da qual nascerá o Relato de um certo Oriente – e, portanto, para o trabalho de recolhimento de lembranças que será efetuado. O vínculo entre o que a narradora viveu na clínica e o retorno a Manaus é indicado no diálogo entre ela e sua amiga Miriam: Miriam estranhava o fato de eu não sair dali [da clínica] o quanto antes; ela se incomodava quando lhe pedia para sentar no pátio, e estremecia ao ver as duas beatas que se acercavam com os olhos arregalados e se ajoelhavam à nossa frente, segurando nas mãos um terço de contas transparentes. “O que te atrai para continuares aqui?”, me dizia. Quis responder perguntando o que me atraía lá fora, mas preferi dizer que estava pensando numa viagem. (Hatoum, 1989, p.162)
A paralisia do passado surge como um impedimento, um obstáculo à vida da narradora, que foi internada, como ela imagina, “depois do meu último acesso de fúria e descontrole, quando nada ficou de pé nem inteiro no lugar onde morava” (ibidem, p.160). A partir dessa experiência, ela viajará em busca do passado ao mesmo tempo esquecido, paralisado e impossível de se esquecer. Por isso, afirmamos que seu ato de memória e transmissão da história integra o imperativo de narrar ou morrer. E isso implica ainda que a narradora se apropria do passado no momento indicado por Benjamin (1994b, p.224-5) ao materialismo histórico, em sua sexta tese “Sobre o conceito da história”: aquele do perigo. Após viver um período de torpor, “imersa na escuridão pacata de um sono contínuo e sem sonhos” (Hatoum, 1989, p.159), a personagem ingressou “no espaço ordenado, asséptico e sóbrio, golpeado sem cessar pelo estrépito
172
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
alucinante das pessoas reconduzidas ao sono letárgico dos que haviam ingressado recentemente para passar dias e dias alijados de qualquer gesto lúcido ou criativo” (ibidem, p.160). Antes de emergir da inércia, porém, ela terá uma espécie de sonho ou delírio com a visita de sua mãe (apesar de ter caracterizado seu torpor pela ausência de imagens oníricas). Nesse trecho do romance, identificamos uma breve desordem em seu relato, em razão de sua confusão mental ou do desejo de expô-la. Ela nos narra a respeito de sua defesa à visita da mãe como se essa houvesse de fato ocorrido, e apenas depois nos damos conta de seu caráter imaginário: Era como se eu tivesse os olhos vendados, ou como se uma cegueira precoce e súbita fosse uma defesa à vinda de nossa mãe, que chegou assim que foi informada do meu internamento. Creio que não cheguei a vê-la, nem sequer de longe. Mas certa noite, ao olhar para a porta aberta do quarto, divisei um contorno indefinido, uma forma envolta de sombras, como se um corpo tivesse escapado da claridade da luz para refugiar-se numa região obscura situada entre a soleira da porta e os confins do mundo. Talvez fosse ela, porque escutei a mesma voz que nos abandonou há tanto tempo: uma voz dirigida à Emilie, sondando de um lugar distante, notícias da nossa vida. O corpo e a voz, tão próximos de mim, já não eram mais que uma pálida lembrança de um encontro quimérico, e esvaneceram por completo quando emergi do estado de torpor [...]. (ibidem, p.159-60)
Não nos interessa construir aqui nenhuma cadeia de causa e efeito para os sentimentos vividos, mas somente indicar o surgimento, na escuridão desse sono sem sonhos, da experiência radical do abandono materno e o rompimento passageiro com a linguagem ordenada do cotidiano no relato do que se passou. A figura da mãe se faz ainda presente na fantasia da narradora sobre seu internamento. Pois, segundo ela nos conta, estava convencida de que esse se deu “a mando da nossa mãe” (ibidem, p.160). Ao citar-
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
173
mos esses devaneios, não pretendemos desprezar os comentários da narradora nem relegá-los a uma desvalorizada dimensão, marcada pelo caráter imaginário ou pela ausência de lógica, mas frisar seu pertencimento à esfera do inconsciente, da fantasia e do desejo, na qual se localizam os mais fortes traços mnemônicos (cf. Freud, 1981; Benjamin, 1989). Com efeito, será durante a internação na clínica que a personagem iniciará diversas “viagens da memória”. A narradora adentrará então uma esfera de produção da dimensão inconsciente do sujeito, à qual é possível estabelecer semelhanças com aquele instante do despertar proustiano, crucial para Benjamin: instante de abolição dos sistemas de ordem, no qual os móveis, as paredes e os anos giravam em torno daquele que acordava, que não sabia naquele momento em que moradia de sua vida se encontrava. Podemos supor, pois, que ela terá acesso ao estado que Benjamin, segundo Krista R. Greffrath (1983), chamava de “desordem produtiva”, tendo-a encontrado em Proust, no colecionador e no alegorista. “As coisas giram umas em relação às outras sem formar série, ordem hierárquica [...]; elas estão, pelo contrário, numa autonomia soberana”, explica Greffrath (1983, p.126). A autora lembra ainda que o que Benjamin chama de “memória inconsciente”, numa tradução livre da memória involuntária proustiana e numa síntese do escritor com Freud, “é o lugar de tal desordem produtiva” (ibidem, p.126). Podemos identificar o trabalho dessa “desordem produtiva” no relato escrito pela personagem durante sua internação. Tal narrativa era marcada pela ausência de ordem, pelo gênero indefinido, pela falta de tema e pela mistura de fontes. Em resumo, seu caráter desordenado traz a marca da linguagem da loucura: Nessa época, talvez durante a última semana que fiquei naquele lugar, escrevi um relato: não saberia dizer se conto, novela ou fábula, apenas palavras e frases que não buscavam um gênero ou uma forma literária. Eu mesma
174
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
procurei um tema que norteasse a narrativa, mas cada frase evocava um assunto diferente, uma imagem distinta da anterior, e numa única página tudo se mesclava: fragmentos das tuas cartas e do meu diário, a descrição da minha chegada a São Paulo, um sonho antigo resgatado pela memória, o assassinato de uma freira, o tumulto do centro da cidade, uma tempestade de granizos, uma flor esmigalhada pela mão de uma criança e a voz de uma mulher que nunca pronunciou meu nome. (Hatoum, 1989, p.163)
É possível identificar nesse relato temas e imagens presentes no romance: o abandono da mãe; a flor vinculada à figura da morte (a rara orquídea vermelha que o tio Emir segurava antes de se matar, as flores atiradas no rosto de Hakim pela narradora, para acordá-lo e avisá-lo do acidente da prima, ou aquelas de organdi suíço que cobriram a cabeça de Soraya depois do acidente); o desejo de se dedicar à vida do claustro nutrido por Emilie; a migração da narradora para a “cidade grande”. Fundamental, porém, é como eles se aglutinam e abolem a ordem à qual integravam na memória voluntária de nossa narradora para formar, na dimensão inconsciente, outra constelação, que rompe com as linearidades temporais, espaciais, de gênero ou temática. Contudo, o relato da narradora não permanecerá como uma narrativa disforme, pois ela o rasgará e fará de seu papel picado uma colagem. Será a partir dessa colagem que ela evocará a imagem, citada mais acima, do rosto informe. Desse modo, podemos concluir que ao romper e destruir, com seu ataque de fúria e com seu relato desarranjado, as ordens regentes na racionalidade cotidiana, no hábito e na memória voluntária, a narradora despedaça os limites e arranjos do seu eu e de sua história pregressa. E será em busca do recolhimento desses cacos, da escuta de novas confidências e recordações, que ela partirá em sua viagem a Manaus. Lá, como vimos, não encontrará uma identidade essencial e fixa, fundada num ilusório solo fundador, mas deparará com a ausência de origem e estranhará a si mesma. A partir da reunião dos depoimentos de
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
175
amigos e parentes e da escrita de suas próprias rememorações, ela escreverá a carta a seu irmão, buscando inserir sua história naquela de sua família, criar outra leitura e inventar uma nova continuação para os fatos traumáticos e os sofrimentos de quando era criança. Em suma, ela procurará, por meio da reelaboração do passado, transformar os choques, as dores e os fatos inacabados da infância em experiência. A narradora se debruçará ainda sobre o trabalho de invenção da voz artificial com a qual nos desdobrará seu relato. Pois, se ela deparou com a inexistência de uma identidade essencial e verdadeira, deverá também enfrentar a ausência de uma voz “natural” para nos contar sua história. E sem identidade e voz fixas (que lhe permitiriam manter a distância “certa” entre ela e mundo), os sotaques, as dicções diversas, as mimeses alheias a afetam e a levam a se perguntar sobre como narrar. Reproduzimos, mais uma vez aqui, um dos questionamentos que atravessam sua escrita: “como transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros?” (ibidem, p.165-6). A pergunta revela, pois, que a narradora percebe a barreira existente entre oralidade e escrita. Ela parece ainda indicar sua defrontação com outra questão: a de que sua transcrição das vozes alheias consistirá sempre numa mediação, interpretação. Daí, pois, sua indagação a respeito de como transcrever. E será esse papel de mediadora que ela assumirá ao optar por empregar sua própria voz para reproduzir, em discurso direto, as falas dos narradores secundários. Essa voz que ela emprega para redigir toda sua carta – que não sendo essencial se deixa afetar pelas falas de outrem – parece ter sido trabalhada exaustivamente. Pois, embora não transcreva sotaques e dicções engroladas, a personagem realiza um trabalho de pesquisa, seleção e reunião de termos de origens distintas para formar o vocabulário com o qual transmite seu relato, incorporando, desse modo, as diversas falas singulares que escutou e a afetam. Com efeito, a narradora mescla em sua longa carta (e, portanto, não apenas em seu relato, mas também naque-
176
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
les que reúne) termos originados do árabe (alforje, azáfama, âmbar, almíscar, alfazema, mesquita), outros vindos do tupi (caboclo, jaguatirica, pitomba), palavras típicas do Amazonas ou das regiões Norte e Nordeste, provenientes ou não do tupi (jerimum, maracajá, chichuta), além de uma grande variedade de nomes próprios (de lugar, pessoa, música etc.), e termos que designam guloseimas e frutos característicos (esfiha, tâmara, cupuaçu).6 Essa reunião de palavras de diferentes origens parece, pois, apontar para a realização de um exercício da personagem sobre si mesma, por meio do qual ela incorpora as falas que influenciam a sua própria. Nesse exercício, ela não transcreve essas falas, mas as peneira, seleciona, criando o rico e híbrido vocabulário com o qual irá nos transmitir todos os relatos recolhidos. Segundo mencionamos, a personagem deverá ainda recorrer à imaginação, pois descobre que não há um modo de restituir o passado e contar sua história sem nenhuma lacuna, esse “espaço morto que minava a seqüência de idéias” (ibidem, p.165). Nesse contexto, ela relata ao irmão que começou a “imaginar com os olhos da memória as passagens da infância, as cantigas, os convívios, a fala dos outros, a nossa gargalhada ao escutar o idioma híbrido que Emilie inventava todos os dias” (ibidem, p.166). E, ao concluir sua carta, ela conta que ritmo é esse que buscou criar e acompanhar para resgatar sua infância, perdida no passado, e lhe transmitir, a distância, uma terrível notícia: a morte de Emilie. Ela procurou, pois, reinventar um tom familiar e esquecido, incorporando nele, de modo ativo, as lacunas deixadas para trás: “Era como se eu tentasse sussurrar no teu ouvido a melodia de uma canção seqüestrada, e que, pouco a pouco, notas esparsas e frases sincopadas moldavam e modulavam a melodia perdida” (ibidem, p.166). O familiar e o passado são, nesse contexto, reinventados a partir do presente, postos em movimento (visto estarem paralisados) e libertos (ressaltamos o uso do verbo seqüestrar empregado) a partir do salto dado num momento de sofrimento e perigo no qual a personagem se
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
6
Evidentemente, seria necessário um estudo minucioso do vocabulário empregado no Relato de um certo Oriente para dar conta da diversidade de origem dos termos, além do uso de palavras estrangeiras e de nomes próprios. Não pretendemos com esses exemplos realizar nem muito menos esgotar tal estudo, mas apenas indicar a riqueza e hibridez deste vocabulário e vincular este trabalho de seleção e reunião àquele de criação de nossa narradora de uma voz permeada pelas falas daqueles que a cercam.
177
encontrava. Desse modo, ao abandonar qualquer projeto de busca de um solo firme no qual se apoiar (e de uma identidade una e fixa), a narradora pôde se preparar para decolar vôo. Seu personagem se aproximou, assim, da figura do pássaro, que flutua sobre os outros com a leveza daquele que implodiu a carga do pesado passado que imobilizava seus passos, permitindo-lhe recolher e recompor, de uma diferente maneira, os cacos da sua história e de sua subjetividade.
O filho de ninguém O narrador de Dois irmãos, Nael, é filho bastardo de um dos três homens da família de origem libanesa nuclear do romance, na qual ele nasceu e cresceu na condição de agregado. A partir do que ouviu e presenciou, ele nos contará a história da discórdia entre os irmãos Yaqub e Omar, os gêmeos do casal Zana e Halim. Ao mesmo tempo, ele entrelaçará o relato de sua própria vida à trama que ocupa o primeiro plano do livro. Somente aos poucos, contudo, saberemos o estatuto do narrador na casa onde vive, quem é sua mãe, os sentimentos e conflitos vividos por ele. De modo similar à narradora do Relato de um certo Oriente, Nael permanecerá a maior parte do livro sem nome. E ao nos enredar num clima de mistério sobre sua identidade e história, ele nos atrai para o conflito central da sua vida, aquele vinculado à ignorância sobre quem é seu pai. Mais do que isso. Ele nos coloca na mesma situação de ignorância vivida por ele. Apenas no início do quarto capítulo o personagem passará ao centro da narrativa, partilhando conosco a dolorosa dúvida a respeito de sua ascendência paterna: Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal da origem. É como esquecer uma criança dentro de um
178
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe. Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. (Hatoum, 2000, p.73)
Nael enuncia, dessa forma, a ânsia por um passado misterioso, a aleatoriedade que marcou sua chegada ao mundo e a dor do abandono: seu sentimento de ter sido “esquecido” dentro de um barco, até que, fortuitamente, uma das margens o acolheu. Ao que tudo indica, portanto, ele deparou desde muito cedo com a impossibilidade de se fiar à ilusão de um solo fundador. Seu nascimento é, pois, atravessado (e ele assim o interpreta) pela idéia da contingência, permitindo que seu vínculo com o lugar “de onde veio” (seja esse entendido como seus pais, seja como sua família, cidade natal ou pátria) não seja percebido como natural ou necessário nem, portanto, lido como uma origem. Nesse contexto, o narrador poderá desnaturalizar as ordens às quais está submetido, que também não seriam compreendidas como inquestionáveis ou inevitáveis. E, como mostraremos ao nos debruçarmos sobre outros trechos do livro, assim ele o fará. A condição de agregado de Nael não lhe traz ilusão de igualdade ou de plena integração ao núcleo familiar libanês. Embora seja filho de um dos homens da casa, tenha enterrado sua mãe no jazigo da família e até recebido uma espécie de herança, Nael sacrificou seus estudos para servir aos moradores “legítimos” do sobrado, sempre dormiu num quarto no quintal e viu sua mãe, a índia Domingas, ser explorada e aviltada, esmorecendo ao longo da vida. Domingas, ele nos conta, morreu “quase tão mirrada como no dia em que chegou a casa, e, quem sabe, ao mundo” (ibidem, p.65). Não por acaso, o narrador menciona diversas vezes o ideal de liberdade em seu relato, seja para fazer referência aos sonhos de Domingas, “louca para ser livre” (ibidem, p.67), ou ao alívio que ele experimentava ao mirar o rio em suas tardes de folga, quando “a imensidão escura e levemente ondulada [...] me devolvia por um momento a liber-
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
179
dade tolhida” (ibidem, p.81). E é essa mesma idéia que está em jogo quando Nael nos conta que conseguiria o diploma do Liceu Rui Barbosa: “minha alforria” (ibidem, p.37). Enquanto, porém, Domingas tem medo de fugir da cidade e parece esperar que a liberdade seja concedida como um favor, o narrador defende uma postura mais ativa e exigente. “Entregue ao feitiço da família” (ibidem, p.67), a mãe de Nael se limitou, pois, a sonhar com a liberdade, não seguindo ao impulso do filho, que se empenhava pela tomada de iniciativa: “ou a gente age, ou a morte de repente nos cutuca, e não há sonho na morte” (ibidem, p.67). E parte da inércia de Domingas vinha da dependência afetiva com a família libanesa: “[...] foi tomada pela inação. Pela inação e também pelo envolvimento com os gêmeos, sobretudo com a criança Yaqub, e, quatro anos depois, com Rânia” (ibidem, p.67). Para completar o círculo de aprisionamentos, a paralisia de Domingas acaba por atar Nael à casa, de modo que os laços familiares prevalecem por um bom período de sua vida. Bastardo, agregado e corroído por uma grande dúvida, o narrador precisará conquistar um lugar para si na terra em que vive, visto que seu nascimento não lhe garantiu por direito esse lugar. E do mesmo modo que sua posição resultará de uma conquista, seus vínculos e laços com os integrantes da família na qual cresceu, e que é e não é a sua, também não serão dados e aceitos passivamente, mas constituirão frutos de escolhas. Esse caminho, contudo, não será fácil. Para percorrê-lo, Nael contará com os favores recebidos (que lhe permitirão estudar e abrir-se a novas possibilidades de ser), com o desenvolvimento de um olhar crítico e com seu ato de escrita e memória. Ao iniciar seu relato, o narrador já havia se libertado em parte da situação de sujeição extrema na qual viveu, tendo rompido com a dependência familiar, recusado certos papéis sociais e conquistado uma profissão. Supomos, porém, que a experiência de escrita foi fundamental no processo de questionamento do seu próprio mundo, interpretação de sua história e criação de um eu que nos narre
180
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
seu passado. Dessa maneira, quando estiver chegando ao final do livro, tendo já reinventado sua trajetória, criticado o universo que o constituiu e elaborado uma voz capaz de tecer e desmanchar as tramas da sua infância, ele finalmente nos enunciará seu nome. Assim como a narradora do Relato de um certo Oriente, o passado de Nael pressiona seu presente, exigindo ser salvo. Nesse sentido, o narrador nos conta: “até hoje me vejo correndo da manhã à noite, louco para descansar, sentar no meu quarto, longe das vozes, das ameaças, das ordens” (ibidem, p.88). E do mesmo modo que a personagem analisada anteriormente, Nael se caracteriza pelo desejo de capturar o tempo submerso. Ele sempre teve, pois, “sede de lembranças, de um passado desconhecido, jogado sei lá em que praia do rio” (ibidem, p.91). O personagem ainda pode ser visto como um indivíduo marcado pela dificuldade de esquecer, assombrado por imagens de um outro tempo que ameaçam envelhecê-lo. Dessa forma, para salvar seu passado, e especialmente seu presente, ele deverá mergulhar nestas imagens, buscando articular memória e esquecimento; o tempo de hoje àquele que custa a passar. Assim, muitos anos depois do embate entre Yaqub e Omar, após a morte de quase todos os personagens envolvidos, Nael nos relata sua história e aquela dos dois irmãos. Ele parte, portanto, da necessidade do presente e da passagem do tempo (que contribuiu para o esquecimento dos acontecimentos), investindo na possibilidade de produzir outras leituras para o passado e transformá-lo em experiência. Esses acontecimentos poderão, desse modo, serem sedimentados num exercício de interpretação de si mesmo, do outro e do mundo que ajudam Nael a elaborar e reinventar a si mesmo, o outro e o mundo. O próprio narrador ressalta a importância do esquecimento em seu relato ao nos revelar outra tentativa de escrita, na época em que sua mãe morreu: Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento;
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
181
permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. (ibidem, p.244)
Sustentamos, portanto, a hipótese de que, ao se debruçar sobre a história de sua família e explorar num ato de rememoração a situação de extremo sofrimento da infância e juventude, provocada pela ignorância a respeito da identidade de seu pai e pela situação de exclusão em que se encontrava, Nael recriará seu passado e seu próprio eu. E de modo semelhante à narradora do Relato de um certo Oriente, ele enfrentará a ausência de origem e a camada do originário, percebendo não ser contemporâneo do que o faz ser e desnaturalizando o próprio mundo. Com efeito, identificamos em Dois irmãos uma série de marcas indicativas da defrontação com o originário. Essa experiência surgirá, sobretudo, a partir da confrontação entre as ideologias liberal e clientelista, confrontação que supomos ter auxiliado Nael a questionar a ordem que o regia: aquela do favor. Vamos a essas marcas. Segundo afirmamos, Nael se distingue de sua mãe por apostar no alcance da liberdade pela via da conquista, e não esperá-la como um benefício. A diferença entre os dois parece se localizar no caráter fronteiriço do narrador, situado entre dois mundos: o de Domingas, marcado pela sua condição servil, pela extrema exploração de seu trabalho, pela dependência afetiva e pela obediência à ordem e aos princípios do favor, e aquele marcado pela ideologia liberal, que valoriza a autonomia do indivíduo, a igualdade entre os homens e o universalismo dos princípios. Assim, ao mesmo tempo que também será submetido a um regime de exploração do seu trabalho e dependerá do favor, Nael freqüentará a escola e ganhará livros, tendo acesso a um “outro universo” que ainda não é o seu. Há, pois, em seu cotidiano uma brecha para que ele alcance a libertação afetiva e financeira, diferentemente de sua mãe, que não conseguirá contrapor a ordem familiar a outras possi-
182
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
bilidades de ser, permanecendo presa aos que abusam de seu trabalho e mesmo àquele que violou seu corpo (Omar). Ao nos reconstruir sua história e reler seu passado, Nael confrontará, portanto, os valores regidos pelos desejos, caprichos e favores dos donos da casa com aqueles do direito e da igualdade, experimentando-se como tendo sido constituído por ordens contingentes e particulares. Essa confrontação é indicada, por exemplo, na hierarquia traçada por ele entre diferentes membros (“legítimos” e “ilegítimos”) da família, graduação correspondente aos cômodos que eles ocupam na casa: Rânia significava muito mais do que eu, porém menos do que os gêmeos. Por exemplo: eu dormia num quartinho construído no quintal, fora dos limites da casa. Rânia dormia num pequeno aposento, só que no andar superior. Os gêmeos dormiam em quartos semelhantes e contíguos, com a mesma mobília; recebiam a mesma mesada, as mesmas moedas, e ambos estudavam no colégio dos padres. (ibidem, p.29-30)
Ao fazer essa comparação, Nael opõe a desigualdade vivida por Rânia (em menor grau) e por ele (mais intensamente) à igualdade entre os gêmeos. Dessa forma, apenas os filhos legítimos e homens têm “direito à igualdade”. Ao examinar a hierarquia familiar, aceita com naturalidade em outro contexto, com os olhos dos princípios da igualdade iluminista, a primeira mostra-se não apenas injusta, mas, sobretudo, nada evidente. E, se ela não é evidente, por que aceitá-la? Nael estará ainda sujeito a caprichos de Zana e dependerá de favores dos membros da família, que lhe proporcionarão momentos de lazer, lhe permitirão se vestir melhor e ter livros para estudar, caminho que o levará a se profissionalizar e a se libertar dessa situação. Mas independentemente dos caprichos e favores que extrapolam o dia-a-dia, variando segundo as circunstâncias e a boa vontade de outrem, Nael tem “deveres” (serviços) e “direitos” (mais favores) na casa. Esses, evidentemente, também de-
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
183
pendem da (boa ou má) vontade dos donos do sobrado, mas obedecem a uma certa regularidade: Podia freqüentar o interior da casa, sentar no sofá cinzento e nas cadeiras de palha da sala. Era raro eu sentar à mesa com os donos da casa, mas podia comer a comida deles, beber tudo, eles não se importavam. Quando não estava na escola, trabalhava em casa, ajudava na faxina, limpava o quintal, ensacava as folhas secas e consertava a cerca dos fundos. Saía a qualquer hora para fazer compras, tentava poupar minha mãe, que também não parava um minuto. Era um corre-corre sem fim. Zana inventava mil tarefas por dia, não podia ver um cisco, um inseto nas paredes, no assoalho, nos móveis. A estátua da santa no pequeno altar tinha que ser lustrada todos os dias, e uma vez por semana eu subia à platibanda para limpar os azulejos da fachada. (ibidem, p.82)
O estabelecimento dessas “regras” deriva em grande parte das decisões e vontades de Zana, em negociação, supomos, com os outros membros da casa e até com vizinhos. Podemos imaginar ainda que elas estão em sintonia com hábitos aceitos na Manaus da época. Contudo, embora correntes no mundo descrito e, portanto, capazes de passar por evidentes, tais determinações constituem, em geral, frutos de arbítrios e costumes entendidos como injustos segundo a óptica defensora dos chamados direitos do homem (e daqueles da criança e do adolescente). Elas estão, portanto, em desacordo com os ideais dos princípios liberais aos quais Nael terá acesso, permitindo que ele as desnaturalize. Esse distanciamento de si mesmo (e abertura para o Outro) aponta, segundo afirmamos, para a realização da chamada experiência originária. Essa parece ter se tornado possível graças à distância existente no presente em relação a ele mesmo: as ordens clientelista e liberal. Distância, portanto, entre os discursos enunciados em nome dos direitos do indivíduo e da igualdade entre os homens e a ordem autoritária que rege o cotidiano e a situação de
184
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
exclusão na qual Nael vive. Por meio dessa experiência, em que o narrador percebe não ser contemporâneo do que o faz ser, não possuindo, pois, uma origem que o levaria a aceitar todas as influências e ordens que o constituem, Nael poderá romper com os limites que o definem – ato que, evidentemente, engendrará outros limites, invisíveis. Ao se perceber constituído por contingências, o narrador poderá descrevê-las como tais, segundo podemos constatar ao lermos o trecho destacado acima. Ele sabe, desse modo, que a permissão para beber e comer depende de uma vontade, assim como as ordens que obedece se subordinam a arbítrios. Em resumo, seus “direitos” e “deveres” dependem de fatores como o incômodo gerado no outro (“podia comer a comida deles, beber tudo, eles não se importavam”) ou suas exigências do momento (“Zana inventava mil tarefas por dia”). A prestação de favores aos vizinhos, por meio dos serviços de Nael, também é enunciada explicitamente pelo narrador. Segundo seu relato, não há dúvidas que os favores prestados são entre Zana e os vizinhos, e não entre Nael e estes, que, segundo conta o narrador, “às vezes nem agradeciam” (ibidem, p.82). Citemos um último exemplo: o aniversário de dezoito anos de Nael, considerado por ele “inesquecível”. O episódio será relatado a partir da correspondência e comparação estabelecida entre ele e Omar. Dessa vez, porém, o narrador receberá um tratamento capaz de fazer concorrência e despertar ciúme e raiva no caçula da casa. Expliquemo-nos: o aniversário foi pouco depois do assassinato do professor de francês Antenor Laval, ocasião em que tanto Nael quanto Omar adoeceram. E a alegria do narrador derivará dos cuidados que recebeu de Halim, Yaqub e Domingas nos dias em que ficou de cama, atenção ainda mais valorizada quando comparada àquela dispensada ao caçula. Passei alguns dias deitado, e me alegrou saber que Halim dera mais atenção ao neto bastardo que ao filho legítimo. Ele sequer pisou na soleira da porta do Caçula. No
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
185
meu quarto entrou várias vezes, e numa delas me deu uma caneta-tinteiro, toda prateada, presente dos meus dezoito anos. [...] Foi um aniversário inesquecível, com minha mãe, Halim e Yaqub ao lado da minha cama, todos falando de mim, da minha febre e do meu futuro. Lá em cima, o outro enfermo, enciumado, quis roubar a comemoração da minha maioridade. Escutamos gemidos, gritos, pancadas, sons de metal, uma zoada dos diabos. [...] Não, ele não deixaria por menos, não ia permitir que eu reinasse um só dia na casa. [...] Zana não se despegava dele; ela se ressentiu com Domingas e Halim, que não tinham ido ver o Caçula. (ibidem, p.200-1)
Nesse trecho, o narrador parece já caminhar em direção à autonomia e à realização como sujeito, incentivada por parte dos membros da casa. Ao menos, ele já é reconhecido como tal por esses personagens, que lhe falaram “de mim, da minha febre e do meu futuro”. Chamamos a atenção para o fato de seu direito a um futuro ser mencionado no momento em que ele alcança a “maioridade”. Essa pode, desse modo, ser interpretada metaforicamente: maioridade no sentido de rompimento com a dependência e submissão. A mesma maioridade, portanto, que foi entendida como alcançada pela razão na era das Luzes. Lembramos a definição de Kant do Iluminismo, tal como esta foi comentada por Foucault (1994b, p.566): Kant indica [...] que esta “saída” que caracteriza a Aufklärung é um processo que nos liberta do estado de “menoridade”. E por “menoridade” ele compreende um certo estado da nossa vontade que nos faz aceitar a autoridade de alguém para nos conduzir nos domínios nos quais convém fazer uso da razão.
A maioridade de Nael, contudo, está ameaçada de roubo, não sendo aceita por Omar, que esbraveja diante de tamanha audácia. Pois, na terra em que ele vive, ela é entendida como pertencendo aos “reis”, como se pode concluir a partir da insinuação de que a comemoração dos dezoito anos, com o simbolismo que esta carrega, implica
186
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
um reinado (“ele não deixaria por menos, não ia permitir que eu reinasse um só dia na casa”). Para libertar-se do estado de menoridade, Nael ainda terá, desse modo, outras conquistas pela frente. Parte delas ele as alcançará num período de sua vida a respeito do qual não nos relata tão minuciosamente. O narrador nos fornece, porém, algumas informações importantes a respeito dessas conquistas: ele se distanciará dos dois gêmeos (e da irmã deles, Rânia), começará a dar aulas no antigo liceu em que estudou (passando a viver, portanto, de seu salário) e iniciará a escrita do que, supomos, se transformará no romance que lemos. Já quase no final desse, tendo recriado seu passado – interpretado-o de forma crítica e completando assim seu rompimento e questionamento da ordem familiar que o sujeitava –, Nael nos narrará o episódio em que Domingas lhe revelou a identidade de seu pai. O narrador optará, porém, por se calar sobre esta identidade, deixando-nos com a dúvida que foi aquela de sua vida: Murmurou que gostava tanto de Yaqub... Desde o tempo em que brincavam, passeavam. Omar ficava enciumado quando via os dois juntos, no quarto, logo que o irmão voltou do Líbano. “Com o Omar eu não queria... Uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado... Ele me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão”. (Hatoum, 2000, p.241)
Nesse mesmo trecho do seu relato, seu nome é pronunciado pela primeira vez, na voz de sua mãe, pouco antes da citação reproduzida acima. Nael, Domingas explica, é uma homenagem ao pai de Halim: “Ele [Halim] foi ao teu batismo, só ele me acompanhou. E ainda me pediu para escolher teu nome. Nael, ele me disse, o nome do pai dele. Eu achava um nome estranho, mas ele queria muito, eu deixei...” (ibidem, p.241). Poderíamos daí deduzir que o narrador alcançou finalmente a condição de sujeito graças à informação a respeito de sua ascendência. Nossa interpretação, entretanto, segue o sentido inverso.
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
187
Defendemos que Nael redige o próprio nome após ter conseguido, por meio da escrita e da memória, criar um eu para falar que recusa qualquer fundamento originário, libertando-se assim não apenas da ausência de um “pai”, mas da necessidade de um solo fundador que garanta o sentido da sua história e uma identidade una e estável para si mesmo. Para elaborar este eu e reinterpretar sua infância, Nael precisou enfrentar a ausência de origem, experiência a partir da qual questionou seu passado, reinventando a si mesmo. Nesse sentido, ele não considera necessário partilhar conosco a identidade deste “pai” (em sentido estrito e amplo), do qual não mais depende. Mais do que isso. Ao mesmo tempo em que nos dá pistas ora de que pode ser filho de Yaqub, ora de Omar, conclui não ter nenhum dos dois como pai: “Meus sentimentos de perda pertencem aos mortos. Halim, minha mãe. [...] O que Halim havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos” (ibidem, p.264). Ao nos revelar e assumir seu nome, Nael afirma, portanto, que sua existência não mais depende do laço paterno ou do reconhecimento de seu nascimento. Do mesmo modo que a personagem do Relato de um certo Oriente, o narrador de Dois irmãos transformou a matéria da sua infância em experiência, e modificou a si mesmo. Por isso, ao romper radicalmente com a sujeição ao passado, “um tempo que morria dentro de mim” (ibidem, p.265), ele poderá nos transmitir seu relato com uma voz independente e crítica do universo que o constituiu. Ao assim fazê-lo, ele nos revela ter se libertado não apenas da submissão financeira à família nuclear do romance, mas também daquela intelectual e afetiva. Podemos também concluir que, ao despedaçar seu antigo eu e recompô-lo num exercício de escrita e rememoração, os narradores dos dois primeiros romances de Hatoum também criaram novos possíveis para o presente. Pois, como vimos, seu ato de mergulho no passado partiu do tempo em que eles vivem, atormentados pelo sofrimento da infância. Nesse contexto, a narrativa desdobrada in-
188
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
terpretou a história relembrada (e, portanto, penetrada pelo infinito) a partir dessa visão perspectiva. E na medida em que a escrita buscava libertar o sujeito da pressão e do peso do passado, ela procurava também romper com a continuidade da história e criar novas continuações para essa, que não fossem repetições do sofrimento de outrora nem conformadas com o peso carregado no presente. A abertura de novos possíveis para o presente também pode ser identificada na chamada experiência originária. Pois, ao atravessarem essa, os narradores desnaturalizaram a si mesmos, seu lugar no mundo e as ordens e fronteiras que os constituíam. Neste caso, o presente deverá ser entendido como contingente, de forma que o sujeito poderá viver a espessura do tempo, abrindo-se para mudanças. A criação de novos possíveis para o presente é, pois, uma das formas pelas quais podemos compreender a escrita literária – e um dos modos de entendermos a pesquisa e a escrita da história. Mas a experiência efetuada pelos narradores, para concluir sua transmissão, precisará contar ainda com o leitor que, quem sabe, ao acompanhar as cadências de retorno, hesitação e ruptura dos dois personagens, sinta-se também convidado a imaginar novas formas de ser, pensar e viver.
Referências BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: . Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. p.103-49. . A imagem de Proust. In: . Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994a. p.36-49. . Sobre o conceito da história. In: . Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994b. p.222-32. CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de. Memórias de um certo relato. São Paulo, 2000. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
Narrar o passado, recriar o presente: a escrita de si em...
189
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: . Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p.15-37. . As palavras e as coisas. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987. . L’écriture de soi. In: 1994a. p.415-31.
. Dits et écrits IV. Paris: Gallimard,
. Qu’est-ce que les Lumières? In: Gallimard, 1994b. p.562-578.
. Dits et écrits IV. Paris:
. História da sexualidade 3: o cuidado de si. 9.ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. . Essais FREUD, Sigmund. Au-delà du principe de plaisir. In: de psychanalyse. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1981. p.41-115. . L’inquiétante étrangeté. In: . L’inquiétante étrangeté et autres essais. Paris: Gallimard, 1985. p.209-63. (Folio Essais) GAGNEBIN, Jeanne Marie. Prefácio: Walter Benjamin ou a história aberta. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. GREFFRATH, Krista R. Proust et Benjamin. In: WISMANN, Heinz. (Org.) Walter Benjamin et Paris: Colloque International 2729 juin 1983. Paris: Cerf, 1986. p.113-31. HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. 2.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. . Dois irmãos. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. KRISTEVA, Julia. Étrangers à nous-mêmes. Paris: Gallimard, 1988. (Folio Essais) ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: . Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969. p.73-95.
191
Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade e o jogo da memória em The fallen idol e When we were orphans Maria das Graças Gomes Villa da Silva*
RESUMO: O objetivo deste ensaio é examinar nas obras The fallen idol, de Graham Greene, e When we were orphans, de Kazuo Ishiguro, os motivos renitentes oriundos do trauma da orfandade para expor o trabalho da memória representado na ficção, seu enlace com dados históricos e culturais e seu relacionamento com o simbólico para a criação das imagens apanhadas nos entrelaçamentos com a cultura e a experiência individual. PALAVRAS-CHAVE:
Memória, trauma, orfandade.
ABSTRACT:
The objective of this essay is to exam in the works The fallen idol, by Graham Greene, and When we were orphans, by Kazuo Ishiguro, the insistent motives caused by the trauma of being an orphan to expose the work of the memory represented in fiction, its link with historical and cultural data and, its relantionship with the symbolic as a way to create the images found in the interlace with culture and individual experience. KEYWORDS:
* Professora doutora assistente da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) – campus de Araraquara (SP).
Memory, trauma, orphanhood.
Graham Greene (1904-1991) pertence à geração de escritores ligados ao modernismo e aos moldes tradicionais da ficção, aliados aos aspectos dinâmicos do experimentalismo de James Joyce. Influenciado nos primeiros trabalhos por Joseph Conrad, o escritor inglês escreve para o público do pós-guerra que assistiu ao colapso do Império Britânico e à decadência dos valores cristãos. Seu interesse recai sobre as ambigüidades e complexidades presentes na luta espiritual do homem contemporâneo em confronto com o materialismo e a espiritualidade. Os heróis de Greene, seres atormentados e solitários, vivem em conflito com as forças sociais. A classe social dos protagonistas
192
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
dá configuração ao contexto histórico e político, ao dilema moral e à crise espiritual em que estão inseridos. O ponto central é o embate entre o bem e o mal, o certo e o errado que convivem no interior do homem. Embora escolha preferencialmente como cenários de suas narrativas países pobres e degradados (América do Sul, África), The fallen idol (Greene, 1973), foco deste estudo, tem por cenário a Inglaterra. Publicado pela primeira vez em 1935 com o título de The basement room, foi adaptado para o cinema com o título de The fallen idol. O texto examinado neste estudo não corresponde à versão fílmica, mas ao texto inicial, conforme afirma Greene no prefácio da nossa edição. A narrativa trata do drama psicológico vivido pelo protagonista, Philip Lane, um garoto de sete anos que, enquanto aguarda a chegada da babá, fica em sua mansão sob os cuidados do casal Baines, mordomo e governanta, porque os pais saem para uma viagem de quinze dias. O texto se sustenta na solidão da criança e no trauma por ela sofrido, motivado pela morte de Mrs. Baines após uma discussão com o marido, que, na ausência da esposa, traz a amante, Emmy, para dormir com ele na mansão. Philip não sabe lidar com os jogos e ardis do mundo dos adultos e acaba por incriminar seu ídolo e amigo mais querido, Mr. Baines, passando o resto da vida a torturar-se com as cenas que levaram à incriminação do mordomo. Trauma, “orfandade” e suspense constituem os núcleos narrativos de The fallen idol e estão presentes também no romance de Kazuo Ishiguro (2000), When we were orphans. A história, construída em primeira pessoa, gira em torno das recordações de um detetive inglês, Christopher Banks, que na infância mora com os pais em Xangai, em um bairro residencial para estrangeiros. Os jogos e astúcias dos adultos interferem na vida de Banks. Aos dez anos de idade, repentinamente, seus pais desaparecem e o garoto se vê obrigado a viver com uma tia na Inglaterra. O trauma o leva, quarenta anos depois, ao bairro dos estrangeiros em Xangai. Reencontra a mãe, velha e desmemoriada, vivendo sob os auspícios da sociedade religiosa Rosedale Manor.
Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade...
1
Rajagopalan (2007) destaca o papel das novas gerações de escritores pós-coloniais que empregam a língua do colonizador com o objetivo de trazer para o primeiro plano questões de poder e de identidade que foram tratadas de forma marginal pelos colonizadores. Em When we were orphans, Ishiguro expõe sem sutilezas o drama vivido por chineses, japoneses e ingleses sob o domínio inglês e ligado ao comércio do ópio na China e, suas conseqüências na guerra sino-japonesa e sua repercussão sobre a Segunda Guerra Mundial. Ao referir-se a obra do escritor sul-africano J. M. Coetzee, Foe, uma revisita ao trabalho de Daniel Defoe Robinson Crusoe, Rajagopalan (2007, p.179) afirma: “There is, in other words, something subtly Derridean about such reversals in that the tables are turned by showing how the spotlight could equally well be turned to what had been sidelined to the margins” [“Há, em outras palavras, algo sutilmente derrideano sobre esses reveses em que mesas são viradas para mostrar como o foco pode igualmente voltar-se para o que tem sido deixado de lado, às margens”, (tradução nossa)]. 2
“Seus pais saíram de férias por quinze dias; ele ficou ‘entre babás’, uma dispensada e a outra que ainda não chegara”. As traduções são de nossa autoria.
193
Kazuo Ishiguro (1954-), escritor japonês radicado na Inglaterra desde 1960, por volta dos cinco anos de idade, parte com os pais de Nagasaki para Londres. Nos anos 1980, produz seus dois primeiros romances, tendo por cenário o Japão. Escolhe outros lugares para as obras posteriores, o que amplia e internacionaliza seus temas, corroborando sua tentativa de não escrever apenas sobre sua experiência como imigrante e seu país de nascimento. Em The remains of the day (1989), retoma o mito de uma “mítica” Inglaterra com o objetivo de retrabalhar ou debilitar ideais ou mitologias que estruturam as nações, as comunidades ou os indivíduos, a fim de analisar os efeitos, conforme ressalta Wong (2005, p.13). Além do internacionalismo, outra característica de Ishiguro é escrever sempre na língua inglesa, o que lhe assegura um lugar na literatura britânica. Como os escritores britânicos contemporâneos, Ishiguro entende que a Grã-Bretanha não é mais o centro do universo, o que reforça seu interesse em enfatizar temas internacionais, que revelam a tensão provocada pelo poder e controle exercido por países com tendências imperialistas.1
Trauma, orfandade e o jogo da memória – motivos renitentes O trauma sofrido pelos protagonistas parece surgir da sensação de se sentirem “abandonados” pelos pais quando crianças, como mostra a cena inicial de The fallen idol: “His parents were gone for a fortnight’s holiday; he was ‘between nurses’, one dismissed and the other not arrived”2 (Greene, 1973, p.153). Embora Philip sinta que começa a viver, porque livre para circular de cômodo em cômodo de sua mansão e conversar com Baines de igual para igual, ficar “entre babás” (“between nurses”), diante do quarto infantil e da porta de entrada, fechada após a partida dos pais, significa enfrentrar a solidão, experiência traumática que paralisará sua vida. De forma sutil, certos elementos contribuem para a exposição de aspectos da vida amorosa dos adultos que o
194
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
menino ainda não sabe como interpretar. Philip, quando vê Emmy pela primeira vez, não atina quanto ao lugar dela em seu mundo. É diferente dos homens e mulheres que visitam os pais de Philip e tem seus gestos imitados pelo menino. É diferente também dos altos funcionários das casas que Philip visita para tomar chá. Tenta ligar a moça com sereias e ondinas, mas ela também não pertence a esse mundo. Deduz que deve ser a sobrinha de Baines. Assim, desconhece o drama vivido por Mrs. Baines que, velha, feia, sempre vestida de negro e coberta de pó, sofre com a idéia de ser traída pelo marido. O mundo de Baines o atrai, especialmente, quando lhe descreve a vida antes do enlace com Mrs. Baines. Vivia na África e tinha quarenta negros sob seu comando e uma arma que nunca precisou usar. Apesar da felicidade de estar com Baines, é obrigado a enfrentar as rabugices de Mrs. Baines, uma verdadeira bruxa aos seus olhos. Algo no porão, onde vive o casal, deixa traços que Philip não sabe ainda julgar: “a strange passion he couldn’t understand moving in the basement room. He saw a small pile of broken glass swept into a corner by a waste-paper basket”3 (ibidem, p.160). Esses traços indefiníveis ajudam a construir o estado aflitivo e expor a cegueira em que vive o menino. Paulatinamente, o trauma vai tomando forma. Segundo Freud (1969b, p.165), há um tipo especial de experiências da máxima importância, para a qual lembrança alguma, via de regra, pode ser recuperada. Trata-se de experiências que ocorreram em infância muito remota e não foram compreendidas na ocasião, mas que subseqüentemente foram compreendidas e interpretadas.
Philip sente que há algo que não domina na vida do casal Baines, apesar de aos poucos ir adentrando às cegas esse mundo, o que o levará a viver sob o efeito das interpretações do dia em que ficou aos cuidados do casal. O choque assemelha-se à experiência infantil mencionada por Freud (1969b), a cena primária. Como só será compreendida posteriormente (nachträglich), não é traumática
Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade...
4
3
“uma estranha paixão, que ele não conseguia entender, movia-se no porão. Viu uma pequena pilha de cacos de um copo no canto ao lado da cesta de lixo”.
“o porta cachimbos na sala de fumar ao lado das presas de elefante, o porta tabaco de madeira entalhada; no quarto de dormir as cortinas rosas e os pálidos perfumes...”
5
“Baines estava desapontado: tudo tinha sido estragado. A sensação de desapontamento era algo que Philip podia compartilhar; como nada sabia sobre amor ou inveja, ou paixão, ele podia compreender, melhor do que qualquer pessoa esse pesar, algo esperado que não acontecia, algo prometido que não se cumpria, algo excitante que se tornava enfadonho.”
195
em si mesma, o que só ocorrerá quando a criança for capaz de atribuir-lhe significado. Segundo Garcia-Roza (2000, p.184), “o que acontece [na cena primária] é sua inscrição inconsciente sem que, no entanto, lhe possa ser atribuído valor traumático”. É só mais tarde, quando a criança pode interpretar a experiência, que esse fator se revela como algo recalcado provocador de efeitos. É o que ocorre com Philip Lane. Os jogos incompreensíveis dos adultos estão distantes de seu quarto infantil e babás. Os pais parecem ausentar-se com freqüência, o que força o garoto a desviar para Baines seu afeto e amor, projetando-os na demonstração de horror a Mrs. Baines, figura assustadora que se mistura com os monstros de suas histórias infantis. Os pais são descritos por meio dos objetos de uso pessoal: “the rack of pipes in the smoking-room beside the elephant tusks, the carved wood tobacco jar; in the bedroom the pink hangings and pale perfumes…”4 (Greene, 1973, p.153), imagens que Philip registra, enquanto vaga pelos cômodos vazios. Os ecos da voz de Mrs. Baines o assombram. Philip contrapõe o azedume de Mrs. Baines aos doces que a governanta gosta de fazer e devorar. No contraponto, a figura de Baines resplandece em desapontamento, o que Philip pode compartilhar: Baines was disappointed: everything was being spoilt. The sensation of disappointment was one which Philip could share; knowing nothing of love or jealousy or passion he could understand better than anyone this grief, something hoped for not happening, something promised not fulfilled, something exciting turning dull.5 (ibidem, p.159).
O menino, que nada sabe sobre amor e paixão, compartilha com seu ídolo o desencantamento com as esperanças perdidas. Certamente, no seu caso, voltadas às expectativas frustradas relacionadas com o amor dos pais. Tudo fica confuso à sua volta, quando, através do vidro da vitrine da confeitaria, vê Baines e Emmy coberta de lágrimas diante dos potes de creme que Mrs. Baines pela ma-
196
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade...
nhã tinha retirado do quarto da mãe e lançado na lixeira. Observa os dois e tenta entender por que Baines está tão feliz e ao mesmo tempo com o desespero no rosto. Para o menino, os amantes vivem um conflito. He was inquisitive and he did not understand and he wanted to know. He went and stood in the doorway to see better; he was less sheltered than he had ever been; other people’s lives for the first time touched and pressed and moulded. He would never escape that scene. In a week he had forgotten it; but it conditioned his career, the long austerity of his life; when he was dying he said: “Who is she”?6 (ibidem, p.163-4)
O foco narrativo, controlado por narrador em terceira pessoa, talvez Philip adulto, volta-se para os fatos ocorridos no passado, jogo sutil que demonstra, no final da narrativa, que Philip recorda, revive e elabora o que lhe ocorreu na infância e lhe causa sobressalto até na hora da morte, marcado pela questão: “Quem é ela?” (Who is she?). Assim, embora a cena de Baines e Emmy se dissipe e pareça cair no esquecimento, condiciona a carreira do protagonista pela austeridade experimentada que o deixa abismado e parece corroborar a visão de Freud (1969b) sobre a experiência infantil compreendida posteriormente. Nessa trajetória, Mrs. Baines é figura importante: “She was darkness when the night-light went out in a draught; she was the frozen blocks of earth he had seen one winter in a graveyard when someone said, “They need an electric drill”; she was the flowers gone bad and smelling in the little closet room at Penstanley”7 (Greene, 1973, p.164). A austera governanta contrasta com a mãe, cujo quarto tem cortinas rosa, potes de creme de beleza e pálidos perfumes, índices de sua feminilidade, sofisticação e requinte. O preferido de Philip, porém, é Mr. Baines, a quem dedica amor e lealdade. Quando, imitando a voz de Mrs. Baines, prega um susto no amigo na confeitaria, o mordomo o perdoa e murmura que os mais fortes sempre vencem. Baines coloca sobre a palma da mão o cabinho e as finas folhas do chá que acabara de tomar e, batendo sobre eles,
8
6
“Ele estava curioso, não entendia e queria entender. Chegou até à soleira da porta para ver melhor; estava menos abrigado que nunca; as vidas de outras pessoas estavam pela primeira vez sendo tocadas, pressionadas e moldadas. Jamais escaparia daquela cena. Em uma semana, já tinha esquecido tudo; mas ela condicionou sua carreira, a longa austeridade de sua vida; e quando à beira da morte disse: ‘Quem é ela’?”
“‘Hoje’, e o cabinho da folha de chá destacou-se, ‘amanhã, quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira, sábado, domingo’, e a folha, fina como um floco, não saia, ficou onde estava, secando sob os sopros de Baines, com uma resistência que jamais se poderia crer que ela possuísse. ‘Os duros vencem’. Disse Baines.”
9
“‘Então, ela é a prima dele’. ‘É isso o que ele disse’, Mrs Baines tocou-lhe suavemente as costas como um relógio coberto de poeira. Ela tentou ser jocosa. ‘Que patife. Não diga a ele que sei, Master Philip’. [...] ‘prometa-me que você não contará. Eu lhe darei o Meccano set, Master Philip...’.”
7
“Ela era a escuridão, quando a luz à noite era apagada por um golpe de ar; ela era os blocos de terra congelados que ele tinha visto no inverno no cemitério, quando alguém disse: ‘Eles precisam de uma furadeira elétrica’, ela era as flores mortas e mal-cheirosas no quartinho em Penstanley.”
10 “Já bastava que viessem a você em sonhos: a bruxa no canto, o homem com uma faca.”
197
nota que as folhas não descolam de sua pele, só o cabinho: “‘To-day’, and the stalk detached itself, ‘to-morrow, Wednesday, Thursday, Friday, Saturday, Sunday’, but the flake wouldn’t come, stayed where it was, drying under his blows, with a resistance you wouldn’t believe it to posses. ‘The tough one wins’, Baines said”8 (ibidem, p.165-6). Philip não tem idade para compreender o que diz Baines nem o dia-a-dia monótono do mordomo, preso a destino inexorável. Quando esse lhe pede para não mencionar nada sobre o encontro na confeitaria, o menino diz que compreende, mas nada entende. As razões que levaram Baines a ver Emmy tão perto da casa de Philip constituem mistérios e segredos para o garoto: a velhice, o tempo que não pode ser perdido e o fato de Baines precisar saber que Emmy estava bem, tudo isso leva Baines a atribuir à esposa seus infortúnios. Mrs. Baines logo descobre tudo: “‘And she’s his niece’. ‘So that’s what he said’, Mrs. Baines struck softly back at him like the clock under the duster. She tried to be jocular. ‘The old scoundrel. Don’t tell him I know, Master Philip’. […] ‘Promise you won’t tell. I’ll give you that Meccano set, Master Philip…’”9 (ibidem, p.178-9). Tenta lhe dar de brinquedo o Meccano set, suplicando que lhe seja fiel, o que o deixa alarmado, pois o brinquedo representa o vínculo que não deseja estabelecer com a governanta. O mundo dos adultos se estende como sombra negra sobre ele e exige cada vez mais participação e promessas difíceis de cumprir. Prometer fidelidade a Mrs. Baines corresponde a trair Baines. A imagem do conflito aparece em sonhos: “It was enough that it came at you in dreams: the witch at the corner, the man with a knife”10 (ibidem, p.171). As figuras oníricas, como a bruxa acuada diante de um homem que empunha uma faca, representam o drama em que Philip está envolvido, enquanto a voz narrativa vai descerrando sua angústia e reforçando o jogo da memória. Mrs. Baines parte às pressas para ver a mãe adoentada e Baines acorda Philip logo cedo para um passeio. No retorno de ônibus, Philip vê Emmy a caminho de sua casa e a
198
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
considera um número que traz má sorte. A experiência infantil, mesclada e realçada pelo jogo da voz narrativa, constitui-se em contraponto revelador das inconsistências experimentadas. Para o menino “abandonado”, a mentira é uma das primeiras a anunciar algo funesto na carta cujo selo tem a figura de Sua Majestade: Mrs. Baines diz que só poderá retornar no dia seguinte. Emmy, como visita na casa, janta com o mordomo e Philip. A carta, interrompendo os bons momentos, tira o apetite de Baines e Emmy. O empregado insiste com a moça para que se alimente bem e finalmente “he made her drink the Harvest Burgundy because he said she needed building up”11 (ibidem, p.176), detalhes que escapam à interpretação do menino. Os mistérios do mundo dos adultos e seus segredos alimentam sua imaginação que lhes dá outros rumos. Philip não pode nem imaginar o que acontecerá, se Mrs. Baines souber da visita e refeição a três. A exigência da presença e amor dos pais, sob o domínio do medo, leva à substituição ou transferência, não de modo consciente e, por deslocamento, vai formando uma cadeia de conexões particulares. Comparando o universo de Baines com o do pai, Philip indaga sobre o mundo além das janelas do porão de onde enxerga tudo de forma fragmentada, como as pernas que vão e vêm, sem que ele possa ver o rosto das pessoas ou, mesmo, sentir a temperatura externa. Baines fala de um calor abrasante, úmido, corrompido e o menino indaga: “Why did father live out there?”12 (ibidem, p.155). Baines responde: é o trabalho dele, um trabalho de homem como o que ele, Baines, tinha na África e que foi interrompido com o casamento com Mrs. Baines. As comparações e deduções de Philip são marcadas pela expressão this is life [isto é a vida], expressa em diferentes tempos verbais, repetida, sempre que o garoto passa por nova experiência. Quando desce pela primeira vez ao porão em busca de Baines, sente que aquela independência corresponde a viver de verdade. As boas-vindas do mordomo o fazem crer que o empregado “was more genial than Philip had ever known him, more at his ease, a man in his
Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade...
13
“era mais genial do que Philip tinha imaginado, mais à vontade, um homem em sua própria casa”.
14 “à mesa com o queixo entre as mãos: isto é a vida; e repentinamente sentiu-se responsável por Baines”.
11
“ele a fez beber o vinho Borgonha, dizendo-lhe que precisa ficar forte”.
15
“Isto era a vida; uma estranha paixão que ele não podia compreender se movia no porão.”
16
12
“Por que o papai vivia lá fora?”
“ [...] antes que o sono e seus inevitáveis terrores viessem rondá-lo: um homem com um chapéu tricolor bate à porta em nome de Sua Majestade, uma cabeça sangra dentro uma cesta sobre a mesa da cozinha e, os lobos siberianos aproximam-se. Ele estava com a mão e pé atados e não podia mover-se; eles saltavam à sua volta respirando pesadamente; Philip abriu os olhos e viu que Mrs. Baines ali estava, o cabelo grisalho desgrenhado caia em fios sobre a face do menino, o chapéu preto de Mrs. Baines estava inclinado para o lado. Um grampo caiu sobre o travesseiro e um fio de cabelo bolorento roçou a boca de Philip. ‘Onde eles estão?’.”
