ISSN 0103-6963
REVISTA BRASILEIRA DE
Andréa Lúcia Paiva Padrão, Diva Cardoso de Camargo, Flávia Mara de Macedo, Gentil de Faria, Luciano B. Justino, Maria Alice G. Antunes, Mitizi Gomes, Soraya Ferreira Alves, Stéfano Paschoal, Tânia Alice Feix
Literatura Comparada
Adalberto Müller, André Luís Gomes, André Soares Vieira,
REVISTA BRASILEIRA DE
Literatura Comparada
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abralic associação brasileira de literatura comparada
REVISTA BRASILEIRA DE
Literatura Comparada
S達o Paulo 2008
Diretoria
Presidente Vice-presidente
A B R A L I C 2007/08
Sandra Margarida Nitrini (USP) Helena Bonito Couto Pereira (Mackenzie)
1º Secretária
Maria Célia Leonel (Unesp)
2º Secretária
Andrea Saad Hossne (USP)
1º Tesoureira
Vera Bastazin (PUC-SP)
2º Tesoureira
Orna Messer Levin (Unicamp)
Conselho
Eduardo Coutinho (UFRJ)
REVISTA BRASILEIRA DE
Gilda Neves Bittencourt (UFGS) José Luís Jobim (UERJ/UFF) Lívia Reis (UFF) Ívia Iracema Duarte Alves (UFBA) Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto (USP) Tânia Regina Oliveira Ramos (UFSC) Rita Terezinha Schmidt (UFRGS)
Suplentes
Literatura Comparada
Márcia Abreu (Unicamp) Zênia de Faria (UFG)
Conselho editorial
Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Yves Chevrel.
ABRALIC CNPJ 04.901.271/0001-79 Universidade de São Paulo (USP) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Avenida Prof. Luciano Gualberto, 403 Butantã – São Paulo – SP Tel./Fax: (11) 3091-4312 E-mail: mschmidt@usp.br
ISSN 0103-6963 Rev. Bras. Liter. Comp.
São Paulo
n.13 p.1-299
2008
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2008 Associação Brasileira de Literatura Comparada
Sumário
A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.
Editores
Andrea Saad Hossne Helena Bonito Couto Pereira
Comissão editorial
Sandra Margarida Nitrini Helena Bonito Couto Pereira Andrea Saad Hossne Maria Célia Leonel Vera Bastazin Orna Messer Levin
Preparação/Revisão
Nelson Luís Barbosa
Revisão do inglês
Lilia Loman
Diagramação
Estela Mleetchol ME
Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Rio de Janeiro: Abralic, 1991v.2, n.13, 2008 ISSN 0103-6963 1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada. CDD 809.005 CDU 82.091 (05)
Apresentação Andrea Saad Hossne Helena Bonito Couto Pereira
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Artigos A ressignificação do livro O jardineiro fiel de John Le Carré no filme de Fernando Meirelles: o cruzamento de olhares do “Primeiro” e do “Terceiro” Mundos Soraya Ferreira Alves
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As primeiras adaptações de Robinson Crusoe no Brasil Gentil de Faria
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(Des)Montagem e hibridação genérica em Operação silêncio, de Márcio Souza André Soares Vieira
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Em busca do leitor – Transcriação e adaptação de Os sertões para o sistema literário argentino Mitizi Gomes
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Facetas da tradução em Jorge Luis Borges Andréa Lúcia Paiva Padrão
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Muito além da adaptação: a poesia do cinema de Terra em transe Adalberto Müller
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O mouro e o cristão na tradução alemã da Diana de Montemayor – Desmarcando fronteiras Stéfano Paschoal
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Phaedra’s love de Sarah Kane: tradução, adaptação, encenação Tânia Alice Feix
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Apresentação
Retomada do “cânone” para crianças brasileiras: tradução, transcriação ou adaptação do Outro nas Fábulas de Monteiro Lobato? Flávia Mara de Macedo
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Sol de Maiakóvski Luciano Barbosa Justino
209
Tradução e adaptação: o caso de Sargento Getúlio / Sergeant Getúlio Maria Alice Gonçalves Antunes
235
Traição respeitosa: o teatro de Plínio Marcos no cinema André Luís Gomes
251
Uma comparação entre o estilo de Clarice e de seus tradutores Diva Cardoso de Camargo
269
Pareceristas
293
Normas da revista
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O lançamento do n.13 da Revista Brasileira de Literatura Comparada reveste-se de significado especial para a Diretoria da Abralic, biênio 2007-2008, que compõe a Comissão Editorial responsável pelos números 10 a 13. Paralelamente ao desafio de organizar dois grandes eventos, coube a essa Diretoria o cumprimento de metas inadiáveis, que se apresentavam com diferentes graus de dificuldades. A primeira meta referiu-se à passagem da periodicidade da revista para semestral, procedimento já instituído pela Diretoria anterior. A segunda, igualmente importante, correspondeu ao intuito de estender a possibilidade de publicação aos associados, por meio de chamadas de artigos para cada número e avaliação de mérito, a cargo de pareceristas de diversas instituições, no sistema duplo-cego, ou double blind review. Para tanto, foi necessário mobilizar uma ampla rede de consultores qualificados, cuja atividade foi imprescindível ao êxito da proposta. A cada um deles, a Comissão Editorial dirige seus agradecimentos. A terceira consistiu na opção por números temáticos, de modo a acolher diferentes abordagens e enfoques, sempre no âmbito da Literatura Comparada. De outra natureza, mas não menos relevante, foi o objetivo – já alcançado – de digitalizar todos os números da revista de modo a mantêlos permanentemente à disposição dos associados. A escolha do tema deste número, “Tradução, transcriação, adaptação”, atende ao reconhecimento do comparatismo em sentido abrangente, em que cada obra pode ser adaptada, transposta, retomada ou recriada de diversas maneiras, instaurando novos significados e ampliando
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suas chances de fruição junto a um público diferente daquele a que se destinou inicialmente. O primeiro artigo trata da transcriação, ou transposição de obras de um sistema a outro, sendo muito frequente a da literatura ao cinema, como se comenta em “A ressignificação do livro O jardineiro fiel de John Le Carré no filme de Fernando Meirelles”, de Soraya F. Alves. O estudo empreende uma discussão sobre o hibridismo cultural presente na sociedade contemporânea e suas repercussões nas práticas socioculturais. O artigo seguinte, de Gentil de Faria, propõe a possibilidade de modificação intencional na tradução quando de sua adaptação para outro público, a exemplo do que se passa com obras canônicas, como em “As primeiras adaptações de Robinson Crusoe no Brasil”. Adiante, ainda no campo da passagem entre sistemas semióticos, embora de outro modo, encontra-se “(Des)Montagem e hibridação genérica em Operação silêncio, de Márcio Souza”, da autoria de André S. Vieira. Nesse, com base em conceitos de montagem cinematográfica, estudase a hibridação entre gêneros discursivos de diversas origens, justapostos em uma mesma narrativa. No quarto artigo, “Em busca do leitor – Transcriação e adaptação de Os sertões para o sistema literário argentino”, partindo-se da dificuldade de enquadramento de Os sertões em um gênero literário, dada a sua composição híbrida, Mitizi Gomes comenta a extrema complexidade para a recriação dessa obra em outro idioma, no caso, o espanhol, com duas versões publicadas, em 1938 e 1941, na Argentina. É ainda relacionado ao mesmo país o artigo seguinte, “Facetas da tradução em Jorge Luis Borges”, em que Andréa Lúcia Paiva Padrão atenta para a presença da tradução dentre as preocupações do renomado ficcionista. São analisadas inicialmente as reflexões teóricas, com ensaios, textos críticos, prólogos e comentários dedicados à tradução, e, na sequência, destaca-se o papel da tradução no processo criativo do autor. A inspiração literária pode ser transposta para expressão fílmica, como no artigo de Adalberto Müller, “Muito
Apresentação
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além da adaptação: a poesia do cinema de Terra em transe”. O articulista situa o filme de Glauber Rocha no limite entre cinema e poesia (ou literatura), ressaltando a intensidade da carga poética em contraste com a leitura irônica das fraturas da sociedade. As recriações podem realizar-se pela tradução para outra língua, com todas as implicações espaço-temporais atreladas a esse processo. É o caso de “O mouro e o cristão na tradução alemã da Diana de Montemayor – Desmarcando fronteiras”, em que Stéfano Paschoal discute como a transposição de uma narrativa do espanhol para o alemão, no século XVII, efetuou-se de modo a permitir ao tradutor a acomodação de conceitos de outras culturas à cultura alemã, especificamente no que se refere às diferenças entre o mouro e o cristão. Levando-se em conta a frequência das interações entre teatro e cinema, sempre com a presença do texto literário, destaca-se nesse campo artigo de Tânia Alice Feix, “Phaedra’s love de Sarah Kane: tradução, adaptação, encenação”, a releitura do mito de Fedra, em que se analisa como as estruturas dramatúrgicas permitem entrever as diferentes traduções do mito em diferentes contextos. Na passagem de um texto de uma literatura para outra, em períodos distantes entre si, como ocorreu com as Fábulas de La Fontaine voltadas para o público infantil brasileiro, no século passado, situa-se o foco do artigo “Retomada do ‘cânone’ para crianças brasileiras: tradução, transcriação ou adaptação do Outro nas Fábulas de Monteiro Lobato?”, de Flávia Mara de Macedo. Adentrando o campo da poesia, o artigo “Sol de Maiakóvski”, de Luciano Barbosa Justino, analisa um videopoema de Augusto de Campos, pressupondo uma leitura problematizadora, a partir da tradição modernista, em sua intersemiose com a cultura de massa. A tradução de textos poéticos é concebida não apenas como prática textual, mas, sobretudo, como cruzamento de complexas formas humanas de geração de sentidos e de interação. Ainda no sentido da transposição entre sistemas semióticos, encontram-se
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mais dois textos. Em “Tradução e adaptação: o caso de Sargento Getúlio / Sergeant Getúlio”, traduzido para a língua inglesa pelo próprio autor, João Ubaldo Ribeiro, o intuito de Maria Alice Gonçalves Antunes é demonstrar como o autotradutor se esforça no difícil equilíbrio para adaptar seu texto ao leitor estrangeiro. Já em “Traição respeitosa: o teatro de Plínio Marcos no cinema”, de André Luís Gomes, estudam-se os procedimentos e mecanismos adotados na adaptação de dois textos teatrais para o cinema, bem como as representações recriadas nas versões fílmicas. Vincula-se ao campo dos estudos tradutológicos stricto sensu o artigo de Diva Cardoso de Camargo, “Uma comparação entre o estilo de Clarice e de seus tradutores”, em que são comentadas as implicações da tradução e, em especial, a maneira como alguns tradutores preservam traços estilísticos mais convencionais e padrões relativamente rígidos quanto à densidade lexical, ao passo que outros podem optar por soluções que mantenham o ritmo e as sutilezas de sua prosa. Conforme se afirmou inicialmente, esta publicação constitui o quarto e último número editado pela Diretoria da Abralic para o biênio 2007-2008, marcando também o encerramento de sua gestão. Resta-nos, portanto, como participantes da Diretoria, enviar uma saudação a todos os leitores e consulentes, em especial àqueles que participaram do XI Encontro Regional da Abralic em 2007 e do XI Congresso Internacional de 2008. À Diretoria que nos sucede, transmitimos, ao lado dos votos de muito sucesso, nossa confiança e nosso reconhecimento pela boa disposição amplamente demonstrada desde já.
A ressignificação do livro O jardineiro fiel de John Le Carré no filme de Fernando Meirelles: o cruzamento de olhares do “Primeiro” e do “Terceiro” Mundos
Andrea Saad Hossne Helena Bonito Couto Pereira
Soraya Ferreira Alves* Este trabalho visa à análise da adaptação do livro O jardineiro fiel, de John Le Carré, pelo filme homônimo, de direção de Fernando Meirelles, como base para discussão sobre o hibridismo cultural da sociedade contemporânea e suas influências em práticas socioculturais. Autores como Hall, Bhabha, Selligmann-Silva, Bauman, entre outros, fundamentam a pesquisa. RESUMO:
PALAVRAS-CHAVE: Hibridismo cultural, tradução intersemiótica,
literatura, cinema. ABSTRACT: This paper aims at analysing the adaptation of John
Le Carré’s, book The constant gardener, by director Fernando Meirelles to the film of the same name, as basis for a discussion about the cultural hybridism present in the contemporary society and its influences in socio-cultural practices. The research has its grounds in authors like Hall, Bhabha, Selligmann-Silva, Bauman, among others. KEYWORDS:
Cultural hybridism, intersemiotic translation, literature, cinema.
* Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Atualmente leciona na Universidade Estadual do Ceará (Uece), junto ao Departamento de Letras a ao mestrado acadêmico em Linguística Aplicada, do qual é vice-coordenadora. Leciona também nas Faculdades Nordeste (Fanor), atuando nos cursos de Comunicação Social e Design.
Hibridismo tem sido a palavra de ordem para definição da época atual, da sociedade da informação, e referese tanto à diversidade de linguagens e meios como à mistura cultural derivada da diáspora global. O hibridismo, porém, segundo Hall (2006, p.71), não se refere a indivíduos híbridos, que podem ser contrastados com o “tradicional” e o “moderno” como sujeitos plenamente formados. Trata-se de um processo cultural, agonístico uma vez que nunca se completa, mas que permanece em sua indecidibilidade.
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É interessante pensar que o hibridismo cultural, exacerbado pela globalização, traz consigo a necessidade cada vez mais premente de se pensar a tradução e suas diferentes práticas. Stuart Hall (2001) entende a tradução como produto de cruzamentos e misturas culturais transportados pelo mundo, o que nos dá a ideia de tradução como prática dialógica, em que a diversidade deve ser contemplada e respeitada. Ainda segundo o Hall (2006, p.71), hibridismo seria “outro termo para a lógica cultural da tradução”. Neste trabalho, o livro O jardineiro fiel (The constant gardener), de John Le Carré (2005), e o filme homônimo, de direção de Fernando Meirelles (2006), serão usados como base para discussão sobre o hibridismo cultural da sociedade contemporânea, focalizando os diferentes olhares sobre questões consideradas “planetárias”, já que a prática da tradução pode ser considerada um desafio nessa era da globalização, e, como explica Burke (2006, p.31), “o hibridismo é o resultado de múltiplos encontros, não de um único”. Nesse contexto, reflexões sobre práticas de tradução desenvolvidas na mídia se fazem cada vez mais necessárias à medida que, como observa Cattrysse (1997), novos meios de comunicação trazem novos meios de processar mensagens e de traduzir, e assim, a pluralidade de culturas é traduzida em uma pluralidade de produtos, como explica Selligmann-Silva (2005, p.205), “imagens que podem ser comercializadas: através do turismo, de revistas, jornais, canais de televisão voltados para a indústria do exotismo, etc.”. Cada vez mais vemos a tradução (ou adaptação) sendo usada em produções para a mídia, tanto obras literárias adaptadas para a televisão em forma de novelas e séries como para o cinema, ou até para videogames, ou mesmo filmes sendo adaptados para videogames e vice-versa. Deve-se levar em conta que essas adaptações são feitas a partir de obras nem sempre originadas de uma mesma cultura ou época, o que traz a necessidade de se pensar, além das estratégias usadas para a adaptação de um
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sistema semiótico a outro, a questão da tradução de signos culturais, que precisam ser reconhecidos pelos espectadores da cultura de chegada dessa tradução, já que, como qualquer ato de interpretação, o ato tradutório está inserido no presente e, portanto, traz consigo toda a influência do momento. A tradução já traz inscrita, em si, a diferença de olhares, e a tradução intersemiótica, mais especificamente, aqui, a adaptação da literatura para o cinema, enfatiza essa diferença por propor estratégias de representação que são traçadas por meios semióticos diversos e que, portanto, geram processos que são fruto da articulação de diferentes interpretações. Como explica Xavier (2003, p.62), Livro e filme estão distanciados no tempo; escritor e cineasta não têm exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, de esperar, que a adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas com seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro.
Avellar (2007, p.13) também fala sobre o diálogo literatura e cinema e as diferenças de olhares estabelecidas em ambos os processos: Estabelecer como base deste diálogo espontâneo a fidelidade de tradução, reduzir a palavra e a imagem a diferentes modos de ilustrar algo pensado ou sentido fora delas, elimina o conflito entre estes diferentes modos de ver o mundo, conflito natural e que estimula a literatura e o cinema a criar novas formas de composição.
A esse pensamento pode-se ligar o de Robert Stam (2000, p.66), que se refere à hipertextualidade, ou seja, à relação de um texto (hipertexto) com um texto anterior (hipotexto) que é transformado, elaborado ou ampliado. Assim sendo, adaptações “são hipertextos derivados de hipotextos pré-existentes que foram transformados por operações de seleção, ampliação, concretização e atualização”. Como afirma Selligmann-Silva (2005, p.206), “A política da tradução antimimética destrói a noção de um ori-
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ginal estanque, cristalizado e imune à ação do tempo e da interação entre culturas”. É nessas concepções de tradução que esta análise se baseará para observar a prática de Meirelles. O jardineiro fiel é uma narrativa não linear, que usa de cortes, flashbacks, para elucidar o assassinato de Tessa Quayle, a jovem esposa de um diplomata inglês, Justin Quayle, no Quênia. Tessa é morta junto com seu suposto amante, Arnold Bluhm, um conceituado médico negro que transita muito bem entre as duas culturas por ser belga e por ter aparência e modos mais refinados, mais condizentes com a cultura europeia. Aos poucos, vai-se entendendo que Arnold poderia ser homossexual e que esconderia sua preferência sexual por essa ser considerada crime no Quênia. Também vai-se revelando sua intenção: elaborar um dossiê que traga à tona o crime que está sendo praticado contra a comunidade local desfavorecida, pois uma grande indústria farmacêutica estaria ministrando uma nova droga contra tuberculose, ainda não suficientemente testada e que estaria matando muitas pessoas, a fim de conseguir ajustar sua fórmula. Como as pessoas recebiam a droga gratuitamente e só teriam direito a assistência médica se realmente a consumissem, um grande número de pessoas o fazia. Quem gradativamente vai fazendo essas descobertas é o próprio marido de Tessa, que desconhecia suas ações, pois a esposa preferia protegê-lo. Justin era considerado por muitos um tanto alienado, por devotar grande parte de seu tempo à jardinagem e por ser extremamente cortês e comedido. Porém, após o assassinato da esposa, Justin parte em busca de respostas. Para consegui-las, cruza continentes para se encontrar com pessoas com quem Tessa mantinha contato virtualmente, já que esse tipo de contato já era impossível, pois estava sendo monitorado por seus assassinos. Após viagens e contatos internacionais, Justin finalmente descobre a conspiração que matou sua esposa, que envolvia peças também de vários países e protegia interesses internacionais. Ele mesmo acaba por ser assassinado,
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no mesmo lugar e pelos mesmos assassinos de Tessa, fechando um círculo de mentiras e influências. Suas descobertas e revelações e sua própria morte, em princípio, não parecem perturbar a ordem preestabelecida, mas trazem à tona uma problemática que deverá ser explorada futuramente, sob a forma da revelação do nome da empresa farmacêutica envolvida. Essa é uma trama que aborda não apenas uma temática internacional, no caso, a indústria farmacêutica, mas também uma gama de personagens multiculturais, pessoas que nasceram em um país, filhos de pais também advindos de outros países e que agora estão morando e trabalhando no Quênia ou em outros países pelos quais Justin passa. Ela reflete uma característica da sociedade contemporânea, pós-moderna, descentrada, fragmentada, deslocada, que, como explica Hall (2001, p.14), está vinculada “em particular ao processo de mudança conhecido como ‘globalização’ e seu impacto sobre a identidade cultural”. O autor explica ainda que, a globalização se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e experiência, mais interconectado. (ibidem, p.67)
Pode-se dizer, também, que Le Carré usa de signos culturais ideológicos globalizados, nos quais países do Primeiro Mundo subjugam países do Mundo subdesenvolvido, dos quais a problemática da indústria farmacêutica é apenas um exemplo, mas que poderia representar questões muito mais amplas, como a dos poluentes, políticas de mercado, entre tantas outras. Burke (2006, p.110) explica que, dessa maneira, passa-se de um público local a um público internacional, o que estabelece uma nova ordem cultural, pois, “privilegiar um público global em vez de um público local modifica a própria obra de várias maneiras importantes”. A problemática levantada por Le Carré também passa pela visão de Bauman (2005, p.47) de “subclasse”, ou
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seja, pessoas que tiveram sua condição humana podada ou anulada, pessoas rejeitadas que, em razão da política capitalista globalizada, tornam-se “não mais necessárias ao perfeito funcionamento do ciclo econômico e, portanto, de acomodação impossível numa estrutura social compatível com a economia capitalista”. Essa mesma política, contudo, tornou a produção dessas pessoas rejeitadas (que Bauman também denomina “lixo humano”) um fenômeno mundial e, como o autor afirma, No presente estágio planetário, o “problema do capitalismo”, a disfunção mais gritante e potencialmente explosiva da economia capitalista, está mudando da exploração para a exclusão. É essa exclusão, mais do que a exploração apontada por Marx um século e meio atrás, que hoje está na base dos casos mais evidentes de polarização social, de aprofundamento de desigualdades e de aumento do volume de pobreza, miséria e humilhação. (ibidem p. 47)
Ao traduzir o livro para o cinema, Fernando Meirelles o faz utilizando-se de estrutura narrativa semelhante a Le Carré e produz uma narrativa não linear, repleta de cortes e flashbacks, imagens que se repetem e se consolidam tanto na memória do espectador como na dos personagens. Esse tipo de narrativa poderia estar iconizando a própria sociedade pós-moderna, que, como já foi discutido, também é descentrada, fragmentada. Santaella (2005, p.324) denomina esse tipo de narrativa de “espacialização icônica”, e explica que, há uma relação de semelhança entre o espaço daquilo que é narrado e o espaço interno desenhado pelos diagramas relacionais das seqüências narrativas. [...] Isso quer dizer que as seqüências não apenas se seguem umas às outras, como não poderia deixar de acontecer, mas mantêm entre si relações de analogia: repetições, gradações, variações, antíteses etc. O princípio da sucessão é sobredeterminado pelo jogo das similitudes que dá ao entrecho narrativo configurações similares à da música sob as forças de atração entre o tema e suas variações.
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Com relação à trama, Meirelles mantém o tema principal, mas promove uma série de cortes e deixa dois pontos bem mais explícitos: a homossexualidade de Arnold Bluhm e o desfecho, pois as causas das mortes de Tessa, Arnold e Justin ficam mais explícitas, bem como o envolvimento do chefe do Alto Comissariado Inglês, Bernard Pellegrini, apesar de também não concluir com as consequências de tal revelação. Em entrevista incluída nos extras do DVD de O jardineiro fiel, Le Carré fala da visão de “Terceiro” Mundo que Meirelles empresta ao filme. Observa-se que Meirelles dá ênfase à tradução da miséria, do sofrimento, da falta de infraestrutura, de pessoas vivendo no meio do lixo e do esgoto, em clara oposição ao mundo rico da diplomacia estrangeira. Le Carré (2005) promove o confronto de culturas e classes em alguns momentos da narrativa, ao descrever, paralelamente, lugares muito pobres ou muito ricos de Nairóbi, como se verifica nos dois trechos citados a seguir: Em Muthaiga existe uma hierarquia social em relação à proteção, como em relação a muitas outras coisas. As casas humildes têm cacos de garrafas sobre os muros, as casas médias, arame farpado. Mas a pequena nobreza diplomática tem nada menos do que portões de aço, cercas elétrica, sensores de janela e luzes de alarme a garantir sua preservação. (ibidem,p.37) O cemitério de Langata fica num luxuriante platô de capim alto e lama vermelha e árvores ornamentais floridas, ao mesmo tempo tristes e alegres, a uns três quilômetros do centro da cidade, a curta distância de Kibera, uma das maiores favelas de Nairóbi, um vasto borrão marrom de casas de zinco esfumaçadas cobertas por uma camada de horrível poeira africana e entulhada no vale do rio Nairóbi, separadas uma da outra por menos de uma mão. A população de Kibera é de meio milhão em ascensão, e o vale é rico em depósitos de esgotos, sacos plásticos, linhas coloridas de roupas velhas, cascas de banana e de laranja, espigas de milho e tudo o mais que a cidade se digne a
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despejar ali. Do outro lado da rua, além do cemitério, estão os escritórios da Junta de Turismo queniana e a entrada ao Parque de Caça de Nairóbi e um pouco adiante deles os barracos arruinados do aeroporto Wilson, o mais antigo do Quênia. (ibidem, p.116)
No filme, esse confronto se dá de maneira bem acentuada, enfatizando a grande diferença entre as classes ao mostrar as dependências da embaixada e das casas dos donos de empresas, do clube da classe alta, e a miséria das casas das favelas. A própria apresentação da favela de Kibera se dá de forma brusca, barulhenta, indicando um contraponto com o outro mundo, pois passa-se do diálogo entre Justin e Tessa, em Londres, quando decidem ir juntos para o Quênia, à imagem de uma estrada de ferro que faz que o espectador penetre no interior da favela, acompanhada de uma música africana alta, entrecortada pelo barulho de um trem. Na sequência, faz-se um passeio pela favela, no qual são enfatizadas a sujeira e as condições sub-humanas em que vivem os seus moradores. O trem e a estrada de ferro estariam funcionando, também, como metáforas do progresso, cujos benefícios, no caso, não alcançam a favela, apenas operam como intrusos, como a própria cultura eurocêntrica, que invade, mas não traz benefícios. Um outro momento também promove esse choque, quando, em um jogo de câmera, vai-se do campo de golf do clube Muthaiga para a favela, novamente cortada pela estrada de ferro, deixando bem claras as diferenças de classes. A montagem também age como elemento metafórico ao deixar o confronto entre mundos ainda mais claro, como se observa na sequência em que Tessa e Arnold estão na favela tentando conscientizar pessoas sobre a importância do teste de aids (tema que é inserido no filme). Após conversarem com Jomo, morador de Kibera e empregado da casa de um dos diplomatas, esse pega sua bicicleta e vai para a casa de seu patrão para servir os convidados de uma festa. Ao entrar pela porta dos fundos, encontra outros empregados que se lavam em tanques, do lado de fora da
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casa; a cena então é cortada e passa-se para a casa de Justin e Tessa, onde essa está tomando banho em uma banheira, preparando-se para a tal festa, e há então um close-up em uma torneira cromada, sofisticada. Assim, percebe-se a comparação entre as classes, pois, mesmo Tessa sendo solidária aos problemas da região, não faz parte dessa. Em seguida, volta-se para Jomo que, ao entrar na casa, passa por dentro da cozinha, onde muitos trabalham freneticamente, pega uma bandeja e, já uniformizado, abre a porta que dá para o ambiente da festa, totalmente diferente, sofisticado e rico. No livro, há uma cena em que um menino queniano, agradecido por Tessa ter tentado ajudar sua irmã moribunda e amamentado seu filho no hospital, quando o seu próprio já estava morto, chega ao funeral dessa e fica de mãos dadas com Justin, enquanto prestam suas última homenagens. No filme, essa aproximação não existe. Kioko chega ao funeral, mas se esquiva de Justin, que quer apertar sua mão, enfatizando a impossibilidade de ligação entre ambos. Talvez mesmo o fato de o filho de Tessa e Justin ter sido natimorto, problema já tratado no livro, poderia ser entendido como metáfora dessa impossibilidade de conexão entre os dois mundos, uma vez que Tessa decide ter o bebê em um hospital público do Quênia, em meio às mulheres africanas carentes. É interessante como o filme trata dessa problemática, pois a câmera entra no quarto comunitário onde Tessa, na cama, amamenta um bebê, tendo de um lado Arnold e, do outro, Justin, e vai aos pouco se aproximando e revelando que o bebê é negro, o que, em princípio, causa a dúvida quanto à sua paternidade. Mas a questão é logo explicada, pois ela estava amamentando o bebê de uma moça que estava à beira da morte, e a morte do filho do casal é então abordada, deixando, porém, a impressão da tentativa de aproximação dos dois mundos, o que é também logo desfeita, pois a mãe do bebê morre e esse é levado por sua avó. Há também outras cenas incluídas no filme que demonstram a complexa relação entre o “Primeiro” e o “Ter-
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ceiro” mundos: ao iniciar suas investigações, Justin vai à favela, mas cria grande confusão ao tentar interrogar pessoas que esperam em uma fila para obter remédios. Na fila, encontra novamente Kioko, que diz não poder explicar nada. Imediatamente, a polícia chega e o retira do local, bem como as pessoas que falaram com ele, incluindo Kioko, dando a entender que sofreriam as consequências dessa conversa. Mostra-se, assim, que Justin, por não reconhecer as regras que o separam desse outro mundo, provoca estragos. Em outro momento, durante a fuga de uma tribo no Sudão, onde pressionava um dos culpados pela morte de Tessa, Justin sobe no avião que irá resgatá-lo tentando levar consigo uma menina da tribo, alegando que gostaria de salvála, ajudá-la, pois sua tribo estava sendo invadida por outra e certamente ela seria levada a um destino cruel de trabalhos forçados e exploração sexual. Porém, o piloto do avião, um africano, não o permite. Justin tenta suborná-lo, e diz que poderiam salvar pelo menos uma criança, mas o piloto, indignado, o faz ver que seu dinheiro não irá mudar aquela realidade, em uma alusão clara à questão do emprego do dinheiro estrangeiro, que tem por base a caridade, a distribuição de comida (também mostrada no filme), e que não resolve o problema dos africanos, pois se limita a ações pontuais e não de longo prazo, o que implicaria a tentativa de realmente pensar o problema da África como um todo. É interessante perceber que, nesse momento, Justin retoma o antigo discurso de Tessa na cena em que, ao saírem do hospital, vêm Kioko e sua mãe indo a pé para casa, que ficava a 40 quilômetros de distância. Justin fala que não podem resolver o problema de toda a África, e que é para isso que as empresas de assistência estão lá, ao que Tessa responde que poderiam ajudar pelo menos essas pessoas, mas Justin se recusa e a leva diretamente para casa. Vê-se que o discurso contra o assistencialismo pontual percorre todo o filme. Por pertencer a um país do “Terceiro Mundo”, subdesenvolvido, Meirelles coloca em cena suas próprias vivên-
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cias, seu próprio repertório em relação à realidade, e que, portanto, são carregadas de signos culturais que tocam profundamente ao serem confrontados com outras culturas, e convida a comunidade internacional a meditar sobre mundos desiguais, assimétricos, como no caso do Brasil e do Quênia, em confronto com os países do “Primeiro Mundo”. Pode-se, aqui, estabelecer uma relação entre a prática cinematográfica de Fernando Meirelles e a teoria da literatura e das artes de testemunho, uma vez que atentam para a história por meio de memórias de pessoas que vivenciaram catástrofes, que foram vítimas de atrocidades políticas e sociais; como diz Winter (2006, p.84), “Entre nós, em nossas famílias, existem homens e mulheres oprimidos por recordações traumáticas”. Pode-se dizer que os povos do chamado “Terceiro Mundo” não só recordam, mas ainda vivenciam suas histórias de desigualdades sociais, miséria e abandono, que já fazem parte de uma memória coletiva que é calcada no passado, se solidifica no presente e se reflete nas previsões sobre o futuro. Winter (2006, p.70) explica que, Dos dois lados do Atlântico, no norte “desenvolvido” e no sul em “desenvolvimento”, muitos grupos étnicos e minorias desprivilegiadas têm exigido seu direito à palavra, à ação de conquistar a sua liberdade ou a sua autodeterminação. E esses esforços quase sempre contêm a construção de suas próprias histórias, seus próprios passados passíveis de serem usados.
Selligmann-Silva (2005, p.105), ao explicar a literatura de testemunho, diz que “o conceito de real é alterado”, em razão da “impossibilidade de uma tradução da cena vivenciada”, vivência essa que teria sido apanhada em uma “teia simbólica”. Ainda para o autor, o texto então produzido seria como uma fenda entre o original e a leitura, pois a leitura da realidade a desmonta e reconstrói, ressignifica, “reinscreve outras leituras”, promove intertextualidades. Ao filmar no Quênia, Meirelles reinscreve suas experiências com as favelas do Rio de Janeiro, já que, em Cidade
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de Deus, filme dirigido por ele em 2003, filma na própria favela, e os atores principais são meninos e meninas, adolescentes, moradores do local, preparados, ensaiados por sua equipe durante meses, mas que não decoram um script ou a ele obedecem, pois são estimulados a falar com seus próprios termos, a expor suas experiências diárias. Como o próprio Meirelles explica em depoimento a respeito do filme Cidade de Deus: Decidi fazer um filme que fosse fiel ao partido do livro: filmado de dentro para fora da favela. Um filme sem cenários e sem técnicas de interpretação, aliás sem atores profissionais, mas com garotos que vivem aquela realidade, e que podem nos trazer ao menos a sensação do que é viver à margem.1
Assim, Meirelles vive de perto as carências daquela comunidade, participa dos reais problemas enfrentados por ela, como o tráfico de drogas e a violência exacerbada e banal. Apesar de não ter “sofrido” as mesmas privações dos moradores, sua observação dos acontecimentos locais e mesmo nacionais, além de sua experiência como “brasileiro”, valida o caráter testemunhal de sua prática. De forma semelhante, em O jardineiro fiel inclui os moradores de Kibera, focaliza seus problemas ao promover intertextualidades culturais e traduzir a periferia queniana sob um lastro memorial e um olhar testemunhal brasileiro a fim de preencher um espaço “entre a experiência vivida e o experimentado em termos de linguagem e recuperar, para o campo da arte, os restos de uma tradição reprimida” (Melendi, 2006, p.228). Meirelles elucida essa questão em outro momento de seu depoimento, ao afirmar que: Cidade de Deus não fala apenas de uma questão brasileira e sim de uma questão global. De sociedades que se desenvolvem na periferia do mundo civilizado. Da riqueza opulenta do primeiro mundo, que não consegue mais enxergar o terceiro ou quarto mundo, do lado ou no fundo do abismo.
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Disponível em: <http:// cidadededeus.globo.com/ diretor_01.htm>. Acesso em: 24 jun. 2009.
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Percebe-se, então, que, ao retratar culturas periféricas, Meirelles as transforma em agentes, pois seus personagens/ atores são extraídos da vida real, contracenam com atores reais, mas improvisam, inserem falas espontâneas, que são incorporadas ao script. Apesar de sua carga ficcional, os filmes de Meirelles dão voz, corpo ao periférico e criam uma “ética da representação” (Selligmann-Silva, 2005, p.106) ligada a uma estética que põe em cheque o belo, o sublime. No filme, é incluída uma peça de teatro encenada pela comunidade da favela de Kibera que trata do assunto aids, problema que se agrava a cada dia no continente africano. Essa cena é muito significativa, pois a performance, segundo Bhabha (2005, p.21), é o ato em que “as identidades minoritárias se articulam em um campo coletivo”, pois, “cria um interstício entre uma tradição cultural já autenticada” e “signos de emergência da comunidade”. Ainda segundo Bhabha (2005, p.25), “cada vez mais, as culturas nacionais estão sendo produzidas a partir de perspectivas de minorias destituídas. O efeito mais significativo desse processo não é a proliferação de histórias alternativas dos excluídos, que produziriam, segundo alguns, uma anarquia pluralista”, mas sim “o estabelecimento de conexões internacionais”. Nesse caso, o hibridismo cultural também emerge dessas situações (como podemos verificar no filme de Meirelles) e, como explica Bhabha, usa de suas “condições fronteiriças para traduzir, e portanto reinscrever, o imaginário social” (ibidem), e talvez criar uma comunidade transnacional, que reuniria o passado e o presente para criar o novo. Ao se analisar as estratégias de tradução de Meirelles, pode-se também recorrer a Venuti (1995), para quem as estratégias desenvolvidas nas traduções dependem da interpretação que o tradutor faz do texto estrangeiro, o que não se desvincula de suas ideologias. Assim, a tradução, vista como prática social, assume um importante papel tanto nas inovações culturais como nas transformações sociais. Burke (2006, p.56) amplia esse conceito ao estendêlo a questões antropológicas, e explica que “a idéia de com-
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preender uma cultura estrangeira era análogo ao trabalho de tradução”. Vai ainda mais longe ao citar as ideias de George Steiner, de que “Quando lemos ou ouvimos qualquer enunciado do passado... nós o traduzimos”, ou que “no interior de um idioma ou entre idiomas, comunicação humana é o mesmo que tradução” (ibidem, p.57). O autor ainda menciona a questão da “traduzibilidade”, defendendo que as diferenças, as adaptações, são muitas vezes tachadas de má interpretação, erro, engano de leitura etc. Para ele, a pesquisa sobre os aspectos de uma tradução cultural poderia ser frutífera se se prestasse “mais atenção àquilo que em uma dada cultura mais resiste à tradução, e ao que se perde no processo de tradução de uma cultura para outra” (ibidem, p.60). Cattrysse (1997) também aponta aspectos socioculturais como relevantes ao processo de tradução, já que se pode considerar que cada cultura remete a um processo múltiplo de produção de subjetividade, com seus universos cognitivos, discursivos, afetivos, sensíveis, tecnológicos, que nos fazem pensar e sentir o mundo em razão de um complexo sistema de representação. Assim, hibridismo e tradução se associam em um processo cultural contínuo e complexo, pois, como bem explica Bhabha (1997, apud Hall, 2006, p.71), Não é simplesmente apropriação ou adaptação; é um processo através do qual se demanda das culturas uma revisão de seus próprios sistemas de referência, normas e valores, pelo distanciamento de suas regras habituais ou “inerentes” de transformação. Ambivalência e antagonismo acompanham cada ato de tradução cultural, pois o negociar com a “diferença do outro” revela uma insuficiência radical de nossos próprios sistemas de significado e significação.
Também é interessante observar que o hibridismo cultural, como abordado tanto no livro como no filme O jardineiro fiel, traz à tona o conflito derivado dessa situação, e chama a atenção para as muitas questões a serem consideradas no processo diaspórico mundial atual, uma vez
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que esse seria, ainda segundo Bhabha (1997, apud Hall, 2006, p.72), Um momento ambíguo e ansioso de [...] transição, que acompanha nervosamente qualquer modo de transformação social, sem a promessa de um fechamento celebrativo ou transcendência das condições complexas e até conflituosas que acompanham o processo... [Ele] insiste em exibir [...] as dissonâncias a serem atravessadas apesar das relações de proximidade, as disjunções de poder ou posição a serem contestadas; os valores éticos e estéticos a serem “traduzidos”, mas que não transcenderão incólumes o processo de transferência.
Esse conflito pode ser observado, também, na própria prática tradutória de Meirelles, pois pode-se concluir, com esta análise, que o olhar de Meirelles amplia e de certa forma modifica o olhar de “Primeiro Mundo” de Le Carré sobre o “Terceiro Mundo”, uma vez que deixa transparecer suas marcas e insere sua ideologia ao perceber que o empobrecimento do “Terceiro Mundo” cria cadeias de circunstâncias que encerram Brasil/África e, sem dúvida, outros tantos países e lugares subdesenvolvidos.
Referências AVELLAR, José Carlos. O chão da palavra: cinema e literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Glaucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Trad. Leila Souza Mendes. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006. CATTRYSSE, Patrick. Audiovisual translation and new midia. In: From one medium to another. Basic Issues for communicating the scriptures in new midia. New York: ABS, 1997. p.53-70.
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.
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. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende, Ana Carolina Escosteguy, Cláudia Álvares, Francisco Rüdiger, Sayonara Amaral. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
Gentil de Faria*
LE CARRÉ, John. O jardineiro fiel. Trad. Roberto Muggiati. São Paulo: Record, 2005. RESUMO:
Este artigo analisa as duas primeiras adaptações de Robson Crusoe publicadas no Brasil. A primeira, de autoria de Carlos Jansen, em 1885, e a segunda, de Monteiro Lobato, em 1931. Embora distanciadas no tempo e espaço, essas duas adaptações foram concebidas para servir de livro didático com a finalidade de despertar o gosto pela leitura nas crianças e adolescentes. Apreciadas também pelos adultos, essas reescrituras do romance de Daniel Defoe abriram caminho para o desenvolvimento de uma incipiente indústria do livro que ajudou a criar um público infantil e juvenil, convertido em leitor consumidor de livros. Dentro desse contexto, o artigo também identifica os elementos extratextuais das duas recriações, descrevendo os paratextos, caracterizados pelo uso do nome do autor, título do livro, prefácio e ilustrações, de acordo com a concepção de Gérard Genette.
MELENDI, Maria Angélica. Antimonumentos: estratégias da memória (e da arte) numa era de catástrofes. In: SELLIGMANN-SILVA, Márcio. (Org.) Palavra e imagem, memória e escritura. Chapecó: Argos Editora Universitária, 2006. p.227-46. O JARDINEIRO FIEL. Direção de Fernando Meirelles. Roteiro de Jeffrey Caine. Longa-metragem. Drama/romance. Estúdio: Focus Features / Scion Films Limited / Potboiler Productions Ltd. Distribuição: Focus Features. 2006. SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal. São Paulo: Iluminuras, Fapesp, 2005. SELLIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença – ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005. STAM, Robert. Beyond Fidelity: the dialogics of adaptation. In: NAREMORE, James. Film adaptation. New Brunswick/New Jersey: Rutgers University Press, 2000. p.54-78.
PALAVRAS-CHAVE:
Robinson Crusoe, Carlos Jansen, Monteiro Lobato, adaptação, literatura infantil.
VENUTI, Lawrence. The translator’s invisibility – A history of translation. London: Routledge, 1995.
ABSTRACT:
WINTER, Jay. A geração da memória: reflexões sobre o “boom da memória” nos estudos contemporâneos da história. In: SELLIGMANN-SILVA, Márcio. (Org.) Palavra e imagem, memória e escritura. Chapecó: Argos Editora Universitária, 2006. p.67-90. XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In: PELLEGRINI, Tânia. (Org.) Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Senac; Itaú Cultural, 2003. p.61-90. * Professor livre-docente aposentado pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de São José do Rio Preto (SP).
This essay provides an analysis of the first two adaptations of Robinson Crusoe in Brazil, written by Carlos Jansen in 1885, and by Monteiro Lobato in 1931. Although far removed in time and space, both adaptations were designed primarily as textbooks for the use of children. Acclaimed even by adults, those rewritings of Daniel Defoe’s famous novel paved the way for the development of the Brazilian publishing industry with a view to helping child to become reader. Within this context, the paper also describes the extra-textual elements of the books through their paratexts, which are devices such as the author’s name, the title, preface, and illustration, according to Gérard Genette’s theory.
KEYWORDS: Robinson Crusoe. Carlos Jansen. Monteiro Lobato.
adaptation, children’s literature.
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A história da tradução literária no Brasil, uma tarefa ciclópica, na afirmação de José Paulo Paes (1990), ainda está à espera de um pesquisador incansável e obstinado, que se disponha a fazer não apenas o levantamento dos textos traduzidos, como também a avaliação da atividade tradutória de seus autores. Não basta a mera listagem cronológica das obras traduzidas, é necessário ir além e adensar um pouco mais para localizar e comparar os resultados produzidos na língua de chegada com o texto fonte na língua de partida. À medida que se avança retroativamente no tempo, essa busca se torna mais trabalhosa em razão da dificuldade de localizar traduções publicadas no século XIX, e especialmente nos séculos anteriores. São em número bastante reduzido as bibliotecas públicas que possuem textos traduzidos há mais de cem anos, por exemplo. A situação é ainda bem mais crítica em relação ao material produzido no período Colonial, pois grande parte dessas traduções se encontra em mãos particulares ou pertence ao acervo de bibliotecas localizadas fora do país, especialmente em Lisboa ou Paris. Os obstáculos por vezes intransponíveis na tentativa de ler os textos, tanto o estrangeiro quanto o seu equivalente em tradução brasileira, desencorajam e limitam bastante o trabalho do pesquisador, que deseja contribuir para a montagem do inventário definitivo da literatura traduzida desde os tempos mais remotos. Nesse aspecto, já se tornou um lugar-comum apontar a carência de recursos financeiros enfrentada pelo pesquisador ao deparar com as provações vivenciadas na obtenção de auxílio, que viabilize o contato físico com a obra rara, cujo acesso ansiosamente persegue. Com alguma sorte, entretanto, as traduções centenárias poderão ser encontradas em sebos que disponibilizam os catálogos para consulta imediata por meio de um computador. Dessa maneira, em poucos instantes, é possível descobrir um “tesouro” localizado nas regiões mais distantes. Porém, o entusiasmo do achado pode se transformar em desânimo, pois os preços cobrados por essas raridades
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Este trabalho, felizmente, pôde usufruiu as facilidades proporcionadas pela biblioteca Guita e José Mindlin, a quem agradeço a permissão para consultar o seu impressionante acervo de obras raras.
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são ordinariamente excessivos. Os prestimosos alfarrabistas de outrora são hoje comerciantes interessados no lucro elevado, e os “achados”, antes passíveis de aquisição a baixo custo, são vendidos como se fossem exóticas porcelanas de um antiquário chinês.1 Desde os primeiros tempos da história do Brasil, a questão da tradução sempre esteve presente na vida dos nativos da então denominada Ilha de Vera Cruz. Já no primeiro documento escrito nestas terras – a célebre carta do escrivão Pero Vaz de Caminha – narrando ao rei de Portugal o “achamento de terra nova”, a dificuldade de comunicação com os índios se colocou como uma barreira a ser transposta na tarefa de converter o silvícola ao cristianismo. A percepção aguçada de Caminha sobre os mecanismos de persuasão do índio é um fato extraordinário para a época. Vendo a ingenuidade dos nativos, o arguto escrivão prega a utilização dos degredados como mediadores, isto é, tradutores na terminologia moderna, de uma nova relação de dominação que vai se estabelecer pouco tempo depois. Nesse sentido, é bastante expressiva a seguinte passagem da famosa carta: Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza o Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que o Nosso Senhor lhes deu bons corpos, bons rostos, como a homens bons.
Como se vê, os condenados ao exílio no Brasil foram, na realidade, os nossos primeiros tradutores e intérpretes durante meio século. Os padres jesuítas só começam a chegar a partir de 1549, já com a missão de aprender a
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língua nativa para traduzir textos para o tupi, o nheengatu ou o abanheenga. Essas traduções, feitas com a finalidade de facilitar a catequese, eram orais, e as poucas escritas desapareceram por completo ou são mencionadas como meras referências bibliográficas. Uma das raras exceções quanto à escassez de informações sobre o paradeiro dessas ocorreu com a produção de José de Anchieta, autor de uma “Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil”, impressa em Coimbra em 1595, e reproduzida em fac-símile pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 1980, fato que lhe garantiu sobrevida e facilidade de acesso. Tentando identificar nosso primeiro tradutor de texto impresso, Lia Wyler (2003, p.39) afirma categoricamente que o padre João de Azpilcueta Navarro (1522-1557) foi o “realizador da primeira tradução escrita no Brasil: A suma da doutrina cristã na língua tupi”. Entretanto, algumas páginas adiante, a própria autora atenua a segurança de sua descoberta (ibidem, p.63): “Acreditamos (sic) que a primeira tradução brasileira, do português para o tupi, tenha sido a Suma da doutrina cristã, anterior a 1557, de autoria do padre João de Azpilcueta Navarro, famoso por seu talento lingüístico”. Portanto, a dúvida sobre essa informação histórica persiste na imaginação do leitor. Se o inventário dos tradutores da era Colonial ainda constituiu uma tarefa a ser concluída,2 o mesmo não ocorre com o período do Império, que tem sido objeto de várias pesquisas e publicações especializadas. A criação da Real Biblioteca em 1810 – hoje Biblioteca Nacional – com o rico acervo inicial trazido por ocasião da tumultuada vinda da família real ao Brasil, representa o marco inicial do processo de tombamento das obras. Com isso, o trabalho de localizar os textos se tornou menos penoso para os pesquisadores, embora a frustração de não encontrar traduções importantes realizadas no século XIX persista com certa frequência.3 Anteriormente a 1808, a rígida proibição para abertura de gráficas, decretada por Portugal, tornou bastante difícil a circulação e o comércio de livros no Brasil, acar-
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Lia Wyler faz uma lista contendo dois tradutores do século XVI (Azpilcueta Navarro e José de Anchieta), cinco do século XVII, e 29 do século XVIII. Agora, restou o trabalho de saber quem traduziu o quê e de que forma.
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Para o século XIX, além da Biblioteca Nacional, o pesquisador poderá encontrar farto material na biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro.
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retando grande atraso no desenvolvimento cultural do país. Por isso, durante décadas, a maior parte das traduções disponíveis só poderia ter sido realizada pelos autores portugueses. Os tradutores brasileiros tinham um trabalho adicional: precisavam mandar imprimir seus textos na Europa. Isso também ocorreu com os primeiros livreiros e editores que vieram a se instalar no Rio de Janeiro – como os irmãos Laemmert em 1838 – que mandavam imprimir na Alemanha suas obras lançadas no Brasil. Com o passar do tempo e o levantamento da censura à produção e difusão do livro, o crescimento das atividades culturais ensejou o aparecimento de tradutores brasileiros, que não se contentavam em ler as obras-primas da literatura universal em traduções vindas do antigo colonizador. Começa, então, a surgir homens que fazem da tradução seu meio de subsistência econômica. Tinham preferência por trabalhar com a ficção de grande apelo popular na época. A tradução de poesia, de escassa procura, era feita por mero diletantismo pessoal. Assim, a demanda por tradução de folhetins começa a despertar a atenção de brasileiros com conhecimento de francês, a língua estrangeira mais falada entre os intelectuais que gravitavam em torno da Corte recém-instalada. Entre esses tradutores, a figura do curioso mulato baiano Caetano Lopes de Moura (1780-1860) é apontada por José Paulo Paes (1990, p.18) como “o nosso tradutor realmente profissional, isto é, aquele que fez da tradução, pelo menos durante certa quadra da sua vida, um meio de subsistência”. Essa afirmação é contestada por Lia Wyler (2003, p.85): “poderíamos contrapor vários outros no mesmo caso”, e cita os exemplos de José Alves Visconti Coaracy (18371892) e Francisco de Paula Brito (1809-1861), tipógrafo que imprimiu o primeiro livro de um jovem com futuro promissor: Machado de Assis. Entretanto, esses tradutores apareceram algum tempo depois do mulato baiano. Basta apenas conferir as datas de suas traduções. Caetano Lopes de Moura tinha contrato comercial com a famosa Livraria Aillaud, sediada em Paris e especia-
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lizada em enviar livros impressos em português para o Brasil e Portugal. Sua intensa atividade tradutória começou em 1837, traduzindo Walter Scott e Chateaubriand. Veja-se que esse ano é o mesmo do nascimento de Visconti Coaracy. Assim, quando esse nasceu, o baiano já estava traduzindo os clássicos. Nessa mesma época, o jovem Paula Brito estava começando a escrever seus primeiros contos. Suas traduções vão surgir bem depois. Tendo esses dados simples e irrefutáveis, não hesito em concordar com José Paulo Paes ao enfatizar a precedência histórica da atividade sistêmica de tradução operada por Caetano Lopes de Souza. Por direito, ele é, de fato, o patriarca dos tradutores brasileiros. Ninguém antes dele teve o privilégio de ser contratado para o ofício de traduzir.4 Deve-se registrar a atividade tradutória de um outro mestiço, Justiniano José da Rocha (1811-1862), nome que vem logo após o de Caetano Lopes de Moura, também contratado para o ofício de tradução de folhetins. Ele conseguiu a façanha de iniciar, em 10 de março de 1852, no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, a publicação em série da tradução de Os miseráveis, de Victor Hugo, um mês antes do lançamento em Paris do texto original em livro. É que o proprietário do jornal, Junius Villeneuve, havia obtido permissão para traduzir o célebre romance a partir de cópias do original fornecida pelo editor belga. Esse fato frustrou a vontade do romancista francês que havia pedido para que as traduções do seu livro ocorressem após o lançamento em Paris.5 Além de enfrentar enormes dificuldades, como a escassez de obras de referências e dicionários especializados, o tradutor brasileiro padecia também com a antipatia e má vontade dos críticos em relação ao seu trabalho. Sílvio Romero (1960, p.900) vangloriava-se de não gostar de tradução, sobretudo de poesia traduzida, e fazia escola ao pontificar: “Em rigor as traduções em verso são verdadeiros jogos de paciência inutilmente gasta. A poesia não se translada sem perder a mor parte de sua essência. Nas melhores condições a tradução poética é sempre grandemente falsa”.
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Aqui não é o lugar para o estudo das traduções realizadas por Caetano Lopes de Moura, que ainda aguarda a atenção mais demorada de um pesquisador. Silvio Romero (1960) fornece alguma informação biobibliográfica a seu respeito, afirmando que seu nome não pode ser esquecido. O estudo mais extenso sobre Moura encontra-se em Cláudio Veiga (1979, p.119-38). Sem dúvida, a análise das traduções desse médico aventureiro, fascinado pela figura de Napoleão Bonaparte, e autor de sua própria biografia, forneceria farto material para uma tese acadêmica.
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Ofir Bergemann de Aguiar (1996) analisou essa primeira tradução do romance francês e fez a notável descoberta da precedência do texto brasileiro sobre o original em livro francês. A pesquisadora desvendou esse mistério, pois o texto original não saíra em forma de folhetim, como era frequente naquela época.
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Antonio Rodrigues Medina dedicou um estudo profundo sobre essas mesmas traduções feitas por Odorico Mendes, e fez o resgate do valor do trabalho realizado, ainda que apontando alguns equívocos. Haroldo de Campos (19292003) também enalteceu a atividade tradutória do poeta maranhense, elogiando suas “transcriações” poéticas, expressão que gostava de usar em se tratando de tradução de poesia.
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Em outro ponto da obra, ele confessa sua intolerância em relação à tradução de poesia (ibidem, p.723): “Em geral sou infenso a traduções de poetas. Trasladados em prosa ficam mortos; vertidos para verso, ficam sempre desfigurados. Uma tradução poética dificilmente dará o desenho da obra traduzida e jamais fornecerá o colorido”. Essa postura abertamente hostil em relação à tradução levou-o a fazer julgamentos drásticos e disparatados, como ocorreu ao analisar (ibidem, p.723) o trabalho do poeta e tradutor maranhense Odorico (1799-1864): “Quanto às traduções de Virgílio e Homero tentadas pelo poeta, a maior severidade seria pouca ainda para condena-las. Ali tudo é falso, contrafeito, extravagante, impossível. São verdadeiras monstruosidades”. Segundo o irreverente crítico, essas tradições eram “ásperas”, “prosaicas”, “obscuras”, e escritas em “português macarrônico”. Segundo Romero (1960, p.723), o tom da tradução é “pedantesco e maçudo”. Para ele, o poeta maranhense “torturou frases, inventou termos, fez transposições bárbaras e períodos obscuros, jungiu arcaísmos a neologismos, latinizou e grecificou palavras e proposições, o diabo!”. Após citar alguns fragmentos da tradução de Virgilio, em tom de deboche, o irado crítico passa a analisar a tradução de Homero, com um parágrafo demolidor (ibidem, p.725): “A tradução da Ilíada é cinqüenta vezes pior”.6
A literatura escolar Por volta da metade do século XIX, cerca de 80% da população brasileira eram analfabetos. Esse dado revela que a imensa maioria do povo estava à margem do processo de educação escolar. Apesar da independência política, o ensino ainda permanecia muito preso aos velhos manuais portugueses. A respeito da precariedade do aprendizado da leitura na escola daquela época, Sílvio Romero (1884, p.X) dá o seguinte depoimento: Ainda alcancei o tempo em que nas aulas de primeiras letras aprendia-se a ler em velhos autos, velhas sentenças
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fornecidas pelos cartórios dos escrivães forenses. Histórias detestáveis e enfadonhas, em sua impertinente banalidade, eram-nos ministradas nesses poeirentos cartapácios. Eram como clavas a nos esmagar o senso estético, embrutecer o raciocínio, e estragar o caráter. Era então precisa uma abundante seiva nativa para resistir à semelhante devastação. As sentenças manuscritas eram secundadas por impressos vulgares, incolores, próprios para ajudarem a destruição. Era o ler por ler, sem incentivo, sem préstimo, sem estímulo nenhum.
A leitura por obrigação, desmotivada e coercitiva, imposta ao menino Sílvio Romero, se manteve por muito tempo no sistema educacional brasileiro. José Veríssimo (1993, p.271), ao recordar seus estudos na escola primária, ressalta que os livros, na maioria, eram estrangeiros, sobretudo de origem portuguesa: São os escritores estrangeiros que traduzidos, trasladados ou, quando muito, servilmente imitados, fazem a educação da nossa mocidade [...] Os meus estudos feitos de 1867 a 1876 foram sempre em livros estrangeiros. Eram portugueses e absolutamente alheios ao Brasil os primeiros livros que li [...] Acanhadíssimas são as melhorias desse triste estado de coisas, e ainda hoje [1906] a maioria dos livros de leitura, se não são estrangeiros pela origem, sãono pelo espírito.
Ao final do texto, Veríssimo sugere uma reforma do livro de leitura no Brasil, fazendo uma ressalva de cunho patriótico (ibidem, p.272): “Cumpre que ele [o livro] seja brasileiro, não só feito por brasileiro, que não é o mais importante, mas brasileiro pelos assuntos, pelo espírito, pelos autores trasladados, pelos poetas reproduzidos e pelo sentimento nacional que o anime”. Esse sentimento nacionalista de José Veríssimo pode ser encontrado em outros autores do mesmo período. Enfarados com o que vinha de fora, alguns começaram a pensar uma literatura que tratasse de coisas nossas, que tivesse
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a nossa cara. Nesse sentido, os textos estrangeiros eram bem-recebidos desde que fossem “aclimatados” ao nosso meio cultural. Com esse espírito de tornar dar uma coloração brasileira aos textos vindos de fora, houve uma maciça adaptação de obras clássicas ao gosto da juventude escolar brasileira, a partir de meados do século XIX. A obra mais adaptada ao gosto do jovem brasileiro naquela época foi Os lusíadas, de Luís de Camões. Leonardo Arroyo (1918-1986), admitindo que o seu inventário não estava completo, listou 22 edições escolares diferentes do célebre poema no período de 1856 a 1930. O poeta português era leitura obrigatória de todo estudante do século XIX. A adaptação mais popular foi a de autoria de João Cardoso de Meneses e Sousa (1827-1915), mais conhecido pelo título de barão de Paranapiacaba, outorgado pelo imperador Pedro II, em 1883. O barão era uma curiosa figura do Segundo Império. Mantinha laços de amizade com o imperador e dele se valia para obter prestígio pessoal. Foi o tradutor de Ésquilo, Plauto, Lamartine, La Fontaine e Byron, entre outros. Sua adaptação do épico de Camões recebeu o título de Camoniana brasileira, e foi publicada em 1886 com um extenso número de notas explicativas sobre a mitologia contida no texto original. Por causa da boa reputação que desfrutava junto ao imperador, seu texto mereceu o privilégio de ser o primeiro livro da série “Biblioteca Escolar”, adotada largamente nas escolas primárias do país. No “Prólogo” (apud Romero 1960, p.895), o barão explica como realizou o trabalho: “Resumi os trechos mais belos do poema, dando-lhes feição moderna e variada metrificação” (grifo de Sílvio Romero). O crítico temperamental, que já se manifestara contra a tradução de poesia, não conteve a ira contra a adaptação do texto camoniano feita por Paranapiacaba (ibidem, p.895): Que horror! Um espírito cansado e retrógrado, querendo modernizar um monumento genial, novo, fresco, matinal, como se fora ontem escrito, uma criação que não tem data; porque é contemporânea de todas as fases da
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cultura humana, como os Lusíadas! Custa em verdade conter a indignação. E há e houve simples que aplaudiram tudo aquilo! [...] Modernizar Camões! Em todo o percurso da literatura brasileira bem vê o leitor ser a maior bernardice em que tem tropeçado... E não foi um homem do tempo da colônia, nem um pobre provinciano, que a realizou...
A condenação implacável de Sílvio Romero revela sua postura preconceituosa contra a adaptação de obras clássicas ao gosto do leitor jovem. O problema não está no fato de o barão ter ousado “modernizar” o texto camoniano, mas no resultado sofrível que obteve. O ato de adaptar uma obra para determinado público não deve caracterizar um procedimento condenável em si mesmo. As reprovações ao trabalho de Paranapiacaba são inúmeras. Leonardo Arroyo (1968, p.88) afirmou: “Do poema fez o barão uma salada de frutas”. Antonio Candido (2006, p.705) tachou-o de “empresa de verdadeiro sacrilégio poético”.