199
own home”13 (ibidem, p.154), sentimento que Philip jamais experimentou junto ao pai, que não é como Baines. O mordomo lhe dá felicidade e bem-estar, pois, this is life. Mrs. Baines, figura que perturba o momento ditoso, manda o menino subir para o quarto, o que o leva a adotar uma postura mais definida. Sentado “at the table with his chin on his hands: this is life; and suddenly he felt responsible for Baines”14 (ibidem, p.158, grifo nosso). Desiste de dar uma volta, cedendo aos caprichos da velha senhora, pois “This was life; a strange passion he couldn’t understand moving in the basement room”15 (ibidem, p.160, grifo nosso). A vida é insípida sem os pais e é um horror viver como órfão com Baines na mansão. Ao deitar-se, após ter jantado com Baines e Emmy, avalia a experiência como “had been life” (isso tinha sido a vida), entregando-se ao horror mesclado a resíduos diurnos e histórias infantis que a noite traz: […] before he slept and the inevitable terrors of sleep came round him: a man with a tricolour hat beat at the door on His Majesty’s service, a bleeding head lay on the kitchen table in a basket, and the Siberian wolves crept closer. He was bound hand and foot and couldn’t move; they leapt around him breathing heavily; he opened his eyes and saw Mrs. Baines was there, her grey untidy hair in threads over his face, her black hat askew. A loose hairpin fell on the pillow and one musty thread brushed his mouth. “Where are they?”.16 (ibidem p.178)
Para Freud (1999, p.51), o impulso instintivo “devido à repressão de seu representante adequado, é forçado a ligar-se a outra idéia, sendo então considerado pela consciência como manifestação dessa idéia”, o que envolve também o relacionamento paterno, pois trata-se do caso do homem dos lobos estudado por Freud. Diz o psicanalista: Após a repressão, esse impulso desaparece da consciência: o pai não aparece nela como um objeto da libido. Substituindo o pai, encontramos num lugar correspondente um animal que se presta, de modo mais ou menos adequado, a
200
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
ser um objeto de ansiedade. [...] O resultado é o medo de um lobo, em vez de uma exigência de amor feita aos pais. (ibidem, p.37)
O tratamento aí empregado é o de condensação e deslocamento, conforme indica Freud (1988). O sonho de Philip mostra seu desamparo e total impotência diante dos horrores que enfrenta, quando um imponente representante de Sua Majestade bate à porta. O menino nada pode fazer senão deixar-se farejar pelos lobos e, de mãos atadas, vê uma cabeça sangrando em uma cesta sobre a mesa da cozinha. Os deslocamentos no pesadelo atuam como “lembranças encobridoras” que, segundo Freud (1969b), mantêm vínculo associativo entre seu conteúdo e o outro que é recalcado. A memória reproduz algo diverso que serve de substituto. “As lembranças da infância dos indivíduos adquirem universalmente o significado de “lembranças encobridoras”, e nisto oferecem uma notável analogia com as lembranças da infância dos povos, preservadas nas lendas e mitos” (ibidem, p.63). No pesadelo, a figura dos lobos reforça a presença da cultura. Afinal, o lobo assombra os homens desde priscas eras com freqüência garantida nos contos de fadas, especialmente quando o tema é abandono e solidão. O menino concentra seu horror nessa figura, que, ao despertar, logo toma a forma da imagem ofegante e desvairada de Mrs. Baines. Não se pode afirmar quais as associações feitas por Philip, uma vez que se trata de um personagem de ficção, mas analogicamente a cabeça na cesta talvez seja a de Baines e o representante de sua Majestade, a severa Mrs. Baines, que representa o pai e a lei, fundindo-se com a imagem do carteiro que traz a carta de Mrs. Baines, cheia de mentiras, sob o selo de Sua Majestade. Mrs. Baines sabe da presença de Emmy em um dos cômodos e, após desvencilhar-se do marido, ainda sob o efeito de sua imagem projetada no espelho, em que a idade e a poeira são suas únicas esperanças, lança-se por sobre a balaustrada da escada, caindo como um saco de carvão
Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade...
17
“Ele amava Baines, mas Baines o tinha envolvido com segredos, com medos que ele não entendia. O resplandecente pensamento matutino ‘Esta é a vida’ tinha se tornado sob a instrução de Baines uma lembrança repugnante, ‘Isso era a vida’: o cabelo bolorento cruzando a boca, a cruel curiosidade, torturante, ofegante ‘Onde eles estão?’, o monte de algodão negro encostado à parede. Isso era o que acontecia quando se amava: você se via envolvido; e Philip esquivou-se da vida, do amor, de Baines com um egoísmo impiedoso.”
18
“da mesma forma como o velho aos sessenta anos surpreendeu mais tarde sua secretária, sua única vigia, perguntando-lhe: ‘Quem é ela? Quem é ela?’ entregando-se pouco a pouco à morte, passando a caminho talvez pela imagem de Baines: Bainess desesperançoso, Baines deixando a cabeça tombar, Baines, ‘confessando’”.
201
no hall de entrada diante do menino e de Emmy. Philip foge, perambula pelas ruas e, ao retornar com um policial, não quer passar pelo hall onde está o corpo da governanta. Mais uma vez, avalia sua existência, retomando a expressão “this is life”. Revê os momentos vividos e toma a decisão de manter-se à margem da vida, do amor, de tudo, temendo os segredos em que está envolvido: He loved Baines, but Baines had involved him in secrets, in fears he didn’t understand. The glowing morning thought “This is life” had become under Baines’s tuition the repugnant memory, “That was life”: the musty hair across the mouth, the breathless cruel tortured inquiry “Where are they?”, the heap of black cotton tipped into the wall. That was what happened when you loved: you got involved; and Philip extricated himself from life, from love, from Baines with a merciless egotism.17 (Greene, 1973, p.192)
Surpreendentemente, como o corpo não está mais no hall, Philip incrimina o amigo, especialmente quando menciona o nome de Emmy. Quem é ela? Por que o corpo não está mais no hall, quer saber o policial. A questão ecoa anos mais tarde de forma alarmante no momento da morte de Philip: “just as the old man sixty years later startled his secretary, his only watcher, asking, ‘Who is she? Who is she?’ dropping lower and lower into death, passing on the way perhaps the image of Baines: Baines hopeless, Baines letting his head drop, Baines, ‘coming clean’”18 (ibidem, p.195). A confissão de Baines põe um ponto final na relação do menino e do mordomo. O ídolo revela toda a sua fraqueza e derrotado, mergulha em sua tragicidade. De acordo com Roy (1966), Graham Greene consegue marcar a trajetória de seus heróis de forma trágica, porque trabalha com o conceito de orgulho. Seus personagens são forçados a enfrentar catástrofes e classicamente assumem dimensões trágicas e heróicas com conotações satânicas, quando comparadas à santidade de seus objetivos. Baines é inocente, mas sua fraqueza foi trair a esposa e com isso o equívoco se instala, levando-o a ser punido cruelmente.
202
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
O que assombra Philip é ter assistido à queda e contribuído para a condenação do amigo. O cenário, a mansão (a Belgravia house),19 tem papel importante. É o espaço em que estão os subalternos, os que habitam o porão e, em especial, um ex-representante do governo britânico na África, que no retorno não encontra ambiente propício à felicidade. O Master Philip, sob os auspícios de Mrs. Baines, é ainda muito jovem para assumir o papel que sua posição sugere e que Mrs. Baines assinala de forma inequívoca. No porão, Baines não pode guardar seus segredos, o lugar é impessoal, não lhe pertence. Vive das lembranças de súdito do Império Britânico na África, destituído de representatividade e poder, um “herói de porão”, que comanda a casa sob o domínio da esposa, enquanto os patrões, legítimos representantes da classe mais elevada, estão ausentes. O título original, The basement room, aponta para essas relações. A queda na mansão pode ser entendida como a do Império Britânico pela perda de poder no final da Segunda Grande Guerra. Master Philip é imaturo para atuar com sabedoria junto aos que ficaram, desempenhando o papel de “órfão”, o que pode também ser aplicado a Baines, abandonado, sem reconhecimento por parte de Sua Majestade e de seu país. Sucessor dos pais na Belgravia house, Philip tem a vida paralisada, como o Meccano set, brinquedo popular na época, do qual jamais se aproxima. O brinquedo formado por partes de metal, como um quebra-cabeça, possibilita entender os princípios da engenharia mecânica, estabelecendo um contraponto entre o engenho, e a experiência pessoal regida pela memória produtora dos efeitos psíquicos, analogicamente representados na narrativa. O pai é a peça que falta no quebra-cabeça, que é a vida desarticulada de Philip. A emblemática mansão e as relações de classe dos habitantes, que colocam sob questão a fraqueza e imaturidade do mestre, assinalam o desapontamento que irá dominar os ingleses com a queda de seu império. Tais referências abarcam o destino de Philip, que se deixa contaminar por sonhos e medos que, distante
Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade...
203
dos engendramentos “políticos”, revelam o caráter do Master. Enfraquecido e desamparado, o “órfão” deixa-se paralisar, abandona o quebra-cabeça e mergulha na lembrança traumática e alienante do jogo da memória.
19
Na introdução a The fallen idol, Graham Greene (1973) comenta que, quando da produção do filme, foi necessário mudar o cenário para uma embaixada, porque a imagem da ampla mansão marcava sobremaneira um período, o pós-guerra, e os produtores do filme não estavam interessados em fazer um filme histórico.
Orfandade, alienação, memória e trauma em When we were orphans
20
“ao longo dos anos, ele tinha se tornado um figura a ser idolatrada e, já nos primeiros dias, após o desaparecimento do meu pai, recordo-me de contemplar a idéia de que eu não precisava me preocupar muito, pois tio Philip podia sempre ocupar o lugar do meu pai”.
O tema da “orfandade” e alienação com seus traumas e implicações políticas, culturais e históricas, amplia-se em When we were orphans, romance de Kazuo Ishiguro Aos dez anos, o detetive inglês, Christopher Banks, protagonista-narrador, sofre com o desaparecimento do pai e, mais tarde, da mãe, levada de casa repentinamente. Mora com a tia na Inglaterra como “órfão”, condição que estende aos colegas do St. Dustan’s, colégio interno. À semelhança de Philip, a experiência de vida do menino Banks é restrita e, ainda na infância idílica em Xangai, substitui a figura paterna pela de tio Philip: “he had become over the years a figure to idolise, so much so that in the first days after my father’s disappearance, I remember contemplating the notion that I need not mind so much since Uncle Philip could always take my father’s place”20 (Ishiguro, 2000, p.126). Christopher Banks ama Miss Hemmings, cuja memória dos pais e, em especial, da mãe influencia sua vida adulta. Jennifer, menina que Banks adota, passa no internato grande parte da infância e adolescência, vendo raramente o pai adotivo. Todos os que têm contato mais próximo com o protagonista-narrador compartilham a orfandade. O tema “when we were orphans” remete sempre à infância com resultados conflituosos na vida adulta, acabando por envolver a relação dos ingleses com a Inglaterra. Em When we were orphans a narrativa inicial corresponde a julho de 1930, com Banks vivendo em Londres embalado por seu sucesso como detetive, e a derradeira também em Londres, em novembro de 1958. Uma série de recordações leva o protagonista a rever a infância, cujos retornos são marcados historicamente, conforme destaca Wong (2005, p.87):
204
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
The next three sections that take place in Banks’s childhood geography agitate his complacency [about his life in London]. These sections document a two-month period (September to October) in 1937, in the midst of the worst fighting in Shangai during the second Sino-Japanese war. In the logic of his own mind, Banks believes that he can solve both the disappearance of his parents from the 1910s and resolve the historical atrocities of war, both in China and the one looming around the world that is precipitating another major world war.21
Tendo como pano de fundo um cenário de guerras (a sino-japonesa e a guerra do ópio entre Inglaterra e China), a infância de Banks é preenchida com brincadeiras e suspenses na vida familiar. Como cidadãos ingleses, ele e, especialmente, a mãe parecem crer na honestidade do Império Britânico, em suas promessas de grandeza, justiça e igualdade, apesar das atrocidades ligadas ao comércio de ópio com a China, às imposições humilhantes para obter o direito de explorar a droga e dominar algumas regiões e portos chineses. Vários acordos buscam encerrar de vez o comércio da droga e vício que atinge milhares de chineses, o que ocorre por volta dos anos 1950. A mãe de Banks, a bela Diana, é incansável em sua campanha contra o ópio, apesar de o marido trabalhar para a Morganbrook and Byatt que negocia a droga. Diana considera as ações da companhia “un-Christian and un-British”22 (Ishiguro, 2000, p.64). Tio Philip, hóspede dos pais de Banks, na época em que chegaram a Xangai, desliga-se da Byatt e funda uma associação filantrópica, The Sacred Tree, dedicada a melhorar as condições de vida na cidade. Amigo da família e muito respeitado por Banks, a quem chama pelo carinhoso apelido de Puffin, é presença constante nas reuniões de Diana Banks, cuja campanha considera uma forma ingênua de participação, algo que os políticos britânicos e a Byatt toleram sob constante vigilância. Diana acredita ter voz ativa e boas intenções, o que acaba por trazer resultados catastróficos para si e seus familiares. O ressentimento pela ausência dos pais aparece já nas primeiras páginas, quando Banks revê, anos mais tarde,
Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade...
21
“As próximas sessões, que dizem respeito à geografia da infância de Banks, agitam sua complacência [a respeito de sua vida em Londres]. Essas sessões cobrem o período de dois meses (de setembro a outubro de 1937), em meio ao pior período de luta em Xangai durante a segunda guerra sinojaponesa.Em sua lógica, Banks acredita que pode resolver tanto o desaparecimento de seus pais, ocorrido nos anos 1910, quanto as atrocidades históricas da guerra, a que ocorria na China e a que ameaçava o mundo que se precipitava em outra guerra mundial.”
22
“não cristãs e não britânicas.”
23 “O trauma dos personagens é trazido à luz lentamente, como se o leitor fosse observando sua revelação e implicação juntamente com os narradores.”
24 “Contemplando-a [a lupa] agora, esse pensamento me ocorre: se a intenção de meus companheiros era de fato chatear-me, bem, então, a piada agora recai sobre eles mesmos. Mas tristemente, não tenho agora como me certificar do que tinham em mente, nem mesmo como, apesar de todas as minhas precauções, eles deram com a minha ambição secreta.”
205
um dos meninos do St. Dunstan’s, Osbourne, que lhe observa que, na época escolar, era considerado “um pássaro estranho”. A expressão desagrada o protagonista-narrador, pois crê que a imitação que fazia dos gestos dos colegas jamais permitiria detectar sua angústia. No entanto, todos sabem de sua tristeza e sonho: ser detetive para encontrar os pais. Para facilitar a tarefa, dão-lhe de presente de aniversário uma lupa, fabricada em Zurique em 1887, que o narrador utiliza por toda a vida. A memória de Banks não lhe é tão fiel quanto pensa. Wong (2005, p.83) afirma que, à medida que os protagonistas-narradores nas obras de Ishiguro vão recordando o passado, novos e surpreendentes sentidos são revelados. “The characters’ trauma is brought to light steadily, as if the reader were encountering its revelation and implication along with the narrators”.23 Banks está sempre avaliando o seu trauma, como um contraponto que propicia novos sentidos e revelações: Gazing at it [the magnifying glass] now, this thought occurs to me: if my companions’ intention was indeed to tease me, well then, the joke is now very much on them. But sadly, I have no way now of ascertaining what they had in mind, nor indeed how, for all my precautions, they had ever gleaned my secret ambition.24 (Ishiguro, 2005, p.10)
A incerteza sobre o que os amigos pensam revela-se no emprego de but sadly e na contemplação da lupa, sublinhando o modo enviesado de ver o mundo. A “vacilação calculada”, estratégia narrativa de Ishiguro, que apóia o exercício de anamnese do narrador, permite ao leitor suspeitar do relato e desvendar novos sentidos na vida do protagonista. Tal estratégia de representação dá ênfase ao trabalho da memória. Segundo Freud (1974), a memória é composta de rastros em constante fluxo que, apagados e retidos no aparelho perceptivo, são sempre lidos a posteriori. É, portanto, memória inconsciente, elemento constitutivo do aparato psíquico. Não se trata da memória-lembrança, memória de acontecimentos, nem memória-souvenir
206
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
bergsoniana. A memória freudiana implica o sistema de neurônios, é memória de traços e de diferenças entre as Bahnungen (inconscientes) [fenômeno relacionado à passagem de um fluxo nervoso nos condutores, que se torna mais fácil pela repetição], conforme destaca Garcia-Roza (2004). Ishiguro trabalha com a representação desse fluxo contínuo, atualizador do passado em When we were orphans, que promove o jogo de instabilidade de sentidos pela hesitação do narrador. Ao comentar sobre a vacilação calculada como estratégia adotada pelo analista na escuta de analisandos, Jorge Forbes (1996, p.19-20) recorda Lacan: “O analisando vai se defrontar aí com o gosto do Dasein, ou com o gosto do seu ser”. Experimentando “o gosto do seu ser” na dúvida, toda vez que volta os olhos ao passado, o narrador e, por extensão, o leitor têm novos insights; Banks se revela aos poucos, enquanto o trauma da perda dos pais toma forma mais consistente e variada. Quando afirma que evitara revelar seus planos futuros para Osbourne, como fizera na época da escola, ocultando dos colegas o desejo de ser detetive, o leitor fica em dúvida sobre a firmeza do intento. A lupa ser de certa forma ultrapassada metaforicamente significa que Banks vê os fatos do século XX com “olhos” de final do século XIX, o que aponta a alienação e distanciamento, acoplados ao desejo de rever os pais perdidos. Embora seja um presente de aniversário, ligado, portanto, ao seu nascimento, o olhar desfocado para outra época o desloca historicamente, reforçando a desconfiança na capacidade de Banks reunir os fatos de sua vida detetivescamente como o faz com os casos policiais. A menção ao colega Osbourne parece confirmar o desvio histórico. O nome do amigo de Banks recorda o do dramaturgo inglês John Osborne, autor de Look back in Anger, drama de 1956, que realça o desencanto com a descoberta de que à Grã-Bretanha, idealizada no período eduardiano e pela qual muitos se sacrificaram nas guerras, falta autenticidade. Para John Osborne, as crenças da infância, reforçadas pelos jornais, o culto à realeza, à Westminster e ao
Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade...
25
“as cartas podiam mentir sem problema algum, mas tornavam a mentira permanente: eram evidências contra você; o tornavam mais mesquinho que a palavra falada”.
26
“A Inglaterra é um país esplêndido” [...]. “Calma, dignificada. Belos campos verdes. Ainda sonho com ela. E a sua literatura. Dickens, Thacheray, Wuthering Heights. Gosto em especial do seu Dickens.”
207
parlamento inglês, como o lugar de manutenção da democracia, não passam, como afirma Innes (1995), de traições fraudulentas. O mesmo ocorre em The fallen idol, de Greene, com a mansão e a imagem de Her Majesty no selo da carta de conteúdo mentiroso. Para Philip Lane, “letters could lie all right, but they made the lie permanent: they lay as evidence against you; they made you meaner than the spoken word”25 (Greene, 1973, p.175). É, pois, a mentira o elemento desestabilizador das relações tanto na mansão de Philip Lane quanto no lar de Christopher Banks. O pai de Banks abandona o lar por outra mulher, deixando filho e esposa entregues à própria sorte e à amizade de tio Philip. A mesma idealização e descrença aparece no romance de Ishiguro. Em poder dos japoneses, Christopher Banks é escoltado até a embaixada inglesa pelo coronel Hasegawa, que lhe diz: “England is a splendid country”[...], “Calm, dignified. Beautiful green fields. I still dream of it. And your literature. Dickens, Thackeray, Wuthering Heights. I am especially fond of your Dickens”26 (Ishiguro, 2000, p.206). O comentário soa irônico diante do horror da guerra sino-japonesa em que ambos estão mergulhados e cuja responsável principal é a política britânica que vê a China como colônia. Os escritores citados não tratam da verde, idílica e digna Inglaterra, mas dos ingleses pobres que levam uma vida desolada e miserável, onde a hierarquia econômica e social separa as classes, deixando que a fome impere e o amor jamais tenha lugar. Os órfãos têm papel de destaque no enredo dos romances, sobretudo de Charles Dickens. De modo sutil e irônico, a narrativa de Ishiguro é trabalhada para revelar sentidos ocultos, coloridos de ironia. Busca desmobilizar a narrativa criada para a nação inglesa, segundo a qual é bela, tranqüila e justa. Para Hall (2005), a narrativa da nação é contada e recontada nas histórias, nas literaturas e meios de comunicação, envolvendo imagens, cenários, panoramas, eventos históricos e rituais que simbolizam as experiências e dão significado e encanto à vida. Desde a imagem de uma verde e agradável terra inglesa, com seu doce e tranqüilo interior, com seus chalés
208
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
de treliças e jardins campestres – “a ilha coroada” de Shakespeare – até às cerimônias públicas, o discurso da “inglesidade” (englishness) representa o que “a Inglaterra” é, dá sentido à identidade de “ser inglês” e fixa a “Inglaterra” como um foco de identificação nos corações ingleses (e anglófilos). (Hall, 2005, p.52-3)
A narrativa, em When we were orphans, sobrepõe-se à narrativa da nação, desentranhando os significados cristalizados e revelando uma outra realidade. A imagem criada para o Oriente é de controle imperial, corrupção e crueldade. A política imperialista e a submissão da China diante aos ingleses servem para mostrar a angústia existencial de seus personagens. Para Said (2007), em Orientalismo, o Oriente é um discurso, uma invenção do Ocidente a partir da criação dos orientalistas, ou seja, aqueles que escrevem e pesquisam sobre o Oriente. Said (2007, p.465) busca “um novo modo de conceber as separações e os conflitos que haviam alimentado gerações de hostilidade, guerra e controle imperial”. Esse novo modo tem se materializado na releitura de obras canônicas que reinvestigam e ultrapassam o controle “sufocante de alguma versão dialética binária do senhor-escravo” (ibidem). Autores, como Salman Rushdie, C. L. R. James, Aimé Césaire, Derek Walcott e outros, a partir da reapropriação da experiência histórica do colonialismo, criam uma “nova estética da apropriação e da reformulação transcendente” (ibidem), à qual se pode acrescentar Ishiguro. A relação de Banks com Osbourne reforça a sensação de falsidade das instituições e a falta de visão ou alienação do narrador. Christopher Banks se interessa pelos relacionamentos do amigo com pessoas importantes. Osbourne sabe como agem os líderes. Daí se surpreender e incomodar-se com a insistência de Banks em combater os crimes e o mal, mas parecer só ter olhos para encontrar os pais na velha Xangai e relacionar-se com pessoas importantes. As pessoas lhe cobram uma participação mais efetiva nas grandes questões mundiais, especialmente políticas.
Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade...
27
“O nazismo representa uma ameaça à cristandade?”
28
“‘Mas devo dizer Mr Banks, que quando o vi, ali do outro lado da sala, eu de fato esperava que você dissesse algo’. ‘Sinto muito, eu estava um pouco cansado essa noite’. [...] ‘Para dizer a verdade, fiquei surpreso por você não se sentir compelido a intervir. Toda essa conversa sobre uma crise na Europa. Você diz que estava cansado; talvez você esteja sendo educado. Mesmo assim, estou surpreso que tenha deixado a oportunidade passar’. ‘Deixado a oportunidade passar?’ ‘O que quero dizer, perdoe-me, é que é bem natural para alguns desses cavalheiros, aqui nesta noite, considerar a Europa como o centro do atual turbilhão. Mas você, Mr. Banks. Claro, você sabe a verdade. Você sabe que o verdadeiro coração da nossa crise atual está um pouco mais adiante, no exterior’. ‘Olhei para ele atentamente e, então disse: Sinto muito, senhor. Mas não estou bem certo onde quer chegar’.”
209
Afinal, Banks viveu em Xangai, tem experiência e conhece de perto os motivos e desdobramentos da presença britânica na China. Um exemplo é a sua passagem pela Royal Geographical Society para ouvir a palestra “Does Nazism pose a threat to Christianity?”.27 Para o palestrante, professor H. L. Mortimer, o sufrágio universal enfraqueceu fortemente as decisões britânicas no âmbito das relações internacionais. Ao término da palestra, o público demonstra outras preocupações, como o avanço das tropas alemãs através das terras do Reno. Banks é interpelado pelo clérigo Canon Moorly, surpreso com o silêncio de Banks: But I must say, Mr. Banks, when I saw you there across the room, I did rather hope you’d say something”. “I’m afraid I was feeling rather tired this evening” […]. “To be quite truthful, I was a little surprised you didn’t feel compelled to make an intervention. All this talk of a crisis in Europe. You say you were tired; perhaps you were being polite. All the same, I’m surprised you let it go”. “Let it go?” “What I mean to say, forgive me, is that it’s quite natural for some of these gentlemen here tonight to regard Europe as the centre of the present maelstrom. But you, Mr. Banks. Of course, you know the truth. You know that the real heart of our present crisis lies further afield”. “I looked at him carefully, then said: I’m sorry, sir. But I’m not quite sure what you’re getting at.28 (Ishiguro, 2000, p.145-6)
Não admira que a mãe e Banks acabem se sentindo “traídos” por tio Philip. A ilusão em que vivem termina de forma insólita: Diana esbofeteia Wang Ku, rico negociante de ópio e figura altamente ligada aos interesses britânicos na China. Tudo isso sob o conhecimento e complacência de tio Philip, que não passa de um ídolo decaído (a fallen idol) aos olhos de Banks e que relata o ocorrido, anos mais tarde, ao agora famoso detetive Christopher Banks: “That day Wang Ku came to your house”, he said. “It’s fitting you should remember that day. […] It was the day your mother discovered that Wang Ku’s motives were far from pure. Put simply, he planned to seize the opium shipments himself. […] Most of us already knew this, but your mother didn’t.
210
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
We’d kept her in the dark […]. Yes, he’d sell the opium to the same people the trading companies did […]. Unfortunately, that day Wang Ku came to your house he said something that for the first time made clear to your mother the reality of his relationship with us”.29 (ibidem, p.310).
Mais tarde, Wang Ku retorna e acaba por levar à força Diana para ser uma de suas concubinas e domesticá-la. Analogamente a Mr. Baines, em The fallen idol, que expia seus erros de forma angustiante e punitiva, cobrindo-se do mal que involuntariamente abate-se sobre ele, tio Philip experimenta paradoxo semelhante: “All these years, you’ve [Christopher] thought of me as a despicable creature. Perhaps I am, but it’s what this world does to you. I never meant to be like this. I meant to do good in this world. In my way, I once made courageous decisions. And look at me now. You despise me”30 (ibidem, p.314). Nesse enredo em que o bem e o mal habitam o interior dos personagens, Diana é um cavalo selvagem a ser domesticado. Sua luta pelos oprimidos é menosprezada, restando apenas a atraente beleza física. Deusa aparentemente indomável cai nas mãos do opressor que, mediante imposições, ganha o direito de ser o seu proprietário sem sofrer nenhuma penalidade. Ainda criança, Banks considerava a mãe figura de peso na luta contra o ópio. Mais tarde, já detetive, descobre que o grande inimigo do ópio em Xangai é, nada mais, nada menos, que tio Philip. Já no final da narrativa, descobre que sua velha mãe sobreviveu ao destino e, sem escolha, consentiu que seu opressor financiasse os estudos do filho. O inquietante entrelaçamento entre o bem e o mal repercute na vida dos protagonistas, que de forma semelhante ecoam os males que também recaem sobre os personagens de Graham Greene, órfãos do apoio que esperam receber da nação inglesa. Graham Greene e Ishiguro registram o desencantamento com as instituições britânicas, como também, e agressivamente, Osborne (1975), em Look back in Anger.31 Em Greene, um ex-representante da coroa britânica na África, Mr. Baines, sente-se deslocado no retorno e não
Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade...
29
“‘Naquele dia em que Wang Ku veio à sua casa’, disse ele. ‘Faz sentido você se recordar daquele dia. [...]. Foi nesse dia que sua mãe descobriu que os motivos de Wang Ku estavam longe de serem puros. Para encurtar, ele planejou apoderar-se ele mesmo dos embarques de ópio [...]. A maioria de nós já sabia disso, mas a sua mãe não. Nós a mantivemos às cegas [...]. Sim, ele venderia o ópio para as mesmas pessoas que negociavam com as companhias [...]. Infelizmente, naquele dia Wang Ku veio à sua casa e disse algo que, pela primeira vez, deixou claro para sua mãe a verdadeira relação que mantinha conosco’.”
30
“Todos esses anos, você [Christopher] me considerou uma criatura desprezível. Talvez, eu seja, mas isso é o que o mundo faz para você. Jamais quis ser assim. Eu pretendia fazer o bem nesse mundo. Do meu jeito, eu uma vez tomei decisões corajosas. E, olhe para mim agora. Você me despreza.”
31
Na peça de Osborne, Colonel Redfern, recordando sua ida à Índia em nome do Império Britânico, no período de 1914 a 1947, registra que seu descontente e furioso genro, Jimmy Porter, talvez tenha razão: “Perhaps Jimmy is right. Perhaps I am a – what was it? an old plant left over from the Edwardian Wilderness. And I
can’t understand why the sun isn’t shining any more” (Osborne, 1975, p.67) [“Talvez, Jimmy esteja certo. Talvez eu seja um – o que mesmo? uma velha planta que sobrou da grandeza do período eduardiano. E eu não consigo entender por que o sol não brilha mais”]. Esse mal-estar, essa sensação de deslocamento reforçada por John Osborne, nessa peça de 1956, torna explícito esse desconcerto, concentrando toda a raiva no protagonista, Jimmy Porter, e nos seus ataques à esposa e amigos. Universitário desempregado, Jimmy, que pertence à classe trabalhadora, não encontra apoio nas instituições britânicas para concretizar seus sonhos e deixa-se dominar por intenso desencanto e ilusões perdidas.
211
passa de um herói de porão que atua como “pai” de um Master imaturo para administrar a emblemática mansão. Ishiguro, em When we were orphans, não focaliza um representante da classe trabalhadora, como Osborne, nem subalternos, como Graham Greene, mas representantes da coroa britânica na China, que ignoram o envolvimento do governo britânico com o comércio torpe do ópio nesse país. Ishiguro, em The remais of the day, também aborda essa “inocência” ou alienação na vida do digno mordomo Stevens. Esses elementos, no relato de Banks, ampliam a sensação de orfandade, quando o protagonista os reelabora mesmo sabendo que as memórias de sua infância lhe escapam. Para Freud (1974), em O bloco mágico, a memória é uma máquina de escritura, um fluxo contínuo, cuja leitura, sempre a posteriori, é re-atualizada. O papel do protagonista-narrador, em When we were orphans, é fundamental na reminiscência atualizadora do passado em que a mescla de dúvidas, incertezas e repressão levam à flutuação dos sentidos. O narrador, recuando no tempo, procura aliar sua história pessoal à história e à cultura, obtendo mesclas de culturas e fatos históricos, no encontro entre Oriente e Ocidente, angustiante para o menino Christopher que recorre a tio Philip para saber como é que pode se tornar inglês. A história oficial jamais revela os reveses, incertezas e desacertos de seus heróis, como o fazem Ishiguro e Greene em The fallen idol. Assim, no exercício de anamnese de Christopher, surgem outras vozes engendrando ficção e história, de forma fragmentada. When we were orphans, citando Ivanhoe, de Walter Scott, sublinha a confluência Oriente-Ocidente, misturando-se às narrativas de samurais. Outras vozes, mescladas na memória do narrador, projetam, mais uma vez, o papel da cultura na formação da identidade de Banks e ressaltam o enlace com a memória e o jogo entre história e História, ampliando sobremaneira a inter-relação entre a sociedade e a textualidade. Banks, folheando uma edição ilustrada da obra, depara com o coronel Chamberlain que, na infância, o acompanhara na viagem à Inglaterra para encontrar a tia. Quando a me-
212
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
mória o leva de volta à infância, a obra é mais uma vez citada. Christopher brinca com Akira Yamashita, criando narrativas dramáticas que crê serem inspiradas em cenas de Ivanhoe, que está lendo, ou, talvez, nas aventuras dos samurais japoneses de que o amigo gosta tanto. O mundo de Christopher Banks vai sendo construído no fluxo constante da memória, na justaposição de narrativas de heróis guerreiros, em tempos e contextos diversificados, sempre com o mesmo enredo: amor, corrupção e morte, o que suaviza sua dor pela ausência paterna. É na mescla de Oriente e Ocidente, sustentada nas relações textuais, políticas e históricas, que Banks tenta dar sentido à vida, criando imagens jamais vivenciadas, que, nos entrelaçamentos da memória com a cultura e a experiência, instituem o amálgama, em que Oriente e Ocidente se complementam. Em Ivanhoe, misto de romance histórico e de cavalaria, os personagens, à semelhança dos de Ishiguro, são “cavaleiros corruptos”. Scott retrata o mundo romântico da cavalaria que fenece sob a arrogância e ignorância do corrupto príncipe John, em contraponto à bondade e bravura de Ivanhoe e do rei Richard. Assim, surgem dois tipos de heróis da cavalaria em Ivanhoe: os corruptos protegidos pelo príncipe John e os justos sob o comando do rei Richard. Em Ishiguro (2000), a “donzela”, Sarah Hemings, a certa altura da narrativa, afirma que só conseguirá sair da situação aflitiva em que se encontra em Xangai com o marido, se alguém lhe vier em socorro: “So then you’ve no immediate plans to leave Shangai?” “Not unless someone comes to the rescue, that is”32 (ibidem, p.174). Sarah e Christopher deixam tudo e partem para Macau, mas, quando surge uma nova pista dos pais de Banks, Christopher abandona Sarah, dizendo: “I say... Look, if we have to wait a few minutes, let me just go and do something”. “Do something? What exactly?” “Just... just something. Look really, I won’t be gone long, just a few minutes. You see, I just have to ask someone something”33 (ibidem, p.238-9). Christopher mergulha nos horrores da guerra sino-japonesa. À procura de alguém que acredita
Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade...
32
“Então, você não tem planos imediatos para deixar Xangai?” “A não ser que alguém venha em meu socorro, é isso.”
33
“Bem... Olhe, se temos que esperar alguns minutos, deixe-me sair só por instantes para fazer algo”. “Fazer algo? O que exatamente?” “Apenas... apenas algo.Veja, de verdade, não vou me demorar, são só alguns minutos. Entenda, vou só pedir algo a alguém.”
34 “enfrentrar o mundo como órfãos, em busca, ao longo desses intermináveis anos, das sombras dos pais desaparecidos”.
213
seja Akira, o amigo de infância, busca também os pais entre os destroços da guerra, afastando-se para sempre da mulher amada. Anos mais tarde, o encontro, em Rosedale Manor, com a velha mãe, desmemoriada pela perda de identidade, sentada diante de um jogo de cartas, cujas regras somente ela domina, tem como cenário um jardim murado, um mundo à parte, esvaziado de sentido, em que ambos nada mais têm a dizer um ao outro. Resta-lhes apenas dar um novo sentido ao que vivem. O memorial de Banks representa a dinâmica das relações de poder que, de forma dramática, desestabilizaram sua vida e a de sua mãe. Como Said (2007) e Hall (2005) demonstram, o poder permanentemente estuda, arquiva, apaga, cria e recria o discurso do poder para lhe dar a configuração desejada. Assim, a partir de Freud (1974), é possível considerar a memória e a história como textos que sofrem inúmeras revisões decorrentes de repressões, negações, apagamentos e censuras. No mundo psíquico, a criação das facilitações (Bahnungen) da passagem da força se dá pela repetição dessas facilitações como trajetos preferenciais da energia, formadoras do aparelho psíquico, viabilizando a vida psíquica, que sempre é atualizada a posteriori diante da resistência oferecida pelos neurônios psíquicos já na primeira impressão. A repetição pode ser considerada como uma espécie de morte em constante tensão com a vida, um “mal de arquivo”, instaurado no interior do mesmo processo que possibilita a atualização. Segundo Derrida (1995, p.187), “a vida já está ameaçada pela origem da memória que a constitui e pela exploração à qual resiste, pela efração (o arrombamento provocado pela inscrição do rastro mnésico) que não pode conter senão repetindo-a”. A última carta de Sarah Hemmings a Banks o leva a considerar que o destino de ambos era “to face the world as orphans, chasing through long years the shadows of vanished parents”34 (Ishiguro, 2000, p.335-6). A caça aos fantasmas e sombras dos pais desaparecidos ocorre de forma difusa, ocultando dores e perdas à semelhança das trepadeiras e
214
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
heras que, na Inglaterra, Christopher admira de ali estarem, em meio ao burburinho da cidade, recobrindo as paredes de finas residências inglesas, o que remete a experiência de Philip Lane, incapaz de escapar do trauma provocado pela ausência paterna na Belgravia house. O jardim murado, local preferido para o encontro com Sarah Hemmings e Diana, é figura recorrente no relato de Christopher Banks, ocultando segredos e desencontros revisitados no jogo da memória em que “the walls themselves were covered with ivy, but somehow one could not avoid the impression of having stepped into a roofless prison cell”35 (ibidem, p.33).
Referências DERRIDA, Jacques. Freud e a cena da escritura. In: . A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995. p.179-227. FORBES, Jorge. Da palavra ao gesto do analista. São Paulo: Jorge Zahar, 1996. p.19-20. FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II). In: O caso de Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1969a. v.XII (1911-1913). . Lembranças da infância e lembranças encobridoras. . Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro: In: Imago, 1969b. v.VI (1901). . Uma nota sobre “O bloco mágico”. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v.XIX, p.285-94. . A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1988. v.1, p.270-322. . Repressão. In: neiro: Imago, 1999.
. Artigos sobre metapsicologia. Rio de Ja-
GARCIA-ROZA, Luiz A. Introdução à metapsicologia freudiana – Artigos de metapsicologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. v.3. GREENE, Graham. The Third man and The fallen idol. London: Heinemann, 1973. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
Graham Greene e Kazuo Ishiguro: suspense, trauma, orfandade...
215
ISHIGURO, Kazuo. When we were orphans. New York: Vintage International, 2000. INNES, Christopher. Modern British drama 1890-1990. Cambridge University Press, 1995. OSBORNE, John. Look back in anger. London: Faber and Faber, 1975. RAJAGOPALAN, Kanavillil. Postcoloniality as translation in action. Revista do GEL, Araraquara, n.4, p.169-86, 2007. ROY, G. Graham Greene’s the power and the glory and other works. New York: Monarch Press, 1966. 35
“as próprias paredes estavam recobertas com hera, mas era impossível evitar a impressão de se ter pisado em uma prisão sem teto”.
SAID, Edward W. Orientalismo – O oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia. das Letras, 2007. WONG, Cynthia F. Kazuo Ishiguro. London: Northcote & British Council, 2005.
217
A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memórias do cárcere Conceição Aparecida Bento*
RESUMO: A escrita autobiográfica comumente é relacionada ao tempo passado. Neste artigo, nós a pensaremos a partir de outro elemento: o espaço. Faz-se necessária, então, uma breve investigação sobre o conceito de espaço, que no texto deixa a sua caracterização de fixidez e passa ser tomado como relacional. Interessa-nos analisar como a prisão, espaço das Memórias do cárcere de Graciliano Ramos, tensiona com as determinações que o poder lhe impõe e, de espaço de desagregação, constitui-se em topos da articulação e inclusão não só de homens, mas também da tradição literária. PALAVRAS-CHAVE:
Memórias do cárcere, prisão, escrita.
ABSTRACT:
Autobiographical writings are normally related to past events. Our thoughts, in this article, come from another point: the space. Thus, space concept, which is disconnected from its fix character and is linked to a relational one, demands a brief investigation. Our interest lies in analyzing how the prison, the space of Ramos’ Memórias do cárcere, deals with the determinations set by the power and the way that the disaggregation space turns into the articulation topos that include not only man, but literary tradition also.
KEYWORDS:
* Professora doutora assistente da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) – Mogi das Cruzes (SP).
Memórias do cárcere, prison, writing.
Os estudos autobiográficos associam-se ao tempo. Comumente caracterizada como a escrita do vivido, esses textos colocam, de início, uma remissão ao tempo. A idéia deixa de lado uma outra dimensão que, se as caracterizações pouco trabalham, a leitura desses textos não permite esquecer. O espaço, como o tempo, neles se apresenta. Poderíamos pensar o espaço a partir da escrita que “espacializa” a história de uma vida, que tenta linearizá-la; tensão
218
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
entre o passado vivido, o presente da escrita e da vida e o futuro da leitura. Esse, entretanto, não será o nosso intuito, embora a escrita, neste texto, seja um dos temas. Do mesmo modo, ainda que a questão seja a do espaço, não entraremos na complexa relação dos textos autobiográficos e dos espaços territoriais nacionais ou econômicos. Pensar as possíveis peculiaridades da escrita autobiográfica latino-americana, africana e européia, nos eixos Norte e Sul, sobretudo em tempos distantes das comunicações em rede ou em espaços em que elas sejam ainda pouco expressivas, talvez não seja uma questão menos importante, mas também não é o nosso tema. Este texto dedica-se a espaço menor, mas não menos significativo, político ou poético: a relação entre o espaço da prisão e a escrita autobiográfica em Memórias do cárcere de Graciliano Ramos. Memórias do Cárcere analisa os meses e os vários lugares de encarceramento do prisioneiro-narrador. A temporalidade – os dez meses passados na prisão – eixo dos capítulos na sucessão de episódios, dilui-se, entretanto, nas raras referências a datas e nas várias menções a um tempo vago, ainda que, por vezes, tais marcas sejam encadeadas: “Decorreu uma semana. Certa manhã” (Ramos, 1969, v.1, p.288); “[...] passou-se o dia, outros dias se passaram, quatro ou cinco talvez mais” (Ramos, 1969, v.2, p.22); “Na verdade o tempo não era o que havia sido: tornara-se confuso e lento, cheio de soluções de continuidade, e nesses hiatos vertiginosos perdia-me, escorregava [...]” (Ramos, 1969, v.1, p.38). O espaço, no texto, sobrepõe-se à temporalidade difusa. Exceto o primeiro volume – “Viagens”, que narra o período no quartel e o trajeto para o Rio –, os demais – “Pavilhão dos primários”, “Colônia correcional”, “Casa de correção” – recebem denominações de espaços prisionais; cada livro incide sobre um cárcere, empareda um lugar e o faz continuar no outro, problematizando a idéia de um espaço fechado. E, aqui, poderíamos pensar a significativa ausência do término, tensão com o fechamento dessa materialidade; insinuação da abertura à leitura ou ainda da perpetuação das mazelas do interior da prisão no espaço
A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memorias...
219
externo, nos homens anfíbios que, já na década de 1930, subiam e desciam os morros cariocas. A prisão, em Graciliano, já nos disse Antonio Candido (2000), é metonímia do mundo. A concepção do homem encurralado e animalizado gera a idéia do mundo como prisão; o seu encarceramento, por sua vez, leva-o à prisão como um mundo. Assim, no espaço externo às grades ou dentro delas, mudam-se as barreiras, mas elas estariam em ambos os espaços: da liberdade completa ninguém desfruta, adverte-nos o narrador logo no início do texto. O primeiro espaço de cárcere é o quartel em Recife: na verdade, me achava num mundo bem estranho. Um quartel. Não podia arrogar-me inteira ignorância dos quartéis, mas até então eles me haviam surgido nas relações com o exterior, esforçando-se para adotar os modos e a linguagem que usávamos lá fora. Aparecia-me de chofre interiormente, indefinido, com seu rígido simbolismo, um quadro de valores que me era impossível recusar, aceitar, compreender ao menos. (Ramos, 1969, v.1, p.33)
As determinações espaciais, por vezes, entremeiamse às manifestações cambiantes da memória que esquece minúcias. Na apresentação do quartel, a precisão de alguns detalhes mescla-se à imprecisão de outros: A minha cama [...] ao fundo, ficava junto a uma janela aberta sobre um pátio cheio de sombras. Na parede onde o meu companheiro se encostava, uma porta fechada; em frente, uma janela, também fechada. Não sei se lavei as mãos e o rosto, esqueci pormenores, ignoro se havia água encanada ou lavatório com jarro. Uma mesinha, duas cadeiras, só. (ibidem, p.38)
A entrada no Porão de Manaus, imagem das mais impactantes na narrativa, apresenta, a partir do jogo entre luz/sombra, “escuridão branca” e “brumas leitosas”, o ambiente sórdido da imundície e prenuncia a animalização das personagens, tal qual um rebanho, aguilhoadas para o interior da embarcação, instadas pelos guardas:
220
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
alcançamos o porto, descemos, segurando maletas e pacotes, alinhávamos entre filas e guardas, invadimos um navio atracado, percorremos o convés, chegamos ao escotilhão da popa, mergulhamos na escadinha. (ibidem, p.88) Erguendo a cabeça via-me no fundo de um poço, enxergava estrelas altas, rostos curiosos, um plano inclinado, próximo onde se aglomeravam polícias e um negro continuava a dirigir-me a pistola. Era como se fôssemos gado e nos empurrassem para dentro de um banheiro carrapaticida. [...] Simples rebanho, apenas, rebanho gafento, na opinião de nossos proprietários, necessitando de creolina. Os vaqueiros, armados e fardados, se impacientavam. (ibidem, p.91)
Do navio passa-se ao “Pavilhão dos primários”, espaço que, do mesmo modo, interessa menos pela caracterização física – “salas à esquerda e à direita de vestíbulo espaçoso. Uma grade ocupava toda a largura do prédio” – do que pelas personagens que habitam o lugar. Já na apresentação inicial, vemos um desfile de personagens e os seus caracteres, e serão esses os protagonistas da narrativa em espaço de multiplicidades: Avançamos entre duas filas de homens que, de punhos erguidos, se puseram a cantar [...] Ri-me interiormente, pensando no que me havia dito o guarda [...] “Vivem cantando e berrando como doidos” [...] Eram trinta ou quarenta pessoas. Notei um rapaz franzinho, quase nu [...]; um vigoroso, de blusa russa [...]; um negro reforçado e lento [...]. (ibidem, p.173-4)
O próximo espaço será a “Colônia correcional”, e nele continuam as imagens do curral e a importância das personagens que o habitam: Entramos num salão estreito e escuro. Pendiam lâmpadas de teto baixo, vidros fuscos, fios incandescentes, a espalhar uma luzinha frouxa e curta: e alguns metros delas os objetos mergulhavam na sombra. Distingui duas alas de mesas compridas; eram duas, se não me engano, ladeadas por bancos. Tombei num deles, cansado. (Ramos, 1969, v.2, p.55)
A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memorias...
221
Saímos e, em linha, fomos levados ao casarão baixo. A alguns metros da porta uma grade se descerrou, e a fileira pouco a pouco mergulhou nela. O tempo se desperdiçara nas idas e vindas, nas buscas, no refeitório sombrio. Quantas horas? A falta de um relógio me desorientava. Supondo havermo-nos retardado ali, de pé, meio indiferentes, avançando um passo, outro passo como bichos miúdos a caminhar para uma goela de cobra; mas isso é reminiscência quase a apagar-se, neblina de sonho. (ibidem, p.55)
O último cárcere, a “Sala da capela”, secciona as personagens: divide burgueses e intelectuais e nele se reencontram vários companheiros do “Pavilhão dos primários”. O “salão muito comprido, onde se alinhavam camas e janelas numerosas rasgavam as duas paredes externas” reenviará ao espaço anterior e, de novo, espaço e personagens se fundem, e reencontramos o caráter indeciso das lembranças: A Colônia ia-se distanciando; a cama, a esteira, o lençol ensangüentado, a tatuagem de Gaúcho e os olhos ferozes de Alfeu confundiam-se. Teriam existido? Afligiu-me reconhecer lacunas em tão pouco tempo, vacilações na memória. Não me seria possível reconstituir o galpão, o refeitório, a generosidade estranha de Cubano, o estertor do vagabundo na imensa noite. (ibidem, p.184)
Os fragmentos mostram os diferentes espaços prisionais percorridos, mas igualmente revelam que, em Memórias, o espaço não se limita ao físico. A sua caracterização se funde às personagens. Não se deve restringi-lo a grades e muros que o delimitam; ele admite caracterizações mais amplas. No texto e em nossa leitura, ele não é apenas uma localização, área circunscrita por limites; mas abre-se, “é esse ser-fora-de-si, essa natureza enquanto ela não se relaciona ainda com ela mesma, enquanto ela não é para si” (Derrida, 1991, p.76) e, assim, possui fisionomia dialética. Não se enclausura em si, isso seria a sua negação: é no “espaçamento” que ele se constitui. É na relação que se define.
222
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
O espaçamento que os fragmentos nos apresentam é duplo. É o físico, que se prolonga na visão e na afirmação do externo, e é também o da enunciação, em que o “eu” não se nega, revela-se pelo deslocamento para o outro, os prisioneiros que com ele dividem o espaço. Salientem-se as peculiaridades do uso que aqui se faz do termo “espaçamento”, que, nesse caso, não indica o hiato, o intervalo entre dois objetos, a interrupção entre dois tempos como, por vezes, os dicionários o definem. Tal como aqui se emprega, indica a continuação, o prolongamento de um elemento em outro, de um ser noutro ser, imagem reforçada pela idéia de implicação. A distância do significado usual do termo justifica-se, pois a constituição da palavra permite a atualização do sentido em que o tomamos. O jogo entre “es”, “ex” aponta o dado externo, o lançar-se fora de si, e o sufixo “mento”, que substantiva a ação, a torna não simplesmente um ato pontual, com início e término, mas ato em que a continuidade no outro se explicita. Matizar a inserção da escrita autobiográfica no espaço é distanciar-se de solipsismos, por vezes, aliados a ela. O espaçamento do corpo e da escrita, formas de exteriorização do freqüentemente concebido como interioridade, impedem o “sujet d’accéder à son ‘ipséité’ de coincider avec lui-même, y compris, paradoxe suprême, avec son propre corps: ils ‘espacent’ le corps par rapport à lui-même”1 (Regard, 2004, p.14). Nessa concepção, o sujeito assume também novos contornos. Não é pensado como mônada ou o quid de uma identidade, mas a partir do seu corpo aponta o mundo. A idéia interessa-nos ao problematizar uma tradição crítica que pensa os escritos autobiográficos, sobretudo, como realidades temporais: história de uma vida e de uma personalidade. Se o espaço constitui e absorve o sujeito, o seu corpo e a sua escrita, o texto autobiográfico será também uma “geografia de si” ou uma “autotopobiografia”, em que o eu não é apenas um outro, como define Lejeune, a partir de Rimbaud, mas é também o outro; do mesmo modo, o espaço não é dado estático e a geografia não é apenas o espaço isolado, mas se definem na relação.
A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memorias...
2
“essa hierarquia, essa oposição, esse cruzamento de lugares”.
3
“O lugar de uma coisa não é senão um ponto em seu movimento.”
4
“lugar definido pelas relações de vizinhança entre pontos ou elementos. Formalmente, pode-se descrevê-los como séries, árvores, redes”.
5
1
“de alcançar a sua ‘ipseidade’ de coincidir consigo mesmo, inclusive, paradoxo supremo, com seu próprio corpo, espaçam o corpo em relação a ele mesmo”.
“que têm a curiosa propriedade de ser em relação com todos os outros lugares, mas de tal modo que suspendem, neutralizam ou invertem o conjunto de relações que se encontram, por eles designados, refletidos ou considerados”.
6
Um outro exemplo é o cemitério: topos com o qual todos se relacionam, apesar da tentativa freqüente de distanciá-lo do campo de visão, de higienizá-lo das marcas da morte. Não só isso: mais ateus nos tornamos, menos acreditamos na vida pós-morte e mais necessidade temos de garantir espaço após ela, diz Foucault.
223
Foucault (2001, p.1572), em conferência na Tunísia, em 1967 – texto publicado apenas em 1984 – reconhece a historicidade dos espaços e alia a contemporaneidade aos espaços relacionais. Diz que a localização, “cette hiérarchie, cette opposition, cet encroisement de lieux”2 que configurava o espaço medieval, foi substituída, com Galileu, pela extensão, “le lieu d’une chose n’était plus q’un point dans son mouvement”.3 No final do século XIX, identifica o início de uma nova concepção: o espaço passa a ser pensado como relacional. Hoje, vivemos o “emplacement” definido “par les relations de voisinage entre points ou éléments; formellement, on peut les décrire comme des séries, des arbres, des treillis”4 (ibidem, p.1574). A despeito disso, habitamos ainda representações de espaços em que a oposição se faz presente: a dessacralização teórica, proposta de Galileu, não alcançou a prática. Há, ainda, entre nós, espaços excluídos ou aqueles pretensamente aceitos, quando, na realidade, representam segregações. Foucault os explicitará como os “qui ont la curieuse propriété d´être en rapport avec tous les autres emplacements, mais sur un mode tel qu’ils suspendent, neutralisent ou inversent l´ensemble des rapports qui se trouvent, par eux, désignés, réflétés ou réfléchis”5 (ibidem). Assim será com a utopia, esse não-lugar, e com as “hétérotopies”, essas utopias realizadas no interior do sistema. “Utopias”, porque são espaços considerados fora dos outros espaços, alheios a estes últimos, quando a eles estão atrelados. A prisão é um exemplo.6 A prisão representa local de segregação, de corte das relações. Em Memórias do cárcere, ela não foge à regra. Tira-se o prisioneiro de seu lugar habitual, ele é desvinculado da família, dos seus afazeres, de uma lógica conhecida e esperada: “a minha vida se diluía, perdia-se além daquele imenso espaço de vinte e quatro horas. Um muro a separar-me dela, a alterar-se, a engrossar, e para cá do muro – nuvens, incongruências” (Ramos, 1969, v.1). O julgamento, por exemplo, expectativa enunciada no terceiro capítulo do primeiro volume, só acontecerá em Memórias do cárcere, na inusitada comédia encenada
224
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memorias...
pelos prisioneiros cinco capítulos antes do fim do último volume: [...] eu estava curioso de saber a argüição que armariam contra mim. Bebendo aguardente, imaginava a cara de um juiz, entretinha-me em longo diálogo, e saía-me perfeitamente, como sucede em todas as conversas interiores que arquiteto. Uma compensação: nas exteriores sempre me dou mal. (ibidem, p.14) Nada afinal do que eu havia suposto: o interrogatório, o diálogo cheio de alçapões, alguma carta apreendida, um romance com riscos e anotações, testemunhas, sumiramse. Não me acusavam, suprimiam-me. (Ramos, 1969, p.21)
A suposta cena, evocada no início da obra, no decorrer da narrativa é ausente. O juiz não se mostra, o prisioneiro não tem o direito a defesa, nem sabe qual a acusação que pesa sobre ele. Nos capítulos finais, a aporia se resolve na ficção. Decorridos os dez meses de cárcere, a sua ausência preenche-se na dramatização. Não é permitido sair da prisão sem o desenrolar da cena, ainda que como farsa. “Não é possível ser julgado sem defesa”, dirá um “ator”. A ficção explícita denuncia a expectativa e aponta a dimensão da lei e do humano que a prisão não acolhe. Nesse sentido, Memórias do cárcere apresenta os horrores dos porões do Estado Novo e também fabula as virtualidades do humano na cena do julgamento que transcende os limites do cárcere e da escrita autobiográfica, ao apresentar a ficção como recurso para dizer o não ocorrido, mas desejado e esperado. A ausência de julgamento isola ainda mais o prisioneiro, desconecta-o da lei exterior e das suas expectativas. A segregação, no entanto, reenvia-nos a uma tradição passada e futura e, de novo, os espaçamentos e as redes explicitam-se. A aproximação da escrita autobiográfica da cena judiciária não é arbitrária. Mathieu-Castellani (1996) afirma que ambas passam pela idéia da culpabilidade e da defesa. O paralelismo pode estreitar-se quando pensamos os textos autobiográficos em que o cárcere se apresenta
7
Entre nós podemos citar o caso de Austregésio Carrano Bueno (2004), que redigiu as suas várias passagens pelos hospitais psiquiátricos em Canto dos malditos, obra publicada pela Rocco e transposta para o cinema com o título de Bicho de sete cabeças.
225
como espaço. Podemos dividi-los naqueles realizados na prisão e nos que, produzidos fora dela, abordam períodos de encarceramento; na escrita dos prisioneiros comuns e na dos políticos, ou ainda, naqueles que se colocam fora da racionalidade aceita, nas prisões-manicômios. À primeira vista, poderíamos identificar uma objeção: a incompatibilidade entre a vigilância do espaço prisional e uma escrita que gira em torno da intimidade. A incompatibilidade não impede a realização da escrita: ao contrário, o ócio, a falta de liberdade parecem reforçar o desejo de produzi-la. Há ainda a ausência ou a arbitrariedade do julgamento; muitas vezes, elas incitam a escrita. MathieuCastellani (1996) refere-se à obra autobiográfica de Althusser, buscando suprir a ausência do processo que não pôde existir; no caso de Graciliano, a escrita, por razões diferentes, aponta o processo inexistente e a arbitrariedade da situação.7 Nos dois casos, no entanto, a escrita tensiona com a heterotipia, com a suspensão proposta pelo espaço carcerário, pois dá visibilidade à falácia do corte das relações. A escrita autobiográfica sobre períodos de encarceramentos possui uma tradição literária. Poderíamos citar Dostoiévski, Camilo Castelo Branco, Gramsci. Não nos interessa pensar quais obras teriam influenciado a escrita de Graciliano. Sabemos, no entanto, da constância da prisão na sua obra ficcional e do seu interesse pela leitura do criminalista Cesare Lombroso. Conhece-se, no Brasil, obra anterior à de Graciliano sobre a prisão. Cinco anos de prisão. Memórias do cárcere, de Santelmo Amador (s. d.), apresenta-nos, segundo o autor, os cinco anos que passou na Casa de Detenção. Percebe-se, na leitura, um tom anedótico, bem como um pendor para a fabulação, apesar da afirmação do caráter de verdade, no início do texto, e do tom categórico na apresentação do lugar: A Casa de Detenção do Rio de Janeiro tem alguma cousa de hospício, de hospital e de inferno, onde os presos,
226
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
doidos, doentes ou satânicos aguardam liberdade, condenação ou remoção penitenciária. (Amador, s. d., p.16)
Se Graciliano segue uma tradição, é resgatado em outra. Após o período da ditadura militar, encontramos, no Brasil, extensa bibliografia sobre encarceramentos e interrogatórios brutais; e nos últimos anos do século XX, uma nova leva de textos assume o espaço prisional, dessa vez com uma diferença: serão os prisioneiros comuns que, cinqüenta anos após Memórias do cárcere, tomam a escrita para inscrever-se na história. Nos três casos – em Graciliano, no período pós-1964 e nos textos do final do século XX – há um ponto comum: os desmandos de Estados de exceção. Em Graciliano, os dos anos 1930; nos intelectuais que escreveram sobre as torturas e os exílios, os dos anos pós1964; e nos presos comuns – com os seus textos cheios da miséria e brutalidade de uma vida sem perspectiva – os dos anos do “Milagre econômico” dos quais resultam. Muito dessa tradição se deve às Memórias do cárcere de Graciliano. Em parte desses textos, sobretudo os de presos políticos, a sua obra é intertexto: [...] começaram a surgir rumores [...] de que alguns presos seriam transferidos do Dops, e as especulações foram inundando corredor e celas [...] Quantos seriam transferidos? Quais seriam selecionados? E transferidos para onde? [...] Para a Invernada de Olaria, onde presos eram tratados como bichos, qualquer um podendo virar presunto por dá cá aquela palha? [...] E surgiam lembranças das leituras de Memórias do Cárcere, do mestre Graciliano, o horror que eram os porões do Pedro I. (Lago, 2001, p.35)
Se a idéia da prisão é a ruptura, a escrita faz movimento contrário. As memórias prisionais não apenas atualizam o arbítrio, mas criam, por meio de uma rede de textos, a cartografia de uma exclusão. A segregação proposta pelo espaço físico é contestada, assim, por outro espaço – o da escrita – que a ela responde ao apresentá-la àqueles fora do cárcere e ao ligar-se a uma tradição que a antecede e a continua. A continuidade é também a da crítica que toma
A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memorias...
227
essa escrita como tema. Cito o trabalho de Philippe Willemart (1983) a respeito de Albertine Sarrazin, as investigações de Andrea Saad Hossne (2005) e de Marcio Seligmann-Silva (2003), a respeito da escrita produzida nas prisões a partir da década de 1980. Na sua dimensão dialógica, a escrita prisional contesta a segregação que o espaço procura inscrever e expande a sua presença para além dos limites da prisão. Mas o espaçamento constituído por meio da escrita tomará outras direções. Relendo o texto a partir da fala de Sobral Pinto, num dos capítulos finais de Memórias do cárcere, encontramos a possível explicação para o encarceramento do prisioneiro-narrador: o teor dos seus romances. A causa da prisão seria a escrita, e é ela que o espaço prisional visaria coibir. Não espanta a idéia. Subjaz a ela a concepção de que a letra é subversiva e deve ser minorada. No caso de Memórias do cárcere, outras idéias, atreladas à escrita e possíveis causas da prisão, parecem reforçá-la; seja a atuação de Graciliano na educação alagoana, suprimindo cantoria patriótica e levando parte da população pobre para a escola, mas não sendo condescendente com ela, como atesta a reprovação da sobrinha de um militar de patente inferior. A tentativa de supressão reverte-se, no entanto, na onipresença da escrita na narrativa e no interior da prisão. Ela atormentará o prisioneiro-narrador, que se debate entre o desejo e o não-desejo de realizá-la: Sempre compusera lentamente: sucedia-me ficar diante da folha muitas horas, sem conseguir desvanecer a treva mental, buscando em vão agarrar algumas idéias, limpálas, vesti-las; agora tudo piorava, findara até esse desejo de torturar-me para arrancar do interior nebuloso meia dúzia de linhas; sentia-me indiferente e murcho, incapaz de vencer uma preguiça enorme subitamente aparecida, e considerar baldos todos os esforços. (Ramos, 1969, v.1, p.65) Necessário escrever, narrar os acontecimentos em que me embaraçava. Certo não os conseguiria desenvolver: faltava-me calma, tudo em redor me parecia insensato Evi-
228
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memorias...
dentemente a insensatez era minha: absurdo pretender relatar coisas indefinidas, o fumo e as sombras que me cercavam. Não refleti nisso. Havia me imposto uma tarefa e de qualquer modo era-me preciso realizá-la. (ibidem, p.117)
A escrita inscreve-se, ainda, nas paredes, na remissão aos comunistas que passaram por aquele espaço. O narrador observa as suas impossibilidades: está em local de difícil acesso, pressupõe uma torre humana para realizá-la e dá visibilidade aos nomes dos membros do ilegal Partido Comunista: As paredes estavam cobertas de inscrições e desenhos; no teto oscilavam penduricalhos feitos com essas lâminas finas de metal usadas em carteiras de cigarros. No meio dos letreiros, alto, onde não chegava braço de homem, uma lista de presos, em tinta azul. Em baixo, uma data e o motivo da prisão. (Ramos, 1969, v.2, p.16)
Assim, a escrita não será apenas o corpo do texto que ela realiza; será também matéria, conteúdo da narrativa. Entremeada às personagens, às dúvidas do prisioneironarrador, ela multiplica as suas manifestações. Uma delas serão anotações que ele espera usar para constituir uma narrativa futura. A escrita estará ainda, nas menções ao romance entregue ao editor, nos contos que intenta escrever, nas referências às obras dos amigos, lidas ou comentadas pelo prisioneiro-narrador na prisão, como a conhecida reflexão sobre o memorialismo em José Lins do Rego. Apesar da tentativa de proibi-la, a escrita é uma personagem. Para nós, a escrita de Graciliano configura a tensão entre o banimento e o acolhimento no interior do cárcere. A escrita responde em Memórias do cárcere ao espaço que se almeja fora da relação: responde ao vazio do processo com a farsa “inventada”, responde à ruptura da vida anterior – “comecei a perceber que as minhas prerrogativas bestas de pequeno-burguês iam cessar, ou tinham cessado” – com a ligação implícita às memórias de prisão, responde à tentativa de suprimi-la com a sua onipresença.
8
“Ainda criança, perdera a família na Guerra Civil, conseguira chegar à Alemanha, onde estranhara o silêncio, a falta de tiros de canhão. Estudante de filosofia e matemática numa universidade, fugira perseguido pelo nazismo, fora terminar o curso na Estônia. Daí o expulsaram. Tinha parentes na China e no Brasil: uma avó no Rio de Janeiro, um tio em Cantão, rico em negócios de petróleo com os americanos. Optara pelo Brasil. E vivia de ensinar quando rebentara a bagunça de 1935. Previdente, desviara de casa objetos nocivos, confiara a um aluno cartas de Trotski, mas com tanta infelicidade que num instante haviam caído os papéis nas mãos da polícia” (Ramos, 1969, v.1, p.175-6).
229
Do ponto de vista da tradição, no entanto, nem sempre a escrita de prisioneiros foi indicativo de resistência. Estudos sobre a produção dessa escrita, no século XIX, nos mostram a sua cooptação pelo viés positivista. Lacassagne, por exemplo, médico-criminalista, seguindo as idéias de Lombroso, esse também leitura provável de Graciliano, incitava os prisioneiros sob a sua responsabilidade a produzir textos autobiográficos. O intuito, no entanto, era claro: usar a escrita como forma de inspeção; acreditava-se que ela poderia dar a conhecer e afirmar o lado patológico desses indivíduos. É um momento em que a escrita, não só no seu conteúdo, mas também na sua forma, é vista como uma ortopedia, e não é arbitrário que a grafologia surja, com aspirações científicas, no período. Ela intentava ler, nos escritos, os desvios dos sujeitos e corrigi-los com determinações sobre a forma correta de escrever. É nesse momento que a pedagogia descreve o bom modo de escrever e sentar-se; é a criação de uma ortopedia da escrita e do escrever que, no seu nascimento, se apropria da escrita prisional. A presença da escrita em Memórias do cárcere ocorre ainda na alusão à escrita dos prisioneiros políticos. No “Pavilhão dos primários”, eles escrevem, lêem, estudam, cantam. Sérgio, na verdade Rafael Kamprad, russo, dá intrincadas aulas de matemática, e, por meio dele, o prisioneiro-narrador mapeia a imigração no Brasil.8 Sérgio Ghioldi, secretário do Partido Comunista Argentino, nascido no Cáucaso, resume a filosofia de Hegel e “embrenhava-se em longas dissertações sobre arte grega e arte egípcia”. Tavares Bastos encarregava-se das aulas de francês; Lacerdão, das de inglês. Em ambiente de intelectuais, a convivência com os operários e os pequenos burgueses era difícil, além da rotatividade dos presos. “As figuras nos pareciam vagas, incompletas; só os caracteres mais fortes conseguiam definir-se. Comunicação difícil, quase impossível: operários e pequenos burgueses falavam línguas diferentes” (Ramos, 1969, v.1, p.213). Se no “Pavilhão dos primários” a escrita é um dado da movimentação dos prisioneiros, na “Colônia correcional”
230
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memorias...
ela escasseia, o que não se explica apenas pelo acirramento da prisão. Encontramos, na “Colônia”, o pedido feito por alguns presos para que o prisioneiro-narrador revise os rascunhos de um relatório, a ser enviado a um deputado, sobre as condições dessa prisão. De início, o pedido é para que “bote as vírgulas e endireite os verbos”, mas o número de erros exige reescrita: “Isso não tem sentido. A correção é indispensável”, afirma o prisioneiro aos seus solicitadores. Há ainda o pedido da elaboração do discurso em homenagem ao aniversário do diretor da prisão. Os dois pedidos indicam afastamento dos prisioneiros da escrita, o que reaparecerá no desejo dos prisioneiros comuns de figurarem em livro. Sem a escrita, eles narram oralmente as suas histórias: Gaúcho começou a procurar-me. À noite acocoravase junto à minha esteira, ficava até a hora do silêncio a entreter-me com a narração de suas complicadas aventuras. Esforçava-me por entendê-lo, às vezes o interrompia buscando compreender alguma expressão de gíria. Vanderlino trocava-me em linguagem comum a prosa obscura, e na ausência dele a conversa arrastava-se, cheia de equívocos e repetição. (Ramos, 1969, v2, p.87)
Desprovidos da escrita alfabética, eles a tangenciam com a ironia, como na conversa em que Gaúcho explica a sua predileção pelo Jornal do Brasil, e no desejo de aparecerem retratados literalmente na publicação futura.9 A ironia indica o distanciamento desses prisioneiros em relação aos encontrados no “Pavilhão” e, penso, remete à enunciação que evita nomear o narrador. Para Gaúcho, a firula do pseudônimo é risível, não há por que esconder-se por trás da linguagem; ele quer ver-se retratado. Do mesmo modo, o uso do jornal como ferramenta de roubo faz rir, por deslocar o seu sentido usual. Há, nos dois episódios, a denúncia da ausência da escrita, ironia diante dos volteios do narrador para não nomear-se, e afirmação na agilidade dos que, sem saber ler, apropriam-se do suporte da leitura para outros fins, descobrindo “utilidade nova da imprensa” (ibidem, p.91).
9
“– Ó Gaúcho, perguntei, você sabe que eu tenho interesse em ouvir as suas histórias? – Sei. Vossa mercê vai me botar num livro. – Quer que mude seu nome? – Mudar? Por quê? Eu queria que saísse o meu retrato”. (Ramos, 1969, v.2, p.88).
231
Cria-se uma divisão entre os prisioneiros que se apropriam da escrita como forma de posicionar-se e aqueles que, longe desse expediente, precisam recorrer ao outro para que esse lhe dê a palavra que falta, como é o caso das narrativas orais de Cubano, Paraíba e Gaúcho que aspiram a adentrar na palavra escrita. Atente-se para a justaposição entre a carência da palavra e a anomia. Na ausência de nomes, esses aparecem associados à geografia, partilhando de uma metonímia que os identifica com o todo, sem os singularizar: “Chamava-se Cubano, tinha este apelido. Em geral, se usavam pseudônimos naquele meio: Gaúcho, Paulista, Paraíba, Moleque Quatro” (ibidem, p.71). Observe-se que a escrita concebida como um dos motivos do confinamento – a escrita que se queria dar aos meninos dos becos de Pajuçara e a escrita dos romances do narrador-prisioneiro, seja a fala de Sobral Pinto – essa escrita, segregada pela prisão, fará frente a essa segregação ao inscrever-se de modo incisivo na narrativa, mas realizará também a denúncia da marginalização pela ausência da escrita –, sejam os episódios citados em que aqueles, à margem do poder político e econômico, aspiram chegar à letra. A subversão ocorre ao captar esses prisioneiros como personagens. A narrativa os insere não apenas como parcela esquecida, que, de modo geral, conhecemos pelas estatísticas, mas lhes dá humanidade. Se não fossem as Memórias do cárcere, dificilmente conheceríamos as histórias dos presos comuns. Conhecemos Ghioldi, Berger, Prestes, que a história preserva nos seus manuais, mas não figuras como José, Paraíba, Gaúcho, Pai-João, Cubano e o menino de Infância. Esses são presas fáceis da truculência e, de novo, lemos Graciliano a partir de nós. Mário Lago (2001, p.60), em narrativa autobiográfica sobre um dos seus vários períodos de encarceramento, o dos anos 1960, cita a prisão, em meio aos agricultores de Capivari, do negro José Emídio de Jesus como “dos casos mais característicos da bestialidade vivida naqueles dias”. Não há justificativa para a prisão, exceto a falta de palavras para explicar-se, o desconhecimento do
232
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
seu nome e o dos filhos.10 Marilena Chauí (1986) alude ao caso de Galdino, caboclo paulista, acusado de incentivo à invasão de terras. Preso, foi enviado ao asilo psiquiátrico; especialistas identificaram no seu riso tímido, no seu olhar fugidio, na pouca verbalização e no excesso de gesticulação sinais de periculosidade e de retardamento mental. Não souberam ou não quiseram ler os sinais da cultura caipira em que o desvio do olhar é sinal de respeito, o corpo é mais expressivo do que a fala e o riso é uma forma de ironizar o saber científico: “A existência de um sujeito social incompreensível e invisível para o conhecimento e o olhar médico foi suficiente para sua invalidação social” (Chauí, 1986, p.36). Nos dois casos, o riso tenso, confundido com a insubordinação, é a forma de expressar-se; por escolha ou não, os gestos e o corpo buscam dizer. Fabiano é a personagem da nossa literatura que melhor se aproxima de Galdino e José Emídio; como eles, preso por não dispor das palavras. Em Memórias do cárcere, o beato José Inácio merecerá considerações análogas: Homem de religião, homem de fanatismo, desejando eliminar ateus, preso como inimigo da ordem. Contra-senso. Como diabo tinha ido ele parar ali? Vingança mesquinha de político da roça, denúncia absurda, provavelmente – e ali estava embrulhado um eleitor recalcitrante, devoto bisonho de Padre Cícero. Com certeza havia outros inocentes, na multidão, de algumas centenas de pessoas. (Ramos, 1969, v.1, p.101)
A atualidade da situação estará no esforço higienista de limpar o espaço urbano dos moradores indesejáveis e na ânsia de sanar a má-consciência ao encontrar catalogação rápida e espaços de confinamento nessas “utopias realizáveis pelo sistema”, no dizer de Foucault.11 Isso nos evidencia que os anos 1980 mudaram pouco o nosso entorno, bem como a ideologia que o envolve. Nesse período, tivemos a publicação dos diários de Carolina de Jesus (1976) e alguns poucos relatos operários, o que é pouco para configurar a aceitação da voz da maioria da popula-
A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memorias...
10
Cito parte do texto de Lago (2001, p.60): “Era tão perigoso o nosso Emídio – e a prova é que mofou cinqüenta dias no Fernando Viana – que um dia os companheiros, de brincadeira, mostraram-lhe uma fotografia de Carlos Lacerda, perguntando se sabia quem era. Riu como fazia diante de tudo que lhe mostravam. Não era bem um rir, mais um arreganhar de gengivas, que dentes já não tinha há muito tempo. E, depois de muito rir, veio a pergunta-resposta do homem que a patrulha do Exército, na Estação Engenheiro Pedreira, concluiu que fosse talvez o líder dos camponeses, o homem que conduziria a reforma agrária, que só podia estar na gare da estação à espera dos companheiros com que ia internar-se no mato e iniciar a guerrilha rural: – O Bijoli, né?”.
11
Faço remissão a caso publicado no jornal Folha de S.Paulo, no dia 22 de maio de 2005 (p.C10), em que moradores do bairro Vila Nova Conceição, espaço com o metro mais caro da cidade, na ânsia de limpar e higienizar a
praça Pereira Coutinho, conseguiram que o poder público internasse, no Pinel, o morador de Rua Manoel Menezes da Silva. Vale a pena citar a fala do secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social que conversou com o morador de rua: “Ele apresenta todas as características de uma pessoa mentalmente enferma: não trabalha, nem como carroceiro, não consegue se limpar, dorme no chão, é refratário ao uso de albergues e equipamentos municipais para alimentação e higiene”. Não se pense, no entanto, que esse pendor higienista seja recente, haja vista o processo de constituição das favelas do Rio e as remoções das favelas em São Paulo que se localizavam nas proximidades de bairros ditos nobres.
233
ção que ainda está bem distante dos avanços editoriais que se iniciaram na década de 1930. O prisioneiro-narrador em Memórias do cárcere engloba, literariamente, os que lhe são diferentes, os Fabianos que chegaram à cidade e, assim, o estatuto político da prisão se alarga. No espaço do desvio, na utopia que se deseja “a-topia”, lugar fora do espaço, o texto denuncia as relações que se desejam suprimir, a resistência é sugerida: a narrativa engloba o desvio. Obra de um sistema que os engendra e os expulsa do seu espaço, os prisioneiros comuns estarão presentes na narrativa. O espaço da prisão não se circunscreve aos contestadores do regime de Vargas. Memórias do cárcere engloba aqueles que coabitam com as figuras do “Pavilhão dos primários”: advogados, médicos, psiquiatras, intelectuais. A narrativa, nesse sentido, reafirma a sua e a nossa dimensão trágica. Na tragédia grega, o espaço da “polis” era o lugar sagrado que não poderia ser contaminado pelo miasma emanado do indivíduo. Esse devia expiar o seu erro com a morte ou o exílio. No espaço de Memórias do cárcere, na visão constante dos morros cariocas e dos seres anfíbios – ora no morro, ora na cadeia –, hoje ainda o nosso entorno, achamos que aquele que concebe o erro é responsável pela máquina que o gera e, ao mesmo tempo, constrói os espaços de exclusão. Nisso, desloca a responsabilidade, lança-a ao indivíduo, transfere-a do espaço coletivo para o espaço individual, e, assim, para encobrir a lógica do seu funcionamento, busca encontrar o “trágos”, o bode expiatório, e isolá-lo; mas, nesse caso, perversão suprema, ele é a conseqüência e não o culpado. A dimensão trágica de Memórias do cárcere reforça o seu caráter metonímico e a sua atualidade: sem pretender fazer obra de tese, a escrita de Graciliano ainda revela as nossas mazelas. A tensão entre a presença e a ausência da escrita, a sua tentativa de supressão e a sua força como resposta nos parecem sugerir a visão da escrita como elemento diferenciador. Ao estabelecer o paralelo entre a história de José e a sua, o prisioneiro reforça a nossa hipótese. A contigüi-
234
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
dade entre elas, o desejo que José tem também de confessar, aqui, por meio da oralidade, de cruzar a história e a História é ainda, na perspectiva do narrador, denúncia dos percalços da ausência do alfabeto: Era vadio e ladrão; no começo da vida a repulsa da mãe e as sovas do padrasto haviam-lhe fechado os caminhos direitos. Fugia de casa, voltava morto de fome, agüentava surras, tornava a fugir. Nem escola, nem trabalho. Com o intuito de prolongar as ausências, obtivera ganhos miúdos pondo em prática as habilidades fáceis de pivete e descuidista. Não sei como José iniciou a história, e causame espanto haver-me escolhido para confidente. [...] O vagabundo falava manso e baixo, como num confessionário e a precisão de responsabilizar a família, justificar-se a um desconhecido, trazia-me ao espírito uma dúvida. Haveria alguma semelhança entre nós? Na verdade, a minha infância não tinha sido muito melhor que a dele. Meu pai fora um violento padrasto, minha mãe parecia odiarme, e a lembrança deles me instigava a fazer um livro a respeito da bárbara educação nordestina. [...] Débil, submisso à regra, à censura e ao castigo, acomodara-me a profissões consideradas honestas. Sem essas fracas virtudes, livre do alfabeto, nascido noutra classe, talvez me houvesse rebelado como José. (Ramos, 1969, v.2, p.169-70)
Na leitura que realizo, a narrativa parece sugerir o intercruzamento do desconhecimento da letra com a prisão. A postura ultrapassa Memórias do cárcere e faz-me pensar no todo da obra de Graciliano, em que a letra pode se expandir para a palavra. Das suas personagens, Fabiano alia-se aos prisioneiros comuns, ele também preso por não saber se explicar, por não encontrar as palavras; Paulo Honório situa-se no limite: possui algumas palavras, mas elas não lhe bastam para dizer a sua dor, daí o recurso à hipótese do taylorismo escritural. No caso do menino de Infância, o aprendizado atrelou-se à dor, mas o seu conhecimento levou-o a identificar a arrogância e a parvoíce no episódio da pronúncia da palavra “Smiles”.12
A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memorias...
12
O episódio “Samuel Smiles” é, a meu ver um, entre vários, primores de Infância. Inicia-se com a referência à professora, Dona Angelina, que não o corrigia quando ele tossia ou pronunciava o nome Smiles de várias formas, passa pelo conhecimento que ela, como ele, pronuncia o nome sem coerência: “presumi que, pelo menos nesse ponto, a rudeza da mulher coincidia com a minha”. Chega em seguida ao professor que o corrigiu e não se contradisse nas pronúncias seguintes: “o professor não podia comparar-se aos viventes comuns. Grave, o dedo na página, articulara: Smailes. Nas lições seguintes percebi que ele não se contradizia”. O final do episódio narra os freqüentadores da venda do pai do menino a rir-se da sua pronúncia. “Ora, um dia, na loja, achava-me remoendo um jornal em voz alta [...] De repente o meu conhecido avultou no papel. Temperei a goela e exclamei: Samuel Smailes. Um dos caixeiros censurou-me a ignorância e corrigiu: Samuel Símiles. Outro caixeiro hesitou entre Símiles e Simíles. Repeti que era Smailes, e isto produziu hilaridade. [...] Cobriram-me de motejos e resolveram adotar a opinião do mulato: Samuel Símiles. Arriei, vencido. Mas sosseguei. Aquela vaia não me alcançava: feria pessoa sabida. Achei apoio, indaguei se as bobagens que a trinca maliciosa me atribuía eram bobagens. Cresci um pouco, esteado no homem que só me ensinou o nome de Samuel
Smiles, e me ensinou muito. Sentado no caixão, [...] ri-me dos três. Idiotas. [...] ‘Samuel Smiles, escritor cacete, prestou-me serviço imenso’”. (Ramos, 1975, p.219, 221, 223). 13 O episódio é citado quando D. Irene vai visitá-lo por ocasião da sua prisão. Rememora-se o esforço da diretora de escola em Pajuçara que em quinze dias em campanha pelo município fez a população da escola crescer de 200 para 800 crianças, 600 delas arrebanhadas nos becos mais pobres do município e que, embora vestidas com decência para a visita do interventor, levou à observação sobre a exposição das misérias.
235
As reflexões a respeito de José enviam-nos ao início de Memórias do cárcere, à atuação na instrução pública de Alagoas: a supressão do hino, “estupidez com solecismo” e a introdução nas escolas dos meninos mais pobres, chocando o interventor: “– Convidam-me para assistir a uma exposição de misérias”.13 Na fala do interventor, na exclusão da letra dos meninos de Pajuçara reafirma-se a divisão do espaço social reproduzida no interior da prisão. A entrada na escrita seria subverter o lugar daqueles “cujo assunto não é cuidar dos ‘logoi’” (Rancière, 1995, p.84). Ademais, não devemos reduzir a importância da escrita que lemos na obra de Graciliano a uma dimensão instrumental. Para mim, Memórias do cárcere, como Infância e a sua obra ficcional estrito senso, representam uma defesa da escrita. E não apenas uma defesa em que se projeta a ascensão ao mercado de trabalho, possuir “profissões consideradas honestas”: Memórias do cárcere, quiçá toda obra de Graciliano, é uma defesa da escrita como um dado do humano, que nos pode levar a pensar sobre o eu, o outro, o mundo. Paulo Honório, Luís escrevem textos autobiográficos assim como o preso-narrador de Memórias do cárcere. A crença na identificação letra/luz pode, no entanto, ser questionada. Nela se pode ler um quê de iluminismo ao aliar o esclarecimento ao alfabeto. Mas, em situações de barbárie tão acirradas, como aquelas em que vivemos, há que matizar a desconfiança da razão. Se aceitamos a crítica de Candido a certo liberalismo que pensa que basta construir escolas para diminuir prisões, parece que Memórias do cárcere deixa entrever o alfabeto como uma das molas de um distanciamento da animalização e do encurralamento do homem. No interior do horror do cárcere, a escrita, ainda que atormentada, obsoleta e difícil, inscreve-se do lado da vida: “necessário escrever, narrar os acontecimentos em que me embaraçava”. O mesmo se pode dizer do espaço externo, como nos faz supor a inserção dos meninos dos becos de Pajuçara nas escolas, sob os cuidados de Dona Jeni e do prisioneiro-narrador.
236
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Se, no entanto, a escrita é denunciada como dado que poderia alterar a situação desses homens, como no paralelo entre o prisioneiro-narrador e José, a narrativa possui caráter disjuntivo; a escrita não se esgota nessa visão. A posse dela é elemento de angústia. O narrador-prisioneiro de Memórias do cárcere tem a escrita, mas isso não elimina o tormento da expressão; consegue escapar do rolo social, tem profissão considerada honesta, insere-se no mercado de trabalho, mas tomba em outras agonias, seja a dificuldade de encontrar a palavra justa, seja a de acertar-se com a narrativa; a dificuldade de escrever em meio à barbárie. A tensão que perpassa essa escrita, ainda quando ela se realiza, segundo a perspectiva do prisioneiro-narrador, sem muita reflexão, reforça que se está dentro da literatura.14 Ao trabalhar essas questões do ponto de vista da narrativa, Memórias do cárcere difere de estudo sociológico sobre as prisões e antecipa discussões. Na França, no início da década de 1970, mais precisamente entre os anos de 1970-1972, surge o “Grupo de Informação sobre as Prisões” (GIP) cujo intuito era dar a conhecer a prisão vista pelos prisioneiros. Composto por Foucault, Deleuze, VidalNaquet, Sartre, entre outros, o grupo surge a partir da proibição da existência da agremiação proletária maoísta e da retomada, pelo governo francês, de um discurso conservador. A prisão de intelectuais e estudantes traz à tona as condições dos cárceres franceses; mas, indagado em entrevista sobre o intuito do grupo, Foucault reitera: “donner le droit à la parole à tous ces gens que l´on a en quelque sorte exclus du discours, exclus de la parole”15 (in Artières, 2003, p.67). Ainda que a idéia de Foucault seja mais abrangente do que aquela que vínhamos desenvolvendo: a “parole” e o “discours” ultrapassando a letra escrita e se insinuando para aqueles imobilizados, pelo poder, de manifestar-se; a idéia fala também dos prisioneiros comuns presentes em Memórias do cárcere. A voz que possuem, seja a profusão de narrativas que relatam, raramente ultrapassou os cercos da prisão. A escrita que lhes permitiria isso, mas certamente não só ela, não chegou até eles.
A prisão e a escrita: desagregação e agregação em Memorias...
14
“Avizinhei-me dos meus troços, afastei a calça e o paletó, dobrados, cuidadosamente, abri a valise, retirei o bloco de papel e um lápis. Arrumei tudo de novo, sentei-me num caixão, pus-me a escrever à luz que vinha da escotilha. Provavelmente fiquei horas a trabalhar desordenadamente. Queria atordoar-me, sem dúvida. As letras se acavalavam, miúdas, para economizar espaço, e as entrelinhas eram tão exíguas que as emendas se tornavam difíceis. Realmente nem me lembrava de corrigir a prosa capenga. Faltava-me certeza de poder um dia aproveitá-la” (Ramos, 1969, v.1, p.117).
237
A prisão, entendida como lugar de exclusão, de separação dos liames que a une a outros espaços, em Memórias do cárcere, será literariamente reconstituída como local de ligação com outros textos e homens. O espaço textual identifica-se com o intercruzamento que não se realiza apenas na perspectiva da escrita, mas também da leitura. O texto de Graciliano, como a prisão, não é ponto, é superfície, é continuação e gerador de outros textos. Assim, a escrita sobre a prisão faz frente às determinações do espaço. Se a retenção do prisioneiro-narrador, por exemplo, procurava inibir a escrita, essa se reafirmará no interior do texto como personagem onipresente, como núcleo de uma tradição – a escrita prisional – e como posicionamento sobre as exclusões que ela pode significar, no caso dos prisioneiros comuns.
Referências AMADOR, Santelmo Cinco anos de prisão: Memórias do cárcere. São Paulo: Empreza Rochéa, s. d. ARTIÈRES, Philippe. et al. Le Groupe d’information sur les prisons: archives d’une lutte 1970-72. Paris: IMEC, 2003. BUENO, Austregésilo Carrano. Canto dos madiltos. São Paulo: Rocco, 2004. CANDIDO, Antonio. Os bichos do subterrâneo. In: antítese. São Paulo: T. A. Queirós, 2000. p.97-118.
. Tese e
CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência. Aspectos da cultura Popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986. DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991.
15
“dar o direito à palavra a todos que, de certa forma, foram excluídos do discurso, excluídos da palavra”.
FOUCAULT, Michel. Des espaces autres. In: II, 1976-1988. Paris: Gallimard, 2001.
. Dits et écrits
HOSSNE, Andréa Saad. Autores na prisão: presidiários autores. Anotações preliminares à análise de “Memórias de um sobrevivente”. Literatura e Sociedade, São Paulo, DTLLC-USP, v.8, p.126-39, 2005. JESUS, Carolina M. de. Quarto de despejo. São Paulo: Edibolso, 1976.
238
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
239
LAGO, Mário. Reminiscência do sol quadrado. São Paulo: CosacNaif, 2001.
Experiência autoritária e construção da identidade em A queda para o alto, de Herzer
MATHIEU-CASTELANI, Gisele. La scène judiciaire de l’ autobiographie. Paris: PUF, 1996.
Arnaldo Franco Junior*
RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. São Paulo: Martins, 1969. 2v. . Infância. São Paulo: Record, 1975 RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. São Paulo: Editora 34, 1995.
A queda para o alto, de Sandra Mara Herzer, suscita uma reflexão sobre as complexas relações que se estabelecem entre contexto e experiência autoritários, escrita autobiográfica e construção da identidade do indivíduo marginalizado. Neste artigo, pretendemos analisar as interações que se dão entre tais instâncias, e como marcam o discurso e a construção da identidade da protagonista desse relato da vida vivida dos quatorze aos dezessete anos em uma unidade da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem/SP). RESUMO:
REGARD, Frédéric. (Dir.) L’autobiographie en Angleterre (XVIIe-XXe siècles): géographie du soi. Saint-Étienne: Université de Saint-Étienne, 2000. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Violência, encarceramento, (in)justiça. Revista de Letras, São Paulo, Unesp, v.43, n.2, p.29-47, jul.-dez. 2003. WILLEMART, Philippe. Escrituras e linhas fantasmagóricas (pontuações lacanianas de um texto literário). São Paulo: Ática, 1983.
PALAVRAS-CHAVE:
Autobiografia, ficção, autoritarismo, identi-
dade, Herzer. A queda para o alto, by Sandra Mara Herzer, gives raise to discussions on the relations between context and experience (both authoritarians), autobiographical writing and construction of identity by marginalized subjects. In this paper, we intend to analyze the interaction among such instances and how they mark main character’s discourse and identity in this tale about her life from fourteen to seventeen years old at State Foundation for Minor’s Welfare of São Paulo (Febem/SP), Brazil.
ABSTRACT:
KEYWORDS:
Autobiography, fiction, authoritarism, identity,
Herzer.
Introdução
* Professor assistente doutor na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de São José do Rio Preto (SP).
A queda para o alto, misto de depoimento autobiográfico com antologia de poemas, foi um dos grandes acontecimentos editoriais do ano de 1982 e mantém-se, ainda hoje, como um sucesso de vendas, ultrapassando, atualmente, a casa da 30ª edição.
240
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Assinado por Herzer, ex-interna da Fundação para o Bem-Estar do Menor (Febem), o livro expõe, por meio da experiência dramática de seu protagonista, o caráter prisional, violento e inadequado à recuperação de jovens delinqüentes, marginais e/ou marginalizados da (e pela) instituição. Amparada pelo então deputado Eduardo Matarazzo Suplicy, a ex-interna da Febem apresentou-lhe poesias e peças de teatro. Suplicy apresentou-a a Rose-Marie Muraro para uma eventual publicação de seus poemas, mas “RoseMarie percebeu que elas teriam muito mais sentido se pudessem estar acompanhadas da própria história de Anderson Bigode (Big) ou de Sandra Mara Herzer” (Herzer, 1983, p.11). À época da produção do livro, Herzer estava sob a responsabilidade legal de Suplicy: “Convidei-a para trabalhar no gabinete durante o primeiro semestre e, em agosto de 1980, indiquei-a para a função de oficial legislativo. Embora apenas com um ginásio precário feito na FEBEM, Herzer sabia escrever bem e datilografar, o que a ajudaria em seu trabalho” (in Herzer, 1983, p.11). No prefácio que abre A queda para o alto, Suplicy nos informa que, em julho de 1982, Herzer fora reprovada num concurso de efetivação na Assembléia Legislativa de São Paulo, mas oferece, também, um dado que nos interessa destacar e que singulariza a trajetória de Herzer no livro: “Mesmo à entrada do exame, os responsáveis duvidaram de sua identidade: Um rapaz com o nome de Sandra Mara?” (ibidem, p.12). Já se põe nessa observação algo que reaparece no prefácio de Suplicy como tentativa de explicação ao fato de que Herzer rejeitava o seu nome e a sua condição biológica de mulher, preferindo identificar-se como homem e assumindo Anderson Herzer como nome. Vejamos os trechos: Havia uma enorme barreira para Herzer conseguir um lugar numa pensão ou arrumar um emprego regular. Pessoa doce, que tratava muito bem aos que lhe respeitavam, capaz de se desdobrar em esforços para fazer um bem a quem necessitasse de alguma ajuda, porém, com uma dificuldade de ser aceita normalmente por todos. Pois ao longo de seu
Experiência autoritária e construção da identidade em...
241
tempo na FEBEM, pouco a pouco, e cada vez mais fortemente, Herzer passou a se sentir e a se portar como se fosse homem. Não sei exatamente as razões, a FEBEM nunca lhe explicou, mas ocorreu com Herzer uma transformação.// Segundo o testemunho da [...] médica ginecologista do Hospital das Clínicas, [...] os seus caracteres sexuais femininos sofreram uma parada em seu desenvolvimento. O diagnóstico completo de seu balanço hormonal ainda não havia sido completado, embora iniciado, por causa de seu receio a respeito de sua própria condição.// Em seu corpo cresceram pelos, seu cabelo foi cortado como o de um rapaz. Passou a usar roupas exclusivamente masculinas. Em todas as unidades femininas da FEBEM, principalmente na Vila Maria em que passou mais tempo, Herzer se tornou, mais que líder, “chefe de família”, pessoa responsável por muitas iniciativas. (ibidem, p.10)
1
Jozef M. Nuttin Jr. (1994), investigando, no campo da psicologia social, as relações entre a eleição de determinados objetos de escolha e o sentimento de pertencimento a si próprio, chegou à conclusão de que, em situação de livre-escolha em relação ao alfabeto, tendemos a escolher, dele, por um critério afetivo, as letras que fazem parte de nosso nome próprio e/ou nome de família. Tais letras de amorpróprio evidenciariam, na preferência afetiva, o sentimento e a percepção de pertencimento a si próprio por oposição àquelas que, rejeitadas, evidenciariam o sentimento/percepção de que algo é alheio, próprio da alteridade.
Suplicy aventa, ainda, a possibilidade de que “o desaparecimento de seu namorado, de apelido ‘Bigode’” (ibidem, p.10) tenha sido um dos fatores “que provavelmente contribuiu para a transformação da personalidade da menina Sandra Mara em Anderson Bigode Herzer” (ibidem, p.10). Independentemente disso, o trânsito entre nomes próprios é um traço relevante no livro de Herzer, que passa do Sandra Mara Peruzzo herdado de seus pais naturais para Sandra Mara Herzer após a orfandade e a adoção pelos tios. A mudança seguinte, produzida por vontade e amor próprio – no sentido de Nuttin Jr. (1994)1 –, se dá, na Febem, alternadamente para Bigode, Anderson Bigode e Anderson Bigode Herzer (Big). Note-se, ainda no sentido de Nuttin Jr., que, nesse processo, a vinculação ao que foi perdido se manifesta na relação anagramática estabelecida entre os prenomes Sandra e Anderson. Acreditamos que esse vínculo seja índice da melancolia do narrador-autor. Suspendamos aqui, por redutora, a possibilidade de Sandra/Anderson Herzer se tratar de um caso clínico de transexualismo ou hermafroditismo. O que A queda para o alto nos revela das relações entre contexto e experiência autoritários e construção da identidade numa instituição
242
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
fechada de natureza prisional? Ele nos revela que, articulados, esses dois dados, com seus respectivos processos, são capazes de produzir uma experiência da impossibilidade de ser e de existir para-além das relações autoritárias e violentas nas quais, por desafio e/ou resistência, a identidade daquele que experimenta a marginalização se baseia para constituir-se e afirmar-se. Isso ganha uma configuração específica no caso de uma orientação sexual de natureza homossexual.
Aspectos da constituição da identidade em A queda para o alto Há alguns aspectos de A queda para o alto que, singularizando o livro, se revelam perturbadores. Especialmente se os considerarmos no contexto de uma reflexão que se disponha a abordar os laços que, de modo dramático, se estabelecem entre o exercício de um poder autoritário e violento – identificado com os aspectos selvagens do patriarcalismo e projetado como expressão da masculinidade no contexto de uma instituição prisional –, e a construção da identidade de crianças e adolescentes que, experimentando a marginalização e o confinamento supostamente voltado para a correção de seus “desvios”, se constitui em diálogo, apesar das desigualdades pressupostas na relação entre autoridades e internos, com os valores afirmados nas práticas cotidianas de arbitrariedade, autoritarismo, violência física e simbólica. Um primeiro aspecto diz respeito ao nome e à identidade do narrador-autor. Herzer trata a si mesma no masculino, concedendo em tratar-se no feminino apenas no início do livro e em pouquíssimos trechos, tratamento esse que é funcional para uma das finalidades do seu texto que é se afirmar, assumindo a posição de herói de seu relato, como homem. E, a partir daí, fazer-se reconhecer pelo outro, seu leitor, como homem. É, pois, Anderson Herzer quem se afirma no livro, tendo Sandra Mara Herzer como base a partir da qual se constituiu, pois que essa primeira
Experiência autoritária e construção da identidade em...
243
identidade e essa primeira condição (de mulher) funcionam como contraponto que, alternadamente, presta-se – via negação – para a afirmação da supremacia da orientação sexual sobre o corpo biológico e sobre a primeira base identitária à qual tanto a família como os representantes da Febem insistem em conformá-la e confiná-la. Ainda, de modo afirmativo, sublinha a singularidade de seu amor por outras mulheres, identificando-se, nas relações amorosas, com o homem que defende e protege a amada e cumprindo, aí, também uma função heróica e ambiguamente maternal em relação às protegidas e às amadas. Ao sublinhar, no relato autobiográfico, uma identidade masculina vinculada ao nome que constrói para si, Herzer nos oferece uma possível pista para que reconheçamos que, em sua experiência adolescente na Febem, caracterizada por práticas sistemáticas de violência física e simbólica, a construção de uma identidade masculina é a saída que encontrou para, além de afirmar o seu desejo por mulheres, resistir e sobreviver tanto às surras regadas a murros, tapas na cara, golpes de cassetete, bem como a trabalhos físicos extenuantes e humilhantes quanto à contínua humilhação de ter a sua condição feminina sublinhada como inferior e/ou anormal pelo exercício brutal da autoridade masculina do então diretor da unidade da Febem da Vila Maria – fato que, dada a natureza institucional da Febem, estendia-se também ao exercício dos demais agentes da unidade. Ao lermos A queda para o alto, não é difícil reconhecer que há uma polarização das identidades masculinas representadas pelo diretor da instituição e por Herzer. À identidade masculina negativa do diretor e de seus agentes contrapõe-se, por meio da rebeldia, das transgressões e, também, da delicadeza e da doçura, a identidade masculina positiva de Anderson Bigode Herzer, nome e ser em que, segundo sugestão do relato, se encontram amalgamadas as qualidades da sensibilidade poética e da delicadeza feminina de Sandra Mara e da coragem, da liderança e da disposição para a lutar pela dignidade, pelo amor, pelo direito ao prazer e pela liberdade de Anderson Bigode.
244
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
O relato, entretanto, também nos sugere que a construção dessa identidade masculina passou pela identificação com a identidade masculina negativa em relação à qual se contrapõe. É preciso ser um “machão” e suportar a violência e a arbitrariedade como tal para resistir à afirmação masculina negativa de um homem que, sendo o diretor da unidade da Febem, encarna tanto a autoridade legalmente constituída como, na prática, os desmandos, caprichos e crueldades de um poder quase absoluto sobre as vidas que lhe foram confiadas. Ser um “machão”, aí, implica portar e construir, para si, as qualidades masculinas a partir das quais se enfrentará o algoz mostrando-se, nesse enfrentamento, melhor do que ele por portar as mesmas qualidades, mas não exercitá-las de modo cruel, arbitrário ou gratuitamente violento. Dois dados do livro são importantes para uma melhor compreensão desse aspecto: a) a construção de um conflito dramático entre o diretor da Febem da Vila Maria e Anderson Bigode Herzer, conflito que se desenvolve por quase todo o relato, intensificando-se à medida que Herzer se afirma como Bigode tanto naquela instituição como, por meio de seus feitos e de sua liderança, estendendo para outras unidades a sua fama e o reconhecimento de seu nome; b) a absoluta ausência, no relato de Herzer, de referências a (prováveis) conflitos entre ela e outras líderes das unidades da Febem pelas quais passou. “Ser homem” será necessário para, por um lado, afirmar-se para o outro como tão ou mais homem do que ele e, por outro lado, para negar, em si, a condição fraca de mulher-objeto de violência, abuso e humilhações naturalizadas pelas práticas institucionais da Febem e, na história pessoal de Herzer, uma espécie de continuidade das violências sofridas na família: tentativa de abuso sexual e marginalização por homossexualidade. Um terrível paradoxo se instala no processo de construção identitária masculina de Herzer pelo fato de que, segundo sugestão do relato, essa identidade reivindica um reconhecimento de sua representação masculina exatamente por esses algozes machos. Isso, por meio de seus
Experiência autoritária e construção da identidade em...
245
feitos e de sua resistência heróica à violência, ao arbítrio e às contínuas humilhações por meio das quais é reconduzida à sua condição de mulher por esses mesmos algozes. O conflito de Herzer com o diretor da Febem da Vila Maria é, disso, a mais gritante evidência, mas tal conflito é estruturalmente reproduzido nos demais embates com agentes das demais unidades da Febem pelas quais a autora também passou. A identidade feminina de Sandra Mara Herzer, já submetida a um simulacro quando de sua assunção do nome Anderson Bigode Herzer na Febem, sofre, nesse conflito, uma segunda negação. Afinal, é com murros e pontapés que nela batem. Autoridade, poder, sadismo e macheza se mesclam, pois, nas práticas afirmadas pelo diretor e seus subordinados sobre os corpos de meninas e moças que, encarceradas na instituição, se dividirão em dois grupos: as meninas e os “machões” – com estes últimos ocupando a posição de “chefes de família”, líderes protetores e, em razão disso, de machos que podem ter uma ou várias mulheres. Os desafios à autoridade do diretor, a liderança na realização de ações de rebeldia e nas fugas, o suportar os castigos e humilhações, tudo isso se presta, nesse terrível paradoxo, também à afirmação da identidade masculina de Anderson Herzer. Embora nos embates regados a espancamentos e castigos, as palavras do diretor e dos agentes institucionais a neguem, essa identidade é reconhecida por meio das ações violentas e arbitrárias que, ultrapassando os limites legais estabelecidos para o exercício da função profissional na instituição, se afirmam como ações de macho sobre o corpo feminino de Herzer e sobre seu processo de construção de uma identidade masculina como também sobre os demais “machões” da Febem. A brutalização do corpo por meio da violência física, o arbítrio autoritário da instituição e, por fim, a violência simbólica reiterada no conflito em que a autoridade masculina se afirma sobre o corpo feminino, regozijando-se, na fala, de sua condição masculina concorrem, na experiên-
246
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Experiência autoritária e construção da identidade em...
cia relatada em A queda para o alto, para a afirmação da identidade masculina de Anderson Bigode Herzer, o herói que, após fazer o seu relato autobiográfico e acrescentar a ele uma seleta de seus poemas, encontra no suicídio simultaneamente uma saída para o impasse de ter de existir fora dos muros e das relações institucionais da Febem e um meio de afirmação de sua (im)possível identidade masculina. Seu suicídio é cifradamente anunciado no poema que, em 5 de agosto de 1982, entrega, assinalando a autoria de Anderson Herzer, a Eduardo Suplicy pouco depois de sua exoneração da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo:
sob o signo de uma memória do futuro (Bakhtin, 1992, p.139), pois, fora da obra, já aparece nela indiciado como passo a ser dado para completá-la. Diferenciando vida e obra de arte, João Wanderley Geraldi (2003, p.45) tem uma interessante observação vinculada ao conceito bakhtiniano: Se, no mundo estético, o futuro da personagem e dos acontecimentos são desde já “conhecidos” do autor [...], no mundo ético, tempo dos acontecimentos, cada um tem a responsabilidade pela ação concreta definida não a partir do passado – que lhe dá condições de existência como um pré-dado –, mas a partir do futuro, cuja imagem construída no presente orienta as direções e os sentidos das ações. É do futuro que tiramos os valores com que qualificamos a ação do presente e com que estamos sempre revisitando e recompreendendo o passado.
MINHA VIDA, MEU APLAUSO Fiz de minha vida um enorme palco/ sem atores, para a peça em cartaz/ sem ninguém para aplaudir este meu pranto/ que vai pingando e uma poça no palco se faz./ Palco triste é meu mundo desabitado/ solitário me apresenta como astro/ astro que chora, ri e se curva à derrota/ e derrotado muito mais astro me faço./ Todo mundo reparou no meu olhar triste/ mas todo mundo se esqueceu de minha estréia/ pois todo mundo tinha um outro compromisso./ Mas um dia meu palco, escuro, continuou/ e muita gente curiosa veio me ver/ viram no palco um corpo já estendido/ eram meus fãs que vieram pra me ver morrer./ Esta noite foi a noite em que virei astro/ a multidão estava lá, atenta como eu queria/ suspirei eterna e vitoriosamente/ pois ali o personagem nascia/ e eu, ator do mundo, com minha solidão.../ morria! Anderson Herzer (Herzer, 1983, p.12, grifos nossos)
Esse poema antecipa a dificuldade posta para o futuro leitor e estudioso, “essa gente curiosa”, o que seria um segundo aspecto perturbador do texto do ponto de vista de sua recepção. Fixemo-nos, no entanto, na relação entre história vivida, autobiografia e ficção. O indiciamento do suicídio, metaforizado no espetáculo descrito no poema entregue a Suplicy (ver grifos na citação), aparecerá mais de uma vez no livro, particularmente nos poemas da segunda parte. O suicídio, aí, fica
247
2
“Servindo para estabelecer uma identificação do Eu (ego) com o objeto abandonado”, tradução minha.
Pode-se estabelecer uma vinculação do conceito de memória do futuro com os processos de elaboração do luto e da melancolia. Segundo Freud (1981, p.2094), a elaboração do luto permite que o eu se liberte da dor da perda e se reintegre à vida e às novas perspectivas que nela se abrem, já a elaboração da melancolia barra a libertação porque a libido permanece presa ao eu, “sirviendo para establecer una identificación del yo com el objeto abandonado”.2 O autor de um relato autobiográfico e testemunhal que experimentou uma catástrofe recupera o que foi (re)constituindo-se, mas o faz porque uma memória do futuro está inscrita nesse processo. No caso de Herzer, a memória do futuro se inscreve no processo melancólico, manifestando-se no indiciamento do suicídio – fato que ela concretizará depois de o livro ficar pronto, mas antes de que ele seja efetivamente lançado. Há, no processo de construção da obra de Herzer, pelo menos dois modos de aparecimento da memória do futuro: o ético e o estético. Do ponto de vista ético, já na biografia de Herzer, pode-se notar um modo de antecipação da tragédia que está por vir. Dos pais adotivos, o relato registra: “Meu pai tinha uma perfumaria. Minha mãe mui-
248
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
tas vezes vendia esses produtos e ia até algumas casas entregá-los” (Herzer, 1983, p.38). Numa dessas saídas da mãe adotiva, a menina a segue e, descobrindo que ela traía o padrasto, revela a ele a verdade, instalando uma crise na família. Tempos depois, trabalhando na perfumaria, dá-se a tentativa de sedução por parte do padrasto: senti seu corpo tocar no meu corpo, e suas mãos me apertaram, aquelas mãos que antes eram tão doces e tão paternas, tornaram-se imundas e nojentas. [...] Eu me virei contra ele, estupidamente, tentando afastá-lo de mim. Consegui me livrar de suas garras sujas, correndo em direção à porta: mas ele me alcançou e eu, tentando fugir, me debatia. Ele se irritou e golpeou com toda a sua força o meu braço esquerdo. Depois, pelo visto, se arrependeu e me soltou. (ibidem, p.41)
A partir daí, Herzer passa a beber, a sair à noite e a chegar tarde em casa – o que, segundo o relato, culmina com sua internação na Febem por ação dos pais adotivos. É curioso o fato de que a estrutura inicial do relato tenha duas “etapas” ou “modos”: a) o início, até o capítulo VI, enfatiza a seqüência de fatos que vai da origem à internação na Febem; b) no capítulo VII, o narrador faz uma parada e, com certa hesitação e cuidados, passa ao relato dos fatos de uma perspectiva mais íntima, emocional. Esse percurso de escrita como que emula o enfrentamento da vivência traumática: o núcleo doloroso só emerge depois de sitiado pela palavra, passando do circunstancial ou factual para a experiência subjetiva dos fatos que, manifesta, atesta uma sensibilidade e uma existência únicas. O suicídio de Herzer, antecipando o espetáculo do lançamento de seu livro, é, pois, o terceiro aspecto perturbador a ser considerado tanto no que se refere à singularização de A queda para o alto quanto para uma reflexão que, como a que aqui esboçamos, pretenda abordar os laços dramaticamente estabelecidos entre o exercício de um poder autoritário e violento, identificado com uma representação agressiva e autoritária da masculinidade, e a cons-
Experiência autoritária e construção da identidade em...
249
trução da identidade da menina que, desejando e amando mulheres e experimentando a marginalização e o confinamento em instituição de caráter prisional, se vê obrigada, de algum modo, a construir, para si, uma identidade masculina tanto para afirmar-se em seu direito ao amor e ao prazer como para resistir e sobreviver a um processo mortal de inferiorização, negação e aniquilamento social e existencial. Ao lançar mão da morte como instituição, o suicídio de Herzer autentica o seu relato e desficcionaliza a sua memória, conferindo-lhe o estatuto de uma verdade individual que exige ser ouvida e, também, afirma a sua identidade como algo paradoxalmente impossível porque somente possível, após a escrita e a publicação do livro, na interrupção da continuidade da existência. Ele é, de certa forma, o meio encontrado por Anderson Herzer para fixar a sua identidade, tornando-a impermeável a questionamentos, tentativas de “correção” ou de conformação social. Nesse sentido, ele é, também, resultado do reconhecimento de que, para a identidade de Anderson Herzer, não existe lugar fora dos muros e das relações de autoritarismo e violência por ele conhecidas também dentro da Febem e, após algum tempo, por ele dominadas. A instituição que concorre para a construção dessa identidade é, pois, a mesma que a tornará inviável fora dos seus limites – o que nos remete a uma das importantes lições de Foucault (1978) em seu História da loucura: a instituição correcional cria os tipos sociais e a idéia de anormalidade (doença, desvio ou crime) da qual os investe para legitimar-se a si mesma e às suas práticas. Coincidência ou não, a estrutura do livro reforça a idéia de que o suicídio é o resultado inexorável do processo protagonizado por Sandra/Anderson Herzer. As duas partes que constituem o livro remetem a dois grandes gêneros de natureza e propósitos distintos, a saber: o épico e o lírico. No relato autobiográfico escrito em primeira pessoa e no masculino, o narrador cumpre a função de herói épico e tomamos contato tanto com a sua origem como,
250
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
especialmente, com seus feitos. É ao seu bom combate, pois, que assistimos, instados a estabelecer, com ele, um vínculo catártico que o reconhece não apenas como vítima, mas também como líder cuja rebeldia porta os valores positivos do amor, da delicadeza, da rejeição ao autoritarismo e à violência e, por fim, do anseio à liberdade e à dignidade. Construído o herói no relato autobiográfico, afirmada a sua coragem de denunciar a estrutura injusta da Febem e as irregularidades ali vividas e presenciadas e, também, reconhecida a sua identidade masculina singular, passa-se à expressão poética dessa identidade, que, por meio da lírica, canta e expõe seus amores, medos, angústias, sonhos e frustrações.