As primeiras adaptações de Robinson Crusoe no Brasil
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A biblioteca Guita e José Mindlin possui três edições raras de traduções francesas de Robinson Crusoe, publicadas em 1751, 1775 e 1845.
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A biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura possui essa tradução na edição de 1816, em dois volumes, publicada pela Tipografia Rollandiana, de Lisboa.
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escritas em outras línguas chegavam até nós por meio das traduções francesas. Isso ocorreu também com dois romances ingleses fundamentais do século XVIII: Robinson Crusoe (1719) e As viagens de Gulliver (1726), que durante mais de cem anos só foram conhecidos aqui nas traduções portuguesas ou nas edições em francês.7 A primeira tradução, em língua portuguesa, de Robinson Crusoe foi feita em 1785 por Henrique Leitão de Sousa Mascarenhas, que traduziu do texto publicado em francês.8 A popularidade do romance no Brasil persiste até os nossos dias. Villalta (2004) demonstrou que a obra de Defoe era uma presença constante nas listas de livros com trânsito legal, isto é, com permissão da temida mesa censória, entre Portugal e Brasil. Figurava em quarto lugar entre as obras de ficção mais mencionadas nessas remessas. No circuito inverso, do Brasil para Portugal, era a terceira obra de ficção mais citada.
Os clássicos em tradução
Carlos Jansen
A vinda da família real em 1808 foi um dos eventos que desencadearam a avassaladora presença da cultura francesa no Rio de Janeiro. O impacto da França foi sentido com vigor até nos currículos escolares. O famoso Colégio Pedro II, inaugurado no 12º aniversário do herdeiro ao trono em 2 de dezembro de 1837, é um exemplo concreto da influência parisiense no nosso meio cultural. Concebido para ser o modelo de escola secundária no Brasil, sua organização administrativa e estrutura curricular são inspiradas no prestigiado Lycée Louis-le-Grand, a escola das celebridades, localizada no afamado endereço 123 rue Saint Jacques, Paris. Sílvio Romero (1960, p.1.692), também um dos seus renomados professores, criticava tendência à imitação tão arraigada entre os intelectuais brasileiros da época: “Não devo repetir aqui o que algumas dúzias de vezes deixei escrito sobre a tendência imitadora do Brasil. Ninguém ignora que nós copiamos os livros franceses”. Mesmo as obras
A adaptação da história do náufrago Crusoe, conhecida no mundo inteiro, foi publicada pela primeira vez no Brasil em 1885. Seu autor, Carlos Jansen (1829-1889), era alemão nascido em Colônia, e veio ao Brasil em 1851, para morar no Rio Grande do Sul. Em 1878, mudou para o Rio de Janeiro e, em seguida, começou a lecionar alemão no Colégio Pedro II, onde permaneceu até a morte. Sua biografia é pouco conhecida. Além das adaptações de obras estrangeiras, escreveu dois livros: uma novela e uma antologia de escritores alemães para ser usada como texto didático. A novela se chama O patuá, e foi publicada na Revista Brasileira em 1879, com tradução para o alemão nessa mesma data. Esse livro alcançou mais duas edições; em 1965 e 1974, por ocasião da celebração do sesquicentenário da imigração alemã naquele Estado brasileiro. O enredo é muito simples e linear. Trata-se da amizade entre dois jovens amigos, Carlos e Luís, narrada com muita vivacidade em linguajar gaúcho, típico da região sulista.
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A antologia, com o ambicioso título Seleção literária dos principais autores alemães, traz longos trechos de três autores apenas: Lessing, Goethe e Schiller, precedidos de dados biográficos de cada um. Esses textos eram dados aos alunos para exercício de tradução, e continham notas de rodapé para guiar o estudante na busca de uma expressão equivalente em português das passagens mais obscuras na língua original.9 A maior contribuição de Jansen para a cultura brasileira foi a incansável luta que travou para tornar agradável a leitura dos clássicos pelos estudantes do elitizado colégio imperial. Nesse aspecto, ele foi, sem dúvida, o pioneiro a adaptar, com finalidade didática, as obras clássicas para a apreciação dos adolescentes nas escolas secundárias brasileiras. A fim de atingir seus elevados propósitos, Jansen inspirou-se na atividade do alemão Franz Hoffmann (18141882), que havia concebido o mesmo plano de adaptação de obras clássicas no seu país. Ele percebeu que o mesmo procedimento poderia ocorrer também no Brasil, onde os jovens não dispunham de material de leitura em português das obras clássicas estrangeiras, adaptadas ao seu nível de compreensão literária. As traduções integrais até então existentes estavam muito distantes do universo cultural da maioria deles. Assim, a adaptação de obras ao gosto dos jovens seria a solução ideal para resolver o problema deles em relação à falta de interesse e preparo intelectual. Escolhido Hoffmann como modelo, Jansen mergulhou de vez na tarefa de adaptar cinco clássicos da literatura universal. Além de fazer as adaptações, ele teve a preocupação de convidar as celebridades mais conhecidas do meio cultural brasileiro para prefaciar o seu trabalho. A carta que ele escreveu para Rui Barbosa (1955, p. 250), datada de 15 de novembro de 1887, é bastante expressiva a respeito do seu trabalho de tradutor: Como sabe, criei entre nós uma biblioteca juvenil, para ensinar a ler a geração presente. Foram publicados já: Contos Seletos de Mil e Uma Noites, prefaciado por Machado de Assis; Robinson Crusoe, com introdução de Sílvio Romero;
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Algumas fontes indicam que Jansen escreveu outros dois livros; um para o ensino de alemão aos brasileiros, e o outro, para ensinar português ao imigrante alemão. Ele também dava aulas particulares de alemão, e entre seus estudantes mais conhecidos estavam Ferreira de Araújo, Capistrano de Abreu, e a glória nacional, Machado de Assis. Sua tese de concurso para o Pedro II, intitulada Do pronome na língua alemã, foi publicada em 1883 pela editora Laemmert.
10 A íntegra dessa carta pode ser lida em Leonardo Arroyo (1968, p.172-4) e Zilberman & Lajolo (1993, p.267-8). Além dessas quatro obras mencionadas na carta, Jansen também adaptou Aventuras maravilhosas do barão de Munchausen, publicada postumamente. Rui Barbosa, bastante envaidecido com o convite recebido, escreveu um erudito ensaio de 48 páginas (quase metade de todo o livro) sobre Swift, usando a mesma retórica com a qual ficou famoso. Seu texto estabelece um violento contraste com a linguagem simples da adaptação.
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A biblioteca Guita e José Mindlin possui essa segunda edição. Com as facilidades da internet, consegui comprar num sebo um exemplar dessa mesma edição. A primeira, infelizmente, permanece ainda inacessível.
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Dom Quixote patrocinado por Ferreira de Araújo. Tenho agora no prelo As Viagens de Gulliver, obra de que lhe envio algumas folhas e os cromos que devem acompanhar o texto, – tenho a ousadia de pedir-lhe uma introdução, como Sr. Conselheiro, bom amante da instrução, as sabe fazer. [...] Não sou águia nem grande ilustração; mas entendo que mesmo em esfera limitada podem prestar-se bons serviços, e por isto contento-me com as adaptações das boas obras que em original nos faltem.10
Adotando a prática de chamar grandes nomes para valorizar o seu trabalho, Jansen instiga seu jovem leitor a ir além do texto adaptado. Para isso, é necessário observar também os elementos extratextuais nele incorporados, isto é, os seus paratextos. Foi Gerard Genette (1997) quem introduziu o termo “paratexto”, usando-o para designar os elementos que se encontram em torno do texto, dentro e fora do livro. Para ele, o paratexto pode assumir diversas formas, como título, formato da capa, prefácio, dedicatória, epígrafe, notas, ilustrações, biografia do autor, colofão, código de barras, indicação de preço, correspondência entre o autor e o editor, resenhas sobre o livro, polêmicas travadas, traduções, adaptações etc. Por esse amplo espectro, nota-se que o paratatexto estabelece uma complexa mediação entre livro, autor, editor e leitor. No caso da primeira adaptação de Robinson Crusoe no Brasil, e também por tratar-se de obra rara, a análise dos paratextos mostra-se fundamental para uma aprofundada compreensão. Mesmo tendo feito reiteradas buscas em sebos diversos e nas principais bibliotecas do país, não consegui localizar a primeira edição. Apesar de ela constar no catálogo antigo da Biblioteca Nacional, o exemplar ilustrado, com 191 páginas, encontra-se desaparecido, mesmo depois de várias investidas, que contou com a ajuda de dedicadas bibliotecárias. A segunda edição,11 que será analisada neste trabalho, saiu sem data de publicação, mas pelas referências a ela feitas naquela época, pode-se dizer que ocorreu ainda em vida de Jansen, morto em 1889. Essa edição possui excelente acabamento gráfico. A capa dura mostra a figura centralizada do protagonista no
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meio da selva, onde as cores predominantes são o verde e o amarelo. Ao fundo, vê-se um céu azul e uma pomba branca com asas abertas, pousando no galho, logo acima da cabeça da personagem, como que lhe dando proteção. Robinson é mostrado de corpo inteiro, jovem, com o olhar aberto e atento, cabelos longos, de bigode, cavanhaque, mas sem barba. Ele empunha sua comprida lança, como que preparado para enfrentar iminente perigo.12 Na parte de cima, aparece em letras grandes e estilizadas em declínio o nome ROBINSON. Não há indicação de autor, tradutor ou outro elemento que normalmente consta de uma capa de livro. A falsa folha de rosto traz centralizado o nome da obra centralizado, em caixa alta, negrito, acentuado,13 e com o ponto final. O longo título original – The life and strange surprising adventures of Robinson Crusoe – foi simplificado para conter apenas o nome da personagem principal. Esse procedimento ocorreu no mundo inteiro, mesmo nas edições inglesas. Anterior à página de rosto existe um belo cromo onde se vê Robinson agarrado ao rochedo, com semblante apavorado. Ao fundo, vê-se um mar revolto, com nuvens carregadas e um navio afundando. Em contraste, duas gaivotas sobrevoam na tempestade. A folha de rosto traz os seguintes elementos: ROBINSON CRUOSÉ. / redigido para a mocidade / brazileira, segundo o plano / de / F. Hoffmann, / por / Carlos Jansen, / do Collegio D. Pedro II. / Segunda Edição, Adornada com Esplendidos Chromos. / Rio de Janeiro. – S. Paulo. – Recife. / Laemmert & C., / Editores-Proprietários. Como se percebe, não consta o nome de Daniel Defoe, autor do texto original inglês. O prefácio vem logo a seguir. Sílvio Romero (1885, p.v), que nunca havia feito nenhuma menção ao autor do romance em sua consagrada História da literatura brasileira, escreveu oito páginas, datando-as, ao final, outubro de 1884. O primeiro parágrafo diz: “O Sr. professor Carlos Jansen, a quem as letras e a pedagogia brasileira já tanto devem, acaba de traduzir o celebrado romance Robinson
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É surpreendente constatar que o desenho dessa mesma capa foi copiado, com ligeiras modificações, na recente edição publicada pela editora Villa Rica, em 2007.
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Nas inúmeras edições brasileiras pode-se observar uma oscilação entre acentuar ou não o nome da personagem. Há uma preferência de cerca de 70% dos casos para não usar o acento. Acredito que o uso do acento deveu-se à influência do francês, de onde saíram as primeiras traduções portuguesas. Na Franca, até hoje, a forma acentuada mantém a preferência. Optei por seguir a maioria dos brasileiros e usar a forma não acentuada.
O nome de batismo do escritor londrino era Daniel Foe. Querendo torná-lo mais aristocrático, aos 35 anos de idade, ele mudou para Daniel de Foe, usado separadamente para indicar uma origem de família nobre. Tempos depois, o prefixo foi acoplado ao sobrenome, daí Defoe. As primeiras referências sobre o autor no Brasil e no exterior trazem a designação de Foe, como pode ser visto, por exemplo, nas traduções francesas e na tradução publicada pela Garnier no início do século XX.
15 As edições Oxford World’s Classics e a Barnes & Noble Classics mantiveram o texto original corrido, sem capítulos.
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Crusoé, de Daniel de Foe (sic).14 O livro foi pelo tradutor adaptado ao nosso meio social, segundo o plano de F. Hoffmann”. Depois de apontar os defeitos do ensino da leitura no seu tempo de escola primária, o crítico, que sempre manifestava má vontade para as traduções, finaliza o texto, elogiando o trabalho que prefaciou (ibidem, p.xii): “O Robinson Crusoe, redigido para a mocidade brasileira, é um presente magnífico, um mimo que vai encantar, instruindo os nossos filhos; e os vai instruir sem afetações, sem lamúrias e pieguices nocivas”. Após o prefácio, aparece o índice dos 20 capítulos com os quais a história original foi adaptada. Uma informação importante a ressaltar é o fato de a obra original não ser dividida em capítulos. Entretanto, muitas edições, mesmo as publicadas em inglês, trazem a obra parcelada em número variado de capítulos.15 Jansen, coerente com o propósito de adaptar a obra para jovens, não apenas a dividiu em capítulos, como acrescentou um breve sumário do conteúdo de cada um. Isso facilitou grandemente a tarefa de leitura da obra pelos seus jovens alunos. Todos eles sabiam que estavam lendo uma adaptação e não uma tradução integral. Para se ter uma ideia mais clara do trabalho realizado por Jansen, transcrevo aqui, em ortografia atualizada, o índice tal como ele aparece no livro, com os respectivos números de páginas: CAPÍTULO I
Robinson Crusoé. – Sua predileção pelas viagens. – Excursão improvisada a Londres. – Grandes projetos comerciais. – Como indo para a Guiné, muda de rumo, navega para o Brasil, e por fim naufraga deveras ......................................................................... 1 CAPÍTULO II Na escola da necessidade, Robinson aprende a ser ativo ........................................ 11 CAPÍTULO III Robinson faz descobertas preciosas, e volta para a casa com uma verdadeira fortuna ....................................................................................................................... 22
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CAPÍTULO IV
CAPÍTULO XVI
Aumenta o bem estar de Robinson. – Descobre um tesouro que trata com sumo desprezo ..................................................................................................................... 28
Novo desembarque dos selvagens. – Robinson e Sexta-feira salvam duas vítimas, sendo uma o pai do jovem índio ......................................................................................... 118
CAPÍTULO V
CAPÍTULO XVII
Robinson continua a sua vida solitária, aumentando de dia em dia o seu bem estar à força de trabalho e reflexão ...................................................................................... 33
A narração do espanhol ............................................................................................ 125
CAPÍTULO VI
Cresce o número de súditos de Robinson ................................................................ 128
CAPÍTULO XVIII
O terremoto e as chuvas: conseqüências destes dois fenômenos ............................ 43
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO VII
Navio à vista. – Façanhas de Robinson e Sexta-feira ................................................ 134
Robinson renova o seu trajo, e adoece ..................................................................... 51
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO VIII
Volta à pátria ............................................................................................................. 143
Convalescença de Robinson. – Novas descobertas. – Horário de trabalho ............. 56 CAPÍTULO IX Robinson descobre vestígios humanos. – Chegam à sua ilha antropófagos, e Robinson salva uma das suas vítimas ........................................................................................ 64 CAPÍTULO X Sexta-feira faz fogo. – Refeição deliciosa. – Reflexões de Robinson ....................... 75 CAPÍTULO XI Robinson fortifica a sua habitação. – Estação das chuvas. – Trabalhos domésticos. – Robinson ensina a Sexta-feira a religião cristã ..................................................... 79 CAPÍTULO XII Conclusão da barca e viagem infeliz ........................................................................ 87 16
CAPÍTULO XIII Naufrágio ................................................................................................................... 92 CAPÍTULO XIV Robinson e Sexta-feira concluem a balsa e navegam para o navio. – Naufrágio e perigo de vida ....................................................................................................................... 102 CAPÍTULO XV Bem estar devido ao naufrágio ................................................................................. 113
As páginas onde aparecem as ilustrações são as seguintes: 1, 6, 9, 14, 19, 21, 22, 25 (inteira), 29, 34, 39, 41, 46, 49, 52, 58 (inteira), 55, 61, 65, 67, 69, 73, 77, 80, 83 (inteira), 89, 94, 95, 98, 100, 105, 111 (inteira), 116, 123, 131, 135, 139, 145, 146 e 147.
Essas mesmas sinopses são reproduzidas no início de cada capítulo, o que estimula a retenção do enredo na mente do jovem leitor. Para tornar mais agradável a leitura, cinco cromos coloridos foram inseridos ao longo da narrativa, além do já visto na falsa folha de rosto. Eles aparecem depois das seguintes páginas: página 16 – Crusoe está repousando no galho de uma árvore; página 44 – mostra o protagonista fugindo das larvas do vulcão; página 70 – retrata o primeiro encontro de Crusoe com Sexta-feira; página 98 – Sexta-feira saltando do barco, fugindo de um cão e de um animal de chifres; página 120 – a luta contra os selvagens. Sugestivas ilustrações em preto-e-branco entremeiam as aventuras narradas. São 40 ilustrações, o que dá uma ilustração para cada três,16 e quatro delas ocupam uma página inteira. A exuberância das gravuras e a simplicidade de linguagem foram a causa principal do sucesso da adaptação feita por Carlos Jansen. Uma segunda edição foi lançada dentro de pouco tempo após a publicação da primeira em 1885. Por se tratar de adaptação e não de uma tradução no sentido tradicional, não cabe fazer o cotejo corpo a corpo dos dois textos em confronto para aferir o trabalho realizado pelo adaptador. Como foi visto, a edição brasileira
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nem sequer fez menção ao nome do autor inglês e nem trouxe a informação de que o texto em português era uma tradução do conhecido romance. Entretanto, o texto adaptado chama a atenção para alguns aspectos em relação ao seu arquétipo em inglês. A sintaxe complicada do original foi transformada em parágrafos curtos com frases simples, e em estilo direto. A história começa assim na adaptação (Defoe, 1884, p.1):
pático. Trazia nas orelhas e no alto da cabeça adornos de penas e conchas, o que aliás perfazia a sua única vestimenta.
Vivia em Hamburgo, em tempos passados, um homem honrado, que se chamava Robinson, e que, ao lado de uma modesta fortuna, possuía três filhos. Um destes fez-se soldado, e foi morto em uma batalha ferida contra os franceses. O segundo apanhou acidentalmente uma grande constipação, e morreu do peito.
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As interpretações de Rousseau, Samuel Coleridge, Edgar Allan Poe e Karl Marx ficaram famosas e constituem textos importantes na imensa fortuna crítica de Robinson Crusoe.
Assim ficou só o terceiro, o mais moço, que se chamava Crusoé, e no qual os pais encontraram todo o amor que outrora dividiam os três.
Como se percebe, esse fragmento condensou uma página inteira do original, sem perder as informações essenciais. Outra mudança significativa foi o uso da terceira pessoa, o que facilita a compreensão da criança, que capta melhor a narrativa contada por outra pessoa e não pelo próprio protagonista, como é o caso do original: “I was born in the year 1632...”. Assim, o texto adaptado se transformou em uma história para ser ouvida, e não para ser lida pura e simplesmente. Esse procedimento narrativo possui o sabor e a curiosidade dos inícios de contos de fadas: “Era uma vez...”.17 O simpático índio selvagem, tornado escravo pelo tirânico Crusoe, recebeu a seguinte descrição na adaptação brasileira (ibidem, p.73): Era Sexta-feira um índio de boa presença, e que podia contar vinte anos; pele de cor de cobre, cabelo negro e corrido, nariz curto, mas bem formado, lábios delgados e dentes alvíssimos, em suma um tipo interessante e sim-
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Percebe-se que Jansen transformou o selvagem canibal caribenho em índio com traços físicos semelhantes ao dos nativos brasileiros. O autoritário Crusoe ensina seu novo escravo a chamá-lo de “master”, impondo-lhe dominação e obediência. Na adaptação, é o próprio Sexta-feira quem toma a iniciativa de designar seu benfeitor como “Cacique”. No original, o protagonista tem 26 anos de idade; na adaptação, ela foi reduzida para vinte anos, mais próxima da idade dos jovens leitores brasileiros. No final da narrativa (ibidem, p.147), Crusoe continua desempenhando o papel de colonizador em relação ao seu recém-colonizado Sexta-feira. As implicações políticas desse convívio são um dos focos de interesse da crítica especializada.18 Na adaptação, os dois se tornam amigos e companheiros fiéis. As três personagens principais – Crusoe, Sexta-feira e o velho pai desse – permanecem juntas no retorno a Inglaterra e vão morar no campo para trabalhar a terra, retendo ativa a experiência vivenciada durante longos anos na ilha deserta: E para manter sempre vivas na memória as reminiscências da sua ilha, construiu, no meio de sua bela propriedade, uma gruta artificial com o seu competente terreiro, a escada de cordas e a parede viva de árvores verdejantes.
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Defoe, assim como Swift em As viagens de Gulliver, nunca imaginou escrever uma história para o leitor jovem. Os diversos adaptadores do mundo inteiro foram os responsáveis por essa fascinante transformação. O público jovem começou a gostar das obras literárias a partir dessas “mutilações” do texto estrangeiro.
Muitas vezes, e principalmente em momentos difíceis de sua nova vida, Robinson recolhia-se nesse recinto para meditar acerca da solução dos problemas que o preocupavam; e, vencida a dificuldade, dizia a Sexta-feira com um sorriso de satisfação: – Foi nessa escola, lá, em nossa ilha, que aprendi a refletir e a conhecer o poder da vontade e a prodigiosa fertilidade do trabalho inteligente, paciente e aturado.
Monteiro Lobato Até o final do século XIX, a edição de livros no Brasil era ainda bastante precária. Havia poucas bibliotecas
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públicas, e essas possuíam acervos reduzidos cujo número de volumes mal chegava a dez mil volumes cada uma. Muito lentamente, alguns livreiros importadores foram se instalando no Rio de Janeiro. Dentre eles, destacaram-se os irmãos Laemmert, a Casa Garnier e o português Francisco Alves. As tiragens eram baixíssimas; raramente uma edição ultrapassava a quantidade de mil exemplares.19 O mercado consumidor, por sua vez, era bastante escasso. Os autores só podiam contar com um universo muito restrito de leitores em razão do alto índice de analfabetismo.20 A atuação de Monteiro Lobato (1882-1948) foi decisiva para o fortalecimento do mercado livreiro no Brasil. Sua preocupação em criar uma literatura voltada para o público infantil se manifestou a partir do desejo de ensinar, ele próprio, a leitura aos seus filhos. Em carta dirigida a Godofredo Rangel (1884-1951), datada de 8 de novembro de 1916, Lobato (1968, t.II, p.104) escreve sobre a vontade de produzir literatura adaptada ao gosto das crianças brasileiras: Ando com várias idéias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para crianças. Veio-me diante da atenção curiosa com que meus pequenos ouvem as fábulas que Purezinha21 lhes conta. Guardam-nas de memória e vão recontá-las aos amigos – sem, entretanto, prestarem nenhuma atenção à moralidade, como é natural. A moralidade nos fica no subconsciente para ir se revelando mais tarde, à medida que progredimos em compreensão. Ora, um fabulário nosso, com bichos daqui m vez dos exóticos, se for feito com arte e talento dará coisa preciosa. As fábulas em português que eu conheço, em geral traduções de La Fontaine, são pequenas moitas de amora do mato – espinhentas e impenetráveis. Que é que nossas crianças podem ler? Não vejo nada. Fábulas assim seriam um começo da literatura que nos falta. Como tenho um certo jeito para impingir gato por lebre, isto é, habilidade por talento, ando com idéia de iniciar a coisa. É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a iniciação de meus filhos.
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19 Koshiyama (2006) demonstra que essa situação começa a se modificar com a entrada de Monteiro Lobato no mercado de livros. Seu Narizinho arrebitado, publicado em 1921, vendeu cinquenta mil exemplares. Esse número elevado de vendas para a época foi atingido graças à ajuda do governador do Estado de São Paulo, Washington Luís, que mandou comprar a maior parte da tiragem para uso nas escolas primárias paulistas.
20 Em carta de 24 de novembro de 1915, dirigida a Godofredo Rangel, Lobato (1968, t.II, p.186) lamentava: “Pena morarmos num país em que o analfabetismo cresce. Cresce com o aumento da população...”.
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Diminutivo afetivo com o qual o autor chamava sua mulher Maria Pureza da Natividade, com se casou em 1908.
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Esse sonho começa a se tornar realidade com a aquisição da propriedade da Revista do Brasil, da qual era editor, em 1918. Nela publicou seu primeiro livro, Urupês, e também Cidades mortas e Idéias de Jeca Tatu. Três anos mais tarde, já sob a égide da Monteiro Lobato & Cia. Editores, o escritor lança sua primeira obra dedicada especificamente às crianças: Narizinho arrebitado. Na capa, aparecem os dizeres “segundo livro de leitura para uso das escolas primárias”. Em um bilhete sem data [maio de 1921], Lobato (1968, t.II, p.232) pede pressa e dá instruções ao amigo Rangel de como fazer as adaptações: “Recebi Tempestade. Vai traduzindo os outros contos shakespearianos, em linguagem bem simples, sempre na ordem direta e com toda a liberdade. Não te amarres ao original em matéria de forma – só em matéria de fundo. Quanto ao D. Quixote, vou ver se acho a edição de Jansen”. A leitura das adaptações de Carlos Jansen vai desencadear o seu projeto de publicar traduções dos clássicos adaptadas para as crianças. Em carta de 17 de junho de 1921 (ibidem, p.233), ele traça um plano de edição dessas obras: Pretendemos lançar uma série de livros para crianças, como Gulliver, Robinson, etc., os clássicos, e vamos nos guiar por umas edições do velho Laemmert, organizadas por Jansen Müller. Quero a mesma coisa, porém com mais leveza e graça de língua. Creio até que se pode agarrar o Jansen como “burro” e reescrever aquilo em língua desliteraturizada – porque a desgraça da maior parte dos livros é sempre o excesso de “literatura”. Comecei a fazer isso, mas não tenho tempo; fiquei no primeiro capítulo, que te mando como amostra. Quer pegar a empreitada? A verba para cada um não passa de 300$, mas os livros são curtinhos e o teu tempo aí absolutamente não é “money”. Coisa que se faz ao correr da pena. É só ir eliminando todas as complicações estilísticas do “burro”. Se não tens por aí essas edições do Laemmert, mandarei.
O convite formulado a Rangel para esse fazer as adaptações pode instaurar uma dúvida quanto à verdadeira
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autoria das traduções assinadas por Lobato. Na sequência de cartas trocadas pelos dois, percebe-se que Rangel não deu cabo ao trabalho proposto. Isso fica claro na carta sem data [julho de 1924] (ibidem, p.266) na qual o escritor cobra o atraso do trabalho ofertado três anos antes:
Laemmert. Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim morar, como morei no Robinson e n’Os Filhos do Capitão Grant.
Em 1927, Lobato é nomeado adido comercial nos Estados Unidos, de onde só regressará em 1931. Nesse período, pouco produziu literariamente falando. Em carta de 26 de junho de 1930 (ibidem, p.322), de Nova York, ele fala dos seus planos de voltar a escrever para crianças:
Fechamos a torneira aos poetas e aos literatos nacionais de segunda classe. Só editaremos gente de primeira e as boas coisas da literatura universal. Mas insisto em obter traduções como as entendo. Essas traduções infamérrimas que vejo por aí, não as quero de maneira nenhuma. Mas é difícil... D. Quixote você pegou, mas parou no começo. E há as Viagens de Gulliver, e as Mil e Uma Noites, e Peter Pan – todas essas coisas que vêm galhardamente resistindo ao roçagar dos tempos.
Em carta de 11 de janeiro de 1925 (ibidem, p.275), Lobato volta a reclamar as traduções encomendadas, sugerindo a Rangel usar “estilo água de pote, hein? E ficas com liberdade de melhorar o original onde entenderes”,22 mencionando um novo projeto: “Estou a examinar os contos de Grimm dados pelo Garnier. Pobres crianças brasileiras! Que traduções galegais! Temos de refazer tudo isso – abrasileirar a linguagem”. Nesse mesmo ano, saiu sua primeira adaptação de obra estrangeira para crianças: Meu cativeiro entre os selvagens do Brasil, de Hans Staden, que obteve sucesso extraordinário, vendendo oito mil exemplares em apenas três meses, em publicação da Cia. Editora Nacional,23 de propriedade do próprio Monteiro Lobato e do sócio Otales Marcondes Ferreira. A enorme acolhida recebida pela tradução de Hans Staden motivou Lobato a se dedicar com mais afinco às adaptações de obras estrangeiras para o público infantil. Desejo já manifestado em 7 de maio de 1916, em carta dirigida ao amigo Rangel: Ando com idéias de entrar nesse caminho: livro para crianças. De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças, um livro é todo um mundo. Lembro-me como vivi dentro do Robinson Crusoe do
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Também vou fazer mais livros infantis. As crianças sei que não mudam. São em todos os tempos e em todas as pátrias as mesmas. As mesmas aí, aqui e talvez na China. Que é uma criança? Imaginação e fisiologia; nada mais. Sabe que concentrei um Robinson? Otales encomendou-mo e fi-lo em cinco dias – um recorde: 183 páginas em cinco dias, inclusive um domingo cheio de visitas e partidas de xadrez. 22
Em outra carta, de 7 de outubro de 1925, Lobato (1968) volta a oferecer o trabalho de tradução ao amigo: “Vamos ter muito trabalho de traduções, e se dispões de tempo e tens gosto para traduzir, conversaremos”.
23
Sobre o sucesso da nova editora, Lobato (1968, t.II, p.282) escreveu, em 8 de novembro de 1925: “A nova companhia está fundada e com todas as rodas girando. Eu e o Otales só. Primeiro livro dado: o meu Hans Staden. Outros virão. Em três ou quatro anos a nossa Cia. Editora Nacional estará maior que o Pão de Açúcar – e sólida como ele”.
24 A data correta da publicação do romance na Inglaterra é 1719. Muito provavelmente, por um erro de composição tipográfica, a data saiu com números trocados. Causa perplexidade constatar que esse erro perdurou em várias edições e durante muito tempo. A 8ª edição, por exemplo, publicada pela editora Brasiliense, em 1958, ou seja, 27 anos após a primeira, ainda trazia o subtítulo da obra com essa data errada.
A adaptação foi publicada em 1931 pela Cia. Editora Nacional. Apesar das inúmeras buscas, não consegui encontrar essa primeira edição. A mais antiga que tive em mãos, também adquirida em sebo com o auxílio da internet, foi a terceira, também publicada pela mesma editora em 1938, contendo 124 páginas. O exemplar então adquirido não trazia a capa original, que foi substituída por uma capa dura comum. Infelizmente, esse procedimento de encadernar uma obra antiga sem preservar a capa original impede que pesquisador conheça esse importante paratexto da obra. Na folha de rosto dessa edição constam os seguintes dados: ROBINSON CRUSOE, escrito em negrito e caixa alta, sem acento / AVENTURAS DUM NAUFRAGO PERDIDO NUMA ILHA DESERTA, ESCRITAS EM 179024 / por / DANIEL DEFOE / ADAPTADAS PARA AS CRIANÇAS / por / MONTEIRO LOBATO / TERCEIRA EDIÇÃO / COMPANHIA EDITORA NACIONAL / SÃO PAULO – RIO DE JANEIRO – RECIFE – PORTO-ALEGRE / 1938. Como se percebe, diferentemente do que ocorreu com a adaptação de Carlos Jansen, essa traz o nome do autor
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original em destaque antes do nome do adaptador. Na página imediata, encontra-se o índice dos capítulos, que obedece à seguinte configuração, com os respectivos números de página: Robinson Crusoe .............................
7
Faço uma grande canoa .................. 58
Minha primeira viagem ...................
9
Meu guarda-sol ............................... 60
Começo a ver o mundo ................... 11
Uma perigosa aventura .................. 62
Mais uma viagem ............................ 13
Uma voz humana ............................ 65
O naufrágio ..................................... 15
Sinto-me feliz como um rei ............ 67
Sou lançado à praia ......................... 17
Viro padeiro .................................... 70
Minha primeira noite ...................... 19
Sinais na areia ................................. 73
Meu primeiro amanhecer ............... 21
Novos sustos ................................... 76
Faço uma jangada ........................... 23
Nova descoberta ............................. 79
A Jangada vai para a terra .............. 25
A gruta ............................................ 82
Descubro que estou numa ilha ....... 27
Selvagens! ....................................... 84
Aparece-me uma visita ................... 29
Novo naufrágio ............................... 87
Descubro mais cousas ..................... 31
O navio perdido .............................. 90
Começo meu castelo ....................... 33
Um estranho sonho ........................ 92
Primeira caçada ............................... 36
Sexta-Feira ...................................... 97
Robinson não pode parar ................ 39
Sexta-Feira aprende muita cousa ... 100
Um grande susto ............................. 41
Novo bote ....................................... 105
Exploração da ilha .......................... 43
Uma vela no horizonte ................... 108
Preparações para o inverno ............ 45
Rasgo de ousadia ............................ 111
Meu calendário ............................... 47
Uma dia inquieto ............................ 114
Planto alguns grãos ......................... 49
O governador da ilha ...................... 117
Uma longa viagem .......................... 51
Nova roupas .................................... 121
Primeira colheita ............................. 53
Fim .................................................. 123
Viro paneleiro .................................. 56
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Ao longo da narrativa, aparecem três gravuras coloridas de página inteira, que vêm acompanhadas de frases tiradas do texto, a saber: página 37, “minha fome era grande”; página 69, “resolvi construir uma canoa”; e página 101, “um dia inquieto”. As ilustrações em preto e branco são abundantes: uma no início e outra no final de cada capítulo. Pela quantidade de capítulos (47) e grande número de ilustrações, o texto de Lobato ficou bastante reduzido. Por isso, não deve espantar o fato de ele ter concluído o trabalho em apenas cinco dias, conforme afirmou. Sua história começa assim: Meu nome é Robinson Crusoe. Nasci na velha cidade de York, onde há um rio muito largo cheio de navios que entram e saem.
Tal como o original inglês, Lobato (1938, p.9) utilizou a primeira pessoa para contar as façanhas do náufrago, que desobedece às ordens paternas de não se aventurar pelos mares. Na adaptação, a presença do pai foi diminuída pela figura da mãe, personagem mais presente no cotidiano de uma criança: “Muito cedo me convenci que minha mãe tinha toda a razão. Vida de marinheiro é vida pesada. Não sobra tempo para brincar, a bordo de um navio, ou pelo menos não sobrava a bordo do meu navio”. Lobato preferiu deixar o encontro de Crusoe com selvagem Sexta-feira para ocorrer próximo do final da narrativa. Fazendo uso constante do linguajar infantil, ele observa a estranha aparição com os olhos de uma criança: “Tremia como geléia, o coitado”. Usando frases curtas e estilo direto, ele descreve a figura do selvagem (ibidem, p.98): Era um belo índio. Não muito grande, mas alto e forte. Cabelos compridos e negros. Testa alta e larga. Olhos muito brilhantes. Tinha a face redonda e cheia, o nariz bem formado, os lábios finos, os dentes alvos como marfim. A pele não mostrava nem o tom negro dos africanos, nem o tom amarelo dos índios do Brasil. Lembrava a cor das azeitonas.
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O último capítulo, que leva o sintético e trivial título “Fim”, Crusoe narra sua volta a Londres, levando seu amigo Sexta-feira: “nada do mundo o faria separar-se de mim”. Aqui também, Lobato suprimiu a figura do pai do índio. Ao final, o protagonista ganha muito dinheiro com a produção de fumo de sua fazenda no Brasil, e termina a narrativa, antevendo novas aventuras (ibidem, p.124): “Estava rico, pois. Se quisesse passaria o resto dos meus anos na ociosidade. Mas a ociosidade me era odiosa. Pus-me a viajar, a ver mais mundo – e novas e extraordinárias aventuras sucederam. Essas, porém, não cabem num livro, que está no fim. Adeus”. A adaptação de Lobato alcançou dezenas de edições ao longo dos 77 anos desde o primeiro lançamento. Até hoje ela é reeditada e pode ser encontrada facilmente nas livrarias e até em bancas de jornal e revista. Existem atualmente cerca de trinta diferentes adaptações25 ou traduções completas disponíveis nas livrarias brasileiras. A de autoria de Monteiro Lobato ainda permanece entre as mais vendidas. Após o sucesso alcançado por Robinson Crusoe, o brasileiro ficou bastante estimulado para traduzir e adaptar em quantidade. Em carta datada de 16 de junho de 1934, Lobato (1968, p.327) dá conta do que havia produzido em apenas seis meses: Tenho empregado as manhãs a traduzir, e num galope. Imagine só a batelada e janeiro até hoje: Grimm, Andersen, Perrault, Contos de Conan Doyle, O homem invisível de Wells e Pollyana Moça, o Livro da Jungle. E ainda fiz Emília no País da Gramática. Tudo isto sem faltar ao meu trabalho diário na Cia. Petróleos do Brasil, com amiudadas visitas ao poço do Araquá.
Já se antecipando às criticas que certamente viriam a respeito da sua reconhecida falta de comprometimento para com texto original, Lobato se defende com antecedência, ao final dessa mesma carta (ibidem, p.328): “Eu às vezes até me revolto de dar à bola em certos trechos de
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Diógenes Carvalho (2006) elaborou tese de doutorado na qual estudou as adaptações feitas por Carlos Jansen, Monteiro Lobato e Ana Maria Machado.
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difícil tradução, ao lembrar-me do que é a média do público. Mas sou visceralmente honesto na minha literatura. Duvide quem quiser dessa honestidade. Eu não duvido. Nem você”. Essa facilidade e essa rapidez para traduzir já foram mencionadas pelo próprio Lobato quase três décadas antes. Em carta de 10 de junho de 1908, ele escreveu: “[...] ando assoberbado de maçadas, que aliás rendem alguma coisa, sobretudo as traduções do inglês. Dito-as da rede e Purezinha escreve, e assim vai rápido”. Em 15 de abril de 1940, em outra carta (ibidem, p.334), Lobato volta a escrever sobre sua atividade de tradutor: “Continuo traduzindo. A tradução é minha pinga. Traduzo como o bêbedo bebe: para esquecer, para atordoar. Enquanto traduzo, não penso na sabotagem do petróleo”. O ato de traduzir era um complemento à sua atividade de autor de livros infantis. Quando traduzia, isto é, quando adaptava as obras estrangeiras, ele pensava apenas no público infantil. Em uma de suas últimas cartas a Godofredo Rangel, escrita em 19 de dezembro de 1945, pouco menos de três anos de morrer, Lobato fornece ao amigo a sua receita de livro infantil (ibidem, p.371): Para ser infantil tem o livro de ser escrito como o Capinha Vermelha, de Perrault. Estilo ultra direto, sem grânulo de “literatura”. Assim: Era uma vez um rei que tinha duas filhas, uma muito feia e má, chamada Teodora, a outra muito bonitinha e boa, chamada Inês. Um dia o rei, etc. A coisa tem de ser narrativa a galope, sem nenhum enfeite literário. [...] Não imaginas a minha luta para extirpar a literatura dos meus livros infantis. A cada revisão nova nas novas edições, mato, como quem mata pulgas, todas as “literaturas” que ainda as estragam. Assim fiz no Hércules, e na segunda edição deixá-lo-ei ainda menos literário do que está. Dois da primeira edição é que faço a caçada das pulgas – e quantas encontro, meu Deus!
A intensa atividade de adaptar os clássicos ao gosto das crianças, apesar de se tornar muito extenuante, pro-
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porcionava enorme prazer a Monteiro Lobato. Para confirmar essa constatação, tomo emprestada sua própria palavra para a citação final deste trabalho, e que poderia ser utilizada também como epígrafe: Que delícia remodelar uma obra d’arte em outra língua!
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(Des)Montagem e hibridação genérica em Operação silêncio, de Márcio Souza André Soares Vieira*
RESUMO: Partindo dos conceitos de montagem no cinema, este trabalho objetiva mapear algumas das categorias problematizadas em Operação silêncio, de Márcio Souza, especialmente no que respeita à hibridação dos gêneros em um processo de montagem literária. Ao fragmentar a narrativa, justapondo elementos oriundos de gêneros discursivos diversos (ensaio, crítica cultural, romance e roteiro cinematográfico), o texto de Souza apresenta-se como um mosaico de linguagens imbricadas que responde ao contexto histórico-social de sua época. PALAVRAS-CHAVE:
Montagem literária, gêneros, hibridação,
Márcio Souza. ABSTRACT:
This article aims to analyse some of the categories highlighted in Márcio Souza’s novel Operação silêncio, especially in what it respects to the collage/assembly technique in a process of literary montage. When breaking up the narrative, juxtaposing deriving elements of different discursive orders (essay, cultural criticism, novel and cinematographic script), the text by Souza is presented as a mosaic of multiple languages that answers to the social and historical context of its time.
KEYWORDS:
* Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas e do Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria (RS).
Literary montage, genres, hybrid, Márcio Souza.
Procedimento técnico desenvolvido como etapa essencial de produção cinematográfica, a montagem diz respeito, grosso modo, à organização dos planos de um filme em termos de ordem e de duração. Como recurso capaz de traduzir a fragmentação/justaposição de gêneros distintos no seio da narrativa moderna e contemporânea, a montagem foi paulatinamente assimilada, desenvolvida e desconstruída por escritores que nela vislumbraram a possibilidade de uma escritura híbrida. Nesse sentido, a técnica
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da montagem aproximar-se-ia da colagem como procedimento de composição intertextual, dando origem, na literatura, a uma escritura de caráter híbrido ao incorporar fragmentos de várias instâncias discursivas, de contextos literários e não literários. O caráter móvel da montagem permitiu a diversos autores seu uso especializado, desde a fase inicial do cinema, seja por intermédio da justaposição de elementos díspares, seja pela fragmentação espaço-temporal do romance. Neste trabalho, analisaremos o modo como um romance do escritor brasileiro Márcio Souza, Operação silêncio, de 1979, opera com tais categorias ao problematizar de forma complexa as relações entre o cinema e a literatura, o que aponta para um processo de implosão dos gêneros, bem como de suas fronteiras. Durante o período que caracterizou o chamado cinema narrativo hollywoodiano, a partir de 1914, assiste-se ao domínio da montagem “invisível”, na qual a continuidade é realçada e o corte, neutralizado. É o ápice da intenção ilusionista, herança da narrativa tradicional realista sobre a qual o cinema dos primeiros tempos se apóia, sobretudo com os filmes de Griffith. O espectador tende a ser absorvido pelo sistema formal que procura apagar os traços que o denunciam como discurso trabalhado: uma espécie de “cinema-janela” que busca a autenticidade objetiva do real. Nesse sentido, a imagem é vista como a vida, e o cinema como janela aberta para o mundo. A partir de 1928, Eisenstein passa a conceber um uso especial da montagem, agora tornada visível. As disjunções e descontinuidades são realçadas, o que vem a relativizar o caráter ilusionista da narrativa cinematográfica. Para o teórico e cineasta russo, o cinema é a montagem. Nessa perspectiva, a linguagem do cinema se aproxima dos novos experimentos com a linguagem literária já em voga nas duas primeiras décadas do século XX. Para Haroldo de Campos (s. d.), a montagem eisensteiniana seria vista como uma sucessão de imagens fragmentárias ordenadas, de cuja sequência ou colisão surgiria uma nova imagem maior do que as imagens separadas ou diferente delas. Para
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Segundo Haroldo de Campos (s. d.), Eisenstein, depois de um encontro com James Joyce, ficou entusiasmado com a ideia de filmar Ulysses, que lhe parecia feito sob medida para a aplicação de sua teoria da montagem.
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as vanguardas históricas do início do século XX, a montagem caracterizou-se como forma de articular signos, sentenças e sequências na fragmentação e na simultaneidade, justapondo e relacionando elementos heterogêneos sem ligação direta entre eles. Na literatura, o uso de formas da montagem vem revelar um processo operador de fragmentos que se apoia no corte e faz fluir múltiplas direções significantes (em James Joyce, por exemplo). De certo modo, remete ao padrão de montagem de Eisenstein.1 A utilização de princípios da montagem cinematográfica na narrativa brasileira tem em Oswald de Andrade um de seus precursores. Ao optar por uma escrita telegráfica cuja articulação entre os elementos compositivos se dá por meio de pausas e não por conexão, Oswald rompe com a antiga retórica, concebendo uma sintaxe despojada, fragmentada e telegráfica, acentuada pela técnica do corte. Percebe-se, portanto, que o uso das técnicas de montagem normalmente esteve ligado à desmontagem e à fragmentação, ao jogo propiciado pela dispersão dos elementos da narrativa no intuito de se romper com a ordem linear do discurso, avatar da narrativa real-naturalista do século XIX. É nesse contexto que Márcio Souza pode ser considerado um dos maiores herdeiros da estética fragmentária de Oswald de Andrade, caracterizada pela descontinuidade cênica e pela busca do simultaneísmo das ações. Já em seu primeiro romance, Galvez, imperador do Acre, de 1976, Souza faz uso de uma linguagem telegráfica calcada em pequenos quadros que remetem a cenas ou tomadas de um filme. O caráter fragmentário do romance se aproxima, com efeito, das técnicas oswaldianas, e muitos críticos já apontaram as similitudes entre Galvez e Serafim Ponte-Grande e Memórias sentimentais de João Miramar. É, no entanto, com Operação silêncio, de 1979, que Márcio Souza leva ao paroxismo suas preocupações formais. Se a região amazônica serve de palco para Galvez, imperador do Acre e Mad Maria, agora é a vez da cidade de São Paulo no ano de 1968, quando o autor era estudante da antiga Faculdade de Filosofia da USP. A complexidade
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do romance advém de sua fragmentação espaço-temporal, cujo único fio condutor é a figura de seu protagonista, o cineasta Paulo Conti. Operação silêncio focaliza o cinema em sua relação com a política. O Cinema Novo é o centro das atenções de Paulo Conti. Em suas discussões, o cineasta “se indaga sobre a criação de filmes que criticam o capitalismo, em meio a modos de produção capitalistas. Ele critica o Cinema Novo, por ter se apoiado na exploração da mais valia” (Johnson, 2005, p.128-9). O romance discute ainda a relação entre a arte, sobretudo o cinema, e a revolução, o papel social do escritor e do cineasta no auge do regime militar e a necessidade de diminuir a distância entre o artista e sua época. A fim de discutir todos esses elementos da cultura nacional, Operação silêncio se apresenta como uma obra híbrida, misto de romance, ensaio, crítica cultural e roteiro cinematográfico. A dedicatória do romance exemplifica com bom humor a relação com o cinema: “À Ida, em 24 fotogramas por segundo”. A multiplicidade de discursos e gêneros justapostos de maneira fragmentária se traduz por cortes no tempo e no espaço diegéticos, alternando diálogos entre o protagonista e as demais personagens com trechos do roteiro de um filme histórico escrito por Conti: os dois planos narrativos se imbricam sem nenhuma divisão. A obra também evidencia as reflexões do protagonista, espécie de duplo do autor como crítico da cultura nacional, focalizando de forma ensaística o papel e a responsabilidade dos meios da indústria cultural, em particular o cinema, sua utilização política, a figura emblemática de Glauber Rocha. O romance divide-se em duas partes: “O sobrevivente Paulo Conti” e “O rio de sangue”. Ao longo da primeira parte, apresentam-se múltiplos fragmentos, alguns ocupando apenas uma linha e contendo anotações breves precedidas por subtítulos que enfocam frases da China maoísta da era da Revolução Cultural: “O Inimigo é Induzido a Cometer Erros: Beirando os trinta anos, estávamos muito longe de aceitar uma confissão de impotência” (Souza, 1985, p.14).
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Percorrendo as ruas de São Paulo, a caminho do apartamento de Melusine, a “Embaixatriz”, produtora de seu próximo filme, Conti relembra as conversas que tinha com amigos, sobretudo com PPP, crítico de cinema engajado na luta armada contra a ditadura. Em um estilo extremamente cinematográfico, a narrativa se faz pela alternância dos planos ficcionais, entre a crítica ensaística, as reflexões acerca da literatura, do cinema, do teatro e do tropicalismo e os eventos diegéticos. Se Opor à Guerra Contra-Revolucionária por Meio da Guerra Revolucionária: As prostitutas na calçada do cemitério; 1969; Stanislaw Ponte Preta estava morto; na mais íntima de nossas conjecturas, e neste ponto todos pareciam concordar, o fracasso; a todos os momentos uma voz se referia a isso, desnorteada. (ibidem, p.20) Nossa Tarefa Presente É Organizar o Aparato do Estado Popular Chinês: O impacto da criatividade oswaldiana não podia se confundir com indignação; Caetano Veloso trazia a guitarra elétrica para a cena e estilhaçava; os concretistas na base teórica do tropicalismo; os baianos na paulicéia mostrando o jogo e destruindo mitos. (ibidem, p.99)
O processo de montagem se apresenta de maneira caótica, intercalando e unindo elementos de espaço e tempo distintos como em uma colagem de cenas. Trata-se aqui do uso da montagem paralela, recurso característico da linguagem do cinema, responsável pela espacialização do tempo e pela temporalização do espaço na sintaxe fílmica. Os diálogos entre a Embaixatriz e o general Braylly são intercalados às conversas de Conti com seus companheiros, separados temporal e espacialmente: – Braylly, sempre tão conservado! – disse a Embaixatriz retirando a mão que acabava de ser beijada pelo general [...]
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– O pessoal todo fodido, Paulo – diz Abelardo, os óculos sujos de poeira. – Não dava para fazer outra coisa, depois da derrota era mais sensato reconhecer as causas. [...] – E você? – diz o General Braylly. – A mais bela Embaixatriz em Baden-Baden. Ainda conserva a mesma pele de romã, os mesmos tornozelos felinos. – Paulo está lendo um livro de Cony – disse Patrícia como se tivesse fazendo uma denúncia. – Pele romã, tornozelos felinos? – disse a Embaixatriz. – Deixa de bobagens, Braylly. – É Pessach: a travessia, conhece? – Abelardo não conhecia e pegou o livro olhando para Patrícia que está deitada na cama irritada [...] – Eu estou falando a verdade, querida – disse o General Braylly. (ibidem, p.138)
Se a primeira parte do romance aponta claramente para uma linguagem fragmentada em sua estruturação sincopada e facetada em planos díspares, montados e desmontados em uma sequência não linear, a segunda parte mostra uma estrutura ainda mais complexa. O estilhaçamento da narrativa que em “O sobrevivente Paulo Conti” corta, interpenetra e desdobra a sintaxe literária na sucessão dos fragmentos dá lugar a uma escritura em bloco, compacta em sua apresentação. No entanto, estamos longe do estilo linear de construção narrativa, pois logo se percebe o largo uso que faz o autor de longas sequências sem pontuação ou marcação de parágrafos, intercaladas por diálogos e diferentes termos da técnica cinematográfica (travelling, off, plano americano, contracampo, contreplongé, câmera lenta etc.) quando da inserção do roteiro concebido por Paulo Conti. Plano de conjunto das icamiabas que atravessam uma viela. Um soldado espanhol, embriagado, agarra uma das guerreiras. Lutam. A outra abre a garganta do soldado com sua adaga. Plano de conjunto das duas icamiabas na porta do Corincancha, entram. Sérgio: a organização de você era um grupelho, companheiro. Paulo: olha aqui, amigo, esta
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não é a hora para esse tipo de discussão. Interior do Corincancha, noite. Primeiro plano de uma das icamiabas [...] Plano geral das duas icamiabas que entram na sala de grandes celebrações [...] Rodolfo está caído no chão e agoniza. Um policial da equipe de captura do DOI-CODI abaixa-se para ver Rodolfo de perto [...] Plano de conjunto das icamiabas que se aproximam de uma parede em ruínas, onde havia um nicho com imagens sagradas. Travelling lento em direção ao nicho quase demolido [...] Rodolfo recebeu uma rajada de metralhadora que quase o cortou pelo meio. (ibidem, p.152)
O filme de Conti, chamado Rio de sangue, trataria do massacre dos incas pelos espanhóis. Tornam-se evidentes os paralelos entre a violência perpetrada ao povo inca pelos conquistadores e a violência imposta pela ditadura militar à população brasileira. Rio de Sangue igualmente constitui o título da segunda parte de Operação silêncio. Aqui o imbricamento das partes opera de forma direta, sem marcações ou qualquer outra forma de divisão. O início da segunda parte apresenta-se como a continuação direta da última frase da primeira, quando Conti finalmente chega ao apartamento da Embaixatriz e lá encontra Maria, sua empregada e protegida: de um só fôlego porque ao chegar encontrou a porta aberta por onde foi entrando e viu ela de costas sem nada perceber do que estava acontecendo enquanto ele se aproximava com os passos abafados pelo ruído do aspirador de pó até que finalmente ele chegou perto abraçando-a pelas costas apertando-a de uma maneira que se poderia chamar de lúbrica enquanto cheirava-lhe o pescoço suado e furtivamente acariciava-lhe os seios por tantas vezes quanto lhe veio à cabeça acariciar já que em 1536 Manco Capac Imperador dos Incas tentara libertar seu povo dos invasores espanhóis e foi violentamente reprimido pelas hordas de Francisco Pizarro e foi obrigado a capitular não se sabendo ao certo o que aconteceu a este libertador porque mito e realidade se confundem na História do Peru e este filme é um filme mítico e real dedicado à memória de todos os incas. (ibidem, p.111)
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O caráter disjuntivo da obra de Souza vem refletir a situação dividida do protagonista-cineasta em um país igualmente dividido, do artista hesitante entre a ação política e a luta por meio da arte. A fragmentação do texto, justapondo diferentes discursos por intermédio da colagem de elementos oriundos da crítica, do ensaio, do romance e do filme, tende a criar um espaço anti-ilusionista ao serem realçadas as descontinuidades e disjunções tão caras à estética eisensteiniana de montagem. Trata-se, com efeito, de uma escritura híbrida, descontínua e não linear caracterizada pelo simultaneísmo das ações que envolve pessoas diferentes em tempos e espaços também distintos e apontando para uma forma lúdica de montagem e desmontagem do texto literário. Em Operação silêncio, percebe-se a atualização de elementos da montagem cinematográfica mediante a inserção do cinema na técnica narrativa e na própria ficção, o que vem comprovar o espaço privilegiado que o gênero romance pode ocupar no âmbito dos experimentos com a linguagem. Segundo Mikhail Bakhtin (1993, p.124), o romance admite introduzir em sua composição gêneros diversos, literários ou extraliterários: Em princípio, qualquer gênero pode ser introduzido na estrutura do romance, e de fato é muito difícil encontrar um gênero que não tenha sido alguma vez incluído num romance por algum autor. Os gêneros introduzidos no romance conservam habitualmente sua elasticidade estrutural, a sua autonomia e a sua originalidade lingüística e estilística.
Nesse sentido, alguns gêneros especiais chegam a determinar a estrutura do conjunto, criando variantes particulares do gênero romanesco: a confissão, o relato de viagens, a biografia, as cartas, entre outros. Todos eles podem não apenas ser introduzidos no romance como elemento estrutural básico, mas também determinar a forma do romance como um todo. É o caso do romance-confissão, do romance-diário, do romance epistolar etc. A essas categorias apontadas por Bakhtin, poderíamos acrescentar os
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cine-romances de Alain Robbe-Grillet e de Marguerite Duras, bem como o romance-teatro de Sérgio Sant’Anna (A tragédia brasileira) e o romance-ensaio-roteiro de Márcio Souza, Operação silêncio. Para Janet Paterson (2001), o entrecruzamento genérico deu lugar a uma multiplicidade de representações textuais, abrindo novos campos de criação literária, sendo a intertextualidade uma de suas numerosas práticas. Se, por um lado, tal mistura de discursos e de gêneros atinge seu ponto culminante e criativo ao longo das três ultimas décadas do século XX, por outro, a prática de hibridação literária não é um fenômeno recente, encontrando seus antecedentes em escritores como Defoe, Laclos, Sterne, entre vários outros. Tampouco são novos os discursos críticos e teóricos acerca do problema, como o demonstram os trabalhos de Bakhtin (1993, p.127) sobre a interação dos gêneros no romance. Para o teórico russo, os gêneros intercalados representam uma das formas mais importantes de introdução e organização do plurilinguismo no romance: o discurso do outro na linguagem de outro, cuja palavra é bivocal, pois serve a dois locutores ao mesmo tempo e exprime a intenção direta da personagem que fala e a intenção refrangida do autor. Nesse discurso, segundo Bakhtin, há duas vozes, dois sentidos, duas expressões dialogicamente correlacionadas. Assim, uma vez que a prosa romanesca é estranha à ideia de uma linguagem única, indiscutível e sem reservas, a consciência da prosa deve orquestrar suas próprias intenções semânticas. “É apenas numa das muitas linguagens do plurilingüismo que essa consciência se sente comprimida, um único timbre lingüístico não lhe basta” (Bakhtin, 1993, p.127). O emprego de gêneros enquadrados, como o diário, o relato de viagens, a correspondência ou a biografia, permitiu, portanto, a elasticidade do romance, ampliando os horizontes literário e linguístico e ajudando a literatura na conquista de novos mundos de concepções verbais, mundos esses já percebidos e parcialmente conquistados em esferas extraliterárias da vida linguística.
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A hibridação não é, portanto, um fenômeno recente. No entanto, tal prática assumiu novos contornos a partir da introdução do conceito de montagem cinematográfica, no início do século XX, quando da redefinição de procedimentos de inserção de formas que fracionam a estrutura linear do discurso. Além disso, conforme Paterson (2001), a implosão dos gêneros, representada nos híbridos romanescos, estaria diretamente ligada à poética pós-moderna como reivindicação da multiplicidade e da heterogeneidade próprias ao pós-modernismo. Note-se ainda que as práticas híbridas perpassam os mais diversos domínios artísticos, como as artes visuais, a arquitetura, o cinema, bem como os campos epistemológicos: Ce qui rend cette pratique particulièrement significative de nos jours, ce qui sollicite notre attention à son égard, ce qui nous convie à en examiner les formes et le sens, c’est la vitalité et le foissonement de l’hybride dans la fiction contemporaine. Tout se passe comme si le mélange des genres avait produit, depuis à peu près les années soixante, une nouvelle effervescence créatrice dans de nombreux pays. On ne peut guère parler de genre marginal, tant l’hybride s’est imposé à une échelle internationale.2 (ibidem, p.83)
Em Operação silêncio, o emprego de procedimentos advindos da montagem e desmontagem do discurso, bem como a hibridação dos gêneros representam uma prática transgressiva que produz uma ruptura com relação às normas do romance em sua forma tradicional. Com efeito, ao pensarmos em uma concepção de gênero literário normativo, o texto de Márcio Souza renuncia aos princípios de homogeneidade, de unidade totalizante e de códigos do conceito de gênero. Entretanto, ao fragmentar a narrativa, montando e desmontando o discurso e inserindo a crítica cultural e a linguagem cinematográfica do roteiro no âmbito da própria diegese, Márcio Souza corrobora a tese bakhtiniana do híbrido como mecanismo capaz de ajudar a literatura na conquista de novos mundos de concepção verbal. Nesse sentido, entre dissolução do literário e sua renovação,
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“Um ponto de encontro segundo o qual a implosão dos gêneros constituiria ao mesmo tempo a desintegração de uma concepção normativa do romance e o advento de uma outra forma de escritura.”
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“O que torna essa prática particularmente significativa em nossos dias, chamando nossa atenção e nos convidando a examinar suas formas e sentidos, é a vitalidade do híbrido na ficção contemporânea. É como se a mistura de gêneros produzisse, desde os anos sessenta, aproximadamente, uma nova efervescência criadora em diversos países. Não podemos mais falar em gêneros marginais, tamanha a imposição do híbrido em uma escala internacional.”