Considerações finais O que se projeta – para além dessa experiência registrada num livro em que o lembrar é, simultaneamente, testemunhar e reviver – como possibilidade de existência para a identidade ali afirmada? Para Anderson Herzer, pelo visto, nada além de uma sua afirmação pelo suicídio, meio paradoxal de, pelo aniquilamento, manter intacta a integridade de seu ser e de sua identidade, reconhecidas, nesse ato extremo vinculado à elaboração da melancolia, como inviáveis: Estado psicológico E de chorar, já sou pranto;/ de relembrar, esquecido,/ nas mãos, palmas calejadas/ cavando desejos, proibidos./ E de pensar, já sou louco,/ não há encontro pra mim,/ não tenho nome em tua lista,/ não iniciei, sou sem fim./ Com tantos erros passados,/ ganhei má fama sozinho,/ com tantos passos errados/ não encontrei meu caminho./ Tentei abrir as mãos e não vi nada,/ nem mesmo aquele beijo da mulher falada,/ nem aquele antigo abraço que ganhei,/ eu lutei... perdi! Porque contigo errei./ E de pecados, sou negro,/ de relutar, sou sem forças,/ de persistir, sou sem vista,/ de agredir, comunista!/ Não tenho eira nem beira,/ não tenho amor para amar,/ não posso amar quem não aceita/
Experiência autoritária e construção da identidade em...
251
lutar e ver fracassar./ E vou seguindo sem luzes,/ ninguém verá minha partida,/ não quero deixar saudades,/ nem prantos na despedida./ E se me quer na lembrança,/ guarde meu nome contigo/ meu nome é nome, só nome/ é simples, mas decisivo. Na flor das noites de sangue/ eu parto sem chorar dor,/ eu parto, mas deixo contigo/ o que fui aqui,/ ... deixo amor. (Herzer, 1983, p.158-9, grifos nossos)
O suicídio integra o livro autobiográfico, instituindo-se como parte da obra escrita por Herzer. É, por assim dizer, o gran finale que enlaça indissoluvelmente obra e vida, figura de complexa natureza e significação: a um só tempo metáfora, símbolo e alegoria – vazadas por dolorosa e amarga ironia – da queda para o alto. Ao suicidar-se, o herói poeta eterniza o nome que, como signo de amor próprio, construiu para si, tanto no mundo ético como no mundo estético, sem, contudo, deixar à vista o deslizamento entre duas identidades: Sandra (San – dra)/ Anderson (An – der – son).
Referências BAKHTIN, Mikhail. O todo temporal do herói (O problema do homem interior, da alma). In: . Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.115-51. FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978. . Obras completas. FREUD, Sigmund. Duelo y melancolía. In: 4.ed. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1981. v.2, p.2091-2100. GERALDI, João Wanderley. A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção ética e estética. In: KRAMER, S.; FREITAS, M. T. (Org.) Ciências humanas e pesquisa – Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003. v.107, p.39-56. HERZER, Sandra Mara. A queda para o alto. 8.ed. Petrópolis: Vozes, 1983. NUTTIN JUNIOR, Jozef M. Lettres d’amour-propre: conséquences affectives de la pure appartenance à soi. In: MOSCOVICI, S. (Org.) Psychologie sociale des relations à autrui. Paris: Nathan Université, 1994. p.11-39.
253
Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey Jean Pierre Chauvin*
Memórias de um gigolô, publicado em 1968, marca o início do regime militar no Brasil, enquanto retoma a “literatura urbana” de melhor qualidade. Protagonizado por um malandro que relembra o Leonardo (Memórias de um sargento de milícias) de Manuel Antônio de Almeida, o romance de Marcos Rey tem algo do sarcasmo machadiano e do deboche barretiano. Estilisticamente, está mais próximo dos malandros criados durante nosso romantismo e realismo que de Marques Rebelo, Rubem Fonseca ou Paulo Lins.
RESUMO:
PALAVRAS-CHAVE:
Marcos Rey, Memórias de um gigolô, Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis. Memórias de um gigolô, published in 1968, marks the beginning of the military regimen in Brazil, while it retakes a better quality “urban literature”. Leaded by one smart guy that remakes Leonardo (Memórias de um sargento de milícias) by Manuel Antonio de Almeida, Marcos Rey’s novel has something of the Machado de Assis’ sarcasm and Lima Barreto’s debauch. In a stylistic point of view, it is closer to the figure created by our romantic or realistic writers and distant from Marques Rebelo, Rubem Fonseca or Paulo Lins.
ABSTRACT:
KEYWORDS: Marcos Rey, Memórias de um gigolô, Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis.
“O pior é isso, ter que justificar a miséria, explicála, catalogá-la e depois pedir desculpas.” (Memórias de um gigolô, p.140)
I * Professor doutor pesquisador na Faculdade de Tecnologia (Fatec) – São Paulo (SP).
Marcos Rey estreou na literatura em 1953, aos 28 anos, e só parou pouco antes de morrer (1999). Escritor
254
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
versátil – do romance de tipos paulistanos à literatura infanto-juvenil, repleta de aventuras e mistérios –, a verve é um dos traços mais marcantes em seus livros. Polígrafo como Machado, o autor ganhou renome graças às suas crônicas semanais, que revelavam meandros pouco visitados de S. Paulo [...]: o olhar voltado para a cidade e os seus mistérios, a acuidade na percepção e fixação dos tipos humanos mais representativos do jeito de ser paulistano, expressos numa linguagem desataviada, colhida na fonte popular, repassada de sentimento e empatia pelos humildes, como uma espécie de Balzac dos humilhados e ofendidos, dos marginais, dos boêmios. (Moisés, 2001, p.357)
Publicado há quatro décadas (1968), Memórias de um gigolô é obra cativante, produzida por um escritor reconhecidamente habilidoso em termos de invencionice, multiplicidade de temas e enredo, verificados na notável articulação dessa trama. Mariano é um dos grandes protagonistas da chamada “literatura urbana”, que teve início em nosso romantismo, com Manuel Antônio Almeida (Memórias de um sargento de milícias, 1855), refinou-se com o realismo de Machado de Assis (Memórias póstumas de Brás Cubas, 1881) e o naturalismo de Aluísio Azevedo (O cortiço, 1890). O tema também foi cultivado por Lima Barreto (Numa e a ninfa, 1915), Marques Rebelo (Marafa, 1935) e Cyro dos Anjos (O amanuense Belmiro, 1937). É curioso que de tempos em tempos a ambígua figura do malandro (seja ele carioca, seja paulistano) ressurge – nítida e escorregadia –, em meio a enredos da melhor qualidade. É notória a identificação entre esse verdadeiro arquétipo nacional e seus variados tipos com o elemento urbano. Em certos momentos, o narrador Mariano lembra o sexagenário Gonzaga de Sá, de Lima Barreto: Gostava do mar, porém meu amor era pela cidade. Sou um homem metropolitano, o maior inimigo, em todo o Bra-
Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey
255
sil, da moda de viola. Fosse eu ditador, o que pode acontecer de imprevisto a qualquer cidadão sul-americano, exilaria os repentistas para a Austrália, trancafiaria nas masmorras todos os caipiras do rádio e proibiria definitivamente o culto ao boitatá. (Rey, 2001, p.72-3)
Mais recentemente, Cidade de Deus, de Paulo Lins, parece ter reavivado as narrativas que dão lugar de proeminência à malandragem e à violência. Colocados sob essa óptica, e por isso mesmo, os livros mencionados não devem ser encarados como parte de um esquema simplista. As datas aqui lembradas – 1854/55 (Leonardo); 1881/82 (Brás Cubas); 1935 (Teixeirinha); 1968 (Mariano) e 1997 (Inferninho) – parecem indicar a existência de ciclos literários, protagonizados por sujeitos à margem das normas de conduta. As Memórias de um sargento de milícias ambientam-se no Rio de Janeiro, ao tempo da chegada da família real, fugida de Junot. Já Memórias póstumas de Brás Cubas retrata, do ponto de vista de um malandro de classe, os anos que antecederam o fim da escravidão ao longo do Segundo Império. Marafa revela o subúrbio do samba ao crime, que desponta em meio às obras de constante re-urbanização do Rio de Janeiro. Memórias de um gigolô nasce com a ditadura. Cidade de Deus lembra ao leitor a violenta face dos excluídos e marginalizados em meio ao chamado “poder paralelo” à autoridade oficial.
II Certos elementos de nossa história permitiriam reparar que cada romance protagonizado por malandros retrata épocas marcantes, nodais da política brasileira. Convivendo com homens simpáticos à direita e à esquerda, Mariano ganha e perde ao sabor das ideologias, como se ignorasse o alcance de sua própria experiência: “Minha carreira de cantor sindical terminou coincidentemente com a queda do Estado Novo em 1945” (ibidem, p.131).
256
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Alternando doses de humor e ironia, graça ou tragédia, determinados autores tiram certos assuntos debaixo do denso tapete verde e amarelo. Os ingredientes a mover tais composições são os indivíduos ignorados pelo senso comum, com ou sem escola. Tais figuras parecem diluídas nas promessas de governantes conciliatórios. Não há dúvida de que, nesses casos, o papel do livro também é registrar o outro lado das farsas políticas que vigoram neste país desde a colônia. No Brasil, Império ou República, diante dos suspeitos índices que supõem medir o analfabetismo e o poder aquisitivo, abordar a marginalidade também propiciou uma literatura pouco ou nada romântica, bem afastada das atuais estantes com livros de auto-ajuda. O malandro algo ingênuo de Manuel Antônio de Almeida; os cínicos de Machado de Assis; os oportunistas de Aluísio Azevedo e Lima Barreto; os sujeitos desajustados e remediados de Marques Rebelo, Cyro dos Anjos e Marcos Rey; os bandidos de Paulo Lins, todos sentem, fazem ou ilustram os avanços e retrocessos de uma sociedade carente, vitimada pela violência e corrupção ostensiva de governantes omissos. É bem verdade que os tempos e homens são outros, por isso o malandro esperto cedeu lugar à malandragem de ofício. Por esse motivo, João Cezar de Castro Rocha (2004) sentia necessidade de atualizar a dialética da malandragem, proposta por Antonio Candido em 1970: As teorias de Candido e de DaMatta esclarecem formas particulares de mediação social, com base sobretudo no contato pessoal e no universo do favor, moedas correntes no idioma próprio da dialética da malandragem e da ordem relacional. Mas em que medida essas abordagens ainda constituem um modelo de interpretação válido para o Brasil contemporâneo? É indiscutível a permanência da lógica do favor como motor da vida social.
Paralelamente à evolução do malandro/marginal, no âmbito da representação literária, há o acompanhamento
Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey
257
à meia distância da crítica. O ponto alto foi demonstrado por Antonio Candido (2004, p.32), cujo ensaio, a despeito da hipótese de Castro Rocha, continua sendo ponto de partida obrigatório para uma segura e aproximação desse poderoso arquétipo nacional, entre os “pólos da ordem e da desordem”. Inegavelmente, o malandro evoluiu. E sua configuração também: basta ver a linguagem neo-realista do contista e romancista Rubem Fonseca e de Paulo Lins. A questão é que as narrativas pouco sutis, pautadas pela crueza das falas e gestos das personagens, podem ser vistas como catalisadoras do grotesco e mesmo do bizarro. Determinadas obras parecem mais exercícios ideológicos que estéticos. Estão marcadas por uma “narrativa brutalista”, de que fala Alfredo Bosi, ao comentar o conto brasileiro contemporâneo. Não custa lembrar que se a classe média escorrega entre ideologias opostas, a figura de certos malandros oscila em sua própria camada. O movimento não impede o seu acesso, ainda que artificial, aos demais grupos, graças ao pânico que provoca em uns e o favor que obtém de outros. Evidentemente, o tom de Marcos Rey está longe da opressão do “percor” (perfurar e cortar), decifrada pelo advogado Mandrake, de Rubem Fonseca (1983, p.66); e dos gritos de ordem “– Fica aí, rapá!” de Paulo Lins (2002, p.169). Nas memórias nem tão a sério do gigolô e histrião Mariano, o que seria um drama vem abrandado pelo caráter lúdico. Em Memórias de um gigolô, portanto, a malandragem continuava no meio, não no extremo. A auto-avaliação que faz o gigolô é contundente e também nos leva de um pólo a outro, como se identificados com o protagonista, em maior ou menor medida: “Fiz o que pude, ora sem tostão, ora com dinheiro que caía do céu, mas passando à distância das fábricas e de todo lugar onde se trabalha no duro. Já pensaram no que seria de mim se fosse obrigado a produzir rolimãs e esquadrias metálicas?” (Rey, 2001, p.5).
258
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
A tese de Antonio Candido a respeito das Memórias de um sargento de milícias ajuda a mostrar as diferenças entre Leonardo (Manuel Antônio de Almeida) e Mariano (Marcos Rey): Mais coerente com a vocação de fantoche, Leonardo nada conclui, nada aprende; e o fato de ser o livro narrado na terceira pessoa facilita esta inconsistência, pois cabe ao narrador fazer as poucas reflexões morais, no geral levemente cínicas e em todo caso otimistas [...]. (Candido, 2004, p.21)
Para o leitor, o acesso à consciência de Mariano pode ser mais fácil. Memórias de um gigolô – diferentemente de Memórias de um sargento de milícias –, vem narrado em primeira pessoa e o protagonista é uma espécie de memorialista. Um homem de relativa autocrítica que aprecia tecer comentários sarcásticos sobre suas vítimas e relembrar, saudoso, os amores e golpes que aplicou. Fazendo a narrativa deslizar, o malandro – descontados os diferentes comportamentos, graus de criminalidade e violência – lembra um ser ágil e sorrateiro, capaz de se camuflar socialmente, do terno ao samba-canção. Às vezes, ele nos assalta, escapando à condição de Homo fictus, proposta por Forster (2005, p.80). Sucessor à altura de Leonardo e Brás Cubas, Mariano retoma a tradição de provocar quem o lê: “Lu era assim, gostava das pessoas. Muito diferente, leitor, de você, por exemplo, que só gosta dos familiares e pensa que já faz muito” (Rey, 2001, p.118). De modo geral, o malandro é hábil no trato com ladrões, cafetinas, prostitutas, donos de escolas de samba, empresários, credores do aluguel, donos de bares, bicheiros e políticos, como se percebe na trajetória instável do Teixeirinha (Marafa), de Marques Rebelo (2003, p.18): “Se a vida encrencava, o que acontecia freqüentemente, Teixeirinha não pestanejava – passava o calote bonito no senhorio e mudava-se para outro quarto”. Paradoxal por excelência, ficou dito que o malandro responde por certo contato, ainda que à revelia, entre as
Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey
259
classes. Não se trata de integração, já que os contatos são superficiais e instantâneos. Na medida de sua oscilação social, por sua vez, enquanto representa um canal entre seu grupo social com as classes intermediárias e a elite, é um dos principais desagregadores de sua própria camada, tornando-o duplamente ambíguo, sem fixidez. De uma vista panorâmica de nossa literatura, cabe perguntar se tais figuras nascem espontaneamente. Seriam protagonistas originais, concebidos de tempos em tempos? Ou resultariam de um projeto tácito dos autores de diferentes gerações, dispostos a perpetuar a sobrevida dos tipos? Cada malandro aparece emblematicamente, como uma voz alternativa ao poder instituído, em meio aos picos de crise institucional no Brasil. De qualquer modo, não se deve desprezar o interesse do público leitor nas façanhas de Leonardo, publicadas quinzenalmente pelo satírico Manuel Antônio de Almeida, em meados do século XIX. Afinal, o que leva um escritor canônico a fazer de seu protagonista o ocioso e cínico Brás Cubas? O que explica Marques Rebelo ter vencido o concurso Machado de Assis, em 1935, com um romance de dupla narrativa, entre um homem de bem (José) e o perverso Teixeirinha? Por que, afinal, Memórias de um gigolô e Cidade de Deus – com tons absolutamente díspares, do cinismo à brutalidade – tornaram-se filmes de grande sucesso? O fato é que as representações do malandro, escritas ou encenadas, têm leitura ou audiência garantida. Em certa medida, tais personagens fascinam, pois nos aproximam de nossas próprias inquietações. Recusando ou aceitando suas atitudes (das mais infantis e inocentes às mais cruéis e violentas), diante do malandro pode-se dizer, com uma súbita moral, cristã ou não, algo como: “não sou exatamente assim; eu não agiria desse modo”. Afora certo grau de identificação/não-identificação (aceitação/recusa) com o malandro dos livros ou das telas, leitores e telespectadores parecem reconhecer em tais figuras escapadiças, traços típicos e espontâneos: brasileiros.
260
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
No romance de Marcos Rey, Mariano aprende a encenar e trapacear desde cedo, pelos trabalhos fora-da-lei da tia Antonieta, sua única referência familiar. “Se houvesse clientes, eu, com o dedo nos lábios, pedia que entrassem no minúsculo quarto de empregada e lá permanecessem com a respiração suspensa. E ainda soltava algumas galinhas pela casa para dar à polícia uma atmosfera doméstica e inocente” (Rey, 2001, p.6). Talvez o que fascine, em sua figura, seja determinada postura corajosa que não tomamos ou não publicamos, ao menos. O cinismo, a velhacaria e a negociata, por meio de uma poderosa lábia, no fim das contas, parecem justificáveis. Ora, num país desses, só roubando. Quem nunca disse ou escutou algo do gênero? Um sintoma de que somos cativados pelo malandro está no fato de torcermos para ele se dar bem, no final. Influência da indústria cultural maniqueísta, com sede em Hollywood? Se assim for, o local da máxima subversão cultural continua sendo por aqui, antropofágicos que somos.
III Marcos Rey é um habilidoso contador de histórias. Das primeiras enrascadas, como sobrinho de Antonieta, às regalias na casa das meninas de Madame Iara, dá gosto ler as peripécias de Mariano. Memórias de um gigolô é um livro arquitetado por meio de narrativa coesa, sem furos, como se a história tivesse sido longamente planejada, embora escrita para ser lida num só ritmo e golpe. Sua prosa está algo próxima, estilisticamente, da narrativa machadiana: O mais curioso e excitante era um negócio chamado motomania: andar sempre, sem parar, sem roteiro nem desejo de voltar para trás. Pareciam pernas alheias, postiças ou mecânicas que me levavam para os lugares mais distantes, mesmo estradas rodeadas de favelas. (ibidem, p.215)
É também como pseudo-autobiografia que o romance de Marcos Rey lembra Memórias póstumas de Brás Cubas.
Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey
261
São comuns a Brás e Mariano o cinismo imperioso, emoldurado por essas personalidades volúveis e narcisistas. Ao egoísmo supremo se liga a aversão ao trabalho e às demais balizas da convenção social, como o casamento. Acrescente-se o tédio ante o cotidiano regrado e sem surpresas e descaso frente aos demais. “Bem-apessoado, o homem que escolhemos como vítima” (ibidem, p.54). Memórias de um gigolô também se liga a Memórias de um sargento de milícias pela linguagem imediata, permeada de expressões da época, a agilidade da narrativa e a habilidade de ambos os escritores em criar uma atmosfera de suspense – típica e não exclusiva dos folhetins. É certo que do único romance de Manuel Antônio de Almeida só ficou o gênero. Como se sabe, as “memórias” correspondiam a um gênero ainda em voga no século XIX, voltado à narrativa de fundo histórico. Logo, os percalços de Leonardo (filho de Leonardo Pataca, sem valor) foram contados na terceira pessoa por um narrador que dialoga constantemente com o leitor, antecipando o hábito adotado por seu sucessor Machado de Assis. Acima de tudo, a primeira representação do malandro se liga a outra tradição, o nascimento do jornal brasileiro: “para compreender um livro como as Memórias convém lembrar a sua afinidade com a produção cômica e satírica da Regência e primeiros anos do Segundo Reinado [...]” (Candido, 2004, p.25). Outro traço comum e notável a esses romances, separados por mais de um século e dois impérios, é a habilidade de Manuel Antônio de Almeida e Marcos Rey em articular numerosos episódios, envolvendo o vaivém de diversas personagens. Ambos são pontuados por peripécias hilárias com que os protagonistas e coadjuvantes conquistam nossa cumplicidade, simpática aos fracos. Por serem os fracos de tal condição? Por que vencem, à sua maneira, os fortes, iguais ou ainda mais desonestos? A meia-distância entre Marafa (1935) e Cidade de Deus (1997), o livro de Marcos Rey afasta-se de um e outro na proporção que se aproxima de Memórias de um
262
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
sargento de milícias e Memórias póstumas de Brás Cubas, escritos no século XIX. Em Memórias de um gigolô não há tanta violência direta e sangue frio, nem é tão palpável a miséria em que vivem as personagens. O que prevalece, na forma de seu discurso, é certa atmosfera animada, numa escrita que ora diverte com episódios cotidianos, ora alerta, sem aviso, para o caos nacional. Além das peripécias de Mariano-personagem (que o aproxima ora de Leonardo, ora de Brás Cubas), há certo gosto do Mariano-narrador pelos limites do texto: reescrita algo cerebral, já que ao registrar, reflete sobre o que já viveu. Ao mesmo tempo, revela suas habilidades dramáticas e percebe o que também há de artificial e ridículo nos homens poderosos: Ele saltou de pé, teatralmente. Também tinha os seus truques. – Vou me casar com sua noiva. Levantei-me e corri para a janela aberta. Ia lançar-me pelo espaço vazio e espatifar-me na rua. O velho (como era de se esperar) conseguiu deter meu tresloucado gesto. – Quero matar-me – anunciei no peitoril. – Não faça isso, jovem. – Faço. – Quem vai morrer sou eu. – Sua vida é mais preciosa do que a minha. Sou um joão-ninguém. Só tenho Lu, mais nada. Largue-me. Vou arrebentar-me lá embaixo. Para refrear meu entusiasmo, ele usou de um forte argumento. – Estamos no térreo. (Rey, 2001, p.110)
A faceta cômica não impede ao narrador tecer observações críticas a respeito de certos traços do paulistano, metonímia do brasileiro explorado e explorador. Justamente o princípio dicotômico que parece mover o próprio Mariano. Em alguns momentos, a própria narrativa parece contagiar-se por diversas acepções de algumas palavras, versáteis como o próprio narrador: “Fomos seguindo as costas,
Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey
263
as maravilhosas costas brasileiras. Eu peguei uma onda de tomar martíni, mas não perdia o senso da realidade” (ibidem, p.182, grifo meu). Do protagonista, sabemos que dentre suas inúmeras atividades – de escriba (num país de analfabetos) a vendedor (na cidade que mais se expandia) –, muitas delas foram marcadas pelo acaso e o oportunismo deste eterno gigolô multi-tarefas, amante e cúmplice da maruja “Lu”, que conhecera na casa de Madame Iara. Aliás, é lá que ele amadurece sexualmente: Gostaria que alguma madre superiora assistisse à epopéia hidráulica daquele banho para avaliar como está superado tudo o que se diz, inadvertidamente, sobre educação e formação dos jovens. Urge uma revisão imediata em matéria tão importante, o que talvez nos colocasse em posição de vantagem e inveja entre os países subdesenvolvidos. (ibidem, p.21)
Como a justificar ou reforçar a aura de mistério da enigmática tia Antonieta, com suas previsões a respeito do perigoso triângulo envolvendo Lu, Mariano e Esmeraldo, nada conhecemos a respeito dos pais do gigolô. Também apenas assistimos seus sobrevôos pelos estudos e instabilidade nos diversos empregos. Isso significa estarmos diante de um bildungsroman às avessas, como já acontecera no romance de Manuel Antônio de Almeida, no século anterior. De acordo com Mariano: Devo a ela [à tia Antonieta], ainda, minha iniciação cultural: foi nos seus almanaques que aprendi a ler e a interessar-me pelos mistérios da ciência ao lado dos versos dos poetas antigos. Aos doze anos, já sabia tudo sobre balões, telégrafo sem fio, fonógrafos e pianolas. Também já sabia que Casimiro de Abreu e Álvares de Azevedo haviam morrido tuberculosos, provavelmente devido à masturbação. (ibidem, p.10)
Ainda quanto à sua formação, em certa altura, o protagonista recorda-se do período em que foi escoteiro:
264
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
“Quanto ao cantil, conservo-o até hoje em meu museu particular, que espero seja um dia aberto à visitação pública, sob a tutela do governo federal ou da Universidade Católica” (ibidem, p.27). O fato é que se trata das memórias de um homem e seu principal ofício: gigolô. “Passei a ser o escriba oficial e definitivo do bordel. Redator de prostíbulos foi com efeito meu primeiro emprego” (ibidem, p.22). O nome (Mariano) nos é apresentado apenas nas linhas finais. Daí a pergunta inevitável: por que todos têm nome e paradeiro, enquanto a principal personagem não? Assim como o Leonardo sem sobrenome (Memórias de um sargento de milícias), o Teixeirinha (Marafa) e várias figuras de Cidade de Deus (Inferninho, Cabeça de Nós Todo etc.), a ausência de nome ou sobrenome configura um semi-anonimato. Sabemos a respeito do homem, mas não podemos identificá-lo ou classificá-lo socialmente. “Não sei quem me chamou primeiro de Mon Gigolo; quem ouviu foi um garçom que o repetiu por brincadeira” (ibidem, p.147). Essa condição favorece enxergar o gigolô numa esfera aquém ou além das convenções sociais. Ao mesmo tempo, sugere que seu tipo seja comum (por isso o nome de nada ajudaria) e suas peculiaridades ultrapassariam a fixidez do registro civil. A falta de nome também justifica a absoluta instabilidade em que vive o protagonista. Anônimo porque é um paulistano pobre, infenso aos padrões da burguesia nascente que estuda, trabalha, casa e deixa herdeiros? Sempre há os atalhos: “Tornei-me freqüentador de bibliotecas e livrarias, convicto de que a cultura daria maior brilho aos meus bate-papos no clube” (ibidem, p.106). A seu lado, está uma mulher igualmente à margem da sociedade: Certo dia de 1937, ou não, madame Iara recebeu uma nova afilhada, uma maruja que passou a estimar com todo o seu coração de mãe e caftina. Chamava-se Guadalupe, a Virgem de Guadalupe, ou simplesmente Lupe, ou ainda Lu, para os preguiçosos. (ibidem, p.37)
Entre lances de algum azar e muita sorte, dois sentimentos marcam a vida desse bon vivant despossuído: o amor
Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey
265
por Lu e o temor de Esmeraldo – respectivamente, a Dama de Ouros e o Valete de Espadas, (pré)vistos pela tia Antonieta nas cartas, às vésperas de sua morte. O retrato de Esmeraldo, primeiro amor de Lu, talvez seja o melhor e mais completo do romance: O Valete de Espadas (só podia ser ele, sim, era ele, estava na cara, fugitivo de um baralho velho) foi entrando ereto e sem problemas. Vestia-se de branco, sapato de duas cores, colarinho engomado, gravata estreitinha, com prendedor ostensivo, abotoaduras de ouro falso, cabelos empastados de vaselina, nariz aquilino, magro e ágil, pisada enérgica. Quando se voltou, vi-o de frente: dentes amarelados, bigodinho bem-tratado, brilhante, costeletas, e a inconfundível cabeleira a jaquetão dos gigolôs manjados. Seus sapatos novos rangiam no assoalho carunchado. (ibidem, p.38)
Irresponsável e inconseqüente, a trajetória de um protagonista anônimo equivaleria, em parte, à vida alheia de muitos de nós, registrados ao nascer, empregados só funcionais, maridos por vezes hipócritas, ambiciosos, mas desconhecidos dentro dos limites de nosso bairro. “Realmente eu não sabia o que queria ser. Aliás, sabia, sim. Não queria ser nada” (ibidem, p.35). Ocasionalmente o nome resvala para certa abstração, fruto da ética de pedra dos homens, desejosos por serem reconhecidos em sua individualidade, com número do registro geral, emprego, propriedade, bens, família e crença. Ao final das contas, objetivos similares aos de um gigolô, por meios naturalmente diversos: “Teve início a humilhante procura de emprego” (ibidem, p.75).
IV A atmosfera alegre predomina nos 32 capítulos, mas diminui à medida que Mariano, com ou sem Lu, adentra os territórios da elite paulistana: clubes, navios e empresas de grande porte. As regalias vão e voltam: “O vicepresidente chamou-nos à diretoria e disse-nos que estáva-
266
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
mos expulsos do clube, que se arrogava o direito de nos devolver o dinheiro das jóias. [...] Isto posto, retiramonos” (ibidem, p.117). De certa forma, nas relações que trava com Gumercindo (clube) e Franco (navio/empresa), percebe-se que não há grandes diferenças de caráter entre o gigolô e seus “protetores”, providencialmente enfeitiçados por Lu, a antiga bailarina mascarada das boates de São Paulo. “Por acaso, esqueci-me de dizer que aquele advogado era calvo? Não é importante o detalhe, mas as estatísticas do Gallup provam que a calvície torna os homens mais sensíveis às artes, às benemerências e ao amor” (ibidem, p.62). A instabilidade marca a trajetória desse malandrogigolô, com sua cultura de almanaque e alguns livros, o contato com diversos grupos sociais e o convívio artificial em estabelecimentos de luxo. “Diante de Gumercindo eu me mostrava um rapaz distraído e sob qualquer pretexto saía da mesa para que ele pudesse conversar com Lu, sem empecilhos” (ibidem, p.103). A derrocada financeira e a instabilidade emocional envolvem a decadência a que chegou um homem experimentado e versátil, mas sem garantias. No ano em que se completam o primeiro centenário da morte de Machado de Assis e os quarenta anos da publicação de Memórias de um gigolô, a autobiografia de Mariano recende ao humor e egoísmo de um perdulário, ora abaixo, ora acima das leis que ninguém cumpre: A vida não estava sopa e imaginei os apuros que passaríamos sem a pensão que o advogado nos concedia. Éramos jovens, inexperientes e não contávamos com nenhuma subvenção do governo. Sendo assim, premidos pelas circunstâncias, tínhamos que recorrer ao auxílio dos particulares. E não há quem não abençoe o generoso coração paulistano, que há séculos organiza rifas e promove chás beneficentes para o sustento dos menos afortunados. (ibidem, p.68)
Não bastasse o estilo de Marcos Rey lembrar o de Machado, o próprio narrador reforça a semelhança ao fi-
Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey
267
nal do romance, reafirmando uma pretensão, por sinal, digna de Brás Cubas: Eu levava-lhe revistas e dava-lhe notícias do sr. Franco. Com a ausência da minha senhora, ele tornou-se o maior casmurro a bordo. E também o maior engolidor de uísque e sours. A tal ponto que resolvi apelidá-lo de Dom Casmurro, em homenagem ao meu colega de letras Machado de Assis, escritor carioca, autor de vários e excelentes livros sobre a arte e prática da masturbação. (p.189)
Assim como no romance machadiano, as Memórias de um gigolô, também narradas em primeira pessoa, fazem referência a escritores canônicos. Sucessor de Brás, Mariano é uma personagem avessa ao trabalho fixo e hábil articulador de frases irônicas, com o humour refinado de um malandro que conhece a supremacia da embalagem sobre o caráter: Dentro de uma roupa de tecido anglo-saxão, sofro imediata metamorfose em benefício inclusive do meu vocabulário. Torno-me mais seguro, independente, resoluto, arrojado e aristocrata. (ibidem, p.107) Eu, com um terno novo, sou um perigo e venço qualquer preconceito. Com um vinco perfeito, meto a cara, falo grosso, convenço, conquisto corações, conto mentiras, exibo a cultura dos almanaques e perco o medo do mundo. (ibidem, p.161) Era homem que podia cruzar as pernas em qualquer ambiente, sem fraturar aquela linha reta que marcava minha personalidade. Até meus pijamas tinham friso, distintos, positivos, definidos. (ibidem, p.212)
Outros detalhes permitem aproximar a narrativa de Marcos Rey da prosa machadiana. Na estrutura de ambos os livros, os números romanos e títulos sintéticos dos capítulos. No conteúdo, o triângulo amoroso, envolvendo ambos os protagonistas (Virgília e Lu); a corrupção de tudo e todos em função do dinheiro fácil; os elementos que fa-
268
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
zem do romance um conjunto de crônicas sobre São Paulo e seus tipos bem marcados; os diálogos fingidos e as intervenções azedas do narrador. “Tudo isso era bom, era ótimo, principalmente por causa dos martínis com azeitona à beira da piscina, mas juro-lhes que logo depois ficou ainda melhor – tão melhor, que vale abrir um capítulo novo” (ibidem, p.102, grifo meu). Acima de tudo, é machadiano o breve e patético final deste interessante e muito bem escrito romance. Auge e decadência, amor e dinheiro, integridade e corrupção, “galhofa e melancolia”, perfazem uma trajetória paradoxal, tragicômica, escorregadia. Trata-se de outro belo exemplar sob a tutela de uma poética “malandra”, por assim dizer.
Referências ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. ANJOS, Cyro dos. O amanuense Belmiro. Rio de Janeiro: Garnier, 2002. AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Ática, 2000. BOSI, Alfredo. Situação e forma do conto brasileiro contemporâneo. In: . O conto brasileiro contemporâneo. 3.ed. São Paulo: Cultrix, 1978. CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. 3.ed. São Paulo: Duas Cidades; Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2004. CASTRO ROCHA, João Cezar de. Dialética da marginalidade. Folha de S.Paulo, Caderno Mais! São Paulo, 29.2.2004. DaMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. 6.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. FONSECA, Rubem. A grande arte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. FORSTER, Edward Morgan. Aspectos do romance. Trad. Sergio Alcides. 4.ed. São Paulo: Globo, 2005. LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Numa e a ninfa. Rio de Janeiro: Garnier, 1989. . Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. São Paulo: Ática, 1997.
Poética da malandragem: Memórias de um gigolô, de Marcos Rey
269
LINS, Paulo. Cidade de Deus. 2.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. MARQUES REBELO. Marafa. 4.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira – Modernismo. 5.ed. São Paulo: Cultrix, 2001. REY, Marcos. Memórias de um gigolô. 15.ed. São Paulo: Ática, 2001.
271
Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários de Lima Barreto Elizabeth Gonzaga de Lima*
RESUMO: Este trabalho investiga a escrita autobiográfica no con-
texto de fins de século XIX na literatura brasileira. A análise propõe como base a escrita íntima de Lima Barreto em seus diários. Essa tangência entre biografia e arte ilumina um de seus pressupostos mais caros, o exercício de uma literatura comprometida com o social – contar a própria dor e marginalização é também contar o sofrimento e a exclusão do outro. PALAVRAS-CHAVE: Escrita autobiográfica, Lima Barreto, diários. ABSTRACT:
This paper researches autobiographical writing in the context of the end of XIX century in Brazilian literature. The analysis has in its base the intimate writing of Lima Barreto in his diaries. This relation between biography and art enlightens one of his dear presuppositions, a literature undertaken with social – telling his own pain and marginalization is also a way of articulating the pain and exclusion of the other.
KEYWORDS:
* Professora doutora da área de Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal da Bahia (UFBA) – Salvador (BA).
Autobiographical writing, Lima Barreto, diaries.
A conjunção de uma série de fatores tornou-se determinante para que, no século XIX, o panorama literáriocultural da Europa fosse marcado pelo culto do autoconhecimento e pela expansão da literatura do eu. O pensamento renascentista e humanista configurou-se como base da secularização e do individualismo consolidado pela Ilustração. Quadro que preparou o espírito da intelectualidade em diversos setores para a busca do conhecimento de si. A organização política e social baseada na autonomia do indivíduo, somada ao avanço do protestantismo, influiu para que os homens tomassem consciência de seu valor pessoal, favorecendo, dessa maneira, as condições
272
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
para os relatos íntimos. Além disso, o crescimento da alfabetização na Europa, combinado às estratégias de distribuição de livros, torna a ficção mais acessível à classe burguesa. Os romances de família e de costumes, encharcados de subjetivismo e moralismo, lidos em casa, se convertem em substitutos da leitura bíblica e devocional convertendo-se em alimento para a vida interior dos leitores. Visto desse ângulo, o procedimento da narrativa em primeira pessoa transforma os leitores em outros possíveis narradores da história, estabelecendo, entre autor e leitor, uma relação de cumplicidade: Ao contrário do narrador anônimo e ubíquo que tudo sabe, abrange integralmente o domínio do romance e penetra com toda a liberdade nas idéias mais recônditas de suas personagens, a voz na primeira pessoa tem algo de intimidade: ao relatar de sua perspectiva a história que se desenrola, o narrador abre para compartilhar o tipo de confidência que se espera de um amigo, numa atmosfera confessional. (Gay, 1999, p.294)
É provável que a idéia de narrar a própria história tenha sido animada pelas leituras desses romances em primeira pessoa, por ocorrer ao leitor a possibilidade de se tornar narrador e personagem de seu enredo pessoal. Contudo, o marco para as denominadas escritas do eu, e modelo de introspecção para a literatura ocidental, é a publicação das Confissões de Santo Agostinho, como aponta Auerbach (1972, p.60): “Sua influência foi das maiores, não somente sobre toda a cultura européia; toda a tradição européia da introspecção espontânea, da investigação do eu, remonta a ele”. Os Ensaios de Montaigne, no século XVI, e as Confissões de Rousseau no século XVIII são também obras de referência. Se os Ensaios de Montaigne são considerados modelo para a autobiografia moderna, as Confissões de Rousseau romperam a tradição de a escrita íntima ser prerrogativa de personalidades militares, políticas, eclesiásticas ou nobres, como assinala Starobinski (1995, p.191):
Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários...
273
[Rousseau] Concebe o projeto de contar sua vida, mas não é nem bispo (como o era Santo Agostinho), nem fidalgo (como Montaigne), e não teve participação nos acontecimentos da corte ou do exército: não tem, portanto, nenhum título para se expor aos olhos do público, pelo menos não tem nenhum dos títulos que, até ele, foram requeridos para justificar uma autobiografia. Além disso, é pobre, é obrigado a ganhar seu pão. Com que direito viria ele atrair a atenção sobre sua existência? Mas, justamente, por que não se apoderaria ele desse direito?
Ao expor a intimidade, derramando os sentimentos, revelando a alma de um homem do povo, destituído de títulos e capital, Rousseau termina por conquistar grande ressonância junto aos românticos franceses, como aponta Hauser (1995, p.561): “Para os poetas do pré-romantismo existe uma relação direta entre o homem simples, honesto, vivendo em modestas condições burguesas, que surge agora pela primeira vez como um ideal de literatura”. Influenciados pelo espírito da época, da investigação do eu, associado ao encantamento com obras de lastro confessional, cidadãos comuns, artistas e escritores se sentiram animados em escancarar suas experiências pessoais. Com isso, reivindicam sua diferença e singularidade em meio a um intenso processo de despersonalização, em virtude das modificações sociais e econômicas pelas quais passava a Europa. Razões que acabaram motivando uma larga produção de literatura íntima: “autobiografias e os autoretratos, as biografias, romances e obras históricas sobre o caráter das pessoas adquiriam a força de consideráveis indústrias domésticas; em que os diários e a correspondência íntima se tornaram mais comuns e mais reveladores do que nunca” (Gay, 1999, p.16). Na galeria dos autobiógrafos mais conhecidos é possível citar: William Worsworth, Chateaubriand, Sterne, Emerson, Goethe. O escritor alemão, apesar de ser um dos maiores representantes da literatura introspectiva, já no século XVIII, com Werther e Wilhelm Meisters, julgavaa de subjetividade mórbida, tornando-se desconfiado nessa concentração no eu.
274
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
É provável que nessa inclinação pela literatura confessional residam alguns fenômenos sociais peculiares em fins do século XIX: a crescente urbanização, o avanço do consumismo e o advento da modernidade, os quais trouxeram às ruas o fenômeno da multidão, que, por sua vez, nasce sob o signo do anonimato. A luta pela singularidade, pela identidade, pela resistência à dissolução em meio à massa humana, é, por assim dizer, a sedução dessa escrita, que convida para seu jogo. Enquanto nesse controvertido panorama literário europeu predominava o escrutínio da vida íntima e de grandes temas históricos, no Brasil, a literatura buscava firmar seus pilares: Quatro grandes temas presidem à formação da literatura brasileira como sistema entre 1750 e 1880, em correlação íntima com a elaboração de uma consciência nacional: o conhecimento da realidade local; a valorização das populações aborígines; o desejo de contribuir para o progresso do país: a incorporação aos padrões europeus. No interior desses limites os poetas contarão as suas mágoas, os romancistas descreverão as situações dramáticas, os ensaístas traçarão as suas fórmulas. No fundo do desabafo mais pessoal ou da elucubração mais aérea, o escritor pretende inscrever-se naquelas balizas, que dão à nossa literatura, vista no conjunto, esse estranho caráter de nativismo e estrangeirismo; pieguice e realidade; utilitarismo e gratuidade. (Candido, 1975, p.66-7)
É inegável que a curiosidade acerca da investigação do eu, do individualismo, estava bem distante do horizonte brasileiro, pois as intenções da literatura nacional eram programáticas. No entanto, Antonio Candido, em “Poesia e ficção na autobiografia” (1989b, p.52), observa a vocação dos poetas mineiros do século XVIII para a literatura em primeira pessoa, em especial a autobiografia. Uma das primeiras obras de introspecção reconhecida pelo estudioso é Marília de Dirceu, confissão em verso, além de uma mini-autobiografia, Apontamentos para se unir ao ca-
Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários...
275
tálogo dos acadêmicos da Academia Brasílica dos Renascidos, de Cláudio Manuel da Costa. Segundo Candido, Minas Gerais produziu tanto autobiografias excelentes quanto medíocres. No primeiro caso, Minhas recordações, de Francisco de Paula Ferreira de Resende, “escritas de 1887 a (provavelmente) 1890 e publicadas apenas em 1944”, (ibidem, p.53) além de Minha vida de menina, escrita por Helena Morley nos últimos anos do século XIX: “uma das obras-primas da literatura pessoal no Brasil” (ibidem, p.54). No segundo caso, Minhas memórias, de Visconde de Nogueira Gama, “descosidas apesar de contar fatos curiosos e transcrever documentos importantes” (ibidem, p.54). Diante disso, quais seriam as motivações para a produção de obras dessa natureza num espaço literário tão acanhado para o desenvolvimento da literatura autobiográfica? Uma das características mais importantes da literatura do eu, como sugere Georges Gusdorf, seria o papel de testemunho, ou de documento, e suas repercussões. Além disso, o teórico considera a autobiografia como uma chave para entender a curva da história e todo tipo de manifestação cultural: A escrita em primeira pessoa constitui um domínio imenso e solidário no seio do qual devem coexistir todos os textos redigidos por um indivíduo exprimindo-se em seu próprio nome para evocar incidentes, sentimentos e acontecimentos que lhe dizem respeito pessoalmente. Tais documentos têm a característica de testemunho que levam o autor a considerar fatos de sua vida particular, e mesmo sua vida pública e social desde que relatados do ponto de vista do protagonista da aventura. (Gusdorf, 1991, p.360, apud Mutran, 2002, p.35)
Se a perspectiva básica da autobiografia parte do ângulo de visão do indivíduo, isso sinaliza que uma de suas marcas reside no caráter pessoal e específico de cada texto. Dessa maneira, é provável que exista uma base comum, qual seja, o prazer em recordar o passado, quando os sen-
276
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
timentos íntimos se misturam aos sentimentos de um tempo vivido e de seu respectivo mundo. Nessa fusão de momentos, o passado renasce junto às emoções revividas na tentativa de segurar o tempo, substância fluida. A relevância dessas obras nacionais não reside em seu valor estético, sua importância primordial é de serem testemunhos privilegiados de uma época e seus eventos, quando a escrita íntima se torna coletiva: “A experiência pessoal se confunde com a observação do mundo e a autobiografia se torna heterobiografia, história simultânea dos outros e da sociedade” (Candido, 1989b, p.56). Para um país de passado colonial, onde muito pouco de sua memória é preservada, esses retalhos de vida terminam por (re)compor parte de sua história, recomposição na qual o indivíduo e a sociedade formam um elo indivisível. É preciso compreender, no entanto, que não é qualquer indivíduo em qualquer lugar ou momento que escreve sobre sua vida. Nesse sentido, Clara Rocha (1977, p.72) assinala: é necessário que ele tenha consciência da singularidade de sua existência, o que implica um certo grau de individualismo; e, por outro lado que esta singularidade lhe pareça suficientemente exemplar para poder interessar alguém, depois de tal ter acontecido com ele próprio.
Partindo dessa prerrogativa, Minha formação, de Joaquim Nabuco, publicada em 1900, é exemplar nesse sentido. Autobiografia de intenção político-pedagógica na qual o autor narra o desenvolvimento de sua personalidade. A inspiração de Nabuco, segundo se sabe, é decorrente de Um estadista do império, biografia histórico-política de Tomás Nabuco de Araújo, pai do escritor. E é o próprio Joaquim Nabuco (1979, p.117) quem explica o projeto de Minha formação: A primeira idéia fora contar a minha formação monárquica, depois; alargando o assunto, minha formação político-literária ou literário-política, por último, desenvol-
Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários...
277
vendo-o sempre, minha formação humana, de modo que o livro confinasse com outro, que eu já havia escrito antes sobre minha reversão religiosa.
Considerando que o autobiógrafo é antes de tudo seletivo, o que implica uma modelação da própria imagem ao longo da escrita, Nabuco (1979, p.22) não foge disso ao esculpir um perfil cosmopolita bem ao gosto do fin-desiècle: “Sou antes um espectador do meu século do que do meu país; a peça é para mim a civilização, e se está representando em todos os teatros da humanidade, ligados hoje pelo telégrafo”. Esse cosmopolitismo de Nabuco não possui caráter negativo, antes, descortina um mundo de liberdade e cidadania que contrasta com a pátria brasileira. É possível que essas conquistas européias em relação aos direitos do indivíduo tenham influenciado seu engajamento na causa abolicionista. É compreensível, no entanto, que, ainda em fins do século XIX, Nabuco tenha sido motivado a relatar os eventos públicos de sua vida e a expor sua personalidade, pois, como vimos, foi um século marcado pelo incansável tema da busca de si. Em virtude disso, alguns escritores elegeram o símbolo de Narciso como a imagem representativa dessa autocontemplação. Não por acaso, o mito se converte em fonte de inspiração para poetas como Byron, Shelley e Valéry, além de diversos outros artistas, denunciando a ansiedade pela descoberta do eu. O mito de Narciso, para Gérard Genette (1966, p.21), conjuga dois motivos – reflexo e fuga. A contemplação ou o reflexo é uma das marcas da escritura autobiográfica – o desdobramento do eu se manifesta na escrita; corpo e letra acabam possuindo a mesma relação. O interior da escritura íntima abriga também o motivo da fuga, ao mesmo tempo que o sujeito aspira à eternidade pela escrita, ele teme não se reconhecer nela. Tal espelhamento e temor podem ser observados nas palavras de Joaquim Nabuco (1979, p.3-4) ao apresentar sua obra:
278
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Esta aí muito da minha vida... Será uma impressão de volubilidade, de flutuação, de diletantismo, seguida de desalento, que elas comunicarão? Ou antes de consagração, por voto perpétuo, a uma tarefa capaz de saciar a sede de trabalho, de esforço e de dedicação da mocidade [...]. No todo, a impressão, eu receio, será misturada; as deficiências da natureza aparecerão, cobertas pela clemência da sorte; ver-se-á o efêmero e o fundamental... Em todo caso não precisarei de pleitear minha própria causa, porque ela será sempre julgada pela raça mais generosa entre todas...
Se no fundo de todo autobiógrafo existe um Narciso, como assinala Gérard Genette (1966), a imagem que o abolicionista molda ao longo de suas confidências, nesse sentido, é duplamente paradigmática: primeiro porque desfila erudição, escolhe episódios instigantes, relata viagens sedutoras, conta a respeito de grandes decisões no cenário nacional; segundo, porque suas revelações deixam transparecer sua estatura ética, o desejo de melhorar o país, e interpretá-lo a partir de seu lugar social. Um relato desse nível provoca no leitor o encantamento com a brilhante figura do estadista. Assim, o tom reflexivo, com vistas ao meio político e social, marca suas memórias: Quem me acompanha pode estar certo de que não existe no que vou dizendo nenhuma sombra dessa admiração pela própria imagem, a que Jules Lemaître deu o nome de narcisismo moral. [...] O meu drama com ser francês, de procedência, de motivo sentimental, elevava-se, como composição literária, acima do espírito de nacionalidade, visava à unidade da justiça, do direito do ideal entre as nações... (ibidem, p.52-3)
Além das razões reconhecidamente autobiográficas que movem um relato íntimo – testemunho de seu tempo, busca do conhecimento do eu, o prazer de recordar o passado, a luta contra o escoar do tempo –, Nabuco demonstra o desejo de fazer conhecer seu ideário, em particular as motivações políticas e, especialmente, o envolvimento com
Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários...
279
a causa abolicionista. No entanto, se essa exposição, por um lado, apresenta um traço de vaidade, por outro, contribui para a reconstituição de parte da história brasileira. Esse movimento, que desvela as minúcias da vida privada e alcança a vida pública capta uma indiscutível relação de reciprocidade entre privacidade e dimensão pública. Se Minha formação representa o relato autobiográfico baseado na trajetória intelectual e política no cenário cultural do século XIX, Machado de Assis, um dos maiores expoentes do período, lança mão de formas autobiográficas para a experimentação estética e a observação social. Machado de Assis não legou à posteridade uma autobiografia ou mesmo um diário, tampouco deixou aberta uma janela indiscreta de sua vida íntima. No entanto, sua obra realista representou de forma magistral a consciência de uma pequena burguesia urbana instalada nos casarões fluminenses. E, para isso, o foco na primeira pessoa, concretizado nas memórias, confissões e diário, é desenvolvido por ele sem que o leitor possa reconhecê-lo por trás das máscaras ficcionais. Em decorrência disso, lhe cai bem o apelido de “bruxo”, que traduz sua capacidade em manipular uma alquimia perfeita, ao utilizar as variadas formas e estilos da literatura introspectiva, sem invadi-la com a própria subjetividade. A dificuldade de se traçar limites rígidos para a diversidade dos gêneros literários, todavia, levou Lúcia Miguel Pereira (1988, p.65) a considerar Helena, Iaiá Garcia e Casa Velha livros autobiográficos: “Com mil cautelas e rodeios, discutiu neles Machado de Assis uma questão que na mocidade muito o preocupou: a luta entre a sociedade e o indivíduo que se quer elevar. O drama do ambicioso, do homem superior vindo do meio humilde. O seu drama”. Três romances da fase realista do escritor se destacam no desenvolvimento de uma narração baseada na interioridade: Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e Memorial de Aires – o fio condutor da confissão literária perpassa esses textos. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, na extravagância do narrador defunto, cujas memórias são elaboradas no outro mundo:
280
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço, a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. (Assis, 1968, p.11)
Em Dom Casmurro, o advogado solitário reconstitui suas lembranças e admite: Eu confessarei tudo o que importar à minha história. Montaigne escreveu de si: ce ne sont pas gestes que j’écris; c’est mon essence. Ora, há só um modo de escrever a própria essência, é contá-la toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à medida que me vai lembrando e convidando a construção ou reconstrução de mim mesmo. (Assis, 1983, p.93)
Em Memorial de Aires, Machado aproveita a forma do diário para mostrar o plácido cotidiano de um diplomata aposentado. Anotar os acontecimentos do dia para o conselheiro Aires é uma maneira de driblar a solidão, a velhice e o ócio: Qual! Não posso interromper o Memorial; aqui me tenho outra vez com a pena na mão. Em verdade, dá certo gosto deitar ao papel cousas que querem sair da cabeça, por via da memória ou da reflexão. Venhamos novamente à notação dos dias. (Assis, 1938, p.127)
As extensas fronteiras da forma romanesca permitiram a Machado de Assis, por meio de uma escrita introspectiva, realizar a literatura em que se tornou mais notável, da investigação e do desvelamento dos recônditos da subjetividade de uma classe, que, entretanto, se pretende universal. E nada se ajusta melhor a essa intenção do que o eu que se desnuda, revelando suas contradições, foco da conhecida ironia machadiana. A tonalidade irônica e a narração em primeira pessoa são alguns elementos respon-
Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários...
281
sáveis por confundir críticos e leitores que, além de não encontrarem equivalência entre a obra e a vida íntima do escritor, tomam contato com a particularidade de um brasileiro endinheirado que, mediante a volubilidade íntima do descompromisso, aponta a generalidade da filosofia, da política etc. Elementos empregados pelo narrador-personagem, em proveito próprio, como assinala Roberto Schwarz (1997b, p.78) em relação a Memórias póstumas de Brás Cubas: Trata-se, noutras palavras, de um livro escrito contra seu pseudo-autor. A estrutura é a mesma de Dom Casmurro: a denúncia de um protótipo e pró-homem das classes dominantes é empreendida na forma perversa da auto-exposição “involuntária”, ou seja, da primeira pessoa do singular usada com intenção distanciada e inimiga.
Cabe, no entanto, a advertência aos curiosos – a capacidade do “bruxo de Cosme velho” em manejar as cortinas da ficção –, e é Augusto Meyer (1964, p.160) quem nos conduz ao entendimento da representação desse eu ficcionalizado: Como qualquer outro recurso de transposição fictícia, a aparência autobiográfica serve de fator objetivo ao romancista na construção de um simulacro de vida confessada. Dentro dessas fronteiras – o romance construído na perspectiva da primeira pessoa – cabem graus diversos de aproximação do tom subjetivo, desde as “cartas” e os “diários íntimos” até aquela aparente confidência continuada e minuciosa de um eu romanesco a longo prazo. [...] O Machado de Assis romancista da mesma família, pelo menos em três dos seus romances, pertence ao grupo dos que mais de perto imitam o perspectivismo arbitrário e um tanto descosido de um eu a confessar-se diante da folha em branco.
Esses fragmentos recolhidos nas vidas íntimas, dentro ou fora da ficção, refletem a vida coletiva brasileira daquele período, compondo, dessa maneira, uma espécie de
282
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários...
mosaico: de um lado, Joaquim Nabuco, o homem político, erudito, revela seu poder de intervenção no cenário social ao participar da causa abolicionista; de outro, Machado de Assis apresenta os artifícios autobiográficos para representar a intimidade de uma classe que vivia aparentemente no compasso dos discursos instituídos, mas que os atos cotidianos a desmentiam, em uma espécie de “desconcerto”: O nosso discurso impróprio era oco também quando usado propriamente. Note-se, de passagem, que este padrão irá repetir-se no século XX, quando por várias vezes juramos, crentes de nossa modernidade, segundo as ideologias mais rotas da cena mundial. Para a literatura, como veremos, resulta daí num labirinto singular, uma espécie de oco dentro do oco. Ainda aqui, Machado será o mestre. (Schwarz, 2000, p.21)
Nos dois casos, a utilização da forma introspectiva captou dois movimentos opostos que terminam por formar uma continuidade – é na escavação do mundo interior que se encontram as estruturas do exterior. Se Machado de Assis notabilizou-se por conseguir manejar as formas introspectivas, protegendo sua intimidade de escritor, ao mesmo tempo que existia o íntimo de quem tem a palavra, isto é, a personagem, no pólo oposto encontra-se Lima Barreto, que desenvolveu uma literatura de aparência autobiográfica, mas, ao contrário do “bruxo”, imprimiu sua subjetividade de forma intensa em quase todo conjunto de sua obra. Certamente não faltam razões para a opção de cada um deles, como nota Sérgio Buarque de Holanda (1956, p.12): Enquanto os escritos de Lima Barreto, foram todos eles, uma confissão mal disfarçada, [...] os de Machado foram antes uma evasão e um refúgio. O mesmo tema que para o primeiro representa obsessivo tormento e tormento que não pode calar, este o dissimula por todos os meios ao seu alcance.1
Se pensarmos, entretanto, na composição de uma memória nacional como uma espécie de mosaico, em que cada
1
Nota prévia ao romance Clara dos Anjos.