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haveria não uma oposição, mas “un point de rencontre selon lequel l’éclatement des genres constituerait à la fois la désintégration d’une conception normative du roman et l’avènement d’une autre forme d’écriture”3 (Paterson, 2001, p.87). Longe de “dissolver o literário”, ou de ilustrar a tese de declínio do romance, tornado ininteligível ou incoerente, textos como o de Márcio Souza apontam, por meio de suas estruturas heterogêneas e pela recusa em diferenciar o literário do não literário ou do extraliterário, para a vontade de renovação dos procedimentos romanescos. O híbrido apresenta-se, assim, como uma forma especial de experimentação que investe o texto de sentido em vez de esvaziálo. No caso específico de Operação silêncio, o caráter fragmentário da obra, a relativa autonomia dos “capítulos” da primeira parte e o emprego de práticas de montagem que justapõem, cortam e recortam fragmentos são decisivos para a compreensão do significado do texto. Conforme percebeu Randal Johnson (2005, p.131), “Operação Silêncio coloca a situação do cinema brasileiro num contexto histórico mais amplo, discutindo o papel e a responsabilidade de intelectuais frente à realidade do subdesenvolvimento”. Nessa perspectiva de análise, para Johnson (2005), o romance de Márcio Souza problematiza o debate sobre as complexas relações entre literatura, cinema e política durante o período da ditadura, dissecando de forma aguda as perplexidades e dilemas de toda uma geração que viveu a ambiência opressora do regime militar brasileiro. A rapidez com que ocorrem os acontecimentos estéticos, políticos e sociais da época, marcada pela contracultura e pelos movimentos de protesto ao regime militar, contamina o discurso do narrador que não se permite ordená-los de forma linear. A sintaxe tradicional é abandonada em prol da velocidade e da fragmentação desordenada numa espécie de jorro contínuo de perplexidades políticas, existenciais e cinematográficas do protagonista. Ao retratar uma era conturbada da história brasileira, na qual os direitos elementares do indivíduo são violenta-
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mente cerceados, o autor apresenta sua visão dos acontecimentos na perspectiva de um personagem-cineasta dividido quanto ao modo de luta contra o sistema. As contradições são percebidas nos atos do próprio Conti, ao tentar conseguir patrocínio para seu filme junto à Embaixatriz e ao general Braylly, representantes de uma elite que colabora com o regime. Apresenta, dessa forma, o esfacelamento das consciências individuais por um regime opressor e a dificuldade de optar por uma ação efetiva. PPP detestava ela [a Embaixatriz] – velha fascista, casou com um burocrata integralista do Itamarati, amigo pessoal de Franco (PPP detestava incondicionalmente o Generalíssimo) e conspirador nazista da rede de informações do Reich: morreu em ação numa noite de 1964, sonhando com todos os comunistas fuzilados –; ela pagava, pouco, mas pagava, três mil pratas por roteiro, trinta a quarenta laudas. Ela gostava de cinema, tinha sido atriz antes de se casar com o Embaixador. (Souza, 1985, p.23)
Os dilemas de Paulo Conti ilustram aquilo que Silviano Santiago aponta em seu ensaio sobre repressão e censura na década de 1970. Para Santiago (1982), em termos quantitativos, a produção cultural brasileira sob a censura não chega a ser afetada em razão da própria natureza da obra de arte e do processo criador que tendem a se reinventar, alimentando-se de tudo em condições adversas. Do ponto de vista econômico, no entanto, o artista tende a sofrer ao ver suprimida sua principal fonte de renda, sobretudo em se tratando de artes mais caras como o teatro e o cinema. “Esse cerceamento econômico pode levar o artista a se aviltar, política e economicamente, ao aceitar cargos ou posições que normalmente não aceitaria, ao endossar conchavos econômicos que, em circunstâncias normais, rejeitaria” (Santiago, 1982, p.49). A fragmentação formal constitui uma das constantes da ficção brasileira dos anos 1970, na tentativa de dificultar a apreensão do sentido e a expressar esteticamente a segmentação do contexto. Operação silêncio surge, no entanto,
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em 1979, em plena abertura política, e se junta a uma série de obras literárias, cinematográficas e teatrais que tentam retratar o período da ditadura militar. É o momento em que explodem as memórias e os testemunhos de participantes da luta armada à ditadura. No mesmo ano, Fernando Gabeira publica O que é isso, companheiro?; em 1980, surge Os carbonários, de Alfredo Sirkis. Em 1981, Leon Hirszman lança Eles não usam black-tie, filme baseado na peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri. Pra frente Brasil, de Roberto Farias, é lançado em 1982. No entanto, Operação silêncio afasta-se das obras citadas ao criticar as ações muitas vezes equivocadas da esquerda para a luta contra o sistema. Questiona a validade da luta armada e das perdas humanas em seu nome e, de forma niilista, mas não conformista, apresenta as contradições e angústias de toda uma época, calcada em modelos culturais igualmente equivocados (o Cinema Novo, por exemplo). O escopo dessas contradições vem coroar a necessidade de novas estratégias formais para a produção literária do final dos anos 1970 e início dos 1980. O texto de Souza se inscreve, portanto, nessa categoria de obras que “desconstroem” uma leitura heróica da história por meio de uma escritura caótica, fragmentária e multidiscursiva. Segundo Tânia Pellegrini (1996, p.178), O que a crítica comumente tem interpretado como negativo nos romances do período que se utilizam das técnicas de reportagem jornalística e dos meios da indústria cultural [...], dando a tais recursos o caráter de subtração ao “intocável” gênero romanesco, na verdade são acréscimos que reformulam a forma-romance, pois a pureza simbólica da linguagem não dá mais conta de narrar um mundo que se tornou inenarrável; não são perdas, são adventos, ao mesmo tempo origem e explicação das transformações pelas quais passa a narrativa. Tais transformações devem ser repensadas em função dos fatos técnicos da situação da época, que exigia formas de expressão adequadas às novas energias literárias.
Trata-se, portanto, de um período extremamente rico e inovador da cultura brasileira, refletindo sobre as incer-
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tezas de toda uma geração quanto ao papel do artista e do intelectual no novo cenário democrático que lentamente se configura. “Ser intelectual neste país é ser aquele que esquece, que vai largando pelo caminho a sua carga, aliviando as costas, como se o ato de ser intelectual não passasse de um meio de transporte” (Souza, 1985, p.84). Paulo Conti representa esse intelectual, hesitante, angustiado e contraditório, protótipo do artista de esquerda no Brasil do final dos anos 1970. Operação Silêncio cria um vínculo explícito entre o romance e o cinema. Lidando, como outras obras do período, com a luta armada contra a ditadura, o livro amplia o contexto para incluir os debates artísticos, também altamente politizados, que caracterizaram a época. (Johnson, 2005, p.124)
O discurso genericamente híbrido e fragmentário da narrativa de Márcio Souza sugere a impossibilidade de se apresentar uma visão totalizante da época retratada, período marcado pela ausência de lógica, harmonia e organicidade, o que se reflete na forma dispersa do texto, nas experimentações com a linguagem e na relativização das fronteiras entre os gêneros, sobretudo o cinema e o ensaio crítico: O livro oferece um retrato crítico do que o narrador chama de “geração de 68”, cujo posicionamento político se desenvolveu no período pós-64. Conti nos informa que nasceu “aos vinte e um anos, em 1966”, quando ingressou em ciências sociais na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, mais ou menos na época em que Márcio Souza entrou no mesmo curso. Há quem tenha visto a obra como um “genial romance autobiográfico”. Embora possa incluir elementos sobre a vida do autor, limitar Operação Silêncio a esse aspecto é extremamente reducionista e ignora a sua caracterização híbrida, uma combinação de roman à clef, ensaio, crítica e roteiro cinematográfico. (ibidem, p.123)
Em se tratando da inserção do gênero ensaio e da crítica cultural no texto de Márcio Souza, cumpre ressaltar a
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importância das páginas dedicadas a Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e Oswald de Andrade, vistos como representantes de um modelo ideal de pensadores da cultura. São também significativos os comentários acerca do cinema, sobretudo a crítica ao Cinema Novo, inicialmente visto como movimento de resistência política e porta-voz do discurso cultural, para finalmente se transformar em cinema comercial: “Então era isso: o cinema dito político de ontem e o cinema perplexo e individualista de hoje eram frutos da mesma semente: ambos reacionários e anêmicos” (Souza, 1985, p.33). A mescla de gêneros em Operação silêncio evidencia a técnica de composição do romance em sua absorção de outras ordens discursivas. Ao mesmo tempo suscita o questionamento do papel do intelectual e do artista em um contexto conturbado da história brasileira em sua crítica às regras e normas do fazer literário. Já a fragmentação e justaposição de elementos separados espacial e temporalmente em termos diegéticos também indicam a impossibilidade em se narrar de modo direto e linear os acontecimentos aludidos, a violência do sistema, a imposição de um regime totalitário e a consciência equivocada da esquerda. Por sua vez, o cinema está presente em Operação silêncio tanto na técnica narrativa quanto na diegese, na ficção mesma, ao ser introduzido um protagonista-cineasta que conta a história de um filme, seu fazer em processo por meio do roteiro, e as reflexões sobre a cultura cinematográfica no Brasil dos anos de chumbo. Finalmente, o texto de Souza atualiza o que Ítalo Calvino (2002, p.12) apontou como sendo uma de suas seis propostas para o nosso milênio: a multiplicidade. Para o escritor e crítico italiano, a multiplicidade partiria da noção de “romance contemporâneo como enciclopédia, como método de conhecimento e principalmente como rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo”. A estética de grande parte da produção romanesca atual estaria inserida nessa perspectiva segundo
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a qual a busca pela multiplicidade constitui o mundo como um sistema de sistemas, cada sistema particular condicionando os demais e sendo condicionado por eles. A presença simultânea dos elementos desses sistemas concorre assim para a determinação de cada evento. É nesse viés que a literatura contemporânea é vista como uma rede imbricada de signos, imagens, registros discursivos diferentes que tendem a impedir ou a dificultar sua inserção nos limites de uma narrativa linear, ordenada e fechada. No entrecruzamento dos diversos discursos – enciclopédicos, ensaísticos, performativos, didáticos, visuais –, a obra de arte mostra seu caráter ambíguo e, ipso facto, aberto. O conhecimento nasce assim da tensão entre exatidão e deformação frenética, segundo os termos de Calvino. A compreensão do texto de Márcio Souza passa necessariamente pelo confronto entre esses dois pólos e só pode ser plenamente realizada quando o leitor se deixa envolver em sua rede de relações e tenta compreender a obra na multiplicidade dos códigos e na ruptura com os padrões de gênero normativos. Longe de se mostrar ininteligível por sua estruturação complexa e imbricada, o romance de Márcio Souza, em sua recusa em distinguir o literário do extraliterário, por seu desejo em renovar práticas de composição narrativa, apresenta-se como espaço possível de experimentação estética. Ao contrário do que afirmam alguns críticos, o processo de hibridação não vem esvaziar o sentido do discurso. O híbrido, conforme sublinhou Paterson (2001), não mais perturba nossos hábitos de leitura e de percepção, mas se inscreve naturalmente em nossos sistemas cognitivos e epistemológicos. Coerente em sua própria incoerência, ao misturar gêneros e discursos diversos, montando e desmontando a narrativa, o texto de Márcio Souza demonstra a capacidade do romance de se renovar constantemente. Se incoerências existem, estamos diante de uma escritura incoerentemente significante em sua essência de obra de arte.
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Referências BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora Unesp, Hucitec, 1993. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. CAMPOS, Haroldo de. Miramar na mira. In: ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo, s.d. JOHNSON, Randal. Operação cinema. Cadernos de literatura brasileira: Márcio Souza. Rio de Janeiro, n.19, p.118-33, 2005. PATERSON, Janet. Le paradoxe du postmodernisme: l’éclatement des genres et le ralliement du sens. In : DION, Robert et al. (Dir.) Enjeux des genres dans les écritures contemporaines. Québec: Nota Bene, 2001. p.81-101. PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. São Carlos: Edufscar, Mercado de Letras, 1996. SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. São Paulo: Paz e Terra, 1982. SOUZA, Márcio. Operação silêncio. São Paulo: Marco Zero, 1985.
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Em busca do leitor – Transcriação e adaptação de Os sertões para o sistema literário argentino Mitizi Gomes*
Os sertões é, talvez, uma das obras mais curiosas da literatura brasileira. Os estudiosos, até hoje, têm dificuldades de enquadrá-la em algum gênero literário, uma vez que o texto apresenta-se híbrido. Assim, podemos afirmar que, por suas peculiaridades, o ato tradutório de Os sertões se torna extremamente complexo. Mesmo assim, a obra de Euclides da Cunha foi traduzida para diversas línguas, e o espanhol foi a primeira delas. Na Argentina, duas traduções diferentes apareceram em um curto espaço de tempo: uma feita por Benjamín de Garay e outra por Enrique Pérez Mariluz, em 1938 e 1941, respectivamente. Tais traduções têm diferenças fundamentais entre si, mas cumprem os fins a que se propõem no momento em que entram no sistema literário argentino. RESUMO:
PALAVRAS-CHAVE:
Literatura comparada, sistema literário, tra-
dução, Os sertões. ABSTRACT: Os sertões
* Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora Universidade Norte do Paraná, Instituto Dimensão, Pelotas (RS).
is perhaps one of the most curious peaces in Brazilian Literature. Scholars still face problems when trying to classify it into a genre since the text presents itself as a hybrid. Thus the complexity in making an act of translation. Whereas this work by Euclides da Cunha has been translated into a great number of languages, Spanish was the first one. In Argentina, two different translations were launched in a short period of time: one by Benjamín de Garay and another by Enrique Pérez Mariluz, in 1938 and 1941, respectively. These translations have fundamental differences between each other, although reaching their purpose at the moment they are included in the Argentinean literary system.
KEYWORDS:
Os sertões.
Compared literature, literary system, translation,
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Assim, a primeira função da tradução (e papel dos tradutores) é fazer circular um texto fora da literatura de origem, disseminá-lo, difundi-lo. O tradutor, por vezes designado de “barqueiro” (ele atravessa um rio), possibilita o acesso não só a uma obra literária gerada em outra língua, mas a costumes e princípios que o texto, traduzido, veicula. (Tania Franco Carvalhal, 2003)
Sabemos que ao traduzir se realiza um exercício de transmissão cultural de grande responsabilidade. Dessa forma, muitos estudiosos voltaram seus olhares para a tarefa de traduzir como sendo uma subversão de fronteiras puramente linguísticas. Nesse sentido, a teoria do polissistema de Itamar Even-Zohar colaborou para que, nos estudos de tradução, houvesse a integração entre o enfoque linguístico e o enfoque cultural, uma vez que a tradução faz parte do “polissistema literário”, e, portanto, faz parte de um contexto sociocultural. A literatura, segundo o autor, é um polissistema composto de sistemas, que por sua vez são constituídos por subsistemas. Tais sistemas se interrelacionam com outros sistemas extraliterários. Para EvenZohar, a literatura traduzida, por pertencer ao sistema, interfere no cânone literário de uma dada cultura, alterando normas, mexendo em hierarquias. Sobre o ato tradutório, María Calzada (2002, p.80) lembra que os textos traduzidos, ao longo da história, foram relegados a um lugar secundário em relação a textos originais, genuínos, autênticos. No entanto, a dignificação da tarefa, segundo Susan Bassnett (apud Calzada, 2002, p.80), aconteceu com a Escola do Polissistema e com os Estudos Descritivos da Tradução, pois há, nesse momento, um distanciamento de visões exclusivamente eurocêntricas e um resgate de teorias periféricas. Depois de a tradução ter deixado de ser vista como texto de segunda classe, e de teóricos como Even-Zohar e Gideon Toury se preocuparem com “a função da literatura traduzida dentro de um sistema literário”, a tradução
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começa a ameaçar os domínios do texto original, conforme nos diz Bassnett (1993). Nesse contexto, a tradução passa a ser entendida como uma força capaz de alterar a história literária. Bassnett destaca a importância dos estudos de tradução desenvolvidos nos anos 1980, e diz que o preconizado por Lefevere nesse período era a extrema importância das “reescrituras” para os sistemas literários, especialmente porque sinalizavam para mudanças na recepção desses sistemas. Assim como a teoria do polissistema, as teorias acerca da recepção também colaboraram para o desenvolvimento dos estudos de tradução (bem como para a teoria e para a história literárias), especialmente porque, de acordo com Miguel Gallego Roca (1994, p.76), o desenvolvimento dos estudos de recepção, ainda que sem referências explícitas, “privilegiaba la traducción como testimonio de la recepción de obras extranjeras”. Os estudos desenvolvidos por Hans Robert Jauss preocupam-se com a recepção de uma dada literatura pelos leitores ou por uma cultura, pois, para ele, “una obra es el texto más su recepción, esto es, una estructura dinámica que sólo puede ser captada en sus concreciones históricas sucesivas” (ibidem, p.79). Nesse aspecto, a tradução exerce papel fundamental porque proporciona à obra literária estrangeira a passagem para uma cultura distinta; e também pode ser responsável pela recuperação, na cultura alvo, de uma “tradición olvidada o reprimida por el canon vigente” (ibidem, p.80) na cultura de origem. Com base nessas afirmações, podemos concluir que uma literatura traduzida pode colaborar para a configuração do polissistema da cultura que a recebe. As traduções de obras da literatura de fronteira uruguaia ou argentina, por exemplo, podem ser consideradas como obras que compõem o sistema literário brasileiro/gaúcho, porque o texto traduzido passa a fazer parte da cultura receptora, como postula Tania Carvalhal (2003, p.158). Para tanto, devemos ressaltar a responsabilidade de quem realiza as reescrituras, uma vez que essa atividade garante a sobrevivência e assegura a recepção das obras literárias no sistema alvo. O
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tradutor, nesse contexto, realiza a conexão entre duas culturas, duas línguas, dois sistemas literários, e proporciona aos leitores uma obra manipulada, reescrita, mais ou menos próxima de sua própria cultura (alvo). A fim de exemplificarmos a questão da interferência das literaturas estrangeiras em um sistema literário, citaremos os exemplos das traduções feitas de Os sertões, de Euclides da Cunha, para o espanhol. A Argentina foi o primeiro país a traduzir a obra desse autor brasileiro. Para este estudo, selecionamos as traduções feitas por Benjamín de Garay e por Enrique Pérez Mariluz, no período que compreende o final da década de 1930 e o início da década de 1940. Curiosa é a tradução feita por Mariluz, em 1941, que foi publicada apenas três anos após o trabalho reconhecidamente perfeito de Garay, no mesmo país, visto que o texto daquele possui 172 páginas, e é desnecessário alertar que se trata de uma edição compendiada, que exclui muitos trechos do texto de Euclides. Enquanto Garay traduz para o espanhol Os sertões na íntegra, Pérez o faz de maneira compilada. Para Walter Benjamin (1994), uma obra pode ser traduzida tantas quantas forem as possibilidades que oferece, uma vez que a tradução garante a sobrevida da obra, mas, no caso do texto brasileiro, as duas traduções aconteceram em um espaço muito curto de tempo. Ao analisarmos esse fato, questionamos: o que fez que o texto de Mariluz viesse ao mercado quase que concomitante ao de Garay? O que fez que a tradução de Garay tenha resistido por mais de cinquenta anos e a outra sequer seja citada? A última pergunta talvez seja mais fácil de responder, basta lembrarmos que, há até poucas décadas, a tradução era vista como um trabalho de menor valor, comparativamente à criação. Nesse contexto, também os textos compendiados não eram tratados com a mesma seriedade com que era tratada uma tradução “clássica”, a qual buscava manter a forma do original. André Lefevere (1997, p.19), ao falar da importância das reescrituras para a evolução das literaturas do passado
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(na esfera do pensamento de Benjamin acerca da perpetuação de certas obras), afirma que quem se dedica a esse estudo deve perguntar-se sobre os objetivos do trabalho, ou seja, “quién reescribe, por qué, en qué circunstancias, para quién”. Ao buscar responder a essas perguntas, poderemos entender se tal trabalho tem base ideológica ou “motivaciones poetológicas” (ibidem, p.21), pois, à medida que são reescritas, as obras tendem a estar ligadas a uma dessas correntes. Uma das explicações para a realização desse trabalho de Mariluz pode estar ligada às questões mercadológicas e culturais, como vem explicado na última página pela Editorial Atlántida, acerca da coleção “Biblioteca Billiken”, da qual faz parte a tradução em questão. De acordo com a editora, o objetivo dessa publicação é divulgar literatura de qualidade a preços acessíveis. Assim, a coleção é dividida em três categorias: Vermelha, Verde e Azul. A primeira coleção, Vermelha, é composta por adaptações e reduções de obras clássicas da literatura universal, como A Ilíada, A odisséia, Dom Quixote, obras de Shakespeare, de Molière, de Schiller, de Dickens, de Dumas etc.; a coleção Verde compreende biografias de pessoas famosas ou históricas, como a de São Francisco de Assis, de Pasteur, de Hernán Cortés, de Napoleão, de Cabeza de Vaca, entre outros; a coleção Azul compreende obras, feitos e homens da América, como Martín Fierro, Amália, O último dos moicanos, Lincoln, Bolívar, Os sertões, entre outros. Euclides da Cunha encontra-se em um grupo de autores do cânone universal. Ao analisar a nota da editora, vemos que a publicação do texto de maneira resumida é justificada porque o objetivo primeiro é divulgar a literatura de forma acessível. Se, como nos diz Tania Carvalhal (2003, p.23), a “traducción [es el] resultado de una elección, de una opción consciente ante una necesidad del polisistema al que se decide, voluntariamente, nutrir”, percebemos por meio dos comentários da editora a importância que o texto assume no contexto argentino do período. Disponibilizar literatura canonizada a preços acessíveis no final da década de 1930 e início
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da década de 1940 pode estar ligado ao momento político vivido na Argentina no período em questão. A chamada “Década infame” (1930) propiciou a afirmação do sentimento nacionalista que nascera ainda no século XIX, em consequência, especialmente, da imigração em massa ocorrida no país, em sua maioria por italianos.1 Essa população de imigrantes, em grande parte, constituía a classe operária da Argentina, classe essa que tinha como base fundamentos socialistas e anarquistas, mas que possuíam muitas carências em diversos aspectos. No final do século XIX, algumas organizações tentavam encontrar soluções para essas carências da classe operária. Dentre as organizações criadas para esse fim, temos a liderada pelo padre Federico Grote, em 1892, chamada “Círculos Sociales Obreros”, e a “Liga Social Argentina”, surgida em 1908, que tinham como objetivos manter a organização cristã da sociedade, suplantar as tendências subversivas e elevar econômica e intelectualmente as classes sociais (Spektorowski, 2003). As condições de vida da classe operária eram alvo de constantes discussões, especialmente porque essa era considerada a “força da nação”. Muitos nacionalistas participaram da análise social nesse período, dando atenção especial à situação da classe operária em uma sociedade que possuía uma política democrática que não solucionava os problemas sociais detectados por eles. Para Spektorowski (2003), as mudanças sociopolíticas ocorridas na Argentina nas décadas de 1930 e 1940, o surgimento do “nacionalismo integral” – que tinha o objetivo de resolver os novos problemas advindos da modernização econômica e política porque era uma alternativa entre o liberalismo e o socialismo marxista – e o aparecimento da clase obrera, que ganhou força em virtude da imigração europeia, modificaram definitivamente o país. Esses elementos associados interferiram, sobretudo, no ponto de vista ideológico das elites liberais da classe média que, desde 1916, com o populismo de Hipolito Yrygoyen (UCR – União Cívica Radical), governavam o país.
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As políticas adotadas para promover a aproximação entre os imigrantes e o nacionalismo argentino afetaram, sobretudo, os filhos desses imigrantes, porque se direcionavam à educação, ou seja, o governo realizou mudanças na política educacional, promovendo, entre outras coisas, o civismo e a obrigatoriedade da língua espanhola. Difícil era atingir os pais, sobretudo porque mantinham preservados os costumes de seu país de origem através das associações étnicas (cf. Devoto, 1999, p.59).
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Para que essas considerações se confirmassem efetivamente, seria necessário pesquisar de forma aprofundada em periódicos e revistas do período informações pertinentes para analisar a recepção de tal texto naquela sociedade e buscar possíveis explicações tanto para a escolha de Os sertões quanto para as possíveis razões de haver duas traduções diferentes e uma segunda edição da obra no referido período.
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Ainda para o historiador Spektorowski, o “nacionalismo integral” nasceu do partido conservador argentino, e rejeitava tanto o radicalismo yrigoyenista quanto as ações da classe operária, que têm em sua base os fundamentos socialistas e anarquistas. Para tal movimento, o populismo de Yrigoyen não possuía política pró-operária, como necessitava a clase obrera, tampouco uma visão industrialista, reclamada pelos nacionalistas integralistas. Mesmo que os nacionalistas afirmassem almejar o bemestar dos trabalhadores e mantivessem um discurso próoperário, a clase obrera se voltou realmente ao nacionalismo com a chegada de Perón ao poder, em 1946. Entretanto, a Aliança Nacionalista foi o primeiro movimento que conseguiu mobilizar a massa proletária para a comemoração das conquistas trabalhistas, em 1938. Os panfletos desse movimento dão destaque à contribuição dos operários para a nação argentina e se contrapõem ao capitalismo e ao marxismo, por acreditar que ambos prejudicam a classe operária porque são opressores, ainda que de formas diferentes. Para eles, somente o nacionalismo proporcionaria a harmonia entre as classes. Tendo como base essas informações acerca do ambiente político antes da chegada de Perón ao poder, vemos que a preocupação com a classe operária argentina relacionava-se tanto às condições materiais quanto às intelectuais e culturais, daí a importância de editoras que publicassem textos clássicos e acessíveis. A divulgação cultural fazia parte do projeto nacionalista de busca de inclusão da classe operária na sociedade argentina.2 Assim, por ser um clássico reconhecido no Brasil com inúmeras publicações desde 1902, Os sertões obteve, na Argentina, três publicações entre 1938 e 1942. No estudo feito por Gustavo Sorá (2003), intitulado “Livros de autores brasileiros na Argentina: uma força de alteridade negada”, o antropólogo argentino analisa a recepção das obras brasileiras traduzidas em seu país ao longo do século XX. Nessa análise, Sorá dá destaque ao fato de que, atualmente, justamente quando se fala em Mercosul,
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está acontecendo um curto-circuito cultural entre os dois países, e os argentinos desconhecem a produção literária brasileira. Atualmente, o mercado editorial argentino publica as obras de Paulo Coelho (especialmente por influência do mercado editorial europeu) e algumas obras de Jorge Amado. Diante dessa constatação, o autor afirma que houve um intercâmbio cultural maior entre os dois países em épocas em que não existiam políticas de integração. O período destacado pelo estudioso como sendo o mais profícuo para o intercâmbio cultural é o compreendido entre os anos de 1937 e 1945. Segundo ele, os intercâmbios científicos e culturais nesse período se davam por iniciativa das políticas culturais do governo, e não por iniciativas particulares. A atividade editorial de obras brasileiras na Argentina foi intensa, porque, no Brasil, o Estado Novo de Getúlio Vargas propagava a ideia de “autêntica cultura brasileira”, e o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) “promoveu um complexo de ações tendentes a difundir a imagem do país no exterior” (Sorá, 2003, p.202). No que diz respeito ao trabalho feito por Garay, devemos destacar que a Editorial Claridad identificava-se como “tribuna do pensamento de esquerda”. Nesse sentido, a editora apostou em um novo público leitor, como “operários, estudantes, funcionários públicos e outras novas comunidades receptoras de cultura” (ibidem, p.192). O objetivo de Claridad era traduzir textos de cunha realista e de crítica social, por isso, muitos dos textos traduzidos, principalmente por Garay, estão diretamente relacionados aos problemas e características especificamente brasileiros. Nesse sentido, o trabalho do tradutor vai além da tradução linguística, especialmente porque aí entra o trabalho de tradução cultural, preconizado por Ovidi Carbonelli i Cortés (1997), que objetiva dar à cultura alvo um texto que explicita o exótico por meio das estruturas de representação da cultura e língua de destino. No caso específico da tradução da obra Os sertões feita por Mariluz, o “mecenas” – que pode ser a editora que está a serviço de um partido político ou classe social – está
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Referimo-nos, além dos já citados anteriormente, a “Una excursión a los indios ranqueles, leyendas y fabulas guaranies”, “La conquista del Perú”, “Los pieles rojas”, por exemplo (cf. Cunha, 1941).
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muito mais preocupado com a ideologia do texto do que propriamente com sua poética. No referido trabalho, o reescritor da obra de Euclides dá maior atenção ao conteúdo em detrimento do estilo, ou do efeito de sentido causado por sua forma peculiar. Assim, Mariluz reescreveu a obra e adaptou-a ao período vivido na sua cultura. Para o momento, importava mais a história contada por Euclides da Cunha acerca da Campanha de Canudos, da resistência do povo sertanejo, da guerra e da vitória das forças republicanas, do que a forma como fora contada, uma vez que pouco se encontra no texto argentino resumido a voz do original. Também as diferenças culturais e étnicas destacadas pelo escritor brasileiro deveriam ser divulgadas, basta atentarmos para os textos que compõem a coleção Azul junto com Os sertões, como os que falam do povo indígena, por exemplo.3 Para que se entenda melhor esse processo tradutório, daremos alguns exemplos dos trabalhos dos referidos tradutores, cotejando-os com o original brasileiro. Na tradução de Mariluz, vemos que, na primeira parte, intitulada “La tierra”, o tradutor seleciona somente alguns trechos significativos para contextualizar o espaço no que diz respeito às condições climáticas e à formação do deserto. O tradutor exclui de seu texto todas as informações de cunho geológico. A narração é iniciada com os feitos dos bandeirantes no reconhecimento das terras brasileiras, os quais são relacionados à curiosa hidrografia que parece “nascer no mar e penetrar na terra”. Entretanto, no início do texto de Euclides não há referências às conquistas bandeirantes, pois essa informação só constará na segunda parte do livro, em “El hombre”. A tradução resumida de Mariluz procura contextualizar a história da exploração do território brasileiro para o leitor argentino (ou de língua espanhola). O procedimento adotado pelo tradutor para escrever seu resumo é ler e reescrever o que foi lido, excluindo aspectos que considera menos relevantes, ou repetitivos. Como exemplo desse procedimento, temos a passagem
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extraída da primeira parte, “La tierra”, que fala da constituição do espaço físico: De tanto en tanto, se advierten parajes menos estériles, que tienen su origen en la descomposición del granito. Entonces, en medio de esas manchas arcillosas, los ouricuryseiros levantan sus copas fructíferas alrededor de las ipueiras. Estos oasis no tienen para el sertanero el aspecto fresco y acogedor de los del Sahara, suelen ser lúgubres, cercados de cardones pelados y tristes, como espectros de árboles. (Cunha, 1941, p.11)
No texto de Euclides, a passagem que corresponde a essa citada de Mariluz apresenta-se mais detalhada e, consequentemente, mais extensa:
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O tradutor suprime de seu relato os trechos líricos de Euclides – aqueles que buscam dar ao leitor a dimensão clara da situação em todos os seus aspectos; aqueles em que o escritor mostra os seus sentimentos em relação ao fato narrado, ou à cena descrita –, e reduz, muitas vezes, os trechos que não pode suprimir ao conteúdo informativo, somente. Analisemos o seguinte fragmento de Mariluz: La sequedad de la atmósfera alcanza grados anormalísimos, al punto de que los cuerpos orgánicos sin vida no se decomponen a la intemperie. Una vez pude contemplar, a la sombra de una quixabeira alta y solitaria, a un soldado que, con los brazos ampliamente abiertos y el rostro vuelto hacia el cielo, descansaba… Descansaba hacía tres meses…
Intercorrem ainda paragens menos estéreis, e nos trechos em que se operou a decomposição in situ do granito, originando algumas manchas argilosas, as copas virentes dos ouricurizeiros circuitam – parênteses breves abertos na aridez geral – as bordas das ipueiras estas lagoas mortas, segundo a bela etimologia indígena, demarcam obrigatória escala ao caminhante. Associando-se às cacimbas e caldeirões, em que se abre a pedra, são-lhes recurso único na viagem penosíssima. Verdadeiros oásis, têm, contudo, não raro, um aspecto lúgubre: localizados em depressões, entre colinas mas, envoltas pelos mandacarus despidos e tristes, como espectros de árvores; ou num colo de chapada, recortando-se com destaque no chão poente e pardo, graças à placa verde-negra das algas unicelulares que as revestem. (Cunha, 2001, p.22)
Nesse trecho de Euclides, percebe-se que o narrador preocupa-se em descrever o espaço minuciosamente, bem como situar o leitor. Também no texto de Mariluz há o objetivo de situar o leitor, mas isso é feito de forma diferente. O tradutor utiliza o artifício da comparação e, além da imagem do oásis já citada por Euclides, fala claramente do Saara, porque é a ideia mais comum de deserto. O leitor argentino necessita de certas referências para “visualizar” o espaço do outro.
Había muerto en el asalto a Canudos y todo en él revelaba que había sucumbido en una áspera refriega. Seguramente no lo vieron cuando enterraran a sus compañeros de desdicha y había quedado allí, solitario, insepulto, pero libre de la fosa común de tres palmos de profundidad. Estaba intacto, marchito apenas. Se había momificado, conservando los rasgos fisonómicos, de modo que diera la ilusión perfecta de un luchador cansado, que se retemplaba en tranquilo sueño a la sombra de aquel árbol bienhechor. Ni un gusano – el más primitivo analizador de la materia – le había maculado los tejidos. (Cunha, 1941, p.15-6)
No texto de Euclides, não há essa conclusão explícita acerca das influências da baixa umidade do ar e das altas temperaturas sobre corpos orgânicos sem vida. Mariluz infere essa informação a partir da narração feita acerca do soldado morto e a coloca como síntese explicativa no início da descrição da cena. Para o tradutor, a cena está a serviço das informações meteorológicas do sertão, que são abstratas para o leitor. Para Euclides, além de a cena também servir a esse propósito, mostra a situação de esquecimento para com o soldado morto e de desrespeito para com os mortos de guerra, pois o homem que morreu em batalha não fora percebido pelas pessoas que enterraram amontoados os soldados mortos em uma vala comum.
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Ao lado, uma árvore única, uma quixabeira alta, sombranceando a vegetação franzina. O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava. Descansava… havia três meses. Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da Mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses – braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes… E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme – o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria – lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnate, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares. (Cunha, 2001, p.39)
Na segunda parte, intitulada “El hombre”, o tradutor continua a fazer cortes para resumi-la a 28 páginas – o que, no original, possui 147 páginas. Para esse capítulo, o tradutor dá o menor espaço em seu texto, comparativamente ao trabalho de Euclides da Cunha.4 Mas é “La lucha” que constitui a parte mais substanciosa do texto de Mariluz. Desse ponto em diante, o autor dá ênfase às expedições e seus respectivos desfechos.
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Apenas a título de curiosidade, fez-se um cálculo de número de páginas para comparar as proporções do resumo em relação ao texto integral. No texto de Euclides, “A terra” recebe uma parte de 11,75% do total do livro; “O homem” recebe 24,66%; e “A luta”, 63,43%. No texto de Mariluz, “La tierra” ocupa 13,37% do total do livro; “El hombre” recebe 16,28%; e “La lucha”, 69,77%. No texto resumido, o capítulo “El hombre” perde espaço para os demais capítulos e, consequentemente, discute de forma muito breve a constituição do homem nordestino.
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O tradutor, coerente com a postura de escrever concisamente tomada desde o início de seu trabalho, encerra a história quando o cadáver de Conselheiro é encontrado, já que a narrativa centrou se foco nessa personagem. Assim, Mariluz não dá relevo aos seguintes fatos: à descrição das condições do corpo do Conselheiro; à preocupação em tratar o “prêmio” cuidadosamente; à preocupação em fotografar Conselheiro para convencer a opinião pública do fim da guerra e à atitude de cortar e levar a cabeça para ser festejada no litoral. Quando o tradutor argentino realiza tais cortes, vemos que seu texto possibilita ao leitor de língua espanhola entender apenas como foi a guerra de Canudos e como os exércitos se enfrentaram. As informações que Pérez Mariluz coloca nas duas primeiras partes servem somente para situar o leitor na realidade sertaneja, que está muito distante da cultura argentina. Ao traduzir Os sertões, tanto Garay quanto Mariluz perceberam essas diferenças culturais, já que o sertanejo não se assemelhava a nenhum outro tipo latino-americano quanto à sua constituição étnica, tampouco a cor local era familiar; entretanto, a luta do sertanejo pela defesa de algo era familiar: era uma voz periférica que gritava contra as forças oficiais. Ao observarmos o texto do tradutor Mariluz, entendemos que deu ênfase principalmente ao “conteúdo comunicacional”, pois filtrou do original apenas a ação, descartando os trechos líricos existentes, que são significativos para que possamos entender a trajetória da escrita de Os sertões. Ao excluir tais momentos, o tradutor não possibilita ao leitor perceber que o texto é coeso em seu conteúdo e em suas intenções, porque a construção imagética é desfeita. A partir do resumo, é impossível perceber as ligações existentes entre as três partes em que o texto é dividido. Assim, ainda que o tradutor tenha “interpretado” o texto, ele silenciou Euclides da Cunha, pois seu texto não possui o “eco do original”, conforme nos diz Walter Benjamin a respeito de como deve ser a tarefa do tradutor.
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Em relação ao trabalho de tradução feito por Benjamín de Garay,5 podemos afirmar que há muitas marcas deixadas pelo tradutor e que elas colaboram para a transmissão de elementos culturais do texto fonte para o texto alvo. Tal tradução difere em muitos aspectos daquela feita por Mariluz, especialmente porque o trabalho de Benjamín de Garay tem uma preocupação com a transmissão de elementos culturais brasileiros para o leitor argentino. Nota-se no trabalho desse tradutor uma preocupação com o estilo do texto do autor brasileiro. Segundo Garay, foi preciso atuar como um escritor de um texto original, pois as estratégias discursivas de Euclides da Cunha, ou ainda da própria língua portuguesa, não são transparentes para a língua espanhola. Essa afirmativa justifica-se no momento em que sabemos que o tradutor argentino diz não conseguir, por vezes, traduzir uma sentença, deixando-a no original português. Garay (1942, p.11), diante das dificuldades com as quais deparou na tarefa de traduzir Os sertões, alerta o leitor para as falhas que deixou ao longo do texto em espanhol, pois, para ele, o texto é intraduzível porque Euclides criou um estilo próprio de escrita. Y a pesar del cariño, la pulcritud lingüística y el máximo esfuerzo personal que se ha puesto en esta versión, para conservar en lo posible el inimitable estilo euclidiano, alma y enjundia de esta obra magistral, no nos creemos libres de defectos ni del todo limpios de pecados. Es natural haberlos cometido en la traducción de este libro, tratándose como se trata de una obra de gran aliento, de ciencia y de arte, de verdad y belleza, de análisis y de justicia, realizado por un genio en una prosa única. Única no puramente por su estilo, sino también por su complexión lexicográfica, el desconcertante vigor de sus imágenes, más la plenitud y la variedad de conocimientos científicos que en él se han puesto al servicio del genio literario.
Quando se refere à complexidade da obra, o tradutor destaca que o título já traz em si uma particularidade regional, tanto do ponto de vista linguístico quanto do ponto
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O texto de Euclides da Cunha foi publicado por diferentes editoras, mas sempre com a tradução feita por Garay em 1938, por ser considerada a melhor feita para a língua espanhola. Mais recentemente, em 2003, temos uma nova publicação do texto, com prólogo de Florencia Garramuño e tradução de Benjamín de Garay (cf. Cunha, 2003).
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de vista geográfico. Assim, Garay dá autonomia à palavra e a traduz para o espanhol, embora não existindo para ela uma correspondente. Hasta el título del libro – Os Sertões – es intraducible. El vocablo regional sertão no tiene equivalente en nuestro idioma. Ni en ningún otro. Expresa una particularidad de la geografía física de determinada zona del Brasil, que participa de singularidades geológicas, topográficas y biológicas, vale decir, cosmorámicas. La palabra en sí es, desde luego, nada más que una corrupción o una mutilación del aumentativo portugués de deserto, esto es, desertão (desiertón). (ibidem)
Ao comentar sobre a origem, a formação da palavra que nomeia o livro brasileiro, o tradutor arrisca uma análise sociolinguística (ainda que intuitivamente), em que as características do meio em que os falantes estão inseridos influenciam na evolução da língua. O tradutor entende que a economia linguística está diretamente ligada à raça e ao espaço físico do qual o falante faz parte: Por la ley del menor esfuerzo, tan común a todas las razas indolentes de los trópicos, el habitante del interior del Brasil redujo el vocablo desertão a sus dos últimas sílabas: sertão. Es ésta una deducción nuestra, aplicable a todas las regiones brasileñas en que la visión continuada y cansadora del desierto haya podido dar origen al aumentativo: desiertón. (ibidem)
Nesse exemplo, no que diz respeito à tradução do título, o tradutor sente-se exitoso. Entretanto, alerta que em outros casos não foi possível atingir tal feito. A saída encontrada por ele foi deixar o trecho no original, quando impossível traduzi-lo, e colocar uma tradução plausível no rodapé: Daré un ejemplo, entre los millares que este libro puede ofrecernos. Las tropas federales han tomado prisionero a un combatiente de ¡nueve años de edad! Un niño, que maneja a conciencia una mannlicher que le han facilitado descargada. Uno de los captores le pregunta si ha tirado con un arma así contra los soldados. Y el niño replica:
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– E porque não? Pois si havia tribuzana velha!… Havera de levar pancada, como boi acuado, e ficar quarando atoa, quando a cabrada fechava o samba desautorizando as praças? Hube de traducirlo: – ¿Y por qué no? ¿No hay entrevero, acaso? ¿Habría de aguantar picana como buey acorralado, y quedarme al ñudo, cuando los guapos hacían arder la milonga, poniendo a los soldados en fuga? Desistí de hacerlo, puse el original en el texto y en la nota esa traducción, que por fiel que pueda ser, pierde la totalidad de la indómita fiereza. (ibidem)
Ao longo do trabalho de Garay, o tradutor está visível em todo o texto porque utiliza muitos artifícios que apontam sua presença, que, por consequência, deixam à mostra as marcas linguísticas e culturais do texto original. O fato de o tradutor prefaciar o texto, realizando mesmo uma comparação entre Os sertões e Facundo – texto fundador da cultura argentina –, demonstra que julga o seu trabalho como de extrema importância, especialmente porque dá a conhecer ao leitor de língua espanhola um texto culturalmente marcado. É evidente a existência de diversos discursos, mistura de registros, na obra de Euclides da Cunha, os quais são de difícil tradução para outra língua, o que torna a atuação do tradutor de extrema importância para que o leitor da língua alvo receba o texto satisfatoriamente. Há a preocupação de Garay em traduzir o estilo e a intenção do texto do autor brasileiro, e por isso a presença de explicações extratextuais. Devemos destacar, também, que os tradutores Mariluz e Garay possuem a mesma preocupação de montar um glossário das palavras alheias à sua cultura, para que sirvam de suporte para o leitor, uma vez que o texto de Euclides é culturalmente marcado. Nas traduções feitas pelos argentinos, percebe-se uma preocupação em explicar as palavras específicas da região Nordeste do Brasil, como “caatinga,
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chique-chique, jagunço, rapadura”, entre outras, sem destacar, porém, aquelas palavras comuns à cultura do pampa, mas não tão comuns a Euclides da Cunha. As palavras “gaúcho”, “bombachas”, “baguais”, “guaiaca”, “pingo”, “peleador”, “entreveros”, por exemplo, movimentam-se naturalmente no texto de Garay, o que deixa claro que seus leitores não terão problemas ao ler, porque lhes são familiares. A interferência do tradutor é de extrema importância para mostrar as peculiaridades da cultura não compartilhada que está sendo traduzida. Das declarações de Garay presentes no prefácio de Los sertones, a que parece de extrema importância para este estudo é a reflexão que faz acerca do ato de traduzir tal texto. De forma quase poética, Garay nos mostra a “intraduzibilidade” de Os sertões, pois afirma que Euclides da Cunha apossou-se de uma linguagem popular e local para traduzir o ambiente, o que a língua portuguesa acadêmica era incapaz de fazê-lo (tampouco outra língua) com as mesmas peculiaridades do original. Assim, o fato de Euclides “sugerir mais do que dizer”, para o tradutor, transforma o ato tradutório em um grande desafio. Mais do que verter o texto de uma língua para outra, Garay precisava verter o que o texto sugeria; precisava traduzir uma cultura alheia. Se esse movimento não acontecesse, o novo texto ficaria carente de “fuerza de expressión”. Após destacar continuamente seu esforço para traduzir Os sertões, por fim Garay entrega os pontos, transformando sua tarefa em algo menor: Porque, no me canso de repetirlo, la estridencia de piedras recalentadas al sol, que es la música de este idioma sonoro del libro de Euclides da Cunha, no puede ser imitada por la orquestación del teatro lírico de un idioma ceñido por las academias. Cuando más, lo que ha de ambicionar el traductor es el de transportar el contorno de la obra maestra, dejando que la imaginación del lector intuya la catarata de belleza que dentro de ese contorno se encierra. Es lo que he hecho. (ibidem, p.12)
Ainda que a tradução possua muitos elementos extratextuais que esclarecem particularidades da cultura brasi-
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leira, o que, portanto, demonstra o êxito da tarefa tradutória, Garay não percebeu a importância de seu trabalho, menosprezando-o, por vezes, por pensar que poderia ter sido possível uma tradução literal do texto original. Evidentemente, devemos lembrar que essa tradução data do final da década de 1930, e que, portanto, as reflexões acerca do trabalho tradutório ainda estão presas às questões linguísticas e à fidelidade ao original, por isso a preocupação de Garay em buscar a perfeição. Como não podemos medir a recepção dos textos brasileiros na Argentina por falta de dados precisos, podemos afirmar, a partir do número de títulos traduzidos e publicados pela Editorial Claridad, que, em determinado período, a literatura brasileira fez parte do polissistema literário argentino, circulando entre os leitores de forma maciça. O fato de ter havido duas traduções do mesmo texto em três anos, e uma segunda edição de uma delas, demonstra a importância que tal texto assumiu no polissistema que o recebeu. Em pesquisa, encontramos os seguintes títulos traduzidos por Garay:6 • Os sertões, 1902 – Euclides da Cunha (Los sertones, 1938) • Rei negro, 1914 – Coelho Netto (Rey negro, 193?]) • Bugrinha, 1922 – Afrânio Peixoto (Chinita, 1942) • Amazônia misteriosa, 1925 – Gastão Cruls (Amazonia misteriosa, [193?]) • A marquesa de Santos, 1925 – Paulo Setúbal (Enbrujo: la marquesa de Santos, 1941) • Presidente negro, 1926 – Monteiro Lobato (El presidente negro: novela norteamericana del año de 2228, 1935) • O quinze, 1930 – Raquel de Queiroz (Sed, [194?]) • Garimpos, 1932 – Herman Lima (Garimpos, 1939) • Casa grande & senzala, 1933 – Gilberto Freire (Casa grande y senzala – Ministerio de Instrucción Pública de la República Argentina, 1942)
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• Salgueiro, 1935 – Lucio Cardoso (Morro de Salgueiro, 1939) • Mar morto, 1936 – Jorge Amado (Mar muerto, [194?]) • Dom Quixote das crianças, 1936 – Monteiro Lobato (El Quijote de los niños – tradução em parceria com Sarah Joffré, 1938) 7
Os textos publicados pela Editorial Claridad, em Buenos Aires, compreendem as décadas de 1930 e 1940.
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Destaco, ainda, que Garay não era o único tradutor dos textos em português na Editorial Claridad, e que muitos outros títulos brasileiros foram traduzidos por outros profissionais como: Raúl Navarro, Julio Payró, Íris de Barboza Mello, Pablo Palant, Tomás Muñoz Molina, Bernardo Kordon, Pedro Juan Vignale, Amado Alonso, Alfredo Cahn. Tais tradutores não só traduziam textos literários, como também textos de historiografia, de geografia, de etnografia, entre outros estudos referentes ao pensamento social do Brasil.
• Navios iluminados, 1937 – Ranulfo Prata (Navios iluminados, [194?])7 Gilberto Freyre (2003), um dos intelectuais mais importantes do cenário brasileiro e pensador das questões latino-americanas, destacou a relevância do trabalho feito por Benjamín de Garay, à época da intensa atividade tradutória do argentino, reclamando às autoridades o reconhecimento desse cidadão que muito contribuiu para a divulgação da literatura brasileira na América Espanhola. Diante dessas considerações, vale ressaltar que para o tradutor importa perceber as diversidades culturais, para que consiga traduzir para sua cultura essa diferença. Octavio Paz (1971, p.9) nos lembra de que “las lenguas que nos sirven para comunicarnos también nos encierran en una malla invisible de sonidos y significados, de modo que las naciones son prisioneras de las lenguas que hablan”. Assim, a tradução tem uma importante tarefa de aproximar culturas, porque aproxima os indivíduos que estão ilhados em si e “suprime las diferencias entre una lengua y otra” (ibidem). Desse modo, percebe-se que são as inter-relações entre as culturas que compõem os significados, e é a percepção dessa coexistência cultural que facilita ao estudioso identificar “o ‘específico’, aquilo que caracteriza as ‘tensões’ nesse processo” (Carvalhal, 2003, p.164). Para finalizar, destaca-se a tarefa do tradutor como de extrema importância para a aproximação entre línguas e culturas, para a projeção de determinada literatura em outro polissistema que não o seu, visto que, como sabemos, o tradutor busca adequar o que traduz à sua cultura, seguindo, assim, “ciertas reglas culturales, ciertas estrategias
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discursivas y convenciones de la cultura de destino que son tan importantes como las que producen textos originales en esa misma cultura”, conforme Carbonell i Cortés (1997, p.22). Garay e Mariluz introduziram Os sertões na leitura da sociedade argentina da época, dando aos leitores a possibilidade de conhecer uma cultura alheia, porém significativa para o período vivido.
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Facetas da tradução em Jorge Luis Borges Andréa Lúcia Paiva Padrão*
RESUMO:
Este trabalho se propõe abordar as muitas faces da relação de Jorge Luis Borges com a tradução. Inicialmente são analisadas as reflexões teóricas – ensaios, críticas, prólogos e comentários – que ele dedicou à tradução. Na sequência, é evidenciado o papel da tradução, no processo criativo do autor, como parte essencial da poética borgiana, em que reescrita e releitura são movimentos constantes.
PALAVRAS-CHAVE:
Borges, tradução, teoria, ficção.
ABSTRACT:
The present work aims at approaching the several aspects concerning Jorge Luis Borges’s relationship with translation. First the theoretical reflections he dedicated to translation are analyzed, as conveyed in essays, pieces of criticism, prologues and commentaries. Then the role of translation in the creative process of the author will be evinced, for it was an essential component of Borges’s poetics in which re-writing and re-reading are endless movements.
KEYWORDS:
* Doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professora da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina – Florianópolis (SC). 1
O texto foi El príncipe feliz, de Oscar Wilde, publicado em El País de Buenos Aires, quando seu autor, que assinou Jorge Borges, tinha nove anos de idade (Pascual, 2000, p.21).
Borges, translation, theory, fiction.
Em diversas ocasiões, Borges afirmou que se orgulhava mais das leituras que havia feito do que daquilo que havia escrito. E isso, obviamente, supõe frequentar escritores em outras línguas, como também tradução. Borges parece ter sido um dos escritores contemporâneos que mais revolucionaram o conceito de autor. Sua primeira publicação foi uma tradução, atribuída na época a seu pai, pela coincidência de nomes e a pouca idade do Borges em questão.1 A partir desse equívoco involuntário iniciam-se as falsas atribuições de autoria que, no plano da ficção, Borges converteria em tema e procedimento lite-
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rário. Para ele, um dos méritos de um escritor é conseguir desaparecer sob seu texto, de forma que o público esqueça o autor, mas se lembre de sua obra.2 Tal reflexão faz-se presente de uma forma ou de outra não somente em seus textos ficcionais, como também nos textos críticos (ensaios, prólogos, artigos, resenhas) que escreveu sobre tradução. Ressalte-se que não existe propriamente uma teoria da tradução em Borges, da mesma forma que não existe uma teoria da recepção, nem da intertextualidade, nem da narrativa. Seus comentários, esparsos, são, muitas vezes, elípticos, digressivos, intrincados e frequentemente contraditórios; desarmam não raro o leitor e questionam suas certezas. Para Pastormelo (s. d.), todas as observações luminosas de Borges sobre tradução ignoram a sistematicidade, embora não a coerência. Pode-se dizer que a maioria das teorias da tradução existentes valoriza o texto original em detrimento da tradução; o processo de tradução, além de implicar uma perda, estabelece, inevitavelmente, limites para o traduzível. De uma forma geral, esse ponto de vista proclama a impossibilidade de se ser totalmente fiel ao texto fonte, o que fatalmente condena a tradução ao fracasso. Borges reiteradas vezes discute essa postura e dedica à tradução substanciosas reflexões teóricas. No seu primeiro texto crítico dedicado à tradução, “Las dos maneras de traducir”,3 depois de comentar a máxima italiana traduttore traditore, e de se posicionar contra ela, Borges (2007) afirma sua crença na traduzibilidade da poesia: desde o início garante que não há razão para crer que uma tradução seja necessariamente inferior ao original. Tal ideia fundamenta suas posições sobre o tema e o autor volta a ela repetidas vezes. Como o próprio título adianta, nesse ensaio Borges retoma a discussão sobre as duas maneiras de traduzir: a clássica e a romântica. Enquanto a primeira prega a perífrase, a segunda pratica a literalidade (ibidem, p.313-5). Para as mentalidades clássicas, interessa a obra de arte e nunca o artista, e os textos importam mais que os escritores; assim, os tradutores não devem manter as imperfeições do
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2
Da mesma forma que em inúmeras oportunidades finge confundir seus textos (por exemplo, Ficciones e El Aleph), em outros momentos Borges nega a autoria de certas traduções. Em “Borges, o original da tradução”, Costa (2005) cogita que, agindo assim, talvez Borges quisesse demonstrar seu protesto contra o excesso de preocupação com a autoria, em detrimento da preocupação com o sugerido por um texto que é, para ele, o que verdadeiramente importa.
4
Superstição da normal inferioridade das traduções.
5
Tal procedimento será objeto de análise posterior.
3
Publicado pela primeira vez em La prensa em 1926, e recolhido postumamente em Textos recobrados (Borges, 2007).
6
O original é inferior à tradução.
7
“Sobre el Vathek de William Beckford” foi publicado pela primeira vez em La Nación, em 1943, e incluído em Otras inquisiciones, em 1952.
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texto de origem, já que elas têm pouco valor. Para o escritor argentino, segundo essa ideologia, a literatura, anônima, é um bem de todos, e os textos são rascunhos que admitem sempre uma correção. Inversamente, os românticos solicitam o homem, não a obra de arte. Para eles, a individualidade dos autores é mais importante que os textos que escreveram; o tradutor é um mal necessário, que se interpõe entre o texto original e o leitor. De acordo com Pastormelo (s. d.), a ideologia clássica está claramente refletida em algumas das posições de Borges com respeito à tradução. Por exemplo, quando não apenas não outorga primazia ao texto original como, de forma irreverente, refere-se à “superstición de la normal inferioridad de las traducciones”4 (Borges, 1996e, p.255). Também em suas ficções, suas convicções a respeito da tradução estão claramente expostas.5 Para Borges, inquestionavelmente, não existe texto definitivo; as exigências simplificadoras da fidelidade são responsáveis pelo fracasso de inúmeras traduções consideradas inferiores aos respectivos originais, cujo suposto poder ele nega. Da mesma forma que costuma fazer broma, misturando as identidades de autores e personagens, o texto original pode ser confundido ou suplantado pelas traduções. A respeito de Vathek de Beckford, por exemplo, diz que “el original es infiel a la traducción”6 (Borges, 1996d, p.109); no caso, a tradução inglesa feita por Samuel Henley, do texto escrito em francês por William Beckford. Segundo o escritor argentino, o texto em inglês do mesmo século seria mais adequado para expressar a trágica e fantástica história do califa Vathek.7 Numa perspectiva em que só existem rascunhos, o texto original deixa de ser considerado intocável, sagrado, e o valor estético não está predefinido pela precessão cronológica. Na condição de um simples leitor de um país periférico Borges ousa discutir a primazia do texto original e vislumbra uma nova compreensão para a convivência de textos, autores e literaturas. Costa (2005, p.169) comenta a respeito das vicissitudes de um intelectual de um país secundário que precisa,
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muitas vezes, renunciar à procura de uma voz própria para trazer para a cultura nacional o que já foi feito em outras línguas e culturas. Para ele, quando um escritor de um país periférico (como foram os casos de Borges, Machado de Assis, Guimarães Rosa, entre outros) se lança a uma aventura maior, e ousa falar para o mundo, corre o risco de ser censurado por elitismo. A diferença radical de Borges em relação a esses inovadores, explica Costa, é que ele não somente ultrapassa as fronteiras locais por meio do exemplo dos grandes escritores estrangeiros, como também recria em sua própria obra as condições privilegiadas existentes nos países dominantes, de forma idiossincrática, mas também mais ampla. Além de apagar as fontes das quais se nutriu para um voo maior, Borges faz de sua explicitação um elemento a mais de sua estética, num gesto de afirmação de autonomia. Verifica-se, então, que em Borges os conceitos de autor e de tradutor se misturam e se fundem a ponto de não se saber qual o texto original, qual a tradução. Em “El enigma de Edward Fitzgerald”,8 Borges vai mais além; aborda as inesperadas conjunções que ocorrem entre o escritor de um texto original e o do texto de chegada, concorrendo para a produção de um texto novo. O ensaio focaliza a tradução inglesa que Edward Fitzgerald fez das Rubaiyat de Omar Khayam e que o projetou como um escritor. Borges se propõe a compreender e interpretar essa união e misteriosa colaboração de um autor e de um tradutor, apesar dos sete séculos e vários continentes, culturas, idiomas, tradições literárias e religiões a os separarem. Outro ensaio célebre, “Las versiones homéricas”,9 inicia de forma categórica, afirmando as dificuldades de uma tradução. Em oposição às escrituras diretas, “la traducción está destinada a ilustrar un problema estético: mostrar las vicisitudes que sufre un texto” (Borges 1996e, p.255). Assim, falar de tradução para Borges é falar de estética. Para Waisman (2005, p.56), quando Borges lê, escreve. De tal forma que os textos borgianos estão enredados em uma série de leituras, em uma rede de intertextua-
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8 Publicado em La Nación, em outubro de 1951, foi logo incluído em Otras inquisiciones, em 1952.
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Publicado pela primeira vez em La Prensa em 1932; publicado posteriormente em Discusión, in Obras completas I.
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lidades. Assim, ao falar de literatura, está falando de sua própria produção, ou seja, está produzindo sua própria literatura. Da mesma forma, quando fala de estética por meio da tradução e do papel central da tradução na discussão da literatura, pode-se deduzir que fala da estética dos seus próprios textos e da importância da tradução para eles. Por isso, a tradução em Borges representa um dos aspectos de maior importância em sua obra. Muitos anos antes de se iniciarem as discussões sobre o caráter aberto de uma obra de arte, Borges (1996e, p.255) já escrevia uma de suas muitas frases clássicas sobre literatura, infinitamente citada, de que as versões de um texto ao longo da história ou em diversas línguas são rascunhos de uma obra à qual não se pode nunca dar um caráter definitivo. Porque o definitivo somente corresponde à religião ou ao cansaço. Assim, se todo texto é um rascunho (como já abordara em “Las dos maneras de traducir” e no prólogo da tradução de Valéry), não existe um texto original ou um texto definitivo. Consequentemente, nenhum texto deve ser considerado superior ao outro; todos são igualmente legítimos, uma vez que todos são, do mesmo modo, rascunhos. Ao comparar ironicamente a religião com o cansaço, Borges destitui de vez a supremacia do texto original e a sacralização da literatura. Ainda em “Las versiones homéricas”, Borges (1996e, p.256) trata do tema da tradução dos clássicos, negando a leitura original de uma obra clássica. “Con los libros famosos, la primera vez es ya segunda, puesto que los abordamos sabiéndolos. La precavida frase común de releer los clásicos resulta de inocente veracidad”. Para ele, todas as versões são igualmente legítimas e nem o valor, nem a influência, como se pode ler em “Kafka y sus precursores”, lembra Waisman (2005, p.59), está ligado à cronologia. Assim, todas as traduções existentes de Homero são “sinceras, genuínas e divergentes”. De uma forma bastante original e perspicaz, Borges (1996e, p.256) explica que o desconhecimento de um idio-
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ma é justamente o fator fundamental que possibilita a um leitor desfrutar de um grande número de versões de uma obra. De fato, ele compara as diversas traduções de Ilíada e Odisséia sem se referir aos originais. E se justifica: “la Odisea, gracias a mi oportuno desconocimiento del griego, es una librería internacional de obras en prosa y verso”. Costa (2005) explica que, ao cotejar diferentes versões de uma obra, Borges transforma a pobreza (depender de traduções, quer dizer, de algo não confiável) em riqueza (usar muitas traduções diferentes, muitos textos, para conhecer o original melhor do que quem conhece apenas o primeiro texto). Por meio da leitura de múltiplas traduções, é criada uma instância transcendente, da qual o original passa a ser apenas uma versão a mais, embora a primeira de todo o processo. Borges (1996e, p.256), leitor privilegiado, tenta esclarecer a razão dessa riqueza “heterogênea e mesmo contraditória” das muitas versões, todas “sinceras, genuínas e divergentes” de um mesmo texto. Em se tratando de Homero, explica, deve-se à dificuldade de saber o que pertence ao poeta e o que pertence à linguagem. E exemplifica com o uso dos adjetivos homéricos. Para ele, provavelmente o uso dos epítetos homéricos é análogo ao das preposições do espanhol moderno: não seriam criações típicas do poeta, mas pertenceriam à língua num determinado momento histórico. Em outro ensaio publicado em 1935, “Los traductores de Las 1001 Noches”,10 Borges enfoca as muitas possibilidades de exploração de um texto oferecidas pela tradução, mostrando que os deslocamentos e as adaptações que ocorrem numa tradução podem criar diferentes e inesperados sentidos. No caso, descreve a forma como foi lida e traduzida Las mil y una noches, coleção anônima de contos de origem hindu (de data incerta), traduzida ao persa e ao árabe, que modificou de maneira profunda o imaginário coletivo do Ocidente.11 Da mesma forma como em “Las versiones homéricas”, observa Waisman (2005, p.75), Borges somente compara traduções de Las mil y una noches;
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Esse ensaio está dividido em três partes. As duas primeiras apareceram em 1934, na revista Crítica. O ensaio inteiro está datado de 1935 e apareceu em Historia de la eternidad (de 1936). Essas datas são importantes porque coincidem com a escritura dos contos da Historia universal de la infamia (de 1935) (Waisman, 2005, p.264).
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Cf. Fishburn & Hughes (1990, p.69-70). Segundo os autores, Borges foi um ávido ledor do livro e declarou que o achava superior ao Corão, por seu poder imaginativo.
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não se refere ao texto original, salvo quando o fazem os próprios tradutores, o que comprova sua descrença em relação a um texto definitivo. Segundo Gargatagli & López Guix (2004), nesse ensaio o escritor sugere a teoria de que traduzir é um modo de ler. E se se considerar que ler é interpretar e reconstruir um texto, pode-se dizer que traduzir é uma operação semelhante àquela realizada pela crítica literária, porém entendida como muitas hermenêuticas, como formas diversas de entender e fixar o significado. Em Las mil y una noches, cada tradutor reflete a particular concepção de literatura que domina em sua língua. A de Antoine Galland, por exemplo, foi pensada para os franceses do século XVIII, ou seja, para os racionais leitores de Racine e Corneille. Conta Borges (1996f, p. 397) que essa tradução, primeira de um idioma europeu (1704-1707), contém vários contos que não são encontrados em nenhuma versão original de Las mil y una noches, tais como “Os quarenta ladrões” e “Aladim”. Esses relatos passaram a ser parte integrante do livro de tal forma que nenhum outro tradutor ousou retirá-los. Como a versão de Galland foi traduzida para numerosas línguas, incluindo o árabe, passou a ser considerada como um original – porém um original que é tradução de um outro texto que, por sua vez, é compilação de contos de origem desconhecida. O interessante é que um dos muitos aspectos do livro que fascinaram Borges é justamente essa forma circular da narrativa, o que faz dele um livro eterno; a ideia de múltiplas histórias contadas dentro da escritura de uma história única, e o inquietante efeito da história que inclui sua própria história, trabalhando numa perspectiva infinita (um infinito em abismo), em que a literatura se nutre da própria literatura, produzindo ficções de ficções, como faz Pierre Menard com Don Quijote. Borges considera a versão de Galland a mais mal escrita de todas, a mais mentirosa e mais fraca, mas a mais bem lida. Quem nela se embebeu, diz Borges (1996f, p.398), conheceu a felicidade e o assombro. Galland exemplifica,
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então, o pensamento borgiano de que as melhores traduções não se medem por sua estrita fidelidade ao texto original, mas são as que estão mais bem escritas, as mais agradáveis de se ler. Já a versão de Eduard Lane, a primeira inglesa (1804), é um texto essencialmente puritano, inspirado no pudor britânico, do qual é excluído tudo quanto possa ser moralmente censurável. Borges (1996f, p.399) exalta Galland, que consegue capturar a essência do livro e transmitir aos leitores europeus toda a magia desses contos, e condena a lógica moralista das adaptações puritanas feitas por Lane. A versão de Richard Francis Burton, segundo Borges (1996f, p.404), tinha por objetivo atrair os cavaleiros ingleses do século XIX – desdenhosos, eruditos, mas incapazes de se espantarem ou se divertirem – por meio de uma série de contos árabes do século XIII. Para isso, Burton melhora a versão de Lane, que o escritor argentino considerava prosaica e insípida, e introduz nela incidentes eróticos.12 Ao discutir as diferentes traduções das Noches, Borges (1996f, p.400) refere-se sucintamente à disputa (18611862) entre o poeta e crítico vitoriano Matthew Arnold (1822-1888) e o crítico e tradutor Francis W. Newman (1805-1897). Tal disputa (descrita por Borges também em “Las versiones homéricas”) ainda hoje reflete as posições assumidas pelos teóricos: se a tradução deve ser fiel às palavras, ao texto ou ao espírito da obra original, uma vez que as posições são antagônicas e não é possível ser fiel a ambas. Enquanto Newman defende o enfoque literal, a retenção das singularidades verbais, Arnold propõe a severa eliminação de todos os detalhes que podem distrair ou deter a leitura. Para Borges, todas as versões são válidas e devem ser avaliadas pela medida do prazer que proporcionam ao leitor. É interessante notar que Borges, ao qualificar a discussão de bela, amplia o debate sobre metodologia e introduz nele a estética. A outra versão abordada por Borges no ensaio “Los traductores de Las 1001 Noches” é a feita por J. C. Mardrus, que reivindica para si o mérito de ser uma “Versión literal y
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Versão literal e completa do texto árabe.
14 Continuamente, Mardrus quer completar o trabalho que os lânguidos árabes anônimos descuidaram. Acrescenta paisagens art-nouveau, fortes obscenidades, breves interlúdios cômicos, fatos circunstanciais, simetrias, muito orientalismo visual.
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Sir Richard Burton foi um eminente sábio e explorador britânico que, disfarçado de muçulmano, se tornou o primeiro europeu a penetrar nas cidades secretas de Meca e Medina. Homem de muitas facetas (poeta, etnólogo, lingüista e tradutor da erótica árabe), sua versão de Las 1001 noches não foi superada. Em diversas oportunidades Borges menciona que Las 1001 noches foi um dos primeiros livros que leu quando menino e que a versão inglesa de Richard F. Burton, encontrada na biblioteca de seu pai, e considerada pornográfica devido a suas ilustrações e referências sexuais, The thousand and one nights, sempre foi a preferida. (Fishburn & Hughes, 1990, p.69-70).
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completa del texto árabe”,13 como diz o subtítulo de sua tradução. Contrariando tal subtítulo, Borges dá inúmeros exemplos de infidelidade ao texto de origem, e diz: “Continuamente Mardrus quiere completar el trabajo que los lánguidos árabes anónimos descuidaron. Añade pasajes art-nouveau, buenas obscenidades, breves interludios cómicos, rasgos circunstanciales, simetrías, mucho orientalismo visual” (ibidem, p.409).14 Mardrus não tem escrúpulos em aumentar ou até inventar a cor oriental indispensável para cativar um público do final de século. Para Borges, a grandeza de Mardrus não se fundamenta numa suposta fidelidade ao texto de origem, mas em suas infidelidades criadoras. Borges altera, assim, o conceito de fidelidade, libera os tradutores das amarras impostas pelas tradicionais teorias da tradução e desmonta de vez as antigas crenças sobre os limites do que possa ser traduzível. Também consolida a certeza de que muitas vezes as numerosas possibilidades que se oferecem ao tradutor têm origem na dificuldade que ele sente em determinar o que pertence ao poeta e o que pertence à linguagem (como já afirmara anteriormente em “Las versiones homéricas”). Na última parte do ensaio “Los traductores de Las 1001 Noches”, Borges analisa quatro versões das Mil e uma noites para o alemão, detendo-se na de Enno Littman (19231928). Para ele, ela é medíocre, em que pesem opiniões competentes de ser a melhor. Borges (1996f, p. 412) vê nas versões de Burton, de Mardrus, de Galland, não importando seus méritos ou vícios, ecos das literaturas tradicionais que os precederam. Em Littmann, no entanto, não há senão a probidade da Alemanha, o que é pouco e faz que a tradução seja insatisfatória. Segundo o crítico argentino, as traduções devem revelar aspectos que estão latentes no texto original, mas que somente afloram sob duas condições: a de que a língua tenha experimentado formas literárias diversas e que o autor faça uso dessas formas na obra traduzida, explica Costa (2005). É o uso da tradição da própria língua que permite a tradutores recriarem com mais liberdade e com
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um sentido mais próximo do texto original. Assim, de acordo com Borges, uma tradução é medida, sobretudo, por sua fidelidade à cultura e à língua à qual se integra e não pela fidelidade em relação ao texto original. Adverte, no entanto, Pastormelo (s. d.), diferentemente do que dizem os críticos, não é em todos os textos de Borges que se apaga a categoria de autor. Se os exemplos apresentados em “Las versiones homéricas” e em “Los traductores de Las 1001 Noches” corroboram essa opinião, é porque foram cuidadosamente selecionados e devem ser lidos com algum cuidado. Na verdade, Borges afirma a figura de autor onde essa figura é sólida e a apaga onde é desvanecida. O fato de ele escrever dois de seus mais consistentes ensaios sobre tradução utilizando textos cujo idioma ignorava totalmente é um exemplo da familiaridade irreverente com que se movia pela literatura, mas explica também por que nesses dois casos a fidelidade ao texto original não o preocupava absolutamente. Se, contudo, nesses dois ensaios concebe os textos originais como rascunhos perdidos e anônimos é porque tanto a Odisséia como As mil e uma noites efetivamente o são. Borges instala então a possibilidade de uma ideologia clássica da literatura porque essas obras foram produzidas de fato sob essa ideologia. Quando, no entanto, os textos a traduzir são contemporâneos e pertencem, na sua versão original, à sua biblioteca, observa Pastormelo (s. d.), Borges é menos amável. Pode-se dizer que as teorias que Borges elabora sobre tradução misturam-se de tal maneira com suas ficções que o ato de ler, escrever e traduzir se torna sinônimo do ato de criar. Assim, a relação dele com a tradução vai mais além, pois afora ter sido um notável e ativo tradutor de Joyce, G. K. Chesterton, Edgar Allan Poe, Herman Melville, Francis Ponge, Virginia Woolf, Franz Kafka, Hermann Hesse, Rudyard Kipling, André Gide, William Faulkner, e de Walt Whitman, entre outros, a tradução ocupará um lugar de destaque no seu processo criativo, podendo, mesmo, ser convertida em matéria literária. Assim, é possível afirmar que, em Borges, além da crença de que toda lite-
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15 Publicado pela primeira vez em Los Anales de Buenos Aires, em 1947, o conto foi incorporado a El Aleph, publicado em 1949.
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“Nu na desconhecida areia.” Tais observações estão contidas em Gargatagli & López Guix (2004). 17 “La busca de Averroes” foi publicado em Sur, em junho de 1947, e posteriormente incluído em El Aleph, em 1949.
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ratura é traduzível, está presente a crença de que a literatura é tradução. São numerosas as ficções borgianas que, de uma forma ou de outra, se relacionam com o tema tradução. O conto “El inmortal”,15 por exemplo, inicia-se informando ao leitor que o texto que vai ler é um manuscrito encontrado no último dos seis tomos da Ilíada, traduzida por Pope, e oferecido à princesa Lucinge, em 1929, pelo antiquário Joseph Cartaphilus. Informa, ainda, que o manuscrito em questão estava escrito em inglês; que nele eram abundantes os latinismos e que a versão oferecida é literal. Não é invenção, nem privilégio de Borges utilizar a tradução como um recurso para conferir verossimilhança a um texto. Numerosos tradutores têm sido personagens de numerosas ficções. Entretanto, observam Gargatagli & López Guix (2004), o curioso é que a narração em questão se propõe a ser uma versão literal, ou seja, o tradutor optou pela fidelidade da forma, em detrimento da emoção estética, que somente se alcança corrigindo, ignorando ou engrandecendo o original. Observe-se, porém, que o manuscrito aparece dentro de uma versão homérica de Pope, aquela que Borges julga extraordinária, justamente por não ser literal. Ao final do texto o leitor é informado de que tudo o que ela continha eram breves interpolações de Plínio, de Thomas de Quincey, de Descartes, de Shaw. Ou seja, conhece-se uma transcrição fiel, honesta, de um texto construído mediante um amálgama de plágios. Uma típica brincadeira borgiana. Mas a brincadeira não se limita ao explícito, já que uma frase do texto “desnudo en la ignorada arena” é uma tradução literal de um verso de Virgílio “nudus in ignota ... iacebis arena”.16 Outro conto, “La busca de Averroes”,17 tem enredo e personagem ligados à tradução. Narra um dia de trabalho do filósofo árabe Averróis, um dos mais importantes pensadores islâmicos, renomado por suas traduções das obras do filósofo grego Aristóteles (Fishburn & Hughes, 1990, p.45). Averróis viveu em Al-Andalus no século XII (11261198), e o conto relata sua impotência em traduzir para o
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árabe as palavras tragédia e comédia, presentes na Poética de Aristóteles. Também em outras narrativas de Borges é possível observar a tradução como recurso para dar verossimilhança a um texto, mesmo utilizando personagens que também são tradutores: James Alexander Nolan, tradutor para o gaélico dos principais dramas de Shakespeare; Jaromir Hladík, tradutor do Sepher Yesirah, obra também traduzida por Marcelo Yarmolinsky; Emil Scherin, autor da versão alemã de Den hemlige Frälsaren de Nils Runeberg; o narrador de “Tlön, Uqbar, Urbis Tertius” que menciona estar revisando uma indecisa tradução quevediana do Urn Burial, de Browne (Borges, 1996j, p.443). O tema tradução também está presente no conto “El jardín de senderos que se bifurcan”, publicado pela primeira vez em 1941, e que dá título ao livro que, junto com Artificios (de 1944), compõe Ficciones. A narrativa inicia-se quando o narrador não identificado, provavelmente um historiador britânico, encontra por acaso um documento e o reproduz, com algumas observações. Tal documento, do qual faltam as duas páginas iniciais – uma declaração de culpa do doutor Yu Tsun, antigo catedrático de inglês na Hochschule de Tsingtao – possibilita uma nova leitura da ofensiva britânica contra a linha Serre-Montauban, durante a Primeira Guerra Mundial. Segundo o narrador, na página 24218 da História da guerra europeia de Liddell Hart, texto que dá origem ao relato, fica-se sabendo que essa ofensiva, programada para o dia 24 de julho de 1916, teve que ser adiada para a manhã do dia 29, pelas condições meteorológicas da região. A confissão de Yu Tsun, espião a serviço da Alemanha, no entanto, contradiz essa versão oficial da história. Observa-se que já no início o conto gera controvérsias, pois contém referências inexatas à obra de Liddell Hart, sobre a Primeira Guerra Mundial. Segundo Robert L. Chibka (1999, p.58-9), o capitão Basil Henry Liddell Hart escreveu pelo menos duas obras a respeito da Primeira Guerra Mundial: The Real War, 19141918 (em 1930) e A history of the World War, 1914-1918
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(de 1934); esta, uma edição revisada e ampliada da anterior. Para Chibka, a diferença no título da obra de Liddell Hart, citada no primeiro parágrafo por Borges (Historia de la Guerra Europea), poderia dever-se à tradução do inglês para o espanhol. Tradutores desse conto de Borges para o inglês parecem corroborar esse ponto de vista. Na edição de Ficciones, de Grove Evergreen, o conto “The garden of forking paths”, traduzido por Helen Temple e Ruthven Todd, inicia-se assim: 19 Em seu A History of the World War (p.212), o capitão Liddell Hart relata que uma planejada ofensiva de treze divisões britânicas contra a linha germânica de SerreMontauban, planejada para 24 de julho de 1916, teve que ser adiada até a manhã do dia 29. Ele comenta que as chuvas torrenciais provocaram essa demora, nada significativa, por certo. Esse fragmento está citado em Chibka (1999, p.57).
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Conforme Balderston (1996, p.71), a grande maioria das edições de Ficciones cita a página 22 de Liddell Hart e não a 242.
Na página 22 do History of World War I de Liddell Hart, lê-se que um ataque contra a linha de Serre-Montauban por treze divisões britânicas, planejado para o dia 24 de julho de 1916, teve que ser adiado até a manhã do dia 29. As chuvas torrenciais, o capitão Liddell Hart comenta, causaram esse atraso – insignificante, por certo. Esse fragmento também está citado em Chibka (1999, p.57). 21 O bombardeio começou em 24 de junho; o ataque foi planejado para o dia 29, mas teve que ser adiado até 1º de julho, em razão de momentâneos problemas meteorológicos.
In his A History of the World War (page 212), Captain Liddell Hart reports that a planned offensive by thirteen British divisions [...] against the German line at Serre-Montauban, scheduled for July 24, 1916, had to be postponed until the morning of the 29th. He comments that torrential rain caused this delay – which lacked any special significance.19
Na edição de Labyrinths, da New Directions,“The garden of forking paths”, traduzido por Donald Yates (Borges, 1964, p.19), inicia-se deste modo: On page 22 of Liddell Hart´s History of World War I you will read that an attack against the Serre-Montauban line by thirteen British divisions [...], planned for the 24th of July, 1916, had to be postponed until the morning of the 29th. The torrential rains, Captain Liddell Hart comments, caused this delay, an insignificant one, to be sure.20
A discrepância mais notória entre essas traduções diz respeito à página referenciada (212 ou 22), o que, à primeira vista, pode ser atribuído a um simples erro de impressão, ou a uma edição diferente. Para confirmar essas afirmações, Chibka extrai da obra The Real War fragmentos do parágrafo que aborda o atraso do ataque contra a linha Serre-Montauban: “The bombardment began on June 24; the attack was intended for June 29, but was later postponed until July 1, owing to a momentary break in the weather” (Liddell Hart apud Chibka, 1999, p.58).21
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O autor ressalta que o parágrafo citado aparece não na página 22, nem na 212, mas nas páginas 233-34. Destaca, também, que A History of the World War inclui um parágrafo idêntico, nas páginas 314-15 (Chibka, 1999, p.58). Balderston (1996, p.71) analisa o conto de Borges, fazendo referência a La historia de la guerra mundial (1934) de Liddell Hart, afirmando ser essa uma obra da biblioteca de Borges. Segundo Balderston, a primeira versão publicada do conto (dezembro de 1941) menciona a página 252, não a 22, nem a 242. A página 252, em que se encontra o fragmento citado, somente corresponde à primeira edição britânica de The Real War (1930). O que se pode observar é que, além do título, existem duas aparentes contradições do conto, em relação à obra de Liddell Hart: o mês em que a ofensiva ocorreu (julho, em vez de junho) e as páginas referenciadas. A causa das aparentes incorreções tem gerado controvérsia entre os críticos. Verifica-se um real erro de edição, de tradução, ou mais uma brincadeira de Borges, evidenciando a falibilidade dos editores e tradutores? Ou, de certa forma, o autor pretende confirmar a tese da falácia do texto original, quando mistura dados reais e inventados, personagens verdadeiros e fictícios, colocando a história a serviço do fantástico de suas ficções? Desde a Historia universal de la infamia Borges (1996i), leitor, manipula textos que leu e traduziu, criando outros. Ou seja, desde seus primeiros contos, elaborados de 1933 a 1934 e chamados pelo autor de exercícios de prosa narrativa, ele se dava ao direito de praticar a escritura de suas narrativas, a partir de traduções infiéis. O próprio Borges, no “Índice de las fuentes” (ibidem, p.379), informa ao leitor que “Lazarus Morell” se baseia em Life on the Mississippi, de Mark Twain, e em Mark Twain’s America, de Bernard Devoto; já a biografia de “El impostor inverosímil Tom Castro” provém de The History of Piracy, de Philp Gosse, que também inspirou a “La viuda Chang, pirata”; já “El
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22 Waisman (2005, p.98) observa que um dos aspectos que chamam a atenção nesses relatos é a semelhança entre as infidelidades criadoras de Borges ao escrevê-los e as traduções infiéis que ele elogia em “Los traductores de Las 1001 Noches”. Tal fato não deveria nos surpreender, se considerarmos que Borges os escreveu na mesma época em que desenvolvia suas idéias sobre a tradução.
23 “Prólogo a la primera edición” de “Etcétera”, parte final de Historia universal de la infamia.
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O conto foi publicado na revista Sur, em maio de 1939, antes de ser incorporado à primeira coleção de relatos fantásticos de Borges, El jardín de senderos que se bifurcan, em 1941 (Monegal, 1980, p.78). 25
É importante registrar que quase todos os textos citados na obra visível de Menard estão vinculados à tradução. Waisman (2005), Molloy (1979), Balderston (1996) e Pastormelo (s. d.), dentre outros, discutem o assunto.
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proveedor de iniqüidades Monk Eastman” deriva de Gangs of New York, de Herbert Asbury, e assim por diante. Dessa forma, observa Molloy (1979), Borges lê previamente um texto, dialoga com ele e o modifica a seu bel-prazer, escolhendo os elementos que utilizará numa série de infidelidades criadoras para fazer sua própria versão.22 São suas as palabras: “En cuanto a los ejemplos de magia que cierran el volumen, no tengo otro derecho sobre ellos que los de traductor y lector”. 23 No “Prólogo a la edición de 1954”, Borges (1996i, p.315) confessa que as narrativas da Historia universal de la infamia são o irresponsável jogo de um tímido que não se animou a escrever seus próprios contos e que se distraía em falsear e tergiversar (sem nenhuma justificação estética) histórias alheias. Sarlo (1995, p.117) vê mais insolência que timidez na ideia de saquear histórias alheias, alterá-las, agregar-lhes detalhes, acriolá-las em seu vocabulário, confiando-as à ironia e à paródia. Assim, alterações, modificações, burlas, feitas muitas vezes com o auxílio da tradução, são marcas registradas na estética borgiana. Esses exercícios de prosa narrativa representam algo mais que o resultado das releituras e traduções de autores preferidos, afirma Monegal (1980, p.91). Implicitamente, Borges postula que reler, traduzir, além de partes da invenção literária, constituem mesmo a invenção literária. É, no entanto, em “Pierre Menard, autor del Quijote”,24 talvez o texto mais preciso de Borges sobre as relações entre leitura, escrita e tradução, que se evidencia de forma mais nítida o lugar de destaque que a tradução ocupa no seu processo criativo, convertendo-se em matéria literária. Com um estilo que desfaz os limites entre crítica e ficção, o conto, apresentado como uma resenha póstuma das obras de Pierre Menard, é narrado por um crítico literário que tenta resgatar o verdadeiro catálogo das obras desse homem de letras francês, que viveu no início do século XX. Para o narrador, é fácil enumerar a produção visível de Menard (monografias, traduções, poemas, análises).25 Como bem sabem os leitores de Borges, a obra que
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realmente define o talento de Menard, seu projeto culminante, é seu trabalho invisível, sua obra mais significativa. O singular objetivo de Menard não é simplesmente traduzir o Quixote, mas repetir na íntegra o texto escrito por Cervantes, objetivo ao mesmo tempo extravagante, utópico, quixotesco e impossível de ser realizado. Ele se nega a simplesmente interpretar ou reproduzir o Quixote; pretende recuperar não apenas o texto de Cervantes na sua totalidade, mas o contexto em que foi escrito. Assim Borges, ironicamente, retrata o tradutor ideal como aquele que faz coincidir palavra por palavra, linha por linha. E, ao comparar os textos idênticos, mas ao mesmo tempo tão diferentes dos de Cervantes e Menard, Borges comprova, segundo Pastormelo (s. d.), a inevitável imperfeição de uma tradução dita perfeita, a irredutível margem de infidelidade a que devem resignar-se todas as traduções. O resultado, magistral e incrível, resume o fundamento da estética borgiana. Dessa forma, Menard, ao demonstrar que até as mesmas palavras, num mesmo idioma, podem assumir significados novos se o contexto é outro, alegoricamente representa todo tradutor que se impõe a impossível empreitada de repetir um texto escrito em uma língua diferente, por um outro autor, em outras circunstâncias, sem se anular, sem deixar de ser ele próprio. Como conclusão deste trabalho, pode-se afirmar que, no contexto das letras hispânicas, não há outro escritor para quem a tradução seja parte tão integral de sua obra quanto Borges; ou seja, as suas teorias de tradução estão de tal forma ligadas às suas narrativas ficcionais, que tradução, leitura e escrita são práticas quase inseparáveis do ato de criação. Borges conferiu, conforme Costa (2005, p.183-4), uma nova dignidade ao texto traduzido em geral, e não apenas às grandes traduções. Sua contribuição crítica e teórica é de primeira grandeza; nela estão os germes de novos modos de traduzir. Cabe às novas gerações, um dia, tentar implementá-los.
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Muito além da adaptação: a poesia do cinema de Terra em transe
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Adalberto Müller*
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RESUMO: O filme Terra em transe, de Glauber Rocha, não é uma adaptação de uma obra literária específica, mas desenvolve em seu próprio bojo uma poesia que mantém o filme num limite entre poesia (ou literatura) e cinema. Pode-se dizer, assim, que Glauber Rocha adapta a poesia ao cinema, e o cinema à poesia. Alegorizando as fraturas da sociedade, usando fartamente do recurso da ironia, Terra em transe representa a vida e a morte do poeta numa sociedade em que a poesia e a política se excluem mutuamente.
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PALAVRAS-CHAVE: Adaptação, poesia e cinema, alegoria, ironia, Glauber Rocha.
Glauber Rocha’s Terra em transe is not an adaptation of a specific literary work, but it develops in its core a poetry that keeps the film on the border between poetry (or literature) and cinema. One can say, then, that Glauber Rocha adapts poetry itself to cinema, and cinema to poetry. Allegorizing the fractures of society, using largely the ressource or irony, Terra em transe represents the life and death of a poet in a society where poetry and politics can no longer live togheter.
ABSTRACT:
KEYWORDS:
Adaptation, poetry and cinema, allegory, irony, Glauber Rocha.
* Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor de Teoria da Literatura e de Literatura e Cinema na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Os estudos sobre adaptação de obras literárias para o cinema privilegiam majoritariamente os casos de adaptação de romances, seguindo uma tendência da própria história do cinema, que privilegiou a narrativa romanesca como modelo para o filme de longa metragem (cf. Machado, 1997, p.100-13). Poucos são os estudos sobre literatura e cinema que tomam a poesia como referência (cf. Müller,
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2006, p.88-105). Será isso um reflexo do lugar que a própria poesia ocupa nos estudos literários, ou um desconhecimento de uma tradição de filmes e autores de cinema que dialogam frutiferamente com a poesia? No caso brasileiro, não faltam exemplos, e significativos: bastaria lembrar de Limite, de Mário Peixoto – ele próprio poeta –, de Julio Bressane, e, mais recentemente, de Joel Pizzini (Caramujo-flor) e Lina Chamie (sobretudo o recente A vialáctea). Talvez o que ocorra é que esses filmes e diretores nos obriguem a pensar a relação entre literatura e cinema além da adaptação, pois neles a poesia se entranha no filme, na mesma medida em que ela “estranha” o aparato cinematográfico, gerando obras incomuns e inclassificáveis (cf. Altman, 2000). Tal é o caso, a meu ver, de um filme como Terra em transe, de Glauber Rocha. Terra em transe é um filme para se rever. Volta-se a ele com a mesma curiosidade com que se volta às páginas de Grande sertão: veredas, ou aos poemas de Drummond. Há nele algo capaz de, a cada nova sessão, fazer abrir no espectador um leque de ideias e sentimentos. É um filme que, no melhor sentido da palavra, comove. Nesse sentido, podese vê-lo como um poema, sobretudo se se considera que seu protagonista é um poeta, e se recorda-se que a primeira experiência estética de Glauber Rocha como criador foi um um espetáculo que tinha como finalidade buscar uma nova forma de encenação da poesia, as Jogralescas.1 Também se deve lembrar que Glauber Rocha (1981, apud Autran, 2006, p.58) repetidas vezes reivindicou para si o título de poeta: “poderíamos voltar àquela antiga condição de artesão obscuro e procurar com nossas miseráveis câmeras e poucos metros de filme que dispomos aquela escrita misteriosa e fascinante do verdadeiro cinema...[o]cineasta se reduzir à condição de poeta e, purificado exercer o seu ofício com a seriedade e sacrifício”. Terra em transe é, antes de mais nada, a história de um poeta,2 e do destino da poesia num país dilacerado por forças políticas antagônicas. Ao longo do filme, há um grande poema sendo lido/performado por Paulo Martins, e o filme gira em torno desse poema.
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Em carta de 1957, Glauber Rocha (1997, p.92-3) assim se posiciona quanto à encenação: “Sabemos muito bem das restrições que se fazem à ‘encenação’ de poemas com a alegação de que poesia é para ser lida em silêncio ou por uma voz extática à maneira dos jograis de São Paulo (em coro, aliás) etc. O que realizamos, e não leve aqui uma descabida pretensão, é no sentido de alcançar uma linguagem onde os elementos materiais e espirituais do poema possam se completar mútua e intensamente”.
documentou, é poeta, e membro da ABL. Uma história cultural desse mito do poeta no Brasil seria desejável e valiosa.
2
Poeta ou “intelectual”? Prefiro apostar na figura do poeta à do “intelectual progressista” ou “orgânico”, como se dizia nos anos 1960/ 1970. O Brasil é um país de letrados, como se diz. E nele, o poeta representa uma espécie de mito nacional, que tem bases fortes na cultura popular (nos repentistas), mas que é respeitada também pela burguesia, e até mesmo no meio acadêmico (muitos professores universitários são poetas). Basta lembrar que a Academia Brasileira de Letras (ABL) é uma instituição mais política do que acadêmica propriamente, e reflete a realidade das diversas academias estaduais e municipais de letras, em que políticos e homens “de bem” da sociedade dispendem suas horas ociosas a recitar longuíssimos poemas parnaso-românticos. O ex-presidente José Sarney, por exemplo, cuja campanha a governador, antes de Terra em transe, Glauber
3
Grifo do autor. Essa tradução e as demais são minhas.
4
Hegel se coloca aqui ao lado de Goethe e de outros pensadores do Idealismo, que condenavam a alegoria em comparação com o caráter ideal do símbolo para a arte.
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Trata-se, é claro, de um filme alegórico, de uma alegoria histórica (Xavier, 1999), que remete de maneira bastante clara a diversos acontecimentos políticos (como a ditadura), culturais e cinematográficos, segundo a excelente leitura de Ismail Xavier (1993). Leitura que, aliás, me dispensa de uma análise mais detida de sua construção formal, com seus efeitos vertiginosos de dissociação entre som e imagem, com sua polifonia (operística) de vozes em contraponto, com sua força de representar de modo fraturado (fragmentado) o esfacelamento da sociedade brasileira, mostrando, como no pensamento de Walter Benjamin (1978), a história como sofrimento e morte. Nessa mesma direção, interessa perceber no filme o seu modo de representar aquela fratura entre fundo e forma que Hegel apontou, negativamente, como a característica da alegoria. Para Hegel (1970, p.508), a arte, e, com mais intensidade, a poesia, etapa fundamental na constituição subjetiva do espírito (Geist), por ser a sua manifestação sensível (Erscheinung), deveria apresentar-se na forma (Gestalt) de uma coincidência entre o conteúdo e a forma (Form): “a Forma absoluta [Gestalt] supõe a dependência entre conteúdo e forma [Form], alma e corpo, como concreta animação [Beseelung], como e para si na alma tanto quanto no corpo, ambas fundadas na reunificação do conteúdo e da forma”.3 Ao contrário do símbolo, que concretiza essa união,4 formas de expressão como o enigma, a alegoria, a metáfora, a comparação tendem a provocar uma separação. No caso da alegoria, Hegel é categórico: a alegoria, por ser uma representação personificada (do Bem, do Mal, da Beleza) de um universal (Allgemeines) no particular (Besonderes), torna-se “gelada e fria [frostig und kalt]”, na medida em que a separação se torna evidente em sua abstração: Sua personificação geral é vazia, e a exterioridade definida apenas um signo que tomado em si mesmo não tem mais significação alguma. E o ponto mediano, que deveria resumir a diversidade dos atributos, não possui a força de uma unidade subjetiva que se constitua em sua existência
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real, e que se relacione consigo mesma, mas se torna uma forma puramente abstrata, para a qual a realização, tendo tal diminuição das particularidades por atributo, permanece algo de exterior. (Hegel, 1970, p.513)
pestivo, de doloroso, de imperfeito, em uma face – não em uma caveira [...] Esse é o cerne da observação alegórica, do Barroco, exposição universal da História como História do sofrimento do mundo. (ibidem, p.343)
Walter Benjamin (1978, p.336ss) escreve seu tratado sobre o drama barroco contra o caráter “usurpador” da defesa do símbolo feita pelos românticos, a qual deu um caráter religioso à discussão sobre o símbolo. Benjamin procura rever o papel da alegoria no barroco e na modernidade a partir do conflito entre Natureza e História. Os exemplos dados pelo filósofo de Frankfurt, como Goethe, Schiller e, sobretudo, Schopenhauer (segundo o qual uma representação que usa o particular apenas como pretexto para um universal não poderia ser arte [ibidem, p.338]), demonstram que a posição dos românticos permanece enclausurada numa idealização totalizadora e religiosa do Belo. Para os barrocos e modernos, no entanto, a pretensa antinomia universal-particular se dá de forma não transparente – como queriam os românticos – mas de forma dialética, como conflito:
Ainda, com relação ao significado, a alegoria se caracteriza pelo modo de apresentar as coisas como “incomensuráveis” (ibidem, p.351): na representação alegórica, “cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar uma outra coisa” (ibidem, p.350). Como correlato dessa forma de representação, o mundo aparece como a fusão de História e Natureza, sob a forma de ruína: “Allegorien sind in Reiche der Gedanken was Ruinen im Reiche der Dinge”, ou, em bom português, “as alegorias são, no reino dos pensamentos, o que as ruínas, no reino das coisas” (ibidem, p.354). Como os pedaços de vasos antigos, e colunas quebradas, a alegoria só deixa ver o mundo por meio de seus fragmentos, não como totalidade, e muito menos como um Absoluto. A poesia e a arte – e a filosofia da arte – alegóricas remetem, por sua vez, ao comportamento melancólico do poeta, para quem a representação da história só pode ser um Trauerspiel: drama, tragédia e luto. Além da figura emblemática de Hamlet, Benjamin toma como um dos exemplos desse comportamento melancólico um fragmento de Pascal (apud ibidem, p.321): “L’Ame ne trouve rien en elle qui la contente. Elle ne voit rien qui ne l’aflige quand on y pense. C’est ce qui la contraint de se répandre au déhors, et de chercher dans l’application des choses extérieures, à perdre le souvenir de son état véritable”.5 O protagonista de Terra em transe é marcado por esse caráter melancólico, por essa acedia, que lembra a do príncipe Hamlet: imerso no redemoinho trágico da história, Hamlet é forçado a agir, mas sua reação é a indecisão do ser e do não ser, que o leva a agir mesmo sem querer agir. Vejamos, mais de perto, como Paulo Martins encarna um drama análogo. Quando o filme começa, logo depois da famosa tomada aérea, assistimos à confusão (trilha sonora: toques de repique, rajadas de metralhadora) no palácio do governador
A medida da experiência simbólica é o Nu místico, no qual o símbolo adquire o sentido em seu interior oculto, ou, se se pode dizer, em seu interior selvagem. Por outro lado, a alegoria não está livre de uma dialética análoga; e a paz contemplativa, com a qual ela se afunda no abismo que se forma entre o ser e a significação, nada tem da suficiência indivisível que se encontra na aparentemente análoga intenção do signo. (ibidem p.342)
A diferença, porém, não é apenas formal. Para Benjamin, alegoria e símbolo são modos diferentes de pensar a história. Pois enquanto o símbolo, em sua clareza clássica, representa a face luminosa da natureza como solução (Erlösung), Na alegoria, aparece, diante dos olhos do observador, a facies hippocratica da História, como proto-paisagem fixa. A história se manifesta com tudo o que ela tem de intem-
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“A alma não encontra nada em si mesma que a contente. Ela não vê nada que não a aflija quando se pensa. É isso que a obriga a espalhar-se para fora de si, aplicar-se na busca das coisas exteriores, a perder a lembrança de seu verdadeiro estado.”
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(populista de “esquerda”) Vieira, que enfrenta sua maior crise política, vendo-se ameaçado de intervenção das tropas do presidente Fernandes. Fernandes age apoiado pelo maior rival de Vieira, Porfírio Diaz, o senador reacionário de direita com quem Paulo Martins iniciou sua carreira. Quando Paulo Martins aparece na sacada do palácio (mudança da trilha sonora, das rajadas de metralhadora para o solo de violoncelo), procura convencer (voz in e over) Vieira ao enfrentamento. No entanto, sob pretexto de evitar derramamento de sangue “inocente”, Vieira opta pela renúncia, o que levará Paulo Martins ao gesto suicida de pegar em armas sem o apoio de Vieira, o qual resultará em sua morte. Na sequência, vemos Paulo Martins e Sara num veículo (um fusca) em movimento (câmera no para-brisas, sempre em posição frontal aos dois). Paulo dirige enquanto tenta convencer Sara de que a melhor solução seria a luta armada. Em seus diálogos, compõe o primeiro poema do filme:6 SARA Morreria gente, Paulo, o sangue, o sangue PAULO Não se muda a História com lágrimas SARA Se todos pegarem em armas, quando todos pegarem em armas... Até mesmo gente como você. PAULO Gente como nós, burgueses, fracos. Mas eu assumo os riscos, eu assumo os riscos... SARA Páre, Paulo. Páre, Paulo, a sua loucura... PAULO A minha loucura é a minha consciência. A minha consciência está aqui, No momento da verdade, Na hora da decisão, na luta, Mesmo na certeza da morte.
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SARA Não precisamos de heróis corte (subjetiva, a partir do pára-brisa: dois policiais na estrada) Precisamos resistir, resistir (gritando) Eu preciso cantar, eu preciso cantar. (os policiais o cercam com motocicletas e atiram; sirenes, tiros) vários cortes em jump-cut. Volta ao plano do carro em movimento. PAULO (visivelmente atingido por um tiro) Não é mais possível esta festa de medalhas, Este feliz aparato de glórias, Esta esperança dourada nos planaltos. Não é mais possível esta marcha de bandeiras, Com guerra e Cristo na mesma posição. Ah, assim não é possível! A ingenuidade da fé! corte PAULO (Sozinho numa duna/deserto, agonizante; orquestra e piano concertante) A impotência da fé!
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As citações do filme são transcrições do DVD Terra em transe, da Versátil Home Video (2006). Adotei aqui o modelo (adaptado) de diálogos em roteiros, com indicações de encenação em itálico. 7
Mário Faustino, um dos poetas mais instigantes dos anos 1950, foi redator do Suplemento Literário do Jornal do Brasil, que revolucionou a maneira de divulgar a poesia no Brasil. Morreu em um trágico acidente aéreo nos Andes, em 1966.
Enquanto Paulo agoniza, de forma semelhante às lentas agonias das óperas, (como observou Ismail Xavier), vemos surgir sobre essa imagem um poema do piauiense Mario Faustino7 (em caracteres cursivos, com o nome do autor embaixo): não conseguiu firmar o nobre pacto entre o cosmo sangrento e a alma pura ............................................................ ............................................................ gladiador defunto mas intacto (tanta violência, mas tanta ternura) Mario Faustino
Surge então a voz over de Paulo Martins, mas uma voz localizada em outro tempo da diegese, o tempo do narrador que rememora os eventos que assistimos e vamos assistir. Ele se dirige a Sara no presente (“estou morrendo”), o que
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dá à narrativa um caráter ainda mais instável, pois que os tempos passam a se confundir. Afinal, se vemos a imagem de Paulo sozinho no deserto, empunhando a pistola em direção ao céu, como essa voz, dissociada do seu corpo (da imagem), se dirige a Sara? Trata-se, pois, de uma outra situação de enunciação, mais voltada para a organização da narrativa do que para a caracterização do personagem. Essa dissociação ambígua das vozes (acompanhada pela montagem visual) é justamente um primeiro sinal da alegorese do filme, ou seja, da fragmentação. PAULO Estou morrendo nesta hora, estou morrendo neste tempo. Estão correndo o meu sangue e as minhas lágrimas. Ah, Sara! Todos vão dizer que sempre fui um louco, Um romântico, um anarquista, que sempre... Ah, não sei, Sara... (a imagem permanece a mesma, Paulo agoniza; fim da trilha sonora) PAULO Onde estava a três quatro anos, onde? Com Dom Porfírio Diaz, navegando nas manhãs. O meu Deus da juventude, Dom Porfírio Dias.
Essa fragmentação da temporalidade narrativa pode ser tomada, como dissemos, como um dos atributos do estilo alegórico do filme, fragmentação que também já estava presente na sequência inicial do palácio de Vieira, em que a trilha sonora, a duplicidade da voz (in e over), os travellings aberrantes, os cortes em faux-raccord, tudo parece estar submetido ao regime da fratura e incompletude. Segundo Ismail Xavier (1999, p.343), os textos alegóricos são “texts that gives us a sense of incompletness or fragmentation (the sense that something is lacking)”.8 Esses textos são também marcados pelas ideias de descontinuidade e opacidade, incompletude e ambiguidade. Em termos de cinema, a estrutura desses filmes se opõe à do cinema clássico, na medida em que “the issues of fragmentation, opacity, and discontinuity arise within the context of the critique of illusionism”9 (ibidem, p.349).
8
“textos que nos dão a sensação de incompletude e de fragmentação (a sensação de que algo está faltando)”. Traduções minhas.
9
“as questões relativas a fragmentação, opacidade e descontinuidade surgem num contexto de crítica ao ilusionismo”.
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Fugindo de um efeito pedagógico e do maniqueísmo redutor, essas alegorias modernas conseguem representar de forma crítica os dilemas nacionais. E se, porém, for o caso de pensar que, além de “alegoria nacional”, Terra em transe é, antes de tudo, uma alegoria do próprio poeta, e da função social da poesia? Se adotarmos essa direção, poderemos chegar à conclusão de que a forma de pensar de Glauber não dissocia poesia e política, cinema e reflexão crítica sobre a história. Pelo contrário, ele afirma que a política e a história deveriam ser pensadas, alegoricamente, pelo viés da poesia. Mas que poesia? Para responder a essa pergunta, temos que seguir o Bildungsroman cinematográfico da transformação do poeta Paulo Martins no político Paulo Martins, transformação que se opera por meio da modificação de sua própria “obra”. Depois da entrada carnavalesca de Diaz em cena, vemos Paulo Martins no seu palácio, ao lado de uma balaustrada, observando Diaz e Silvia (Danuza Leão, na flor da idade) dançando, ao som de uma valsa vienense. Seu texto é na verdade uma continuação do texto anterior (ver antes), só que aqui não há aquela dissociação temporal entre a voz e os acontecimentos. Apesar do uso do pretérito (“estava”) o dêitico “ali” referencia a voz, a “sincroniza” à imagem. Mas, assinale-se, estamos ainda bem longe de um padrão clássico de montagem entre o som e a imagem, já que a própria voz over produz estranhamento e distanciamento (cf. Lima, 2007). Mais ainda, porque um travelling deslocará a câmera do rosto de Paulo, por meio da balaustrada, até o casal dançando (a voz passa, portanto, de over a off), produzindo uma nova fragmentação discursiva, que favorecerá ainda mais a alegoria: PAULO (v. over) Estava ali dançando com Sílvia travelling (v. off) e aquele era um dia feliz para ele. Acabava de ser eleito Senador com grande votação e era um dia tão feliz, que ele se fechou em sua casa apenas com Sílvia e comigo. E eu o
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seguindo sempre, me perdendo, sem nada a fazer nesses dias inúteis e vazios em Eldorado. Um inferno Eldorado PAULO (entra no campo, de costas. V. over) Um inferno, me frustrando, me envelhecendo, era assim. Corte (casal dançando) PAULO (v. off) Há muitos anos seguindo Diaz. E naquela noite ele veio a mim, com tanta ternura e amizade e atenção. (trilha: valsa)
A sequência que acabamos de ver, embora não trate de poesia, realiza a poesia, por meio do jogo da montagem, e nessa poesia vemos um Paulo entregue à acedia típica dos personagens barrocos:10 a frase “sem nada a fazer nesses dias inúteis e vazios”, particularmente a ideia do vazio (cf. Pascal, 1966), remete a toda uma série de personagens melancólicos, e adquire tintas mais expressivas com a revelação da consciência do envelhecimento e da morte, tão comum entre os grandes poetas barrocos e maneiristas, como Don Luís de Góngora, Gregório de Matos, Jean de Sponde e Tristan L’Hermite. Se aqui a poesia acontece no nível da estrutura, na próxima sequência ela surge de modo explícito. Diaz e Paulo conversam (a montagem agora respeita a regra do campo-contracampo, e do eixo de180 graus): DIAZ (erguendo uma taça) Ao nosso poeta, que será deputado nas próximas eleições. À Sílvia, que será a Sra. Paulo Martins. (Paulo não responde) DIAZ O que foi. Não está satisfeito. PAULO Não, não é isso. Você bem sabe da minha amizade, admiração. Mas compreenda, começar tudo por suas mãos, quando eu podia começar sozinho... DIAZ Não quer ser afilhado de Dom Diaz? Orgulho? PAULO Não sei, mais...se eu continuasse a minha poesia. Eu mesmo, uma poesia nova. Se eu pudesse escrever falando de coisas mais sérias. Se eu pudesse falar de...
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DIAZ ...Idéias políticas? (Paulo Titubeia. Diaz começa a andar. Travelling) DIAZ Somos radicais e extremistas na juventude... PAULO (abaixando a cabeça) Pensei muito. Eu não devo mais lhe procurar.
Decepcionado com o amigo, e já antevendo a raiz de uma traição (que de fato acontecerá), Diaz se retira. Paulo se embriaga e dança com Sílvia, e, depois de quebrarem taças no chão, Paulo se dirige a uma sacada da sala do palácio, e comeca a recitar em voz alta, e ligeiramente embriagada, num tom marcadamente tardo-romântico (sobretudo pelo uso da redondilha maior, e com rimas alternadas rimas em -ão):
10
Para a presença do barroco, e do “neobarroco” no cinema moderno, ver Lopes (1997).
PAULO Vejo campos de agonia, velejo mares do não. Na ponta da minha espada trago os restos da paixão...
O tom elevado de romantismo, porém, já vem, de certa forma, sendo atenuado pela acentuação pausada das palavras, por uma voz que já anuncia um dilaceramento agônico, barroco, que leva a voz a diminuir o tom: ...Que herdei daquelas guerras Umas de mais outras menos, Testemunhas enclausuradas Do sangue que nos sustenta...
Um corte nos leva à escadaria do palácio (local onde mais tarde Diaz será coroado e morto por Paulo), onde Paulo está sentado, e continua a declamar seu poema, agora quase sussurrando: 11
A legenda traz “florindo”, mas é mais provável que ele diga “fluindo”.
...A morte nos construindo, Florindo,11 devorando... Silvia se aproxima. Corte. Detalhe das mãos. Travelling pelo corpo de Silvia
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da capital e de Diaz), num jornal “independente e noticioso” (conforme os títulos sobre a imagem), o Aurora livre. O fato de que opte por escrever a sua “poesia” em outra mídia que o livro, ou as récitas de salão, é um dos pontoschave para a compreensão da “nova poesia” de Paulo. A convivência com as notícias trágicas sobre miséria e violência levará Paulo a se aproximar de Vieira. Ao contrário de Diaz, cuja entrada é marcada pela alegoria carnavalesca e brasileira, Vieira é apresentado como caudilho latinoamericano, tanto pela indumentária e pelo charuto como pela trilha musical, um tango. Mais ainda, antes de vermos o primeiro encontro de Vieira com Paulo, escutamos em off (a voz de Paulo) um trecho de Martin Fierro:
PAULO (v. over) Convivemos com a morte dentro de nós. A morte se converte em tempo diário, Em derrota do quanto empregamos, Ao passo que vamos, recuamos. Solo de violoncelo. Paulo deixa Silvia e sai rumo à porta do palácio de Diaz.
Essa poesia mórbida, melhor dizer trágica, remete-nos ainda uma vez à imageria barroca do conflito de viver com a consciência prematura da morte. Encontramos essa temática desenvolvida no Sermão da quarta-feira de cinzas, do padre Antonio Vieira, mesmo com imagens bastante similares, como a de “ao passo que vamos, recuamos”. Mas também se pode associar essas imagens ao pré-romantismo de Byron, que, entre nós, encontrou bons ecos na poesia do adolescente Álvaro de Azevedo, e, mais ainda, de Junqueira Freire. Este último, e isso vem ao caso, propõe como saída para a dolorosa consciência, como muitas vezes acontecerá a Paulo Martins, o gozo dos prazeres mundanos:
Travelling frontal de afastamento sobre Vieira PAULO (v. off) Es el pobre en su orfandad De la fortuna el desecho. Porque nadie toma pechos En defender a su raza... Corte. Na sala, Paulo lê o livro para Vieira e Sara. PAULO Debe el gaucho tener casa, Escuela, iglesia y derechos.
Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas A cada instante te oferece a cova. Pisemos devagar. Olhe que a terra Não sinta o nosso peso.
Não se pode omitir, contudo, que aqui não se trata apenas de uma questão estilística, pois que na alegoria de Terra em transe o estético e o político são duas faces da mesma moeda: quando fala de poesia, o filme fala de política, e vice-versa.12 Nesse sentido, a “morte” de que fala Paulo Martins deve ser vista também como uma morte política, que traduz-se na incapacidade de agir politicamente. Por isso a resposta de Diaz para a “poesia nova” que Paulo Martins deseja escrever é tão significativa: a poesia nova é a poesia das ideias políticas, e não a poesia barroca (ou pré-romântica) que Paulo recita quando está com Sílvia, embriagando-se. O primeiro passo do poeta em direção a uma nova poesia é buscar trabalho, num jornal, em Alecrim (longe
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12 No Auctor ad Herennium encontramos a definição da alegoria como permutatio entre as palavras (verbis) e o sentido (sententia) (Ueding, 1992, p.330).
Esse poema é um pretexto (um pré-texto) para a discussão que vai ocorrer no pátio (a arquitetura típicamente ibero-americana, como a sala, aliás, alegoriza o caudilhismo). Mas o tom dessa sequência é em tudo distinto, como será distinta a relação política-poesia. Vieira, Sara e Paulo bebem, sorriem e conversam (ao som de uma música divertida, de flautim). A descontração aqui parece remeter ao espaço de intimidade, ao espaço privado, se compararmos com a solenidade da cena na sala. No entanto, apesar das risadas, e de algumas piadinhas (mesmo de uma alusão libidinosa de Vieira em relação a Sara), o tom oscila entre o cômico e o sério, e o tema da conversa gira em torno das futilidades da vida privada e do dever da vida pública. Mais uma vez deparamos, e agora de maneira irônica, com o
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binômio poesia/política. Quando Sara revela ter gostado do livro de Paulo, esse responde, com voz meio embriagada: “Ah, coisas da juventude. Eu acho que a política... o que eu gostaria mesmo era de fazer política”. Essa afirmação de Paulo dá vazão à empáfia de Vieira, que começa a definir as mazelas da vida política, apresentando-se como um self-made man. O discurso de Vieira, no entanto, corresponde simetricamente ao de Diaz, na medida em que sua verdadeira intenção é a de convencer Paulo a não abraçar a carreira política, e, sim, continuar a ser poeta – a seu serviço. E, como vemos, seu discurso dissuasivo dá resultado, uma vez que Paulo e Sara evocam o poeta romântico “condoreiro” Castro Alves, que alegoriza aqui a figura do poeta hugoano, lutando contra as injustiças na praça pública, emprestando sua pena, e, mais do que isso, sua voz, aos que gritam contra os regimes tiranos: PAULO Falando sério, Vieira, eu acho que você é um excelente candidato. Eu ponho a minha humilde pena à sua disposição VIEIRA (erguendo a taça) O país precisa de poetas. Dos bons poetas... PAULO e SARA (em tom de troça) Ah, sei. Hmm. VIEIRA ...revolucionários, como aqueles românticos do passado... PAULO (levantando a taça; v. off – vemos apenas a taça) Vozes que levantaram multidões SARA (levantando a taça; v. off – vemos ligeiramente seu rosto e depois apenas a taça) A praça, a praça é do povo como o céu é do condor Corta para Paulo, que aplaude e sorri. PAULO Faremos majestosos, majestosos comícios nas praças de Alecrim. Magníficos. Os três sorriem em tom de troça.
O que vemos em seguida é a campanha e a vitória de Vieira nas eleições, em cenas que retomam as filmagens que Glauber Rocha realizou na campanha de José Sarney
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ao governo do Maranhão (parte dessas filmagens foi, aliás, aproveitada no filme). As imagens da vitória, contudo, terão como contraponto visual o plano em que Sara está com a cabeça encostada nos ombros de Paulo: esse plano é a matriz de vários planos similares, em que veremos Paulo com a cabeça encostada nos ombros de Sara. Eles podem ser vistos como leitmotiv alegóricos da melancolia de Paulo diante da incapacidade de mudar os acontecimentos. Paulo é, paradoxalmente, um agente desses mesmos acontecimentos, uma vez que ele será responsável indireto pela morte do camponês Felício, que tenta defender-se e aos seus da desapropriação das suas terras. “Gente fraca e com medo”, diz Paulo, embora Felício tenha tido a coragem de defender-se contra as injustiças, de agir segundo sua consciência, ao contrário de Paulo, que age sob a tutela de Vieira. Não por acaso, Paulo, será considerado, pela mulher de Felício, o verdadeiro culpado da morte de Felício, enquanto agitadores profissionais irão pôr a culpa em Vieira. Esse acontecimento desencadeia o primeiro baque na utopia revolucionária esquerdista de Paulo e Sara. No encontro com Diaz, o comandante do exército (Mário Lago) deixa claro que será preciso optar pelo governo federal, contra o mandante do crime (Moreira, pertencente à oligarquia que financiou a campanha de Vieira). Paulo considera que é a hora de “deixar o vagão correr solto”, e ficar do lado dos estudantes e dos camponeses (ou seja, prender Moreira e romper com as oligarquias locais). Vieira não aceita. Paulo, inflamado, retruca: “PAULO: Eu não sou polícia do seu governo, para continuar resolvendo pela força conflitos que você tem obrigação de enfrentar”. Num mesmo plano, vemos Vieira preparar uma reação, mas subitamente detém e sorri, de modo irônico, para Paulo. Nesse exato momento, a consciência de Vieira é alegorizada pela trilha: os mesmos versos de Castro Alves, agora cantadas por um repentista nordestino, surgem como um refrão de um poema que começara no pátio (ver antes), o poema da aliança político-poética entre Vieira (o “condor”)
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e Paulo (“o poeta”): “REPENTISTA (OFF): A praça é do poeta/ Como o céu é do condor”. Vieira tenta então um conchavo: oferece a Paulo, em, troca de um acordo com a oligarquia, uma conciliação populista: mais dinheiro para as escolas. Paulo não aceita. Vieira opta então pelo caminho mais radical, o da repressão policial (contra as massas), o que leva Paulo a pedir demissão, não sem tentar deixar sua mensagem poética a Vieira, num poema que ele mesmo interrompe, talvez por não poder assumir as consequências das palavras que lhe saem da boca; ou para não ferir o amigo: “PAULO: Um dia quando for impossível / Impedir que os famintos nos devorem...”. Um pouco adiante veremos Paulo e Sara numa floresta, em beijos e carícias sôfregas. Paulo tenta retomar, em tom melancólico, o poema que recitou para Sílvia logo depois da separação com Diaz, agora transfundido na experiência vivida (ou seja, na experiência de uma utopia fracassada). No entanto, o poema se quebra novamente, e Paulo volta ao plano das decisões, no qual se percebe o conflito entre a “lógica” de Vieira e a “loucura” de Diaz: PAULO Mas eu recuso a lógica, a certeza, o equilíbrio... Eu prefiro a loucura de Porfírio Diaz. (corte) SARA Assim é tão fácil
Sara faz um longo discurso sobre a renúncia da felicidade pessoal (“casar, ter filhos”) em nome da felicidade coletiva, “entre pessoas solidárias”. Que outra resposta pode-se dar à lógica teleológica da história, que ruma em direção a uma sociedade revolucionária, pergunta Sara. A resposta de Paulo é hegeliana: “PAULO: A fome do absoluto”. Se em Hegel o Absoluto se realiza no caráter totalizante do símbolo, a alegoria, para Friedrich Schlegel, será justamente a “fome do absoluto” dentro da contingência do necessário, o que justamente levaria a alegoria a expressão fragmentada e fragmentária: “Toda alegoria significa o
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13
Athenaeum, fragmento 315. Citado por Frank (1992, p.132).
14
Para Frank (1992), o pensamento dos idealistas (Kant, Fichte) não se confunde com o dos pré-românticos (Hoelderlin, Schlegel).
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Absoluto, e não se pode falar do Absoluto senão alegoricamente”.13 Ao tentar representar o irrepresentável (o Absoluto, que é o Infinito, no fragmento), a alegoria (que diz uma coisa expressando outra), tem em si uma força de negatividade. Mas a negatividade da alegoria “consiste em si mesma como positiva liberação solucionante do olhar sobre o absolutamente presumido em todo pensamento e imagem” (Frank, 1992, p.133). A contrapartida da alegoria para Schlegel é, segundo Manfred Frank, o Witz, uma “uma cintilância pontual da diversidade na unidade, e do infinito no finito” (ibidem), uma “síntese caótica” (ibidem), e, segundo Schlegel, “genialidade fragmentária” (ibidem, frag. 90). Alegoria e Witz conduzem a uma “universalidade caótica” (ibidem, p.134), que é a expressão de uma consciência também fragmentada, bem diferente da consciência dos Idealistas (de Fichte, sobretudo),14 a que corresponde um universo também fragmentado e caótico. Para Schlegel, essa consciência negativa encontra, no entanto, uma solução, na poesia, como resposta irônica ao infinito dilaceramento do eu e fragmentação do mundo: a poesia. Por isso a poesia parece, pois, uma saída para Paulo: PAULO Eu tenho essa fome. Vem comigo, Sara. Não fique com os fanáticos à espera das coisas que não acontecem antes que nos acabemos. Vem comigo! A vida está acima das horas que vivemos. A vida é uma aventura. (grifo meu)
A resposta de Sara (depois do corte para a sala da casa de Paulo, ambos abraçados), porém, remete Paulo de volta ao mundo da fragmentação: “SARA: Você não entende. Um homem não pode se dividir assim. A política e a poesia são demais para um só homem...Volte a escrever”. Paulo (no mesmo plano), em resposta, prossegue seu poema, agora como um canto de cisne, que se volta reflexivamente para si mesmo: PAULO Não anuncio cantos de paz. Nem me interessam as flores do estilo.
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Como por dia mil notícias amargas Que definem o mundo em que vivo.
E Sara, tomada pelo ímpeto lírico de Paulo, continua o poema, que passa a ser tecido a duas vozes, polifonicamente, como se Sara saísse de sua condição de militante política para entrar em sintonia com a força da poesia: SARA Não me causam os crepúsculos A mesma dor da adolescência. Devolvo tranqüilo à paisagem Os vômitos da experiência.