283
fragmento de vida íntima é parte da composição da história brasileira, transfigurada ou não pela arte literária, Lima Barreto contribui com outro formato e outras cores. E é nessa direção que caminha o objetivo de nosso trabalho, analisar a escrita autobiográfica que o romancista desenvolveu nos seus diários Íntimo e do Hospício e suas projeções no exercício de uma literatura comprometida com o social. A intimidade do escritor projetada em sua ficção revela o drama daqueles que se perderam em meio ao torvelinho das transformações da virada do século XIX, dos que nunca conquistaram um lugar na sociedade, vivendo em suas franjas, como os mulatos, os suburbanos, que não reconheciam sua raiz nem na raça, nem na classe: remendos humanos, que, na ficção de Lima Barreto, confeccionam um sentido literário, social e histórico. É provável que essa perspectiva aberta pelos textos introspectivos tenha despertado o interesse de Lima Barreto (1956e, p.33), em particular porque a diluição das formas vai ao encontro de suas concepções: “Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda disciplina exterior dos gêneros e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças [...]”. Além disso, em sua rejeição ao artificialismo, ele entende que a presença do eu na linguagem é uma maneira de se opor às manipulações da retórica. Pode-se mencionar, ainda, seu fascínio pela leitura de biografias, como demonstra em correspondência a Antonio Noronha: “O Carlos deu-me, isto é, emprestou-me o Jean-Jacques, mas pedi-lhe a biografia de Baudelaire...” (Barreto, 1956f, p.33), na justificativa do narrador-biógrafo Augusto Machado para escrever Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá: “A idéia de escrever esta monografia nasceu-me da leitura diurna e noturna das biografias do doutor Pelino Guedes. São biografias de ministros, todas elas, e eu entendi fazer as dos escribas ministeriais” (Barreto, 1956b, p.70) ou em uma das notas do Diário do hospício: “Hoje é segunda-feira. Passei-a mais entediado do que
284
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
nunca. Li o Plutarco, mas não tive ânimo de acabar com a leitura da vida de Pelópidas” (Barreto, 1956d, p.71). Lima Barreto não realizou uma autobiografia, propriamente dita, ou seja, uma retrospectiva de vida desde a infância, a juventude e a idade madura, levando em consideração o que Gusdorf (1991, p.317) define: “Une autobiographie est un livre refermé; animée par un projet de totalité, qu’il s’agisse d’une vie entière ou d’une tranche de vie, elle prétend arrêter les comptes”.2 No entanto, até a morte do romancista, em 1922, não se tem notícia de um escritor brasileiro que reunisse uma produção literária de caráter íntimo tão profundo quanto a dele. É preciso assinalar que a obra de Lima Barreto foi desenvolvida em um período de inúmeras contradições estéticas. Naquele fim de século, parnasianismo, simbolismo, realismo continuavam em cena, e o modernismo despontava timidamente. Diante desse panorama, o escritor posicionou-se do lado oposto da “arte pela arte” e das “transcendências inefáveis”, todavia sua escrita estampava com maior nitidez os pressupostos do realismo, por meio do desnudamento das mazelas sociais, da pintura dos costumes da sociedade da época. Diga-se de passagem que esse realismo é tingido pelo tom crítico e pela tendência trágica. Essa inclinação realista é ainda contaminada por resquícios românticos, que se pode localizar na escolha da auto-expressão – característica própria da estética romântica inclinada ao confessionalismo. Além disso, o romancista cultivou os sentimentos peculiares ao artista romântico: a melancolia, a solidão, o pessimismo, a insatisfação com o meio, a contradição em isolar-se e assumir as dores da sociedade (em seu caso, pelos humildes). De todas as idéias românticas absorvidas por ele, em consonância com seu tempo e seus pressupostos literários, a que mais revela seu fascínio por esse ideário é o isolamento social pela crença na grandeza de seus ideais e sentimentos, que o levam a se ver como um pária social. Desse quadro contraditório decorre a dificuldade em definir a estética de sua prosa, em particular, pela opção
Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários...
2
“Uma autobiografia é um livro fechado; animado por um projeto totalitário, que trata de uma vida inteira ou de um fragmento de vida, ela pretende concluir as contas”.
3
O diário, na forma que o lemos hoje, faz parte do projeto de publicação da obra completa de 1956, sob organização de Francisco de Assis Barbosa. Os manuscritos foram encontrados em cadernetas e agendas guardadas após a morte do escritor pela irmã Evangelina.
285
do romancista em lançar mão de todos os meios para desenvolver uma literatura comprometida e de fácil acesso. Assim, a subjetividade apresentada no conjunto de sua produção é igualmente diversificada, seguindo uma série de modulações da voz autoral, que passam pela experiência pessoal e pelas influências literárias. Algumas pistas das diretrizes da obra de um autor podem ser fornecidas, às vezes, pela leitura de um único romance; entretanto, quando é possível o acesso aos escritos de intimidade, adquire-se um entendimento mais amplo, ou seja, dos fundamentos que sustentam sua escrita. No caso do romancista, os motivos pessoais se confundem com os sociais e se concretizam numa literatura, movida em um ritmo cíclico, a vida alimenta a obra, que, por sua vez, alimenta a vida, mas acima de tudo comprometida com o movimento da sociedade. Contudo, diversas vezes transparece em suas confissões que o ofício de escrever realiza um duplo compasso: condenação e salvação: “Eu abandonei tudo por elas [as letras]; e a minha esperança é que elas me vão dar muita coisa. É o que me faz viver mergulhado nos meus desgostos, nas minhas mágoas, nos meus arrependimentos...” (Barreto, 1956c, p.184). Graças ao empenho de Francisco de Assis Barbosa em reconstituir o patrimônio humano e literário de Lima Barreto, foi possível tornar público o conteúdo da intimidade do escritor. Nesse acervo, a obra que mais se destaca, nesse sentido, é o Diário íntimo, escrito por ele ao longo de 21 anos. As primeiras notas3 são de 1900, quando ainda era um jovem de dezenove anos, cheio de sonhos: “Quando comecei a escrever este, uma ‘esperança’ pousou” (Barreto, 1956c, p.27). Entretanto, com o passar dos anos, as notas são de um homem desencantado pelos fracassos de suas aspirações literárias e doente pelo alcoolismo: “Desgraçado nascimento tive eu! Cheio de aptidões, de boas qualidades, de grandes e poderosos defeitos, vou morrer sem nada ter feito. Seria uma grande vida, se tivesse feito grandes obras; mas nem isso fiz” (ibidem, p.172). Além do Diário íntimo, o romancista escreveu o Diário do hospício, relato
286
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários...
de sua internação no Hospício Nacional de Alienados, entre dezembro de 1919 e fevereiro de 1920. Nele o diarista tenta expurgar suas frustrações do passado por meio da escrita: Desde a minha entrada na Escola Politécnica que venho caindo de sonho em sonho e, agora estou que estou com quase quarenta anos, embora a glória me tenha dado beijos furtivos, eu sinto que a vida não tem mais sabor para mim. Não quero, entretanto, morrer; queria outra vida, queria esquecer a que vivi [...]. (Barreto, 1956d, p.67)
O diário íntimo, uma das formas da literatura autobiográfica, como vimos, floresceu com a literatura romântica e, segundo Béatrice Didier (1976, p.47), decorre de três fatores: da tradição cristã, guarda a atitude confessional, o desejo de purificação e absolvição, o exame de consciência; do individualismo, retém a crença no indivíduo, o interesse pelo particular; do capitalismo, a idéia do “balanço”, de livro de contas, que objetiva preservar um capital de recordações, vivências, lugares, pessoas, etc. Francisco de Assis Barbosa relata que, três anos após a morte de Lima Barreto, A. J. Pereira da Silva pretendeu publicar o diário com o consentimento da família do escritor, porém, considerando a obra pitoresca e de conteúdo pessoal constrangedor, desistiu do projeto. O biógrafo rebateu: “longe de ser ‘uma obra pitoresca’ é documento de profundo interesse humano, repassado por vezes de lances dramáticos, de consulta indispensável para o conhecimento do homem e do escritor, que formavam em Lima Barreto uma unidade perfeita e indivisível”.4 Entretanto, por mais interessante e esclarecedor que pareça a publicação, acaba por ferir um dos estatutos dessa forma literária – a privacidade –, a experiência íntima, com toda a sua elegância e deselegância, vem a público, o que é pior, sem o consentimento do autor. Mesmo sendo “documento de profundo interesse humano”, a vida e as confidências que eram privadas passam a ser públicas, o que, para alguns críticos, não deixa de ser uma contradição, como aponta Léopold Flam (1970, p.182):
5
Não há apenas o discurso que alguém diz aos outros, há sobretudo o discurso que se diz a si mesmo. Este discurso não é destinado a ninguém que a si mesmo ou àqueles que o indivíduo identifica consigo mesmo. A publicação de um diário íntimo, verdadeiramente destinado, a si mesmo, não pode ser menos que uma traição.
4
Nota prévia de Francisco de Assis Barbosa ao Diário íntimo de Lima Barreto, p.19-20.
287
Il n’y a pas seulement la parole qu’on dit aux autres, il y a surtout la parole qu’on se dit à soi-même. Cette parole n’est destinée qu’à soi même ou à ceux que l’individu identifie avec soi-même. La publication d’un journal intime, vraiment destiné à soi-même, ne peut être qu’une trahison.5
Os diários escritos por Lima Barreto, apesar de cumprir o mesmo objetivo de reconstituir o cotidiano ou seus fragmentos, possuem diferenças na formulação. As condições em que os textos foram redigidos são bastante diversas: nas notas do Diário íntimo, o romancista contava com a privacidade de seu quarto, e de sua rotina cotidiana; enquanto as do Diário do hospício foram escritas em situação adversa. Hospitalizado, Lima Barreto estava sempre procurando um lugar reservado para escapar dos delírios e dos incômodos causados por outros pacientes. Circunstância que, de certa maneira, interfere na forma diarística, pois as anotações não obedecem ao estatuto do cotidiano, tanto assim que o romancista deu entrada ali dia 25 de dezembro de 1919, e as primeiras anotações são de 4 de janeiro de 1920, ou seja, os primeiros episódios ocorridos se tornam recordações, as quais se caracterizam pela seleção de acontecimentos. O Diário íntimo é um texto mais fragmentado, as divisões seguem o calendário, abarcando 21 anos da existência do escritor. A liberdade dessa forma literária permite anotações das mais diversas; nela encontramos comentários sobre leituras de livros, jornais, orçamentos domésticos, aforismos, citações, esboços de projetos literários, confissões abafadas pela angústia, extravasamento de várias emoções. A liberdade que o eu alcança nesse espaço torna possível ao diarista promover exercícios de escrita, arquivo de idéias, como Lima Barreto (1956c, p.99) revela em 20 de fevereiro de 1905: Há mais de dez dias que não tomo notas. Nada de notável me há impressionado, de forma que me obrigue a registrar. Mesmo nos jornais não tenho lido que me provoque assinalar, mas como entretanto eu queria ter um registro de pequenas, grandes, mínimas idéias, vou continuá-lo diariamente.
288
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
O Diário do hospício, em dez capítulos, possui um texto mais compacto, os primeiros capítulos são divididos por temas e os últimos são fragmentos. As anotações foram recolhidas no período de três meses, durante a passagem de Lima Barreto pelo manicômio. A forma diarística nasce de uma situação de isolamento, e o Diário do hospício se ajusta a tal característica pela circunstância do confinamento. Nele emerge um homem que se confessa em plena crise: “Voltei do café entediado. Um vago desejo de morte de aniquilamento. Via minha vida esgotar-se, sem fulgor, e toda a minha canseira feita, às guinadas. Eu quisera a resplandecência da glória e vivia ameaçado de acabar numa turva, polar loucura” (Barreto, 1956d, p.83). A elasticidade da forma do diário e a diluição das fronteiras que ela promove fazem que o diarista mude o registro do cotidiano e escorregue para a ficção, ou mesmo reproduza um instante de delírio, e quem assume as confissões é Tito Flamínio: “Estava deitado no dormitório que me tinham marcado e ele chegou à porta e perguntou: – Quem é aí Tito Flamínio? – Sou eu, apressei-me” (ibidem, p.66). A personagem que invade o relato do hospício se torna autor, recordando até mesmo o passado: “Não amei nunca, nem mesmo minha mulher que é morta e pela qual não tenho amor, mas remorso de não tê-la compreendido” (ibidem). A circunstância de escrever um diário naquele momento pode configurar-se também como um exercício literário para a elaboração da obra ficcional, pois os apontamentos do Diário do hospício deram origem ao inacabado romance autobiográfico O cemitério dos vivos. Nele, algumas passagens recebem tênues mediações, como se pode observar nos relatos de identificação dos internos nas duas obras: No Diário do hospício: Sem fazer monopólio, os loucos são da proveniência mais diversa, originando-se em geral das camadas mais pobres da nossa gente pobre. São de imigrantes italianos, portugueses e outros mais exóticos, são os negros roceiros, que teimam em dormir pelos desvãos das janelas sobre uma
Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários...
289
esteira esmolambada e uma manta sórdida; são copeiros, cocheiros, moços de cavalariça, trabalhadores braçais. No meio disto, muitos com educação, mas que a falta de recursos e proteção atira naquela geena social. (Barreto, 1956d, p.36)
Em O Cemitério dos vivos: Os loucos são de proveniências as mais diversas; originam-se, em geral, das camadas mais pobres da nossa gente pobre. São pobres imigrantes italianos, portugueses, espanhóis e outros mais exóticos; são negros roceiros, que levam a sua humildade, teimando em dormir pelos desvãos das janelas sobre uma esteira ensebada e uma manta sórdida; são copeiros, são cocheiros, cozinheiros, operários, trabalhadores braçais e proletários mais finos: tipógrafos, marceneiros, etc. (ibidem, p.179)
No Diário íntimo, Lima Barreto desenvolvia os embriões de personagens e enredos; com isso, às vezes as escritas se confundem, ou melhor, se fundem, revelando sua importância, como assinala Arnoni Prado (1989, p.6): No fundo, a amargura da confissão modela as máscaras depois transformadas em personagens: o jornalista que investe contra as mazelas do mundo que o exclui, ao recriálas no espaço literário, permanece no labirinto, enredado, entre temores, preconceitos e miragens. As máscaras esfumadas do Diário tanto vincam o narrador dos artigos e das crônicas quanto animam as personagens dos contos e dos romances, ainda que o resultado seja mais caricatural do que metafórico, montagem quase flagrante das circunstâncias mais do que transfiguração do real pela palavra.
Esse treinamento para a narrativa ficcional, desenvolvido no diário, é comum entre escritores. Virgínia Woolf, por exemplo, segundo Munira Mutran (2000, p.43), considerava que escrever no diário todos os dias é um salto para a obra de arte, pois solta os ligamentos e aumenta a facilidade na criação dos romances; enquanto Butler Yeats via essa forma como fonte de inspiração para os ensaios,
290
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
porque nele registra idéias e pensamentos do dia-a-dia e, assim, compreender e descobrir para criar. Desde que Lima Barreto se tornou conhecido nos meios literários, ressoa um comentário já cristalizado pelas diversas citações – que ele seria a maior personagem de sua obra. Sem dúvida, a vida pessoal do romancista é carregada de todas as tintas que compõem um enredo trágico: solidão, vício, sonhos desfeitos, ausência de amor, sexualidade reprimida, exclusão racial e social, a presença da loucura. Em outros termos, a própria existência se encarregou de promover a fragmentação de sua subjetividade, que ele tentava recompor por meio dos escritos íntimos, levando-o a se questionar constantemente sobre os motivos de sua melancolia e inadaptação: “Hoje (6 de novembro) fui à ilha, pagar dívidas de papai... na volta, estava triste; na estação de São Francisco (vim pela Penha), ao embarcar, me invadiu tão grande melancolia, que resolvi descer à cidade” (Barreto, 1956c, p.46); e, em outro momento: “Em mim, eu já agora tenho observado, há uma série chocante de incongruência de sentimentos desacordes, de misteriosas repulsas. Não sei! Não sei! O futuro elucidará” (ibidem p.51). Se a inclinação solitária e melancólica responde em parte pelo seu desajuste pessoal, por sua vez, o romancista assistiu a uma série de transformações no Brasil: a abolição da escravatura, a proclamação da República, o “botaabaixo” da capital federal, o crescimento da urbanização, o avanço do tecnicismo. Essa avalancha de acontecimentos provoca um sentimento de despersonalização, o “eu” suburbano projeta-se no burburinho da cidade e conhece a solidão que o dilacera. O gesto diarístico, nesse contexto, supre a necessidade de comunicação do “eu” consigo mesmo e com os outros, além de reafirmar a identidade. Na entrada de 1903, do Diário íntimo, deparamos com uma nota iluminadora quanto à necessidade de o romancista se afirmar nas instâncias pessoal, familiar, social e literária – é a constante busca de si e da reafirmação de seus projetos diante do espelho de palavras:
Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários...
291
Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Tenho vinte e dois anos. Sou filho legítimo de João Henriques de Lima Barreto. Fui aluno da Escola Politécnica. No futuro, escreverei a História da escravidão negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade. (Barreto, 1956c, p.33)
Marcello Duarte Mathias (apud 1992, p.29) assinala que “em todo diarista existe uma ferida secreta, um desacerto com o mundo que o circunda e o diário mais não é, em última instância, do que esse frente-a-frente, a sós, sem intrusos, forma íntima e salvadora afinal de convivência”. Nesse sentido, uma das revelações mais iluminadoras para se compreender Lima Barreto e suas transfigurações na ficção é seu conflito na convivência doméstica, que implica em sua inadaptação com o mundo: Se essas notas forem algum dia lidas, o que não espero, há de ser difícil explicar esse sentimento doloroso que eu tenho de minha casa, do desacordo profundo entre mim e ela, é de tal forma nuançoso a razão de ser disso, que para bem ser compreendido exigiria uma autobiografia que nunca farei. (Barreto, 1956c, p.77)
No Diário do hospício, a confissão do mergulho no vício sinaliza o mesmo descompasso interior: “Muitas causas influíram para que viesse a beber; mas, de todas elas, foi um sentimento ou pressentimento, um medo, sem razão nem explicação, de uma catástrofe doméstica sempre presente” (Barreto, 1956d, p.47). Lima Barreto, o mulato “desorganizado”, suburbano, demonstra a consciência de seu direito de homem comum e sem posses de dizer de si mesmo e interpretar o Brasil a partir de seu lugar social. Sem a intenção de realizar uma comparação desigual, mesmo porque Rousseau é um filósofo e não uma pária social, a defesa, nas Confissões, do direito de dizer de si alcança, de certa maneira, a intenção de Lima Barreto: Não se objete que, não sendo mais que um homem do povo, não tenho nada a dizer que mereça a atenção dos
292
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
leitores. Isso pode ser verdade para os acontecimentos de minha vida: mas escrevo menos a história desses acontecimentos que a do estado de minha alma, à medida que aconteceram. Ora, as almas são mais ou menos ilustres na medida em que têm sentimentos mais ou menos grandes e nobres, idéias mais ou menos vivas e numerosas. (Starobinski, 1995, p.192)
A transparência, que é idealizada nos diários, se transfigura em seus narradores protagonistas, nada tímidos na exposição da subjetividade, em meio a uma nova e complexa realidade que se desenhava no horizonte do século XX. E a virtude dessa exposição íntima é assinalada por Bernardo Carvalho (1993, p.10): “Num lugar onde tudo se corrompe, só lhe resta ser fiel a si mesmo. Num lugar tomado pela mesquinharia intelectual, essa integridade se torna subversão. É essa a radicalidade do que o escritor chama de ‘absoluta sinceridade’”. A constituição melancólica, sonhadora e inadaptada de Lima Barreto e um certo narcisismo às avessas ditam o movimento nos dois diários, nos quais o mundo interior e as incursões ao mundo exterior provocam uma dialética conflituosa. Nesta cartografia da intimidade de Lima Barreto podem-se perceber as linhas mestras de seus diários: a busca de si, ou seja, o autoconhecimento, a afirmação do ser, o treinamento literário, a fuga da solidão, o extravasamento de emoções, a terapêutica da confidência e do desabafo. Todavia, no Diário do hospício, além desses fatores, são percebidas, com maior nitidez, a conjugação entre testemunho e documento e até uma espécie de crônica da exclusão:
Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários...
293
Essas diretrizes também podem ser vistas como fragmentos do eu, que se projetam na ficção, desenhando o contorno de sua literatura; nela, temas e personagens emergem das profundezas – em que ele mergulhou – seu próprio eu. A escritura dos diários de Lima Barreto é uma espécie de espelho de Narciso às avessas, mirando a própria existência mediante a nudez da alma, traduzida pela escrita. O escritor, a seu modo, coloca uma reflexão que atinge e ultrapassa seu tempo – o culto da vida interior ou sua exposição, em diários, crônicas ou em romances autobiográficos, não podem ser privilégio das classes superiores, assim como o direito de manifestar opiniões e de ter acesso a uma “literatura inteligível”. Os fragmentos do cotidiano recolhidos pela observação do escritor são mimetizados no diário por meio do estilhaçamento do eu, e, como um prisma, refletem em sua obra, projetando uma literatura em forma de mosaico que contribui para um painel da memória cultural e humana brasileira na transição do século XIX.
Referências ASSIS, Machado. Memorial de Aires. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1938. . Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Record, 1968. . Dom Casmurro. São Paulo: Moderna, 1983. AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Trad. Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1972. BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. São Paulo: Brasiliense, 1956a.
As notas tomadas durante a permanência no Hospício Nacional de Alienados formam, pois, um corpus à parte, não são uma continuação de seu diário íntimo, mas um diário de características especiais. Daí a decisão do organizador de manter a independência desse texto, espécie de crônica da exclusão, que pouca atenção já recebeu da fortuna crítica do autor, (Resende, 1993, p.172)
. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. São Paulo: Brasiliense, 1956b. . Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956c. . Diário do hospício; O cemitério dos vivos. São Paulo: Brasiliense, 1956d. . Histórias e sonhos. São Paulo: Brasiliense, 1956e.
294
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Cartografias da intimidade na literatura brasileira: os diários...
295
BARRETO, Lima. Correspondência ativa e passiva. São Paulo: Brasiliense, 1956f. t.I.
SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Cia. das Letras, 1997a.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Itatiaia, 1975.
. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Editora 34, 1997b.
. Os olhos, a barca e o espelho. In: . A educação pela noite & outros ensaios. 2.ed. São Paulo: Ática, 1989a.
. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.
. Poesia e ficção na autobiografia. In: . Educação pela noite & outros ensaios. 2.ed. São Paulo: Ática, 1989b. p.51-69.
STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
CARVALHO, Bernardo. Os diários irados de Lima Barreto. Folha de S.Paulo, 22 de agos. 1993. Caderno Mais!, p.10. DIDIER, Béatrice. Le journal intime. Paris: PUF, 1976. FLAM, Léopold. La philosofie au tournant de notre temps. Bruxelles; Paris: PUF, 1970. GAY, Peter. O coração desvelado:a experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. Trad. Sérgio Bath. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. GENETTE, Gérard. Figures I. Paris: Seuil, 1966. GUSDORF, Georges. Les écritures du moi, lignes de vie. Paris: Odile Jacob, 1991. HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1995. MEYER, Augusto. A chave e a máscara. Rio de Janeiro: Edições Cruzeiro, 1964. MUTRAN, Munira. Álbum de retratos. São Paulo: Humanitas/ FFCHL; Fapesp, 2002. NABUCO, Joaquim. Minha formação. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. PEREIRA, Lúcia Miguel. História da ficção brasileira: prosa de ficção de 1870 a 1920. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988. PRADO, Antonio Arnoni. Lima Barreto: o crítico e a crise. São Paulo: Martins Fontes, 1989. RESENDE, Beatriz. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Editora da Unicamp, 1993. ROCHA, Clara Crabbé. O espaço autobiográfico em Miguel Torga. Coimbra: Livraria Almedina, 1977. . Máscaras de Narciso. Coimbra: Almedina, 1992.
297
Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas Suely da Fonseca Quintana*
RESUMO: O objetivo deste trabalho é apresentar parte dos resultados da pesquisa sobre os procedimentos narrativos dos textos memorialísticos e autobiográficos da obra de Lúcio Cardoso. Para este artigo, o recorte analisado pertence ao livro Diário completo. PALAVRAS-CHAVE:
Memória, narrador, crítica cultural
ABSTRACT: The aim of this work is to present part of the results
obtained from the research on the narrative procedures of memorialistic and autobiographic texts in the works of Lúcio Cardoso. In this article the work we used as corpus for illustration was his novel Diário completo. KEYWORDS:
* Professora doutora da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ) – São João Del-Rei (MG).
Memory, narrator, cultural criticism.
Jacques Derrida (2002, p.44), em seu livro O animal que logo sou, após discutir a consciência do ser homem em contraste com o ser animal, lança algumas questões que podem mediar a análise a que nos propomos a respeito da escrita do Eu no Diário completo de Lúcio Cardoso: “Pode-se aproximar do animal e a partir do antes do mal e antes dos males?”. Essas perguntas remetem a fala do homem para um tempo anterior à nomeação dele e dos animais. Tempo anterior às diferenças e à verdade e à consciência da verdade. O conhecimento revela ao homem sua nudez, a mortalidade. Ele passa do ser natureza para o ser da técnica. Segundo Derrida, nunca ocorreu ao animal vestir-se, pois ele se desconhece fora da natureza. Perceber o que é próprio do homem seria perceber-se como homem. Para Derrida (2002, p.41-2):
298
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Aquele que recebe um nome sente-se mortal ou morrendo, justamente porque o nome quereria salvá-lo, chamálo e assegurar sua sobrevivência. Ser chamado, escutar-se nomear, receber um nome pela primeira vez, é talvez saberse mortal e mesmo sentir-se morrer.
Desse modo, o homem que nomeara todos os animais, ao receber um nome, se coloca diante da verdade do “animal que logo sou”. Escrever é nomear. Escrever diários, memórias, biografias é dar-se o nome e a morte. A morte dessa vida que se escreve é encerrada por quem a domina – o narrador de si mesmo. Jacques Derrida esclarece que falar de si mesmo cria um tempo “que separa, em princípio, e se fosse possível, a autobiografia da confissão” (ibidem, p.43). Esse tempo entre o Eu e a escrita de si retoma o tempo da criação, do Gênese, no qual nomear era criar o início e o fim do ser, era compartilhar com o divino. Portanto, a revelação sobre si mesmo, na autobiografia, se tornaria uma confissão. A confissão é um discurso revelador de uma dívida para com a verdade, isso porque existe a culpa pelos males, a falta cometida que impede o retorno ao tempo sagrado, anterior à queda humana. Ainda de acordo com Derrida, haveria uma possibilidade nesse discurso da confissão e mesmo na confissão, que se torna literatura, de falar de si de forma virgem; linguagem servindo como forma de resgate e fonte de libertação. A escrita de Lúcio Cardoso, em Diário completo, apresenta em vários momentos a busca incessante da redenção pela linguagem. A escrita de si como resgate do perdão, como expiação da culpa em um tempo visto como horizonte redentor. Conforme se lê na questão formulada por Jacques Derrida (2002, p.44): Haveria, desde esse tempo, lugar e sentido para uma anterior ao pecado original e a todas as religiões do livro? Uma autobiografia e memórias anteriores ao cristianismo sobretudo, anteriores às instituições cristãs da confissão?
O cristianismo, o catolicismo, a culpa e o castigo marcam de forma profunda o Eu narrador do Diário completo.
Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas
299
A própria maneira de escrever o diário já traduz o eu atormentado dessa escrita. O diário, além da forma regular dos registros diários, foi escrito também para ser publicado. Alguns amigos íntimos leram trechos e opinaram sobre o livro de Lúcio Cardoso. Chamo livro, pois o que se lê é um diário no qual o Eu se transmuta da intimidade de um narrador e leitor de si mesmo para uma personagem, construída pelo pudor e própria condição de se expor. É o “ver-se visto nu” (ibidem). Falar publicamente de si torna-se um momento de confissão. Confessar-se para o outro e ver-se nu e expor sua nudez. É a possibilidade de se ver a partir do olhar exterior. O perdão, o resgate dos males só pode vir de fora, do outro olhar que julga e compartilha do humano: a consciência de si. A primeira versão do diário de Lúcio foi publicada quando ele ainda estava vivo. O texto passou pelas mesmas revisões que qualquer livro para ser publicado e que não fosse de foro íntimo. Eis o que escreve Lúcio Cardoso (1970, p.235) a esse respeito em dezembro de 1957: “Revendo o primeiro volume do Diário para publicação – quanta coisa me parece inútil; que se poderia ter deixado de dizer”. Essa forma de escrita de si busca, em verdade, reproduzir o poder do criador de nomear, alterar e construir a verdade desejada. O diário foi publicado novamente, depois da morte de Lúcio, acrescido da parte que o autor escreveu após a primeira edição. Ao lermos o agora Diário completo, notase a diferença entre as duas partes, a que foi revista pelo autor e a que foi publicada na íntegra, sem cortes e sem sua própria censura. A escrita-confissão de Lúcio Cardoso se apresenta, em várias partes do Diário completo, como uma reflexão filosófica e religiosa sobre a grande falta do Bem sentida pelo ser humano, o elo perdido com o Paraíso, que não se encontra por não saber como é. Assim explica o autor esses pensamentos, como se as vidraças fossem a metáfora da mediação entre o homem e o mundo, o homem e o conhecimento, aquilo que se vive e vê não pode ser mais alterado apenas pelo ser:
300
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Viver assim não é viver – podemos sofrer da carência de algumas coisas, mas não dos fatores vitais que nos animam. Falta-me tudo, a paz, a inspiração, a vontade de continuar... Alguma coisa está AUSENTE de mim. Sinto, caminhando pelas ruas cheias de gente e densas de um frenético fervor pela vida, que sou apenas um grande vazio sem motivo. Para mim, a existência escorre como se eu contemplasse seu espetáculo através de vidraças baixadas. (ibidem, p.64)
O catolicismo, na versão introduzida desde a infância na formação de Lúcio Cardoso, se mostra mais como forma de angústia que alento; é dessa maneira que o autor interpreta sua relação com o sagrado enquanto instituição: Sem a noção de pecado, não há fé possível. A Igreja, em vez de acentuar esta verdade, transportando assim o homem ao seu seio, ajudando-o a se fortalecer na sua noção de culpa e de remorso, auxiliou-o apenas a acreditar que Deus foi quem nos abandonou. Movimento inverso e de terríveis conseqüências, pois à força de se acreditar abandonado, o homem passou a acreditar que o céu estivesse vazio. (ibidem, p.165)
Para Lúcio Cardoso, o amor de Deus transcendia o tempo e as necessidades humanas, e o Cristo seria a forma de redenção e ligação com o sagrado. O homem com suas fraquezas teria em Cristo o esteio para se firmar e se comunicar com Deus, uma vez que, se sentindo abandonado por Ele, necessitava de amparo. O autor, em outros trechos, critica a religião institucionalizada pelos homens, mas crê na transcendência de Deus, como naquele tempo antes do Mal e da queda, dos quais nos falou Derrida (2002). Lúcio Cardoso (1970, p.165) por isso se refere a Jesus de forma diferente: O corpo de Cristo, sua presença, seu sangue e suas chagas – Ele é o próprio centro do mistério e da razão da fé, o que nos demonstra a insofismavelmente a unidade existente entre Deus e o homem, pois sendo Deus, é na forma de homem que se apresenta aos nossos olhos.
Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas
301
Diante dessas reflexões sobre o ser, sobre o lugar do homem diante do sagrado, sobre a culpa, Lúcio Cardoso aproxima essas questões do tom confessional da salvação pela escrita. Escrever sobre si, escrever o Eu transtornado pelo mundo, é rever para si e para o Outro os vários lugares do trajeto humano, diante dos pecados e das dúvidas durante a vida. A arte e a criação funcionam para o autor como um projeto obsessivo: “E é inútil repetir, tão velha é a verdade: só é possível a existência de uma obra de arte, através da obsessão” (ibidem, p.14). A posição do escritor no Diário completo sinaliza seu procedimento de criação dos romances, por exemplo. Ele faz observações no Diário sobre o que e como escrevia em variados momentos. O livro sobre o qual há mais anotações é O viajante, que não chegou a ser concluído porque, após sofrer um derrame cerebral, Lúcio Cardoso não conseguiu mais escrever. Após sua morte, o amigo Octávio de Faria organizou os textos do livro e deu uma ordenação semelhante à que Lúcio de certa forma fizera em suas anotações nos originais, manuscritos, nos roteiros deixados para desenvolver depois e nas notas em seu diário. Esse livro, bem como A crônica da casa assassinada, A luz no subsolo e Os dias perdidos revelam sempre as grandes temáticas, que o autor buscava de forma obsessiva: culpa/ crime/ castigo/ salvação. No que se refere à salvação, é um tema sem concretização. As personagens são construídas sem a transcendência da fé e do conhecimento de si. Não têm a consciência da humanidade do Eu. A escrita obsessiva de Lúcio Cardoso expõe a verdade e a nudez do humano em seus conflitos. Ele coloca o homem louco como a perspectiva mais límpida de exposição do verdadeiro Eu, aquele que não pode ser dominado pela vivência em sociedade: Dentro de mim, sombra – mas fria e calma. Fora, sombra onde cumpro os gestos que todos sabem. O que aprendemos, é como nos ocultar de um modo banal, como toda gente mais ou menos se oculta. O que ocultamos, é o que mais importa, é o que somos. Os loucos, são os que não ocultam mais nada – e em vez dos gestos aprendidos, tra-
302
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
duzem no mundo exterior os signos do mundo secreto que os conduz. (ibidem, p.20)
Essa vida secreta precisa de uma máscara para conviver com o Outro e com a própria possibilidade de sua escrita: Enigmática máscara: que se cumpre por trás do que sonhamos? Há uma construção de palpitações verdes por trás dos personagens que se esfumam em nossa mente, semelhante a um cenário de ópera, através do qual escorre incessantemente um rio de águas agitadas e perfeitas. [...] Assim estou, pois, nesta curva do caminho. E posso dizer que tudo me falta, se bem que tenha tudo. Os bens da Terra, ai de mim, não cumulam minhas ambições, e o que espero é uma sinfonia de paz ouvida não sei onde. Algo me atrai que não está em mim e me impede da identificação com as coisas. Mas não são acaso as ausências que me cumprem? (ibidem, p.23)
A obsessão e o agitar permanente do interior de Lúcio Cardoso são também elementos de propulsão, o existir na ausência de si; a forma paradoxal de ser o mesmo e o Outro: “Não existo no pleno, e sim no que carece. Assim a melodia se concebe e vibra, ao longo de uma existência que jamais sacia o meu desejo de variedade” (ibidem, p.23). A variedade da vida precisa ser construída, o fora não existe sem o Eu criador: Nada que existe é aquilo por si apenas – tudo projeta uma intenção oculta, uma aura que transforma a matéria mais dura. Há projeções sem forma concreta, mas é impossível haver formas sem projeções. Completo, o mundo da poesia transfigura-se em sobrenatural – incompleto, o mundo aparente traduz apenas os emblemas de uma ordem mais alta. (ibidem, p.24)
De acordo com Jacques Derrida (2002), o animal, por ser dotado de linguagem, que é o homem, não significa que possa falar e responder a verdade para si mesmo. Pois falar, usar a linguagem é o que permite a esse animal (homem) apagar-se, apagar seus rastros como nenhum outro. Explicando melhor, vejamos a citação seguinte:
Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas
303
E essa possibilidade – traçar, apagar ou confundir sua assinatura, deixá-la perder-se – seria então de grande alcance. Dispor ou não de seus rastros, para confundi-los para apagá-los, tanto que, como já foi dito, alguns poderiam fazêlo (o homem, por exemplo) e outros não (O animal, por exemplo, segundo Lacan), talvez não seja uma alternativa fiável em torno de um limite indivisível. Será oportuno retornar sobre estes passos e sobre estas pistas. Que um rastro possa sempre se apagar, e para sempre, não significa absolutamente, e isto é uma diferença crítica, que alguém, homem ou animal, eu sublinho, possa por si mesmo apagar seus rastros. (Derrida, 2002, p.63-4)
Usando a metáfora do animal, o filósofo desenvolve uma discussão sobre os diversos animais que existem no Eu. Retornar sobre os próprios passos ou rastros é possível porque o animal que logo sou permite a reconstituição pela linguagem, a qual se torna presença do rastro ausente. É a consciência do poder da linguagem que permite ao narrador Lúcio Cardoso (1970, p.216) recompor-se em seu diário: “A força com que me sinto eu mesmo, dono de mim mesmo: para construir-me como quero, e é singular a força com que me vejo a mim mesmo, como uma criação no espaço. Separação e elaboração”. A escrita em primeira pessoa, típica do gênero diário, é pouco significativa no caso de Lúcio Cardoso. Essa primeira pessoa se esconde e se mostra de forma fictícia, tal qual uma personagem de antemão construída como ficcional, com o detalhe de que, no caso de um diário, a assinatura do texto deveria coincidir com quem viveu e narra os acontecimentos. Sobre o cotidiano de Lúcio Cardoso pouco se sabe em seu diário. Os detalhes que, normalmente, deveriam aparecer ali, se dão a conhecer melhor nos dois textos memorialísticos da irmã de Lúcio, Maria Helena Cardoso, autora de Por onde andou meu coração e Vida vidas. O que mais se revela por intermédio dessa primeira pessoa são as reflexões de um Lúcio ao mesmo tempo escritor-autor-testemunha e personagem de suas memórias. Assim se lê essa fusão no Diário:
304
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Divago, apenas divago sem encontrar motivo para tantas horas difíceis – e sei apenas me lamentar, defendido contra todo ataque da realidade, que não me é possível suportar de modo algum. O amor para mim é uma alucinação perfeita, um estado de transe e de obsessão. Nisto, o movimento é idêntico ao que processa o romance no meu íntimo: ambos me dão a sensação de que romper aquela atmosfera mágica, é como destruir a força latente, os limites talvez de um mundo proibido, meu, somente meu. (Cardoso, 1970, p.66)
Ao mesmo tempo que o espaço da escrita é o espaço do criar e re-criar a si próprio, torna-se uma escrita que se revela para o outro antes de ser publicada. Obra que oculta e revela o poder de ocultar e revelar os próprios rastros: A opinião de J., a quem confiei este diário, paralisoume durante algum tempo. Volto agora, não com o objetivo de realizar qualquer espécie de ideal literário, mas apenas por uma... vamos dizer, uma disciplina do espírito, já que carecemos de alguma, por mais leve que seja. Não quis, pelo menos até agora, transformar este caderno numa exposição de idéias. Nem sei se há nele, realmente, a intenção de apresentar uma idéia nítida – fui escrevendo naturalmente, e é possível que reflexos alheios (é disto, sobretudo, que ele me acusa: não serem novas minhas idéias...) reminiscências de conversas ou leituras, tenha aflorado com certa insistência a estas páginas. [...] Impossível uma visão geral, um conceito definitivo sobre o todo, quando o autor é tão desconhecido nosso e as qualidades que prezamos se ramificam em tão sabidos e numerosos defeitos. (ibidem, p.122-3)
Com essa referência aos leitores de seu texto, Lúcio Cardoso revela as camadas que compõem as escritas do Eu. No sentido derridiano dos animais que sou/somos, fica evidente também, no trecho citado, que o si-mesmo, na busca de sua verdade, se vê e se conhece também pela leitura do Outro. Essas questões teóricas também estão relacionadas ao processo de escrita dos textos memorialísticos. Os estudos que tratam de memória e autobiografia são numerosos e vastos, são os recortes feitos nesse uni-
Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas
305
verso da memória e suas associações com a história, a psicologia, a sociologia e, especialmente, no âmbito das discussões dos estudos culturais. Do ponto de vista de Jacques Le Goff (1996), o estudo da história, permeado por dados de outras ciências e da filosofia, além das experiências individuais e coletivas, tende para uma ampliação do conceito de tempo. Segundo Le Goff (1996, p.13), “A oposição passado/presente é essencial na aquisição da consciência de tempo”, e a noção de tempo hoje se mostra atravessada pelo cruzamento de tempos subjetivos ou simbólicos que atravessam o cronológico, revelando a multiplicidade e a relatividade da noção de tempo. Portanto, a memória, o individual, o coletivo atravessam o tempo histórico e têm um caráter de suplemento. Também as histórias individuais, presentes no Diário completo, adquirem um caráter próximo dos relatos orais da história e da memória, analisados por Ecléa Bosi (1994; 2003) em dois de seus livros: Memória e sociedade: lembranças de velhos, e O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. Em Memória e sociedade, Ecléa Bosi (1994) realiza um estudo sobe a memória de velhos, estabelecendo como dado comum a idade superior a setenta anos e o espaço da cidade de São Paulo. Embora sua pesquisa tenha um recorte bem específico, pode-se retirar dela contextos críticos e teóricos mais abrangentes, que não se restringem à análise feita dos dados colhidos nos relatos da história oral dessas pessoas. A autora se utiliza das concepções de memória e percepção para afirmar, por exemplo, que: O passado conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente, mas não de forma homogênea. De um lado, o corpo guarda esquemas de comportamento de que se vale muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas: trata-se da memória-hábito, memória dos mecanismos motores. De outro lado, ocorrem lembranças independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares, que constituíram autênticas ressurreições do passado. (Bosi, 1994, p.48)
306
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Essa consideração é importante, pois trata do aspecto plurissignificativo e heterogêneo da memória. Ao se abordar textos memorialísticos e/ou autobiográficos não é possível esquecer que parte dessas lembranças individuais estão mescladas por lembranças coletivas. A visão parcial da percepção do autor das memórias também se amplia para a sua percepção do real. Esse ponto nos permite ler nas entrelinhas dos textos memorialísticos e autobiográficos a suplementação do ponto de vista sobre uma época, sua sociedade, sua cultura. Lúcio Cardoso, em sua peculiar escrita do Eu, acrescenta considerações que se fundem a uma história maior, tanto no sentido social e histórico quanto no existencial; como na seguinte citação: Desconfiar, reagindo sempre. Não aceitar nunca. Todo pacto com o tempo presente é uma forma de trair o futuro. Os homens, as coisas, os sentimentos de hoje, são restos de antiguidade, dos sentimentos, as coisas e dos homens que já exprimiram, que já se manifestaram como elos de crescimento. Não nos lançarmos à compreensão fácil e nem nos situarmos nos terrenos de uma aceitação superficial: o que é duradouro exige paixão, e paixão significa ao mesmo tempo repulsa e atração. Os homens de hoje nos compreendem pelos lados que nos são mortos, sem resistência para o futuro; aqueles que nos aceitam, são os que o fazem sem compreender o que em nós é substância imatura, destinada a nos fazer perduráveis ao longo do tempo. O tempo presente é o nosso túmulo – e a única coisa a que se pode dar o nome de ressurreição é o futuro. (Cardoso, 1970, p.79)
De acordo com Philippe Lejeune (1975), cada história pessoal, escrita ou narrada oralmente, se constitui fonte de memórias ou de autobiografias. A partir de suas pesquisas, o autor afirma que os mesmos procedimentos narrativos se encontram presentes nos textos memorialísticos ficcionais ou tidos com “verdadeiros”, no caso de memórias individuais ou autobiografias. Dessa constatação ele reflete sobre o conceito de pacto autobiográfico entre autor e leitor, para que se compreenda o processo
Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas
307
seletivo e a interferência do imaginário criador na escritura de memórias e autobiografias. A diferença reside no fato de se tomar esse gênero como obra de alguém elevado à categoria de escritor no sentido lato ou de depreciar o gênero como um anônimo desabafo ou registro meramente pessoal, individual, sem ligações com os contextos de produção ficcional. Portanto, pode-se deduzir que o grau de diferença entre um texto de memórias ou de autobiografia não é nítido, depende da ampliação das lembranças expostas no texto: mais voltadas para os envolvimentos sociais, mais voltadas para o âmbito pessoal e familiar. Essa categorização se torna inútil, porém, para definir os gêneros, uma vez que toda memória é uma construção plural, polifônica. O Diário completo de Lúcio Cardoso tem essa característica ambígua, que esclarece e confunde vida, ficção, presente, passado e futuro, um conhecimento de si, repleto de dúvidas: (Pesquisas, buscas arqueológicas, cidades desenterradas da areia – por que é que isto tanto me fascina? Se somos a exata imagem do mundo, por que não supor em nosso íntimo, no grau de nossa inteligência e nossa sensibilidade, uma superposição de datas, de memórias idas e esvaídas, de seres que já fomos, e de que só temos consciência pelos restos que vêm à tona, ou que surgem trazidos pelas escavadeiras da nossa curiosidade?) (Cardoso, 1970, p.222, parênteses do original)
Considerando o livro de Maurice Halbwachs, A memória coletiva (cujas citações aqui apresentadas foram extraídas de notas traduzidas na internet), observa-se que o autor reforça a idéia de que a memória tem na própria pessoa uma testemunha do passado, bem como a possibilidade do apoio nas lembranças dos outros, que compartilharam tempo e espaço com os autores das narrativas. Buscar o apoio em outras lembranças permite uma segurança maior na evocação dos fatos. Entretanto, pelo próprio processo seletivo e simbólico das lembranças, não há necessidade de que as pessoas nelas envolvidas estivessem
308
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
presentes como testemunhas de fatos, que serão narrados. É como se, no tempo e no espaço das vivências, as lembranças pudessem acontecer pelo fato de ouvir contar o que, necessariamente, não foi presenciado. A questão da autoria, portanto, nas escritas do eu se revelam, também no Diário de Lúcio, como uma evocação de memórias e vivências compartilhadas, como se pode ler no seguinte trecho: Alguém, há tempos, achou esquisito que eu afirmasse não ser um escritor, e sim uma atmosfera. Há dias em que me sinto um personagem, e não eu mesmo. Alguém está contando uma história em que sou um dos acessórios. Só me reconheço, só encontro de autenticamente meu, a obstinação com que levo esse ser imaginado a costear todas as rampas do precipício. (Cardoso, 1970, p.90)
As memórias do passado são entrecruzadas pela representação simbólica dos acontecimentos. Halbwachs (s. d., p.54) assim define dois tipos de memória, com diferentes graus de complexidade para serem lembradas: a coletiva e a individual. No caso da memória individual, o autor afirma que: Ela {memória individual} não está inteiramente isolada e fechada. [...] Ela se reporta a pontos de referência que existem fora dela, e que são fixados pela sociedade. [...] nossa memória não se confunde com a dos outros. Ela é limitada muito estreitamente no espaço e no tempo. A memória coletiva o é também; mas esses limites não são os mesmos. Eles podem ser mais restritos, bem mais remotos também.
Michael Pollak (1989, p.4), no artigo “Memória, esquecimento, silêncio”, ressalta que entre a memória coletiva e as memórias individuais ocorre, além da seleção, um processo de “negociação” para que a partir dessa troca se possa reconstruir a memória individual numa perspectiva comum. De acordo com o autor, ao se privilegiar “a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressalta a importância de memórias subterrâ-
Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas
309
neas que [...] se opõem à ‘memória oficial’”. Com isso ele discorda de Halbwachs, porque essa memória oficial possuiria não um caráter construtivo na preservação na preservação da memória coletiva, mas sim destrutivo e uniformizador, ao apagar as memórias subterrâneas. Assim, o campo ideal de pesquisas sobre a memória seria o espaço do conflito, onde as disputas pela supremacia de determinadas formas de memória estão presentes. Nas referências que Pollak faz sobre o papel do silêncio nas memórias, percebe-se que esse surge justamente por impossibilidades diversas do poder de “negociação” entre a memória coletiva e/ou a oficial com relação às memórias subterrâneas e/ou individuais – quer seja pela situação dos vencidos nas guerras ou o caso dos exilados, quer seja por recuperar as dores da memória individual que entrariam em choque coma as vivências compartilhadas entre os narradores e as pessoas mais próximas, como o grupo social ou familiar. Esses aspectos são assim resumidos por Pollak (1989, p.6-7): “Assim também, há uma permanente interação entre o vivido e o aprendido, o vivido e o transmitido. E essas constatações se aplicam a toda forma de memória, individual e coletiva, familiar, nacional e de pequenos grupos”. Retomando as anotações do Diário completo de Lúcio Cardoso, observamos o cuidado do autor em manter certos nomes de pessoas amigas marcadas apenas com a letra inicial. Também durante pesquisa realizada no acervo de Lúcio Cardoso, sob a guarda da Fundação Casa de Rui Barbosa, observamos que algumas cartas, ali arquivadas, só poderão vir a público daqui a dez anos; outras, somente daqui a vinte anos. Considerando que Lúcio Cardoso faleceu em 1968 e que só bem mais tarde sua irmã, Maria Helena, doou seu acervo, é revelador o cuidado tanto de Lúcio quanto de sua família em preservar as histórias de outras memórias que se cruzaram com as suas. Mário Carelli (1988), estudioso da vida e da obra de Lúcio Cardoso, escreveu em seu livro Corcel de fogo que o autor tinha consciência dos limites de sua própria forma
310
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
de escrever nas fronteiras da ficção, do ensaio e do texto de memórias. Retomo a citação usada por Carelli para explicitar esse aspecto, agora retirada diretamente da fonte original: Sem dúvida, o ideal como “diário” não é um processo constante de auto-análise – convenhamos que nem sempre há dentro de nós grandes novidades, já somos tão conhecidos – e sim alguma coisa que participe da invenção. Gênero híbrido, a ser tentado. (Cardoso, 1970, p.86)
Dessa forma, de tentativa em tentativa, o si-mesmo, o animal que tem consciência do ser humano, preenche o que não sabe ou não quer revelar a seu respeito com a arte, a criação. O conhecimento de si mesmo é um não lugar de certezas, como lemos no Diário: Sim, a saúde, a alegria, o belo existem para mim, mas como destroços de um mundo incoerente. As tristezas que tenho, se não parecem minhas, de tão arbitrárias e violentas, são como as alegrias: vindas não sei de onde e que me apanham de repente no caminho. Não há motivo persistente, um estado definitivo, há vagas que me devoram. (ibidem, p.86-7)
Não há como movimentar-se com segurança em um texto que pertença às escritas do eu. Seria um labirinto cuja saída não se encontra com o fio de Ariadne; é mais parecido com as vagas de que fala Lúcio Cardoso, que nos arrastam, juntamente com o narrador-autor-escritor-personagem, pelas correntezas. Em algum momento é possível até flutuar e reconhecer algum pedaço de caminho, um resto de céu, um pouco da praia, mas na maior parte do tempo somos tão desconhecidos de nós mesmos que, quando retomamos o título do livro de Jacques Derrida (2002), temos a dimensão do desconhecido O animal que logo sou (A seguir).
Lúcio Cardoso: Diário completo, memórias incompletas
311
Referências BERGSON, Henri. Matéria e memória. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BOSI. Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. . O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. CARELLI, Mario. Corcel de fogo: vida e obra de Lúcio Cardoso (1912-1968). Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. CARDOSO, Lúcio. Diário completo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970. DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou (A seguir). Trad. Fábio Landa. São Paulo: Editora Unesp, 2002. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Disponível em: <http:/pedagogiaeetc.vilabol.uol.com.br/memoriacoletiva.htm>. Acesso em 2006. LE GOFF, Jaques. História e memória. 4.ed. Trad. Bernardo Leitão et. al. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. LEJEUNE, Phippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975. POLLACK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.2, n.3, p.3-15, 1989.
313
Minhas queridas, letras de amor e saudade Vera Lúcia Albuquerque de Moraes* Fernanda Maria Abreu Coutinho* *
RESUMO:
A seleção de 120 cartas inéditas, pinçadas dos arquivos das irmãs Lispector por Teresa Montero, trata da trajetória dos primeiros vinte anos da escritora Clarice Lispector, constituindo valioso arquivo literário e histórico. Além de mostrar as interfaces do “amor e da ternura” entre as irmãs Lispector, o livro é um importante depoimento de momentos que marcaram o exílio geográfico e sentimental dessa singular escritora do modernismo brasileiro. PALAVRAS-CHAVE:
Cartas, arquivos, irmãs, amor e ternura,
exílio. ABSTRACT: The compilation of 120 unpublished letters, selected
by Teresa Montero (2007) from the Lispector sisters files, focus the period of the first twenty years of Clarice Lispector´s writings and becomes a valuable historic and literary document. Besides showing the interfaces of “love and tenderness” among the Lispector sisters, the book is an important testimony of the times spent in a geographic and sentimental exile by this distinguished representative of the Brazilian modernism. KEYWORDS:
* Professora doutora do Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC) – Fortaleza (CE). ** Professora doutora do Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC) – Fortaleza (CE).
Letters, files, sisters, love and tenderness, exile.
Os dezesseis anos que Clarice Lispector passou “exilada” de sua família e de seu público leitor renderam uma alentada correspondência a amigos, escritores e, especialmente, às suas irmãs Elisa e Tânia. Entre as décadas de 1940 e 1950, Clarice fixou residência em várias cidades do exterior e escreveu dois romances: A cidade sitiada (1949) e A maçã no escuro (1961), e O Lustre estava terminado quando ela se mudou para Nápoles. Nesse meio-
314
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
tempo, publicou as coletâneas de contos Laços de família (1960), A legião estrangeira (1964) e Alguns contos (1952). Parte de sua correspondência a amigos e escritores foi publicada em Cartas perto do coração (2000), Correspondências (2002) e Minhas queridas (2007), este último uma seleção de 120 cartas inéditas, pinçadas dos arquivos das irmãs Lispector por Teresa Montero, que trata da trajetória dos primeiros vinte anos da escritora Clarice Lispector, constituindo valioso arquivo literário e histórico. Além de mostrar as interfaces do “amor e da ternura” entre as irmãs Lispector, o livro é um importante depoimento de momentos que marcaram o exílio geográfico e sentimental dessa singular escritora do modernismo brasileiro: “Eu sou uma pobre exilada. Você não imagina como longe do Brasil se tem saudade dele. Sou capaz de escrever um novo Brasil, país do futuro...” (Lispector, 2007, p.63); “Já me parece sinceramente não pertencer mais a nenhum lugar, tenho medo disso. Mas vamos deixar o futuro ao futuro” (ibidem, p.279). Com a morte do pai de Clarice, em agosto de 1940, ela e a irmã Elisa passaram a morar com Tânia, então casada com William Kaufmann. A paixão pelas letras era compartilhada pelas três irmãs Lispector, tendo Elisa publicado seu primeiro romance, Além da fronteira, sem o conhecimento das irmãs, evidenciando, desde logo, um modo de ser muito reservado. Clarice, a caçula, sempre exerceu uma atitude extremamente maternal com suas irmãs mais velhas, fato que se mostra nas minúcias e nos detalhes de questões levantadas pela escritora em cartas trocadas com o núcleo familiar, no período em que morou na Europa e nos Estados Unidos. Era tempo de guerra e a temporada de Clarice é pontuada por importantes momentos da história política da Europa que interferiram no cotidiano da escritora: “O que tem me perturbado intimamente é que as coisas do mundo chegaram para mim a um certo ponto em que eu tenho que saber como encará-las, quero dizer, a situação de guerra, a situação das pessoas, essas tragédias” (ibidem, p.12).