Essa linha poética, no entanto, logo se quebra, com o discurso prosaico de Paulo: “PAULO: A poesia não tem sentido. Palavras... as palavras são inúteis”. Mais uma vez eles se beijam, como se o corpo fosse a última consolação depois da falência de tudo, mesmo da poesia. De fato, Paulo volta para Eldorado, perde “no fundo dos [seus] sentidos”. Ao som de um saxofone, o filme se converte num clone de La dolce vita, e vemos Paulo perder-se em orgias (com Julio Fuentes), passeios na praia, cenas de cama. Paulo não imagina que lá o mundo vai novamente se quebrar em estilhaços, e que, como poeta, será novamente chamado a participar da vida política. Ao lado de Silvia (isto é, de certo modo, ao lado de Diaz), volta a recitar poemas mórbidos e barrocos, que traduzem seu estado melancólico de incapacidade. O primeiro deles, meio poema, meio filosofia,15 em estilo Augusto dos Anjos, surge em voz over, enquanto anda com Sílvia junto a uma estante cheia de livros: PAULO (v. over) Quando a beleza é superada pela realidade, Quando perdemos nossa pureza Nestes jardins de males tropicais, Quando no meio de tantos anêmicos respiramos O mesmo bafo de vermes em tantos poros animais, Ou quando fugimos das ruas, E dentro da nossa casa
16 A leitura é ambígua: “a morte... agressiva” ou “vida, agressiva”.
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A miséria nos acompanha Em suas coisas mais fatais Como a comida, o livro, o disco, A roupa, o prato, a pele, O fígado em raiva rebentando, A garganta em pânico E um esquecimento de nós inexplicável, Sentimos finalmente que a morte aqui converge Mesmo com forma de vida, agressiva.16
A saída desse dilema, como entre os primeiros românticos, é a orgia, o “gozo”, de que fala Junqueira Freire. Quando desperta, depois de uma noitada com várias mulheres, numa tarde ensolarada (a bela contraluz filtrada da persiana, poesia da luz, é também um clichê da “doce vida”), e tenta telefonar (para Sara-Musa? Para Álvaro/ Vieira-Consciência?), volta-lhe o anseio de uma poesia nova, bem diferente da anterior, pelo caráter irônico: PAULO (v. over) Mar bravio que me envolve Neste doce continente. A este esquecimento posso doar minha triste voz latina, Mais triste que a revolta, muito mais...
15
Schlegel: “A poesia universal progressiva… filosofia... poesia”.
17
Ao que tudo indica, uma referência a Alphaville, de Godard (1965), que pode ser consideradoum modelo para o modo de inserção da poesia no cinema. Lá, o agente Lammy Caution (homófono de “l’ami cochon”), salva a bela e robotizada Natasha von Braun (Anna Karina) da completa alienação lendo-lhe os poemas lírico-políticos de Capitale de la douleur, de Paul Éluard.
O poema se quebra novamente. Mas, enquanto folheia as páginas do Jornal do Brasil, com o cigarro pendurado entre os lábios, volta-lhe a poesia, agora com um toque latino (o fantasma de Vieira ronda novamente sua consciência), e num tom de denúncia, ao gosto da poesia engajada de Pablo Neruda: PAULO Vomito na calle o ácido dólar, Avançando nas praças entre niños, sucios, Con sus ojos de pájaro ciego. Vejo que de sangue se desenha o Atlântico Sob uma constante ameaça de metais a jato Guerras e guerras nos países exteriores.17 Posso acrescentar que na lua um astronauta se deu por achado.
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Todas as piadas são possíveis na tragédia de cada dia. Eu, por exemplo, me dou ao vão exercício da poesia.
Nesse momento irônico, Paulo abre a persiana, e tira fotos da paisagem que vê da janela. Essa conjunção entre poesia, jornal e fotografia já anuncia o próximo trabalho de Paulo, a sua próxima investida no terreno da poesiapolítica, ou da política-poética. Sara visita Paulo, a pedido de Vieira, e chama a atenção de Paulo para as “coisas terríveis” que estão acontecendo, mas Paulo retruca que isso não lhe interessa (“eu tenho escrito sobre a miséria de nossas almas”). A conversa com os correligionários de Vieira (que acompanham Sara) deixa claro que, acima de Vieira e de Diaz, está a Explint, multinacional que explora o país e o mantém em condição de subdesenvolvimento. A Explint, porém, apoia Diaz, e Sara propõe que Paulo use a imprensa de Julio Fuentes para destruir Diaz. Para Paulo, isso é uma traição. Mas ele tenta, de modo quase infantil, apioando-se nos ombros de Sara, dizer que de nada vale mudar. Sara responde com uma poesia semelhante à que retiravam em Alecrim, uma poesia popular que lembra a dos repentistas (em redondilha maior e rima alternada): SARA (v. off) Recebi o dom da voz Destas carnes fustigadas. Destes olhos que sugaram Muitas léguas caminhadas. Neste esquecer horizontes Que outros poetas buscaram...
O pacto se fecha novamente, pois corta-se daí (do poema) para a conversa de Paulo com Julio Fuentes junto à antena de televisão. Julio Fuentes não é, a rigor, um homem engajado. Seu interesse é a manutenção de seu império econômico-midiático. Quando a Explint corta os gastos com publicidade, Fuentes opta por um conchavo com Paulo e Vieira. A saída é apoiar a completa tomada do poder, ou seja, levar Vieira ao governo federal, contra a
18 Aqui entra em jogo a questão da narratologia: quem é o autor e quem é o narrador do filme de Paulo Martins? Creio que aqui seriam de grande utilidade os conceitos de meganarrador, narrador delegado, e outras de Gaudreault & Jost (2002).
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Explint, Fernandez, e Diaz. Para usar os termos de Fernando Henrique Cardoso (Cardoso & Faletto, 1970), temos aí um caso em que, contrariando a prática dos países subdesenvolvidos, a burguesia nacional se alia aos interesses nacionais, em vez de aliar-se aos interesses do capital internacional. É o começo de uma revolução caudilha, e a missão do poeta Paulo Martins é dirigir a rede de jornal e televisão, para promover a vitória do populismo nacional. A poesia de Paulo passa a ser, portanto, a poesia da mídia. No filme televisivo “Biografia de um aventureiro”, “reportagem de Paulo Martins” (segundo o lettering), vemos, por meio desse filme dentro do filme (Stam, 1985), a carreira política de Diaz ser desmascarada publicamente. Paulo18 usa nesse filme as mesmas características alegóricas do filme de que faz parte (voz e imagem dissociadas), fragmentação alegórica, efeitos de distanciamento, montagem vertical. Exemplo dessa montagem são os dois planos em que Diaz aparece sobre a estátua de Baco (deus da Poesia), e em seguida empunha uma pistola, isso tudo ao som de uma ópera italiana. Trata-se de um tipo de reportagem que certamente não veríamos na televisão, dado o seu grau de experimentalismo (de poesia). A consequência desse “cinema de poesia” será a ruptura definitiva de Paulo com Diaz, numa cena simétrica à da ruptura com Vieira. Paulo renuncia às ofertas corruptas de Diaz, assim como renunciara às ofertas populistascaudilhescas de Vieira. Para Paulo, ao fim e ao cabo, Diaz e Vieira são da mesma espécie: só estão em partidos e posições distintas. A consequência desse rompimento é enunciada aos gritos por Diaz: “Você está sozinho, sozinho”. É que Paulo decidiu, enfim, “deixar o trem correr solto”. O documentário “Encontro de um líder com um povo”, provavelmente assinado por Paulo também (embora ele subitamente entre em cena, defazendo o seu próprio filme), eleva a alegoria à sua máxima potência. Ao som de uma bateria carnavalesca, Vieira aparece andando entre o povo, ao lado de um padre (Joffre Soares) e de um acadêmico, que é uma alegoria cômica do poeta oficial. O
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acadêmico começa um discurso em que compara Fernandes a Napoleão, Diaz a César, e Vieira a Lincoln, o presidente de origem humilde, o presidente do povo. Logo depois, o acadêmico começa a ler o seu discurso, em tom inflamado, típico das recitações de academias de letras, que não são muito distintas do tom de voz dos políticos brasileiros nos comícios eleitorais: ACADÊMICO Abramos trilhas nas florestas, Fundemos mil cidades, Onde antes eram países selvagens. E pontes sobre os rios, Estradas rasgando o deserto, Máquinas arrancando o minério da terra...
Numa das cenas mais hilariantes do filme, o mesmo acadêmico perde a compostura e cai no samba. De repente, no meio da multidão, surge Paulo Martins, com seu silêncio, novamente encostado nos ombros de sua musa, Sara. Ao som do glorioso e barroco concerto para violoncelo e cordas, a câmera gira em torno dos dois, como se se tratasse de um melodrama, como se todas as tensões houvessem sido milagrosamente aplacadas. O poema de Paulo acompanha, mas ainda num tom melancólico, o momento de euforia: PAULO (v. over) Qual o sentido da coerência? Dizem que é prudente observar a história sem sofrer, Até que um dia pela consciência a massa tome o poder. (ele sorri) Ando pelas ruas e vejo o povo apático, magro, abatido, Este povo não pode acreditar em nenhum partido. Este povo alquebrado, cujo sangue sem vigor, Este povo precisa da morte mais do que se possa supor. O sangue que estimula meu irmão à dor, O sentimento do nada que gera o amor, A morte como fé, não como temor.
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De fato, a morte vem. Não para o povo, mas para um seu representante, um sem teto que tenta dizer que os pobres estão sofrendo e é “silenciado” pelo pessoal de Vieira. Temendo mais uma vez outro levantamento popular, Vieira decide, de vez, “unir-se às massas”, contra “os inimigos interiores e exteriores”, adotando a fórmula de Paulo: “deixar o vagão correr solto”. Paulo, que se sente culpado pela morte do pobre sem teto, limita-se ao silêncio (ao som do violoncelo, o vemos olhando para o céu, e Vieira sendo “coroado” pelas massas). Nem tudo, porém, sai como Paulo queria. Diaz alia-se à Explint e a Fernandes, e conseguem o apoio de Julio Fuentes. Sem o império da mídia, Vieira se vê acuado, e decide conciliar-se novamente com o poder central (voltamos à sequência do início do filme). Ambos, Vieira e Diaz, tomam cada um a poesia de Paulo para si mesmos, e a usam para perpetuar um sistema injusto, misto de reacionarismo ultraconservador de direita e caudilhismo populista de esquerda, que levará à “coroação” de Diaz. Diante desses fatos, só resta a Paulo uma saída: a morte. Mas levará consigo a vida de Diaz, como último, e talvez único, gesto heróico de que é capaz. O filme volta ao início, e Paulo conduz seu carro em direção à morte, enquanto recita o poema, agora com modificações (em itálico): PAULO (visivelmente atingido por um tiro) Não é mais possível esta festa de medalhas, Este feliz aparato de glórias, Corte (coroamento de Diaz; Paulo com a pistola; Paulo atira em Diaz) PAULO (off) Esta esperança dourada nos planaltos. Não é mais possível esta festa de bandeiras, Com guerra e Cristo na mesma posição. Ah, assim não é possível! A impotência da fé! A ingenuidade da fé! Somos infinita e eternamente Filhos das trevas da inquisição e da conversão,
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E somos infinita e eternamente filhos do medo, Da sangria no corpo do nosso irmão. E não assumimos a nossa violência, Não assumimos as nossas idéias. Com o ódio dos bárbaros adormecidos que somos, Não assumimos o nosso passado, Todo o raquítico passado de preguiças e de preces, Uma paisagem, um som sobre almas indolentes, Essa indolente raça de servidão a Deus e aos Senhores, Uma passiva fraqueza típica dos indolentes, Ah, não é possível acreditar que tudo isso seja verdade. Até quando suportaremos, até quando além da fé e da verdade suportaremos? Até quando além da paciência e do amor suportaremos? Até quando além da inconsciência e do medo, Além da nossa infância e da nossa adolescência, Suportaremos? SARA O que prova a sua morte? PAULO O triunfo da beleza e da justiça corte PAULO (Sozinho numa duna/deserto, agonizante; orquestra e piano concertante) A impotência da fé!
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Terra em transe encena assim o conflito entre o poético e o político, conflito que se resolve como uma série de ações frustradas, e com a morte do poeta. O poema de Paulo Martins parece ser o canto do cisne, o último e único gesto possível para quem enfrentou o peso incomensurável de uma poesia realmente política, ou de uma política realmente poética. Ao mesmo tempo, a morte de Paulo Martins deixa atrás de si uma terra desolada (waste land) que nos anos seguintes iria se transformar, por força das pressões sociais, num gigantesco “faroeste cabloco”, como definiria muito bem o título da canção do grupo brasiliense Legião Urbana.
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O mouro e o cristão na tradução alemã da Diana de Montemayor – Desmarcando fronteiras Stéfano Paschoal*
RESUMO: Nesta breve discussão pretende-se demonstrar como ocorre a caracterização do mouro e do cristão numa história contida na obra Die Bücher der Schönen Diana, de Jorge de Montemayor (Los siete libros de la Diana), escrita em 1559, em espanhol, e traduzida para o alemão por Johann Ludwig von Kuffstein, em 1619. A história cuja tradução discutiremos intitula-se “História do Abindarráez” e foi inserida no final do quarto livro da obra de Montemayor na edição de 1561, de Valência. As adaptações decorrentes do processo de imitação e emulação – vigentes na tradução na Alemanha no século XVII – permitiram ao tradutor criar espaços intermediários para a acomodação de conceitos de outras culturas na cultura alemã. Após breve análise histórica, demonstraremos como as diferenças entre o mouro e o cristão, fortemente marcadas na “História do Abindarráez”, são diluídas na tradução alemã, o que exigirá a discussão sobre tradução na Alemanha do século XVII. PALAVRAS -CHAVE :
Tradução, emulação, Alemanha, século
XVII. ABSTRACT:
* Doutor em Letras, Estudos da Tradução, na área de Língua e Literatura Alemã, pela Universidade de São Paulo, professor assistente da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), campus de Marechal Cândido Rondon (PR).
In this brief discussion we intend to demonstrate the process of characterization of two figures: a moor and a Christian, in a history from Jorge de Montemayor’s Die Bücher der Schönen Diana (Los siete libros de la Diana), written in 1559 in Spanish and translated into German by Johann Ludwig von Kuffstein in 1619. The history whose translation will be discussed is the History of Abindarráez and was inserted at the end of Montemayor´s fourth book of Diana up 1561, in the edition of Valencia. The adaptations originated by the process of imitation and emulation – present in translation in 17th Century Germany – allow the translator to create intermediate loci for the accommodation of foreign cultural concepts in the German culture. After a brief historical analysis, we demonstrate
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meiro mais relevante em termos de influência. Sua importância, contudo, não se deve apenas a ter influenciado a obra de Montemayor, mas também à sua inovação formal. Da Antiguidade Clássica, temos notícia de três obras que podem ser incluídas no “gênero pastoril”: Idílios, Bucólicas e Dáfnis e Cloé, respectivamente de Teócrito (310 a.C.250 a.C.), Virgílio (70 a.C.-19 a.C.) e Longo (século II ou III d.C.), as duas primeiras obras em verso e, a última, em prosa, considerada “romance pastoril”. Ressalte-se que Longo é considerado o “fundador” do romance pastoril. A inovação formal de que falamos há pouco se relaciona ao fato de Sannazzaro mesclar, em sua obra, prosa e verso, algo que marca consideravelmente o desenvolvimento do romance pastoril na Europa ocidental a partir da Renascença, o que se vê em:
how the differences between the moor and the Christian – an emphasis in the History of Abindarraez – are diluted in the German translation, what requires also some discussions about translation in 17th Century Germany. KEYWORDS:
Translation, emulation, Germany, 17th Century.
Introdução Uma das maiores obras de que se têm notícias no século de ouro espanhol, pelo menos no tocante ao “gênero” pastoril, é o romance – considerado novela por alguns teóricos – Los siete libros de la Diana (1559) de Jorge de Montemayor, português de nascimento que escreveu sua obra em espanhol. A Diana de Montemayor é considerada uma obra inacabada, pois as tramas amorosas propostas pelo autor não se resolvem em sua primeira parte. Montemayor morreu antes de escrever a prometida segunda parte, que foi continuada por outros escritores: Alonso Pérez, responsável pela versão publicada em 1563, e Caspar Gil Polo, pela versão de 1564. A obra é, assim, composta de três partes. Merece destaque a de Caspar Gil Polo que, ao que parece, foi a que mais bem cumpriu a função de continuador de Montemayor e que agradou ao público. Veja-se: Montemayor died before writing the promised sequel to Los siete libros de la Diana. The success of Spain´s first pastoral romance prompted several continuations by other authors, however. In 1563, Alonso Pérez’s Segunda Parte de la Diana de Jorge de Montemayor appeared in Valencia. A year later, Gaspar Gil Polo’s Diana enamorada appeared in the same city […] Of the two continuations, only Gil Polo’s Diana enamorada has survived and retained interest for the modern reader. (Mujica, 1986, p.143)1
Os romances pastoris que antecedem a escritura e publicação da Diana (1559) de Montemayor são a Arcadia (1502) de Jacopo Sannazzaro (1458-1530) e Menina e moça (1554), de Bernardim Ribeiro (1482?-1552?), sendo o pri-
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“Montemayor morreu antes de escrever a continuação prometida para Los siete libros de la Diana. O sucesso do primeiro romance pastoril espanhol, no entanto, ocasionou várias continuações de outros autores. Em 1563, apareceu em Valência a Segunda parte de la Diana de Jorge de Montemayor, de Alonso Pérez. Um ano mais tarde, apareceu, na mesma cidade, Diana enamorada, de Caspar Gil Polo. [...] Das duas continuações, apenas a Diana enamorada, de Gil Polo, sobreviveu e manteve interesse para o leitor moderno.” As traduções são minhas.
“Dois romances pastoris precedem o de Montemayor, e ambos também são incluídos neste estudo. A Arcadia de Sannazzaro estabeleceu o gênero no início do século XVI e é reconhecida desde o tempo de sua publicação como protótipo. O primeiro romance pastoril a aparecer na Espanha foi uma tradução espanhola da obra de Sannazzaro.”
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“Jacopo Sannazzaro foi o precursor do idílio pastoril em prosa e verso não somente em sua Itália nativa, mas também no restante da Europa. O primeiro romance pastoril a aparecer na Espanha foi uma tradução do italiano. As edições espanholas da Arcadia de Sannazzaro apareceram em Toledo em 1547 e 1549, e traduções posteriores apareceram em Madri e Salamanca. [...] Mas foi a Arcadia de Sannazzaro o modelo principal para o novo gênero literário espanhol.”
Two pastoral romances preceed Montemayor’s, both of which are also included in this study, Jacopo Sannazzaro’s Arcadia established the genre early in the sixteenth century and has been recognized from the time of its publication as the prototype. A Spanish translation of Sannazzaro’s work was the first pastoral romance to appear in Spain. (ibidem, p.9)2
E em: Jacopo Sannazzaro was the initiatior of the pastoral idyll in prose and verse not only in his native Italy, but also in the rest of Europe. The earliest pastoral romance to appear in Spain was a translation from the Italian. Spanish editions of Sannazzaro’s Arcadia appeared in Toledo in 1547 and 1549 and later translations appeared in Madrid and Salamanca. […] But it was Sannazzaro’s Arcadia that provided the principal model for the new Spanish literary genre. (ibidem, p.11)3
Ainda que o principal modelo para o novo gênero literário espanhol tenha sido o romance de Sannazzaro, Montemayor o assimila de uma forma peculiar, “aperfeiçoando” o gênero ou, ao menos, dando a ele características até então desconhecidas:
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The first pastoral romance written in Spanish is Montemayor’s Siete Libros de la Diana, published in 1559. La Diana differs significantly from its Italian and Portuguese predecessors in terms of character development. Unlike Sannazzaro and Ribeiro, Montemayor attempted to create a novelistic world in which each character would function individually as a separate, recognizable entity and, at the same time, interrelate with other character. In order to achieve this, Montemayor limited his characters to a mere few who are bound together by a common, clearly defined problem: unrequited love. In La Diana love functions as a catalyst that causes the character to act and react. As each character describes his personal experiences with reference to this one constant, he or she acquires depth and credibility as an individual. (ibidem, p.11)4
A Diana de Montemayor compõe-se de sete livros. A trama principal envolve Diana e Sireno e não se resolve na primeira parte (que contém os sete livros). Trabalharemos, neste artigo, de forma específica, com a “História do Abindarráez”, inserida no final do quarto livro a partir da edição de Valência, de 1561. Já no palácio da sábia Felícia, para onde pastores e pastoras, acompanhados de ninfas, se dirigiram para buscar remédio para seus males de amor, uma das pastoras (Felismena), a pedido de Felíca, narra a história em questão. Trata-se de uma novela com um personagem mouro (portanto, muçulmano) e outros cristãos. Analisaremos o tratamento de características que servem para demarcar fronteiras entre Abindarráez, mouro, e Narváez, cristão, na tradução alemã de Kuffstein, que contém adaptações (em sua maioria, subtrações) advindas de seu procedimento de tradução, marcado predominantemente pela emulação (base retórica).
A história de Abindarráez Nesta seção, será apresentado um breve resumo da “História do Abindarráez”. No tempo de Dom Fernando, que depois foi rei de Aragão, houve na Espanha um cavaleiro chamado Rodrigo
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“O primeiro romance pastoril escrito em espanhol foi Los siete libros de la Diana, de Montemayor, publicado em 1559. A Diana difere consideravelmente de seus predecessores italiano e português no que diz respeito ao desenvolvimento de personagens. Diferentemente de Sannazzaro e de Ribeiro, Montemayor tentou criar um mundo novelístico em que cada personagem devesse agir individualmente, como uma entidade separada, reconhecível e, ao mesmo tempo, inter-relacionar-se com outros personagens. Para alcançar isso, Montemayor limitou seus personagens a alguns poucos, que compartilham um problema comum e claramente definido: o amor não correspondido. Na obra Diana, o amor funciona como um catalisador que determina as ações e reações das personagens. Uma vez que cada personagem descreve suas experiências pessoais com referência a esta única constante, ele ou ela adquire profundidade e credibilidade como indivíduo.”
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de Narváez, conhecido tanto nos tempos de paz quanto nos de guerra. A ele foram concedidas as cidades de Antequera e Alora, para a defesa das quais escolheu cinquenta fidalgos, a mando do rei. Numa noite clara de verão, já que gostava sempre de empreender algum ofício, evitando assim a ociosidade, o alcaide Narváez partiu com nove cavaleiros para uma ronda, em que vigiariam as fronteiras entre terras de cristãos e mouros, confinadas à sua guarda. Logo esses cavaleiros alcançaram uma parte do caminho em que havia uma bifurcação e, assim, resolveram se dividir em dois grupos, seguindo cada qual por um lado diferente. Os cavaleiros do grupo em que não estava Narváez ouviram canções de lamento amoroso de um mouro, e o atacaram. Foram, todavia, derrotados. Durante a luta, tocaram a trombeta, ao som da qual se juntaram a eles Narváez e os outros quatro cavaleiros. Narváez impressionou-se com a destreza do mouro nas lutas e, cordialmente, convidou-o para lutar, vencendo-o. Segundo o que cantara o mouro, ele nascera em Granada, criara-se em Cartama, vivera na fronteira com Alora e apaixonara-se por uma dama em Coyn. Narváez, inconformado com a apatia do prisioneiro, questionou-o, ao que ele pediu que os outros cavaleiros fossem afastados para que pudesse narrar sua dramática história de amor. Seu nome era Abindarráez e descendia dos abençarrages de Granada, que no passado haviam empreendido um golpe contra o rei e, uma vez descobertos, foram mortos impiedosamente. Dessa linhagem de abençarrages, apenas o pai e o tio desse mouro não foram mortos, uma vez que não haviam participado da conjuração contra o rei. Segundo a ordem do rei, eles poderiam continuar a viver na cidade, mas, caso viessem a ter filhos, deveriam enviá-los para que se criassem fora dali. Todos os outros, além de mortos, tiveram os bens confiscados e foram amaldiçoados.
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Abindarráez, depois de nascido, foi enviado ao alcaide de Cartama (cidade de cristãos), grande amigo de seu pai. Foi criado junto com a filha desse alcaide, Xarifa, por quem se apaixonou. Embora criados como irmãos, descobriram que não tinham parentesco e resolveram assumir seus amores. Nesse mesmo tempo em que assumiram seus amores, o rei de Granada ordenou ao pai de Xarifa que ele fosse para Coyn e que o mouro ficasse sob a tutela do próximo alcaide de Cartama. Depois de trocadas juras de amor entre Xarifa e Abindarráez no momento de despedida, ela prometeu a ele que, assim que possível, mandaria chamá-lo para que se reencontrassem, e aquele era justamente o dia do ocorrido: de manhã viera uma criada de Xarifa avisá-lo para ir ao seu encontro, o que ele fazia quando surpreendido pelos cavaleiros de Narváez. Narváez, comovido com o que ouvira, permitiu ao mouro visitar sua amada, com a condição de que se apresentasse em três dias para se fazer prisioneiro. O mouro seguiu viagem e encontrou-se com Xarifa. Passada a satisfação do reencontro, deitados um ao lado do outro, o mouro retorceu-se num suspiro, que provocou a desconfiança de Xarifa de que havia algo de errado. O mouro explicou a ela o ocorrido. Xarifa colocou à disposição de Abindarráez toda a riqueza de seu pai, o que ele recusou. Ele havia dado a palavra a Narváez, e devia voltar para fazer-se prisioneiro. Xarifa, inconformada, seguiu seu amado para entregar-se junto com ele a Narváez. Ao se apresentarem a Narváez, foram cortesmente recebidos e a coragem de ambos foi elogiada. Narváez providenciou a eles um lugar para que dormissem, bem como alguém que curasse as feridas do mouro. Abindarráez disse a Narváez que ele e Xarifa temiam a reação de seu pai que, naquele momento, não sabia do ocorrido e estava com o rei de Granada, de quem Narváez era muito amigo.
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Narváez, muito generoso, escreveu uma carta ao rei de Granada, interferindo em favor do casal. O rei de Granada, por sua vez, ordenou ao pai de Xarifa que perdoasse a filha e que aceitasse Abindarráez como filho, o que ocorreu: os dois se casaram e houve uma grande festa. A história encerra-se com a narração das cortesias de Xarifa e de Abindarráez para com Narváez.
Bom samaritano? Tanto no original quanto na tradução, o fundo moralizante da “História do Abindarráez” é bastante claro: a personagem cristã (Narváez) possui as mesmas características do bom samaritano. Na batalha entre o mouro e o cristão, além da vitória de Narváez, ele se comove pela dor do inimigo e o “adota”, proporcionando a ele um verdadeiro paraíso, na medida em que lhe oferece a possibilidade de viver ao lado de sua amada. Intervenções na Corte de Granada, cartas para o rei, submissão do pai de Xarifa à vontade do mouro, tudo isso são resultados da interferência do bom cristão pelo mouro desolado. Na Espanha, ocupada pelos mouros do século VII ao XV, e de onde os mouros foram expulsos, não é de estranhar que as marcas definidas entre cristão/não cristão sejam claramente expressas e fortemente demonstradas, especialmente se levarmos em conta que a obra de Montemayor foi escrita num período em que a Igreja católica necessitava propagar a bondade do cristão católico – talvez o início de sua defesa dos efeitos destrutivos de um fenômeno social e religioso ocorrido na Europa há menos de cinquenta anos de sua publicação: a Reforma Luterana. O mouro é caracterizado como fraco (chora, humilha-se, entrega-se como prisioneiro etc.): um preconceito a se difundir. A tradução de Kuffstein não apaga essas marcas, porque é fiel ao texto original. Contudo, recria um ambiente em que a “marcação” entre quem é cristão e quem não o é não ocorra de forma, se não exagerada, repetitiva.
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Literatura hispânica na Alemanha no século XVII: breve panorama político Não restam dúvidas de que a tradução da Diana de Montemayor e sua recepção na Alemanha cooperaram para a escritura do romance pastoril Die Schäfferey der Ninphen Hercinia (1630), de Martin Opitz (1597-1639). A existência de academias ou sociedades linguísticas (Sprachgesellschaften) na Alemanha no século XVII é uma prova contundente do movimento cultural de cultivo da língua nesse país. Um de seus principais objetivos era formar uma literatura alemã capaz de “concorrer” com a literatura de países vizinhos. Assim, não apenas a tradução da Diana, mas de diversas outras obras da literatura hispânica (e também de outras literaturas) ocorria de forma programada – eram o objeto de apropriação a partir do qual seria possível formar a literatura alemã escrita em alemão no século XVII, sobre o que falaremos mais tarde. Vejamos a seguir como eram as relações entre Alemanha e Espanha à época do grande fluxo de tradução de obras hispânicas: Durch die Vereinigung der Königreiche Aragonien und Kastillien (1479) wird Spanien zu einer Amt, die bis in die vierziger Jahre des 17. Jahrhunderts entscheidenden Einfluβ auf Politik und Kultur in Europa ausübt. In Deutschland wächst sein Ansehen mit der Kaiserkrönung Karls V. in Aachen (1520) und hält sich über den Untergang der Armada hinweg vor allem am Wiener und Münchner Hof bis zum Tode Leopolds I (1705). Die Habsburgischen Kaiser des 16. Jahrhunderts machen Wien zu einem Zentrum spanischer Sitten. Spanische Tracht und spanisches Hofzeremoniell sind vor dem Dreiβ igjährigen Krieg auch sonst in Deutschland weit verbreitet. Über Bekleidung und Galanterie im Umgang mit Damen erstreckt sich diese Wirkung bis auf die Sprache. (Hoffmeister, 1973, p.15)5
Tradução na Alemanha no século XVII A Diana de Montemayor foi, conforme dito anteriormente, traduzida por Johann Ludwig Kuffstein em 1619,
um ano após ter eclodido na Europa a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Para compreendermos alguns dos procedimentos de tradução de Kuffstein, é pertinente que listemos alguns fatores cruciais que serviram para definir a forma de se traduzir na Alemanha no século XVII. Os procedimentos de tradução, ou, ainda, a forma de se traduzir na Alemanha no século XVII estão intimamente ligados à escolarização de base retórica. Da Retórica, que segundo a divisão clássica é composta de inventio, dispositio, elocutio, memoria e actio ou pronuntiatio, o mais importante para as formas de se traduzir na Alemanha no século XVII é a imitatio, uma técnica utilizada para se absorver conteúdos e formas das literaturas de outras línguas. Vale dizer que os estudos de base retórica, em princípio (nos século XV, XVI e em boa parte do século XVII) estavam em função da língua latina, passando a ser aplicados à língua alemã apenas posteriormente:
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“Mediante a unificação dos reinos de Aragão e Castilha (1479), a Espanha adquire uma posição capaz de exercer influência decisiva na política e cultura europeias até os anos 40 do século XVII. Na Alemanha, seu prestígio aumenta com a coroação do imperador Carlos V em Aachen (1520) e mantém-se até depois da Queda da Armada, especialmente nas cortes de Viena e de Munique, até a morte de Leopoldo I (1705). Os imperadores Habsburgo no século XVI transformam Viena num centro de costumes hispânicos. Trajes espanhóis e cerimoniais de Corte à moda espanhola crescem também na Alemanha antes da Guerra dos Trinta Anos. Passando pelos modos de vestir e pela galanteria no proceder com as damas, esta influência atinge também a língua.”
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“Nenhuma outra disciplina deveria ter sido afetada tão diretamente por causa da luta pelo reconhecimento e cultivo da língua materna como a Retórica, pois essa era transmitida em exempla, temas e métodos, com um todo inteiramente latino. Considere-se a ruptura de sucesso com a poesia alemã dos eruditos, alcançada pela geração de Opitz com triunfal dignidade e orgulho nacional, e reflita-se, além disso, sobre o forte engajamento de pedagogos reformistas, que postulavam aulas em língua materna – depois disto, é praticamente inacreditável constatar que a Retórica tenha permanecido em latim.”
Kaum ein Unterrichtsfach muβ te von dem Kampf um Anerkennung und Pflege der Muttersprache so unmittelbar betroffen werden wie die Rhetorik. Denn diese Disziplin war in exempla, Themen und Methoden als ein durch und durch lateinisches Ganzes tradiert worden. Vergegenwärtigt man sich den von der Opitz Generation mit triumphalem Selbstbewuβ tsein und nationalen Stolz vollzogenen Durchbruch zur deutschsprahigen Gelehrtendichtung, bedenkt man weiterhin das leidenschaftiche Eintreten der Reformpädagogen für einen muttersprachlichen Unterricht, so scheint es geradezu unglaubhaft, wenn man feststellen muβ: die Rhetorik blieb lateinisch. (Barner, 2002, p.249)6
Ao se falar em imitação, é necessário levar em conta: Der Versuch einer systematischen Kategorisierung von Imitatio bzw. mimesis muβ von mindestens drei Imitatio-Konzepten ausgehen: von der künstlerischen Nachahmung von Wirklichkeit, d.h. auβ erliterarischer Realität, von der rhetorischen bzw. künstlerischen Nachahmung von Texten, d.h., literarischer Realität (wobei “Texte” und “literarisch” im weitesten Sinne zu verstehen sind, also auch Nachahmung von Werken
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der bildenden Kunst und der Musik mitinbegriffen ist), und von der moralischen Nachahmung vorbildlicher Menschen, was literarisch (z.B. der vergilische Aeneas als Muster für pietas) wie nichtliterarisch vermittelt sein kann, wobei letzteres nicht mehr in den Bereich der Kunst fällt, sondern in den der Ethik. (ibidem)7
Ao apontarmos as adaptações utilizadas por Kuffstein, na tradução dessa história, referir-nos-emos à imitação artificial ou retórica de textos literários, que permeia a tradução da obra de Montemayor. A escolarização retórica de que falamos, presente em colégios e universidades, fornecia aos alunos modelos que deveriam servir de base para a escritura de seus textos e, também, de suas obras. Veja-se: Auf allen Stufen des Unterrichts gehen diese nebeneinander her: das Lehrbuch enthält die praecepta, die Regeln; auf allen Stufen wird das Lehrbuch der Grammatik gebraucht, auf den oberen kommen dazu Lehrbücher der Poesie, der Rhetorik und der Dialektik. Die Lektüre der Autoren bietet die exempla, Musterbeispiele jeder Art schriftstellerischer Darstellung; der Unterricht zeigt an ihnen die Bedeutung der Regeln, der grammatikalisch-stilistischen, wie der poetisch-rhetorischen. Sie dient dem Schüler zugleich, Wörter, Wendungen und Gedanken auszuziehen, die er, um sie zu merken, in seine Adversarienbücher einträgt. Die imitatio endlich ist das Ziel des ganzen Unterrichts: der Schüler übt sich, an Hand der Regeln des Lehrbuchs, mit dem Material, das ihm die Lektüre zuführt, ähnliche Kunstwerke der Rede zu komponieren, als die klassischen Autoren sie darbieten. (Paulsen apud Dick, 1966, p.9)8
Ocorre que, por motivos sociais e políticos, o programa de imitação nas aulas de retórica não ficou restrito aos colégios e universidades: compunha a técnica utilizada pelos eruditos que compunham as academias ou sociedades linguísticas para que se apropriassem da literatura alheia, num processo cultural de criação de espaços intermediários para acomodar conceitos de outras culturas, porém sempre com o intuito de produzir algo próprio, peculiar, nesse caso, alemão.
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“A tentativa de uma categorização sistemática de imitatio ou mimesis deve partir de pelo menos três conceitos de imitatio: da imitação artificial da realidade, isto é, realidade extraliterária; da imitação retórica ou artificial de textos, isto é, da realidade literária (em que ‘textos’ e ‘literária’ devem ser entendidos no sentido mais amplo possível; portanto também imitação de obras das Artes Plásticas e da Música inserem-se aí); e da imitação moral de pessoas exemplares, o que pode ser transmitido de forma literária ou não literária (por exemplo, o Aeneas de Virgílio como modelo para a pietas), e este último não se enquadra mais no âmbito das Artes, mas sim no da Ética.”
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“Em todos os níveis de aula, essas três coisas caminham paralelamente: o livro didático contém os praecepta, as regras; em todos os níveis utiliza-se o livro de Gramática, e nos níveis superiores, além desse, os de Poesia, de Retórica e de Dialética. A leitura dos autores fornece os exempla, exemplos-modelo de todas as formas de representação escrita; a aula indica, com base neles, o significado das regras – das gramaticais e estilísticas, bem como das poéticas e retóricas. Essa leitura serve ao aluno para que ele selecione, ao mesmo tempo, palavras, expressões e pensamentos, que ele, para fins de memorização,
registra em seus livros de notas. Por fim, a imitatio é o objetivo da aula toda: com o material que lhe fornece a leitura, auxiliado pelas regras do livro didático, o aluno exercita-se em compor obras-primas do discurso tais quais as fornecidas pelos modelos de autores clássicos.”
9 “Desde 1500, a aemulatio veterum tornou-se um programa estilístico e literário dos modernos, que no início voltava-se de forma polêmica contra o estilo clássico dos puristas ciceronianos. A aemulatio implicou daí em diante o comprometimento das inovações e o desejo pela expressão subjetiva. A justificativa teórico-estilística e psicológica da síndrome da superação (H. J. Lang) preparou o terreno para o desenvolvimento das literaturas de línguas nacionais em concorrência com a poesia neolatina.”
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Não foi, contudo, uma ideia surgida nas academias ou sociedades linguísticas a emulação. Já há muito tempo que a imitação, nas aulas de Retórica, era feita de forma criativa e criadora. Assim, a expressão imitatio veterum (imitação dos mais velhos) passa a aemulatio veterum (emulação dos mais velhos), no sentido tanto de alteração como de superação. Veja-se: Seit 1500 wurde die Aemulatio veterum zum Programm stilistischer und literarischer Neuerer, das sich anfangs polemisch gegen den Stilklassizismus der puristischen Ciceronianaer richtete. Aemulatio implizierte fortan das Bekenntnis zur Innovation und den Wunsch nach subjetivem Ausdruck. Die stilltheoretische und psychologische Begründung des Überbietungssyndroms (H.J.Lang) ebnete der Entwicklung der nationalsprachlichen Literaturen in Konkurrenz zur neulateinischen Dichtung den Weg. (Ueding, 1992, v.1, p.143)9
Conforme podemos observar, é justamente a aemulatio que “prepara o terreno” para o desenvolvimento das literaturas de línguas nacionais, ocorrido com determinado atraso na Alemanha (se comparado, por exemplo, ao da Itália, da França, da Espanha, da Inglaterra e da Holanda). A aemulatio compõe, via de regra, o postulado das sociedades linguísticas: desenvolver, criar uma literatura de língua alemã que permita, ao mesmo tempo, a equiparação às literaturas de países vizinhos e a fundação de um instrumento de identificação cultural comum aos povos de língua alemã. É a característica de criativa e criadora da aemulatio que permitiu aos eruditos alemães – não apenas aos que pertenciam às sociedades linguísticas – por meio de traduções, que “imitassem” os conteúdos e as formas de obras clássicas e renascentistas no século XVII e que, além disso, variassem os conteúdos e formas das obras traduzidas por meio de adaptações, num processo de apropriação, para torná-las suas, constituindo, assim, sua literatura. Podemos ver um dos preceitos da tradução na Alemanha no século XVII em:
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Gleichwie ein junger Freier, der in fremde Länder reiset, bemühet ist, seiner hinterlaβ nen Liebsten mancherlei zierliche Seltsamkeiten einzukramen und mitzubringen, also soll ein Liebhaber unsrer übertrefflich schönen Muttersprache sich befleiβigen, alles, was er in fremder Sprachen Bücher begegnet, dem vielgeliebten Vaterlande, welches vielleicht solches nicht gesehen, zu überbringen, und zwar nicht nur dem Inhalt, sondern der Verfassung zierlich nachahmen, zu Belernung der Unwissenden und Ausschmuckung hochgesagter Sprache. Solches muβ mit Verstand und so viel dienlich und tunlich beschehen. (Harsdörffer, 1939, p.47-8)10
A concepção de tradução de Harsdörffer, apresentada aqui, resume, em parte, como eram (ou como deveriam ser) realizadas as traduções na Alemanha no século XVII. Já que trabalharemos com trechos de uma obra traduzida antes do surgimento da poética de Harsdörffer, convém informar que o processo descrito por ele nesse trecho pode ser considerado uma síntese do pensamento da época, e não se inicia com ele; ou seja, a forma de Kuffstein traduzir assemelha-se à descrita na concepção de Harsdörffer. Conforme visto anteriormente, a aemulatio veterum passou a ser utilizada como forma de tradução já em 1500, portanto, no século XVI. O que diferencia as formas de tradução do século XVI para o XVII é que, neste último, a ênfase da Retórica recai sobre a elocutio, que, por sua vez, é praticamente reduzida ao ornatus. Na próxima seção, vamos nos ater à re- ou transcriação de uma personagem na tradução de Kuffstein, a partir de alguns exemplos.
Algumas representações de Abindarráez na tradução de Kuffstein Por meio de cinco exemplos de trechos traduzidos da Diana de Montemayor por Kuffstein, apontaremos procedimentos utilizados na tradução que recriam a personagem de Abindarráez. Na Alemanha no século XVII, conforme explicitado na seção anterior, a forma de traduzir
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“Da mesma forma como um jovem enamorado que viaja ao exterior encoraja-se a trazer consigo várias singularidades graciosas ao amor deixado para trás, deve um amante de nossa excepcionalmente bela língua materna esforçar-se por trazer à sua mui amada pátria tudo o que encontrar em livros escritos em outras línguas, e que talvez lhe sejam desconhecidos. Deve ainda esforçar-se para imitar elegantemente não apenas o conteúdo, mas também a condição para o aprendizado do desenvolvimento e das formas de ornamentação desta língua. Tudo isso deve ocorrer com discernimento e, em qualquer hipótese, de forma útil e oportuna.”
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resumia-se, em parte, na emulação dos originais. Dentre as adaptações decorrentes do processo emulativo, o tradutor tinha a liberdade de adicionar ou subtrair termos do original. Nesse caso específico – o da caracterização do Abindarráez –, vamos deparar, na maioria das vezes, com detractiones, ou seja, subtrações de informações a respeito da personagem. Convém notar que são subtraídas sempre as mesmas informações, ou seja, informações pertencentes a um mesmo campo semântico. Na verdade, as subtrações, aqui, não apagam marcas da personagem, elas apenas amenizam uma marcação exagerada existente no original. Abindarráez, no texto traduzido, não deixa de ser mouro (não cristão), nem deixa de ser fraco. Apenas não existe para o leitor da tradução uma sinalização excessiva, como se fosse necessário, a qualquer custo, mostrar que o “fraco”, o “perdedor” é o mouro, ainda beneficiado pela piedade de um cristão (Narváez). Listaremos os cinco exemplos selecionados e depois traçaremos os comentários pertinentes a eles. Primeiro exemplo: [...] los quales con el buen gobierno de su capitán empreendían muy valerosas empresas en defensión de la fé christiana, saliendo con mucha honra dellas, y perpetuando su fama con los señalados hechos que en ellos hazían. (Los siete libros de la Diana, p.204) [...] die dann durch Anführung eines so fürtreffliechen Hautps / unzehlich viel rühmlicher Straff und Thaten / Ritterlich und Glücklich vollendeten / dahero bey Freunden und Feinden hoch geachtet wurden. (Die Bücher der Schönen Diana, p.162)
Segundo exemplo: [...] mas el valiente moro que en semejantes cosas era esperimentado (aúnque entonces el amor fuisse señor de sus pensamientos) no dexó de bolver sobre si con mucho ánimo, y com la lança en la mano, comiença a escaramuchar con todos los cinco christianos, a los quales muy en breve dió a conoscer que no era menos valiente que enamorado. (Los siete libros de la Diana, p.205)
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[...] von welchem sie aber / ungehindert er von der Lieb gefangen ward / dermassen Mannlich empfangen wurden / daβ sie bald seine so Ritterliche Hand / als verliebtes Hertz spüren künten. (Die Bücher der Schönen Diana, p.163)
Terceiro exemplo: El valeroso Narvaez deseava la victoria, porque la valentia del Moro le acrescentava la gloria que con ella esperava. (Los siete libros de la Diana, p.206) Der Obrist von Narvaeβ stritte mit gewaltiger Dapfferkeit / als deme an diesem Siege viel gelegen ware. (Die Bücher der Schönen Diana, p.164)
Quarto exemplo [...] y Alá me la quite si yo en algun tiempo tuviere sin ella otra cosa que me dé contento. (Los siete libros de la Diana, p.210) Trecho não traduzido.
Quinto exemplo [...] comencé en lengua Arabiga a cantar esta canción, en la qual le dí a entender toda la crueldad que della sospectava: [...] (Los siete libros de la Diana, p.211) [...] dero besorgende Hartigkeit und eingebildete Ungnad / so gut ich in eil vermochte / jhr zu verstehen zu geben / nam demnach meine Lauten / so in einem Sommerhauβ diβ Gartens stetigs zuligen pflegte / und sunge darein folgendes Liedlein: [...] (Die Bücher der schönen Diana, p.172)
Logicamente, se nos propuséssemos a uma análise de tradução de todos esses exemplos, não discorreríamos apenas sobre a amenização das características de não cristão do mouro na versão traduzida. Nos cinco trechos apresentados – embora sejam relativamente curtos – há muito mais o que observar numa análise cultural ou filológica, como o “buen gobierno de su capitán” (“bom governo de seu capitão”) no primeiro trecho, e sua tradução por “Anführung eines so fürtreffliechen Haupts” (“governo de um capitão tão
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perfeito”). No entanto, por questões de delimitação e de atendimento à proposta inicial, discutiremos apenas as alterações referentes à caracterização de Abindarráez como mouro na versão traduzida. Por questões de ordem comparativa, os trechos do original também foram transcritos. No primeiro trecho transcrito, percebemos a subtração de “en defensión de la fé christiana” (“em defesa da fé cristã”). É a primeira marca decorrente da oposição cristão/não cristão na história do Abindarráez, e não é traduzida. Conforme vimos na seção sobre procedimentos de tradução, o tradutor, por meio da emulação, tem liberdade para omitir termos do original, embora não o tenha feito por mera liberdade. Cremos que seu procedimento tenha sido consciente e que encontre suas bases – nesse trecho in specifico – em julgar desnecessária a informação para o leitor alemão de sua época, pois a “marca” aí contida tem como precedente a história política da Espanha. O tradutor não pretende apagar as marcas da história política da Espanha, num processo radical que comprometeria a originalidade da obra. Contudo, o “ranço” entre cristãos e não cristãos – provavelmente conhecido pelos leitores de língua alemã do século XVII – não encontraria sentido na tradução alemã, pois, num programa de apropriação e de transformação de um texto original, que visa à formação de uma literatura com características próprias, não cabe, realmente, a repetição de peculiaridades da cultura ou língua de que se parte. O processo de apropriação e transformação não deturpa o texto, uma vez que suas marcas “gerais” são mantidas. Poderíamos pensar numa adaptação “radical”, comprometedora do texto original, se Kuffstein, por exemplo, tivesse substituído Abindarráez e Narváez, por exemplo, por um adepto da Reforma Luterana e um contrarreformista. O trecho do segundo exemplo também reforça a separação cristão/não cristão, já que houve subtração do termo “con todos los christianos” (“com todos os cristãos”). No trecho do terceiro exemplo, que faz parte da narração da luta entre Narváez e Abindarráez, ressalta-se a
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importância da vitória para Narváez por meio da valentia do mouro. Fosse o mouro fraco e derrotado pelos cavaleiros com os quais anteriormente lutara, talvez a vitória de Narváez não fosse de tamanha relevância. O que a torna mais triunfal e desejada é o fato de o mouro ser corajoso (para a luta), ou seja, a característica positiva (coragem) do “inimigo” serve para incitar o desejo de vencê-lo, de derrotá-lo. Essa ideia não é repetida na tradução, em que apenas se diz haver grande interesse de Narváez pela vitória. Contudo, mais adiante, o tradutor procede de forma inversa, quando encontramos, na história, a tradução de “El esforçado Moro, no menos que el Alcayde la desseava” (“o esforçado mouro não a desejava menos que o alcaide”) por “Dem Mohren aber war an dem Sieg so viel zwar nicht” (“contudo, para o mouro, esta vitória realmente não interessava tanto”), em que o tradutor – analisando o original e, logicamente, conhecendo suas partes posteriores – altera a caracterização do mouro. Uma justificativa para esse procedimento – informar que ao mouro não importava tanto nessa vitória – é muito provavelmente a forma de reação do mouro ao ser vencido e aprisionado por Narváez (apatia). Isso mostra a “recriação” da personagem por meio do contexto. O quarto exemplo contém um trecho que revela ao mesmo tempo fidelidade e exagero por parte de Abindarráez. Na exclamação “Y Alá me la quite si yo en algun tiempo tuviere sin ella otra cosa que me dé contento” (“E Alá tire-a de mim se eu, alguma vez, puder ter alguma coisa que, a não ser ela, me dê contentamento”). O mouro, para dignificar o sentimento amoroso por Xarifa, confiante que é em Alá, pede para que sua amada lhe seja tirada, caso haja alguma outra coisa no mundo que lhe dê contentamento. Embora o cerne de sua exclamação seja o exagero do amor, não podemos fechar os olhos para o indício de religiosidade, aqui usado para intensificar seu sentimento. Entende-se que, para o mouro, Alá está acima de qualquer coisa, e é onipotente. O grau de amor do mouro por Xarifa é demonstrado na tradução, porém nenhuma
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vez atrelado à religião, à religiosidade ou, ainda, a elementos religiosos. No quinto exemplo, podemos, num primeiro momento, falar em substituição mais do que em subtração, já que o elemento subtraído “en lengua Arabiga” (“em língua árabe”) foi substituído pelo elemento adicionado “Laut(en)” (“alaúde”), instrumento relacionado à música do Oriente Médio e, mais precisamente, à música árabe. Assim, uma marca característica (a língua árabe) é substituída por outra (alaúde). Num segundo momento, se levarmos em consideração que em outras partes do livro faz-se menção ao alaúde, tocado por ninfas que não são mouras, o que faz que o alaúde seja visto como apenas mais um de inúmeros instrumentos usados para acompanhar as canções pastoris na obra de Montemayor, ele perde a característica de “instrumento peculiar ao mouro” e, com isso, não serve para caracterizá-lo de forma específica. Assim, não serve como elemento que substitui “língua árabe” e o que ocorre na tradução do trecho desse exemplo passa a ser, em vez de uma substituição, uma subtração.
Considerações finais A obra Los siete libros de la Diana, de Jorge de Montemayor, foi escrita em 1559 e traduzida para o alemão por Johann Ludwig von Kuffstein, em 1619 – uma tradução abrigada na Alemanha do século XVII, em que os procedimentos de tradução estavam intimamente relacionados à Retórica, mais precisamente à imitação. A imitação (emulação), em princípio utilizada como recurso para a absorção de conteúdos e formas de obras literárias da Antiguidade e do Renascimento na Alemanha no século XVII, passa, por meio da escolarização nos colégios e universidades, a definir a forma de construção da literatura em língua nacional na Alemanha: apropriar-se do discurso alheio e adaptá-lo conforme circunstâncias culturais e linguísticas, de forma que esse mesmo discurso pareça ter surgido originalmente na cultura alemã.
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As adaptações ocorrem por meio da adição, subtração e substituição de ideias, dentre outras operações. Os trechos analisados nesta discussão, que serviram para mostrar a re- ou transcriação da personagem de Abindarráez, na história de Abindarráez, contêm subtrações. Tratamos aqui de um caso específico, a saber, do delineamento do personagem Abindarráez (mouro) na tradução alemã, que ocorreu por meio de uma adaptação que visou, dentre outras coisas, ao apagamento das diferenças entre cristão/não cristão, fortemente marcadas (especialmente por meio de repetições) no original e amenizadas (por meio das subtrações) na tradução. Além de buscar numa obra de outra literatura elementos até então não explorados na literatura alemã (princípio de Harsdörffer, que escreveu a esse respeito posteriormente), Kuffstein os adapta, sem comprometer a ideia original, criando espaços intermediários para sua representação em sua cultura. É o princípio da emulação, que regeu, por assim dizer, a maioria dos procedimentos de tradução na Alemanha no século XVII.
Referências BARNER, Wilfried. Barockrhetorik: Untersuchungen zu ihren geschichtlichen Grundlagen. 2. unveränderte Auflage. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 2002. DYCK, Joachim. Deutsche Barockpoetik und Rhetorische Tradition. Berlin: Verlag Dr. Max Gehlen, Zürich: Bad Homburg von der Höhe, 1966. HARSDÖRFFER, Georg P. Poetischer Trichter (1647-1653). Herausgegeben von Reginald Marquiero. Berlin: Die Rabenpresse, 1939. HOFFMEISTER, Gerhart. Die spanische Diana in Deutschland: vergleichende Untersuchungen zu Stilwandel und Weltbild des Schäferromans im 17. Jahrhundert. Berlin: Erich Schmidt Verlag, 1973. KUFFSTEIN, Johann Ludwig. Die Bücher der Schönen Diana. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1970.
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MONTEMAYOR, Jorge de. Los siete libros de la Diana. 2.ed. Madrid: Espasa-Calpe, 1954. MUJICA, Bárbara. Iberian Pastoral Characters. Scripta Humanistica 30. Washington D.C.: Library of Congress, 1986. UEDING, Gert. Historisches Wörterbuch der Rhetorik. Herausgegeben von Gert Ueding. Tübingen: Max Niemeyer Verlag GmbH und Co. KG., 1992.
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Phaedra’s love de Sarah Kane: tradução, adaptação, encenação Tânia Alice Feix*
RESUMO: O artigo propõe uma reflexão sobre a adaptação do mito de Fedra desenvolvido por Eurípides, Sêneca e Racine na peça Phaedra’s love de Sarah Kane. Nesse sentido, investiga as formas propostas pela dramaturga britânica na sua releitura do mito em razão dos parâmetros estéticos da contemporaneidade a partir da tradução do original inglês por Pedro Marques. A essência do mito é preservada; porém, é ocultado o pudor de Eurípides, Sêneca ou Racine, imposto pelos contextos grego, romano e clássico francês. A análise das estruturas dramatúrgicas evidencia as diferentes traduções do mito em razão dos diferentes contextos, ou seja, a evolução da tragédia grega à tragédia romana e clássica, até a quebra operada pela forma pós-dramática proposta por Sarah Kane. PALAVRAS-CHAVE:
Teatro, contemporaneidade, adaptação, tradução, encenação, clássico.
ABSTRACT:
* Doutora em Letras e Artes pela Université de Provence, França, professora do Departamento de Teoria do Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
The article offers a reflection on the adaptation of Phaedra’s myth, developed by Euripides, Seneca and Racine, in the play Phaedra’s love by Sarah Kane. In this context, it investigates the forms proposed by the English playwright in her reworking of the myth, in relation to the aesthetic parameters of contemporaneousness from the original English translation by Pedro Marques. The essence of the myth is conserved but the pudency of Euripides, Seneca and Racine, which is imposed by the context found in Greek, Roman and French Classics, has been removed. The analysis of the dramatic structures shows the different interpretations of the myth in relation to the different contexts, in other words, the evolution from Greek tragedy to Roman and Classical tragedy, right up to the rupture made by the post-dramatic form proposed by Sarah Kane.
KEYWORDS:
Theatre, contemporaneousness, adaptation, interpretation, staging, classic.
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Sarah Kane (1971-1999) escreveu cinco peças de teatro, Blasted, Phaedra’s love, Cleansed, Craved e Psicose 4.48, antes de se suicidar aos 29 anos no banheiro de um hospital psiquiátrico, com os cadarços de seus sapatos. Profundamente polêmicas pelo engajamento em relação à degenerescência da sociedade atual, suas peças, viscerais, fortes e sensíveis, começaram a ser montadas por vários encenadores europeus e norte-americanos nos dez últimos anos, projetando aos poucos Sarah Kane como uma das dramaturgas mais importantes da atualidade, ao lado de Heiner Muller, Jean-Marie Koltès, Jean-Luc Lagarce, Harold Pinter, entre outros. Phaedra’s love (1996) é uma releitura do mito de Fedra na contemporaneidade. O amor passional de Fedra pelo seu enteado, o desinteresse de Hipólito, a ausência de Teseu, a ameaça que constitui o amor ao equilibro da sociedade e o destino trágico da heroína são transpostos no contexto da família real britânica atual. A essência do mito é preservada; porém, é ocultado o pudor de Eurípides, Sêneca ou Racine, imposto pelos contextos grego, romano e do classicismo francês. Assim, a releitura de Sarah Kane evidencia os problemas da pós-modernidade, como a incomunicabilidade, a exacerbação da sexualidade, a violência social e a violência das relações humanas, a hipocrisia do poder religioso, o individualismo e a indiferença. A tradução de Pedro Marques para o português permitiu a inscrição dessas características de essência norte-americana e ocidental no contexto brasileiro. Neste artigo, buscaremos analisar de que maneira é realizada a transposição do mito original na adaptação de Sarah Kane, bem como a inserção da adaptação na contemporaneidade, estabelecendo um diálogo com a montagem do texto pela Companhia de Teatro “Partículas Elementares”, vinculada ao Grupo de Pesquisa “Núcleo de Estudos em Artes” da Universidade Federal de Ouro Preto, na linha de pesquisa “A adaptação de clássicos na contemporaneidade”, que introduziu na encenação um elemento novo e contundente: o coro.
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Fedra no contexto da contemporaneidade Todo texto é um sintoma. Todo sintoma revela um mal profundo. Degenerescência da sociedade: talvez seja esse o diagnóstico que Sarah Kane tenha tentando fazer em Phaedra’s love. O individualismo ganha terrenos, o corpo se torna objeto de consumo, as relações esvaziam, a violência torna-se um meio de sair da invisibilidade, o consumismo desenfreado é o norteador das vidas humanas, a inveja carreirista substitui a emulação, o desencanto ganha até o mundo do sexo, que se torna um campo de expressão das lutas do poder. Estamos em pleno mal-estar da pós-modernidade para retomar a expressão de Zygmunt Bauman (1964). Apontando para as dificuldades relacionadas ao contexto pós-moderno, Bauman define nesse ensaio os parâmetros afetivos e relacionais da pós-modernidade, estabelecendo uma relação direta com o mal-estar na civilização de Freud. Essa análise permite uma compreensão mais aprofundada da obra de Sarah Kane. No texto da dramaturga britânica, na indiferença de Hipólito em relação à sua família e a seu país, no amor cego e inexprimível de Fedra, no materialismo e hipocrisia de Estrofe, na violência exacerbada de Teseu, na perversidade do padre, na indiferença do médico e na coletividade sedenta de vingança, o espectador pode ver a si mesmo, inserido na violência e na degeneração coletiva; porque os personagens de Sarah Kane são, cada um à sua maneira, emblemáticos do lento suicídio da nossa sociedade. A função educativa do teatro grego – que deu origem ao Hipólito de Eurípides – é substituída por um espelho, no qual o espectador se projeta, segundo os princípios aristotélicos da catarse. Porém, se na teoria desenvolvida por Aristóteles (1994) na Poética, essa catarse busca uma pacificação social por meio da purgação dos afetos, em Sarah Kane, o espelho violenta, porque não há solução: a sociedade é essa, o espectador tem de vê-la. Em um artigo publicado no jornal The Guardian, Simon Hattenstone (2000) afirma: “Sarah Kane é uma escritora política. Mas ela nunca pensou que a missão do teatro fosse dizer em quem votar. [...] Na realidade,
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não existe nenhuma violência nas peças de Sarah Kane que não seja diretamente inspirada da realidade”. Nesse sentido, o mito de Fedra torna-se contemporâneo. A fragmentação social, espelhada pelo texto de Sarah Kane, se revela por meio da fragmentação textual, conforme os princípios do estruturalismo, que estabelece uma relação direta entre fundo e forma. Assim, a construção “pós-dramática” do texto de Sarah Kane – esse termo de Lehmann (2002) designa as formas teatrais que não reconstroem uma realidade por meio de um processo mimético –, ilustra a solidão pós-moderna da “Era do vazio”, como o sociólogo Gilles Lipovetsky (2006) define nossa sociedade. Essa solidão é a consequência da falta de continuidade nas relações humanas que se tornam sempre mais efêmeras, tornando o “amor líquido” (Bauman, 2004); ela é também a consequência da falta de continuidade na relação entre o homem e a sociedade, entre o homem e Deus, entre as histórias sucessivas que vão compondo a história e a própria história, o que se reflete na forma fragmentada do texto de Sarah Kane. Sendo assim, revela-se primordial observar a trajetória do mito a partir da sua origem, bem como seu percurso ao longo do tempo, buscando entender sua evolução desde a tragédia grega até a sua desconstrução no texto de Sarah Kane.
Hipólito e o Padre. Crédito da foto: Tânia Alice Feix.
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Mutação dos valores Segundo Nietzsche (1996) em O nascimento da tragédia, Eurípides teria sido culpado de tirar da tragédia original sua força dionisíaca. Sabe-se que a tragédia (etimologicamente “canto do bode”, que acontecia na hora do sacrifício do animal) tem sua origem no contexto de celebração ritual e religiosa. A progressiva organização dessa celebração religiosa conduziu às Grandes Dionisíacas, em que os dramaturgos como Sófocles, Esquilo e Eurípides competiam para o Prêmio da Melhor Tragédia. A construção formal do texto, incluindo uma construção psicológica dos personagens – especialmente desenvolvida por Eurípides –, chegou a Roma na época de resgate do teatro helenístico. Essas formas são exploradas por Sêneca, especialmente em sua versão de Fedra, que resgata o Hipólito de Eurípides. Dando continuidade ao movimento renascentista de resgate dos textos da Antiguidade grega, o classicismo francês retomou em seguida esses textos, a fim de inseri-los no contexto da época, dominado pelo racionalismo: é assim que Racine propôs uma nova versão de Fedra, adaptada ao contexto do classicismo francês. Segundo Nietzsche (1996) e Artaud (1964), o teatro do século XX teria por missão resgatar a força original do ritual dionisíaco, após a longa era de textocentrismo, que teria afastado o teatro de sua função original. De que forma o texto de Sarah Kane dialoga com a ideia de resgate dessa força original? De que forma a autora lida com a ideia de destino, determinado pelos deuses no contexto do teatro grego? De que forma sua peça apresenta rupturas e continuidades com as peças de Eurípides, Sêneca e Racine, todas as três inseridas no contexto do classicismo, seja ele grego, romano ou francês? Originalmente, a autora inspirou-se no texto de Sêneca. Partindo do texto em latim, Sarah Kane realizou uma interpretação pessoal do mito, que ela escreveu à demanda do Gate Theatre, que tinha lhe pedido uma peça inspirada em um clássico. Refletindo sobre a transposição, a drama-
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turga afirma em entrevista concedida a Nils Tabert (in Saunders, 1997, p.125): “Eu li Eurípides após ter escrito Phaedra’s Love. E eu nunca li Racine. Eu li Sêneca somente uma vez. Eu não queria escrever uma peça que somente seria entendida por alguém que leu o original. Eu queria que a minha peça se sustentasse sozinha”. Na adaptação de Sarah Kane, que preserva a essência do mito – ou seja, a paixão de Fedra por Hipólito –, o personagem principal é Hipólito, que aceita livremente seu destino trágico, entregando-se para poder sentir-se vivo. Tanto que o próprio título Phaedra’s love remete tanto à vivência de Fedra quanto a Hipólito, que é o objeto desse amor. Sendo assim, o Hipólito de Sarah Kane busca a sinceridade absoluta por meio de um cinismo e uma atitude misógina levada ao extremo, tornando-se um verdadeiro anti-herói. Esse Hipólito contemporâneo, que vive de “sanduíches e manteiga de amendoim” (Kane, 2002, p.3), se distingue dos seus predecessores gregos e romanos pela livre aceitação de seu destino. Paradoxalmente, para ele, a perspectiva da morte o traz de volta à vida. A essência do trágico é subvertida na adaptação. Isso no caso de Hipólito, mas também no de Fedra. Enquanto na peça de Eurípides, Sêneca e Racine, Fedra sente a paixão por Hipólito por conta da maldição de Vênus, em Phaedra’s love, a rainha acredita na força do seu amor para curar seu enteado: “Você é difícil, temperamental, cínico, amargo, gordo, decadente, mimado. Passa os dias na cama vendo filmes e se arrasta pela casa com os olhos cheios de sono e não pensa nunca em ninguém. Você sofre. Eu adoro você” (ibidem, p.17). O destino é comandado por uma intenção louvável, de querer tirar e salvar o enteado da depressão por intermédio do amor. Outro ponto de mudança é a vivência de uma sexualidade mecânica pelos personagens, que se torna a única forma de expressão do vazio interior de Hipólito ou da paixão de Fedra. Assim, se os Hipólito de Eurípides e Sêneca eram castos, o Hipólito de Sarah Kane transa para passar o tempo, com homens, mulheres, ou então se mas-
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turba, como na cena de abertura da peça. A distância do personagem em relação às mulheres nas peças originais é substituída pela atitude misógina de Hipólito em relação a Estrofe e Fedra. Ele termina a cena de estupro físico e mental com a sua madrasta com a fala seguinte, demonstrando mais uma vez cinismo, indiferença e satisfação na destruição de Fedra: “Hipólito – Fedra. Vá ao médico. Eu tenho gonorréia” (ibidem, p.23). Da mesma forma, o último tabu da sociedade contemporânea – o incesto – é subvertido por Sarah Kane. No texto, Estrofe, a filha de Fedra, transou com Teseu na noite do casamento; o sexo oral entre Hipólito e Fedra acontece; Teseu estupra Estrofe sem reconhecê-la. Esvaziando a peça da presença de deuses determinadores dos destinos, os personagens são entregues a eles mesmos, isto é, ao vazio do cotidiano, em que, conforme Dostoiévski, “Se Deus não existe, tudo é permitido”.
Transposições formais Na adaptação, a justaposição das cenas opera uma desconstrução da chamada “regra das 24 horas” de Aristóteles, para quem toda ação tinha de acontecer “entre o levantar e o pôr-do-sol”, regra que continuou sendo aplicada nas tragédias do classicismo francês. Da mesma forma, a “regra da unidade de espaço”, fundamental nas tragédias clássicas grega e francesa, é desconstruída. As cenas do palácio real acontecem dentro do palácio da família real desencantado, desprovido de qualquer forma de espiritualidade, dentro da cela de uma prisão e em frente de um tribunal. A peça de Sarah Kane observa a seguinte cronologia espacial e temporal: • Cena inicial: No seu quarto, dentro do palácio real, Hipólito vegeta sobre perfusão televisiva, comendo hambúrgueres e se masturbando, sem obter o mínimo prazer de nenhuma de suas ações. • Cena 2 (cena de exposição): Confronto de Fedra com o médico da família real sobre a depressão de Hipólito.
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Na conversa na sala do palácio real, os sentimentos de Fedra se revelam aos poucos. • Cena 3 (cena de revelação): Fedra confessa seus sentimentos para sua filha, Estrofe, que fica assustada com a possibilidade da revelação desse amor, que irá resultar na queda da monarquia. • Cena 4: Cena de confronto entre Hipólito e Fedra, no quarto do próprio Hipólito. Após ter tentado se aproximar de todas as formas de Hipólito, Fedra acaba fazendo sexo oral no seu enteado. Logo em seguida, Fedra é rejeitada definitivamente por Hipólito. • Cena 5: Cena de confronto entre Estrofe e Hipólito. Estrofe revela o suicídio de Fedra que acusa Hipólito de tê-la estuprado. • Cena 6: Na cela de uma prisão, Hipólito conversa com um padre que tenta levá-lo ao arrependimento. Hipólito acaba desestruturando o padre a tal ponto de levá-lo a fazer sexo oral nele. • Cena 7 (cena de reconhecimento): Teseu descobre o corpo de Fedra. • Cena final: O povo britânico lincha Hipólito para vingar a morte da rainha. Teseu estupra e mata Estrofe sem reconhecê-la, antes de se suicidar. Percebe-se então que as unidades de ação, espaço e local não são respeitadas na adaptação de Sarah Kane. O espaço e o tempo se tornam mais amplos, já que a noção de verossimilhança temporal e local não precisa mais ser respeitada. Da mesma forma, Sarah Kane opta por tornar visível tudo o que as tragédias grega, romana ou clássica francesa deixam acontecer fora de cena. Assim, nas versões de Eurípides, Sêneca e Racine, Fedra morre por não poder concretizar seu amor, e a adaptação evidencia as consequências do ato sexual consumido. Hipólito reage ao sexo oral de Fedra com todo cinismo possível, segurando a cabeça de Fedra no momento de gozar, comendo bombons e concluindo cini-
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camente: “Hipólito – Pronto. Acabou o mistério. Agora que você me teve, vá trepar com outro” (Kane, 2002, p.19). Mantendo a acusação de estupro presente na versão de Sêneca, Sarah Kane coloca na boca de Hipólito e Estrofe a definição do estupro: “Hipólito – Estupro. Talvez seja essa a melhor palavra que ela tenha encontrado pra mim. Eu, um estuprador. As coisas estão ficando promissoras” (ibidem, p.25). Ele dialoga então indiretamente com Estrofe, que alude que ela mesma foi estuprada pelo príncipe: “Estrofe – Não existem palavras para aquilo que você me fez” (ibidem, p.25). O estupro de Fedra coloca Hipólito diante de seu destino trágico. Ele entende essa vivência como uma oportunidade: é o famoso “presente” prometido por Fedra durante a cena de sedução. Graças a esse presente, Hipólito sai da depressão, tanto que ele recusa as tentativas de Estrofe e do padre de salvá-lo. Hipólito sente-se viver novamente, e com isso, resgata com mais intensidade ainda sua capacidade de humor. Em uma entrevista, Sarah Kane afirma que Phaedra’s love é “sua comédia”, nem que ela seja construída a partir de um humor negro e cínico. Ela enfatiza, na mesma entrevista, esse lado humorístico de Hipólito: “Quando a gente entra em depressão, o senso do humor é a última coisa que desaparece; quando esse senso de humor se perde, então tudo se perde. Em nenhum momento, Hipólito perde esse senso de humor” (in Saunders, 1997, p.133). O humor de Hipólito aflora na cena com o padre, na qual esse tenta convencê-lo de que ele pode negar o estupro e ser perdoado. Hipólito decide assumir seu destino trágico e não mentir a ele mesmo. Ele assume com um prazer visível esse destino: “Hipólito – Eu sei o que eu sou. E o que sempre serei. Mas você. Peca sabendo que vai confessar. Depois é perdoado. E começa tudo de novo. Como você se atreve a sacanear um Deus tão poderoso? A não ser que realmente não acredite nele” (Kane, 2002, p.34). A partir desse momento, tudo pode se tornar visível. Em sua adaptação, além do sexo e da livre aceitação do destino, Sarah Kane resolveu tornar a violência visível: “Eu
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disse para mim mesma: você pode, com certeza, abolir a convenção que exige que tudo aconteça escondido, colocar isso em cena e ver como isso funciona” (ibidem, p.136). Assim, na última cena, Hipólito é linchado, despedaçado, seu sexo é arrancado e jogado para uma churrasqueira; Estrofe é estuprada por Teseu... O sangue corre em cena, o que seria impensável nas versões anteriores do mito.
Phaedra’s love no palco 1
Talvez essa questão da evidenciação, de tornar visível o invisível, o latente, seja um dos grandes desafios na encenação da peça de Sarah Kane. Originalmente, a autora assumiu o desafio de encenar ela mesma Phaedra’s love. A peça foi apresentada pela primeira vez em maio de 1996 no Gate Theatre de Londres, pequena sala de vanguarda de Notting Hill. Sarah Kane comenta a respeito da encenação (2002, p.72): Decidimos que iríamos tratar da violência da forma mais realista possível. Se não fosse funcionar, iríamos testar outra coisa. Mas era isso, o ponto de partida: ver como seria isso. A primeira vez que ensaiamos a cena final com todo sangue e os intestinos falsos, chegamos a ficar todos seriamente traumatizados. Os atores ficavam de pé, cobertos de sangue, após ter cometido estupros e ter-se aberto a garganta. Um deles disse, “é a peça mais nojenta que eu já fiz” e foi embora. Mas todos nós sabíamos que esse momento tinha sido a conseqüência de uma série de percursos afetivos que tinham acontecido. Então, nenhum de nós pensou que isso não era justificado, era simplesmente desagradável. E foi bem mais fácil do que o que tínhamos imaginado. Quero dizer: a gente escreve algo como “suas entranhas são arrancadas” e isso parece incrivelmente difícil a realizar. Mas na verdade, os espectadores estão prontos a acreditar em qualquer coisa se essa coisa é simplesmente sugerida.
Na encenação de Sarah Kane, realizada em uma sala que misturava os espectadores aos personagens dentro de
A montagem estreou no dia 19 de julho de 2007 no Festival de Ouro Preto e Mariana, com direção de Gilson Motta e Tânia Alice, com os atores Marianna de Mesquita, Danilo Camassuti, Ana Paula Hubli, Danilo Roxette, Renato Cordeiro, Henrique Dutra e Tarcisio Moreira.
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um mesmo espaço, as entranhas voavam em cima dos espectadores, conduzindo os espectadores a assistir diretamente e a participar das cenas de violência. A questão da visibilidade da violência e do sexo foi igualmente um dos desafios na nossa montagem do texto. Realizada pela Companhia Partículas Elementares, vinculada ao Grupo de Pesquisa do “Núcleo de Estudos em Artes” da Universidade Federal de Ouro Preto, na linha de pesquisa “A adaptação de clássicos na contemporaneidade” por meio do Edital “Jovens Artistas” do MEC/SesU,1 a montagem segue uma linha da representação da violência de uma forma mais simbólica, porém realista. À pergunta: “O que determina nossos destinos na contemporaneidade?”, respondemos com a retomada de um elemento da tragédia grega, fundamental no que diz respeito à regulação do destino dos personagens e não utilizado na adaptação de Sarah Kane: o coro.
O coro: o destino encarnado Em sua teoria da tragédia, Nietzsche concebe o coro como elemento fundador do fenômeno dramático. Partindo dos conceitos de Vontade e Representação, Nietzsche vincula o coro trágico ao elemento dionisíaco (a Vontade) e a cena propriamente dita ao elemento apolíneo (a Representação). O coro é, assim, o elemento que gera as imagens/representações; tudo que se passa na cena seria, portanto, uma projeção do coro. O que se vê em cena são os “sonhos” do coro – os deuses e heróis – que nascem da “embriaguez”, do excesso de forças criativas. Em termos estéticos, essa metamorfose nada mais é do que a transformação e inter-relação do elemento musical (dionisíaco) e o elemento formal, imagético (apolíneo). Em nossa montagem de Phaedra’s love, o coro opera nesse mesmo sentido: é dele que partem as imagens geradas na cena, é ele que controla tudo o que se passa na cena, é ele que observa a cena, numa atitude crítica. No entanto, estabelecemos uma inversão, ilustrando as inversões ope-
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radas por Sarah Kane em sua adaptação: na nossa montagem, o coro aparece como elemento apolíneo, visto possuir funções relacionadas ao controle, à organização, à racionalidade, enquanto a realidade colocada no interior da cena teria um caráter dionisíaco, já que diz respeito às pulsões, ao elemento instintivo, incontrolável, ilógico. Assim como ocorre na tragédia grega, o coro é um personagem da peça, dotado de uma identidade social, cuja ação é a de fornecer conselhos, exprimir opiniões, colocar questões, criticar os valores da ordem social, reagindo aos acontecimentos das personagens. Em Les tragédies grecques sur la scène moderne: une utopie théâtrale, Patrica Vasseur Legagneux (2004) analisa as diferentes formas de utilização do coro nas encenações contemporâneas de tragédias. As opções, nesse sentido, vão da criação do coro (como é o caso em Phaedra’s love) à supressão do coro, passando por citação, projeção, distribuição, repartição, entre outros. Dentro das possibilidades de utilização do coro, ela diferencia uma utilização ritual, religiosa, “litúrgica” (com figurinos que remetem ao antigo, cantos, danças etc.) e uma utilização política e popular, em que o coro remete a uma identidade social coletiva. Assim, de acordo com a interpretação dada pela direção ao texto de Sarah Kane – a saber, a compreensão de que, na atualidade, a vida humana é absolutamente condicionada pela mídia, de tal modo que essa adquire a força de um destino, isto é, de uma objetividade que coage o indivíduo –, o coro do espetáculo aparece como constituído por homens da mídia, isto é, por jornalistas. É a mídia, por intermédio de seus agentes – os jornalistas –, que cria a realidade, criando também a nossa subjetividade (valores, desejos, opiniões, vontades). Em relação aos personagens do texto propriamente dito – Fedra, Hipólito, Estrofe, Doutor, Teseu, padre – esse coro de jornalistas mantém uma atitude de vigilância, de ameaça, mas também de adoração. Como membros da família real, esses personagens são “cultuados” como uma eterna fonte de notícias sensacionais. Mesmo o elemento
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mais banal pode vir a se tornar um espetáculo. Do mesmo modo, os personagens centrais dependem da mídia para gerar um tipo de “imagem pública”. Dessa forma, gera-se uma tensão entre a esfera pública e a privada: o que é privado pode se tornar público a qualquer descuido... Nem tudo que é privado – mesmo que seja verdadeiro – pode tornar-se público... Por sua vez, aquilo que é tornado público nem sempre corresponde à realidade do privado, podendo ser simplesmente algo forjado, inventado. Na óptica dos personagens, na esfera privada sempre se faz necessário um “ser para o outro”, um “jogo com as aparências”, em razão daquilo que o público espera da família real. Dáse assim a representação, o jogo de máscaras, o teatro. Por sua vez, na óptica do Coro, é necessário fazer que tudo vire um grande espetáculo, conforme as teorias do situacionista de Guy Debord (1967). Coro e plateia cultuam a imagem. Num mundo marcado pela descrença nos valores religiosos, esse culto das imagens – a vontade de ser um evento da mídia – apresenta-se como uma via de salvação... Mas também de perdição. É, porém, importante notar que, assim como no teatro antigo ocorria de o coro possuir um vínculo estreito com o espectador, sendo, de fato, a voz da coletividade, em nossa montagem de Phaedra’s love, o coro de jornalistas também se relaciona estreitamente ao coletivo. Esse relacionamento talvez se processe por uma via negativa, a saber, o gosto que a população, em geral, tem pelos eventos catastróficos, dolorosos, sangrentos, cruéis. A grande quantidade de notícias veiculadas pela mídia sobre mortes brutais e acontecimentos catastróficos só existe pelo fato de haver uma demanda constante por parte da população. Alguns estudiosos afirmam que a sensibilidade do homem moderno e contemporâneo é entorpecida a tal ponto que somente os espetáculos cruéis e sangrentos podem vir a fornecer ao indivíduo uma reação afetiva. Contudo, nota-se que, quanto mais o indivíduo se “alimenta” dessas imagens, mais ele tende à apatia. Desse modo, as imagens sobre violência proliferam e se banalizam.
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O coro de Phaedra’s love aparece, portanto, em nossa encenação como o elemento que cultua, cria e manipula as imagens, e, com elas, a realidade dos personagens e espectadores. Nessa leitura do mito, o suicídio de Fedra parece institucionalizado pela mídia, que não somente testemunha o lento apodrecimento de nossa sociedade, mas condiciona os comportamentos e os relacionamentos de forma totalitária no sentido da expansão desses valores, evidenciando a relação entre o destino e a liberdade, a tensão entre a esfera pública e a esfera privada, a crueldade por meio da catarse. Dessa forma, o coro evidencia de uma forma mais palpável, mais tangível, a violência da peça de Sarah Kane. Concluindo, podemos afirmar que a evolução do mito na tragédia grega, na tragédia romana de Sêneca e na tragédia clássica Francesa até a adaptação contemporânea de Sarah Kane segue uma linha de progressiva evidenciação da violência e da sexualidade, sendo essas questões emblemáticas da pós-modernidade. Em nossa encenação, demos um passo a mais nessa evidenciação por meio da criação de um coro de cunho apolíneo, que controla e rege o destino dos personagens da família real. Assim, a violência da realidade vai se traduzindo de forma diferente em função do contexto. Essa abertura da peça conduz a uma leitura universal, conforme a afirmação de Krzysztof Warlikowski publicada na revista Outre Cène (2003, p.47): A peça de Sarah Kane pertence ao local onde ela é realizada, ao país onde ela é montada. Sua estrutura é tão aberta que ela tem que ser preenchida com matéria francesa, alemã ou polonesa, segundo o local de sua montagem. E um imaginário universal, como foi o imaginário de Koltès, Shakespeare ou dos Gregos. Ela é ilimitada. Só se tem de encontrar a porta.
Referências ARISTÓTELES. Poética. Trad., prefácio, introdução, compêndio e apêndices de Eudoro de Sousa. 4.ed. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1994. (Coleção Estudos Gerais / Série Universitária).
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Retomada do “cânone” para crianças brasileiras: tradução, transcriação ou adaptação do Outro nas Fábulas de Monteiro Lobato? Flávia Mara de Macedo*
RESUMO: Este artigo propõe-se a interrogar sobre a passagem das Fábulas do escritor francês La Fontaine, um dos principais “modelos” de literatura para a infância no Brasil do fim do século XIX e início do século XX, para o texto do escritor brasileiro Monteiro Lobato.1 PALAVRAS-CHAVE: Monteiro Lobato, La Fontaine, fábulas, adap-
tação, tradução. ABSTRACT:
This article proposes to interrogate about the passage of the Fables by the french writer La Fontaine, one of the most important “models” of children’s literature in Brazil from the end of the 20th century to the beginning of the 21st century, for the text of the brazilian writer Monteiro Lobato. KEYWORDS:
Monteiro Lobato, La Fontaine, fables, adaptation,
traduction.
* Doutora em Literatura Comparada pela Université Sorbonne Nouvelle – Paris III. 1
Tivemos acesso a duas edições de Fábulas. A primeira é de 1925, pela Cia. Editora Nacional. Essa edição não apresenta as opiniões e diálogos dos picapauzinhos. Neste artigo, utilizamos a edição definitiva, revisada por Lobato para a publicação das Obras completas – literatura infantil em 1947.
O paradoxo essencial da literatura parece-nos ser sua dependência a variações, a metamorfoses, que lhe garantem uma espécie de “sobrevida” temática. O elemento único, pertencente a um gênero, delimitado e restrito a uma área literária, a um autor e, talvez, a um conceito parece condenado, dessa maneira, a um refazer literário desrespeitoso de gênese, de origens e ávido de anacronias. Dessa forma, essas “passagens” seriam justamente certeza ou premissa da existência de elementos essenciais ao material literário, desejáveis ou reorganizáveis segundo épocas e tempos diversos. Desde o início de sua carreira literária, Monteiro Lobato (1959, p.128) se relacionou com os “eternamente lidos”, dos quais ele dizia abertamente querer compreender
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os “segredos” para então, num segundo momento, os “pastichar”: “Vamos fazer uma coisa: destrinçar o segredo dos eternamente lidos. Depois seguiremos a maneira deles, mas sem nos afastarmos da observação, do real, do verismo que está em nossa essência”. Em inúmeras cartas a seu amigo de juventude Godofredo Rangel, reunidas em 1946 no livro A barca de Gleyre: quarenta anos de correspondência entre Godofredo Rangel e Monteiro Lobato (1959), o escritor taubateano nos fala dessas “receitas” literárias. Sem dúvida, Lobato conheceu de perto a “literatura lida” de seu tempo, sobretudo na língua original: inglês ou francês, ou manuseou o que ele chamava de traduções “galegais” dos Laemmert. Nos anos 1920, já estabelecido em São Paulo e dirigindo sua própria editora, a Monteiro Lobato e Cia., o escritor começa uma verdadeira carreira de tradutor, o grande negócio da época, e também de editor, com a publicação de livros didáticos. Inundar o país de livros, seu grande intento, passava sem dúvida, nesse momento, seja pela tradução-adaptação, como as realizadas em dezenas de livros,2 seja pela tradução-adaptação-recriação que Lobato realiza dos “eternamente lidos” ao seu universo ficcional, o Sítio do Picapau Amarelo. A partir desse momento, acreditamos poder falar de intertexto lobatiano, resultado de uma transcriação a partir do confronto, sempre difícil, entre um texto primeiro e uma escrita segunda. DanielHenri Pageaux (1994, p.42), ao se referir a essas “passagens”, fala de sua relevância aos estudos de “Traductologia”, como a entendem os comparativistas: L’étude comparatiste partira de cette notion clé d’écart, de différence et tentera d’élucider la nature et la fonction possible de ces variations interlittéraires dont la somme constitue ce qu’on appelle une traduction. La traduction, travail de lecture, d’interprétation et de réécriture, entreprise d’importation et de naturalisation, est le résultat d’un ensemble de choix d’ordre linguistique, stylistique, esthétique, et aussi idéologique. Pourquoi ces choix? Telle est bien la seule et grande question.3
No intuito de estudarmos essas escolhas diversas realizadas na confecção da matéria lobatiana, partiremos dos
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A lista parece infindável. Segundo Azevedo et al. (1997), Lobato teria traduzido os seguintes títulos: 1934 (Kim, O lobo do mar, Pollyana, Pollyana moça, Aventuras de Huck, Jácala, o crocodilo, O homem invisível, O Doutor Negro, A filha da neve e Diamante Negro); 1935 (A ilha das almas selvagens, Cleópatra, A ponte São Luís Rei, História da Filosofia (com Godofredo Rangel), O grito da selva, O crime do cassino, Scarface, Tarzan, o terrível, O pequeno César e Moby Dick); 1936 (A ceia dos acusados); 1937 (Viagens de Gulliver); 1939 (Rumo às estrelas, Evolução da física e Os grandes pensadores); 1940 (História do Futuro, A formação da mentalidade, História da Bíblia e A epopeia americana); 1941 (Lágrimas de homem, O livro da jângal, Por quem os sinos dobram e Educação e vida perfeita); 1942 (Adeus às armas, Lincoln, Somente nesse dia, Máquinas da democracia, História da civilização e Uma folha na tempestade); 1943 (Memórias (André Maurois), Piloto de guerra, Noite sem lua, A construção do mundo, Um mundo só, Mágica em garrafas); 1944 (A queda de Paris e O nazareno); 1947 (O problema econômico de Cuba).
3
“O estudo comparativista partira dessa noção-chave de distância, de diferença, e tentara elucidar a natureza e a função possível dessas variações interliterarias cuja soma constitui o que se chama uma tradução. A tradução, trabalho de leitura, de interpretação e de reescritura,
empreitada de importância e de naturalização, é o resultado de um conjunto de ordem linguistica, estilistica, estética, e também ideologica. Por que essas escolhas? Tal é a unica e grande questão.” Quando não indicada a autoria, as traduções são nossas.
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estudos interdisciplinares da imagologia, tendo em mente a definição da imagem formulada por Daniel-Henri Pageaux (1994, p.60): “toute image procède d’une prise de conscience, si minime soit-elle, d’un Je par rapport à un Autre, d’un Ici par rapport à un Ailleurs. L’image est donc l’expression, littéraire ou non, d’un écart significatif entre deux ordres de réalité culturelle”.4
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“toda imagem procede de uma tomada de consciência, por mínima que seja, de um Eu em relação a um Outro, de um Aqui em relação a um Ali. A imagem é, portanto, a expressão, literária ou não, de um intervalo significativo entre duas ordens de realidade cultural” (tradução do editor).
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“– Leia da sua moda, vovó! – pediu Narizinho. A moda de Dona Benta ler era boa. Lia “diferente” dos livros. Como quase todos os livros para crianças que há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do tempo do Onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele português defunto em língua do Brasil de hoje” (Lobato, 1979, p.133).
Lobato e a tradução do Outro no seu universo Sabe-se que a principal narradora do Sítio do Picapau Amarelo é Dona Benta, leitora poliglota e de saber enciclopédico que “lê” diferente dos livros5 e, em razão disso, consegue contentar o público exigente que a rodeia. No entanto, Dona Benta, de cultura “erudita”, reluta com a oralidade e quase sempre se justifica perante seus leitores, enfatizando seu papel de “passadora”: passadora de uma tradição “erudita”, a do livro, à “imaturidade” da “criança”, que se constitui em seu público; passadora das ferramentas de compreensão e crítica da escrita e consequentemente, como nos demonstra Lajolo (1999) de compreensão e crítica do mundo. Em Dom Quixote das Crianças, Dona Benta deixa bem claro estar escolhendo somente as partes mais engraçadas e proveitosas para cérebros em tenra idade. Ela se desculpa por “saltar” as passagens mais árduas e dever fazer uma escolha: “Eu conto somente as principais aventuras de Dom Quixote, resumindo. Somente os adultos, gente de cérebro mais maduro, podem ler a obra completa e entender as belezas” (Lobato, 1960, p.169). É a intenção e a concepção da literatura infantil do autor que se tornam explícitas, por intermédio da avó: a literatura infantil pode ser igualmente literatura que levará a criança aos livros mais “difíceis”, na idade adulta. E para que o público seja satisfeito pela narração, ele também tem o direito de fazer exigências, não aceitando passivamente o discurso do Outro. Emília, a mais “moderna” e insatisfeita das personagens lobatianas, tem mesmo o direito de ditar as regras e dizer o
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que entende por literatura: “Se o livro é inteiro nesta perfeição de língua, até logo. Eu vou brincar de esconde-esconde com o Pedrinho” (ibidem, p.11). A boneca participará a uma condição: que Dona Benta conte a história do cavaleiro da triste figura,
A paródia deriva dessa ideia de intertextualidade, metonímia da apropriação do outro, e dessa maneira “crítica em ato” da qual nos fala Genette (1982, p.554); o hipertexto em Lobato é metalinguagem, exercício por meio do qual o autor coloca em jogo não somente a “tradição literária”, mas igualmente seus próprios textos e personagens. Tudo isso englobado por um contexto: um tempo-espaço e actantes aptos a incorporar outros universos.
Com as palavras suas e de Tia Nastácia e minhas também – e de Narizinho – e de Pedrinho – e de Rabicó. Os viscondes que falem arrevezado lá entre eles. Nós, que não somos viscondes nem viscondessas, queremos estilo de clara de ovo, bem transparentinho, que não dê trabalho para ser entendido. Comece. (ibidem, p.11)
Por meio da narração “recriada” das aventuras cervantinas, Emília (aquela que exige clareza) acaba sendo a maior beneficiada, mas antes do fim e do destino fatal de Quixote, parte a brincar no quintal refazendo os níveis de significação do livro: dona das ferramentas necessárias de interpretação, compreensão e aplicação, ela o abandona fazendo reviver sua hermenêutica e desdobrando os níveis de sentido. Sem dúvida, por intermédio da boneca, “dama quixotita”, o quixotismo de nossas “infâncias” ganha vida e readquire sentido graças aos atos de heroísmo místico da boneca: “Para mim Dom Quixote não há de morrer. Não quero ouvir o resto da história. Até logo. Vou brincar com o Quindim e levo Dom Quixote bem vivinho dentro da minha cabeça” (ibidem, p.221), e mais tarde na frase que garante vida ao livro: “Morreu, nada! dizia ela. Como morreu, se Dom Quixote é imortal?” (ibidem, p.224). Linguagem simplificada para um público em desenvolvimento. Podemos imaginar que essa passagem não é realizada sem conflito. Assim como em outros livros, que tentam aproximar o leitor mirim dos grandes clássicos da literatura, Lobato faz que o “livro” seja discutido pelas personagens, seja por intermédio de Dona Benta, que conta “com suas palavras” a história, seja fazendo referência a autores diversos e aos quais poder-se-á fazer referência posteriormente, ou ainda colocando esses autores e personagens diretamente interagindo com o universo lobatiano.
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La Fontaine e os picapauzinhos
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Marta, Edgar, Guilherme e Ruth, que tinham, respectivamente, sete, seis, quatro e dois anos em 1919.
As fábulas de La Fontaine circulavam no Brasil desde os meados do século XIX, em traduções de Bocage, do barão de Paranapiacaba e Filípio Elísio, entre outros. Monteiro Lobato é consciente da importância de La Fontaine no Brasil e, desde o início de sua vida literária, pelos idos de 1916, conta em cartas a seu amigo Rangel sobre a atenção e curiosidade com que seus filhos6 as escutam contadas por sua esposa, Maria Pureza da Natividade Lobato. Nessa carta, de 8 de setembro de 1916, Lobato (1959, p.104) fala da “pobreza” da “literatura destinada às crianças” no país e do desejo de “iniciar a coisa” vestindo à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine: “tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para criança” (ibidem, p.104). Três anos mais tarde, em abril de 1919, já proprietário de sua editora, ele conta a Rangel ter “vestido à sua moda” o autor francês: “Tomei de La Fontaine o enredo e vesti-o à minha moda, ao sabor do meu capricho, crente como sou de que o capricho é o melhor dos figurinos” (ibidem, p.193), mas a tradução é apenas um esboço e não conta com a participação dos personagens do Sítio, os picapauzinhos. Somente dois anos mais tarde, em 1921, Lobato publica Fábulas de Narizinho e, em 1922, a versão definitiva das Fábulas, a partir da qual Lobato faz seu universo englobar definitivamente as velhas histórias e aproximá-las dos pequenos brasileiros. La Fontaine e suas fábulas fazem parte do universo lobatiano de duas maneiras. Num primeiro momento, as
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crianças conhecem as fábulas por meio da narração de Dona Benta, cotidianamente; e, num segundo, Lobato se encarrega de fazer interagir suas personagens e o acadêmico da Corte de Louis XIV. É relevante salientar que nesse momento as crianças têm consciência de que La Fontaine é um dos autores preferidos de Dona Benta, assim como Esopo, que é, no entanto, apenas uma “sombra” nesse episódio, um “parente” distante do célebre francês. O trecho do encontro de Emília, Narizinho e Pedrinho com La Fontaine em Reinações de Narizinho é rico e revelador da “presença” francesa e de um certo francesismo característico desse início de século no Brasil, e do qual contraditoriamente Lobato sempre procurou se distanciar (Chiarelli, 1995, p.185). No entanto, não deparamos com personagens “colonizadas” boquiabertas ante a cultura oficial que representa La Fontaine, mas com uma certa irreverência auspiciosa, capaz de denotar uma saudável e revigorante tentativa de cooperação entre os “novos” e os “antigos”, encenando dessa maneira querelles sempre tão desejáveis. Assim, mesmo se Pedrinho segue o fabulista com lápis e papel, tentando copiá-lo nos mínimos gestos e palavras enquanto esse escreve suas fábulas, os picapauzinhos não se contêm (sobretudo Emília) e riem sem pudor da “antiguidade” démodée de La Fontaine. Nessa passagem, o fabulista é descrito como nobre, elegante, ponderado, cincunspecto e gentil, e é colocado num mesmo nível narrativo que a boneca, o que provoca indubitavelmente o humor, pois Emília é conhecida (e mesmo condenada) por sua espontaneidade, sua falta de educação, de bom senso e sua vulgaridade. Nesse primeiro encontro, podemos imaginar simples oposições de hierarquia entre: literatura primária versus literatura secundária; alta literatura versus baixa literatura; centro versus periferia; literatura regional versus literatura universal que tratam da primeira atitude fundamental, descrita por Daniel-Henri Pageaux (1994, p.71), quando do encontro do Outro, a Mania: “La réalité étrangère est tenue par l’écrivain ou le groupe comme absolument supérieure à la culture regardante, à la culture
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“A realidade estrangeira é tida pelo escritor ou pelo grupo como absolutamente superior à cultura olhante, à cultura de origem” (tradução do editor).
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d’origine”.7 No entanto, essa primera impressão de simples oposição se mostra dúbia e passível de reviravolta, pois um evento emblemático virá transtornar a realidade aparente e a ordem de pré-ideias. La Fontaine e as crianças passeiam no País das Fábulas observando os animais; o fabulista, ao escutar um canto de galo, acredita estar escutando o galo de suas fábulas “símbolo do povo francês e da bravura e da vitória”. Emília revida imediatamente: – Lá está um galo cantando – disse ele ingenuamente. – Gosto dessa ave, que simboliza a bravura e a vitória. Todos sentiram vontade de rir ao perceberem o engano dum homem tão sábio. Mas contiveram-se, lembrando o respeito que Dona Benta lhes ensinara para com os mais idosos. Todos, menos Emília. A burrinha espremeu uma das suas risadas caçoísticas e disse, antes que a menina pudesse atrapalhar: O Senhor está fazendo papel de bobo, Senhor de La Fontaine! Aquilo nunca foi canto de galo, nem aqui, nem na casa de sua sogra. É o Peninha que vem vinho. Narizinho, envergonhada, tapou-lhe a boca com a mão e ralhou: – Como chama bobo a um homem tão importante, Emília? Vovó, quando souber, vai ficar danada!... (Lobato, 1979, p.177)
Essa “transplantação” do(s) autor(es) na narrativa lobatiana, que antecede a tradução/adaptação, parece ser responsável por uma espécie de embaralhamento de fronteiras de gênero, de épocas e conflitos literários, capaz de fazer do texto lobatiano um texto terceiro, mantendo intactos “alteridades intraduzíveis” (pensemos em Barthes, L’empire des signes) e, dessa forma, revelam novas riquezas do texto “último”, recriado. Vemos, dessa maneira, uma cooperação literária, rica em significações e assumida abertamente pela boneca Emília: passaríamos assim da “mania” à “filia” (complementaridade entre cultura olhante e cultura olhada) descrita por Pageaux (1994, p.71). Nesse ponto, tocamos na questão da apropriação do que um pré-
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texto tem de mais desejável para a cultura que o “recebe”, ou seja, um “modelo” a ser fornecido. O texto que procura o “exemplo”, nesse início do século XX brasileiro, está indubitavelmente à procura de legitimidade (condição sine quoi non para sua aceitação). É dessa forma que o texto lobatiano reconstroi suas bases e pode finalmente “tocar” seu público: “les règles du jeu antérieur sont définitivement remodelés” (Jauss, 1978, p.51). Somente dessa maneira Lobato pode estruturar e “encenar” as contradições do mundo literário dos anos 1920 e 1930 brasileiros e conquistar seu público seleto. Como nos salienta Souza (2004, p.190), La Fontaine, assim como Lobato, era um admirador dos antigos, e passa sua carreira literária numa posição difícil diante da Querela dos Antigos e Modernos. Os dois escritores parecem resolver a questão prestigiando os antigos, sem deixar de reconhecer o valor da modernidade e do folclore medieval ou local e voltando-se para o incipiente público infantil. É com esse espírito que La Fontaine reescreve as fábulas de Esopo e Lobato, as de La Fontaine. Eles mantêm, dessa maneira, a simplicidade da tradição oral, mas investem na narrativa, no caso de Lobato, e na arte dos versos, no caso de La Fontaine. Igualmente, um novo contexto serviu de propulsor ao “aparecimento” do público leitor mirim, tanto no século XVIII francês quanto no início do século XX brasileiro, haja vista a procura das “elites” por uma literatura “de formação” dos futuros “delphins”, que não deixou de ser contraideológica em ambos os casos.
As fábulas no sítio Após o imenso sucesso de Reinações de Narizinho, a partir de 1920, a aventura “literária” dos picapauzinhos começa efetivamente em Fábulas, tradução-adaptação das Fables de La Fontaine, Esopo (século VI a.C.) reescritas por Fedro (século I d.C) e também composições do próprio Lobato.8 Assim, vemos como Fedro dialoga com Esopo e La Fontaine. com os dois anteriores e, consequentemente,
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Das 74 fábulas escritas por Lobato, ao menos 58 são escritas igualmente por La Fontaine. Mas há também fábulas de Dona Benta (Lobato) como “O cavalo e as mutucas” e “O jabuti e a peúva”. De Hesíodo, temos “O sabiá e o urubu”. Segundo Dezotti (2003), de Esopo temos, por exemplo “Os dois viajantes da Macacolândia”, “O peru medroso”, “O corvo e o pavão”, “O sabiá na gaiola”, “O lobo velho”, “A pele do urso”; e de Fedro, “O julgamento da ovelha” e “O imitador dos animais” (Apud Souza, 2004, p.148).
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Lobato com seus três antecessores. Sem falar na individualidade artística intrínseca nos dois últimos fabulistas, que apesar de grandes admiradores de seus antecessores salientavam uma interessante vontade de “correção” dos textos anteriores. Pela primeira vez, o público lobatiano faz sua entrada na narrativa, após alguns balbucios em Reinações de Narizinho (O Gato Félix, O irmão do Pinocchio). As crianças, auditório fiel das fábulas contadas, que podem ser igualmente de autoria da avó, criticam, modificam, gostam dessas histórias e morais que valorizam a força da inteligência e da esperteza, capazes de vencer “os mais fortes”: “Eu não sou forte mas ninguém me vence. Por quê? Porque aplico a esperteza”. Nós vamos começar a ter, com Fábulas, contato com esse público de “príncipes herdeiros” que tenta formar Lobato: discutem-se gramática, filosofia, política, literatura, moral... Ademais, os picapauzinhos não hesitam em “não estar de acordo”: “– Não concordo, vovó!”… “lincha esta fábula indecente!”; e em querer substituir La Fontaine pelas fábulas nacionais: “Eu, se fosse a senhora, vovó, trocava essa fábula por aquela outra – a tal do Pulo do Gato” (Lobato, 1952b, p.81), e a colocar em cena as personagens do Sítio: Joana Baracho, coronel Teodorico, Cuca, Saci, Tio Barnabé; e a fauna e a flora brasileiras: jabuti, peúva, jequitibá. Dona Benta “conta” as fábulas em prosa, utilizando-se de muitos diálogos, e o texto original ganha contornos nacionais; ao fim de cada narração a avó e seu público fazem comentários sobre as moralidades, aprovando-as ou modificando-as, e comparando os comportamentos dos animais a personagens do universo lobatiano. A “escolha” das fábulas contadas revela de maneira flagrante a visão de mundo do autor, que a própria construção narrativa se encarrega de aprovar, modificar, contestar etc. A moral em Lobato nos parece não somente “alternativa”, como nos salienta pertinentemente Vasconcelos (1982, p.130), mas igualmente, poderia ser chamada de moral subjetiva, ou seja, pessoais e exigidas pelas próprias
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crianças, paradoxalmente ávidas de enquadramento. Assim, encontramos uma moral inocente, para os “fracos” ou naturalista (livresca), em Narizinho; uma moral da esperteza, do progresso, da evolução, da utopia defendida por Emília; uma moral dos vencidos defendida por Visconde; une moral aventuresca e combativa em Pedrinho etc. Nastácia entra no salão de Dona Benta ou é mencionada quando faz-se menção ao “nacional” (“Le chat et le renard”; “Le rat de ville”, “Le rat des champs”), enquanto Dona Benta faz a ponte entre La Fontaine e a realidade no sítio, “adaptando” a linguagem, os animais e/ou plantas e personagens europeus ao contexto brasileiro. Esse é um importante ponto a ser salientado nessa recriação lobatiana: a linguagem utilizada por Lobato, claramente “abrasileirada” se a confrontarmos com as traduções anteriores no que diz respeito, por exemplo, à escolha dos títulos das fábulas. Lobato prima em “traduzir” não somente palavras, mas níveis de linguagem, confundindo registros. Além do que, cria fábulas “nacionais” acrescentando-as ao todo, tais quais “O cavalo e as mutucas” e “O jabuti e a peúva”. Emília não cria histórias, mas faz projeções de fábulas que ela escreverá: “hei de escrever uma fábula o contrário desta…” (Os dois pombinhos); “prometeu escrever uma fábula com o título Os Netos da Coruja” (O corvo e o pavão); “veio de uma fabulazinha que vou escrever” (O touro e as rãs); ou que é subentendida pela narrativa. Assim, na fábula “O lobo velho”, a boneca começa a narração de uma fábula que o leitor não conhecerá: “E começou a inventar a fábula da ‘raposa que levou na cabeça’”. Além da moral subjetiva lobatiana, encontramos, igualmente na narração, discussões referentes à gramática e à literatura. A primeira fábula do livro é “La cigale et la fourmi” de La Fontaine. Lobato muda o título para “A cigarra e as formigas” (repetindo o título da fábula de Esopo, uma das principais fontes de La Fontaine) e a divide em: “A formiga boa” e “A formiga má”. Contrariamente à narração da “Formiga boa”, que termina com uma feliz confraternização entre a formiga e a cigarra e que não levanta nenhum
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A moral não é definitiva em La Fontaine, contrariamente a seus predecessores, que condenam a negligência da cigarra. Como nos lembra Souza (2004, p.99), “La Fontaine não tem compromisso fixo com a presença da moral, como ocorre no estilo esopofedriano. [...] prefere que ela venha disseminada na própria narrativa”. Assim, continua Souza, “La Fontaine não julga pessoas honestas ou desonestas, simplesmente aponta os integrados ou não no novo sistema mercantilista” (ibidem, p.112).
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comentário, a “Formiga má”, “fiel” à versão de La Fontaine,9 cria polêmica. Narizinho protesta contra a suposta má fé do fabulista, que transforma a formiga num inseto “mau”: “– Esta fábula está errada! – gritou Narizinho. – Vovó nos leu aquele livro de Maeterlinck sobre a vida das formigas e lá a gente vê que as formigas são os únicos insetos caridosos que existem. Formiga má como essa nunca houve”. (Lobato, 1952b, p.4). Dona Benta, em discurso indireto, dá o tom e a intenção do livro: “Dona Benta explicou que as fábulas não eram lições de História natural, mas de moral. E tanto é assim, disse ela, que nas fábulas os animais falam e na realidade eles não falam” (ibidem). O comentário gera polêmica, pois Emília conduz a discussão em outra direção e defende uma língua dos animaizinhos: “incompreensível para humanos”. Vê-se que em Lobato não há crítica à negligência da cigarra, em nenhuma das duas versões; pelo contrário, ele valoriza o trabalho “artístico”, associando a cigarra aos artistas, profissão de pouco valor nesse início do século XX no Brasil, e à qual, voluntariamente, sempre se associou. Vejamos a conclusão e moral da “Formiga má”: Resultado: a cigarra ali morreu entanguidinha; e quando voltou a primavera o mundo apresentava um aspecto mais triste. E que faltava na música do mundo o som estridente daquela cigarra morta por causa da avareza da formiga. Mas se a usuraria morresse, quem daria pela falta dela? “Os artistas, poetas, pintores, músicos são as cigarras da humanidade”. (ibidem)
Note-se que, enquanto Esopo condena abertamente a “negligência” da cigarra, La Fontaine não se posiciona como moralista, mas apenas satiriza os hábitos e costumes de seu tempo, ainda que vejamos uma crítica de costumes à formiga subentendida no texto: “La fourmi n’est pas prêteuse. C’est là son moindre défaut”. Já em Lobato, o controle moralizante mais intempestivo virá da parte de Emília, quando essa “corrige” a fábula em Reinações de Narizinho,
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durante a visita das crianças ao País das Fábulas e o encontro com La Fontaine. Novamente em “A coruja e a águia” (“L’aigle et le hibou”), fala-se dos artistas. Dona Benta retoma a moral de La Fontaine (que trata da perigosa e às vezes fatal cegueira dos pais): “Para retrato de filho ninguém acredite em pintor pai. Lá diz o ditado: quem o feio ama, bonito lhe parece” (ibidem). No entanto, os comentários finais das personagens remetem a moral da fábula a todo e qualquer produto da criatividade humana. Dessa maneira, para a avó, as obras de arte ou todo produto humano são “os nossos filhos”:
apresentada pelo boi lobatiano que ironiza sobre os ambiciosos: “Quem nasce para dez réis não chega a vintém” (ibidem, p.9). A boneca, conhecida por ser interesseira e ambiciosa e que, ao longo da saga do Picapau Amarelo, sofre uma verdadeira evolução, não pode estar de acordo: “Não concordo! – eu nasci boneca de pano, muda e feia e hoje sou até ex-marquesa. Subi muito. Cheguei a muito mais que vintém. Cheguei a tostão...” (ibidem). Emília não somente critica a moral, mas aponta soluções utilizando-se de sua própria condição. Narizinho, proprietária e grande controladora de Emília, tenta colocar “limites” e a compara à rã da fábula:
E essa fábula aplica-se a muita coisa, minha filha. Aplica-se a tudo que é produto nosso. Os escritores acham ótimas todas as coisas que escrevem, por piores que sejam. Quando um pintor pinta um quadro, para ele o quadro é sempre bonitinho. Tudo quanto nós fazemos é “filho de coruja”. (ibidem, p.7)
Na fábula “O ratinho, o gato e o galo”(“Le cochet, le chat et le souriceau”), novamente a “liberdade poética” (ibidem, p.102) do fabulista é colocada em jogo, pois, segundo Emília: “os camundongos reconhecem um gato desde que nascem” (ibidem). Dona Benta toma a defesa dos escritores: “explicou que os fabulistas não têm o rigor dos naturalistas e muitas vezes torcem as coisas para que a fábula saia certa” (ibidem). E Narizinho acrescenta: “Os fabulistas também são poetas ao seu modo” (ibidem, p.104). No que tange à moral, vemos que a moral lobatiana “Quem vê cara não vê coração” segue a de La Fontaine “Gardetoi, tant que tu vivras de juger les gens sur la mine”, que, por sua vez, se inspira no fabulista italiano Verdizotti (15301607) “Ne juge pas sur la mine, le bon ou le méchant”.10 Vêse, dessa maneira, que a discussão sobre a moral em Lobato é passada em segundo plano (a mesma moral com diferentes registros) e o que se sobressai na discussão é o estilo “poético” das fábulas. Na fábula “A rã e o boi” (“La grenouille qui se veut faire aussi grosse que le bœuf”), Emília não gosta da moral
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– Cuidado, Emília! disse Narizinho. – De repente você estufa demais e acontece como no caso da rã....E sabe o que sai de dentro de você, se arrebentar? – Estrelas – berrou Emília. – Sai um chuveiro de asneirinhas... Emília pôs-lhe a língua. (ibidem)
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Ver as notas complementares de Fables de La Fontaine (2002, p.466).
11 Cléu Marcondes Ferreira, filha de um amigo e ex-sócio de Lobato, Octalles Marcondes Ferreira. Ela participa igualmente das aventuras em Caçadas de Pedrinho.
Em “O reformador do mundo” de Lobato, o villageois/ camponês de La Fontaine (“Le gland et la citrouille”) se torna Américo Pisca-Pisca, que tem como principal característica “pôr defeito em todas as coisas” (ibidem, p.10). O jeca lobatiano sonha com um mundo novo, reformado inteiramente por suas mãos. No entanto, após o incidente com a jabuticaba, assim como a personagem Garo de La Fontaine, ele se convence do contrário: “Fique o mundo como está, que está tudo muito bem” (ibidem, p.12). A moral não agrada mais uma vez à “reformista” Emília: “Pois esse Américo era bem merecedor de que a abóbora lhe esmagasse a cabeça duma vez. Eu, se fosse a abóbora, moíalhe os miolos...” (ibidem) e anuncia seu projeto utópico de reforma do mundo: “No dia em que me pilhar aqui sozinha...”. Seu projeto será retratado nos livros Reforma da Natureza (1941) no qual, enquanto todos os personagens partem para representar o Sítio na Conferência da Paz na Europa, em 1945, a boneca, com a ajuda de uma leitora das histórias do grupo, Cléu,11 realiza reformas na
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natureza.12 Não há menção a Deus na versão lobatiana, como vemos em La Fontaine, que ironiza voluntariamente sobre a ingenuidade do camponês. Lobato substitui Deus pela Natureza:
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12 Igualmente no livro A chave do tamanho (1942), Emília realiza “reformas” no mundo.
Dieu fait bien ce qu’il fait. (verso 1) [...] Oh, oh, dit-il, je saigne! et que serait-ce donc S’il fût tombé de l’arbre une masse plus lourde, E que ce gland eut été gourde?13 (verso 29) Dieu ne l’a pas voulu: sans doute il eut raison; (verso 30) J’en vois bien à présent la cause. (verso 31) E Pisca-Pisca continuou a piscar pela vida em fora, mas já sem a cisma de corrigir a natureza. (ibidem, p.12)
As fábulas podem igualmente servir de exemplo para as ações do cotidiano; como vimos em “A rã e o boi”, Emília foi comparada à rã. Dessa maneira, as atitudes dos próprios picapauzinhos e da vizinhança são comparadas às atitudes dos animais. Em “A gralha enfeitada com penas de pavão” (“Le geai paré de plumes de paon”, coronel Teodorico é comparado à gralha da fábula, pois, após ter ganhado muito dinheiro com a venda de sua fazenda, quis frequentar a alta sociedade, esquecendo-se de seu antigo meio. Enganado, ele volta de cabeça baixa: “O compadre pretendeu ser rico. Enfeitou-se com penas do pavão do dinheiro e acabou mais depenado que a gralha” (ibidem, p.14). Lobato não ironiza sobre os “plagiários”, como La Fontaine e seus antecessores (Esopo, Fedro, Marie de France, Babrius, Haudent, Corrizet, Horácio), assunto que certamente não o preocupa, mas Dona Benta chama a atenção com relação às falsas aparências e sobretudo sobre a verdadeira riqueza: a do espírito e da alma (ibidem) da qual, segundo a personagem, coronel Teodorico era completamente desprovido. A fábula “Le Renard ayant la queue coupée” de La Fontaine, da qual se inspira Lobato para escrever sua “A raposa sem rabo”, remonta a uma fábula esópica, com a seguinte moral: “Cette fable convient à ceux qui donnent de
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Courge: contração de “cougourde”, utilizado até o século XVII (cf. Littré).
14 Cf. notas complementares (La Fontaine, 2002, p.460).
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conseils à leur prochain, non par bienveillance, mais par intérêt personnel”.14 Nas discussões finais, Dona Benta cita uma família de papudos da vizinhança, na qual um dos filhos, único sem papo, era considerado pela dona da casa como defeituoso. Ela é comparada à raposa sem rabo da fábula. Em “O peru medroso” (“Le renard et les poules d’Inde”), Lobato muda os animais e coloca um “lindo galo” e um “gordo peru” como presas potenciais da raposa; o peru, o mais “cauteloso”, é o animal punido pela raposa. Dona Benta diz conhecer um “homem assim”, muito prudente, mas que acabou morto por um avião que caíra sobre a sua cabeça (ibidem, p.67). No momento em que Dona Benta conta a fábula “O rato da cidade e o rato do campo” (“Le rat de ville et le rat des champs”), Tia Nastácia entra no salão e se associa ao “rústico”, o rato do campo. Ela fala de sua experiência na Lua em “Viagem ao céu”, na cozinha de São Jorge, e exalta a vida no “seu campo”: Está certo! Disse tia Nastácia que havia entrado e parado para ouvir. – Nunca hei de esquecer do que passei la na Lua quando estive cozinhando para São Jorge e ouvia os urros daquele dragão. Meu coração pulava no peito. Só sosseguei quando me vi outra vez aqui no meu cantinho... (ibidem, p.16)
Vê-se que Lobato retoma a oposição tradicional (sátira em Horácio: Livros II, VI, versos 79 a 117) e lugarcomum do século XVII entre a cidade e o campo, temática constante nesse Brasil do início do século XX. Tia Nastácia, inculta e refratária à “modernidade”, que pode representar uma viagem ao céu, da qual ela participa contrafeita, faz o contraponto com o “desconhecido”, o “incerto”, nesse caso encarnado pelo Outro da “Viagem ao céu”, São Jorge. Ele nos remete igualmente a um nacional, “meu cantinho”, simples, mas seguro. Depois da narração da fábula “O velho, o menino e a mulinha” (“Le meunier, son fils et l’âne”), Dona Benta cita Shakespeare: “E isto acima de tudo: sê fiel a ti mesmo
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(Above all, be true to yourself)”, que é somente mais uma versão do verso de La Fontaine “Qu’on dise quelque chose ou qu’on ne dise rien; je veux faire à ma tête”. O nietzschiano Pedrinho quer adotar a máxima: “Lindo, vovó! Exclamou Pedrinho entusiasmado. E vou adotar esse verso como lema da minha vida. Quero ser fiel a mim mesmo – e o mundo que se fomente...” (ibidem, p.21). A fábula “O julgamento da ovelha”, que tem como moral em Lobato “Fiar-se na justiça dos poderosos, que tolice! A justiça deles não vacila em tomar do branco e solenemente decretar que é preto”, se aproxima da moral da fábula de La Fontaine “Les animaux malades de la peste”: “Selon que vous serez puissant ou misérable, les jugements de cour vous rendront blanc ou noir”, considerada por Dona Benta como “muito dolorosa”, pois ela é um “verdadeiro retrato da injustiça humana”: “Vocês vão ver, vão crescer, vão conhecer os homens, e irão percebendo a profunda e triste verdade desta fabulazinha” (ibidem, p.28). Na fábula “Dois touros e a rã” (“Deux taureaux et les grenouilles”), Narizinho defende os mais fracos: “Os fortes sempre se arrumam lá entre si, e os fracos pagam o pato”. Dona Benta concorda: “E a lei da vida, minha filha. A função do fraco é pagar o pato” (ibidem, p.34), e a avó continua: “Nas guerras, por exemplo, brigam os grandes estadistas – mas quem vai morrer nas batalhas são os pobres soldados que nada têm com a coisa” (ibidem). Em “O veado e a moita” (“Le cerf et la vigne”), Narizinho elogia o estilo literário utilizado por Dona Benta: “Bravos, vovó! A senhora botou nessa fábula duas belezas bem lindinhas” (ibidem, p.50), figura de retórica que os gramáticos xingam de sinédoque, que servem, segundo Dona Benta, para “enfeitar o estilo” (ibidem). No que diz respeito à moral, ela é a mesma de La Fontaine, que, como Esopo, critica a ingratidão do veado. No entanto, o que suscita discussão é o estilo utilizado por Dona Benta, aplaudido por Narizinho. Contudo, na fábula “A assembleia dos ratos” (“Conseil tenu par les rats)”, Narizinho contesta o jeito muito “literário” de contar da avó: “– Que história é
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essa de gato ‘fazendo sonetos à lua’ – interpelou a menina. – A senhora está ficando muito ‘literária’, vovó...”. Dona Benta deve então explicar a seu auditório o que entende por literatura sem aspas: Meu filho, há duas espécies de literatura, uma entre aspas e outra sem aspas. Eu gosto desta e detesto aquela. A literatura sem aspas é a dos grandes livros; e a com aspas é a dos livros que não valem nada. Se eu digo: “Estava uma linda manhã de céu azul”, estou fazendo literatura sem aspas, da boa. Mas se eu digo: “Estava uma gloriosa manhã de céu americanamente azul”, eu faço “literatura” da aspada – da que merece pau. (ibidem, p.36)
Igualmente, na fábula “Burrice” (“L’âne chargé d’éponges et l’âne chargé de sel”), Lobato mantém a moral de La Fontaine – segundo Darmon, La Fontaine (2002) se inspirou possivelmente em Faërne e Verdizotti –, mas a discussão vai na direção da linguagem utilizada por Dona Benta. Narizinho acusa a avó de “pedante” por utilizar a palavra “redarguir”: “Não é pedantismo?”. Dona Benta se defende: “– E pedantismo para os que gostam da linguagem mais simplificada possível. E não é pedantismo para os que gostam de falar com grande propriedade de expressão” (Lobato, 1952b, p.26). Em “Os dois burrinhos” (“Les deux mulets”), Dona Benta é novamente questionada sobre sua “língua literária”: “Então por que a senhora não diz logo ‘qualidade’ em vez de ‘naipe’ e ‘igualha’?”. A avó se explica dizendo querer variar: “Para variar, minha filha. Estou contando estas fábulas em estilo literário, e uma das qualidades do estilo literário é a variedade” (ibidem, p.96). No que diz respeito à moral de La Fontaine (2002, p.65) (que segue de perto Fedro), Il n’est pas toujours bon d’avoir un haut emploi: Si tu n’avais servi qu’un meunier, comme moi, Tu ne serais pas si malade.