Minhas queridas, letras de amor e saudade
315
Seu primeiro filho, Pedro, nasceu em Berna. Lá, Clarice entrou em contato com o existencialismo de Sartre, escreveu A cidade sitiada e iniciou-se na leitura de François Mauriac, Tolstói e Simone de Beauvoir. Nesse lugar, vivenciou dolorosamente um sentimento de “desenraizamento”, provocado por anos de permanência no estrangeiro, com a especificidade de pertencer ao meio diplomático em que, segundo ela própria, se está fora da realidade e não se entra em nenhum meio: “o meio diplomático é composto de sombras e sombras” (ibidem, p.14). Mas não é só o meio diplomático que lhe deixou indesejadas recordações: sua trajetória em Berna tornou-se maçante e incolor, a ponto de afirmar: “só voltarei a Berna se Pedrinho quiser ver o lugar onde nasceu” (ibidem, p.222). Seu exílio será tema das muitas cartas que escreveu a suas irmãs: Estamos espiritualmente cansados [...] imagina que daqui a alguns anos estaremos exaustos. O corpo e cabeça ficam constantemente procurando uma adaptação, a gente fica fora de foco, sem saber mais o que é e o que não é. Nem meu anjo da guarda sabe mais onde moro. (ibidem, p.14)
O acervo que compõe Minhas queridas legitima-se numa época em que se acentua um crescente interesse pela correspondência e pelo manuscrito literário, importância essa que vem crescendo significativamente à medida que a internet se instala como meio de dominação da produção escrita, anulando cartas de papel escritas a mão ou em máquinas de escrever. Assim, esse maço de lembranças cuidadosamente cultivado oferece ao leitor a oportunidade de evocar tempos passados, tempos em que havia o uso do telégrafo, em que o carteiro era personagem destacada de tantas vidas, valendo como um istmo entre saudades apartadas pela distância. Ah! e as palmas no portão ou, na melhor das hipóteses, o triim da campainha deixava os corações em alvoroço, nesses longes em que também havia a comunicação pelo rádio entre localidades que os mapas se encarregavam de separar. Clarice confessa a
316
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Tânia que “receber carta sua às vezes tem o sentido que teria abrir as janelas de um quarto onde eu estivesse fechada há semanas” (ibidem). Lygia Fagundes Telles, no ensaio que escreveu para o livro História das mulheres no Brasil, organizado por Mary Del Priore (2006), pondera que a revolução da mulher foi a mais importante do século XX. Não se trata da revolução feminista, com tantas polêmicas e conotações ideológicas, mas de uma revolução subterrânea – prudente e paciente – e, talvez, mais obscura. Teria o seu nascedouro visível no final do século XIX e viria a desenvolver-se plenamente na Segunda Grande Guerra, quando os homens partiram para as trincheiras e as mulheres ficaram na retaguarda, dispostas a exercer o ofício desses homens nas fábricas, nos escritórios, nas universidades, entre outros lugares. Enfim, as mulheres foram à luta e se orgulharam de si próprias, reconhecendo-se nesse processo: tudo isso explica em parte o veio narcíseo das representações femininas em suas diversas manifestações; explica também o nascimento consciente de autoras engajadas às suas verdades: “Mas estou já cansada de minhas hesitações, que já me trouxeram bastante aborrecimento. Tenho sempre que me lembrar que tudo que consegui na vida foi à custa de ousadias, embora pequenas” (Lispector, 2007, p.206). Lícia Manzo (1997), no instigante livro Era uma vez: Eu – a não-ficção na obra de Clarice Lispector, afirma que essa escritora esboça, por meio de sua literatura, um percurso irreversível em direção à primeira pessoa, ao texto confessional, ao eu, acabando por converter-se na personagem central de seus textos. Refletindo nessa direção, compreende a ficção clariciana como uma “autobiografia não planejada”, um exercício de ler a sua vida por intermédio do que Clarice nos “contou” em sua literatura: O ato criador é perigoso porque a gente pode ir e não voltar mais. Por isso que eu procuro me cercar na minha vida de pessoas sólidas, concretas: de meus filhos, de uma empregada, de uma moça que mora comigo e que é muito
Minhas queridas, letras de amor e saudade
317
equilibrada. Para eu poder ir e voltar dentro da literatura sem o perigo de ficar. Todo artista corre um grande risco. Até de loucura. Por isso precisa tomar cuidado. Eu tomo cuidado. Eu gosto de comer, de comprar roupa, adoro meus filhos, gosto de convidar a namorada de meu filho para vir jantar. O cotidiano como fator de equilíbrio das incursões pelo desconhecido da criação. (Manzo, 1997, p.209)
A metamorfose de Clarice Lispector em Clarice Gurgel Valente, esposa devotada à vida doméstica e ao marido Maury Gurgel Valente, acarretaria uma série de mudanças à vida da jovem escritora, das quais as mais expressivas foram os sucessivos e obrigatórios deslocamentos para acompanhar o marido em missão diplomática, fixando residência em Belém, Nápoles, Itália, Suíça, Inglaterra e, por último, nos Estados Unidos. Segundo Manzo (1997, p.29), “a intensa vida social exigida pela atividade de seu marido também resultava em mudança para Clarice: tímida, retraída e avessa a badalações, ela viu-se subitamente impelida a freqüentar uma série infindável de recepções, jantares e coquetéis”. A imensa saudade do Brasil era aplacada pela intensa correspondência trocada com os amigos e a família. A distância de sua terra acabou convertendo-se em irreparável exílio de si própria, e os reflexos dessa penosa ausência se fariam sentir em suas crônicas, contos, romances, cartas, entrevistas, artigos para jornais, enfim, em tudo que escreveu: “Em agosto teremos 5 anos de exterior. Não são cinco dias. Cinco anos de não saber o que fazer, cinco anos durante os quais, dia a dia, me perguntei como perguntava a vocês: que é que eu faço?” (Lispector, 2007, p.210). O tom especialmente afetivo com que escreve à irmã Tânia, que ela chama de “minha única filhinha”, “minha única amiga”, constitui um comovente depoimento do isolamento emocional que acompanhava Clarice, enquanto cumpria funções na alta sociedade, papel totalmente em desacordo com buscas interiores que ela empreendeu, incessantemente, durante toda a sua vida. Entretanto, em outros momentos, ela procurou transmitir para
318
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
as irmãs uma atmosfera mais leve e descontraída da vida que levava, salientando o ambiente de sofisticação e glamour que inevitavelmente acompanhava a vida requintada de um casal de diplomatas no exterior, embora Clarice tentasse, com modéstia, minimizar a importância dessas representações: Como você sabe, a Sra. Roosevelt passou por aqui. Fomos convidados para recebê-la no aeroporto e para ir a uma recepção dada a ela. Fui com meu vestido preto. Ela é simpaticíssima, muito simples, vestida com bastante modéstia, bem mais bonita pessoalmente do que nas fotografias e no cinema. No dia seguinte ela deu entrevista coletiva à imprensa e eu fui, mandei noticiário telegráfico para a Noite, mesmo estando de licença porque não queria perder a chance. (ibidem, p.31) Hoje tenho que ir a um cocktail. Amanhã jantaremos com o Presidente na casa do ministro, com vestido comprido e balangandãs materiais e espirituais. Depois de amanhã almoçarei na casa da embaixatriz de França, senhora que escolhe muito os convidados e que me honra com sua atenção freqüente (ela é aliás a única mulher inteligente do meio diplomático). Depois de depois de amanhã, almoço com o ministro do Exterior na nossa Legação... Não pense que é sempre assim, é uma semana rara. A você conto para dar idéia do que pode acontecer por aqui... (ibidem, p.205)
Por vezes, reconheceu que “eu sou horrivelmente difícil de se viver com” (ibidem, p.37). Fragmentando-se em outros textos, surgiram os argumentos: “Mas eu te digo: eu nasci para não me submeter; e se houver essa palavra, para submeter os outros. Não sei porque nasceu em mim desde sempre a idéia profunda de que sem ser a única nada é possível” (ibidem, p.36). Depois de conhecer os mais diversos lugares, declarou: “O mundo todo é ligeiramente chato, parece. O que importa na vida é estar junto de quem se gosta” (ibidem, p.40). Por essas razões é que a travessia do deserto de Saara lhe causou uma impressão tão sombria: “Atravessei parte do Saara. É uma coisa de meter
Minhas queridas, letras de amor e saudade
319
medo. Nunca vi tanta solidão. A areia não é branca, é creme. É maior que um mar” (ibidem, p.42). Minhas queridas põe em destaque a insistência de apelos e a recorrência de pedidos por cartas freqüentes que simbolizavam a intensidade do amor ora exigido, ora humildemente implorado por Clarice a suas irmãs. Os sentimentos que emanam dessas cartas expõem certa dose de ingenuidade quase infantil, escrita simplória que contrasta com uma escrita outra – a de sua obra literária – dotada de singular complexidade em suas estratégias argumentativas. Os textos das cartas põem em foco comovente carência de Clarice em relação ao núcleo familiar, bem como sua constante atenção à saúde e bem-estar das irmãs, da sobrinha, do cunhado etc. De certa maneira, a ansiedade aí revelada denota o sentimento descrito por Rubem Braga (1979, p.87) – grande amigo da autora – em uma de suas crônicas meditativas: “Sobre o amor, etc.”. Avaliando o impacto dilacerante do estar longe na vida das pessoas, afirma: “Agora sabemos que jamais voltaremos a estar juntos; pois quando estivermos juntos perceberemos que já somos outros e estamos separados pelo tempo perdido da distância. Cada um de nós terá incorporado a si mesmo o tempo da ausência”. Outro tema recorrente nas cartas é a preocupação com a edição de seus livros e com comentários críticos recebidos, embora a escritora constatasse não viver uma fase produtiva, sendo acometida, com freqüência, de certa inércia e indisposição para ler e escrever: Roma, 8 novembro 1944 (Carta velha...) Elisa, queridinha: Você não é minha amiga? Por que você não me escreve dizendo coisas suas, dizendo do apartamento, do trabalho, de você mesma? Estou escrevendo a última hora, antes de levarem as cartas, e mesmo depois de ter escrito a vocês duas. Mas quis ainda fazer este apelo de última hora, na esperança de comover você. Me diga também sobre Tânia, se ela está muito cansada. Por favor, se você me quer bem, escreva.
320
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Cuide-se, divirta-se, cuide de Tânia, seja feliz. Nem sei mais o que dizer, tão aflita fico por convencer. Diga sobretudo o motivo porque até agora não me escreveram. Um abraço da Sua Clarice. (ibidem, p.44)
Os momentos de pausa, em que não conseguia escrever, provocavam-lhe muita inquietação: “Não escrevi uma linha, o que me perturba o repouso. Eu vivo à espera de inspiração com uma avidez que não dá descanso. Cheguei mesmo à conclusão de que escrever é a coisa que mais desejo no mundo, mesmo mais que amor” (Lispector apud Gotlib, 1995, p.223). Quanto mais a escrita lhe parecia difícil, mais tinha certeza de ser ela a essência de sua vida. As críticas negativas sobre seus primeiros livros – talvez pela apresentação de uma linguagem literária tão deslocada em relação à escrita vigente – também deixaram marcas na escritora, contribuindo para aumentar o grau de ansiedade que sentia em períodos considerados difíceis. Em Minhas queridas, podemos observar suas constantes mudanças de humor, oscilando, continuamente, entre estados de leveza e alegria, passando por indiferença, chegando à mais completa apatia, momento em que grande sono pairava sobre a escritora. Nilze Maria de A. Reguera (2006), em Clarice Lispector e a encenação da escritura, observa que existe um princípio de organização de leitura que permite ao leitor enfrentar, logo de saída, uma das questões fundamentais que a obra de Clarice incita: a do fingimento poético. O pórtico do livro encenado traduz bem o território em que serão problematizadas as questões levantadas pelo leitor – margens indefinidas entre o ficcional e o não-ficcional, já que um pode reverter-se no outro, e assim sucessivamente, uma vez que estamos no universo do jogo artístico e sabemos que Clarice ficcionalizava o mundo que a rodeava e a si mesma: Tânia, filhinha, Minhas saudades têm estado agudas mas dentro de uma névoa – como uma sirene de noite no mar, como diria
Minhas queridas, letras de amor e saudade
321
Jeni Pimentel Borba ou eu mesma. Mas abrindo a caixa de correio e vendo sua letra – de repente meu coração começou a bater de alegria e eu ouvi a sirene de perto, desfeitas as névoas, sirene de manhã. Fui lendo na rua mesmo, e todo carinho que você me fazia eu bebia rápido-rápido, porque já há muito tempo você não regava esta planta suíça. Dei logo flores e passei um dia de sol. [...] Querida, você está linda? Tem cuidado dos cabelos? E o retrato com cabelos curtos? E o vestido comprido? Eu cortei uma franja lisa, e fiz permanente no resto. Mudei tanto que certas pessoas não me reconheceram. Vale apenas como transformação momentânea. (Lispector, 2007, p.191)
O humanismo em Clarice Lispector – um estudo do ser social em A hora da estrela, ensaio escrito por Ana Aparecida Arguelho de Sousa (2006, p.23), procura explicar que as pesquisas sobre Clarice contêm elementos expressivos de uma possível identidade entre a autora e suas personagens. O projeto ideológico que perpassa sua obra dá a conhecer uma produção escrita direcionada à busca incessante da essência do ser humano, situando-o em seu contexto social e existencial. A crítica tem apontado grande proximidade entre a produção literária de Clarice com a de James Joyce e Virginia Woolf, especialmente quanto aos recursos discursivos utilizados pelos três escritores: o caráter desconstrutivo da narrativa, o fluxo da consciência, a epifania e a natureza poética, entre outros. A idéia de que o ser humano, cerne do projeto ideológico, é colocado como figura central da obra, ampara-se em opiniões de Nádia Battella Gotlib (1995, p.437) a partir de registros de depoimentos de Clarice e sugere que o foco no indivíduo pode ser uma estratégia para fazer emergir o ser no que existe de circunstancial em sua existência. E quando traz o outro, pode ser que esteja trazendo a si mesma. Desde a infância, Clarice evidenciou tendência para socorrer pessoas carentes, animais debilitados; enfim, sempre foi muito sensível às fraquezas e misérias do mundo. E fez questão de evidenciar esse sentimento de comoção em muitos de seus textos. Quem não se lembra da passagem
322
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
de A mulher que matou os peixes, em que uma narradora, factótum da autora, num rodopio sobre o lugar comum da sensibilidade, indaga: “Vocês têm pena de rato? Eu tenho porque não é um bicho bom para a gente amar e fazer carinho. Vocês fariam carinho num rato? Vai ver vocês nem têm medo e em muitas coisas são mais corajosos do que eu” (Lispector, 1999, p.5). Por isso, sofreu grande abalo quando passou a ser tachada de “alienada” por alguns críticos. Sem fazer literatura engajada a partidos políticos ou causas panfletárias, no entanto, escreveu para engrandecer o ser humano, levando-o a descobrir sua essencialidade e, em conseqüência, lutar por suas verdades, assumindo atitudes na vida. A hora da estrela é seu “livro vingador”, aquele que fecha o ciclo de trajetória da nordestina pobre (Macabéa/Clarice) que se desenraiza no exterior, mas que, ao morrer, volta às suas raízes, na transparência da personagem cariada, inteligentemente urdida pela escritora. Em tempos de guerra, Clarice se solidarizou com o sofrimento da população, ajudando, como voluntária, soldados e feridos em hospitais de Nápoles. Por essa atitude, recebeu o seguinte ofício de agradecimento do chefe da Seção Brasileira de Hospitalização: Ao deixar a Chefia da Seção Brasileira de Hospitalização em Nápoles, cumpro o grato dever de agradecer a V. Excia. todo o serviço que tão espontaneamente vem prestando à nossa organização, colaborando na sua Seção de Serviço Social, trazendo ao nosso soldado ferido ou doente o grande consolo do seu serviço e da sua graça. Nunca seriam demais as palavras que eu poderia dirigir a V. Ex. para expressar a minha admiração pela contribuição que trouxe a todos nós nestes momentos em que o Brasil precisa tanto de seus filhos. Em nome destes homens, de todos os que aqui labutam e no meu próprio, beijo, agradecido, as vossas mãos dadivosas. Nápoles, 17-abril-1945– Dr. Sette Ramalho, Tte. Coronel Médico. (Lispector, 2007, p.84)
Vilma Arêas (2005, p.15-16) faz uma sugestiva distinção entre os textos de Clarice escritos “com as entra-
Minhas queridas, letras de amor e saudade
323
nhas” (consagrados pela tessitura bem urdida) e os textos escritos “com as pontas dos dedos” (textos menos elaborados e que a própria autora chamou de “lixo”, a exemplo dos contos de A via crucis do corpo). Arêas defende a idéia de que os textos escritos “com a ponta dos dedos” possuem uma relação profunda com o restante da obra clariciana: Estrategicamente me limitando à forma, percebi que as matrizes poéticas de todos esses textos, nascendo entre fulgurações fragmentadas, são submetidas à mesma técnica de desgaste, como se a escritora “desescrevesse” o texto, na expressão feliz de Benedito Nunes, ou como um lenço de seda que continuamente de desatasse. É como se Clarice tivesse escrito apenas um livro durante toda a vida, obedecendo a modulações que às vezes quase o desfiguram, ao sabor de dificuldades pessoais e profissionais experimentadas, sobretudo, após seu regresso ao Brasil, em 1959.
A feitura de textos “com a ponta dos dedos” revela também uma Clarice muito preocupada com a beleza, a moda, os cuidados com os cabelos, a pele, o controle de peso e tudo que pudesse envolver a estética da aparência. Nesse ponto, a correspondência se encontra com a matéria de algumas colunas jornalísticas mantidas durante alguns anos por Clarice, com a justificativa de que precisava sobreviver, uma vez que estava separada do marido e com a incumbência de criar dois filhos. Na década de 1950, as leitoras de tablóides e jornais cariocas liam Clarice Lispector sob pseudônimos e como ghost-writer para colunas femininas, a fim de evitar que descobrissem a autoria da matéria, uma vez que ela já era uma escritora consagrada e muito visada pela crítica. Protegida pelo nome de Helen Palmer, escreveu uma coluna para o segundo caderno do Correio da Manhã, nas quartas e sextas-feiras, participando de 128 edições. Clarice atuou, também, como ghost-writer de Ilka Soares, da coluna “Só para mulheres”, no Diário da Noite, com seis artigos por semana, publicados entre 1960 e 1961. A primeira seção, “Um retrato de mulher”, compõe um verdadeiro manual
324
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
de “ser mulher” naquele período, com dicas sobre moda, beleza, elegância, leitura e, mesmo, sobre como “fumar bem”. Essas mulheres eram o retrato da dona de casa exemplar: tudo deveria estar de acordo com as etiquetas da sociedade, sempre mostrando mães e donas de casa felizes, bem vestidas e dispostas (Nunes, 2006, p.309-13). O livro Minhas queridas traz essas questões, em variados momentos: Querida, você está linda? Tem cuidado dos cabelos? E o retrato com cabelos curtos? E o vestido comprido? Eu cortei uma franja lisa, e fiz permanente no resto. Mudei tanto que certas pessoas não me reconheceram. Vale apenas como transformação momentânea. (Lispector, 2007, p.191) Tem feito bastante frio. Não gosto nada. É detestável andar encolhida, com a pele toda franzida de vento. É por isso que às vezes se vêem moças de vinte anos com cara de muito mais. (ibidem, p.236) Você passou alguma tintura nos cabelos? Que cor? Espero que não tenha sido negro, que endurece muito os traços. Por uma fotografia recente de Marcinha tive a impressão de que os dentes estavam ligeiramente salientes. É verdade? (ibidem, p.186) Querida, você está com o cabelo curto? Mande um retrato assim. Eu estou com o cabelo enorme, pretendendo cortar e ondular embora não saiba se me fica bem. Mas já estou muito cansada de minhas hesitações, que já me trouxeram bastante aborrecimento. (ibidem, p.206)
Em uma carta de Minhas queridas, Clarice comenta a gênese do conto “O búfalo”, criação literária feita “com as entranhas”: Um dia desses tive um ódio muito forte, coisa que eu nunca me permiti; era mais uma necessidade de ódio. Então escrevi um conto chamado “O Búfalo”, tão, tão forte, que, por experiência, fui ler para Mafalda, Armando Pires [...] e para Maury, e eles sentiram até um mal-estar. O rapaz
Minhas queridas, letras de amor e saudade
325
disse que o conto todo parece feito de entranhas... Maury, é claro, não gostou: assustou-se com a violência. (ibidem, p.269).
A evidência de que a obra literária gira ao redor de temas recorrentes, que surgem como variações de seus núcleos basilares, não é uma novidade crítica. Uma escrita da ruminação e do rodear o mesmo ponto, mimetizando seu objeto de análise pela reiteração, já foi afirmada por muitos escritores. Machado de Assis freqüentemente declarava: “rumino muito mais do que falo”, observando as reiterações e os zigue-zagues de seus pensamentos e de sua escrita. As pulsações da escrita clariciana, na coletânea de cartas Minhas queridas, são provocadas especialmente por desafios contextuais resultantes do “desenraizamento geográfico e emocional” da escritora, culminando por desestruturar o seu texto familiar, que gagueja, balbucia, lacrimeja, bate o pé, aproximando-se da linguagem infantil em sua feição predominantemente tautológica. Entretanto, após muitos anos de exílio e com a perspectiva de volta iminente ao Brasil, vislumbramos o retorno do estilo clariciano em sua integridade, pleno de energia e de profundas reflexões: – Fiquei contente em Marcinha perguntar quando volto. Diga a ela que talvez no começo do ano que vem estejamos lá. Diga a ela que esses anos todos pingaram gota a gota e que eu por assim dizer contei uma por uma – mas que ao mesmo tempo passaram incrivelmente depressa porque um só e único pensamento ligou-os: esse tempo todo foi como o desenvolvimento de uma idéia só: a volta. Diga a ela que não espere, por isso, me ver voltar aos pulos de alegria e aos risos: nunca se viu ninguém sair da prisão aos risos: a alegria é muito mais profunda, e também o tempo de contenção e a obrigação de paciência ensinam a calma. (ibidem, p.184, grifos nossos)
Em A poética do espaço, Bachelard (2000, p.215) pondera que o exterior e o interior formam uma dialética de
326
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
esquartejamento, e a geometria evidente dessa dialética nos cega tão logo a introduzimos em âmbitos metafóricos. Ela tem a nitidez crucial da dialética do sim e do não, que tudo decide. Fazemos dela uma base de imagens que comandam todos os pensamentos do positivo e do negativo. Com o interior e o exterior, pensa-se o ser e o não-ser e, por isso, Bachelard considera que o ser do homem é uma espiral E nessa espiral os dinamismos freqüentemente se invertem. Já não sabemos se corremos para o centro ou se nos evadimos: Assim, o ser espiralado, que se designa exteriormente como um centro bem revestido, nunca atingirá o seu centro. O ser do homem é um ser desfixado. Toda expressão o desfixa. No reino da imaginação, mal uma expressão foi enunciada o ser já tem necessidade de outra expressão, o ser deve ser de outra expressão. [...] A fenomenologia da imaginação poética permite-nos explorar o ser do homem como o ser de uma superfície, da superfície que separa a região do mesmo e a região do outro. Não esqueçamos que, nessa zona de superfície sensibilizada, antes de ser é preciso dizer. Dizer, se não aos outros, pelo menos a si mesmo. [...] Pela linguagem poética, ondas de novidade correm sobre a superfície do ser. E a linguagem traz em si a dialética do aberto e do fechado. Pelo sentido, ela se fecha; pela expressão poética, ela se abre. (ibidem, p.218)
Existe em Clarice toda uma gama de epifanias de beleza e de visão, mas existe também uma gama de epifanias críticas e corrosivas provocadas por percepções decepcionantes, como as registradas em várias cartas de Minhas queridas. Pode-se vislumbrar, em sua ficção, uma poética do instante, essencialmente ligada à imagem, que a autora reconhece enquanto questiona o ato de nomear: Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante – já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante – já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossarme do é da coisa. (Lispector, 1980, p.9)
Minhas queridas, letras de amor e saudade
327
Segundo André Luís Gomes (2007, p.17), em seu texto “Entre Focos: Correspondências e Textos Literários”, publicado na revista Cerrados, a correspondência enviada e recebida por Clarice Lispector é extremamente esclarecedora para aqueles que se dispõem a decifrar seus textos literários e tem sido fundamental para a organização e elaboração das várias biografias da escritora. As cartas são reveladoras do universo pessoal e ficcional de Clarice, em seu esforço por apresentar-se como uma mulher comum, esposa e mãe de dois filhos, que escreve cartas e se lastima por estar longe de seus parentes queridos e de si própria. Portanto, é quase impossível compreendê-la sem a leitura desse valioso material. Nas considerações finais deste ensaio, avaliamos que Minhas queridas nos põe em contato com uma correspondência forte, questionadora, argumentativa, mas, acima de tudo, singela, terna, amorosa, cuja principal substância é o imaginário dos afetos familiares. Revela como a convivência com as irmãs, com a terra natal e com os amigos constituía elemento vital para o equilíbrio emocional de Clarice Lispector, e quanto seu desenraizamento, provocado por longo exílio em terras estrangeiras, abalou profundamente a frágil e oscilante sensibilidade da escritora, deixando-a freqüentemente esgotada para viver/escrever – o que podemos conferir na intimidade das confissões inseridas no valioso acervo de cartas fraternas Minhas queridas, arquivo literário e histórico da maior importância para os estudos da literatura brasileira.
Referências ARÊAS, Vilma. Clarice Lispector: com a ponta dos dedos. São Paulo: Cia. das Letras, 2005. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: Record, 1979.
328
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
329
GOMES, André Luís. Entre focos: correspondências e textos literários. Cerrados: revista do programa de pós-graduação em literatura, Brasília, DF, Universidade de Brasília, v.16, n.24, 2007. Tema especial: Literatura e presença: Clarice Lispector.
Letras femininas: a escrita do “eu” no universo de Luci Collin
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira*
LISPECTOR, Clarice. Água viva. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. . A hora da estrela. 23. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
RESUMO:
A pesquisa analisa o discurso identitário feminino na obra da escritora Luci Collin. O objetivo principal foi buscar a enunciação feminina em contos produzidos por mulheres, partindo da construção identitária feminina e passando pelos conceitos de multiplicidade nas questões de identidade do sujeito. O trabalho analisa, também, o lugar do qual o sujeito enunciador constrói seu discurso, ou seja, lugar de repetição ou ruptura dos discursos circulantes na sociedade, e ainda demonstra como o sujeito histórico feminino formula seu discurso, trabalha a linguagem para produzir sentido e constrói sua história. Desse modo, o estudo se propõe a contribuir para a discussão sobre a representação do papel da mulher na sociedade contemporânea, a partir do viés literário.
1995. . A mulher que matou os peixes. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. . Correspondências. Org. Teresa Montero. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. . Minhas queridas. Org. e introd. Teresa Montero. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. MANZO, Lícia. Era uma vez: Eu. A não-ficção na obra de Clarice Lispector. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura: The Document Company – Xerox do Brasil, 1997. NUNES, Maria Aparecida. Clarice Lispector jornalista: páginas femininas e outras páginas. São Paulo: Senac, 2006. PRIORE, Mary Del. (Org.) História das mulheres no Brasil. 8.ed. São Paulo: Contexto, 2006.
PALAVRAS - CHAVE :
Identidade, sujeito feminino, literatura
contemporânea.
REGUERA, Nilze Maria de A. Clarice Lispector e a encenação da escritura. São Paulo: Editora Unesp, 2006. SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes; Lorena: Faculdades Integradas Teresa d’Ávila, 1979. SOUSA, Ana Aparecida Arguelho de. O humanismo em Clarice Lispector: um estudo do ser social em A hora da estrela. São Paulo: Musa Editora; Dourados, MS: UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, 2006.
* Professora doutora adjunta do Departamento de Letras da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro) – Guarapuava (PR).
ABSTRACT: This study analyses the feminine identity discourse in the works of contemporary writer from Parana, mainly Luci Collin. The main objective of the study was to search for the feminine enunciation in short stories produced by women, departing from the construction of feminine identity and also based on the concept of multiplicity of the subject’s identity.Moreover, the study analyses the place from which the enunciatory subject constructs its discourse, that is, the place of repetition or disruption of the common discourses in society. It also shows how the historic feminine subject formulates its discourse, uses language to produce meaning and to construct its history. In this way, the study proposes a contribution to the discussion of the representation of the female role in the modern society, through the literary point of view. KEYWORDS:
Identity, feminine identity, modern literature.
330
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
“Um texto descoberto em um arquivo empoeirado não será bom e interessante só porque foi escrito por uma mulher. É bom e interessante porque nos permite chegar a novas conclusões sobre a tradição literária das mulheres, saber mais sobre como as mulheres desde sempre enfrentaram seus temores, desejos e fantasias e também as estratégias que adotaram para se expressarem publicamente apesar de seu confinamento ao pessoal e ao privado.” (Sigrid Weigel)
Introdução A disseminação de pesquisas acadêmicas sobre autoras femininas, particularmente, a partir dos anos 1970, tem contribuído para redimensionar a literatura escrita por mulheres. Assim, o estudo sobre essa literatura resultou em contribuições questionadoras sobre a construção da historiografia literária e sobre a noção canônica de gênero literário. Nesse contexto, inserem-se as redes de associação intelectual das mulheres que se encarregaram da maior parte da escrita e da reflexão feminina, de onde resultou o resgate de tais gêneros. A literatura de autoria feminina tem se revelado um campo profícuo, porém dela ainda é requerida afirmação plena no interior da literatura universal. A visibilidade de tal produção tem se prestado a revelar aspectos de uma intimidade preservada ao longo dos séculos da história e propicia a insurgência de um vivido marcado pelo recato, pelo segredo, pela sutileza ou, mesmo, por um cotidiano enredado em obediência, submissão, acomodação, resistência e/ou afirmação. Na natureza representativa da literatura está o seu modo de ser, de existir dependente de sua função tanto artística como psicossocial e do seu caráter documental. O fenômeno literário, tomado como conjunto de elementos interdependentes, que agem em interação, desenvolve-se historicamente dentro de um outro sistema maior,
Letras femininas: a escrita do “eu” no universo de Luci Collin
331
revelando todas as nuanças da cultura, recriando aspectos da realidade. Inquestionável, portanto, a contribuição de tais vivências, cujos relatos, por meio da literatura, são convertidos em documentos escritos e publicados, legados aos vindouros. Na tentativa de caracterizar o universo da literatura de autoria feminina, alguns atributos constitutivos devem ser destacados de modo a revelar um processo de criação exclusivo. Antes de tudo, emerge a questão da autoria da narrativa. Ela expressa uma posição diante do mundo e carrega um caráter de exclusivo – a renomada experiência feminina. Isso autoriza a presença do eu que escreve e narra, e que é portador de um ponto de vista próprio, que revela um olhar na perspectiva da mulher. Em segundo lugar, reitera-se desse sujeito narrador uma posição consciente acerca de seu papel social e do seu direito de expressão. Denota-se daí uma função política na medida em que tais autoras assumem sua posição de mulher nos processos de alteridade. A escritora selecionada para a pesquisa, Luci Collin, questiona o modelo patriarcal em suas obras, ao mesmo tempo abandona as convenções narrativas para adotar a complexidade da multipercepção. Em geral, essa temática se concentra em contos que questionam as relações de gênero, buscando sem encontrar soluções para impasses criados. O tom impresso nas narrativas concentra-se no íntimo, possibilitando a revelação dos segredos da identidade feminina que reside no cotidiano da mulher. A escolha da escritora foi feita porque apresenta narrativas vividas e escritas por mulher. Além disso, buscou-se, por meio dessa pesquisa, aumentar o campo de visão que se tem sobre a literatura paranaense, porque ao se falar nessa literatura pensa-se na Curitiba de Paulo Leminski e de Dalton Trevisan. Há, de fato, a Curitiba de Paulo Leminski e a de Dalton Trevisan, dois de seus filhotes mais célebres, que revolucionaram a poesia e a prosa, mas há, também, a Curitiba menos conhecida, porém tão revolucionária de Luci Collin.
332
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Letras femininas: a escrita do “eu” no universo de Luci Collin
O discurso identitário na escrita de autoria feminina A inserção de personagens femininas em textos ficcionais masculinos revela-se, de acordo com Castello Branco & Brandão (2004), como a face feminina na qual Narciso se contempla, e no reflexo dessa face ele se vê inteiro e pleno. Eco,1 ao se apaixonar por Narciso, consome-se por esse amor impossível, definha, perde seu corpo e torna-se pura voz condenada à maldição de só repetir. Eco torna-se o eu alienado que se engendra no enunciado, no qual inverte a fala narcisística, tornando-a sua. Não há mais a sua voz e o pensamento próprio. A sua permanência é de construção imaginária, Eco é sintoma e fantasma masculino. O “outro” é demasiadamente presente nela. O amor por Narciso é o constante ecoar. É o “ecoar” permanente que se torna elemento constituinte da sua identidade. Portanto, Eco não é mais conhecida por aquilo que ela pensa ou sente, mas por aquilo que ela ecoa, por aquilo que ela expressa do pensamento e do sentimento das outras pessoas e de outras manifestações. Essa miragem do feminino se dá pelo deslocamento de vozes e o masculino torna-se feminino. Os escritores, em quem se reconhece uma escrita feminina, parecem ter perante o mundo uma atitude próxima das características que a vida das mulheres historicamente foi assumiu. É como se fosse Eco repetindo a voz de Narciso, alienandose nas repetidas frases que continuam a ecoar. Segundo Isabel Magalhães (1994, p.18): A escrita de mulheres se compõe de um denominador simbólico comum ao grupo, é definido pela forma como as mulheres, condicionadas por elementos fisiológicos, antropológicos, socioeconômicos e culturais deixaram respostas aos problemas de produção e de reprodução material e simbólica. Assim, há afinidade natural e cultural historicamente construídas a ligar a mulheres entre si.
Nesses textos observam-se a denúncia da opressão no domínio privado vivida no corpo das mulheres e a opressão
1
Eco era uma ninfa dos bosques e das fontes, era de uma tagarelice irrefreável. Ia sempre ao Olimpo, a pedido de Zeus, para distrair Hera com sua conversa, enquanto o rei dos deuses e dos homens dava suas voltinhas entre os mortais (ou melhor, entre as mortais). Hera, porém, acabou descobrindo o ardil e puniu a pobre ninfa tirando-lhe o dom da fala e condenando-a a repetir apenas as palavras que ouvia dos outros. Narciso, filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope, era um moço de grande beleza, porém insensível ao amor. Muitas jovens e diversas ninfas se apaixonaram por ele, mas não tiveram nenhum sucesso. A ninfa Eco, com alguma dificuldade, declarou-lhe também seu amor e ficou tão desesperada ao ser repelida que começou a definhar: o belo corpo desapareceu por fim restou apenas a sua voz. As demais ninfas, revoltadas, clamaram por vingança e foram atendidas por Nêmesis. Certo dia, durante uma caçada, Narciso se debruçou sobre a fonte de Téspias, perto do Monte Hélicon; ao contemplar a superfície da água apaixonou-se pelo que viu, isto é, por seu próprio reflexo. Indiferente a tudo, o moço não mais saiu dali e nem mesmo conseguia tirar os olhos de sua imagem. Acabou morrendo de inanição e, no local de sua morte, brotou a flor chamada narciso.
333
no domínio público palpável em sua inserção social. Ao se pensar na escrita de mulheres, devem-se levar em conta percepções e valores diferentes dos masculinos. A cultura feminina rompe com estruturas convencionais do pensamento androcêntrico. Sendo assim, é importante ressaltar que, ao se falar em valores femininos e de aspectos próprios da criação literária das mulheres, não se pode identificar uma especificidade restrita ao grupo de mulheres. É necessário considerar características que possam ser reconhecidas como predominantemente femininas pela sua sintonia com aspectos dominantes na vida das mulheres, a sua experiência corporal, interior, social e cultural impressa literariamente. Com relação à escrita de mulheres, uma das perguntas que se pode esboçar é: “Como o imaginário feminino se manifesta na escrita das mulheres, ou como se constrói, a partir da escrita de mulheres, o imaginário feminino?”. Esse modo de perguntar retira a questão do essencialismo do feminino, o qual possui uma visão totalizadora da mulher, e desloca o problema para as mulheres, para a diversidade de posições enunciativas do sujeito do feminino. Pelo poder que a palavra enunciada, anunciada e impressa possui, as mulheres têm podido dar nomes a seus mal-estares por meio de metonímias, metáforas ou mesmo corporalmente. Para tanto, elas têm buscado tanto as palavras como o silêncio para poder dizê-los, exercendo assim seu direito à voz. Para Vera Queiroz (2004, p.45), “Femininos são os textos que apresentam determinadas marcas, que percorrem o campo semântico da falta, do silêncio, do indizível, do subjetivo confessional”. É possível identificar um olhar feminino no texto literário, esse olhar que Beatriz Resende (s. d.) chama já não mais de “literatura feminina”, mas de “literatura pós-feminismo”. É comum as autoras de poesia e de prosa refutarem a inclusão de suas obras na categoria de escrita feminina. Segundo a autora Christiane Tassis (2006): Não estou interessada, agora, em uma ação afirmativa. Lutaria por todas as “colegas” submetidas ao autoritarismo de regimes políticos e/ou religiosos, ao machismo, à miso-
334
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Letras femininas: a escrita do “eu” no universo de Luci Collin
nômeno significativo dos últimos anos do século XX e se insere na discussão do multiculturalismo. A produção de autoria de mulheres sempre foi excluída por várias razões, dentre elas pelo puro preconceito de uma sociedade atrelada a valores patriarcais que reservava à mulher o papel de esposa e mãe. Assim, sua produção sempre foi avaliada como deficitária em relação à norma de realização estética vista do ponto de vista masculino. Para Peggy Sharpe (1997), é comum nas literaturas coloniais omitir ou subrepresentar relatos advindos da voz feminina; somente em iniciativas mais atuais é que ocorrem discussões em torno da identidade nacional advinda de várias vozes, incluindo a feminina. Nas décadas de 70 e 80 do século XX, o pensamento feminista desenvolveu a teoria dos gêneros como modelo de interpretação das relações sociais e de sua história. Elaine Showalter (1994) propõe uma direção da escritura feminina que se enquadra na estrutura da sociedade. Ela divide a escrita da mulher em: feminina, a que se adapta à tradição e aceita o papel da mulher como definem os homens; feminista, a que se declara em rebeldia e polemiza, questionando o papel da mulher; de mulher, que se concentra no autodescobrimento. A classificação de Showalter pode ser observada na literatura brasileira, e em especial na paranaense. Assim, pode-se afirmar que a escrita de mulheres paranaenses é, ao mesmo tempo, feminina, feminista e de mulher, pois, segundo Nadia Gotlib (1990), isso é possível encontrar na obra de uma mesma escritora.
ginia, à castração dos séculos, mas não pelas mulheres escritoras. Não que estejamos acima de nada, mas nossa luta é com a gente mesma. Deus me livre de um “Dia Internacional da Escritora”. A questão não é ser “minoria”. É escrever bem. Eu pelo menos, não escrevo pensando em meu sexo, nem no dos meus leitores. Não penso em obter aprovação masculina, ou feminina. Escrever é o que eu sou. E eu sou uma mulher. Uma mulher que escreve como uma pessoa que quer escrever bem.
O ano de 1970 é emblemático quando se fala em estudos sobre a mulher e a literatura. Duas correntes teóricas se estabelecem no que diz respeito aos Estados Unidos e à Europa. A corrente anglo-saxônica busca, por meio das premissas estabelecidas por Michel Foucault para o estudo da desconstrução da história literária, rever os princípios que norteiam a inclusão/exclusão de autores e obras no cânone literário. Esse questionamento do cânone literário masculino se desdobra em uma investida na recuperação dos textos femininos excluídos. Na França, o pensamento teórico de Derrida e Lacan sustenta as bases do feminismo naquele país. As feministas Hélène Cixous e Luce Irigaray são representantes importantes da corrente teórica que investiga a ligação entre sexualidade e textualidade. No Brasil, nessa mesma época, formam-se nas instituições acadêmicas pequenos grupos informais de estudo sobre o assunto, como bem salienta Heloísa Buarque de Hollanda (1993, p.27): A partir do final dos anos 70, o tema “mulher” pouco a pouco passa a ser considerado objeto legítimo de pesquisa acadêmica, assim como assunto de jornais e revistas especializados. Começava a delinear-se, entre nós, um novo campo de trabalho crítico na maioria dos casos, identificado com o desenvolvimento do pensamento teórico feminista que emerge, com força total, na Europa e nos Estados Unidos, a partir dos movimentos contestatórios da década de 1960.
A literatura feita por mulheres, juntamente com a discussão sobre a negritude e a literatura homoerótica, é fe-
335
2
Título do conto inserido na obra Inescritos (Collin, 2004).
“Figuração”:2 retratos da artista Luci Collin “Todo o dia preparo comida, respiro sobre os lençóis recuperando palpitações e às vezes enfeito o quarto com flores que ele nunca terá olhos para ver. Leio o vôo dos pássaros. Conspiro o silêncio das vertigens. Aos que pensam algo sobre isto tudo, nada digo”. (Luci Collin)
336
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Luci Collin3 se define como transgressora afirmando que a literatura contemporânea tem regras determinadas a serem seguidas, e que ela, com o seu trabalho, infringe e viola essas regras. A própria escritora declara: Eu vejo que os meus escritos, antes de representarem transgressão, são apenas “regressão”, não no sentido de “regredir”, mas de “regressar”, regressar a um experimentalismo que foi explorado pela linguagem moderna e depois covardemente abandonado por muitos pós-modernos confortavelmente estacionados na linearidade e num realismo que em nada correspondem à realidade. (Collin, 2005, p.1)
Sobre a expressão “escrita feminina”, Collin (2005, p.1) argumenta: é um termo impreciso para mim. Se você se refere a alguma ideologia do feminino que eu queira deliberadamente apresentar nos meus livros, a resposta é não. Não vejo necessidade de imposições das idéias de “feminino” e “masculino” como contendoras – são existências altamente complementares, são princípios indissociáveis. Quanto ao escritor e sua habilidade, Henry James criou maravilhosos personagens femininos, Hilda Hilst, personagens masculinos muito complexos – assim a sensibilidade do artista parece. (ibidem, p.1)
No livro Inescritos,4 obra selecionada para esta pesquisa, a linguagem é aberta, experimental e difusa. A escritora se propõe a exercitar sua capacidade de inovação por meio de colagens textuais, que traduzem a agonia pela procura do indizível. De acordo com Collin, sua relação com a linguagem é espontânea, rítmica e até liberal. Afirma que sua linguagem é desestabilizadora, a fim de despertar a reflexão. Luci Collin é habilidosa no trabalho com o flagrante ao surpreender suas personagens em ambientes ambíguos. Em seus textos há a presença de uma perspectiva simbólica aberta; dessa forma, o leitor é privilegiado, pois pode imprimir sentidos múltiplos, à medida que a autora
Letras femininas: a escrita do “eu” no universo de Luci Collin
3
Luci Collin nasceu em Curitiba, Paraná, em 1964; é graduada no curso superior de Piano, em Letras Português/ Inglês e no curso superior de Percussão Clássica. Em 1987, estudou na Wright State University (Ohio, EUA). É doutora em Letras. Atualmente, é professora do curso de Letras da Universidade Federal do Paraná. Luci Collin é uma típica representante do escritor oriundo da academia: alguém de atuar na crítica, criar e lecionar literatura. Obras: Estarrecer (1984), Espelhar (1991), Esvazio (1991), Ondas e azuis (1992), Poesia reunida (1996), Todo implícito (1997), Dialogismos, (2000), Inescritos (2004).
337
lhe oferece um mundo particular sem censura. Há, assim, um diálogo direto entre personagem e leitor, enunciação que se constitui por meio de uma vasta expressão do ser, que também manifesta sua intimidade. Segundo a escritora, O leitor não é nenhum desavisado e inepto e, por outro lado, o escritor, aliás artista nenhum, também não é esse semi-deus que vê coisas que só ele compreende. Pelo contrário, os leitores são parte essencial na revelação dos elementos do texto. Acho uma prepotência considerar o escritor um detentor de verdades superiores, o escrito é o visto aí, e não o genialmente forjado pelo escritor. Captar e codificar o estético, o artista como antena da raça, é uma parte essencial da nossa existência, mas que deve ser encarada com humildade, porque pressupõe compartilhamento. A antena estar no alto é meramente uma condição estratégica e assim a sua superioridade. (ibidem, p.2)
Os textos de Luci parecem evocar uma estranha familiaridade, como se estivessem sempre à espera da interpretação, reclamando leituras, expondo o leitor à direção de seus sentidos. Para Maria do Rosário Gregolin (2003, p.47):
4
Inescritos é o terceiro livro de contos da curitibana Luci Collin. A prosa de Luci não segue uma linha temática, tampouco estrutural. Pelo contrário, em Inescritos a exceção torna-se regra. São vinte narrativas feitas de vinte diferentes formas, incluindo a paródia do ensaio acadêmico, da entrevista, do roteiro cinematográfico, do comercial de televisão, da homenagem póstuma e do diário de adolescente.
Por ser objeto de reconhecimento/desconhecimento, a aparição de um texto só se completa quando um leitor o insere na ordem da história, deslocando-o do lugar onde jaz reclamando sentidos. A interpretação não se limita à decodificação dos signos, nem se restringe ao desvendamento de sentidos exteriores ao texto. Ela é as duas coisas ao mesmo tempo: leitura dos vestígios que exibem a rede de discursos que envolvem os sentidos, que leva a outros textos. Por isso, os sentidos nunca se dão em definitivo; existem sempre em aberturas por onde é possível o movimento da contradição, do deslocamento e da polêmica.
Os fatos e acontecimentos, em seus contos, são desconhecidos, até porque não há a intenção de se relatar um episódio ou peripécias de um personagem, mas sim, o contato do leitor com a obra e os desdobramentos de sua subjetividade. Os fatos do enredo são raros, dando logo a
338
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
medida de que a autora/personagem está narrando muito mais um processo do que descrevendo acontecimentos. Não se apresenta mais a narrativa mimética que “copiava” (ou acreditava copiar) a realidade empírica; trata-se, agora, de elevar o tema literário à construção psíquica que cada sujeito faz de si mesmo. Não há, tampouco, um tempo passado a ser fielmente descrito pelo narrador e o que se conta está repleto de dúvidas e hesitações. Assim, revela-se que espaço, tempo e causalidade configuram-se como meras aparências exteriores, que impõem uma ordem fictícia à realidade. A verdade, dessa forma, é da ordem da ficção, ou seja, o que se crê verdadeiro participa do mundo imaginativo, processo construtivo inacabado por excelência. A escrita da autora se configura por meio da fragmentação, de recorte, sobreposição, exploração de temas não usuais, ironia, colagem, absurdo, manipulação sintática e semântica. Torna-se, de certa forma, uma tentativa de aproximação da maravilhosa desordem da realidade que não pode, por seu dinamismo, ser registrada tendo por base regras artificiais. No conto “Desinências”, é possível observar a sobreposição de cenas. A autora, para marcar a ruptura, utiliza dois pontos entre os parágrafos da narrativa, o que sugere uma forma de assinalar a descontinuidade no enredo: Das coisas, hábito e ofício, de todas as coisas precisava de registro. O ínfimo discurso sinfônico e silábico tem dimensões espetaculares – é como um cântico. De todas as coisas recebia o inapelável pedido: diga-me. : É só. Sabe e lembra tudo sobre aquela eira. Contudo precisa fixar aquela advertência, em letras bem escritas: encontra-se sem condições de uso: um bilhete que prega com durex sobre a torneira em questão solicita: “Favor não usar – a torneira...”. : Diga meu nome, preencha os espaços inabitados com o nome meu, preencha os pedaços abandonados com o nome meu. Preencha os impronunciáveis com cores e sono-
Letras femininas: a escrita do “eu” no universo de Luci Collin
339
ridades precisas com assumidas submissões com preteridos abandonos com ditos encantatórios com toques suavíssimos e com o que a pele responde durante esses toques. (Collin, 2004, p.63)
Em “Desinências”, conto inserido na obra Inescritos, a escritora demonstra que sua obra é composta de fragmentos aparentemente descontínuos, mas que são partes de um trabalho que demonstra sua percepção do mundo, dos seres e das coisas, por meio de uma operação de desmontar elemento por elemento. Essa fragmentação denota a própria consciência de suas narradoras, apresentando-se como algo livre para a construção do eu ficcional, marcado pela interioridade do discurso. É perceptível que, no conto, a visualização das imagens se faça sem nenhuma preocupação com a totalidade, submergindo, de certa forma, a própria corrente psíquica da personagem. Deve-se a isso a marca dos dois pontos que a escritora insere na tessitura da narrativa, assinalando o recorte no curso natural da escrita. No conto “Essência”, a narradora muda de nome e de temperamento conforme o vestido que vai usar. Com o vestido verde, ela se chama Gisela Eloah e tem três filhos de pais diferentes; com o vestido rosa, seu nome é Margareth e ela é viúva de um eminente professor de História Antiga; com o vestido amarelo, ela se chama Leodegária e, à mesa, não sabe usar os talheres certos: Que vestido afinal? Com o verde me chamarei “Gisela Eloah”, serei uma mulher decidida, com três filhos, de pais diferentes, claro. Serei escultora, ou melhor, administro os bens de papai. “Papai” é ótimo... ninguém mais fala “papai”: filhas, será? Ainda mais três! Ah, muito cansativo... Não, o verde me obrigaria a ser decidida demais... O rosa! Direi que meu nome é “Margareth”, com acento na primeira sílaba. “Não, querida, jamais tive apelidos”: “Sou um encanto! Todas me invejam”. Pela voz suave saberão que sou viúva de um eminente professor de História Antiga. Jovem e viúva! Tem algo mais pungente? “Será que dá suas...
340
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
escapadas? “O promotor, maldoso, perguntará. “Não! A loira magérrima assegura, é castíssima!” Ah, não, castíssima nunca! Não serei viúva! Sou casada com um político brilhante, envolvido num desses escândalos da moda. Não, para ser esposa do político corrupto deverei usar o azul cobalto e mudar de nome. Como “Margareth” terei a maneira de sentar delicadamente ensaiada. (ibidem, p.133)
Na narrativa, há a construção de um sujeito à procura de uma identidade perdida. Além de não haver a presença de um enredo, há uma luta por atingir uma verdade ou totalidade sempre esquiva. Essa é a marca irônica da obra de Collin, que faz da linguagem fonte e alvo da pulsão criativa em constante ebulição. A ironia está em nomear o inominável, que só se dá a ver na distração do ser. Ao ser questionada sobre o porquê de seus contos não terem enredo, ela afirma: O enredo, da forma tradicional, é um embuste. Se o leitor é hábil o suficiente para combinar, reagrupar, editar um enredo aparentemente disparatado, por que menosprezar, ou desconsiderar toda esta agilidade do leitor enquanto editor do texto? E por que determinar que enredo é apenas o que tem começo, meio e fim? Isto é fórmula de redação de vestibular, e quem segue fórmulas faz automaticamente uma escolha que passa pela condenação dos elementossurpresa. Se você usar como tema, por exemplo, a solidão, e transformá-la em personagem do seu conto – não uma pessoa experimentando a solidão, mas a própria solidão, ou o medo, ou a saudade, ou a escuridão – não é injusto limitar estes personagens tão livres com um enredo prescritivo e que não gerará as emoções do inusitado? As imagens inusitadas que permeiam os contos indicam uma originalidade que se situa fora da lógica comum. A estratégia utilizada em Inescritos tem como finalidade o aprofundamento do “eu” marcado pela subjetividade, que só existe na medida em que, na instância do discurso, fala sua própria condição. A obra está repleta de mulheres de diferentes configurações. A diversidade de situações vividas por elas, carregadas de erotismo e auto-ironia, quase
Letras femininas: a escrita do “eu” no universo de Luci Collin
341
sempre revela a real condição feminina, tal como se pode observar no conto “Nostálgica Salvaguarda”: Cadência: As fêmeas sangram. Nasceram para sangrar. Desde as suas finas cutículas de várias maneiras sangram. A cor das flores. Às vezes, moscas pousam sobre o vermelho. Com o tempo o vermelho a vermelhidão evapora. O rio evapora. A intensidade. Queiram desculpar o discurso primitivo. O silêncio é também uma facada lenta – gentilmente instaurada”. (ibidem, p.139)
Grande parte dos textos de Collin tem em sua gênese reflexões filosóficas, como se nota em “Esse destino de ir”: Não tinha noção das horas quando percebi, você indo embora. Ia. Acho que de madrugada, pela necessidade de silêncio, tácito denso vasto, pela seriedade com que se disse adeus; o frio. Fossem as noites maiores, houvesse um único momento sem porquê, ficaria. Detalhes não ajudando a resolver esta questão nem formulada e eu aqui, revisitando estilhaços, tentativas de engolir qualquer motivo muitos há nenhuma resposta às paredes subitamente vazias, o peso das cortinas cerradas, o seu sorriso de há tanto tempo hoje nunca mais. O tempo em si: passado, o que enfim sozinha se constrói, severo e sobretudo veloz. (ibidem, p.99)
No corpo desse texto, as ações são interiorizadas, tematizam a solidão, a angústia, o medo. O instante é apreendido em tensão numa narrativa plena de subjetividade cuja busca é a do “eu” e sua intimidade. Há, também, uma preocupação com a mulher e sua realidade, mas essa realidade é interiorizada, perfazendo um percurso intimista. Ao questionar o ser e a existência, a autora faz que as palavras percam seu contorno material e atinjam sua corporeidade essencial. Assim, as palavras passam a comunicar pensamentos mais profundos, a partir da lucidez da aparente incoerência. Há, na autora, algo que resulta em estranhamento confrontando com o cotidiano, atingindo sua transcendência. Assim, Luci Collin não cria tipos, volta-se à mulher e suas dúvidas, expressando em ações interiorizadas em um não-enredo. Em “Qualquer semelhança (relato autobio-
342
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
fágico)”, o eu-narrador delimita a história por uma perspectiva memorialística e autobiográfica, ressignificando o passado. Esse, por sua vez, só existe como tomada de sentido no presente: Do Nome Tão triste aquele romance onde uma enfermeira se apaixona por um soldado que acaba morrendo na guerra! Minha bisavó gostou tanto do livro que resolveu dar à filha o nome da heroína da história. Que guerra terá sido? O nome da minha avó quer dizer luz em latim.
Letras femininas: a escrita do “eu” no universo de Luci Collin
343
Mera coincidência Começou com o nome da heroína do romance. De uma guerra desconhecida. E depois as palavras foram desfilando na minha cabeça: chacrete, BNH, brim curinga, bola de capotão, Bidu cola, Toppo Gigio, pândega, radiola e eletrola, alpargata, fatia-do-céu, crapô, lombeira, colubiazol, kichute, vultos da nossa história, docinho miúdo, berlineta e monareta, matelassê madrigal, boa-noite cinderela... Eu se soubesse, ia escrever uma história com tudo isso. Que bobagem! A vida da gente não dá uma história! O que dá pra fazer é só mesmo lembrar. E segurar mais forte aquela maçã-do-amor. Que custou caro. (ibidem, p.60)
Casa A escada que dava pro andar de baixo tinha as tábuas muito gastas. Um dia escorreguei lá de cima segurando uma maçã-do-amor que alguém tinha trazido pra mim do Passeio Público. Quando dei de cara no cimento escutei uma voz retrucar da cozinha: Não vai me estragar esta maçã que custou caro! Fazendo anos Terrível era aquilo de cumprimentar adulto! E nem dava pra fugir, que tinha sempre alguém perguntando: Já cumprimentou a Catita? E ainda tinha que beijar: Três pra casar! Quatro pra não morar com a sogra! Da Dona Donaide eu morria de medo porque era vesga (ela é que era vesga, não eu). Vó, como é que ela conseguiu casar? Um sinal de beleza, o estrabismo! Teve muitos pretendentes, a Donaide! E aquele tio-avô Téio (Eleutério) esquisito? Ouvi a mãe dizer que o tio Téio toma banho de Acqua Velva! E quando beijava deixava molhado o rosto da gente (e não se podia limpar na hora, só disfarçando). Da Bebéia eu não gostava porque ela tinha cheiro de giz de costura. E por que tanto adulto se era festa de criança? Plágio, eu? Escrever o quê naquela redaçãozinha do para casa? Copiei uns trechos da folhinha do Alziro Zarur que a vó tinha pregado na copa. Claro que disfarcei! Não sei como é que o professor descobriu que não era minha a frase “É perdoando que se é perdoado”.
Desenvolve-se, no limite, uma teoria do memorialismo que mostra ser a realidade muito mais uma invenção da linguagem do que suporia a ciência. No conto, a narradora rememora sua vida. O mergulho introspectivo se serve de uma estrutura composta por vários esquetes, fazendo coexistirem diversos planos ficcionais para um mesmo sujeito. Há níveis de relatos (e, portanto, de verdades) nesse texto. Um conto em que se relata uma história na qual a personagem reconta sua vida e escreve um conto sobre uma história narrada por outra personagem. Na obra, é perceptível a criação de um universo no qual a mulher passa a limpo, em breves anotações, as cenas mais marcantes da sua infância, e faz ressurgir a família, os amigos e o glorioso passado recente em comentários carregados de nostalgia. Esses comentários são saturados de nostalgia que aos poucos vai se transferindo também para o leitor que, à simples menção de certos nomes próprios, como mandiopã, bolin-bolacho, Lanjal, Supra-Sumo, Almoço com as Estrelas, Sandra Passarinho, Grande Hotel, Gordine, Kharmann Ghia e Aero Willys reporta-se às décadas de 1970 e 1980. Ler Luci Collin é emaranhar-se numa rede de linguagem, numa trama de signos, num embate no qual narrador, personagens e leitor se misturam num jogo em que palavras e imagens, sons e silêncios se combinam numa lógica complexa, criadora de subjetividade.
344
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Letras femininas: a escrita do “eu” no universo de Luci Collin
As personagens de Collin vivem uma realidade inexprimível, o sentido surge do próprio ato da escrita. Delineia-se, aí, uma escritura que tem como tema a produção de sentido pelo próprio ato de escrever, moldada sob a forma de contínuos exercícios da língua, como se pode observar em “Parto do nada”:
terior, diálogo, discurso indireto, descrições breves terminadas em reflexões filosóficas ou existenciais, narrativa e metanarrativa: 6
A digitação do texto segue exatamente a forma como ele aparece na obra Inescritos.
Parto do título. Nas fotos em preto e branco os olhares profundos desafiam sombras. A caneta espera no ar: a rima é um tudo de novo. Invento vôos. Configuro lobos, uivos. Abuso. O crítico comentou que eu preciso de enredos, não posso ficar patinando na invenção de cores inapagáveis, sabe mais o quê. E eu fico. Reuni sonoridades para dizer aqui, frases que na verdade ventre e entranha. Frases que se acumulam com uma emergência impensável e a beatitude das flores cumprindo-se degenerescência. Pretendia clareza, mas o vocabulário é escasso e não chega até lá. Lá é a aurora, por falta de palavra melhor. Lá é onde nasce. É acontecido. Meus dedos sujos de tinta e a tela vazia. A página. Repleta de predicados, de adjuntos, de agravamentos, mas vazia, fosca, miúda. Pesa. (Collin, 2004, p.23)
A metaliteratura de Luci vai criando um intertexto, uma realidade estética da linguagem cujo efeito é a produção de um novo estatuto do sujeito. Ela apresenta seus personagens momentos antes de se transfigurarem nas malhas da linguagem: “Reuni sonoridades para dizer aqui, frases que na verdade ventre e entranha. Frases que se acumulam com uma emergência impensável e a beatitude das flores cumprindo-se degenerescência” (ibidem, p.23). Nota-se que o sujeito que nasce da escritura de Collin apresenta-se sob forma de uma voz narrativa auto-reflexiva, utilizando-se de recursos lingüísticos ousados, rupturas narrativas que instauram o sujeito no âmbito do mundo. A autora busca a diversidade dos significados das palavras, procurando despertar na mente do leitor uma realidade que vá além da realidade costumeira. O conto “No céu com diamantes”5 é uma composição que apresenta, de forma simultânea, monólogo in-
345
7
A escritora escreve nesse momento em nota de rodapé: “Em 25 de maio, a crítica Annamaria Polli-Sanson publicou artigo (pequeno, quase uma notinha, alegando ‘desnecessariedade em tomar o tempo dos leitores’) na Tribuna de Curitiba atentando para o ‘caráter degenerativo da produção pretensamente literária’ da autora desse conto”.
5
A respeito do título, a autora esclarece “Trata-se, obviamente, de deslavado plágio do título de uma música do grupo de rock’n roll inglês que, na década de 1960, foi mais conhecido de que Jesus Cristo. Por patente falta de criatividade, o autor opera aqui uma indecorosa apropriação de uma sentença de domínio universal a qual, mesmo sofrendo a (péssima, diga-se) tradução para a nossa língua portuguesa, conforme argumenta Heloisa Seixas mantém, contudo, a condição de indisfarçabilidade autoral”.
TUDO ESTÁ ENTRE PARÊNTESES:6 Sim, tem caráter autobiográfico. É um texto com mau caráter.7 A personagem principal é severamente míope (CLOSE). A personagem principal sempre escreve atraso com “z”. A personagem principal pensa que é a protagonista e que, no correr da pena, um intrincado enredo se apresentará nesse parágrafo. Nem nos outros. A personagem principal de rinite crônica que lhe confere um quê de irritabilidadade. A personagem principal sofre de insônia e ninguém sabe. COMERCIAL, SIM, E DAÍ? Resolva já seu problema! A solução que você procura este exatamente aqui (jingle: “stop smiling right now!” 2x). Pare de agir como um idiota sempre sorrindo. Compre já o creme anti-risinhos do Doutor Calipso. [...] TUDO NOS CONFORMES: Sim, cheira a autobiografia. A personagem principal usa lente de contato e enxerga relativamente bem, obrigado. A personagem principal balança a perna quando está irrequieta (CLOSE. A personagem principal tem uma obturação antiga que incomoda, mas, por falta de tempo/dinheiro/referência, não vai nunca ao dentista. [...] A personagem principal exagera o tempo todo, mas só por dentro. A personagem principal só entra pela porta da frente do carro. TAKE 126, CENA 1: “Peguei o carro”. Tem que pegar um carro para começar qualquer história decente. Carro conversível, claro. Depois ouvindo uma musiquinha estúpida no rádio do carro( mas como é inglês, a gente acha o máximo...) [...] “TUDO DE BOM QUERIDA!”: Sim, está me cheirando a autobiografia. A personagem principal tem umas pontadas do lado direito. Mas só às vezes (principalmente ao subir aquela maldita escada que dá para o laboratório). (ibidem, p.11-14)
A autora apresenta temas recorrentes, repetições, explicações. Podem-se identificar várias vozes, em que há
346
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
temas secundários e temas principais; o que vai sendo revelado por meio das inúmeras e variadas referências que emolduram as investidas filosóficas da personagem-narradora, e é a partir dessa situação que o indivíduo é colocado à mercê da condição solitária de sua própria expressividade. Há um grande espaço para conexões e reflexões por parte de quem lê, considerando-se a interpretação das referências intertextuais e do jogo explicitamente polifônico. Há a quase ausência de marcas formais no sentido de organização do discurso, o que confere ao leitor o poder de decidir por meio de suas considerações lógicas a quem ou a que determinadas informações são atribuídas. Na desconstrução da linha temporal da narrativa os fatos são apresentados por meio das reflexões das personagens em planos diferenciados, numa interposição de imagens de fatos passados ou informações desconexas que só serão amarradas à trama no futuro. O conto “No céu com diamantes”, por se apresentar como metanarrativa, revela uma forma textual de autoconsciência do processo do narrar que revela a ficção como artefato, como um construto do autor. O texto, assim construído, fornece em si mesmo um comentário acerca do seu próprio status como ficção e como linguagem, e de seus próprios processos de produção e recepção, constituindo o que Linda Hutcheon http://sincronia.cucsh.udg.mx/ amarv.htm - _ftn1 (2002) chama de “narrativa narcísica”. A metanarrativa é, portanto, a dialética do olhar, que se direciona tanto para o universo ficcional quanto para fora dele, construindo e desnudando simultaneamente a ficção. Em suas obras a autora reflete, critica, questiona, revela, grita, desobstrui a bruma envolvente e deixa vir à tona detalhes ocultos que formam a vida humana; especialmente vigilante acerca da realidade feminina, e a partir de fatos cotidianos, talentosamente expõe o amor, a arte, a dor, o desejo, a negação, os problemas sociais, a tradição, a ruptura e tantos outros pontos, sempre com sensibilidade ímpar e olhar singular.
Letras femininas: a escrita do “eu” no universo de Luci Collin
347
Conclusão O texto de Collin dissemina a linguagem de tal forma que o problema da existência humana passa a ser o próprio objeto da ficção. Torna-se, portanto, um problema não apenas existencial, mas também ficcional. A literatura coliniana torna-se totalmente introspectiva, já que se volta sobre si mesma. A ação narrada deixa de ser um evento ou acontecimento e passa a ser o problema vivido por suas personagens. Em conseqüência disso, as dimensões mais profundas da mente, que muitas vezes aparecem mergulhadas em dúvidas e inquietações, fazem do texto de Luci Collin a própria narrativa do ser. A idéia que permeia a leitura de Inescritos é a de que tudo não passa de obra do pensamento, de um emaranhado de vozes que trazem à tona fatos aleatórios com saltos temporais e associações aparentemente desconexas. Há uma história a ser construída, as peças do quebra-cabeça devem ser organizadas e montadas. Talvez essa seja a condição do sujeito contemporâneo, fragmentado, que concentra em si marcas do presente, do passado e – por que não – do futuro, num emaranhado desconexo e excessivo de informações que o caracterizam e o descaracterizam num ciclo ininterrupto. Esse é um momento peculiar de liberdade estética, de transformação de códigos e de alteração dos limites. E a autora, dessa forma, parte das questões filosóficas de seu tempo para compor uma literatura que quebra paradigmas e coloca nas mãos do leitor a responsabilidade imensa de recriar o seu próprio romance, mediante a interpretação pessoal das referências apresentadas e das pistas narrativas que permeiam sua construção. Observa-se que a produção literária de Luci Collin tem se voltado abertamente para a prática da indústria cultural com o propósito de daí extrair modelos para compor sua multiplicidade e revitalizar sua técnica com novas configurações formais e temáticas. Longe de exercitar com exclusividade a revisitação e a reciclagem de seus próprios produtos, a literatura atual se reabastece das energias das
348
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
formas culturais consagradas pelos meios de comunicação de massa. Esse parece ser hoje um procedimento que muitas obras literárias bem-sucedidas não desejam ignorar, mas problematizar. Ao se considerar a literatura como um discurso que, em maior ou menor medida, se volta (também) para si mesmo, que é auto-reflexivo, pode-se afirmar que ela é sempre uma reflexão sobre si mesma. Quando um escritor cria, ele tenta fazer avançar, mudar, renovar a literatura. Quando o crítico se debruça sobre esse texto, sobre essa criação, ele o relaciona com outros textos, com o modo como outras práticas tentaram fazer sentido, tentaram representar o mundo. É em meio a outras obras que a aceitação de uma delas como literária se constrói. A revisão do mundo pelo olhar feminino possibilita o exame crítico da ordem nas relações de gênero (homem/ mulher, mulher/mulher) e as várias representações que eles admitem, trazendo para o texto literário as questões do cotidiano, a angústia feminina, a sexualidade, as relações entre ficção e realidade. Ainda que esteja mais afinada com os princípios da pós-modernidade, não é difícil reconhecer que, em Luci Collin, os textos possuem vínculos com a tradição ocidental de escritura das mulheres. Pelas estratégias de encobrimento ou de silêncio, ocultam-se variantes dos protótipos de anjo e de demônio, por meio de imagens desconstruídas e reconstruídas, associando-se, não raro, à capacidade de criação de uma deformidade monstruosa que coloca a mulher à margem do normativo, como também os recursos parecidos de reinvenção dos tradicionais estereótipos femininos (mãe, esposa, amante, prostituta). Essa forma imagética de exercer a intertextualidade propicia amplas travessias, abrindo à ficção a possibilidade de viajar por territórios extraliterários (o cinema e o teatro, por exemplo,) em busca de constituintes discursivos passíveis de reutilização pelo romanesco. O empreendimento da travessia se desenvolve na forma de um paradoxo que pressupõe proximidade e distanciamento. Consi-
Letras femininas: a escrita do “eu” no universo de Luci Collin
349
derando-se que tais incursões resultam em transcodificações nas quais a escritura aparece como um corpo cindido, que abarca fragmentariamente outros corpos textuais, engendrando novas e múltiplas significações, é possível reconhecer o expediente de apropriação utilizado, próximo do gestus de que fala Gilles Deleuze (1990, p.231): “o gestus é o desenvolvimento das atitudes nelas próprias, e, nessa qualidade, efetua uma teatralização direta dos corpos, freqüentemente bem discreta, já que se faz independente de qualquer papel”. Nessa perspectiva, os discursos valem pela sua performance, são cênicos: eles posam e dão a ver, em espetáculo, os recortes discursivos apropriados. Engendram o que, em sentido dramático, se pode chamar de reapresentações, reaparições que acabam por funcionar como encenações da própria escritura. Do cinema, do teatro e das artes plásticas, a ficção de Collin simula o gestus não o produto: forja efeitos de superfície, simulacros. Embora a escritura estabeleça certa relação com o universo cinematográfico e com o universo teatral, não se trata de uma relação de identidade, de imitação. Faz apenas alusões, monta artifícios, produz o que, numa perspectiva semiótica, se chama equivalências: repetições criadoras que introduzem a diferença. O olhar da escritora Luci Collin é lançado sobre aqueles que ocupam esse espaço urbano contemporâneo com suas atribulações, opressões, contradições, alegrias e emoções. A escrita dessa paranaense surge exatamente sem planejamentos, num percurso diametralmente oposto ao dos chamados autores profissionais. No entanto, dela emergem o vigor literário, a força de conteúdo e a riqueza de linguagem. Uma das grandes qualidades estética da autora é ir contra a corrente predominante na literatura brasileira de hoje, na qual a estética do cotidiano passa obrigatoriamente pela violência e pelos espaços não habitáveis e devastados. O trabalho de Luci Collin – ao contrário de vários exercícios narrativos atuais, bastante presos ao esquematismo da economia jornalística – insiste na elaboração
350
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
de intrincados enredos que instalam fantasias inesperadas no interior dos ritos cotidianos e entrelaçam o plano da ação prática ao da atividade psíquica. No contexto pósmoderno, em que se multiplicam as intrigas policiais ou as viagens sem rumo de tipos propositalmente planos e ocos, a obra da autora de Inescritos destaca-se quando instala sua trama, armada como um requintado jogo de montagem, na memória (imediata e remota) de seus personagens. Verifica-se que a escrita de Collin tem a ver com um relacionamento próprio com o mundo: com a natureza e os objetos, com as pessoas e os acontecimentos. A captação da realidade, na escrita de Collin, dá-se por meio de uma visão dilatada aos diversos sentidos: têmse, então, os sentidos revelando-se como antenas igualmente importantes e nítidas para uma captação plural da vida. E a linguagem é testemunha disso: adjetivos táteis, substantivos aromáticos, verbos sensitivos dão novos sabores ao texto. Outro aspecto da narrativa da autora é a auto-reflexão, que decorre da reflexão íntima em que há momentos de mistura com a análise dos processos da escrita e a sua gênese. Há união simbólica entre a escrita e a vida, numa distância estética; na proporção que a própria vida é transfigurada pelo poder poético da palavra é que o campo lexical do corpo se torna vital e se confunde com a própria escrita. Observam-se, nos contos de Luci, cortes abruptos na história, como se fossem formas de distanciamento estético. A narradora insere, em meio a um presente insatisfeito e sempre afetivamente habitado pelo passado, palavras com uma variada gama de sentidos. A escrita de Collin oferece um discurso difuso. No enredo, nada é muito claro, nem oferecido facilmente ao leitor – e isso não é problema, nem defeito. É opção estética. O enredo de suas narrativas dialoga com a vida, sem com isso dizer que se trata de um caso de realismo. A autora de Inescritos capta o que é do espírito desse tempo: a simultaneidade de situações. Por isso, cessa a linearidade e nenhum aspecto da narrativa é em linha reta. O enredo oferece retratos do passado, do presente e delineia futuros possíveis.
Letras femininas: a escrita do “eu” no universo de Luci Collin
351
Assim, a narrativa da escritora Luci Collin desconstrói uma representação homogênea do lugar da mulher, seja na história, seja na literatura dos séculos XX e XXI. É evidente a contribuição da artista para a rearticulação de uma sociedade na qual as diferenças possam ser respeitadas como identidades diversas e múltiplas, e de onde elas possam emergir como elemento contestador do discurso totalizante. As histórias e os fatos narrados em seus enredos são compostos por meio de uma linguagem despojada; contudo, profunda, marcante e direta, fomentada pelo uso detalhado de metáforas, imagens, símbolos, invenções, sugestões, ousadias. Enfim, surge um universo inteiro de significados. Percebe-se, nas obras analisadas, uma ênfase no universo existencial feminino e nas frestas da memória que o cercam. Na obra de Collin, a transgressão torna-se o meio pelo qual o sujeito feminino empreende a sua luta e consegue vencer a desigualdade. A escrita é o meio pelo qual essa escritora constrói/reconstrói a sua identidade. As diferenças sexuais não distinguem o tipo de escrita, apenas o sujeito da escrita. Ler, portanto, um texto literário à luz da crítica feminista implica investigar o modo pelo qual o texto está marcado pela diferença de gênero, diferença essa que não existe fora do contexto ideológico, mas como parte de um processo de construção social e cultural.
Referências CASTELLO BRANCO, Lucia; BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004. COLLIN, Luci. Inescritos. Curitiba: Travessa dos Escritores, 2004. . Entrevista cedida a Rodrigo Souza Leão, em junho de 2005, para a Revista Eletrônica Germinal Literatura. Disponível em: <http://www.germinaliteratura.com.br/pcruzadas_jun2005.htm>. Acesso em: 26 fevereiro 2006. DELEUZE, Gilles. Cinema II – a imagem tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990. GOTLIB, Nádia Battella. (Org.) Mulher na literatura. Belo Horizonte: Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais, 1990. v.I.
352
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
353
GREGOLIN, Maria do Rosário. (Org.) Análise do discurso: as materialidades do discurso. São Carlos: Claraluz, 2003.
Escrita do eu em tempos de comunicação e trânsitos: a voz de Valdelice Pinheiro
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. O que querem os dicionários. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de; ARAUJO, Lucia Nascimento. Ensaístas brasileiras: mulheres que escreveram sobre literatura e artes de 1860 a 1991. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p.27.
Maria de Lourdes Netto Simões*
HUTCHEON, Linda. A incredulidade a respeito da metanarrativas: articulando pós-modernismo e feminismos. Trad. Margareth Rago. Labrys, Estudos Feministas, n.12, jul.-dez. 2002. Disponível em: <http://www.unb.br/ih/his>. Acesso em: 11 abril 2007.
RESUMO: Focando a escrita de Valdelice Pinheiro, o texto é organizado em dois aspectos: da produção da fala, como linguagens múltiplas; da rede de imagens, no processo da construção identitária acrescentadora da cultura local. Os dois pontos evidenciam as formas de escrita do eu da intelectual itabunense e as marcas da sua diferença no espaço do patrimônio cultural sul-baiano. Conclui ressaltando a sua fala como diferenciadora da cultura local e, pela diferença, suscitadora de um interesse turístico global.
MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O tempo de silêncio e de paisagem com mulher e mar ao fundo. In: . O tempo das mulheres. Rio de Janeiro, Rocco, 1994. QUEIROZ, Vera. Pactos do viver e do escrever: o feminino na literatura brasileira. Fortaleza: 7Sóis, 2004. RESENDE, Beatriz. Sopro novo sobre sensações eternamente femininas. (s. d.). Disponível em: <http:// www.paralelos.org/out03/ 000600.html>.
PALAVRAS-CHAVE:
SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (Org.) Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p.23-57.
Diferença, linguagens múltiplas, imagens.
ABSTRACT:
Focusing on Valdelice Pinheiro’s writing, the text is organised into two aspects: the speaking process as multiple languages; the image net in the process of contructing an identity that adds to the local culture. The two aspects highlight the ways of writing of this intelectual writer from Itabuna and the marks of its difference in the space of the cultural patrimony of the south of Bahia. It concludes highlighting her speaking as the unique aspect of the local culture and, through difference, aspects of cause of a global turistic interest.
SHARPE, Peggy. Entre resistir e identificar-se. Florianópolis: Editora UFG, 1997. TASSIS, Christiane. Literatura feminina: a conversa infinita. Disponível em: <http://www.paralelos. org/out03/000596.html>. Acesso: 10 agosto 2006.
KEYWORDS:
Difference, multiple languages, images.
Introdução
* Professora doutora do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) – Ilhéus (BA).
No âmbito das discussões sobre a escrita literária, o contexto globalizado exige, hoje, a necessidade de intensificar discussões entre literaturas e saberes, também quando se trata de escritas do eu. Em relação a essa forma de comunicar, é acrescentada a proposta de pensar, ainda, o texto literário como estratégia de resistência à espetacularização da cultura, como agente provocador de fluxos.
354
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Se o intelectual é a obra, conforme afirma Adriana Pérsico (1998), quero observar o seu papel como mediadora, suscitadora de deslocamentos, de trânsitos entre diferentes esferas culturais, sociais e políticas. Busco refletir sobre a sua relação com o interesse de leitores, intelectuais de espaços outros, especialmente os dos grandes centros urbanos (Simões, 2002). Para esse tipo de mediação, enfatizo a diferença como elemento de produção de valores identitários locais (Hall, 2001). Com base nessa proposição, tomo como foco a escrita realizada por Valdelice Soares Pinheiro que, por sua singularidade, contribui para a diferença cultural da região sul-baiana – rica em expressões literárias e potencializadora de trânsitos turísticos. Para essas considerações, organizo o texto em dois focos: da produção da fala, como linguagens múltiplas; da rede de imagens, no processo de construção identitária acrescentadora da cultura local. Com isso, pretendo evidenciar as formas de escrita do eu da escritora, e as marcas da sua diferença no espaço do patrimônio cultural sulbaiano. Concluo procurando apontar a possível ação da sua obra como agenciadora para um turismo cultural na referida região, por meio de textos que se destacam e apontam diferença e, por isso mesmo, são provocadores de um interesse turístico global. Quero com isso fazer aquele exercício que Beatriz Sarlo (1997, p.181) refere quando trata do intelectual: “incorporar a arte à reflexão sobre a cultura”. Como se pode depreender de minhas palavras iniciais, trato a literatura como bem simbólico cultural, assinaladora de diferença e suscitadora de trânsitos. As escritas do eu são aqui representadas por tipo de linguagem poética, filosófica e pictórica.
A produção da fala Começo questionando: em formas de escritas do eu, como ocorre a liberdade autoral na escolha dessa ou daquela expressão, frase, versão? Podemos, nós leitores, pre-
Escrita do eu em tempos de comunicação e trânsitos: a voz de...
355
cisar a intenção autoral? E quanto a manuscritos literários: qual a intenção autoral se temos duas ou mais versões de um mesmo texto? Por que a reescrita de um mesmo texto? A resposta seria: a busca da perfeição poética, a procura da melhor palavra? Procurando refletir sobre tal questionamento, reporto-me à concepção de escrita de Valdelice Soares Pinheiro, itabunense, falecida em 1993, que deixou um espólio de manuscritos inéditos, sobre os quais tenho me debruçado. Valdelice Pinheiro transitou em meios culturais vários, como agricultora, poeta, filósofa e professora (Estética e Ontologia). Realizou a sua escrita por meio de linguagem múltipla, reveladora de tantos papéis sociais da sua atuação, em temporalidades e espaços diversos, no curso do acontecer da nação grapiúna. Pelas vivências que experienciou e trânsitos de escrita que realizou, é aqui tomada como um exemplo. Em vida, a poetisa e filósofa chegou a publicar dois livros de poesia (De dentro de mim e Pacto), um filosófico (Ser e evolução), textos auto-reflexivos, incluindo seu processo artístico (Retomada) e muitos rabiscos e desenhos (exposição organizada por Nádia Fialho); além disso, também publicou crônicas, em jornais locais. Entretanto, o substancial da sua produção ficou inédito, um legado que está sendo resgatado. A fala da intelectual Valdelice Pinheiro, como linguagens múltiplas, é produzida, indisciplinadamente, no espaço de textos poéticos (poemas, prosa poética), textos filosóficos, textos auto-reflexivos e desenhos, rabiscos, fotografias. A própria poetisa fala sobre a sua poesia: “é simples, toda nascida de uma linguagem cotidiana, sem rebuscos. Por isso o povo gosta dela, embora às vezes o sentido de alguns poemas seja até metafísico. Acho que se se entende a palavra, sente-se o conteúdo do poema” (Pinheiro, 1984, p.135). Super-realistas, para ela, artistas são aqueles que vêem “a explosão de uma semente e ouvem uma flor se abrir”; “o poeta, como o filósofo, é esse micróbio
356
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
que conhece as entranhas”; “Só pode haver criação sobre uma existência anterior”, diz ela. Auto-reflexões sobre o processo criador denunciam a filósofa que existe em Valdelice Pinheiro. O texto “Retomada” (ibidem, p.131-5) é um exercício de reflexão sobre o processo criador. Entretanto, sobre esse assunto, há, além do publicado, farto material inédito. Em verdade, ela se ocupa do processo simultaneamente ao seu fazer poético, em retro-reflexão, parece. Esses escritos de auto-interpretação são explicativos do seu fazer poético e podem ser tomados como uma proposta de teoria da poesia. Para a poetisa-filósofa, escrever é libertar-se. Nesse instante, “a voz tira a lógica, o juízo, desregula o comportamento do vocabulário” (ibidem, p.134). Assim nasce o poema: “Se a carambola/ tivesse dedos/ tocaria Mozart,/ certamente”. Já como resultado da recolha dos manuscritos inéditos, foi publicado o livro Expressão poética de Valdelice Pinheiro, que contou com o apoio do CNPq (Simões, 2002). No trato dos manuscritos, rapidamente pode ser constatado o processo de reelaboração da poetisa.
Figura 1 – Rabisco e texto poético – Linguagens de Valdelice Pinheiro. Fonte: Simões (2002, p.78).
Escrita do eu em tempos de comunicação e trânsitos: a voz de...
357
Tal processo pode ser verificado, ainda, nas versões encontradas de um mesmo texto, fato indicador de vários tempo-espaços enunciativos. Poemas há que chegam a apresentar nove versões. Simultâneas ao seu fazer poético, os textos de auto-interpretação nascem do silêncio de uma voz interior impulsionadora, como ela afirma, não “a simples voz, um som emitido pela competência do aparelho fonador, mas a Voz, a VOZ [...] silêncio que chega aflito, precisando do grito, tem que inventar o som...” (Pinheiro, 1984, p.136). O processo de surgimento do poema passa pela fase do que chama de “mundo das idéias”, fase essa expressada por meio de rabiscos, de desenhos.
Figura 2 – Rabiscos e texto poético – Linguagens de Valdelice Pinheiro. Fonte: Simões (2002, p.64).
358
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
São retas, curvas, espirais que dão surgimento a inesperadas formas e, em seguida, ao poema. Por vezes, as linguagens são tão imbricadas que, mesmo querendo, é impossível separá-las.
Escrita do eu em tempos de comunicação e trânsitos: a voz de...
Texto filosófico: No começo não era o caos, o nada, mas a Unidade, a Perfeição, a ordem absoluta no Todo, no Em Si (primordial), eterno. A Perfeição absoluta explode. E a explosão é do espírito, da consciência, para criar-se a si mesma. Deus, portanto, essa Existência Anterior, não criou do nada, mas CRIA de si mesmo, explodido. Criar é explodir-se no Ser.
Texto poético: Poema da criação
Figura 3 – Rabisco e texto poético – Linguagens de Valdelice Pinheiro. Fonte: Simões (2002, p.116).
Eminentemente filosófica desde o seu processo de enunciação até a concretude da sua formulação, muitas vezes, ao processo de produção antecede uma reflexão filosófica. As múltiplas linguagens são acrescentadas da reelaboração temática, quando um mesmo tema se reescreve em linguagens diversas: filosófica, prosa poética, poesia, desenho. Textos filosóficos são verdadeiras matrizes de poemas ou de prosas poéticas, como é fácil de ser observado nos exemplos que seguem (Simões, 2002, p.36-7):
359
Nada existia. Uno e só, o Em Si pulsa, pulsa... Como um infinito Óvulo maduro. O Em Si não se basta. E no milagre de seu próprio encontro algo estremece e abala a Eternidade: o Em Si fecunda-se. E por se fecundar, explode-se. E cria. Nasce a Existência, o átomo que se anima. E na Existência o tempo. E no tempo o homem. O Em Si se expressa. E a Existência o cria. Ou prosa poética:
360
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
História da criação O Em-Si era um solitário dorminhoco, prisioneiro do infinito, da Eternidade. Chamava-se Ser. “Um dia”, em-si-triste, emsi-zangado, em-si-prenhe e amadurecido em seu próprio ovo e em seu próprio ventre, explode-se, rompe-se, pare. E cria! E em criando-se, cria-se! Revela-se então amor e liberdade. Liberta-se. Liberta-se nas asas do finito, na animação vital do tempo-espaço. E só então chama-se Deus.
Escrita do eu em tempos de comunicação e trânsitos: a voz de...
361
As suas imagens (em palavras ou desenhos) são trazidas da memória de quem vivenciou o campo, o simples, a terra: Os vaga-lumes desta noite iluminam minha noite e me emprestam sua luz e suas asas. Então, feliz, a estrada clareada, eu vou te ver.
A rede de imagens No processo de construção identitária, a rede de imagens é acrescentadora da cultura sul-baiana. As vivências de Valdelice (ligada ao campo e às roças de cacau) substanciam-na. O repertório que utiliza denuncia a sua objeção ao mando, às desigualdades sociais próprios do contexto grapiúna, da conquista das terras do cacau, do desbravar das matas, do mando dos coronéis, do poder do mais forte. Os campos semânticos são povoados por um repertório denunciador de uma vivência ligada ao simples, ao campo, a uma época, um lugar: “Ah, minha infância tropical, brasileira, comendo jaca e mamão, chupando cajá e tangerina, descobrindo o mel no favo, conhecendo as abelhas!” (in Simões, 2002, p.48). Embora os seus escritos sejam, todos eles, perpassados pelo olhar voltado para o existencial, esse foco é nuançado em blocos temáticos: tratam de liberdade, amor, desigualdade social, inadaptação à vida; falam de natureza e existência metafísica. A angústia que a sufoca é forma de estar e sentir o mundo. Ela lida com a realidade com sensibilidade e olhar crítico, próprios de quem redimensiona o vivido mediante a experiência poética. A referida postura reflexiva da sua obra – sobre o mundo, sobre a vida – não se limita a um olhar do imediato e objetivo, “mas o aí em relação ao aqui, ao cá dentro, sujeito modificador do mundo”, como ela mesma afirma.
A sua fala anuncia e denuncia a riqueza da miscigenação e da multiculturalidade regionais, como no poema “Canto brasileiro” (Pinheiro, 2000): Pego-me aos pedaços. Quinhentos anos estranhos desfiguram minha face negra, meus dedos índios. Por que estes dedos gorduchos se eu nunca fui barroca? Por que esta lágrima de Pietá, se meu centro é a fecundidade de minha barriga, a ligeireza de meus pés? Restauro-me. Meus dedos de pontas Achatadas voltam ao rústico bambu de flautas indizíveis e batem, com a graça do braço engajando o corpo, doces berimbaus. Faço minha dança no momento do golpe – me defendo -e canto para espantar os maus espíritos. Se cantar vale por rezar duas vezes, isto fica por conta do próprio canto. Restaurando-me, cresço. Crio detalhes que se liberam de minha mente e de minhas mãos. Sou da idade de meus príncipes negros, jovem como meus guerreiros tupiniquins.
362
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Conclusão A relevância da literatura sul-baiana tem provocado a sua exploração pelo turismo que, muitas vezes de forma equivocada, coloca a cultura a serviço do marketing, comprometendo a identidade regional, corrompendo o bem simbólico, o patrimônio cultural local. É bem verdade a evidência hoje do mercado como paradigma de múltiplas liberdades. Sobre isso, cabe aqui a pergunta que faz Beatriz Sarlo (1997, p.152), quando fala sobre a cultura na Argentina: “existe outro lugar, além do mercado, onde se possa pensar a instituição de valores?”. E, no mesmo texto, Sarlo ainda observa que a liberdade de fruição dos diferentes níveis culturais como possibilidade aberta a todos (mas não escolhida por todos) depende de duas forças: estados que intervenham equilibrando o mercado, cuja estética denuncia um compromisso com o lucro; e uma crítica cultural que possa livrar-se do duplo isolamento da celebração neopopulista do existente e dos preconceitos elitistas que solapam a possibilidade de articular uma perspectiva democrática. (ibidem, p.182)
Sabemos que as possibilidades de legitimação se multiplicam. Concordo que as políticas culturais que orientam as ações de valorização, discussão, apoio à circulação dos bens culturais têm atenção à demanda do mercado, sim. No entanto, penso a ação intelectual, transitando a cultura por meio da arte. Creio que, assim, é possível admitir a possibilidade de uma ação intelectual contribuidora para o desenvolvimento cultural sustentável. Isso, por meio de discursos que se articulem, construindo o lugar, provocando outras reflexões, promovendo trânsitos, realizando trocas culturais, promovendo o respeito ao/do outro. Como visto, a escrita de Valdelice Pinheiro revela a sua forma de comunicar, compondo um processo artístico que ultrapassa a palavra para uma comunicabilidade, também, visual. A sua expressão é um exemplo de que, nesses
Escrita do eu em tempos de comunicação e trânsitos: a voz de...
363
tempos, as escritas do eu não se limitam à palavra, mas são expressas também por outras linguagens; reportam-se a toda uma concepção artística comunicadora, que faz o diferencial de uma produção e seduz o leitor. A singularidade da sua expressão certamente atrairá leitores curiosos em re-conhecer, por exemplo, o Rio Cachoeira, ou a cultura do cacau. As marcas da região sul-baiana, presentes na obra de Valdelice Pinheiro, são referenciais. Porém, mais que ser espaço de referências, ela própria, a sua obra, como cultura, contribui para a diferença que faz a multiplicidade e a riqueza grapiúnas. O discurso que veicula é de resistência, na medida em que não se submete; é emancipatório, por sua capacidade de ação sobre o leitor. São escritas do eu, em várias linguagens que conversam entre si e traduzem as suas vozes: poética, filosófica, plástica. Contida nelas, é visualizado o espaço cultural, simbólico. Se as marcas de uma cidade passam pelo olhar multifocal (Canclini, 1977), os bens simbólicos de um espaço, por sua vez, ressaltam o cenário cultural. A divulgação das expressões de escrita, por meio da sua literatura, sem dúvida dá visibilidade e valoriza o estético. Mas também, parece-me uma forma possível de contribuição para reflexão sobre saberes e fazeres locais, provocadores de trânsitos turísticos. A ação da fala que transita junto aos leitores, intelectuais de alhures – que chegam de espaços outros –, além de evidenciar a nossa diferença, certamente será um dos meios de respeito à cultura local.
Referências CANCLINI, Nestor Garcia. Imaginários urbanos. Buenos Aires: Eudeba, 1997. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz T. da Silva e Guacira Louro. 5.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. PÉRSICO, Adriana R. Intelectuales hoy: ni anfitriones ni turistas. In: ANTELO, Raul et al. Declínio da arte/Ascensão da cultura. Florianópolis: Abralic/ Letras Contemporâneas, 1998. p.71-8.
364
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
365
PINHEIRO, Valdelice. Retomada. Revista FESPI, Ilhéus, p.131-5, 1984.
A escritura da memória como fundamento identitário do eu
. Restauração – um canto brasileiro. Ilhéus: Editus, 2000. POEMA de Folha Solta, Projeto Inéditos Valdelice Pinheiro. Coord. de Maria de Lourdes Netto Simões.
Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz*
SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna. Trad. Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: UERJ, 1997. SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. De leitor a turista na Ilhéus de Jorge Amado. Revista Brasileira de Literatura Comparada, Abralic, Belo Horizonte, n.6, p.177-84, 2002.
RESUMO: Este trabalho divide-se em duas partes que se intercom-
plementam. Na primeira, de âmbito teórico-filosófico, enfocase o tema da memória, abordando-a como fundamento da identidade do sujeito. O mergulho no “tempo passado” como doação de sentido à subjetividade. A segunda parte tomará a forma de um relato memorial, realizando no plano do discurso literário a proposição teórica antes referida. PALAVRAS-CHAVE:
Tempo, memória, identidade.
ABSTRACT: This work is divided in two parts that if Inter-comple-
ment. In the first one, of theoretician-philosophical scope, the subject of the memory is focused, approaching it while bedding of the identity of the citizen. The diving in the “last time” as felt donation of to the subjectivity. The second part will take the form of a memorial story, carrying through in the plan of the literary speech the theoretical proposal before related. KEYWORDS:
* Doutor em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – Recife (PE).
Time, memory, identity.
Iniciaremos este trabalho com uma assertiva axiomática: se há algo que na existência do homem pode ser contemplado com a qualidade da permanência, esse algo é a faculdade da memória. Porém, uma permanência não do que é, e sim do que passa, do que fica e do que resta na passagem do tempo. Atribuiríamos, portanto, à memória o princípio da unidade e continuidade do ser, base da personalidade individual (assim como a tradição pode ser considerada a base da personalidade coletiva), ou seja, o princípio integrador por meio do qual o indivíduo se esforçaria em perseverar em seu ser.
366
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
A história passada e antepassada de cada um comportar-se-ia como lar-abrigo, refúgio do ser nos momentos em que o princípio inerentemente oposto ao do in(divíduo), o da fragmentação do ser, aparece teimosamente com sua vocação dissociativa. Não consideramos excessivo frisar que não apontamos para uma subjetividade inteiriça e transparente, fincada num sujeito idêntico a si mesmo, pois, como aposta Merleau-Ponty (1994, p.472), “a subjetividade arrasta seu corpo atrás de si”. Dessa maneira, pretendemos pensar a indivisibilidade do sujeito como princípio intrinsecamente identitário, mas sempre desfeito e refeito no curso do tempo. Dito isso, observaríamos que a primeira e talvez mais importante expressão concernente à memória seja a sensação de proximidade que as lembranças passadas trazem ao ser. Queremos nos referir ao vital estado íntimo provido pelo sentimento de pertença a uma história e de contigüidade a um território. Como mostra a antropologia, os grupos sociais têm como fundamento de sua personalidade coletiva a continuidade de uma tradição. No que concerne às sociedades ditas “primitivas”, essa seria mantida pela revisitação de seu mito fundador, consubstanciado numa narrativa primeva, ancestral, que imporá um sentido ético-organizacional à existência do grupo. Em relação a elas, poderíamos falar de uma memória coletiva perene e indefectível. Quando, porém, pensamos nas sociedades modernas e no intenso grau de individualização alcançado pelo homem contemporâneo, vivendo numa linha divisória entre a tradição e a liberdade para o novo, atentamos para o constante estado de contradição entre a continuidade mantenedora das (não) escolhas costumeiras e a liberdade, digamos, catastrófica, da não-adoção delas. Nesse caso, em se tratando dessa espécie de esfacelamento que acomete a Modernidade, a revisitação memorial, especialmente nas fases de uma ruptura, surgiria como ato espontâneo do espírito. Esse, na impossibilidade de resolver o impulso contraditório – contra a tradição –, por algum motivo impregnado à
A escritura da memória como fundamento identitário do eu
367
personalidade, buscaria o passado como uma forma de dotar-se da graça de uma estabilidade. Tal percurso se consolidaria como o movimento no qual o espírito viria a si pelo despertar das imagens que compõem a vida passada. Nesse sentido, conceder-se-ia uma identidade entre espírito e memória. Identidade que defenderíamos como forma mais plausível de se atribuir uma concreção de significado ao que vem a ser chamado de espírito. Como diz Henry Bergson (1999, p. 78) em Matéria e memória, “se, portanto, o espírito é uma realidade, é aqui, no fenômeno da memória, que devemos abordá-lo experimentalmente”. É dessa espécie de reciprocidade significativa que nasceria o horizonte de uma consciência individual, como também, acrescentaríamos enfaticamente, a possibilidade de suplantar uma auto-identidade solidificada na identificação com as ordenações socioculturais. Visaríamos, assim, a uma consciência que, no incurso da memória, desenvolveria uma contundente sensação de domínio, como de pertencimento, a alteridade e/ou a diferença de sua história própria – pois o que há de peremptório a distinguir as pessoas senão o senso unívoco de seus trajetos particulares? Desse modo, pretendemos nos referir a uma consciência “individualizante” que, ao descentrar a generalidade objetivada da espécie, perfará a medida e o alcance de sua subjetividade; para, então, (des)fechando o raciocínio, dizer que essa só se assumiria como tal levando a efeito a contribuição do fenômeno da memória. Nesse âmbito, a adoção da reflexão bergsoniana viria pela tentativa de unir ao problema da percepção uma teorização a respeito da memória. Dirá ele: “Na verdade, não há percepção que não esteja impregnada de lembranças” (Bergson, 1999, p.30). O princípio básico sugerido por Bergson é que a percepção consistiria num conhecimento útil que o corpo engendra em sua interação com o meio, de modo a fazer uma seleção das imagens percebidas de acordo com a vantagem que o corpo busca na luta pelo prosseguir de sua consistência. Nesse processo, todos os dados da experiência passada viriam naturalmente em aju-
368
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
da à consecução dessa meta instintiva; ou seja, ao enfrentarmos um dilema objetivo, recorreremos, com maior ou menor consciência, à lembrança de ocorrências similares para a escolha de uma determinada resolução. Veremos adiante que Bergson classifica tipos de lembranças conforme suas funções concernentes à percepção. Portanto, mesmo num modo de conhecimento mais especulativo, e até contemplativo – um conhecimento antifuncional fundado numa imaginação à deriva –, ocorreria, no cerne da combinação das imagens providas à mente, um espontâneo chamamento à memória. Queremos assinalar que o processo memorial viria sempre como uma ajuda, um benemérito, emergindo à consciência por uma necessidade do espírito em se manter como existente; desde a ativa intenção, mais ou menos reflexa, surgida no conflito com o outro humano ou natural – característica geral dos seres vivos –, até a qualidade supérflua, talvez só inerente ao homem, de rememorar imagens à toa do passado. Se entre esses dois casos, como obsessivamente interessa a Bergson, houve uma mudança de natureza na imagem memorial, ou apenas um aumento no seu grau de complexidade, aqui nos parece irrelevante. O importante a se relevar é que em tal necessidade se firmaria um movimento de reorganização do corpo em direção a um novo momento – lugar de equilíbrio do ser. Quando falamos de um efeito da imagem memorial sobre o espírito, obrigatoriamente nos vêm à mente as obras de Gaston Bachelard, nas quais esse poeta-epistemólogo ressalta o poder benfazejo que o devaneio poético de imagens de potencias materiais teriam na alma. No entanto, é-nos dificultoso responder ou tratar acerca das repercussões tristes, doloridas ou no mínimo incômodas que insistentemente assombram a consciência – normalmente associadas a pequenos pormenores de lembranças contíguas ou afins. Será que o pesar trazido por elas não afetaria o espírito de maneira oposta às preconizadas antes? Será que o devaneio, primo-irmão da memória, também não teria sua carga obscura? Inegável é o peso da memória. E tão
A escritura da memória como fundamento identitário do eu
369
forte às vezes ele se faz sentir, que uma das estratégias para um bem-estar da alma consiste na seleção consciente das lembranças advindas, de modo a, na medida do possível, livrarmo-nos de seu constrangimento. Contudo, ao espírito também cabe o alimento dessas lembranças, digamos, ruins. E é justamente da ruminação consciente da dor sentida pela lembrança delas, como da bem-temperança provocada pelas de bom auspício, que o ser-identidade poderá a cada passo se tornar mais senhor de si. É nesse momento que encontramos a postulação bergsoniana de que se de alguma maneira é possível abordar experimentalmente o diáfano espiritual, isso se dá pelo fenômeno da memória. Fará ele uma estranha dissociação entre o que denominará de percepção pura, ou matéria, e lembrança pura, ou espírito. Para nós, essa divisão conceitual serviria para um melhor parâmetro de compreensão dos termos, visto que não existiria um exato limite demarcatório das funções de cada um. Assim, a função atribuída por Bergson à percepção ao separá-la – nesse primeiro momento como veremos – da memória, englobaria os mecanismos sensório-motores responsáveis pela ação-reação do corpo aos estímulos externos. Dessa maneira, ela atuaria sempre numa dimensão presentificada do tempo correspondente à relação imediata entre os corpos-matéria. Porém, para que esse automatismo se torne cada vez mais eficiente no alcance de seus objetivos, fazse necessário um mecanismo de seleção daquelas ações que no tempo se mostraram mais eficientes, retendo-se os acontecimentos ocorridos, permitindo-se assim uma projeção otimizada do caminho a ser seguido. É como se, no aceite da teoria evolutiva, as deficiências sensório-motoras da espécie humana fossem supridas pela eficácia lógica de sua atuação, cujo passo fundamental teria vindo com o aprimoramento das tecnologias de exploração dos recursos da natureza. Quiçá, é nessa esfera evolutiva que se complexificou a função simbólico-metafórica humana, pois, para o resguardo e a posterior seleção das imagens percebidas, seria necessário o transporte des-
370
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
sas do espaço limítrofe entre corpo e ambiente externo para uma zona “profunda” onde elas seriam representadas. É, portanto, nesse não-lugar pertencente à dimensão do espírito, o qual denominamos memória, que a infinitude do conjunto de imagens que nos compõem se posiciona de modo tal a permitir a mistura, a substituição e a combinação entre uma e outras. Disso se poderia explicar, por exemplo, a promiscuidade imagética característica do onírico, como também o próprio fundo intuitivo que engendra as idéias. Sendo a partir da multiplicação combinatória das imagens que o indivíduo projetaria universos inexistentes, porém sempre tendo como base o que já existiu, ou seja, a medida de sua experiência perceptiva. O futuro abrindose para nós como a invenção de caminhos insuspeitos a partir de caminhos antes trilhados. Desenvolvendo-se, então, as noções de percepção e memória puras, encontraríamos dois perfis psicológicos, ou duas diferentes disposições de espírito. A do homem voltado para a ação presente, indisposto com o tempo, levado por uma atenção sempre temente ao solucionar dos obstáculos insurgentes, sempre a dispensar sua catexia presente na direção de uma certeza objetiva. Não pretendendo sentir a duração do tempo, sua elasticidade, só concebe o mundo como instrumento ou alavanca para a construção de um futuro. De sorte que para esse sujeito o melhor é se vir livre do passado, e o recurso às lembranças só acontecerá na exata medida de sua serventia. Já o outro tipo, o do sujeito entregue ou tragado pela memória, no qual o hábito do relembrar-se acontece de maneira quase patológica,1 conviveria com o passado no presente mesmo em que vive, devotando sua energia psíquica ao mundo quimérico das “imagens irreais”. Substitui, assim, o imediatismo de um presente inconsolado e desagradável por um universo abstrato no qual priva de seu maior bem: a intimidade. É o espírito voltado à substância incompreensível dos sonhos,2 e que, mesmo no estado de vigília, se pega amiúde em devaneios considerados pela vida prática como vãos. Como bem diz Bergson (1999, p.90), “para evocar o
A escritura da memória como fundamento identitário do eu
1
Em seu conto “Funes, o memorioso”, Jorge Luis Borges descreve-nos o personagem Irineu Funes, um sujeito que, acidentalmente, adquiriu a faculdade de dilatar o espaçotempo, discernindo, naquilo que não pode ser destacado ou isolado, uma total singularidade. Percebia, assim, nas infindáveis linhas da crina de um cavalo, nas diferentes faces de um morto num demorado velório, a mesma nitidez linear que observamos no claro desenho de um círculo sobre o quadro-negro.
2
Inspirados na clássica afirmação encontrada na Tempestade, de William Shakespeare, de que somos feitos da mesma matéria dos sonhos, indagaríamos então: de que substâncias são feitos os sonhos?
371
passado em forma de imagem, é preciso dar valor ao inútil, é preciso querer sonhar”. E acrescenta: “Talvez apenas o homem seja capaz de um esforço desse tipo”. Enfim, retomando a reflexão de Bergson acerca do significado das relações entre memória e percepção, concluímos ser do desequilíbrio entre a reciprocidade das duas funções o aparecimento dos vários níveis de “cegueira psíquica”. O obnubilar-se da consciência se dando no movimento pendular entre a alienação do sujeito quanto à sua subjetividade, por um lado, e a negação do mundo exterior, por outro; o que levaria à diminuição dissolutória da síntese identitária-existencial, efetivada tanto no poder consciente sobre as circunstâncias quanto em sua inerência nelas. Ora, tal “domínio consciente”, reforçamos aqui, nada mais significaria que a atenção, ou mesmo, o notar, da vida, pela iluminação dos acontecimentos passados. Uma vela irradiando-se sobre um horizonte cuja circunscrição denominaríamos “Minha Vida”. E isso corresponde ao conjunto das lembranças-imagens que, em mim eclodindo, constituem o “Meu Nome”. A essas lembranças-imagens Bergson associará a definição de memória espontânea, “que tem por objeto os acontecimentos e detalhes de nossa vida, cuja essência é ter uma data e, conseqüentemente, não se reproduzir jamais” (ibidem, p.90). Essa seria para ele a memória por excelência, e não aquela adquirida como resultado de um trabalho repetitivo da atenção, a qual terminará se fixando por uma condição de hábito. O caso extremo desse modo de memória constata-se, por exemplo, no didatismo antiquado que ainda impera nas pedagogias escolares, as quais associam a aprendizagem à assimilação repetitiva de um crescente acúmulo de informações. Todavia, essas lembranças-hábitos, operadas pelos mecanismos sensório-motores, comporiam a ferramenta imprescindível, guardadas as diferenças de grau, a todos os seres vivos em suas reações adaptativas ao meio ambiente. Estamos, assim, de volta ao terreno da utilidade, no qual o passado é registrado sob a forma de hábitos motores. Se, no entanto, acreditamos que ao menos no homem
372
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
existe uma capacidade natural de reter as imagens concernentes às situações passadas, deveremos acompanhar Bergson na indagação acerca da finalidade das lembranças -imagens: “Para que servirão essas imagens-lembranças? Ao se conservarem na memória, ao se reproduzirem na consciência, não irão elas desnaturar o caráter prático da vida, misturando o sonho à realidade?” (ibidem, p.92). Ora se não seria essa a natureza da arte?! A de impregnar de sonho a realidade para torná-la um pouco mais suportável; ou, como se a realidade mesma, da única forma em que pelo humano pode ser apreendida, não passasse senão de um grande sonho coletivo. A questão é que o pensamento criador é da mesma estirpe do sonhar, com a magnânima capacidade de nutrir o sonho de uma substância “(real)izável”. Portanto, o desprovimento dessa profundidade onírica sobre a qual flutua nosso existir pensado-percebido da vida resultará naquele sujeito automatizado pela repetição útil de seus hábitos, o qual “encenaria sem cessar sua existência em vez de representá-la” (ibidem, p.182). Nesse momento, o ato de reconhecimento das imagens-lembranças surgiria como a maneira pela qual passado e presente, memória e percepção, se uniriam numa mesma dimensão, a qual, na falta de uma terminologia, caberia a nós chamar de “tempo do viver”. Emergiria, assim, dessa dimensão, a figura do “leitor do tempo”, o qual se caracterizaria pela intensa sensação advinda no momento do reconhecimento dos significados propostos pelas “palavras-imagens” percorridas por seus olhos. Nesse âmbito, Bergson traz à tona o chamado sentimento de déjà vu. Esse se processaria pela similaridade-contigüidade das percepções presentes às percepções passadas consolidadas na memória. O fato é que, mesmo com toda a energia despendida nas tensões motoras com o enfrentamento do “tempo sempre a vir”, as lembranças-imagens de um “tempo ido” estão, a cada momento, sedimentando-se no espaçotempo do espírito. E, para que elas não venham a usurpar o domínio da atenção sensório-motora, caso do sujeito inteiramente devotado aos sonhos, faz-se necessária uma
A escritura da memória como fundamento identitário do eu
373
constante seleção de seu “aparecer à consciência”, relegando-as a um ostracismo em relação à psique alerta. Haveria assim um filtro pelo qual a percepção presente só reconheceria as lembranças-imagens direcionadas à ação motora quando guiada por um movimento em direção ao tempo útil do futuro. O ponto fulcral a que chegamos é que por algum escuso motivo tal seleção não ocorre com a qualidade de uma “perfeição-máquina”; assim, por obra mesma do espírito humano, às impressões atuais condensarse-ia a memória espontânea do tempo supérfluo do passado. Um tempo “inútil”, caracterizado pelo movimento não visível do sujeito, por uma exótica ocupação do espaço estabelecida por um silenciar das manifestações exteriores do corpo. Porém, é justamente essa disposição do tempo para o espírito, um tempo distendido, que levará à recondução ao objeto percebido, a uma detenção do corpo-espírito sobre ele. Como bem observa Bergson, “se no reconhecimento automático nossos movimentos prolongam nossa percepção para obter efeitos úteis, nos afastando assim do objeto percebido, aqui, ao contrário, eles nos reconduzem ao objeto para sublinhar seus contornos” (ibidem, p.111). É como se a fé perceptiva com a qual nos agregamos ao “espaço real” fosse, nas palavras de Bergson, “fortalecida” e “enriquecida” pela memória. Essa, no parentesco das imagens percebidas com as lembradas, agudizaria a percepção pelo valor resultante da coincidência entre sujeito percipiente e sujeito percebido. Coincidência que necessariamente ocorreria na detenção de um tempo sincronicamente recíproco, o qual se deixaria ser notado à medida que a contração da memória projetasse nele suas lembranças. Nesse sentido, o projetar-se da memória poderia se dar tanto pelo esforço da atenção concentrada como pela espontaneidade de uma atenção distraída; ou seja, uma memória que ora atenderia ao chamado das percepções, ora, por capricho, se escoaria sobre elas, recobrindo-as com o invólucro de nossa existência passada. Só essa coalescência entre o fundo lugar da memória e o espaço superfície da percepção, unidos como contínua
374
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
ponte, poderia explicar o sujeito que se sente sempre na fronteira da nostalgia do que passou e da curiosidade do que está a passar, perpassados ambos os lugares pelo amplo espectro de suas possibilidades interpretativas. Devemos observar, no entanto, que se Bergson estabelece nesse encontro a passagem de um estado de virtual consciência, ao qual corresponde à lembrança-imagem, para o de uma atuação sensório-motora que tem seu ímpeto na assimilação perceptiva daquela, nossa intenção diretriz se manteria no foco da percepção imaginativa. Permanecendo nesse foco, teríamos que propor, em vez de uma transfiguração da lembrança-imagem em imagem percebida, em decorrência do que a lembrança se enfraqueceria em troca de um fortalecimento da percepção, a idéia de uma justaposição pela qual memória e percepção permaneceriam por um determinado segmento do tempo em suspensão consciente. Instante suficiente para uma intuição (clara-evidente) tanto do presente observado quanto do passado rememorado. Preponderando nos dois estados o trabalho imaginativo: no primeiro podemos imaginar a existência decorrida, visto que já conhecida pela memória; no segundo imaginamos o tempo que decorre diante de nós, pois já conhecido por nossos sentidos perceptivos. Esse posicionamento irá conflitar-se com a afirmação de Bergson de que “imaginar não é lembrar-se” (ibidem, p.58). Ele, contudo, nos permite essa visada, já que, ao longo da obra, não se interessa em discorrer acerca do ato imaginativo. Como também a postulação de que o presente seja essencialmente sensório-motor, e portanto extensivo e localizado, não possibilitará o vôo do espírito sobre o horizonte contemplado pela percepção. Pois, para nós, é nesse momento que vemos realizar-se o instante exato em que o ser se compreende no que percebe, pela consciência imaginativa predisposta ao e no percebido. Outrossim, acreditamos impor-se o problema da imaginação na pertinência lógica da interrogação do próprio filósofo (ibidem, p.175): “Mas como o passado, que, por hipótese, cessou de ser, poderia por si mesmo conservar-se?