Lobato (1952b, p.95) mantém o tom, mas acrescenta novos elementos, como comparar o burro dos sacos de fa-
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relo ao dos sacos de ouro, e este último aos “poderosos”: “Você é como certos grandes homens do mundo que só valem pelo cargo que ocupam. No fundo, simples bestas de carga, eu, tu eles...”. Desse modo, para Lobato, todos não passariam de simples “bestas de carga” quando lhes tem usurpado o ouro da fidalguia, o que confere à sua moral um grande pessimismo, não tão explícito nas morais de La Fontaine e Fedro que elogiam a vida simples em detrimento dos fastos do luxo: “Cette fable montre que la pauvreté est en sûreté et que les grandes fortunes sont exposées au danger” (Constant, 1937 apud La Fontaine, 2002). Pedrinho compara ainda coronel Teodorico ao burrinho carregado de ouro “Quando se encheu de dinheiro, arrotou grandeza; mas depois que perdeu tudo nos maus negócios, ficou de orelhas murchas e convencido de que era realmente uma perfeita cavalgadura” (Lobato, 1952b, p.96). Na fábula “A fome não tem ouvidos” (“Le milan et le rossignol”), Dona Benta é novamente questionada sobre todas as “literaturas” colocadas na fábula e as crianças pedem que ela conte a história em literatura sem aspas. Ela justifica sua escolha: “Para que vocês me interpelassem e eu explicasse, e todos ficassem sabendo mais umas coisinhas...” (ibidem, p.69). Lobato muda a ave de rapina de La Fontaine por um gato, e o rouxinol, por um sabiá. Ele retoma a conclusão de La Fontaine, que cita a expressão proverbial presente em Rabelais, Quarto Livro, LXIII “Ventre affamé n’a point d’oreilles”, que Lobato traduz como “a fome não tem ouvidos”. Em “O galo que logrou a raposa” (“Le coq et le renard”), Lobato mantém igualmente a moral de La Fontaine (que se aproxima da fábula de Esopo “Le chien, le coq et le renard”), que diz: “C’est double plaisir de tromper le trompeur”, transformando-a em: “Contra esperteza, esperteza e meia”. Mas a moral não provoca nenhum comentário, e a discussão recai sobre a gramática. Narizinho surpreende Dona Benta cometendo um “erro gramatical”: “Pilhei a senhora num erro!” (ibidem, p.40). Mas Dona Benta se explica dizendo que a utilização popular, a da “maioria”, acaba por vencer as regras dos gramáticos:
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– A gramática, minha filha, é uma criada da língua e não uma dona. O dono da língua somos nós, o povo – e a gramática o que tem a fazer é, humildemente, ir registrando o nosso modo de falar. Quem manda é o uso geral e não a gramática. Se todos nos começarmos a usar o tu e o você misturados, a gramática só tem uma coisa a fazer... (ibidem)
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Em Emília no País da Gramática, quando as personagens estão na Praça da Analogia, Visconde discute com os homônimos “pena” (piedade) e “pena” (de escrever): “Não acho isso direito – dizia o Visconde para a primeira PENA; se a senhora significa uma coisa tão diversa da significação da sua companheira, por que não muda, para evitar confusões? – Sim, disse Emília, chegando e metendo a sua colherzinha torta na conversa; por que não usa um sinal – uma cruz na testa ou uma peninha de papagaio na cabeça, por que não muda, para evitar confusões? – Nós, palavras, não temos a liberdade de nos mudar a nós mesmas – respondeu PENA (dó). Unicamente o USO lá entre os homens é que nos muda, como acaba de suceder a esta minha Homônima, a Senhora PENA (de escrever). Ela já teve dois NN e agora tem um só” (Lobato, 1952a, p.71).
Das duas versões dadas por La Fontaine ao “Vieillard et la mort” de Esopo, Lobato escolhe a segunda, mais fiel a Esopo: “La mort et le bûcheron” / “A morte e o lenhador”. No entanto, a moral em Lobato parece contrária à original “Plutôt souffrir que mourir”. Dona Benta fala da morte às crianças como um alívio, uma saída para as doenças: “A Morte não é nada disso. É um bem. É um remédio. É o Grande Remédio. Quando um doente está sofrendo na maior agonia, a Morte vem como o fim da dor” (ibidem, p.55). Do mesmo modo, contrariamente a La Fontaine (2002, p.189) no “Le cerf se voyant dans l’eau”, que elogia o útil “Nous faisons cas du beau, nous méprisons l’utile…”, quando Emília deve escolher entre o útil e o belo, na versão lobatiana “O útil e o belo” a boneca se distancia; ela não pode escolher: “Útil e belo ao mesmo tempo. Por que é que uma coisa útil deve ser feia? Não há razão” (Lobato, 1952b, p.57). “La mort et le malheureux” de La Fontaine e “La mort et le bûcheron” de Esope serão recapituradas por Lobato, mas tratadas diferentemente. O título se transforma em “O sabiá na gaiola”. O passarinho enjaulado (o sabiá) lamenta seu destino: “Haverá no mundo maior desgraça?” (ibidem, p.71) e sente falta de seu passado “Que saudade dos bons tempos de outrora…” (ibidem, p.71); quando ele vê chegar um caçador trazendo pássaros sangrentos, semimortos, o pássaro estremece e tira uma conclusão da fábula semelhante à de Esopo: “Antes penar que morrer…” (ibidem). Lobato muda os actantes ostensivamente, pássaros no lugar de homens, para poder em seguida falar da etimologia da palavra15 “pena” (pena/poena: sofrimento e pena/penna: piedade) utilizado na moral da fábula “Antes penar que morrer” tradução de Lobato a “Plutôt souffrir
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que mourir”. Dona Benta explica às crianças as duas significações: “São coisas do latim, minha filha. Nessa língua havia duas palavras parecidas: poena e penna. A primeira virou em nossa língua ‘pena’ – pena-dor; e a segunda ficou penna mesmo – a tal das aves” (ibidem, p.72). Na fábula “O burro na pele do leão” (“L’âne vêtu de la peau du lion”), Pedrinho aplaude a moral “Quem vestir pele de leão, nem zurre nem deixe as orelhas de fora”, e a considera “muito pitoresca” (ibidem, p.62). Essa moral está implícita em La Fontaine, assim como em Lobato, que a utiliza como uma espécie de aviso ou sátira de costumes. La Fontaine se inspira, num primeiro momente, em Esopo “L’âne qui passait pour être um lion”, cuja moralidade, no entanto, é explicitamente condenadora: “Es-tu pauvre et simple particulier, ne prend pas modèle sur les riches: ce serait t’exposer au ridicule et au danger; car nous ne pouvons nous approprier ce qui nous est étranger” (Chabry apud La Fontaine, 2002, p.465). A fábula suscita ainda a cólera de Emília que quer mudar a simbologia atribuída aos burros: “de animal sem virtude, simplório”, ela quer que ele seja considerado, tal qual conselheiro (“O burro falante”), como verdadeiros filósofos:
Messieurs les courtisans, cessez de vous détruire: Faites si vous pouvez votre cour sans vous nuire. Le mal se rend chez vous au quadruple du bien. Vous êtes dans une carrière Où l’on ne se pardonne rien. (ibidem, p.237)
Quando um homem quer xingar outro diz: “Burro! Você é um burro!” e no entanto há burros que são verdadeiros Sócrates de filosofia, como o Conselheiro. Quando um homem quiser xingar outro, o que deve dizer é uma coisa só: “Você é um homem, sabe? Um grandíssimo homem!” Mas chamar de burro é para mim, o maior, o maior dos elogios. E o mesmo que dizer: Você é um Sócrates! Você é um grandíssimo Sócrates... (Lobato, 1952b, p.42)
Na fábula “O leão, o lobo e a raposa” (“Le lion, le loup et le renard”), Lobato torna explícita a moral de La Fontaine que se inspira da moral Esopiana “en dressant des ambûches à un autre on se tend un piège à soi-même” (La Fontaine, 2002, p.480). La Fontaine dilui essa moral no desfecho da fábula, e aplica como advertência aos aspirantes ao mundo da Corte:
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Lobato (1952b, p.70) torna a moral de La Fontaine tão clara e objetiva como em Esopo: “Para intrigante, intrigante e meio” e aproxima essa fábula de “O galo que logrou a raposa”. A fábula suscita uma discussão sobre a esperteza. Emília exalta a esperteza da raposa: “Essa raposa merece um doce. E com certeza o tal lobo era aquele que comeu a avó de Capinha Vermelha” (ibidem). Dona Benta conclui: “a raposa é realmente astuta. [...] Ninguém pode com os astutos” (ibidem). Igualmente em “O ratinho, o gato e o galo” (“Le cochet, le chat et le souriceau”) citada anteriormente, a boneca critica a inocência do camundongo: “Coitadinho! Era duma burrice sem par” (ibidem, p.102). Na fábula “O avarento que perdeu seu tesouro” (“L’avare qui a perdu son trésor”), que Lobato traduz por “Unha-de-fome” Emília “que também era avarenta” se identifica com os unha-de-fome criticados por Dona Benta: “Pois acho que eles estão certos, disse Emília. O que é de gosto regala a vida, como dizia tia Nastácia. Se o meu gosto é namorar o dinheiro em vez de gastá-lo, ninguém tem nada a ver com isso” (ibidem, p.124). Quanto à moral, Lobato segue de perto La Fontaine, e se inspira de “L’avare” de Esopo que apresenta como moral “la possession n’est rien, si la jouissance ne s’y joint”. Tanto La Fontaine quanto Lobato parecem insistir na sátira (seguindo Horácio, Satires, I,1; Molière, L’avare e Boileau, Satires, IV, v.60-80) deixando a moral em segundo plano. A crítica e a condenação em Lobato partem de Dona Benta: “Quem faz isto, prejudica os outros” (ibidem). Na fábula “O cão e o lobo” (“Le loup et le chien”), Lobato retoma o elogio da liberdade, encontrado igualmente em La Fontaine, Esopo e Fedro (III,7). Pedrinho, Emília, Narizinho e Dona Benta aproveitam para elogiar a liberdade: “Pois o segredo, meu filho, é um só: liberdade.
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Aqui não há coleiras. A grande desgraça do mundo é a coleira. E como há coleiras espalhadas pelo mundo!” (ibidem, p.77). As vozes vindas das nuvens em “Chartier embourbé” (“O carreiro e o papagaio” em Lobato) de La Fontaine se tornam reais em Lobato, encarnadas por um papagaio. Hércules16 se torna um santo nacional: São Benedito. Em “O carreiro e o papagaio”, o papagaio lobatiano ridiculariza o camponês crédulo, que acredita estar escutando a voz de São Benedito. É o papagaio que anuncia a moral: – Obrigado, meu santo! – exclamou ele de mãos postas. Nunca hei de esquecer do grande socorro prestado, pois que sem ele eu ficaria aqui toda a vida. O papagaio achou muita graça na ingenuidade do homem e papagueou, como despedida, um velho rifão popular: Ajuda-te que o céu te ajudará. (Lobato 1952b, p.87)
Emília encontra uma moral alternativa à ajuda vinda dos “céus”: o poder do faz-de-conta: E quando todos estão desesperados e tontos, sem saber o que fazer, voltam-se para mim e: “Emília, acuda!” e eu vou e aplico o faz-de-conta e resolvo o problema. Aqui nesta casa ninguém luta para resolver as dificuldades; todos apelam para mim... (ibidem)
Um papagaio é novamente utilizado na fábula “O cavalo e o burro” (“Le cheval et l’âne”). Testemunha do diálogo do cavalo e do burro, ele anuncia a moral: “Bem feito! Quem mandou ser mais burro que o pobre burro e não compreender que o verdadeiro egoísmo era aliviá-lo da carga em excesso?” (ibidem, p.134). La Fontaine (2002, p.470) se inspira em Esopo (cuja fábula de mesmo título tem como moral “si les grands font cause commune avec les petits, les uns et les autres assureront ainsi leur vie”) anuncia a moral in incipit: En ce monde il se faut l’un l’autre secourir. Si ton voisin vient à mourir, C’est sur toi que le fardeau tombe. (ibidem, p.194)
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16 “Hercule, lui dit-il, aide-moi ; si ton dos a porté la machine ronde, ton bras peut me tirer d’ici” (La Fontaine, 2002, p.196).
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O macaco, mais esperto que o gato na fábula “O macaco e o gato”(“Le singe et le chat”) cai nas graças de Emília: “– Quem é bobo, peça a Deus que o mate e ao diabo que o carregue” (Lobato, 1952b, p.90). Visconde, como podemos imaginar, se coloca no lugar do gato: “– Aqui está um que nunca jamais teve o gosto de comer o bombocado. Quando chega a vez dele, aparece sempre alguém que o logra” (ibidem, p.90). Igualmente na fábula “A mosca e a formiguinha” (“La mouche et la fourmi”), Visconde se identifica com a formiga, mas não acredita na moral (La Fontaine (2002, p.451) se inspira em Fedro, que incita “à ne rien faire que d’utile”) que promete a punição para os parasitas: “– Seria muito bom se fosse assim. Mas muitas e muitas vezes um planta e quem colhe é o outro…” (Lobato, 1952b, p.92). Emília se identifica com a mosca: “Emília fuzilou-o com os olhos. Aquilo era indireta das mais diretas” (ibidem). Na fábula “O intrujão” (“Le charlatan”), a boneca se coloca ao lado do charlatão: “Gostei! berrou Emília. Esse é dos meus. Fez um bom negócio e provou que o verdadeiro burro era Sua Majestade” (ibidem, p.136). Lobato, não sem surpresas, aplaude a moral de La Fontaine que satiriza os oradores peremptórios que no século XVIII multiplicavam os tratados de eloquência. Na fábula “Le cochon, la chèvre et le mouton”, que Lobato batiza de “As razões do porco”, o autor não enaltece o epicurismo que incita à ataraxia que encontramos em La Fontaine (2002, p.483), mas destaca a fatalidade inexorável. Em Lobato (1952b, p.144), o porco fala de seu triste destino: “Tivésseis o meu destino e havíeis de berrar ainda mais forte”; Emília, em compensação, não o lamenta: “Quem manda ser carne?” (ibidem). Vê-se como as personagens de Lobato não se enternecem face aos “fracos” (burros, carneiros) mas, sobretudo Emília, parecem incitá-los a reagir. Na fábula “Os dois pombinhos” (“Les deux pigeons”), o aventureiro Pedrinho não aprecia a moral de Lobato e La Fontaine (segundo as informações de Jean Charles Darmon (in La Fontaine, 2002, p.488), as origens das fábulas podem ser encontradas em Pilpay ou Bidpaï, brâmane in-
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diano do século III) que condena a viagem: “Não concordo, vovó! – disse Pedrinho. – Se toda gente ficasse fazendo romaria em casa, a vida perderia a graça. Eu gosto de aventuras, nem que volte de perna quebrada” (Lobato, 1952b, p.106). Emília promete escrever uma fábula oposta à de La Fontaine, na qual o pombo aventureiro volta estropiado, mas o caseiro acaba na panela: “Quem vai, volta estropiado, mas quem não vai cai na panela” (ibidem, p.108). Em “Os dois ladrões” (“Les voleurs et l’âne”), Pedrinho se orgulha de ter vivido a mesma experiência, quando depois de uma briga na escola por uma pera, um terceiro acaba comendo-a. Mesmo sem a pera, ele é contente da “forra”: “Uma forra dessas vale três peras” (ibidem, p.114). Emília aquiesce. Na fábula “A mutuca e o leão” (“Le lion et le moucheron”), Pedrinho diz não ter medo de nada, salvo de vespas, e concorda com a moral de La Fontaine (2002, p.97) “Les plus à craindre sont souvent les plus petits”, que Lobato (1952b, p.117) traduz “São mais de temer os pequenos inimigos do que os grandes”: “Grande verdade! exclamou o menino. Um tigre é menos perigoso que certos micróbios, e aqui na roça eu só tenho medo duma coisa: vespa!” (ibidem). Na fábula “O pastor e o leão” (“Le pâtre et le lion”), Pedrinho, conhecido pelo seu temperamento belicoso, quer enfrentar o perigo e ser o herói da fábula. Contrariamente a La Fontaine (que tem como modelos Esopo e Babrias), Lobato atenua a oposição entre o registro pastoral (o sonho de uma vida calma e tranquila) e o registro heroico (o ridículo da vida belicosa), por meio da discussão posterior à fábula. Assim, o entusiasmo de Pedrinho é temperado pelo bom humor dos picapauzinhos: – Pois eu escorava o leão! [...] Dona Benta riu-se da valentia e falou. – Por essa razão é que a “moralidade” da fábula diz que é no momento do perigo que se conhecem os heróis. Se você não fugia, então é que é mesmo um herói. Mas o tal pastorzinho não era... – E foi bom que não fosse – disse a menina (Narizinho).
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– Por quê? – Porque se ele fosse um herói como Pedrinho, não podia haver essa fábula. (Lobato, 1952b, p.24)
Explicitamente mais diretiva que na fábula de La Fontaine (2002, p.94 – “Ce qu’on donne aux méchants, toujours on le regrette”), a moral de “As duas cachorras” (“La Lice et sa compagne”) em Lobato (1952b, p.110) suscita o entusiasmo das crianças: “Para os maus, pau!”. Dona Benta pondera: “A dificuldade está em conhecermos quem é o mau”; mas Emília não tem dúvidas: “Para os maus, pau!”. Sobre essa mesma moral Emília falará na fábula “O homem e a cobra” (“L’homme et la couleuvre”). Lobato muda a trama de La Fontaine (202, p.494), que destaca a maldade intrínseca do homem e retoma a origem indiana, mostrando o salvamento da serpente pelo homem e em seguida a ingratidão do animal. A moral da versão lobatiana seria: “Faça o bem mas olhai a quem” que, segundo as crianças, parece ser contrária à moral popular: “Fazei o bem sem olhar a quem”. Dona Benta tenta explicar-se e diz ter se baseado no mandamento de Confucius: “Tratai os bons com bondade e aos maus com justiça”. Emília utilizará a partir desse momento essa moral como lema: “Para os maus, pau! Justiça é pau” (Lobato, 1952b, p.138). A fábula “A cabra, o cabrito e o lobo” (“Le loup, la chèvre et le chevreau”) tem como moral diluída nos versos de La Fontaine incitar as crianças a seguir o ensinamento dos pais; Lobato traduz essa moral como “confiar, desconfiando” (ibidem, p.112). Emília se identifica com a esperteza do cabrito: “Esse cabritinho – disse Emília – é como eu e o Marechal Floriano Peixoto. Nós três desconfiamos desconfiando. Lobo nenhum nos embaça. Esse cabritinho aprendeu comigo” (ibidem). Em “O olho do dono” (“L’œil du maître”), que tem como moral em Lobato “O olho do dono engorda o cavalo” (ibidem, p.121), recuperação da moral de Fedro e de La Fontaine (2002, p.158), Narizinho e Emília se mostram indignadas:
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Malvado! – exclamou Narizinho vermelha de cólera. – O veadinho que o bruto matou com certeza era o filhote de Bambi... Emília também se indignou. – Ah, eu queria estar lá para dar um tiro de canhão na orelha desse homem! Matar o filhotinho de Bambi só porque ele se abrigou naquela porcaria de estábulo lá dele! (Lobato, 1952b, p.121)
Dona Benta tenta fazê-las compreender a verdadeira moral da fábula: “o olho do mestre vê tudo” mas as crianças são inconsoláveis. Eles decidem “linchar” a fábula (ibidem): “esta fábula é indecente” (ibidem).17 Igualmente “O rato e a rã” (“La grenouille et le rat”), que apresenta como moral em La Fontaine (2002, p.147) uma advertência aos astutos e espertos: “La ruse la mieux ourdie / Peut nuire à son inventeur; / Et souvent la perfidie / retourne sur son auteur”, não agrada às crianças, que não vêm a moral da história: “Essa fábula, vovó, não me parece fábula – parece historinha que não tem moralidade. Passo” (Lobato, 1952b, p.129). La Fontaine, na sua fábula “Le loup et l’agneau), coloca em prólogo a moral: “La raison du plus forte est toujours la meilleure”. Dona Benta a considera a mais profunda das fábulas, “um suco”: “Revela a essência do mundo. O Forte tem sempre razão. Contra a força não há argumentos” (ibidem, p.132). No entanto, para Emília, a força está ligada à esperteza: Mas há a esperteza! – berrou Emília. – Eu não sou forte, mas ninguém me vence. Por quê? Porque aplico a esperteza. Se eu fosse esse cordeirinho, em vez de estar bobamente a discutir com o lobo, dizia: “Senhor Lobo, é verdade, sim, que sujei a água deste riozinho, mas foi para envenenar três perus recheados que estão bebendo ali embaixo.” E o lobo, já com água na boca: “Onde?” E eu, piscando o olho: “Lá atrás daquela moita!” E o lobo ia ver e eu sumia... (ibidem)
A fábula “O gato e a raposa” (“Le chat et le renard”) faz as crianças pensarem na fábula brasileira, contada por
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Essa recusa viria dos insucessos de Lobatofazendeiro?
18 Maria Celeste C. Dezotti (2003), fala de uma versão de Esopo. Escolhemos aproximar a versão de Lobato à fábula “La Cour du lion” de La Fontaine (2002, p.475), que se inspirou em Fedro (ou em Jacques Régnier?).
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tia Nastácia, no livro Histórias de Tia Nastácia: “O pulo do gato” (Lobato, 1960b, p.140). A esperteza da raposa em “A malícia da raposa” (“La malice du renard”) é aplaudida por Narizinho: “Gostei, gostei, exclamou a menina. – Está aqui uma das fábulas mais jeitosas. Desta vez a raposa merece um doce” (ibidem, p.142). O tema da fábula “La Cour du lion” volta em “Os dois viajantes na Macacolândia”,18 recriação do autor na qual ele transforma comicamente a Corte num país de macacos, com o rei Sua Majestade Simão III no poder. Dois viajantes vêm ao Reino: o primeiro, bajulador, elogia as belezas do país, a beleza dos habitantes, a nobreza do rei etc.; o segundo, “amigo da verdade”, diz o que vê: “macacos, macacos e mais macacos…”. A moral de Lobato coincide com a de La Fontaine no seu “tâchons d’agir en Normands”, caso contrário, Lobato acrescenta: “Os amigos da verdade, tenham a pele dura”. Pedrinho, tendo já vivido a situação, na Corte de Simão XIV, o Rei Sol, em Reinações de Narizinho, é o único a se manifestar: “– Também concordo – disse Pedrinho – A verdade a gente deve dizer com muitas cautelas e só nas ocasiões próprias” (ibidem, p.42). A antiga moral da fábula “Segredo de mulher” (“Les femmes et le secret”) (que viria de Abstenius “il ne faut confier rien de secret à aucune femme”) é atualizada graças à sapiência de Visconde. Assim, quando Emília é acusada de “contar um conto e aumentar um ponto” (ibidem, p.146). Visconde a defende alegando que o hábito de contar histórias e modificá-las teria uma razão psi-co-ló-gica: “É para melhor acentuar um fato, disse ele. Contar uma coisa é passar essa coisa duma cabeça para outra. E como nessas passagens há sempre perda (como na corrente elétrica que vai de um ponto a outro), o contador exagera. Exagera sem querer, por instinto” (ibidem). Em “Pau de dois bicos” (“La chauve-souris et les deux belettes”), Lobato guarda a moral de La Fontaine que enaltece o “saber adaptar-se” às circunstâncias. Emília, “tão amiga da esperteza” se identifica com o morcego. Igual-
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mente em “A galinha dos ovos de ouro” (“La poule aux œufs d’or”), Lobato (1952b, p.159) elogia a paciência e não condena a avareza, “Quem não sabe esperar, pobre há de acabar”, tal qual La Fontaine (2002, p.172), próximo de Esopo e da sabedoria epicuriana: “L’avarice perd tout en voulant tout gagner”. Pedrinho trata a personagem da fábula “João o impaciente”, de idiota: “Só mesmo um palerma como esse João Impaciente podia fazer uma coisa assim” (Lobato, 1952b, p.159). Narizinho exagera seus méritos: “Eu sim, sei esperar” (ibidem, p.160). Mas Emília a trata de “lenta” e de demorada quando, por exemplo, ela deve matar pulgas. Ela se vangloria de ser uma especialista na matéria: “A especialidade de Emília era pegar pulgas” (ibidem). Contrariamente à ênfase encontrada em Esopo no que diz respeito ao adágio “os poderosos podem precisar dos mais fracos”, em “O leão e o ratinho” (“Le lion et le rat”), a paciência e o tempo, como em La Fontaine, são ainda a grande moral da fábula. Eles se lembram da aventura na gruta da Cuca, em O saci, e a tortura chinesa da gota d’água, graças à qual eles conseguem vencer a poderosa bruxa. Na fábula “O orgulhoso” (“Le chêne et le roseau”), Lobato retoma a moral de La Fontaine; mas Emília retorna a Virgílio (Georgiques, II, v.291-2)19 que enaltece a força e a perenidade do jequitibá: Mas entre ser tábua e ser jequitibá prefiro mil vezes ser jequitibá. Prefiro dez mil vezes! – Por quê? – Porque o jequitibá é lindo, é imponente, é majestoso, só cai com as grandes tempestades; e a tábua cai com qualquer foiçada dos que vão fazer esteiras. E depois que viram esteiras têm que passar as noites gemendo sob o peso dos que dormem em cima – gente feia e que não toma banho. Viva o jequitibá! (Lobato, 1952b, p.170)
A moral da fábula “O mal maior” (“Le soleil et les grenouilles”): “Assim é. O mundo está bem equilibrado, e qualquer coisa que rompa a sua ordem resulta em males
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para os viventes. Fique pois solteiro o sol e não enviúve quem é casado” (ibidem, p.178) suscita polêmica da parte de Emília, defensora ferrenha do progresso: “Se nada mudar, o mundo fica sempre na mesma e não há progresso. [...] As coisas não são tão simples como as fábulas querem” (ibidem, p.178-9). Dona Benta concorda, mas explica: “Mas as fábulas não podem expor todos os modos das coisas – só expõem um, o principal, ou o mais freqüente” (ibidem, p.179). La Fontaine fala nessa fábula de um “sol” tirano, que René Jasinsky (apud La Fontaine, 2002, p.468) identifica como Colbert, ministro das Finanças de Luiz XIV e opositor de La Fontaine. A fábula “Liga das nações” (“La génisse, la chèvre et la brebis en société avec le lion”) fecha o livro. As crianças parecem repletas de “moralidades”. Visconde tira conclusões: 1) o mundo pertence aos mais fortes, e 2) a única maneira de vencê-los é com a esperteza (Lobato, 1952b, p.187). O famoso conselho de Emília: “Seja esperto, meu filho” é louvado por Visconde, e a boneca fecha a noite colocando a fábula “O lobo e o cordeiro” (“Le loup et de l’agneau”) no centro de todas as fábulas: Seria a fábula do Lobo e o Cordeiro girando em redor do sol que nem planeta, com todas as outras fábulas girando em redor dela que nem satélites – concluiu Emília, dando um pinote. Dona Benta calou-se pensativa. (ibidem, p.188)
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Ver as notas complementares des Fables de La Fontaine (2002, p.435).
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Emília utiliza a mesma frase em Histórias de Tia Nastácia: “Por isso vivo eu dizendo que a esperteza é tudo na vida – gritou a boneca. Se eu tivesse um filho, só lhe dava um conselho: Seja esperto, Emilinho!” (Lobato, 1960b, p.127).
Após 74 fábulas, as crianças, “empanturradas” e com a cabeça cheias de moralidades, fazem um balanço geral: para Pedrinho, elas têm um mérito, “elas são curtas”; para Narizinho, elas são “sabidíssimas”; para Emília, elas são indiretas; e para Visconde, as fábulas mostram somente uma coisa: que o mundo pertence aos espertos. E ele se lembra de Memórias de Emília,20 livro no qual a boneca faz a apologia da esperteza: “Emília disse uma coisa muito sábia em suas Memórias: seja esperto, meu filho! Se não fosse a esperteza o mundo seria duma brutalidade sem conta...” (ibidem, p.188).
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Para a boneca, essa conclusão resume toda a moral da fábula “Le loup et l’agneau”, as outras fábulas seriam somente satélites rodando ao redor. Sua conclusão anuncia sua vocação e a redação de Memórias de Emília. Visconde e Emília parecem ter razão. Das 74 fábulas, 14 falam da força do mais “forte”, que vence sempre; 16, da importância da esperteza. Em seguida, curiosamente, encontramos 13 fábulas que falam da aceitação de nosso estado atual, contra cinco que elogiam a evolução contra e inércia. Nas fábulas restantes encontramos temas e morais dos mais diversos: duas fábulas falam da arte e de seu benefício; duas, nos dizem de confiar em nós mesmos; uma, do heroísmo (contra e a favor); duas, da imitação; três, da diplomacia; quatro elogiam a paciência; duas, do preço a ser pago pela ingratidão; duas, do ciúme; três, da morte (boa ou má); duas, elogiam a liberdade; uma, da qualidade em oposição à quantidade; duas, da armadilha das aparências; duas, da importância da desconfiança; uma, da força que podem ter os “pequenos”; uma, da fome, que torna o indivíduo capaz dos piores atos; uma, do poder do mestre (contra e a favor); uma, da avareza (contra e a favor); uma, da importância da solidariedade. Percebemos que as fábulas lobatianas dão lugar à “troca de pontos de vista”, de “discussão”, e procuram levantar dúvidas (morais diversas segundo as personagens), o que parece ser uma transgressão considerável à intenção original das fábulas: a de ilustrar uma moral unívoca. Esse desejo de confrontação entre opiniões diversas parece ter seu principal exemplo na escolha do autor em fazer duas versões para a fábula “La cigale et la fourmi”, acrescentando um plural, o que não nos parece aleatório mas em acordo com a pluralidade de vozes da narrativa lobatiana. Assim, vê-se que Lobato não encontra problemas em fazer do cânone uma releitura de recriação sem se deixar intimidar por uma suposta aculturação e seguindo o que na mesma época o cubano Fernando Ortiz (apud Pageaux, 1994, p.139) chamaria de transculturación. Os picapauzinhos (sobretudo Emília) dão, desse modo, uma resposta
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ativa do “aculturado” à imposição dos modelos exteriores construindo seu universo ficcional por meio da mastigação seletiva do material passível de transformar mentalidades e comportamentos, no caso específico da literatura infantil, tanto de um novo leitor quanto de um novo escritor, ávidos de cultura externa mas substancialmente críticos com relação a essa cultura, que não lhe é adversa, já que ela é elemento constitutivo desses mesmos leitores e escritores em potencial. Daí os métissages culturels (Pageaux, 1994, p.139), que fazem aparecer as modalidades e os limites da imitação e da influência, já que felizmente eles existem e dão lugar a novos materiais literários.
Referências AZEVEDO, Carmen Lucia et al. Monteiro Lobato, Furacão na Botocúndia. São Paulo: Senac, 1997. CHIARELLI, Tadeu. Um jeca nos vernissages. São Paulo: Edusp, 1995. DEZOTTI, Maria Celeste. (Org.) A tradição da fábula: de Esopo a La Fontaine. Brasília: Editora da Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003. ESOPE. Fables d’Esope. Edition bilingue. Trad. Daniel Loayza. Paris: GF- Flammarion, 1995. FEDRO. Fables de Phedre. Trad. Pierre Constant. Paris: Garnier, 1937. GENETTE, Gérard. Palimpsestes: la littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982, JAUSS, Hans Robert. Pour une esthétique de la réception. Paris: Gallimard, 1978. LA FONTAINE. Fables de La Fontaine. Paris: Livres de Poche, 2002. LAJOLO, Marisa. Lobato, um Quixote no caminho da leitura. In: . Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1999. LOBATO, Monteiro. Emília no país da gramática. In: . Obras completas. 4.ed. Ilustrações de J. U. Campos e André le Blanc. São Paulo: Brasiliense, 1952a. (Série Literatura Infantil, v.15)
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LOBATO, Monteiro. Fábulas e histórias diversas. In: . Obras completas. 4.ed. Ilustrações de J. U. Campos e André le Blanc. São Paulo: Brasiliense, 1952b. (Série Literatura Infantil, v.15)
Sol de Maiakóvski Luciano Barbosa Justino*
. A barca de Gleyre. Quarenta anos de correspondência literária entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel. 9.ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1959. (Série Literatura Geral, t.I, v.11; t.II, v.12). . Memórias da Emília e Peter Pan. In: . Obras completas. 10.ed. Ilustrações de J. U. Campos e André le Blanc. São Paulo: Brasiliense, 1960a. (Série Literatura Infantil, v.5)
RESUMO:
Num momento em que as relações entre as culturas e suas concomitantes formas de vida se tornaram uma das características ao mesmo tempo mais instigantes e problemáticas do presente, a tradução assume uma pertinência tal que a coloca como um dos assuntos centrais para o pensamento crítico. Objetiva-se aqui analisar como um videopoema de Augusto de Campos, Sol de Maiakóvski, pressupõe uma leitura problematizadora da grande tradição modernista da escrita a partir de sua intersemiose com a cultura de massa contemporânea, numa operação em que traduzir, antes de ser uma prática textual, é sobretudo uma forma de fazer cruzar complexas formas humanas de gerar sentido, pôr em confronto e diálogo diversas temporalidades, estágios mnemotécnicos e tradições discursivas.
. Histórias de Tia Nastácia. In: . Obras completas. 9.ed. Ilustrações de J. U. Campos e André le Blanc. São Paulo: Brasiliense, 1960b. (Série Literatura Infantil, v.11) . . D. Quixote das crianças. In: . Obras completas. 10.ed. Ilustrações de J. U. Campos e André le Blanc. São Paulo: Brasiliense, 1960c. (Série Literatura Infantil, v.9) . Reinações de Narizinho. 30.ed. Ilustrações de Manoel Victor Filho. São Paulo: Brasiliense, 1979. PAGEAUX, Daniel-Henri. Littérature générale et comparée. Paris: Armand Colin, 1994. SOUZA, Loide Nascimento de. O processo estético de reescritura das fábulas por Monteiro Lobato. Assis, 2004. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista.
PALAVRAS-CHAVE: Tradução, intersemiose, poesia contemporânea. ABSTRACT:
VASCONCELOS, Zinda Maria Carvalho de. O universo ideológico da obra infantil de Monteiro Lobato. Santos: Traço Editora, 1982.
* Doutor pela Universidade Federal de Pernambuco, atualmente coordena o mestrado em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba, João Pessoa (PB).
At a time when the relations between cultures and their concomitant ways of life have become at the same time one of the most instigating and problematic characteristics of our time, translation assumes such pertinence which places it as a central subject for the critical thinking. This study aims at analyzing how the videopoem Sol de Maiakóvski, written by Augusto de Campos, presupposes a problematizing reading of the great modernist tradition of writing, starting from its intersemiosis with the contemporaneous mass culture, in a manoeuvre through which translating, instead of being only a textual practice, is above all a way of interrelating complex human ways of sense making, as well as confronting and establishing a dialogue with various temporalities, mnemotechnical stages and discursive traditions.
KEYWORDS: Translation, intersemiosis, contemporaneous poetry.
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Sol de Maiakóvski
champiana. No jargão da música popular tecnológica, usase hoje a expressão “remix” para tratamentos sonoros de bombardeamento tecnológico que fazem o produto final, por vezes, distanciar-se do original.
Só se pode explicar o passado por aquilo que é mais poderoso no presente. (Friedrich Nietzsche)
O objetivo deste trabalho é discorrer sobre os estatutos da tradução no contexto contemporâneo, tomando como objeto de instigação teórica Sol de Maiakóvski,1 vídeopoema de Augusto de Campos feito a partir dos fragmentos finais de “A extraordinária aventura de Vladimir Maiakóvski no verão na datcha”, de Vladimir Maiakóvski. O objeto-signo em questão é um dos exemplos genuínos da prática tradutória do poeta paulista, o que ele tem chamado de Intradução. A Intradução difere da tradução habitual por consistir numa leitura singular que o sujeito do texto de chegada faz do texto de origem. A intradução é uma verdadeira intervenção criativa do homem contemporâneo na memória humana. Augusto de Campos (2002, p.191) assim define sua prática tradutória a partir da distinção entre tradução e paráfrase: Acredito numa convivência da “historicidade” e da “a-historicidade” da poesia, esta sendo a marca de sua grandeza. São duas abordagens diferentes, contrariedades não antagônicas. Não desprezo o conhecimento e a contextualização histórica do poeta; ao contrário, interessa-me o seu contexto, a sua biografia, que muitas vezes contribuem para o entendimento do texto. Mas há tradução e há paráfrase. A primeira, quando criativa, “transcriação”, segundo Haroldo, busca reproduzir os mesmos recursos formais do original na língua de chegada. Já a paráfrase é mais livre. Pound chamava esse tipo de abordagem tradutória de “personae”. Os seus produtos eram tanto do poeta original quando do próprio Pound. As minhas “intraduções” (que são “in”, mas também “intra”, o que pode ser interpretado como nãotraduções, mas versões em que me introjeto) estão nessa linha e buscam um diálogo-limite, no qual me concedo a liberdade de tratar o original como um poema escrito por mim. Coloco as “intraduções” à parte do “corpus” ortodoxo das minhas traduções, considerando-as uma experiência diferenciada. Há algo aí, sem dúvida, de apropriação du-
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Ou, como está em Á margem da margem: 1
Disponível em: <http://www.uol.com.br/ augustodecampos>. Além da versão em vídeo aqui tomada como objeto de análise, há também uma versão impressa em preto-e-branco em Despoesia (1994).
A minha maneira de amá-los é traduzi-los. Ou degluti-los, segundo a lei Antropofágica de Oswald de Andrade: só me interessa o que não é meu. Tradução para mim é persona. Quase heterônimo. Entrar na pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor por dor, som por som, cor por cor. Por isso nunca me propus traduzir tudo. Só aquilo que sinto. Ou que minto que sinto, como diria ainda uma vez, Pessoa em sua persona. (Campos, 1998, p.7)
Em Sol de Maiakóvski, a tradução é 1) leitura e atualização crítica da tradição poética a partir de uma colocação inerradável do poeta, e de seu predecessor, no presente histórico do tradutor; 2) um trânsito entre dispositivos semióticos, da página papel para a tela do computador, o que implica uma outra institucionalidade, na medida em que um novo circuito reconfigura todos os papéis envolvidos na produção e no consumo; 3) redefinição dos conceitos de autoria e de original, em outras palavras, da própria ideia de origem e de tradição, em razão de uma expansão social da liricidade. Para alcançar o que propõe, o intradutor toma o poema original em sua dimensão semiótica, institucional e histórica. Nesse objeto-signo, o tempo sincrônico e o tempo diacrônico se habitam mutuamente, a historicidade embota sua teleologia para fazer cruzar uma temporalidade de múltiplos tempos e percursos. A Intradução é a transcriação polêmica em que o original consagrado aparece com uma centelha poética nova; em que um lugar e uma história aparecem entrelaçados com outro lugar e outra história. A poiesis não se permite aceitar passivamente um sentido e um uso pré-dado e único do objetosigno; nada aqui está pronto, tudo ainda é Afazer. O sujeito narcísico não está pacificado no achamento ou na perda irredutível do objeto; coloca uma metasemiose, processo
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de autocrítica e reinvenção, no âmago da relação sujeitoobjeto. Por extensão, o tradutor problematiza as origens e a tradição ególatra na poesia brasileira pela antropofagia, em que o verbal, o visual e o sonoro se permeiam numa dialética de espaços semióticos e molduras sociais sob tensão, e pela introdução no hábito da poesia literária de objetos e práticas culturais não dominantes, fazendo interagir espaços institucionais, mnemotécnicos e “estéticos” anteriormente em franca oposição. No seu livro instigante Tradução intersemiótica, Julio Plaza (2003, p.12) aponta para o pioneirismo da teoria da poesia concreta em sua defesa da necessidade “verbivocovisual” das linguagens contemporâneas: Já no campo da poesia concreta, as relações tradutoras entre ideograma e linguagem verbal, entre signos analógicos e signos lógicos nortearam os trabalhos do grupo Noigandres. A produção de Augusto de Campos, “Poetamenos” (1953), estabelece as relações precisas entre os códigos ideogrâmicos, visual e musical weberniano, assim como o poético na oralização do poema. Por outro lado cumpre notar que o enraizamento de uma possível teoria da TI encontra-se na Teoria da Poesia Concreta. A Poesia Concreta, tornando a palavra como centro imantado de uma série de relações inter e intra-semióticas, parece conter o gérmen de uma teoria da TI, pois que, ao definir as qualidades do intraduzível de seu objeto imediato, na linguagem verbal, este se satura no seu Oriente – o Ideograma: trânsito de estruturas. Poesia concreta: produto de uma evolução crítica de formas.
Como já se disse, Poetamenos é um marco da poiesis contemporânea entendida como prática de relações intersemióticas. Ao visar algo que consiga relacionar as três matrizes da linguagem (sonora, visual, verbal), o segundo livro de poemas de Augusto de Campos abre caminho para a fundamentação da natureza intersemiótica da tradução hoje, concebida como processo entre linguagens. Traduzir, nesse sentido, significa empreender uma utopia futura do original, sua disseminação por meio do, e em oposição ao,
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tempo homogêneo e vazio. A sacada concreta é ter tentado restituir ao passado da poesia, à poesia do passado, sua centelha de futuro. Não há como não lembrar aqui das teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin (1994), em que as centelhas das ruínas do passado projetam a memória para o futuro, transformando a intersemiose da Intradução num metalugar de prática crítica contemporânea. Sol de Maiakóvski, além de aprofundar o debate sobre as linguagens, seus usos e suas relações, coloca questões mais amplas de natureza propriamente política sobre as apropriações, os desvios, os esvaziamentos e as memórias.
A tradução como crítica política Preocupado com uma leitura da tradição viva e/ou com a construção de uma tradição de ruptura com os modelos literários e intelectuais brasileiros, a tradução de Augusto de Campos se torna uma ação de crítica sociocultural, a partir da literatura, de clara conotação política. A orientação de pesquisa e coleta de uma poesia de índole revolucionária no Brasil e no exterior em Augusto de Campos começa na década de 1960, quando a poesia concreta inicia um estudo comparativo entre autores brasileiros e autores das vanguardas europeias, mormente os de orientação construtivista, até então hostis aos modelos culturais dominantes no Brasil. Contra a superficialidade e o culto do trivial dos poetas contemporâneos, Augusto de Campos fará uma poiesis sempre crítica da tradição lírica brasileira, preocupada em fazer circular projetos capazes de aglutinar outras políticas de significação. Esta orientação culmina em uma 1) escrita minimalista, com uso acentuado do silêncio, oposto à tagarelice sentimental da poesia luso-brasileira; na 2) tradução de autores estrangeiros, como Mallarmé, Pound, Joyce e Maiakóvski, todos de parca circulação por aqui até então; e na 3) redescoberta de poetas nacionais marginalizados capazes de sacudir a tradição canônica, como o maranhense Joaquim de Sousa Andrade (Sousândrade) e o baiano Pedro Kilkerry.
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Assim, não há como dissociar a poética de Augusto de Campos de uma política da poesia e da literatura, que implica uma atividade de pesquisa eivada de uma consciência que não entende a história como entidade monádica intocável, mas como processo em que várias setas se entrecruzam. Nunca é demais reiterar que não se trata simplesmente de uma poética dos seres ou dos objetos, como geralmente se diz, mas de uma poética dos circuitos. Sol de Maiakóvski, por ser um cruzamento dialético de políticas semióticas, institucionais e históricas, é um objeto privilegiado para se discutir espaços, tempos, vias e sujeitos. Se a consciência crítica da pesquisa não é condição última e suficiente para “a encarnação da poesia na história” (Octavio Paz, 2002), hoje parece ser modelo instigante de um gesto que considera a realidade dos objetos habitada por uma memória de onde se possa montar o tempo utópico que é o futuro, configuração da temporalidade ideal na qual história e sociedade se constelem. Se toda tradução parece remeter às origens, o tradutor de hoje já não sonha o sonho romântico de um passado re-encontrável e pleno em sua totalidade. Como sugeriu Cristina Rodrigues (2000, p.183), “se os significados são produzidos pelas comunidades interpretativas e são dependentes das circuntâncias de leitura, não há neles uma essência que possa ser transferida ou transportada para outra língua”. O poeta-tradutor, intradutor, não rumina a dor da perda do poeta pós-romântico e agora grafa em seu texto a própria impossibilidade de retornar a qualquer hipótese de lugar adâmico. Ao remeter a uma anterioridade, aqui Maiakóvski, atesta sua incompletude como espaço-tempo diferencial. Na Intradução, evocar uma origem, um Maiakóvski-corpo situado no presente, só tem razão à existência se tiver com esse presente uma potência de futuro, se for capaz de entrelaçar a memória e o futuro. Por quê? Porque em momento algum o tradutor vai à origem sem colocar sua ação-presente. Os primeiros manifestos concretistas deram certa ênfase à autonomia do objeto poético (a tal autonomia que vai fundamentar boa parte
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Não esquecer que os “concretos”, durante toda a sua atividade intelectual, sempre ultrapassaram o campo rígido das disciplinas; escreveram sobre semiótica, teoria da informação, teoria da Gestalt, Webern, João Gilberto e o tropicalismo etc.
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das críticas aos concretos), mas não se deve ir tão ao pé da letra no que foi dito, tampouco o analista deve dar ao autor a significação absoluta de sua própria poética. A autonomia propalada era de ordem estratégica no momento de travar uma briga contra uma outra autonomia, a do literário então em voga. Está claro que a autonomia do objeto poético explicitada nos primeiros manifestos de Noigandres só se dá à custa da perda total da autonomia da poesia literária, pois se aproxima da arquitetura, da pintura abstrata, da música de vanguarda e, como em Sol de Maiakóvski, da música popular urbana. Como constelação de tempos, sua poética os assume como incompletude atualizável, não na literatura e nos circuitos do literário, mas em outras signagens; autonomia relativa, e temporária.2 A origem não é um signo que se esgote em si mesmo, pode-se dizer, é um contingente construído pelos dispositivos simbólicos e pelas práticas sociais; Eric Hobsbawm (1997, p.9) dirá que toda tradição (tradução?) é invenção. Ao materializar uma origem, traduzir literalmente é transferência e condução, o tradutor abre a possibilidade de passado e presente tornarem-se temporalidades em copresença, em tensão dialética, intersemiótica e comparacional. Um signo, origem incompleta, só poderá alcançar a plenitude, sempre provisória, em uma tradução. A tradução é ao mesmo tempo a metáfora da incompletude das línguas e a única possibilidade de preenchimento, ainda que temporário, dessa incompletude (Gagnebin, 1994, p.12). Sob esse aspecto, a Intradução desbloqueia o estereótipo e funciona como crítica ao etnocentrismo, risco primeiro de toda origem essencializadora: Os padrões tradutórios que venham a ser razoavelmente estabelecidos, fixam estereótipos para culturas estrangeiras, excluindo valores, debates e conflitos que não estejam a serviço de agendas domésticas. Ao criar estereótipos, a tradução pode vincular respeito ou estigma a grupos étnicos, raciais e nacionais específicos, gerando respeito pela diferença cultural ou aversão baseada no etnocentrismo, racismo ou patriotismo. (Venuti, 2002, p.130)
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Noigandres dirá que o preenchimento nunca é de todo preenchido; o que a semiótica peirceana chamará de semiose absoluta do signo não pode ser dado pela origem em si mesma, com suas indissociáveis implicações ideológicas, política e sociais, mas unicamente por um presente que contenha, com a consciência crítica do que isso implica, as temporalidades que o precederam; conter no duplo sentido de possuir e de refrear. A origem não preexiste à história, num éden paradisíaco, mas é/está na densidade do presente histórico como possibilidade de redenção, dirá Walter Benjamin (1994), ou de invenção, dirá Noigandres. Em Augusto de Campos a origem nunca está dada como um peixinho querido que pode ser suspendido do aquário, nela tudo depende da inevitabilidade do presente para cada homem, o que exige da tradução um ato político de construção histórica em que traduzir é refazer. É o encontro entre uma origem e o presente do tradutor; origem que não pressupõe um tempo causal, uma anterioridade divina fundadora acima do acidente histórico. Esvaziada de todo platonismo, só pode ser uma diferença, e na prática do tradutor a acentuação dessa diferença, do espaço-tempo. Trata-se de, com a origem, como objeto feito, como ruína, resgatar a sua historicidade, a sua contingência, o seu presente também se fazendo como tempo da diferença. Resgatar os teores de verdade dos valores de coisa e, como consequência, dissecar os teores de coisa das verdades instituídas, para usar os termos de Walter Benjamin. Se não há ponto fixo no sujeito nem no objeto, não pode haver na origem e, por conseguinte, na tradução para o intradutor. Traduzir não é apenas apreender o que um passado envia; mais que isso, traduzir é entranhar-se nele e presentificá-lo. Como o poeta intradutor não traduz tudo ou qualquer um, esse ato político de escolha histórica é também um genuíno trabalho de crítica. Além de Walter Benjamin, um interlocutor fecundo da poética de Noigandres é Ezra Pound. Em seus textos sobre tradução, o poeta norte-americano coloca o intercâmbio entre o trabalho do crítico literário e o do tradutor
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como formas aprofundadas de leitura. Para Pound, as duas funções da crítica são 1) tentar teoricamente antecipar a criação; e 2) selecionar no passado o conhecimento ainda vivo para o homem do presente. Partindo das premissas benjaminianas e poundianas, Haroldo de Campos (1992, p.43) propõe uma prática tradutória que pode ser estendida a todos os seus colegas de Noigandres: A tradução de poesia (ou prosa que a ela equivalha em problematicidade) é antes de tudo uma vivência interior do mundo e da técnica do traduzido. Como que se desmonta e se remonta a máquina da criação, aquela fragílima beleza aparentemente intangível que nos oferece o produto acabado numa língua estranha. E que, no entanto, se revela suscetível de uma vivissecção, que lhe revolve as entranhas, para trazê-la novamente à luz num corpo lingüístico diverso. Por isso mesmo a tradução é crítica.
Como o arquivista tão caro a Benjamin, mas em muitos aspectos distante dele, o poeta concreto cata nos entulhos da cultura o lixo vivo para o futuro, recolhe, separa, compila uma vivência, que as metáforas orgânicas de Haroldo de Campos acentuam, da qual nasce dialeticamente seu entranhamento e seu estranhamento. O homem que recolhe nota a secura do objeto recolhido, mas a secura se contradiz na umidade da mão que seleciona e separa. Entranhar-se e estranhar-se, reviver e reinventar o objeto recolhido e percebê-lo como diferença instransponível, inevitabilidade do atualizar, é a tarefa do intradutor.
Sol de Maiakóvski O videopoema é uma videoimagem de três cores: vermelho, amarelo e branco, podendo aparecer como uma quarta cor, o preto da moldura. O fundo é composto por um branco-luz centralizado em profusão para um amarelo em processo de escurecimento, acentuado pela borda preta. Lê-se: “brilhar pra sempre/ brilhar como um farol /brilhar com brilho eterno/ gente é pra brilhar /que tudo mais/ vá pro inferno/ este/ é o meu slogan/ e o do sol”.
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Nove versos livres (nove retas desiguais) em vermelho estão quase planificados acima de todo o efeito-profusão criado pelo fundo. A exceção é a palavra “Tudo”, colocada simetricamente no centro dos versos e da luz do fundo; situada por cima do centro branco irradiante, a palavra (o verso, a linha), de um vermelho bem mais escuro que os demais versos, parece também estar já no fundo ou saindo, quebrando a aparente planificação das linhas vermelhas. A palavra “Tudo” faz implicar três movimentos a partir do centro: na vertical, superior, surge o verso “gente é pra brilhar”, e inferior, “vá pro inferno”; nas horizontais aparecem as palavras “que” e “mais”; nas diagonais, o contínuo escurecimento do amarelo sugere um tempo futuro da criação potencializada pelo intervalar e ainda/já enegrecido “Tudo”. As verticais formam duas espirais, círculos em profundidade que se encontram na palavra central. Nela se constelam a aurora e o poente, do centro às bordas superior e inferior, da borda ao centro; do branco ao preto, do preto ao branco, passando pelas gradações intensas do amarelo e do vermelho. O “Tudo” em vermelho escurecendo sobre o fundo branco assume dupla função e implica duas posturas da relação texto-leitor: matriz e origem do sol que nasce, alvorada do que cega e se aproxima, como um raio, do leitor, sinestesia absoluta; ou, em movimento inverso, o espaço de chegada, o fim último da ação perceptiva e da prática poética da recepção: o nada, o adentrar no vazio das bordas da palavra. Nesse jogo duplo, o texto é ativo, violento; mas é também ativo o leitor, que mergulha no vazio-ventre. Duplo “Tudo” vermelho escurecendo sobre fundo branco: mãe e morte; estridência e silêncio. A simbologia ancestral do sol reaparece no poema com o seu sinal mais típico, o círculo, com todas as suas conotações de eterno retorno e devir, além de criação e procura; Adrian Frutiger (1999, p.250) sugere que o culto ao sol seja o cerimonial mais antigo e mais difundido de todos que se tem notícia, imagem recorrente na literatura e da Arte. Contudo, o componente cerimonial (melhor seria
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dizer performativo) e uma concisão plástica de natureza minimal são recorrentes em toda a poética de Augusto de Campos, logo, não é aí que se pode encontrar a singularidade desse poema. Se parasse nisso, o poema sugeriria pouco, pois reintroduz uma figura geométrica não só várias vezes retomada na própria poética do autor, como um tema caro à poesia literária. O que mais interessa está na articulação de eixos que fazem o giro de significação do objetosigno, funcionando como constelações dinâmicas de uma semiose ampla e plural: sol, Maiakóvski, pesquisa, contemporaneidade. As quatro matrizes de geração de sentido agem sincronicamente num plano plástico, num plano poético-literário do pastiche e da montagem, e na articulação do contemporâneo (os verbos estão todos no presente do indicativo e no infinitivo potencial) à poesia moderna e à música popular. Vladimir Maiakóvski é o poeta que por vários aspectos se transformou num dos pilares conceituais de Noigandres a partir da década de 1960, dois deles interessam ao poema em questão: sua práxis de performer, com experiências no rádio e nas praças públicas de sua Moscou revolucionária, e sua atividade contínua de reflexão sobre os pressupostos sociais, culturais e políticos de sua época. É na problemática do contemporâneo que se poderá articular melhor esses quatro vetores, para além do geometrismo recorrente, porque as demais questões que podem ser colocadas a respeito dessa Intradução, de uma forma ou de outra, terão que passar demoradamente pela problemática fundante que ele coloca do contemporâneo. Em Sol de Maiakóvski, uma poética do contemporâneo se percebe na própria questão técnica pela transcriação atualizadora, que faz o poema de Maiakóvski migrar para um meio visual ainda mais potente para veicular a metáfora do sol, a cor-luz do vídeo; o poema, como é recorrente na poética de Augusto de Campos, coloca por um outro viés o tema da migração e do vídeo. A cor-luz se aprofunda no efeito aurora-cegante do centro até perder luminosidade e ganhar densidade rumo às bordas: geração/gestação/parto. Ainda em um plano estritamente semiótico, a poesia
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fortemente oral do poeta russo se encarna na citação, como num chiste freudiano, dos cantores urbanos Caetano Veloso e Roberto Carlos; a espacialidade da escrita e da imagem se choca com os indícios de uma temporalidade do som, inerentes aos versos populares citados e à própria leitura dos versos em tom de discurso de praça de Maiakóvski. São muitos os semioticistas que na esteira de McLuhan têm enfatizado a natureza fortemente acústica da cultura contemporânea, pois mesmo em dispositivos como o vídeo, a formatividade que lhe é própria, o círculo expansivo, tem muito em comum com a esfera acústica. Os indícios acústicos se coadunam com as curvas expansivas para configurar um meio ambiente pulsante e gerativo. O fundo ondeado, do branco brilhante ao amarelo ruborescente, funciona como o espaço para um tempo da voz, situam e segregam o som no vestígio que a luz deixa no caminho ao diminuir seu brilho; numa outra frente, as marcas de um discurso altissonante nos versos são um tempo para o espacialismo plástico, um lugar fora de uma história imediata. Os indícios da voz são locais, trazem marcas de historicidade, e se contrapõem ao simbolismo “a-histórico” do círculo-expansivo-sol; estão presentes sobretudo nos versos – “gente é pra brilhar” e “que tudo mais vá pro inferno” – e no tom do discurso verbal repetível – “brilhar”, “brilhar”, “brilhar”. Pensar Maiakóvski como a potência inscrita no centro profundo, fulgurante e auroral da tela; espaço de uma origem, temporalidade não contemporânea, tradição, mas tradição poética viva que rompe os limites de sua própria circunscrição temporal para conter em si a possibilidade do diálogo, o presente inevitável do intradutor: Tudo? Um novo Maiakóvski brota, habitado de outras vozes e prenhe de história, suas e porvir, objeto selecionado pelo arquivista-tradutor em meio ao entulho de agora. Mas é também e fundamentalmente ele mesmo, poeta contemporâneo: “o discurso em comício, a canção de front, o folheto de agitação, a leitura pelo rádio e a palavra de ordem são exemplos iguais e às vezes valiosos de poesia”
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(Schnaiderman, 1971, p.58). Para atualizar, a nova textualidade aciona o pastiche e a montagem numa forma plástica extremamente simples, primordial, poderia ser dito. O objeto em questão pulula várias durações, que vão desde a imersão na língua do Outro até uma pesquisa dos “materiais” de agora capazes de dialetizar com um percurso não coetâneo que é o tempo da origem. O efeito-profusão remete a um tempo mítico em que há apenas “tudo”, pois nada ainda pode ser diviso, aglutinação da matéria inanimada; mas sua direção densificante para as bordas ou a expansão espiralar nas verticais transforma o lugarfarol num lugar quente, por isso mesmo da ordem do atual, corroborado pelo movimento-terra implícito tanto nas gradações dos círculos para o escurecimento quanto no vermelho enegrecido da palavra central. A retina e o ouvido são arrombados pela pregnância do espaço rumoroso, espaço-agora. O que Teresa Cabañas (2000) viu na poesia concreta como uma vontade de criar um mundo paralelo ao mundo da realidade, um objectualismo funcional, não negativo e nada crítico em relação ao mundo circundante, se percebido dialeticamente, pode representar justamente o oposto: um projeto de crítica dos hábitos coloniais na cultura brasileira. Mais do que um puro funcionalismo, uma utopia de assunção de uma outra consciência, o que quer dizer uma outra política, do espaço de produção e recepção. Propor o poema concretista, e o projeto da poesia concreta de um modo geral, como objectual e reificador é fazer uma leitura muito próxima do fetiche do objeto, é praticar o que se tenta negar, o formalismo, e não perceber a emissão aos espaços institucionais da prática poética e a sua própria circulação enquanto signo; é, em última análise, paralisá-lo em uma inércia crítica. Existe um movimento do poema em direção à audiência que não há como abordá-lo fora de uma lógica das correlações. Sol de Maiakóvski remete para um fora ou além de si mesmo. Como objeto sempre em relação, como signo que remete a signo – Maiakóvski, Caetano Veloso, Roberto Carlos –, o objeto-
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signo não pode tornar-se simples coisa pura, simples presença, mormente num caso agressivo e cegante como esse, o que uma leitura fetichista poderia supor, pois só existe na troca, no vazio que preenche com outros dizeres e outros lugares, intersemiose em que o puro objeto não pode existir, posto estar sempre relacionado a um sujeito que o apreende num tempo-espaço atual. As leituras correntes do projeto concretismo que se tem feito no Brasil têm sido leituras tautológicas, leituras formalistas que têm como pano de fundo questionar um suposto formalismo (DidiHuberman, 1998). Formalismo do analista e de sua análise imputados ao objeto. É nessa remissão inevitável ao outro que os projetos concretistas e construtivistas se tocam como projetos utópicos de intervenção na prática cotidiana. Sol de Maiakóvski diz respeito a uma questão de ordem semiósica. O homo poéticus aqui não está tanto no meio ou no suporte, mas no percurso do signo; Sol de Maiakóvski diz respeito a uma arqueologia do signo, narra as diversas profundidades e profusões das ordens simbólicas: simbolismo ancestral do rei-sol, forma plástica primeva aliada a um realismo pop, à grande poesia moderna, à música urbana dos jovens, a uma certa ironia em contraponto no vermelho ofegante dos versos tom de comício. O videopoema é um verdadeiro ready-made, crítica do hábito, só que não mais pela indiferença, como muito queria Marcel Duchamp, mas pelo choque, por uma espécie de ritualização do objeto montado. A montagem implicada no poema não se presta unicamente a uma crítica do hábito artístico ou literário, mas a uma incorporação de outra ordem. O circuito que des-faz vai direto às memórias, aos mananciais simbólicos, e ideológicos, por sob o signo. O objeto-signo-cartaz desmancha e refaz o sujeito do Um ao coletar no caminho seus próprios mitemas cotidianos. O lugar que se forma não define unitariamente nem se divisa com total clareza subjetiva (o pronome que aponta não para um, mas para muitos: “Meu”, do Sol? Do poema em si mesmo? Do autor-Maiakóvski? Das vozes incorpo-
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radas? Do montador?). Se é hiperbólico o teor subjetivista, egocêntrico, de Sol de Maiakóvski, em que o sujeito do pronome “meu” se irmana com a pragmática cintilante do sol, tem-se um sujeito coletival, múltiplo muitos. Como centelha publicitária, provoca um choque tanto pelo amarelo cegante quanto pelo excesso desse eu, que parece conter de um só golpe, feito um raio, a tradição personalista e subjetivista da poesia de língua portuguesa, e sua implosão. O “eu-lírico” se contradiz e perde sua potência inicial, de pendor romântico, na mesma medida em que expande o alcance de sua voz. O discurso citado ao ser discurso no discurso torna-se avaliativo, porque fruto de uma escolha. Constituído de uma presença que não se esgota em si mesma, o humano implicado ultrapassa o teor idioletal do que afirma, e abre a significação para a participação do/no outro. Do eu potente, individualista-burguês, o sujeito assume o constituinte social de sua liricidade. Maiakovski e o poeta-cantor de rua, ao se espelharem, se reconstroem. E o intradutor situa-se nessa inter-relação dinâmica assumindo a multiplicidade da consciência individual. A memória social contida na palavra brota e o signo, ao referir-se a uma situação semiótica passada, Maiakóvski ou a tradição poética da língua, a apropria ao presente. Evocar uma dimensão social da lírica aqui é chamar atenção para esse eu tão concentrado em si mesmo e ao mesmo tempo tão esvaziado, saído da reificação individualista do gênio romântico para a assunção coletiva de seu discurso. Em última análise, numa espiral dialética, o projeto do intradutor revigora e assume para si o projeto do original, Maiakóvski. Por tudo isso, é inevitável situar o poema, pelo readymade da música popular de massa que incorpora, em sua relação com Marcel Duchamp e com a art pop anglo-americana, tão duchampiana em certos aspectos. Duchamp, de quem Augusto de Campos tem se aproximado bastante recentemente e que talvez tenha sido o mais crítico e radical artista do último século, buscava um esvaziamento total dos objetos de seu valor de uso, tornava útil o objeto inútil levado ao museu, o ready-made, na mesma medida
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em que esvaziava, no mesmo gesto, toda beleza do objeto artístico. Duchamp buscava uma beleza da indiferença (Paz, 2002, p.15), por isso seu gesto esteve sempre mais próximo do silêncio e da metaironia total a que submetia todas as coisas que o cercavam e que levou sua obra a uma quase aporia, a um abandono quase total da prática artística, como uma consequência lógica de seu projeto. A Intradução não endossa a tendência ao entulho, bastante comum no apelo visual dos artistas pop americanos e ingleses; seleciona nos materiais cotidianos o “objeto útil”, expressão cara tanto ao grupo construtivista russo quanto a Noigandres. O objeto útil como atuação e atualização histórica. Não do entulho, mas da coisa viva, porque habitada de historicidade. O intradutor recolhe a seiva dos outros. Fora do espaço tradicional da poesia e bem próximo da publicidade, é o esquecimento, uma espécie de tensão com a morte da tradição poética, que faz surgir um imperativo da memória, que se atualiza na citação. E é dessa memória, radicalmente seletiva, que nasce a projeção ao futuro, ausente da ironia dadaísta e da permissividade da pop art. A autoria se dilui, parece sumir na dispersão de fragmentos, podemos dizer, elétricos que o objeto-signo carrega de presenças assumidas. A “função-autor” (Orlandi, 2001, p.80), de que fala a análise do discurso foucaultiana, é abalada em sua raiz pela forma “não institucional” da citação, ou melhor, da remessa de citações, de reconstextualizações do discurso e da história alheia. Para além das críticas que vêm o contemporâneo como a amnésia da história, a poiesis vislumbra um estar na história com todo o seu peso de tempo das durações. O observador é invadido pelas ondas ruidosas do espaço e paradoxalmente incitado a adentrar no “Tudo”, do silêncio e da afasia, à potência e à invasão. Sol de Maiakóvski lembra as palavras de Voloshinov/Bakhtin (1995, p.108) a respeito da natureza dialógica da consciência: “toda a parte verbal de nosso comportamento (quer se trate de linguagem exterior ou interior) não pode, em nenhum caso, ser atribuída a um sujeito individual considerado isoladamente”. Nele, as
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Jameson problematizou posteriormente seus próprios argumentos. No entanto, a influência desse texto, como texto pioneiro que num certo sentido foi, continua fortíssima mormente nos países de língua inglesa.