A escritura da memória como fundamento identitário do eu
375
Não existe aí uma contradição verdadeira”. Ora, mas não foi ele próprio que cunhou o termo composto “lembrançaimagem”? A subsistência do passado, portanto, dar-se-ia pela conservação das imagens do que ele foi. Porém, seguindo-se a dúvida, de inspiração shakespeariana, que indaga a respeito da substância dos sonhos, admitiremos a inextensão delas, ou seja, a qualidade de uma ausência de substância. Não localizáveis, nem como vácuo, a única circunscrição que podemos ater às imagens é a que coincide com o alcance do nosso ser. E, deveras curioso, em sendo o que não é, elas têm o estranho poder da afetividade. Se, então, elas têm a vitalidade de nos afetar, o passado afetando o presente, em contrapartida, já que o conjunto de imagens passadas consiste num meu pertencimento ao outrora, tenho em mim o poder de agir sobre elas pela faculdade da imaginação, a saber, imaginando as lembranças-imagens a partir das relações afetivo-perceptivas com as quais atravesso o presente existir. Desse modo, a consciência possui a ferramenta – não material – que permite trabalhar as lembranças-imagens composta da mesma incorpórea substância delas, dando-nos assim o direito de transfigurarmos o poder afetivo que atribuímos a essas lembranças-imagens, pois, ao rememorá-las imaginativamente, podemos dispô-las mediante um certo controle. Ou mantendo a disposição espaço-temporal das representações, ou recombinando-as de acordo com algum impulso estético, estaremos ficcionalizando nossa vida passada, porém sempre com a sensação de mantermos os pés no presente. Discordamos, pois, da afirmação de que “nós só percebemos, praticamente, o passado, o presente puro sendo o inapreensível avançar do passado a roer o futuro” (ibidem, p.176), visto que existiria um quase inapreensível instantâneo evento onde nossa atenção, ao distinguir sua figurasobre-fundo, seu grau de diferenciação em relação aos demais eventos, conseguiria vislumbrar a individualidade de sua apresentação; ou seja, sua aparição única em sincronia com o sujeito vidente (ibidem, p.188). Nesse momento, Bergson nos permite uma interessante interlocução
376
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
A escritura da memória como fundamento identitário do eu
A estrada
ao dizer que a “distinção nítida dos objetos individuais” requereria uma memória das imagens e que, para “uma concepção perfeita dos gêneros” como esforço reflexivo, exigir-se-ia justamente o elidir das “particularidades de tempo e lugar” de uma dada representação. Essa consideração nos é importante na medida em que admite dois momentos de compreensão dos seres, o da individuação e o da generalização, os quais podem se distinguir respectivamente como percepção e conceito. Façamos então nossas as palavras do filósofo quando afirma que “a idéia geral terá sido sentida e experimentada antes de ser representada” (ibidem, p.188). O significado dessa frase de certo modo encampa e norteia a segunda parte deste trabalho como “veia interpretativa” por nós escolhida e definida. O momento da tradução representacional, concretizado pelo ato da escritura, é concebido como ato segundo do espírito. A semelhança da qual o espírito parte no processo de tomada de conhecimento é a semelhança sentida e/ou vivida que nos dispõe ao aparecimento singular de um fenômeno. Só então se fará possível a idealização de cunho geral, como uma “semelhança inteligentemente percebida ou pensada”. E acrescentamos diante disso que o trabalho escritural das imagens tanto rememoradas quanto observadas transitará entre a descritividade do singular e a conceituação geral, porém sempre a partir da memória do já experienciado, do reconhecimento da semelhança. É nesse contexto teórico, e, talvez, como um modo de exemplificá-lo, que propomos, como parte intercomplementar ao discorrido até agora, a experiência de uma escritura da memória. Essa assumiu o título de Folias na fazenda. 3
Folias na fazenda A casa não era tão antiga. Tinha seus trinta anos. Seu especial interesse estava na extrema simpatia com a qual nos acolhia quando solicitávamos sua presença: algumas temporadas no ano, fora da normalidade circular da cidade grande.
377
O verbo “flecheirar”, um neologismo criado na região, quer dizer mergulhar de cabeça na água.
O trajeto até ela consumava-se num grande percorrer épico. Saíamos do apartamento muito cedo na manhã úmida, o dia anterior passado numa embriagante ansiedade pré-viagem. Percorreríamos enfadonhos quilômetros de asfalto, com suas inclinadas perspectivas e seus fios em movimento, antes de chegarmos às espetaculares três horas transitadas sobre a poeirenta estrada de barro. Esse ponto era delimitado por uma parada na última cidade ligada pelo asfalto, o último baluarte urbano. Após um breve lanche na casa de parentes, onde encontrávamos nossos primos – não tão “urbanoídes’ como nós –, partíamos restabelecidos ao encontro do incomensurável. Atravessávamos quatro vilas perdidas no deserto de barro e pedra antes de chegarmos à última, distante duas léguas da propriedade do meu avô. O mais marcante nessa estrada, singrando um território quase fantasma, esquecido por Deus e pelos homens, era a paisagem brilhantemente nova entrevista no percorrer uniforme e saltitante do veículo. Imagens irreconhecíveis feriam-me os olhos concentrados. Formas inéditas eram encontradas sob o verde, o cinza e o amarelo predominante; criando, para mim, um glamour surpreendente de imagens, acostumado que estava ao tédio repetitivo da perfeita geometria urbana. Avenida de avelozes, com seu verde escuro tenebroso, desfilavam a nossa passagem; seguida da observação preocupante: – se pegar nos olhos, cega! Pequenos açudes, resplandecentes de uma água prateada, onde lavadeiras esfregavam as roupas no dorso das rochas, davam-nos gana de “flecheirarmos” em suas águas.3 Óbvio que nossos desejos eram reprimidos pelo pragmatismo adulto de se chegar ao destino na hora prevista. As cidadezinhas eram-nos nomeadas à medida que as cruzávamos: São João do Cariri, Serra Branca, Santa Luzia dos Grudes, – dos Grudes?! Risos, a dissipar a seriedade da viagem. Enfim, quando as energias infantis já se tornavam sôfregas, o aviso reconfortante: – chegamos a Sumé.
378
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Sumé era o nome da cidadezinha onde realizávamos uma parada antes de se pegar uma estrada menor, da qual, percorridos 12 quilômetros, chegaríamos à porteira principal da fazenda, local convenientemente denominado de “o Doze”. Pequeno pouso para abastecimento no posto de bolão, como para se fazer algumas compras na mercearia soturna e pouco movimentada de Pedro Odon, velho amigo da família. – Ah! Que notável diferença dos supermercados da capital, ao qual acompanhava minha mãe nas feiras de sábado –. Refeitas as energias, na real constatação do início de nossas aventuras selvagens, retornamos a estrada, confundida agora com a rua principal da cidade; pois a antiga e originária, desaguando na igreja e na praça do coreto, com suas pequenas casas e cadeiras na calçada, havia perdido sua importância com a construção da estrada nova. Ao sair da cidade, tomávamos a esquerda uma estrada secundária que interliga os municípios de Sumé e do Congo. Adentrava-se, nesta, o território do bravio. Se antes a relação com a natureza dava-se principalmente intermediada pelo olhar, agora ela fazia-se mais física, num contato quase direto, tornando o último trecho do périplo um verdadeiro desafio para nossos pequenos corpos, os quais encaravam o mundo como um gigante, visto sempre de baixo para cima. A vegetação adensava-se, invadindo o arremedo de estrada, que, devido às chuvas– era julho –, era carcomida pelos buracos e catabis. Ah! Quase esqueci, nossa variant branca 73 havia sido, apesar de seu temperamento arrojado, substituída por uma valorosa perua rural, único veículo que, pelo seu vigor físico, seria capaz de superar os fantásticos obstáculos impostos pelos deuses daquela região. E o maior deles, sem dúvida, eram os riachões, pequenos afluentes do lendário rio Paraíba, que, se completamente vazios durante a estação seca, só reconhecidos pelo seu areal branco e fino, assumiam proporções assustadoras na medida em que desabavam as chuvas. O trecho seco transformava-se num riacho caudaloso, de força e velocidade invencíveis. Eram quatro os riachos a serem
A escritura da memória como fundamento identitário do eu
379
superados; e o maior deles era conhecido como riacho dos Espinhões. Numa ocasião, quando tentávamos sobrepujálo sob uma tempestade noturna, a perua rural rendeu-se às suas águas perversas e tivemos que sair às pressas pela traseira do veículo, sendo carregados até a margem. Nesta noite, nos albergamos numa pequena propriedade próxima, a fazenda firmeza, onde fomos recebidos por um velho senhor de modos afetuosos e sorriso simpático, e, logo depois de secos e de ter comido pamonhas, dormimos à luz dos candeeiros. No dia seguinte, passada a tempestade, os espinhões se apresentavam em seu esplendor tormentoso: águas barrentas, de um marrom-terra, cruzavam a estreita estrada com feroz velocidade. Neste dia só pudemos atravessá-lo num Jeep Willys – tração quatro rodas, que fez várias viagens levando as pessoas de um lado a outro de seu leito. Chegando-se, enfim, a entrada da fazenda, o carro era retido pela porteira principal. Descíamos serelepes para compor nossa função de abridores de porteiras. Estas, normalmente, possuíam um sistema de trancamento feito de madeira que após puxado com esforço destravava-se, bastando-se assim empurrá-la para que pudéssemos, ao passo que se abria, pegarmos carona num de seus degraus. Então, o carro lentamente adentrava a fazenda e a porteira era encostada e devidamente trancada. Era realmente singular a alegria que este simples processo nos provocava. Até chegarmos a casa-sede da fazenda enfrentávamos mais quatro porteiras, que existiam para dividir áreas de pasto, e em todas elas conservávamos a mesma vitalidade no fazer manual de um ato inédito às nossas mesquinhas atividades rotineiras. Penetramos assim no nosso território tão ansiado. Logo ao lado da cerca de arame farpado demarcadora das terras da fazenda, encontrava-se a primeira “casa de morador”. Não recordo seu nome, o do pai da família; crianças lambuzadas de barro vêm nos fazer festa: – gente estranha da cidade que chega. Algumas têm a barriga inchada “mó dos verme”. A fazenda é grande. Percorrem-se uns três
380
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
quilômetros por um caminho esburacado até se chegar na casa-sede. A propriedade é grande, uns dois mil hectares. Como é julho, a Caatinga está verde, de um verde florido. Aqui e ali vemos a vegetação rasteira salpicada de florzinhas silvestres. Contrariamente ao nome, a Caatinga exala um perfume agradável, sutil, o ar invadindo nossos pulmões com seu odor benfazejo. Sente-se logo o cheiro de bosta de boi, por incrível que pareça um cheiro bom. O Caatingueiro fechado marca todo caminho; separado por pastos de capim-elefante. A jurema, que dá nome à fazenda, com seus espinhos cortantes de fundos arranhões, é predominante; assim como o inofensivo mameleiro, de folhas grossas – de grande serventia quando se vai obrar no mato –. Aproximamos-nos da casa de Zé Galo, uma espécie de sede da parte norte da fazenda. No passado, ele fora acusado, talvez com razão, de ter matado dois cabras por causa de uma rixa de terras. É estranho, pessoalmente Zé Galo era risonho e simpático conosco, e dado a brincadeiras. São fabulosas as nominações atribuídas aos lugares, assim como as alcunhas pelas quais as pessoas desta região são conhecidas: Pitôco, Lavanca, João Vermelho – porque era inteiramente vermelho –, Mané Borracha, Mané Azul – o Pescador –, Ná, Pena; nomes inusitados, de uma criatividade peculiar, imprimiam-nos um encantamento sonoro que nos marcava mais que as próprias pessoas ou lugares aos quais se referiam. Alguns desses “filhos da terra” carregavam histórias que exacerbavam ainda mais suas impressionantes figuras. João Vermelho, por exemplo, era inteiramente tomado pela diabete, de longe se podia sentir o odor de sua urina, atraindo pelo rastro deixado na terra uma legião de formigas saúvas. Tinha se casado em tempos imemoriais com Minervina, uma negra forte a qual chamávamos zombeteiramente de Minerva. Já Pitôco era um ex-cabo da polícia; alcoólatra inveterado, fora trazido pelo meu avô para permanecer isolado na fazenda, antes que a cachaça, que já tinha levado sua alma, levasse de vez sua vida. Era proibido de ir a feira da cidade nas segundas-feiras. Quando, por fuga, isto ocorria, era en-
A escritura da memória como fundamento identitário do eu
4
O balde do açude é uma estrutura alta de areia e barro que serve para conter e limitar suas águas.
381
contrado jogado na rua, desgraçado de bêbado. Todavia, na fazenda aparentava uma passividade tranqüila, sendo visto sempre só, a realizar pequenas tarefas domésticas, plantando fruteiras, pescando; tentando esquecer-se. Havia também os vaqueiros, homens guerreiros, com seus gibões e calças de coro. Embrenhavam-se cedo no Caatingueiro fechado, atrás de reses perdidas, retornando, muitas vezes, só no dia seguinte. Quem conhece a Caatinga sabe da dificuldade de se abrir caminho por entre os espinhos dilacerantes das juremas e dos mandacarus. Imagine-se, por vez, montar a galope solto, sem caminho ou percurso certo, atrás de bois desgovernados. Via-se nos rostos destes bravos sertanejos as cicatrizes fundas deixadas por seu ofício. Passada a casa de Zé Galo, após uma longa subida à direita, avista-se uma linda paisagem, uma longa superfície platinada expressando reflexos cristalinos de luminosidade do fim de tarde: são as águas do grande açude da Jurema. Da beira da estradinha já podemos ver os marrecos a nadar em suas margens. Passamos pelo balde4 e pelo sangradouro de cimento. Quando o tempo é de muita chuva, o açude sangra por sobre um paredão de cimento – formando um véu de água, tal qual uma cachoeira –. Postando-se em baixo, ao pé do sangradouro, podíamos tomar banho, recebendo uma pesada carga d’água. Depois, acompanhávamos o correr das águas por uma descida de pedras até dois poços situados na vazante do açude; o primeiro e maior dos dois era circulado por um chão liso feito de rocha natural e sombreado por pés de algarobas. Era uma grande festa, pois além de se mergulhar no poço, podia-se, sentado na sombra, pescar piabas vindas do açude grande. Aqueles que dominavam a difícil técnica arvoravam-se em jogar a tarrafa, chegando mesmo a pegar traíras grandes. Quando o sangramento parava, escalávamos as pedras de volta ao paredão donde, “flecheirando” na água doce, dávamos intensas nadadas até o meio do açude, para voltar rapidamente com medo dos peixes grandes ou de cobras d’água.
382
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
A escritura da memória como fundamento identitário do eu
Passado o açude entramos na longa reta final, que, findando na última porteira, dava acesso à querida casa da fazenda.
A Casa A casa era térrea e retangular. Devia medir uns trinta metros de frente por dez de fundo. Era toda avarandada por um terraço largo onde se penduravam inúmeras redes. E este era cercado por um tipo de flor violeta que lhe imprimia um típico perfume agreste. Largadas as malas e cumprimentada a velha Sá Rosa, nascida ainda nos tempos da escravidão, mãe de 18 filhos e com toda uma descendência espalhada pela região, partíamos logo para as corridas e brincadeiras em volta do terraço. A casa fora construída de modo que seu lado maior e frontal como que abraçasse quem chegava à porteira de entrada, a qual distava uns 50 metros da casa. Seu lado menor, à direita, limitava-se com uma outra construção onde estava instalada a cozinha, com seu forno de carvão, e uma espécie de sala de espera composta de bancos de madeira sem pregos. Contígua a esta se achava, o que chamaríamos de sala de jantar, uma única e enorme mesa – com espaço para 20 pessoas, pois familiares e trabalhadores comiam juntos sentados em dois compridos bancos –, onde, na cabeceira, estabelecia-se o patriarca, o avô. Duas mulheres de moradores – empregadas na casa – ficavam durante toda a refeição a espantar o enxame de moscas que tentava pousar na comida, além de deixarem uma bacia de espuma de sabão num canto como armadilha para as mesmas. O interior da casa era composto por três quartos de casais, para os pais; duas salas espaçosas, nas quais todos se reuniam à noite, depois da janta, para se assistir televisão – o problema é que a imagem em preto e branco era péssima e só aparecia a seu bel prazer, em intervalos nada regulares; era melhor desistir, acostumados que estávamos com a boa imagem da TV da cidade, entretanto, os moradores, em pé, encostados a uma janela grande que dava para o terraço, insistiam,
5
O cata-vento, como o próprio nome indica, tem a função de captar a energia eólica e assim movimentar uma engrenagem de sucção da água vinda de um poço artesiano.
383
extasiados, em ver os flashes da programação noturna concedidos pelo aparelho antigo. Um quarto grande e largo, composto por quatro beliches era onde dormiam as “crianças”. Existiam três janelas que se abriam para um terreno cercado por algarobeiras e mangueiras onde se improvisava um campo de futebol. Mais ali, um pouco para a esquerda, avistava-se o cata-vento,5 para o qual nos dirigíamos nos fins de tarde a fim de tomar o terrível banho gelado, pois o único banheiro da casa, por conta da arraigada falta d’água, era de uso exclusivo dos adultos. Porém, antes do banho nos refestelávamos colhendo e comendo as inúmeras frutas existentes no sítio em volta do catavento: goiabas, laranjas-cravo, mangas, pinhas, coraçõesda-índia, azeitonas pretas, e a mais típica das frutas da região: o umbu. O umbuzeiro é uma árvore alta, galhenta, que dá um sombreado fechado, só se alcançando o fruto com o auxílio de uma vara, com a qual, cutucando-o, se o derruba no chão. É uma fruta verde, do tamanho de uma sirigüela, com um gosto doce-azedo, mas delicioso em sua peculiaridade; se verde, solta um ácido que deixa os dentes, como se diz, “travados”; com uma bacia de umbus é possível se fazer a tradicional umbuzada: fervida no leite. O teto da casa não tinha forro, assim não havia o isolamento sonoro encontrado nos prédios modernos. Os ruídos e as conversas podiam ser ouvidos em qualquer parte dela. As falas de alcova, portanto, tinham que ser sussurradas ao pé do ouvido. Se quisesse ser escutado por todos bastava-se elevar a voz. O boa-noite era dado coletivamente. Dormíamos olhando para o interior do telhado devassado, vendo as traves de madeira, e acordávamos com as frestas de luz que passavam por entre as telhas quebradas. Estas eram nosso maior terror. Ali, morcegos escondiam-se de dia, para, à noite, voar livremente pela casa – lembrávamos das amedrontadoras histórias dos moradores acerca dos morcegos-vampiros, ou das cobras que caíam do telhado em cima das pobres criancinhas. Os móveis eram todos antigos, da época da construção da casa. Nas paredes, retratos de antepassados desejosos de vida, po-
384
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
rém presos ao limite da moldura oval: rostos estranhos, desconhecidos, atentavam-me a curiosidade para conhecer suas histórias, que, afinal, era a minha própria. Nossos dias apresentavam uma rotina quase ritualística. Éramos acordados as 05:00h da matina, por uma sirene nos intimando a ir ao curral tomar leite de vaca tirado na hora; pegávamos um copo de alumínio, colocávamos três dedos de açúcar e íamos correndo para o curral, a uns duzentos metros da casa. Lá, nos compenetrávamos vendo o vaqueiro, sentado num tamborete – o bezerrinho amarrado e babando aos pés da mãe –, fazer jorrar com movimentos precisos da mão o leite original, do qual, variando de gosto de acordo com a vaca, sempre bebíamos dois ou três copos grandes. Ouvíamos concentrados os comentários sobre as reses: o touro holandês que quebrava uma cerca, e entrava a brigar com o dócil touro zebu, apelidado de ”violino”; a febre aftosa que havia atacado duas vacas; e observávamos largamente os movimentos instintivos do rebanho no rebuliço do curral. Um fato sempre me provocava indignação: não se sabe o motivo, uma das vacas recusava a maternidade do bezerrinho, negando-lhe o leite. Este, coitado, atônito, insistia em suas tetas, mas era misteriosamente rejeitado. Uma anomalia da natureza? Vai saber. De volta a casa, por volta das 07:00h, esperávamos o café reclinando-nos nas cadeiras de balanço, a contemplar o sereno da manhã, sentindo os raios mornos do sol reconfortar-nos do derradeiro frio noturno – pois, como no deserto, se de dia o calor era forte, à noite a temperatura despencava e tínhamos de dormir com cobertores. Mesmo de estômagos já cheios de leite, comíamos o indefectível cuscuz com leite acompanhado de algumas bolachas recheadas com manteiga de garrafa; raramente comia-se pão. Com o sol a subir, era hora de uma reunião de cúpula a fim de se decidir a programação matinal. A decisão, peremptória, sempre ficava a cargo dos adultos. A escolha felizmente corroborava nossas expectativas: vamos tomar banho de açude! gritávamos em feliz algazarra. Restava saber em qual deles, pois eram quatro os açudes, e cada um re-
A escritura da memória como fundamento identitário do eu
385
servava um projeto aventureiro específico, já que possuíam uma singularidade extraordinária, a começar pelos diferentes trajetos geográficos que percorríamos para alcançálos. Assim, vejamos: tínhamos o mais tradicional, o já referido açude velho da jurema; era também o mais próximo, após uma caminhada de meia hora chegávamos ao seu largo e acolhedor paredão. Só no trecho final encontrávamos dificuldades, tinha-se que se superar um riacho equilibrando-se num caminho de pedras que servia como ponte. O que não consistia num risco mortal, pois se nos desequilibrávamos o dano maior era ficar-se sujo de lama até o joelho. O segundo açude não se definia como tal, era conhecido simplesmente como a barragem. Sendo o mais recente, possuía um ar moderno, com requintes tecnológicos em sua engenharia. Também tinha um paredão, mas de enorme risco, visto que um de seus lados limitava um fatal precipício de vinte metros. Seu maior atrativo, no entanto, estava neste fundo, pois foram construídas duas grandes torneiras que, abertas, provocavam uma pesada queda d’água. Existia uma escada de marinheiro por onde descíamos e, segurando-nos para não sermos levados pela força da água, recebíamos aquela pesada carga sobre nossos corpos. O terceiro era o que eu mais gostava, fora dotado de um nome feminino composto por um diminutivo, o açude da cachoeirinha, o qual representava perfeitamente sua índole. Perpassava nele uma suave mansidão na passividade de suas águas paradas. Seu nome provinha do fato de que quando sangrava, seguia por um declive de rochas formando uma pequena cachoeira. Esta desaguava num vale premiado por coqueiros, melancias e pés de cana-deaçúcar. Sugávamos o mel da cana e a água encarnada das melancias, enquanto um ágil morador subia nos coqueiros arremessando-nos lá de cima os cocos mais verdes. Concluíamos a nossa festa de líquidos sabores, entornando na boca a água dos cocos a nos sujar com seu mel nossa cara e nossos corpos. Sem problema, logo depois “marcávamos carreira’, atirando-nos impetuosos na água gelada do açude. Por ser o mais longínquo, a ida a cachoeirinha tinha de
386
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
ser planejada com antecedência. Aguardávamos ansiosos a confirmação do passeio. Uma vez lá, a fabulosa paisagem comungava com nossos espíritos, nutrindo-os com o jorro de sua sensorialidade brilhante e benéfica. O último, e o maior deles, era o famigerado açude do capa. Ainda hoje não encontro explicação para o nome. Só sei que ele nos infundia um certo temor, e uma estranheza. Muito raramente íamos nele, pois de difícil acesso e não muito dado a receptividades infantis. Em sua grandeza, era um território para os maiores. Mané Azul, o pescador, todos os dias antes do amanhecer o navegava em seu pequeno bote, resgatando sua rede coalhada de curimatãs, pacus e traíras. Tinha tamanha capacidade de guardar a água que só chegou a sangrar uma vez, na histórica chuva de 67, quando seu paredão estourou causando um desastre nas diversas plantações que irrigava. Após as aventuras da manhã, ao meio-dia em ponto, estávamos todos preparados para o almoço. Era uma lauta refeição: iniciava-se com um prato servido unicamente de feijão, cobria-se este com farinha e amassava-se a mistura até se formar uma pasta grossa. O feijão era servido como uma introdução, uma entrada, após ele é que começava realmente o almoço. Não havia salada, as carnes predominavam: a tradicional carne de sol com macaxeira, carne de bode, de carneiro, guisado de galinha, peixes de açude; o arroz geralmente substituído por macarrão, e pouco tempero. Não havia geladeira, os animais eram mortos pela manhã e destripados diante de todos, no terreiro grande em frente da cozinha. Durante o almoço, comentários sobre a fazenda, discussões políticas e alguns “causos” engraçados. Por fim, o cafezinho, um leve descanso na varanda para se tomar uma fresca, e a retirada geral para os quartos: era o momento da sesta. Até as quatro horas quando o sol relaxava, não se saía de casa; aperreados com as moscas, partíamos para o lanche: um grosso pedaço de queijo de coalho com uma talagada de goiabada cascão; novas brincadeiras, ou um banho de açude com o sol a se por sobre o sertão majestoso. No jantar, logo após o tempo
A escritura da memória como fundamento identitário do eu
387
escurecer, um prato de coalhada com açúcar, o xerém amassado, e um pouco de arroz com paçoca. Às nove, depois de alguma conversa e um jogo de sueca no alpendre, os olhos quase a fechar espontaneamente, nos entregávamos ao sono dos Deuses. Bem a história é demasiada longa, e como não há um desfecho espetacular vamos ficando por aqui, não sem antes esquecermos da resposta de Pitôco quando perguntado onde ficava aquela região: – É lá, no meio do mundo.
Referências BERGSON, Henry. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
389
Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s The Dream Play: expressionism in the Theatre Denise Campos e Silva Kuhn*
ABSTRACT: The Swedish playwright August Strindberg, in The Dream Play, and the American Tennessee Williams, in Camino Real, presented metaphysical questionings and used expressionistic techniques to convey their meanings. Strindberg lived in a pemanent search for the meaning of life, and in this pursuit he created theories and a new artistic technique: he was the father of expressionism. The Dream Play is considered the first expressionistic drama. In Camino Real, Tennessee Williams used expressionistic techniques, and the play is similar to Strindberg’s The Dream Play in various aspects. This paper presents a comparative analysis of the plays, considering expressionitic techniques and views on mankind. KEYWORDS:
Theatre, expressionism, expressionistic play, comparative literature.
RESUMO: O dramaturgo sueco August Strindberg, em The Dream
Play, e o americano Tennessee Williams, em Camino Real, apresentaram questionamentos metafísicos e usaram técnicas expressionistas para transmitir suas idéias. Strindberg vivia em permanente busca pelo sentido da existência, e nessa procura, elaborou teorias e uma nova técnica artística: foi o criador do expressionismo. The Dream Play é considerada a primeira peça expressionista. Em Camino Real, Tennessee Williams usou técnicas expressionistas, e a peça é similar a The Dream Play sob vários aspectos. Este artigo apresenta uma análise comparativa das peças, considerando técnicas expressionistas bem como visão de mundo. PALAVRAS-CHAVE:
Teatro, expressionismo, peça expressionista, literatura comparada.
* Professora doutora titular da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp) – Ribeirão Preto (SP).
August Strindberg (1849-1912) is considered one of the most revolutionary playwrights, not only of Sweden,
390
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
his own country, but of the universal theatre. Each work was a starting point to him: he experimented with several types of plays and aesthetic styles in his quest for the most suitable way of conveying his ideas, and there was hardly a field of human thought to which he did not give some attention. He lived in a permanent search for the meaning of life, and in this pursuit he created very interesting theories and a new technique: he was the father of Expressionism. The Dream Play is considered the first expressionistic drama. The American dramatist Tennessee Williams (19111983) was certainly indebted to his Swedish colleague: in his Camino Real he used expressionistic techniques, and the play is similar to Strindberg’s The Dream Play in various and important aspects. The very title of Williams’s play indicates that he was influenced by Strindberg, because among the Swedish plawright’s expressionistic plays there is one called Stora landsvägen, which was translated into Spanish as Camino Real. This was Strindberg’s last play. Williams’s Camino Real and Strindberg’s The Dream Play were written under completely different circumstances. The Dream Play is the result of an entire life of experiments: it is the creative outburst of a genius’s mind, near the end of his career. Strindberg already had some of the answers which he had pusued during all his life when he wrote this play. Camino Real is one of Tennessee Williams’s first works. He wrote it in Mexico, while seriously ill and alone: Williams said (1960) that it was written to fight despair, and that it served as a spiritual purgation of confusion and lost sense of reality. Nevertheless, the two plays have sufficient similarities to make a comparative analysis of them worthwhile.
Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s...
391
realities – as well as our external reality, because certainly our inner part is a truer “reality” than the outer one. In expressionistic plays the dramatist tries to find a means to expose the minds of people – according to Wright (1972), unlike the realistic theatre, expressionism attempts to suggest far more of life than it portrays. Martin Esslin (2001) affirms that it is a significant fact that the development of the psychological subjectivism that manifested itself in Strindberg’s expressionistic dream plays was the direct development of the movement that had led to naturalism. It is the desire to represent reality, all of reality, that leads to the ruthlessly truthful description of surfaces, and then, one realizes that objective reality, surfaces, are only part, and a relatively unimportant part, of the real world. In Strindberg’s dream plays, the shift from the objective reality of the world of outside, surface appearance to the subjective reality of inner states of consciousness – a shift that marks a passage from the traditional to the modern – is finally and triumphantly accomplished. Strindberg says in the introductory note to The Dream Play: In this dream play, as in his former dream play To Damascus, the author has sought to reproduce the disconnected but apparently logical form of a dream. Anything can happen; everything is possible and probable. Time and space do not exist. On a slight groundwork of reality, imagination spins and weaves new patterns made up of memories, experiences, unfettered fancies, absurdities, and improvisations. The characters are split, double, and multiply; they evaporate, crystallize, scatter, and converge. But a single consciousness holds sway over them all – that of the dreamer. For him there are no secrets, no incongruities, no scruples and no law... (apud Esslin, 2001, p.352-3)
Expressionistic techniques Expressionism represents an effort to portray what lies underneath the surface meaning. Its purpose is to show our inner selves – representational projections of mental
In the Production Notes to his play The Glass Menagerie, Tennessee Williams (1981, p.229) gives us his explanation about the purpose of using unconventional techniques:
392
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Expressionism and all other unconventional techniques in drama have only one valid aim, and that is a closer approach to truth. (...)The straight realistic play with its genuine frigidaire and authentic ice-cubes, its characters that speak exactly as its audience speaks, corresponds to the academic landscape and has the same virtue of a photographic likeness. Everyone should know nowadays the unimportance of the photographic in art: that truth, life, or reality is an organic thing which the poetic imagination can represent or suggest, in essence, only through transformation, through changing into other forms than those which were merely present in appearance.
Williams (1981) further explained that when a play employs unconventional techniques, it is not trying to escape its responsibility of dealing with reality, or interpreting experience, but is actually attempting to find a closer approach, a more penetrating and vivid expression of things as they are. In The Dream Play and Camino Real the playwrights used expressionistic techniques to expose their views on human society. Both were pessimistic, as the image of hell dominates their plays. The two plays share their most stricking feature: they have the fluid form of a dream. Time and space do not exist or are not specified, and anything may happen. Both works contain a great number of symbols and, as in a dream, some characters have allegoric names. In his search for the meaning of existence, Strindberg, who had been a materialistic sceptic, became a believing mystic. The Dream Play belongs to this later phase of his life. And as he had always believed in the vital significance of dreams, in The Dream Play this conviction became a new and wonderful dramatic technique, through which he could expose his mystic theories about life on earth. Tennessee Williams was so ill when he wrote Camino Real that he thought he was going to die. Perhaps this feeling made him reflect profoundly about our condition, and he utilized Strindberg’s technique to convey his feelings to
Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s...
393
the audience because expressionism is very suitable to express feelings. Williams (1966) explained that he intended in Camino Real to give an idea of something wild and unrestricted that ran like water in the mountains, or the continually dissolving and transforming images of a dream. Using expressionistic techniques, both playwrights were able to speak more personally and with a greater degree of self-revelation than they could have done in a “wellmade” (realistic) play. The two plays discard straight story lines. Before the Prologue of The Dream Play there is a little note called “A Reminder”, in which Strindberg (1913) explains this play as an effort to imitate the form of a dream. The dreamer is mentioned in this note, and his dream unfolds before us; but we do not see his physical body – only his subconscious is presented to the audience. In the beginning of Camino Real, D. Quixote (one of the several legendary characters that appear in the play) says that he is going to sleep and dream; and he specifies that his dream will be a pageant. When he wakes up (at the end of the play), another character makes the following remark: “It would be in bad form if I didn’t take some final part in the pageant” (Williams, 1966, p.226). Throughout the play, the audience sees D. Quixote sleeping against a wall on the stage. So we can interpret the whole play as being a dream of D. Quixote’s. As there is no plot in either play, the dramatists used devices to hold the scenes together. Williams divided his play into sixteen “blocks” on the Camino Real – as the characters go through this road their lives are spent. In doing this, Williams mixed the concepts of time and space. There is also a character who is present in all “blocks” – Mr. Gutman – and he announces the beginning of each “block”. This is enough to link the scenes: a frail connection in accordance with the mood of the play. In The Dream Play, the link is the Daughter of Indra. In the Prologue, Strindberg (1913) lets us know that she, as the daughter of a god, has descended to Earth to see whether human complaints are justifiable. The Daughter is present in al-
394
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
most all the scenes, and exclaims the refrain “Men are to be pitied” at intervals, thus helping to maintain the unity of the play. There is a character in Camino Real with the same role as the Daughter: Kilroy. This character is present in eleven of the sixteen “blocks”; like the Daughter, he “falls” into hell (the dramatist’s personal view of existence) and has to endure several hardships. In The Dream Play, the dreamer is presented as being several characters. The first one is the Officer. He is imprisoned in a castle that grows towards the sun, having stable litter scattered on the ground around it. According to Brustein (1970), this castle is an image of life: the human spirit wants to ascend to the sky to free himself of his dirty body. In this scene, the Daughter asks why flowers grow out of the dirt, and obtains the answer: “Because they do not feel at home in the dirt, and so they make haste to get up into the light in order to blossom and die” (Strindberg, 1913, p.29). As the Officer is imprisoned in the castle, so are the characters in Camino Real imprisoned in this unreal country. The idea of “no way out” is present throughout both plays. What we see of the Camino Real is a square that belongs to some tropical seaport. There is a luxury hotel on the left side of the square called “Siete Mares”; opposite this hotel is the poor side (the “Skid Row”) which contains the “Gypsy’s Gaudy Stall”, the “Loan Shark’s establishment” and the “Ritz Men Only”. There are three possible exits from this place: escape in an airplane named “Fugitivo”, going out through the desert of the “Terra Incognita”, and death – in this case falling in the hands of the sinister Streetcleaners. Kilroy, a young American vagrant in his late twenties, got off a ship that came from Rio and found himself in the Camino Real. He does not know where he is, and nobody answers his questions. Both the Daughter and Kilroy make horrible trips: along the way they see the worst side of human nature and are themselves victims of it. In Camino Real, Gutman
Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s...
395
(a symbol of repression, authoritative power, and whose name may well mean “the man who has the guts” because of the nasty acts he performs) obliges Kilroy (this name sounds like “kill” and “royal” – death to the king?) to wear the uniform of a patsy, thus humiliating him. The loss of dignity of all men is concentrated in his character. In The Dream Play, The Daughter of Indra witnesses the agony of the Officer who waits for a bride that never comes, and asks a portress to wear her shawl – the portress says that in this shawl thirty years of agonies lie hidden, because she listens to the complaints of people. “It is heavy, and it burns like nettles” remarks the Daughter (Strindberg, 1913, p.40). In this scene of The Dream Play there is a door that has an air-hole shaped like a four-leaved clover. The solution to the enigma of existence is supposed to be behind this door. Like the “Terra Incognita” in Camino Real, this door is a mystery: nobody is able to open it, as well as nobody knows what happens to the people who escape through the “Terra Incognita”. Both Kilroy and the Daughter have frustrating romantic experiences. The Daughter marries the Lawyer and suffers terribly because they have different needs. She is imprisoned in their marriage because they have a son, and she feels suffocated by the situation. This feeling is represented in a metaphor: another character is pasting up all the cracks on the walls and makes the Daughter exclaim: “Air, air – I cannot breathe!” and “Oh, it feels as if my lips were being glued together” (Strindberg, 1913, p.52). In Camino Real, Kilroy is chosen by the Gypsy’s daughter to spend the night with her, but they do not understand each other. At the end of the plays both Kilroy and the Daughter die. But the playwrights wanted to give some hope to the audience before the curtain fell: Kilroy resurrects and escapes with D. Quixote through the “Terra Incognita”, while a fountain that had been dry throughout the play begins to flow and a couple of lovers become reconciled to each other. The Daughter, before dying and going to where her father is, gives a mystic explanation about the origin of our suffer-
396
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
ings, and promises that we will be recompensated for our pains: “And in thy name their grievance shall be placed before the throne. Farewell!” (Strindberg, 1913, p.104). The Daughter, then, goes into the castle of the first scene. The castle breaks into flames, while a bud on the roof opens into a gigantic chrysanthemum flower. Strindberg seems to mean that dying, we will achieve peace and happiness. Williams (1966, p.227) also uses the image of a flower to convey an optimistic feeling at the end of Camino Real: D. Quixote, noticing that the couple of lovers are reconciled to each other, exclaims: “The violets in the mountains have broken the rocks!”. Love is the solution to our problems, according to this dramatist. The Dream Play, as well as Camino Real, is a quest play. The characters strive to answer the basic questions: “Who am I?” and “What am I doing here?”. In both plays, each character represents an aspect of human personality; by putting their separate quests together we realize what our needs are. The playwrights exaggerate and distort the human characteristic portrayed in each character: the grotesque is often present when the dramatist uses expressionistic techniques. This is done to emphasize the meaning that is to be conveyed to the audience. Kilroy and the Daughter represent the common man and what he has to suffer and endure in life. There are other characters in The Dream Play who have a correspondent in Camino Real: Gutman, who represents the monetary power in Camino Real, is similar to the blind man in The Dream Play. Both lack sensibility and a more real sense. Byron in Williams’s play, and the poet in Strindberg’s, share the need of hard experiences for their spiritual development, and share their idealism, too. Byron says: “The luxuries of this place have made me soft. The metal point’s gone from my pen, there’s nothing left but the feather” (Williams, 1966, p.178). In Strindberg’s (1913, p.61) play a character says, about the poet: “he is roaming about the higher regions so much that he gets homesick for the mud; and wallowing in the mire makes the skin callous like that
Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s...
397
of a pig. Then he cannot feel the stings of the wasps”. Both Jacques Casanova in Williams’s play and D. Juan in Strindberg’s are in love with faithless women, what is unexpected and makes us think of how weak and fool mankind really is. Williams’s La Madrecita and Strindberg’s Mother represent, obviously, maternal love. The characters in The Dream Play are not called by proper names: their profession or their position in a family is mostly what names them. This is an expressionistic device similar to the existence of legendary characters in Camino Real – that is, characters are not full human personalities, but archetypes of certain basic attitudes and qualities. Brustein (1970) affirms that the lack of an answer to the enigma of existence is the cause of a series of contrasts and paradoxes that are presented in The Dream Play and in Camino Real. In Strindberg’s play we have the Body versus the Spirit, Fairhaven (a place similar to Paradise) versus Foulstrand (a picture of Hell), Winter versus Summer, North versus South, Beauty versus Ugliness, Happiness versus Unhappiness, Love versus Hate. In Camino Real, there is the Royal Way versus the Real Road; the rich side of the square versus the poor one; paradoxes such as Kilroy, who had been a box champion, dressed in the uniform of a patsy; Jacques Casanova, the eternal lover, crowned “The King of Cuckolds”; and the Gypsy’s daughter, who sleeps with a man whenever a “fiesta” is needed to distract the people from the injustices they suffer, is supposed to be a virgin each time. Tennessee Williams used a device which was not imagined by Strindberg. He makes the audience take part in his play: the actors frequently speak directly to the spectators and sometimes go through the aisles of the theatre. As Williams is exposing the narrator’s subconscious mind, a dream of his, he may have wanted a greater proximity with the spectator. The setting of the two plays is expressionistic. Both Williams and Strindberg use, with great creativity, lights, music, visual symbols and other effects to convey exactly
398
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s...
399
the mood of a scene; they also exaggerate or distort the lines of the scenery to express the mental or emotional distortion of the characters. Two good examples of these devices are the following: in Camino Real, Marguerite Gautier fails to escape in the “Fugitivo”. As it is taking off,
The lack of an answer for the enigma of existence is their central point. But while in The Dream Play Strindberg explores this theme further and tries to express his personal views on all the important aspects of society, Williams restricted the meaning of his play. He said:
her figure is caught in the dazzling glacial light of the follow-spot. It blinds her. She makes violent, crazed gestures, clinging to the railing of the steps; her breath is loud and hoarse as a dying person’s [...] There is a prolonged, gradually fading, rocketlike roar as the “Fugitivo” takes off. Shrill cries of joy from departing passengers; something radiant passes above the stage and streams of confetti and tinsel fall into the plaza. (Williams, 1966, p.189)
Camino Real is merely a picture of the state of the romantic nonconformist in modern society. It stresses honor and man’s own sense of inner dignity which the Bohemian must reachieve after each period of degradation he is bound to run into. The romantic should have the spirit of anarchy and not let the world drag him down to its level... (Williams, 1966, p.5)
All this gives the impression of a terrible nightmare. In The Dream Play, the setting for “Foulstrand” is hills stripped of their trees by fire, and red heather growing between the blackened tree stumps. Red-painted pig-sties and outhouses. Beyond these, in the open, apparatus for mechanical gymnastics, where sick persons are being treated on machines resembling instruments of torture. To the left, in the foreground, the quarantine station, consisting of open sheds, with ovens, furnaces, and pipe coils. (Strindberg, 1913, p.58)
This is the place where the rich are, and it is as horrible as their moral imperfections. Both dramatists managed to create dream-like plays: according to Lewis (1962), as in a dream, moments of recognizable objectivity vanish, converge, disappear; the scenes are short, rapidly shifting, with little regard for fixed positions; intensity is not on psychological depth but on images in motion.
Views on mankind Concerning the dramatists’ views on human society and the fate of mankind, both plays express their author’s subjective views.
This “romantic nonconformist” is usually an outcast, and all outcasts are treated with extreme sympathy by Williams. Strindberg also dedicates an immense love to mankind: he has declared it through the characters of The Great Highway and it can be felt in The Dream Play. The solution Camino Real offers may be achieved in this life – while the final message of The Dream Play is that only after death we can be peaceful and happy. Strindberg gives a mystical treatment to his subject; William’s approach is more realistic and practical. In both plays the rich and the powerful are severely criticized, and are presented as responsible for the main flaws of society. In Camino Real, Gutman, who represents this class, orders the killing of a man and does not even give an explanation of why he has done this. He tries to destroy whatever is decent in Camino Real. Gutman wants to forbid the use of the word “hermano”: this symbolizes the dominating classes’ desire to extinguish solidarity among people. Gutman states that ideals and feelings (specifically love) are harmful: acting like this he tries to brutalize the people of Camino Real. In The Dream Play, there is also a strong criticism of the rich. Some of them are in “Foulstrand” (a horrible place already mentioned). One has eaten so much “paté de foie gras” and truffles that his feet have grown knotted. An-
400
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
other one has drunk too much brandy: his backbone has to be put through a mangle. These physical deformations stand for their moral ones. The rich and repression are inseparable in Camino Real (as they are symbolized in one person) and in The Dream Play: the scene of the coalheavers demonstrates this. The coalheavers’ expressions show intense despair: they are suffering a heat of one hundred and twenty degrees Fahrenheit and cannot have a bath in the sea, because the police would not let them. Neither can they pick any fruit off the trees, because the police would get after them. One of the coalheavers, then, says to the Daughter: “We, who work hardest, get least food; and the rich, who do nothing, get most. Might one not – without disregard of truth – assert that this is injustice?” (Strindberg, 1913, p.78). The Daughter cannot answer this question; the coalheavers tell her that “those who are well off” think that everything is all right as it is. This is a strong enough social criticism; but Strindberg goes further. The Lawyer tells the Daughter that all improvers end in prison or in the madhouse – sent to the first by the “right-minded” and “respectable”, and to the second by their own despair when they realize the hopelessness of their efforts. The Lawyer himself has suffered the consequences of trying to help people: his degree of Doctor of Laws is not conferred on him because, in the Daughter’s words, he “defended the poor, put in a good word for the wrong-doing, made the burden easier for the guilty, obtained a respite for the condemned” (Strindberg, 1913, p.48). There is here the same criticism made by Williams when Gutman forbids the word “hermano”: solidarity is feared by the dominating classes. But not only solidarity is feared: people’s thinking is also a dangerous thing for the class that has the power, for obvious reasons. Both playwrights expressed this idea: in Camino Real Jacques Casanova tells Kilroy: “The exchange of serious questions and ideas, especially between persons from opposite sides of the plaza, is regarded unfavourably
Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s...
401
here” (Williams, 1966, p.158). In The Dream Play, a policeman forbids the opening of the door behind which the solution for the enigma of existence is – what is meaningful enough – and a character exclaims: “Oh, Lord! What a fuss there is as soon as anybody wants to do anything new or great” (Strindberg, 1913, p.44). Man’s loss of dignity is represented several times in Camino Real. We see, for example, Kilroy dressed as a patsy, and the Streetcleaners: not even dying, man achieves a little dignity, because his corpse is pulled away like garbage by laughing streetcleaners. Obviously in a world where solidarity, thinking and dignity are not encouraged, a serious inversion of values occurs. The Daughter says that the world is upside down, and in the other play, the Gyspsy tells Kilroy: “The Camino Real is a funny paper read backwards!” (Williams, 1966, p.202). D. Quixote (Camino Real) says that Truth, Valor, and Devoir mean nothing nowadays; the Daughter (The Dream Play) says that Justice, Friendship, Golden Peace, and Hope, are sunken ships. But Strindberg attacks more aspects of human society: the Daughter declares that Theology, Philosophy, Medicine and Jurisprudence do not understand each other: one says the other is nonsense, and that is making man insane. Marriage is also bitterly criticized in The Dream Play. It is described as a life of common suffering, in which one’s pleasure is the other one’s pain. Life is a series of repetitions that annul all efforts in the direction of progress, change or development. Several aspects of human personality are critically shown: envy is seen as a highly destructive feeling that is present in the minds of all men. Logic is seen as silly, the world is seen as silly. Men’s short memory is criticized, as well as the way old people are treated. All this justifies the Daughter’s refrain: “Men are to be pitied!” as well as Kilroy’s remark: “I pity the world [...]” (Williams, 1966, p.211). Although earth is considered a transitory place by the two dramatists, the solution for man’s problems suggested
402
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
is each play is not the same. William’s final message is that solidarity is what is needed to improve life’s conditions. If it existed, people would not try to take advantage of others, and nobody would suffer. On “Block Ten”, the character Marguerite Gautier compares love to violets, and says that the violets cannot break the rocks. Jacques Casanova replies that “The violets in the mountains can break the rocks if you believe in them and allow them to grow!” (Williams, 1966, p.192). Though at this time Marguerite does not believe him, in the last scene of the play she offers him her love and asks for his, what makes D. Quixote exclaim: “The violets in the mountains have broken the rocks!” Gutman says: “The Curtain Line has been spoken! Bring it down!” (Williams, 1966, p.227). So, there seems to be no doubt about Williams final message. D. Quixote and Kilroy go through the arch of “Terra Incognita”, and thus escape from Camino Real. Clearly, Williams intends triumph for the “romantic nonconformist” that these two characters represent. Strindberg’s “dreamer” shows an ambiguous attitude towards romantic feelings.When the Daughter marries the Lawyer, she believes that loving each other, they will be able to face all difficulties – what proves to be wrong. In another scene, the immense love that unites a young couple does not help them escape their fate: to be thrown into a stove. The Poet, on the other hand, believes in the power of love: he declares that “love overcomes all, even sulphur fumes and carbolic acid” (Strindberg, 1913, p.65). Although there is nothing behind the door that was supposed to hide the enigma of existence, in Strindberg’s play there is a mystical explanation (through the Daughter) of how man’s sufferings began. It is based on images of Buddhistic and Indian philosophies: Brahma, the “divine primal force”, was seduced by Maya, the “world-mother”. The result was Earth – and as it is the consequence of the meeting of the divine primal matter with the earth-matter, it is composed of physical and spiritual elements, sacred and profane things, men and women. In order to free
Tennessee Williams’ Camino Real and August Strindberg’s...
403
themselves from the earth-matter, the offspring of Brahma seek privation and suffering (the idea of suffering as a liberator has been expressed earlier in the play). But this craving for suffering comes into conflict with the craving for love – and sex. So man is the victim of a conflict between his body and his spirit (his spirit wants to ascend to the sky, but his body is imprisoned in Earth because of lust). This is the origin of man’s sufferings, and also of all the other contradictions that transform man’s existence into hell. In the end of The Dream Play, the Daughter dies in the flames of the castle, while a bud on its roof opens into a gigantic chrysanthemum flower. According to Brustein (1970), this means that through death man can achieve peace and happiness; because then, the spirit is free from the needs of the body. August Strindberg and Tennessee Williams share, in spite of the distance in time and space that separates them, a great love for mankind, a deep anguish because of man’s sufferings and lack of meaning in life, and a desire to express their feelings through an unconventional dramatic form which was coherent with their ideas and permitted a more personal approach. The plays prove that both dramatists reached their goals: they convey both their love and their anguish through the use of expressionistic techniques. Strindberg and Williams viewed the world as an illogical disorder, so not only the subject-matter of the plays, but their form also, being dream-like, conveys this feeling. Ultimately, they try to find explanations and solutions for the world’s paradoxes. Being both great plays, The Dream Play is reacher in meaning than Camino Real. Strindberg analyses more aspects of human society and shows the results of deeper thinking about man’s condition. This may be due to t he fact that The Dream Play was written at the end of Strindberg’s career, and thus reflects a whole life of search for the final truth. But the impact of the powerful images
404
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
405
present in both plays is a lasting one. They give rise to metaphysical questionings in the audience, what is a genuine purpose of the theatrical arts. As a last consideration, both plays possess universality of appeal. We seem to be very far from answering those basic questions: “Who am I?” and “What is the meaning of my life?”.
Pareceristas
References
Alberto Pucheu (UFRJ)
BRUSTEIN, Robert. De Ibsen a Genet: la rebelión en el teatro. Buenos Aires: Troquel, 1970.
Ana Maria Domingues de Oliveira (Unesp)
ESSLIN, Martin. The Theatre of the Absurd. 3.ed. New York: Vintage Books, 2001.
Antonio Donizete Pires (Unesp)
LEWIS, Allan. The contemporary theatre. New York: Crown Publishers, 1962. . Plays by August STRINDBERG, August. The Dream Play. In: Strindberg. New York: Charles Scribner’s Sons, 1913. WILLIAMS, Tennessee. Camino Real. In: plays of the 1950’s. New York: Dell, 1966.
. Famous american
. The Glass Menagerie. Harmondsworth: Penguin, 1981. WRIGHT, Edward A. Understanding today’s theatre. 2.ed. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1972.
Antonio Arnoni Prado (Unicamp) Audemaro Taranto (PUC-MG) Berta Waldman (USP) Betina Bischof (USP) Biagio D’Angelo (PUC-SP) Carlos Alberto Baumgarten (UFRG) Cilaine Alves Cunha (USP) Dóris Nátia Cavallari (USP) Eduardo Vieira Martins (USP) Eric Sabinson (Unicamp) Fabio Akcelrud Durão (Unicamp) Fernando Segolin (PUC-SP) Gilda Neves da Silva Bittencourt (UFRGS) Glória Carneiro do Amaral (USP) Guacira M. Machado Leite (Unesp) Helder Garmes (USP) Helio Seixas Guimarães (USP) Ivete Valty (PUCMinas) Ivone Daré Rabello (USP) Jaime Guinsburg (USP)
406
407
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Jefferson Cano (Unicamp)
Normas da revista
Jorge Mattos Brito de Almeida (USP) José Luis Jobim (UERJ) Juliana Loyola (PUC-SP) Laura Janina Hosiasson (USP) Lúcia Granja (Unesp) Luiz Gonzaga Marchezan (Unesp) Luiz Roberto V. Cairo (Unesp) Márcia Abreu (Unicamp) Márcia Valéria. Zamboni Gobbi (Unesp) Marcio Seligmann-Silva (Unicamp) Marcos Antonio de Moraes (USP) Marcos Pison Natali (USP) Maria Aparecida Junqueira (PUC-SP) Maria Betânia Amoroso (Unicamp) Maria do Carmo Alves de Campos (UFRGS) Maria Eunice Moreira (PUC-RGS) Maria José Palo (PUC-SP) Maria Lúcia O. Fernandez (Unesp) Maria Rosa Duarte de Oliveira (PUC-SP) Miriam Gárate (Unicamp) Olga de Sá (PUC-SP) Orna Messer Levin (Unicamp) Pedro Brum Santos (UFSM) Regina Zilberman (UFRGS) Rita Terezinha Schmidt (UFRGS) Salete de Almeida Cara (USP) Silvia H. T. de Almeida Leite (Unesp) Vagner Camilo (USP) Yara Frateschi Vieira (Unicamp)
Normas para apresentação de artigos • Os artigos podem ser apresentados em português ou em outro idioma. Devem ser enviados em CD ou disquete (Windows 6.0 ou compatível) e em três vias impressas, sendo uma com identificação: nome, instituição, endereço para correspondência (com o CEP), e-mail, telefone (com prefixo) e temática escolhida. O disquete ou CD deve trazer uma etiqueta indicando o(s) autor(es) do trabalho e o programa utilizado. A extensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas, no máximo, 20, espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar também Abstract e Keywords. • Os trabalhos – CD ou disquete e vias impressas – deverão ser enviados pelo correio para o endereço indicado a cada número. • Não serão aceitos, em nenhuma hipótese, trabalhos enviados pela internet. • O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de não-doutor, desde que a convite da comissão editorial – casos de colaborações de escritores, por exemplo. • O trabalho deve obedecer à seqüência: – Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem grifos). – Nome(s) do(s) autor(es), à direita da página (sem negrito ou grifo), duas linhas abaixo do título, com
408
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
maiúscula só para as letras iniciais. Usar asterisco para nota de rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a). O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da sigla. – Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito, maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado em corpo 10, com recuo de dois centímetros de margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10; – Palavras-chave – dar um espaço em branco após o resumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto 10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito e maiúsculas, seguida de dois-pontos. Máximo: 5 palavras-chave. – Abstract – mesmas observações sobre o Resumo. – Keywords – mesmas observações sobre as palavraschave. – Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas, quando houver.
Normas da revista
parênteses: sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte 11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). As citações em língua estrangeira devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé. Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando constituírem textos já publicados, devem incluir referência completa bem como permissão dos editores para publicação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas quando absolutamente necessários. Referências: devem ser apenas aquelas relativas aos textos citados no trabalho. A palavra Referências deve estar em negrito, sem adentramento, duas linhas antes da primeira entrada.
Parágrafos: usar adentramento 1 (um).
Alguns exemplos de citações
Subtítulos: sem adentramento, em negrito, só com a primeira letra em maiúscula, sem numeração.
• Citação direta com três linhas ou menos
Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos etc.) devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo autor. Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10. Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras em língua estrangeira – itálico. Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico), seguidas das seguintes informações entre
409
[...] conforme Octavio Paz (1982, p.37), “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” • Citação indireta [...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as conseqüências.
410
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008
Normas da revista
411
• Citação de vários autores
• Dissertação e tese
Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, 1991; Borges, 1998; Campos, 1969).
MACHADO, M. V. P. Confluências entre João Cabral de Melo Neto e Sophia de Mello Breyner Andersen: poesia das coisas e espaços. São Paulo, 2006. Dissertação (Mestrado) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária, Pontifícia Universidade Católica.
• Citação de várias obras do mesmo autor As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confronto entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidoscópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992).
• Artigo de periódico GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: uma breve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n.22, p.3757, 2004. • Artigo de jornal
• Citação de citação e citação com mais de três linhas
TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p.4.
Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire (1759, p.87 apud Teixeira, 1999, p.148):
• Trabalho publicado em anais
Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...]
Alguns exemplos de Referências
CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Maria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Anais..., Belo Horizonte. p.85-95. • Publicação on-line – Internet MARTINHO, F. Depois do modernismo, o quê? O caso da poesia portuguesa. Rio de Janeiro: Revista Semear 4. Disponível em: <http://www.letras.puc-rio.br>. Acesso em: 22 jun. 2006.
• Livro FABRIS, A. Futurismo: uma poética da modernidade. São Paulo: Perspectiva/ Edusp, 1987. • Capítulo de livro PALO, M. J. A crônica da vida: Memorial de Aires, Machado de Assis. In: OLIVEIRA, M. R. D. de. (Org.) Recortes machadianos. São Paulo: Educ/ Fapesp, 2003. p.257-73.
OBSERVAÇÃO FINAL: A desconsideração das normas implica a não-aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).