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vozes constitutivas da consciência se cobatem em diferentes momentos históricos, sociais e linguísticos. O corte da subjetividade unificada satura o enunciado de outras presenças, que não criam um babelismo porque estão em uníssono, formando antes um coro, um cortejo, ou uma marcha. Atravessado pelas palavras do cantor popular de massa, o lirismo inicial do poema de Maiakóvski se afirma e se suspende, transforma-se em projeto coletivo. O slogan do eu todo poderoso irmanado com o sol critica seu próprio egocentrismo. O sujeito do pronome “meu” não pode ser rastreado a não ser pelo que não é: Maiakóvski, Caetano Veloso, Roberto Carlos. O intradutor é alguém que só se encontra fora de si mesmo. O lírico e o emocional saem da esfera do indivíduo e se propõem como demanda social. A postura que esse eu-textual assume, história potencial e memória objetiva, reacende o debate a respeito do pastiche e do espaço de encenação aberto pela referência indicial, no sentido peirceano do termo, a outros contextos na Intradução de Augusto de Campos. Indicial enquanto vestígio de uma outra fala que habita a consciência individual. Uma ecopoiesis (Justino, 2006) se assume indício da dinâmica social e das outridades históricas que se corporificam no agora do intradutor. Isso posto, é pertinente situar Sol de Maiakóvski no debate teórico contemporâneo para colocar em que medida ele, e por extensão a poética de Augusto de Campos, se situa fora e distante dos paradigmas teóricos em voga que tomam o equívoco termo/período pós-modernismo como objeto de análise. Na medida em que alguns pressupostoschave, espontaneidade, idioleto, esquizofrenia, perda do sentido histórico etc., não se aplicam a Sol de Maiakóvski nem à poética de Augusto de Campos como um todo. Em 1983, Fredric Jameson (1993) publica “O pósmodernismo e a sociedade de consumo”. Nesse texto influente e que suscitaria diversas polêmicas, Jameson pretende mapear o que chama de “a lógica cultural do capitalismo tardio”. Argumenta que o “pós-modernismo” tem como traços definidores o pastiche e a esquizofrenia.3 O pastiche
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nasce para o crítico norte-americano de uma suposta impossibilidade de qualquer questionamento da ordem social, pois os modernistas já o teriam feito sem efetivos resultados práticos e, ademais, vive-se em um tempo de extrema fragmentação social em que o capital pós-industrial já não obedece a nenhuma ordem prévia, a não ser à de sua própria lógica interna. A paródia, figura típica dos modernistas, só seria possível quando uma ordem ou tradição sustivesse a ordem social contra a qual o gesto paródico se insurgiria; sem uma ordem que lhe sirva de contralegitimação, ao “sujeito pós-moderno” só é possível o pastiche, a mímica verbal de uma fala passada indiferente. Sobre a diferença do pastiche e da paródia, bem como do modernismo e do pós-modernismo, escreve Jameson (1993, p.29): Tanto o pastiche quanto a paródia implicam a imitação, ou melhor, a mímica de outros estilos, particularmente dos maneirismos e contorções estilísticos de outros estilos. O pastiche, como a paródia, é a imitação de um estilo peculiar ou único, o uso de uma máscara estilística, a fala numa língua morta: mas uma prática neutra dessa mímica, sem a motivação ulterior da paródia, sem o impulso satírico, sem o riso, sem aquele sentimento ainda latente de que existe algo normal, comparado ao qual aquilo que está sendo imitado é muito cômico. O pastiche é a paródia vazia, a paródia que perdeu seu senso de humor.
Sol de Maiakóvski diria que o argumento de Jameson é polêmico no mínimo três vezes: 1) por querer definir uma época por uma prática bastante recorrente na história, o pastiche; 2) por sugerir uma total falta de normalização e de condicionamento dominante no estágio contemporâneo do capitalismo; e 3) por postular a possibilidade de uma “neutralidade” do signo quando migra de um contexto para outro. O pastiche é uma prática comum nas vanguardas modernistas, de que são exemplos Marcel Duchamp e as personae poundianas, num plano internacional, e a poesia Pau-
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Brasil de Oswald de Andrade, no Brasil. Também não será difícil rastrear um hábito pasticheiro na história da arte e da literatura pré-modernista, nos exercícios poéticos orais tradicionais e nos padrões mnemotécnicos repetíveis e reapropriáveis próprias da poesia oral. Quanto à ausência de ordem dominante, a lista de filósofos e sociólogos que tentaram mostrar o quanto o capitalismo pós-industrial é totalizador seria um tanto vasta e mais do que suficiente para questionar o pressuposto jamesoniano do fim da velha Ordem e, por consequência, da impossibilidade da paródia. Não se quer aqui entender Sol de Maiakóvski como paródia, pois claramente não há nele nenhuma contradição aparente ou ruptura absoluta com o original, antes formam, como já foi dito, um uníssono. Mas várias das características da paródia podem ser encontradas na Intradução de Augusto de Campos se forem investigadas em profundidade; há, por exemplo, uma explícita paródia de alguns sustentáculos da instituição literária, autoria, plágio, propaganda, cultura de massa etc. Além disso, e o que é mais importante, o pastiche, como remissão a um outro discurso, jamais será uma “prática neutra”. O deslocamento nunca se faz sem vestígio, sem marca tanto no sujeito que se desloca quanto no objeto que ele carrega. O discurso citado conserva ao menos rudimentos de sua integridade linguística, de sua autonomia estrutural primitiva e de seu outro contexto discursivo, e o sujeito de agora está imerso num contexto, institucional, técnico, cultural, histórico em toda amplitude: A diluição da palavra citada não se efetua, e não poderia efetuar-se, completamente: não somente o conteúdo semântico, mas também a estrutura da enunciação citada permanecem relativamente estáveis, de tal forma que a substância do discurso do outro permanece palpável como um todo auto-suficiente. (Volochinov & Bakhtin, 1995, p.145)
e O mecanismo desse processo não se situa na alma individual, mas na sociedade, que escolhe e gramaticaliza –
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isto é, associa às estruturas gramaticais da língua – apenas os elementos da apreensão ativa, apreciativa da enunciação de outrem que são socialmente pertinentes e constantes. (ibidem, p.146)
Esses dois fragmentos de Volochinov/Bakhtin mostram o quanto de seletividade e de escolha social está contido no discurso citado. Os críticos que abordam o fenômeno da intertextualidade concordam que quanto mais forte for a hierarquia entre os textos, os contextos e os interlocutores, maior será o condicionamento do texto de chegada a delimitar com clareza as vozes citadas. No entanto, em Sol de Maiakóvski o que se tem é um processo de diluição das hierarquias possíveis entre as vozes citadas, que se imbricam parataticamente. Se for possível utilizar o termo pastiche para o que se dá no poema, seu sentido tem que redefinir qualquer ideia de esvaziamento dos textos e dos contextos. Se o que se tem aqui não é uma paródia, nem por isso a remissão a outros contextos discursivos pode ser encarada como semiose esvaziada ou neutralizada. Se as origens se problematizam, se alteram seu estatuto inicial, nem por isso deixam de carregar consigo os indícios de seu hábitat anterior, constelados em um presente que não recolhe a esmo, mas que monta sua relação dinâmica com os tempos e os lugares. Se o pastiche na acepção de Fredric Jameson se aplica coerentemente a boa parte dos produtos culturais contemporâneos, se não à sua maioria, nem por isso pode dar conta em um lance totalizador de todas as formas de remissão ao passado e aos discursos que o constituem na nossa época. Aplicável à macheia no contexto anglo-americano, os pressupostos de Jameson são inoperantes para a poética de Augusto de Campos e para o contexto brasileiro. Para além do pastiche ou da paródia, a Intradução de Augusto de Campos está mais próxima da fecunda reflexão sobre a montagem, que as vanguardas, mormente o cubismo e o construtivismo russo, praticaram. A montagem construtivista teve no ideograma chinês um modelo e é sabida a relação entre o método ideogrâmico, bebido
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pelos concretistas em Fenollosa-Pound, e a Poesia Concreta. O ideograma e a montagem requeridos pelo grupo Noigandres visam dar forma a “um complexo dialético de relações” (Campos, A de, 1994, p.84). A montagem, mormente a “montagem ideogrâmica” teorizada e praticada no teatro e no cinema por Eisenstein, é um dos pilares da crítica concretista ao linearismo-silogístico do poema tradicional. É matriz de uma lógica das correlações contra a lógica das identidades. Textura verbi-voco-visual, montagem. Assim, Sol de Maiakóvski pode representar na poiesis de Campos um outro polo de sua prática. Se Mallarmé o instiga à pesquisa laborativa, a consciência da tactilidade dos suportes e dos sistemas semióticos; se João Cabral aprofunda a consciência contextual-recepcional brasileira, Sol de Maiakóvski e as Intraduções representam o dado político, ainda nada explorado, da poiesis de Augusto de Campos. As Instraduções são críticas políticas das origens que, não obstante um desejo obsessivo pelo passado, não o apreendem como objeto reificado na umidade lacrimal do luto. A história, latência durável na consciência, surge unicamente na sua relação com o presente em sua potência de futuro. A montagem em Sol de Maiakóvski implica uma “função sígnica”, pois agora se trata de explorar mais do que as potencialidades dos meios, sobretudo as interações dos circuitos, fazer cruzar e dialogar caminhos que desde a aurora romântica até o alto modernismo se excluíram ou foram marginalizados. A autonomia da obra literária, e poética, demorou muito a pensar as vias que davam suporte ao próprio discurso da autonomia. A montagem permitirá articular o que antes não importava ao poeta literário que labutava na construção do objeto único e belo, a pesquisa daquilo que só a partir da década de 1960 foi colocado: a batalha sangrenta da instituição para defender seus muros e o papel ancilar dado ao leitor em toda a sua história. No que diz respeito à poiesis, a audiência nunca pode ser abandonada. A montagem, poética das relações nasce da pesquisa genuína em busca das origens e de seus espaços institucionais de fundamentação e circulação.
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Por fim, ironicamente, o problema da montagem e da pesquisa na poiesis de Campos faz lembrar o que escreveu em “As contradições da vanguarda” um dos mais contundentes opositores do concretismo, José Guilherme Merquior (1981, p.83): “vivendo sob o signo inverso, da prevalência da pesquisa sobre a obra, essa vanguarda padece de uma perturbadora esterilidade”. Tomando como base Sol de Maiakóvski, o que Merquior vê como um defeito da poética concretista e um de seus impasses éticos deve ser percebido em sentido inverso, não como impasse, mas como atitude de contínua pesquisa histórica, de que esta Intradução de um poema de Maiakóvski é exemplar. De fato, o trabalho de pesquisa na poiesis de Campos é mais importante do que o acabamento reificado da Obra. Muito preso a um convencionalismo estético, como defender “as fronteiras naturais, que, como linguagem viva, nenhuma arte pode desprezar”, Merquior (1981, p.80) atira no alvo errado, e acerta. As Intraduções questionam o conceito de obra acabada e a partir daí o ofício do tradutor se expõe em toda sua inteireza, pesquisador de uma história em movimento, antípoda da temporalidade a-histórica, platônica, implícita no conceito de Obra do crítico. O trabalho de pesquisa do tradutor não será estéril porque vem acompanhado por uma práxis poética, por uma verdadeira “guerrilha cultural”.4 A pesquisa é indissociável do projeto e o projeto que se inicia com o Poetamenos de 1953 pode ser aproximado de uma utopia radicalmente contemporânea em Augusto de Campos muito próxima dos projetos, também utópicos, de Maiakóvski. Pesquisa e projeto são as duas faces da moeda concretista de onde é possível argumentar a favor de uma utopia contemporânea encarnada na vanguarda brasileira em seu diálogo constante com o projeto também utópico do construtivista russo. Argumentar a favor de um projeto utópico em pleno deslumbre das pós-utopias (Perrone-Moisés, 1998) pode parecer anacrônico, mas é antes a constatação de que o contemporâneo não descarta os projetos de futuro, é a assunção de que no Brasil pós-64 e em plena globalização
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A expressão é de Ana Cristina César (1999, p.403), utilizada pejorativamente para questionar o Paideuma concretista.
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econômica, a história não pode ser encarada como pura fatalidade, como um estar aí destituído de latência, é perceber e assumir os equívocos e as transformações da história enquanto projeto de crítica política rumo aos homens e à sociedade futura. Se as utopias convencionais tendem a ser totalitárias, idealizadoras de um espaço social fechado acima da ação da história, o projeto implícito em Sol de Maiakóvski, e em última análise em toda poética de Augusto de Campos, é de uma utopia não harmônica, contraditória, dissonante, como atesta esse objeto-signo de tantas vozes, contra o tempo estático das utopias místicas e/ou reacionárias, pois não nega o real, o assume para projetar na/pela poiesis o tempo advir. Os projetos de Maiakóvski e de Augusto de Campos se tocam: são utopias que assumem o tempo e o espaço das histórias contemporâneas, só a partir de onde as possibilidades objetivas do futuro podem se inscrever. Diferentes das “utopias imaginárias” (Nunes, 1976), pode-se dizer que em Campos/Maiakóvski existe uma utopia que não quer suprimir a história em favor de uma temporalidade mítica, mas que está encravada nela, na história, pois Sol de Maiakóvski contém “A força do movimento básico tradição/tradução, sabe que a sua linguagem não é senão um instante individual dos tempos da linguagem. Por isso mesmo, o seu espaço está infiltrado pela permanente passagem de outras linguagens” (Barbosa, 1986, p.36), e de outros tempos.
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Tradução e adaptação: o caso de Sargento Getúlio / Sergeant Getúlio Maria Alice Gonçalves Antunes*
RESUMO: O presente artigo apresenta uma análise do trabalho de versão para o inglês do romance Sargento Getúlio, feita pelo próprio autor, o escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro. O artigo mostra como o exercício de equilíbrio do autotradutor que procura adaptar seu texto ao leitor estrangeiro sem abrir mão do “ar traduzido”. PALAVRAS-CHAVE:
Autotradução, adaptação, adaptação local.
ABSTRACT: This article analyses the work of the Brazilian writer
João Ubaldo Ribeiro when translating his own novel Sergeant Getúlio into English. The article shows an exercise between closeness (to) and distance from the foreign reader. KEYWORDS:
* Doutora em Letras pela PUC-Rio, professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora colaboradora do programa de Pós-Graduação em Letras, no Mestrado em Língüística e vice-diretora do Instituto de Letras. 1
Este artigo é parte da tese de doutorado (O respeito pelo original – um estudo da autotradução a partir do caso de João Ubaldo Ribeiro) defendida na PUC-Rio em 2007. Parte da pesquisa foi realizada na Universidade de Warwick com Bolsa de Estágio de Doutorando – PDEE concedida pela Capes.
Self-translation, adaptation, local adaptation.
Introdução Neste artigo,1 analiso a autotradução – a tradução de um texto pelo próprio autor –tal como praticada por João Ubaldo Ribeiro, cujo trabalho selecionei por dois motivos. Em primeiro lugar, pude verificar que, apesar de sua obra ter sido objeto de pesquisas em algumas universidades brasileiras e do exterior, sua atividade de versão para o inglês dos romances Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro foi pouco explorada até agora (Gomes, 2005, p.75). Em segundo, residente no Rio de Janeiro e disposto ao contato comigo por e-mails, o escritor torna-se uma fonte de informação preciosa acerca de seu trabalho. Utilizo informações provenientes de fontes distintas: (i) o romance Sargento Getúlio / Sergeant Getúlio ou, mais especificamente, a comparação entre as escolhas registradas nesses textos;
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(ii) o artigo “Suffering in translation” (Ribeiro, 1990), em que o autor descreve brevemente o processo de versão para o inglês das duas obras; (iii) artigos, resenhas e livros escritos por leitores profissionais sobre o autor e sua obra; e, (iv) entrevista por e-mail com o escritor. Utilizo as fontes aqui descritas para demonstrar que no espaço de intermediação entre culturas diferentes que é a tradução, o autotradutor brasileiro usa diferentes técnicas na adaptação do “sergipês” – dialeto utilizado por Getúlio, personagem principal do romance – ao público leitor norte-americano, alvo de Sergeant Getúlio. Este artigo está dividido em três partes. Na primeira, discuto o conceito de adaptação e os procedimentos usados por tradutores que procuram adaptar um texto ao público-alvo da tradução. Na segunda, comparo o romance Sargento Getúlio à versão inglesa Sergeant Getúlio feita por João Ubaldo Ribeiro para analisar as técnicas usadas pelo autotradutor brasileiro na adaptação do “sergipês”. Ressalto que, por questões de espaço, minha análise comparativa se restringe à versão dos ditados populares e dos xingamentos. Finalmente, apresento algumas considerações a respeito da adaptação e do trabalho do escritor brasileiro.
Tradução e adaptação: o caso de Sargento Getúlio / Sergeant...
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Ver <http://br.dir.yahoo. com/Artes_e_Cultura/Teatro/ Espetaculos>. Acesso em: 3 nov. 2006.
Tradução e adaptação No Dictionary of Translation Studies, encontramos a adaptação definida como qualquer texto-alvo em que uma estratégia de tradução livre foi adotada. […] de forma geral, significa que mudanças significativas foram feitas para tornar o texto mais adequado a um público específico ou ao propósito da tradução. (Shuttleworth & Cowie, 1997, p.3)
Vemos que a liberdade, o público leitor e o propósito do texto desempenham papéis importantes para a definição do que seja uma adaptação, na medida em que eles, de certa forma, determinam o emprego de uma estratégia de tradução mais livre. Assim, o público leitor infantil vê
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“procedimentos de tradução”
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A comédia dos erros, peça de autoria de William Shakespeare, em uma adaptação da Companhia República do Teatro para o “Ciclo Shakespeare para crianças” e não uma tradução. A adaptação de uma peça de Shakespeare para crianças envolve a utilização de uma estratégia de tradução livre, que acarreta mudanças consideráveis, como a adequação da linguagem a um público diferente, para tornar o texto apropriado para as crianças.2 A tradução livre (free translation), em outro verbete do mesmo dicionário (Shuttleworth & Cowie, 1997), é definida como o tipo de tradução preocupada com a produção de um texto fluente na língua de chegada. O tradutor que opta pela tradução livre não está preocupado com a manutenção de características formais do texto (e da língua) de partida, mas com a produção de um texto que permita uma leitura fluente. A tradução livre é, segundo os autores do dicionário, uma estratégia utilizada de forma frequente quando um texto é adaptado. Na Encyclopedia of Translation Studies, Georges Bastin, autor do verbete “adaptação”, define a atividade como “o uso de procedimentos de tradução que tem como resultado um texto que não é aceito como tradução, mas que é reconhecido como uma representação de um texto-fonte de, aproximadamente, o mesmo tamanho” (in Baker, 1998, p.5). Penso que Bastin introduz alguns elementos interessantes em sua definição e que merecem mais atenção. O primeiro deles é o apelo à recepção ao texto adaptado, que não é aceito como tradução apesar de ser produzido a partir da utilização de translative operations (“procedimentos de tradução”).3 Outro ponto curioso, a meu ver, é a introdução do tamanho do texto como critério para definição da adaptação. O autor afirma que uma adaptação representa um texto-fonte, mais ou menos do mesmo tamanho. Assim, um texto em que capítulos inteiros fossem cortados, por exemplo, constituiria, provavelmente, uma versão resumida e não mais uma adaptação. No mesmo verbete da referida enciclopédia, o próprio Bastin apresenta outras possibilidades de definição de
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adaptação. Entre as propostas do autor, está a definição de adaptação como um dos sete procedimentos técnicos de tradução descritos por Vinay e Darbelnet (apud Baker, 1998). Segundo os dois autores, a adaptação é um tipo de tradução oblíqua e deve ser utilizada quando o contexto a que o texto original se refere não existe na cultura de chegada. Sobre a tradução oblíqua, Geir Campos afirma que “quando não é viável a tradução dita literal, recorre-se à dita oblíqua: é como se a tradução literal se fizesse paralela ao texto original e qualquer desvio desse paralelismo resultasse em alguma forma de inclinação ou desvio ou obliqüidade”.4 Além da adaptação, a tradução oblíqua envolve outros procedimentos como a transposição, a modulação e a equivalência, que dariam ao texto traduzido maior naturalidade. Vinay e Darbelnet (apud Shuttleworth & Cowie, 1997, p.4) argumentavam também que a adaptação “representa o limite extremo da tradução” e que o resultado do trabalho de um tradutor que evita a adaptação pode ser um texto que “conserva o inconfundível ar traduzido” (ibidem, p.5). Ressalto, porém, que um texto pode conservar o “ar traduzido” quando o tradutor usa a estratégia da adaptação local, conforme veremos a seguir. A definição de adaptação continua e Bastin acrescenta que “de forma geral, historiadores e pesquisadores da tradução têm uma visão negativa da adaptação, considerando-o uma distorção, falsificação ou censura” (in Baker, 1998, p.5). A observação de Bastin é, até certo ponto, surpreendente. Creio que adaptadores brasileiros, aqueles que assinam as chamadas adaptações, parecem estar cercados de um prestígio maior do que os tradutores. Em geral, sabemos que um determinado material foi adaptado porque isso nos é informado na capa de um livro, assim como o nome do adaptador – muitas vezes, alguém famoso, já estabelecido em outra profissão como a de escritor, por exemplo. Uma rápida busca na internet nos revela o nome de vários adaptadores famosos: Antonio Abujamra, Carlos Heitor Cony, Millor Fernandes, Maria Clara Machado. O nome do tradutor é, ao contrário, uma informação muitas
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Ver <http://www.ead. ufms.br/letras/daniel/tec_trad/ Fazer_Tradução.htm>. Acesso em: 1º nov. 2005.
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vezes escondida, por assim dizer, do público-leitor de uma tradução a menos que o tradutor tenha a habilidade reconhecida pelo público em geral ou talvez quando o original alcança tamanho sucesso que a tradução simplesmente não pode ser negligenciada. O caso de Lia Wyler, tradutora de Harry Potter, pode ilustrar a questão. Bastin (in Baker, 1998) introduz ainda dois conceitos: adaptação local e adaptação global. Para o autor, a adaptação local “pode ser usada em partes isoladas do texto para lidar com diferenças lingüísticas e culturais específicas” (ibidem, p.7). Assim, um tradutor que encontra o vocábulo “acarajé”, por exemplo, quando está vertendo um texto do português para o inglês poderá usar a técnica de adaptação local. Tal técnica se subdivide ainda em outras possibilidades. Entre os procedimentos que o profissional que opta pela técnica poderá utilizar, temos a transcrição do original (repetindo o vocábulo “acarajé”), a omissão, a expansão (explicando no corpo do texto, em nota de rodapé ou em um glossário o que é um “acarajé”), o exotismo (substituindo o termo “acarajé” por um equivalente não muito próximo), a modernização (substituindo um termo por outro mais atual, uma técnica que não se aplica ao caso do “acarajé”), a equivalência funcional (inserindo outro contexto mais familiar para o leitor estrangeiro), e a criação (substituindo o texto original por outro que preserve somente a mensagem essencial ou a função do original). Bastin argumenta ainda que a utilização da técnica de adaptação local terá um impacto limitado no texto como um todo. Antes de definir a adaptação global, faz-se necessária uma reflexão breve acerca do grau de adaptação ao público-leitor que as técnicas apresentadas por Bastin envolvem. Enquanto a equivalência funcional pode ser descrita como um procedimento que ajuda a tornar um texto traduzido mais próximo do leitor, pois apaga o estrangeiro presente no texto-fonte, a transcrição do original não pode ser encarada da mesma forma. A manutenção de um termo reconhecidamente estrangeiro pode ocasionar dificul-
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dades intransponíveis para o leitor de uma tradução, caso o tradutor (ou a editora) opte pela não inclusão de um glossário ou de notas de rodapé. Finalmente, acredito que as técnicas de adaptação local podem ser organizadas em um contínuo em cujos extremos estão a equivalência funcional – técnica cuja utilização promove a proximidade entre texto e leitor – e a transcrição do original – técnica cuja utilização mantém a distância entre eles. Entretanto, não se pode negar que a adaptação local é uma resposta do tradutor ao leitor inserido em um sistema cultural diferente daquele em que o texto original foi concebido. A adaptação global, por sua vez, é definida por Bastin (in Baker, 1998, p.7) como uma estratégia geral que pretende reconstruir o propósito, função ou impacto do texto original. A intervenção do tradutor é sistemática e ele pode sacrificar elementos formais e até mesmo o significado para reproduzir a função do original.
Teríamos incluídos aí os textos adaptados para um público específico, como a série recentemente lançada pela editora Objetiva em que o editor, tradutor e músico Fernando Nuno adaptou Hamlet e Romeo and Juliet, de autoria de William Shakespeare, para o público leitor jovem. É importante notar também que a escolha da adaptação local parte do tradutor que tem essa técnica em seu repertório. A opção pela adaptação global, por sua vez, pode depender de outros fatores, como de uma decisão dos editores. Para os propósitos da investigação que apresento aqui, tomarei por base a definição de adaptação local apresentada por Bastin. Considero, assim, que a adaptação local é uma técnica de tradução que envolve a utilização dos procedimentos descritos antes. Considero também, como Bastin, que há, em princípio, condições determinantes para a utilização da técnica: (i) quando não há termos equivalentes na língua alvo; e (ii) quando o contexto a que se refere o original não existe na cultura alvo. É importante salientar que Bastin tece suas considerações, aparentemente, em relação à tradução e não à autotradução, objeto de minha
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A recepção do romance pelo público norte-americano, explicitada nas resenhas publicadas em jornais norte-americanos, foi tema de monografia apresentada à professora Márcia Martins, como um dos requisitos necessários para aprovação na disciplina “Tópicos em estudos da tradução (Relações entre tradução, cultura e literatura a partir de estudos de caso)”, no programa de Pós-Graduação em Letras, área de Estudos da Linguagem, na PUC-Rio.
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pesquisa. Trato de um romance que foi, em princípio, aceito pelo público norte-americano como tradução, já que as resenhas publicadas em jornais norte-americanos à época do lançamento do romance avaliam o trabalho do tradutor.5 É importante notar, contudo, que a adaptação local não foi a única estratégia utilizada por João Ubaldo Ribeiro, que inclui em seu repertório de procedimentos a técnica da tradução literal. Douglas Robinson (in Baker, 1998, p.125) define a tradução literal como aquela que envolve a substituição de cada um dos itens lexicais do texto-fonte por equivalentes na língua-alvo, sempre que a estrutura das línguas envolvidas na tradução permite. A tradução literal será utilizada por um profissional da área que opte por um texto mais “obediente” à manifestação linear do original. Ressalto, contudo, que o resultado dessa “obediência” é muitas vezes visto como prejudicial à fluência da tradução e, por isso, Robinson aponta que a tradução literal pode fazer um texto conservar “o inconfundível ar traduzido” (ibidem). Outro aspecto costumeiramente ressaltado na definição da tradução literal é o fato de que sua utilização depende do tipo de texto que se traduz. Em geral, ela é considerada apropriada para a tradução de textos vistos como técnicos que, aparentemente, não podem prescindir de nenhum significado apresentado no original. Porém, creio que o aspecto mais importante não está na definição da tradução literal em si, mas nos pressupostos epistemológicos que a sustentam. A compreensão da tradução literal baseia-se na crença em um sistema linguístico cujos significados são inerentes à sua estrutura gramatical e lexical e, portanto, estáveis. Consequentemente, os significados estão presentes na estrutura superficial do texto e são imunes ao ato cooperativo da leitura. Desse modo, o leitor não terá papel de construir significados, mas sim de resgatálos, já que não dependem de sua cooperação ativa para existirem, pois foram pré-selecionados e estão embutidos, por assim dizer, nas estruturas e nos itens lexicais selecionados pelo escritor, presente no texto.
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Finalmente, é importante observar que a tradução literal pode ser vista como uma técnica que promove a estrangeirização (Venuti, 1995), ou a conservação do estrangeiro no texto traduzido, já que se percebe ali a estrutura marcante da língua-fonte. Entretanto, conforme argumentarei adiante, a tradução literal também pode ser considerada uma tentativa de adaptação ao público-alvo.
O caso do “sergipês” A tradução de Sargento Getúlio foi iniciada por um tradutor norte-americano que, depois de traduzir as trinta páginas iniciais do romance, desistiu da tarefa, segundo João Ubaldo Ribeiro, por causa da dificuldade de compreensão do “sergipês”, o dialeto utilizado pelo autor (Ribeiro, 1990, p.3; e-mail, 7.8.2003). O escritor brasileiro ratifica a opinião de editores e agentes norte-americanos: a subcompetência bilíngue, notadamente a competência gramatical, é um fator fundamental para a tradução e dá vantagens ao autor de Sargento Getúlio. O escritor comenta que lembra, genericamente que, em certos trechos, quando um tradutor estrangeiro, ou mesmo um leitor brasileiro, teria certa dificuldade em saber o que ele queria dizer, ele não enfrentava esse problema, porque sabia bem o que queria dizer, não tinha de pensar muito no assunto. (e-mail, 18.7.2003)
O “sergipês”, causador de dificuldades de compreensão para tradutores e leitores não apresentou desafios para o autotradutor, conhecedor do dialeto, e a leitura foi facilitada pelo fato de que o autor, a quem são atribuídas as escolhas lexicais e sintáticas, por exemplo, registradas no texto, foi também o tradutor. Não quero dizer com isso que João Ubaldo tenha sido o “melhor” tradutor ou o “único” capaz de construir uma interpretação coerente. Ressalto apenas que sua competência enciclopédica, que abrange a subcompetência bilíngue e, portanto, o conhecimento do “sergipês”, deu a ele uma vantagem sobre o tradutor que iniciou a tarefa.
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Sargento Getúlio é, reconhecidamente, um romance que mistura recursos variados em sua criação de uma linguagem regional singular e unicamente oral (um dialeto) a que João Ubaldo se refere como “sergipês”. Em The Cambridge encyclopedia of the English language, David Crystal (1999, p.298) define um dialeto como uma maneira de falar originária de regiões específicas dotado de uma “individualidade surpreendente” e “fonte de grande complexidade e potencial lingüísticos” (ibidem). Ao escrever o romance, João Ubaldo transporta a oralidade do dialeto para a escrita, usando recursos variados para explorar, além da oralidade, o regionalismo desse falar. Uma das consequências da recriação da linguagem é a extrema dificuldade que o tradutor inicialmente contratado para a versão do romance para o inglês enfrentou (Ribeiro, 1990, p.3). Ou seja, os regionalismos e a utilização de recursos estilísticos variados tornaram a interpretação com o texto uma tarefa extremamente complexa, para não dizer impossível, para um falante não-nativo do português que costuma ser competente na língua tida como culta ou em variedades mais “prestigiadas”. Não é de todo surpreendente que o tradutor tenha desistido da tarefa. Como consequência de sua desistência, João Ubaldo resolveu traduzir, ele mesmo, o dialeto. Vejamos então as características dessa tradução. Destaco, em primeiro lugar, aquela que é, a meu ver, a principal característica da versão em inglês de Sargento Getúlio: o apagamento do “sergipês”. João Ubaldo revela sua dificuldade na tarefa de traduzir o dialeto ao escrever por e-mail: “como é que ia traduzir o sergipês. Não podia usar linguagem urbana, não podia usar linguagem do velho Oeste, não podia usar linguagem do sul e assim por diante” (e-mail de 24.9.2003). É inegável que “a linguagem correta e apropriada é sempre mais fácil de traduzir” (Landers, 2001, p.116). A dificuldade na tradução de dialetos é evidenciada também nas opiniões distintas de tradutores profissionais quanto ao tratamento que deve ser dado a esses falares originários de regiões específicas. Vejamos o que dizem Clifford Landers, Gregory Rabassa e
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Suzanne Jill Levine, renomados tradutores literários profissionais norte-americanos. Clifford Landers desaconselha o uso de outro dialeto que já existe ou a invenção de um para substituir o original, e conclui com um conselho para a tradução de uma linguagem dialetal: “não tente” (ibidem, p.117). Em outras palavras, julgo que Landers aconselha, na verdade, que o tradutor lance mão de outros recursos para comunicar ao leitor que um determinado personagem faz uso de uma linguagem específica. A questão permanece, contudo, pois os dialetos existem e demandam tradução. Gregory Rabassa (1991, p.42), tradutor de obras de autoria de Machado de Assis, Jorge Amado, Dalton Trevisan, Clarice Lispector e Osman Lins, entre outros autores brasileiros e latino-americanos em geral, tem outra opinião. Ele afirma que “o tradutor deve conceber um inglês que [o gaúcho] falaria caso falasse inglês” (ibidem); ou seja, utilizando sua criatividade e competência linguística e tradutória, o profissional deverá inventar uma língua, já que a substituição de um dialeto por outro já existente provoca, por vezes, associações pouco apropriadas (como a associação do sargento Getúlio a um cowboy norte-americano, por exemplo). Considero, contudo, a criação dessa língua uma tarefa bastante árdua e que não garante a travessia da fronteira cultural que separa os países em questão. Além disso, julgo que o tradutor literário corre o risco de criar uma linguagem caricatural que contribuiria para a manutenção de estereótipos e para o fomento de preconceitos acerca do estrangeiro. Finalmente, Suzanne Jill Levine (1991, p.67), tradutora de obras de Cabrera Infante e Manuel Puig, entre outros, descreve como “a fala cubana e o sotaque de Havana inevitavelmente desaparecem na versão inglesa” de Três tristes tigres através de um processo de “americanização” (ibidem, p.68) das falas dos personagens ou, a meu ver, da redução do estrangeiro cubano ao (mesmo) nativo norte-americano. Diante das possibilidades, o que faz João Ubaldo? Ele afirma que “universalizou o inglês da tradução, puxando mais, no caso, para o inglês americano, porque a
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tradução era para os Estados Unidos” (e-mail, 12.11.2003). Compreendo a “universalização” citada por João Ubaldo como a tentativa de aproximação do novo público-leitor por meio do uso de construções gramaticais, vocabulário, técnicas e padrões em geral já conhecidos dos leitores aos quais suas traduções se destinavam. O apelo àquilo que é familiar, como o conhecimento que os leitores pensam ter sobre a América Latina, foi também uma estratégia usada no lançamento do romance e confirmada em várias opções de João Ubaldo, autotradutor. Considerando-se o desejo de se ver inserido no cânone de literatura brasileira traduzida no exterior como um dos motivos para a decisão de traduzir, ele mesmo, o original (Ribeiro, 1990), a universalização é uma opção coerente, já que o públicoleitor norte-americano é sabidamente pouco afeito a traduções, fato que se confirma na quantidade de livros traduzidos publicados nos Estados Unidos: menos de 1% (Landers, 2006). Lado a lado com a universalização, João Ubaldo afirma ainda ter desejado “dar um ‘ar traduzido’ ao verter seu trabalho para o inglês” (e-mail de 24.9.2003) e preferido “usar uma maneira de dizer, uma frase feita de uso cotidiano, por exemplo, traduzida do português do que seu equivalente, muitas vezes diferente, na conversa comum entre nativos falantes de inglês” (ibidem). Compreendo, portanto, o “ar traduzido” como a tentativa de fazer que o leitor encontre obstáculos durante sua leitura e assim perceba que está diante de uma tradução. De fato, pude constatar que João Ubaldo usa traduções do português que soam pouco naturais em inglês. Vejamos algumas delas. (1) … o que não tem remédio, remediado está. (Ribeiro, 1982, p.36) ... that which has no remedy, can be considered remedied. (Ribeiro, 1978, p.28)
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(2) ... quem come jaca e bebe qualquer tipo de cachaça, estupora. (Ribeiro, 1982, p.11) … whoever eats a piece of jack fruit and drinks any kind of hard liquor on top of it, his skin breaks out all over. (Ribeiro, 1978, p.3) (3) ... homem nu com mulher nua, um vai cair na pua ... (Ribeiro, 1982, p.56) ... get a naked woman and a naked man together and one of them will end up on top of the other… (Ribeiro, 1978, p.48)
No exemplo (1) vemos que um ditado popular bastante comum entre falantes nativos de português foi substituído por uma expressão que não é fixa ou de uso frequente e que envolve a substituição de cada um dos itens lexicais do ditado popular brasileiro por equivalentes na língua-alvo. Ou seja, João Ubaldo optou pela tradução literal como técnica para a versão do ditado. O resultado é uma frase que não é exemplo de um ditado popular e que demonstra o uso de um registro formal da língua inglesa. No exemplo (2), a expressão faz alusão a um tabu alimentar instituído por jesuítas que, impedidos por motivos religiosos de flagelar seus escravos, desenvolveram métodos psicológicos para induzi-los a vigiarem a si mesmos. A versão em inglês, traduzida literalmente do português, é mais uma vez uma expressão que não é fixa ou comum, que não tem a “cor” original e que envolve a substituição de cada um dos itens lexicais originais por equivalentes na língua-alvo. Ou seja, a tradução literal foi, mais uma vez, a opção de João Ubaldo. O exemplo (3) demonstra o uso da mesma técnica que, mais uma vez, resulta em uma expressão que não é fixa, mas que usa um inglês informal. Note-se também que
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a rima (nua/pua) desaparece da versão inglesa e contribui para o apagamento da oralidade característica da narrativa original. Vejo na tradução dos ditados regionais o apelo ao exótico quando, traduzida literalmente, a expressão sugere as consequências (não verdadeiras) da mistura de um tipo de alimento com uma bebida alcoólica (exemplo 2). Sem a competência enciclopédica necessária para interpretar o texto, o leitor da autotradução confirma seu conhecimento sobre a cultura brasileira e latino-americana (culturas exóticas, na visão do leitor norte-americano), já adquirido por meio da leitura de outros textos. Por fim, observo que João Ubaldo usa a técnica da equivalência funcional escolhendo ditados populares frequentes entre falantes nativos da língua inglesa para substituir itens marcadamente regionais: (4) Depois ele pegou a tropa toda e jogou lá no jebe-jebe de Penedo. (Ribeiro, 1982, p.126) Then he grabbed the whole train and threw it all where the devil lost his boots. (Ribeiro, 1978, p.116)
Assim, vejo que João Ubaldo, ao mesmo tempo que traduz expressões populares literalmente, produzindo resultados pouco comuns, procura compensar esse procedimento ao adicionar expressões fixas em inglês que colorem a versão. Mas há ainda outros momentos em que o “ar traduzido” se faz presente. O resenhista do jornal norte-americano Chicago Tribune elogia Sergeant Getúlio porque o autotradutor usa colocações que não são frequentes entre falantes nativos do inglês. Com efeito, as colocações não são, na maioria das vezes, expressões fixas, e as restrições ao uso dessas combinações de palavras devem-se muito mais à intuição do falante do que propriamente a qualquer restrição de ordem
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gramatical ou formal. Em outras palavras, não há nenhuma regra que impeça, por exemplo, a utilização dos vocábulos squashy e bug juntos para xingar alguém, como acontece em Sergeant Getúlio. Por sua vez, a utilização da combinação squashy bug como xingamento não é usual e sugere que o autotradutor está fazendo uso de uma expressão que é possível na língua do ponto de vista formal, mas que não é provável ou típica do vocabulário de um usuário nativo. Sallow earthworm, easily roped ox, sparrow heart, dungy queer são outras combinações de palavras que podem ser explicadas da mesma forma. Note-se ainda que a tradução literal é a técnica escolhida por João Ubaldo para a versão dos xingamentos. Como discuti antes, observo na tradução do dialeto, a tentativa de fazer o leitor perceber que está diante de um texto traduzido, pela utilização da tradução literal, vista por João Ubaldo como uma técnica que promove a manutenção de traços do estrangeiro no texto autotraduzido (e-mail de 24.9.2003). Entretanto, ao mesmo tempo que promove o reconhecimento do outro, a tradução literal é também uma técnica de tradução usada com frequência e é tida por Vladimir Nabokov (1990, p.134), por exemplo, como a única possibilidade de realização da tradução propriamente dita. Assim, podemos dizer que também a tradução literal aproxima o texto traduzido do leitor estrangeiro, pois ele reconhece ali a atuação de um tradutor ou sua percepção acerca da tradução.
Considerações finais Alguns tradutores profissionais consultados concordam que seria muito difícil verter um romance como Sargento Getúlio para o inglês. Consideram que é impossível encontrar equivalentes “exatos” para as palavras e expressões utilizadas no original, mas que teria sido possível utilizar um estilo que mostrasse ao leitor estrangeiro que Getúlio não é um sargento culto, educado, que nasceu em uma cidade grande, que foi à escola, como a personagem
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construída na versão em inglês sugere. Uma versão mais “fiel” ao original incluiria, talvez, erros na grafia de palavras, erros de concordância, a utilização de contrações, o uso de expressões reconhecidamente regionais e também a utilização de construções menos formais, ou nas palavras de Luiz Angélico da Costa (1996), de uma “gramaticalidade [menos] sisuda”, do que if I were ou it was I who, por exemplo, que aparecem na versão. Não é meu propósito aqui propor uma nova versão, porém considero que tais sugestões fariam o sergeant Getúlio parecer-se mais com o sargento Getúlio sem que um novo dialeto fosse criado. É o próprio João Ubaldo Ribeiro quem afirma “não se poder traduzir um ‘dialeto’ para outro ‘dialeto’” (e-mail de 12.11.2003) e, por isso, resolveu adotar o ar traduzido. Creio, então, que João Ubaldo preferiu, de certa forma, seguir o “conselho” de Gregory Rabassa e buscou criar uma linguagem que fizesse o leitor perceber que está diante de um texto estrangeiro. Ao mesmo tempo, não pretendeu fazer de sua autotradução um texto de leitura pouco fluente. Assim, a versão do “sergipês” é também um exercício de equilíbrio em que o autotradutor abre mão de características do texto original na tentativa de aproximação do leitor estrangeiro e tenta provocar, nesse mesmo leitor, a percepção da diferença. Isso pode ser feito pela utilização de expressões que deslocam o leitor de uma posição de certo conforto em relação ao texto traduzido, o qual, muitas vezes, incorpora também tradições próprias da cultura-alvo na tentativa de uma leitura bastante fluente, de um texto que não soe como uma tradução.
Referências BAKER, Mona. (Org.) Routledge encyclopedia of translation studies. London: Routledge, 1998. COSTA, Luis Angélico da. João Ubaldo Ribeiro, tradutor de si mesmo. In: V ENCONTRO NACIONAL DE TRADUTORES. São Paulo, Anais... São Paulo: Humanitas Publicações, 1996. p.181-90. CRYSTAL, David. The Cambridge encyclopedia of the English language. Cambridge: CUP, 1999.
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GOMES, João Carlos Teixeira. João Ubaldo e a saga do talento triunfante. In: RIBEIRO, João Ubaldo. João Ubaldo Ribeiro: obra seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. p.75-103.
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LANDERS, Clifford. Literary translation. A practical guide. Clevedon: Multilingual Matters, 2001.
André Luís Gomes*
. A tradução de romances brasileiros nos Estados Unidos. In: Palestra proferida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2006. LEVINE, Suzanne Jill. The subversive scribe: translating Latin American fiction. Minnesota: Graywolf Press, 1991.
Desde a estreia de Barrela e Dois perdidos numa noite suja, a obra teatral de Plínio Marcos tem sido elogiada pela critica especializada, que reconhece a originalidade dos temas e do universo retratado em suas peças. Por meio de personagens marginalizadas política e economicamente, e, consequentemente, regidas pela violência, o dramaturgo critica situações patéticas da sociedade e compõe textos organicamente teatrais, ágeis e imagéticos. Essas características despertaram o interesse de cineastas que adaptaram suas peças e sobre elas nos deteremos com o objetivo de analisar os procedimentos e mecanismos de adaptação adotados e as representações recriadas pelas respectivas versões fílmicas.
RESUMO:
NABOKOV, Vladimir. Prefácio. In: PUSHKIN, Alexander. Eugene Onegin. A novel in verse. New Jersey: Princeton University Press, 1990. RABASSA, Gregory. Words cannot express … the translation of cultures. In: LUIS, William; RODRIGUES-LUIS, Julio. (Org.) Translating Latin America: culture as text. Binghantom: CRIT/SUNY, 1991. p.35-44. RIBEIRO, João Ubaldo. Sergeant Getúlio. Boston: Houghton Mifflin Company, 1978. . Sargento Getúlio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. . Suffering in translation. P.T.G. Newsletter, Portuguese translation group (ATA, New York), jan./fev. 1990. p.3-4.
PALAVRAS-CHAVE:
SHUTTLEWORTH Mark; COWIE, Moira. Dictionary of translation studies. Manchester: St. Jerome Publishing, 1997.
Teatro brasileiro, Plínio Marcos, adaptações
cinematográficas. ABSTRACT: Since the premier of Barrela and Dois perdidos numa
VENUTI, Lawrence. The translator’s invisibility. New York: Routledge, 1995.
* Doutor em Literatura Brasileira pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), professor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB).
noite suja, Plínio Marcos’ theatre has been being eulogized by specialized critic, which recognizes the originality of themes and the universe painted in his plays. Through characters marginalized politically and economically, and, consequently, acted according to violence; the author criticize pathetic situations of society and compose texts organically theatrical, nimble and that lock up imagines. Those characteristics awaked the interest of filmmakers, who adapted his plays to the cinema. The objective is analyzing the procedures and mechanisms of these cinematographic adaptations and the representations built by film versions. KEYWORDS:
adaptations.
Brazilian theatre, Plínio Marcos, cinematographic
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[...] De repente, eu fico diante do primeiro proibidor de uma peça minha. Depois de dezoito anos. Se ele não tivesse proibido, como é que seria tudo? Me pergunto. Eu por certo não teria penado mais que mãe de porco-espinho, não teria ficado tantos e tantos anos no anonimato, se a peça tivesse sido liberada. (apud Contreras, 2002, p.144)
O que me interessa é o humanismo como uma práxis utilizável para intelectuais e acadêmicos que desejam saber o que estão fazendo, com o que estão comprometidos como eruditos, e que também desejam conectar esses princípios ao mundo em que vivem como cidadãos. (Edward W. Said)
Da proibição às telas de cinema O teatro de Plínio Marcos, santista-palhaço-funileirocronista-dramaturgo, viveu dois momentos distintos. Em um primeiro momento, as peças foram censuradas, ficaram alguns anos excluídas da vida teatral, exiladas do palco, subordinadas ao poder ditatorial e rechaçadas pelos moralistas e defensores das normas ditas “literárias”; mas, ainda durante esse período, críticos teatrais, escritores e público reconheceram a originalidade de seus textos teatrais, que passaram, em um segundo momento, a ganhar montagens concomitantes no Brasil, a ser encenados na França, na Alemanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos, em Cuba, além de traduzidos e adaptados para o cinema. Dentre essas adaptações, é, especificamente, sobre a versão fílmica de Dois perdidos numa noite suja que vou me deter, para analisar certos aspectos da transposição realizada, cotejando-a com o texto base, na tentativa de provocar reflexões e discussões em torno das representações (re)construídas pela dramaturgia fílmica.1 A trajetória do dramaturgo Plínio Marcos tem início em 1959, quando Barrela teve uma única apresentação no Festival Nacional de Teatros de Estudantes, realizada em Santos, e ficou fora dos palcos por causa da estupidez da censura, só voltando a ser encenada vinte anos depois, em 1980. Abajur lilás, escrita em 1969, teve o mesmo destino e só foi liberada pela censura também em 1980. Plínio Marcos reflete sobre a proibição de Barrela na crônica “Na rua alguém me abraça: o censor da peça que escrevi” e expõe, por meio de conjecturas, as consequências da censura que seus textos sofreram:
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2
Na crônica “Alegria é isso”, publicada no jornal Última hora, Plínio Marcos escreve sobre sua prisão, afirmando que “as autoridades não queriam de jeito nenhum deixar o meu recado ser escancarado no palco do Coliseu” (apud Contreras: 2002, p.116).
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1
Sábato Magaldi (1997), em Panorama do teatro brasileiro, admite que, “se o dramaturgo é o autor do texto, o encenador é o autor do espetáculo” e que há, portanto, o dramaturgia da encenação. Aqui, admito a existência da dramaturgia fílmica, uma vez que o roteirista e o diretor são autores da versão fílmica.
Cf.: “A Navalha na carne dos burgueses”, artigo de João Apolinário, publicado no jornal Última Hora e disponível no site oficial de Plínio Marcos: <http://www.pliniomarcos. com>. A peça Navalha na carne estreou no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo, com Ruthnéia de Moraes, Paulo Villaça e Edgar Gurgel Aranha (substituído depois por Sérgio Mamberti), direção de Jairo Arco e Flexa. E em outubro de 1967, estreia no Teatro Maison, no Rio de Janeiro, com Tônia Carrero, Nélson Xavier e Emiliano Queiroz, direção de Fauzi Arap.
4
Cf.: A crônica foi veiculada no dia 7 de outubro de 1967 no Jornal do Brasil, retomada em Lispector (1984).
A censura, nos anos seguintes, proíbe seus textos e o persegue. O episódio da prisão2 de Plínio Marcos causa grande impacto e marca a apresentação de Dois perdidos numa noite suja, realizada no palco do Coliseu, em Santos, no ano de 1966. Mas ainda maior foi o reconhecimento de público e da crítica especializada, como o de Alberto D’Adversa que, entre outros, a considerou a mais inquietante e viva desses últimos e anêmicos anos do teatro brasileiro. Sábato Magaldi elogiou, entre outros aspectos, a originalidade do dramaturgo. Em 1967, a crítica é convidada a assistir, no apartamento de Cacilda Becker e Walmor Chagas, a Navalha na carne,3 censurada por colocar no palco, em estado bruto, três personagens regidas pela violência, impulsionadas pela agressão e submetidas à condições de miserabilidade e marginalidade. Nesse mesmo ano, foi encenada Quando as máquinas param e, no ano seguinte, Homens de papel. Setores conservadores da sociedade e da elite se colocaram contrários ao uso do palavrão em cena; enquanto outros, como Clarice Lispector (1984), saiu na defesa “dos palavrões no teatro”,4 em crônica publicada Jornal do Brasil, e elogiou a “alta qualidade” da peça. A defesa e o elogio da já consagrada escritora na época se somaram às palavras de críticos teatrais, como Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, Bárbara Heliodora e Alberto D’Aversa, que reconheciam, desde Barrela ou Dois perdidos numa noite suja, a qualidade e a originalidade dos textos teatrais de Plínio Marcos. A partir de então, as peças de Plínio Marcos, além de montagens teatrais, passam a ser transpostas para o cinema: Navalha na carne foi adaptada em 1969, contando no elenco com a atriz Glauce Rocha e os atores Jece Valadão,
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Emiliano Queirós e Carlos Kroeber, sob a direção de Braz Chediak, que, em 1970, dirige e assina o roteiro de Dois perdidos num noite suja junto com os atores Emiliano Queirós e Nelson Xavier. Em 1977, com o título de Barra pesada, Querô ganha as telas de cinema, em filme dirigido por Reginaldo Farias. Nos fim da década de 1970, o processo de abertura propiciou um clima mais favorável à liberdade de criação e de expressão: é publicada a primeira edição de Dois perdidos numa noite suja e a segunda de Navalha na carne, mas é bom lembrar que a primeira, em 1968, foi confiscada pelo regime militar. As duas peças também ganham novas versões fílmicas: Navalha na carne, dirigida por Neville D’Almeida, em 1997; Dois perdidos numa noite suja, por José Joffily, em 2002; e, em 2006, Querô volta aos cinemas sob a direção de Carlos Cortez. Barrela, que não havia sido adaptada, é levada aos cinemas em 1990, com o título Barrela – Escola de crimes, com direção de Marco Antonio Cury, e o curta-metragem Abajur lilás, em 2000, é uma livre adaptação da peça homônima com inserções documentais sobre a prostituição no Brasil.5 Nota-se, portanto, o interesse de cineastas, em diferentes décadas, pela transposição dos textos teatrais de Plínio Marcos para o cinema, a ponto de Dois perdidos numa noite suja, Navalha na carne e Querô já somarem duas versões cinematográficas, que suscitaram comparações entre o texto base e a respectiva adaptação e até entre as transposições realizadas. As críticas e os cotejamentos apontam pontos favoráveis e desfavoráveis, elogiam alguns aspectos e desabonam outros; afinal, adaptações sempre geram polêmicas e não seria diferente quando se trata das transposições fílmicas das peças escritas por um dramaturgo disposto a transformar e revolucionar o contexto teatral e social de sua época. Esses mesmos objetivos norteiam as adaptações que devem, ao mesmo tempo, adequá-las ao novo contexto, mas sempre dispostas a manter um fundo dialógico com o texto base:
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O contexto que enquadra lapida os contornos do discurso de outrem como o cinzel do escultor. [...] O discurso do autor representa e enquadra o discurso de outrem, cria uma perspectiva para ele, distribui suas sombras e suas luzes, cria uma situação e todas as condições para sua ressonâncias, enfim, penetra nele de dentro, introduz nele seus acentos e suas expressões, cria para ele um fundo dialógico. (Bakhtin, 1998, p.156)
Dramaturgia fílmica: polêmicas e soluções
5
No site oficial de Plínio Marcos encontram-se as fichas técnicas das adaptações fílmicas citadas. 6
Trato dessas questões no livro Clarice em cena – as relações entre Clarice Lispector e o teatro (Gomes, 2007), uma vez que meu objeto de estudo foram, justamente, as adaptações dos textos clariceanos para o teatro.
7
Além do ensaio de Ismail Xavier (2003), há outros que tratam dos diálogos entre literatura, cinema e televisão.
São inerentes às adaptações os diálogos entre o texto base e sua respectiva versão cinematográfica e esses geram discussões polêmicas e até divergentes pontos de vista. Um considerável número de pesquisas trata dessas polêmicas geradas pelas adaptações cinematográficas, teatrais e televisivas, e elas destacam pontos convergentes e outros divergentes sobre, por exemplo, a fidelidade ao texto base e a possibilidade de se comparar ou não livros que ganham suportes distintos – o palco, a televisão e/ou a tela de cinema. O próprio termo “adaptação” é negado por alguns estudiosos, os quais entendem que o termo pode ser entendido como facilitação e/ou modernização do texto literário e preferem utilizar “transposição”, “transmutação” e “transcriação”.6 Pairam dúvidas sobre o melhor termo a ser utilizado, e essas dúvidas podem ser verificados quando se observa que, nos créditos dos filmes, temos ora “adaptação”, ora “adaptação livre”, ora “inspirado em”, ora “baseado em” etc. A escolha de um desses termos sugere, de certa forma, a intenção do roteirista e/ou diretor em dizer algo sobre os mecanismos e procedimentos adotados na transposição teatral ou fílmica. Em ensaio sobre versões cinematográficas de peças teatrais de Nelson Rodrigues,7 Ismail Xavier (2003, p. 62) discorre sobre questões relacionadas às adaptações de textos literários para o cinema e apresenta as divergências mais comuns quando o assunto são essas transposições e conclui que o lema deve ser “ao cineasta o que é do cineasta, ao escritor o que é do escritor”.
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De fato, devemos considerar a diversidade linguística, as diferentes formas de expressão e, às vezes, até divergentes entre os suportes utilizados: o teatro ou o cinema. A partir dessas diversidades e diferenças, identificar as contribuições específicas de cada suporte e analisá-las. Entretanto, há aspectos comuns e uma série de aproximações formais entre o teatro e o cinema: formalmente, pode-se dizer que, em ambos, geralmente, há a ausência da figura do narrador, um enredo que se constroi a partir das falas entre as personagens e cenários/ambientes que são fornecidos ao espectador e não descritos, ou seja, são pontos de contato e especificidades que devem ser consideradas quando se adentra o campo dos estudos comparativos. Ao tratar das diversas alterações metodológicas e da ampliação dos campos de investigação dos estudos literários comparados e interartísticos, Tânia Franco Carvalhal (1991, p.14-15) nos chama a atenção para outros aspectos e outras relações: Paralelamente aos fatos dominantes em determinado período, há dados da formação de cada autor e de interesses por ele manifestos que nos permite caminhar com segurança nesse terreno das inter-relações artísticas. [...] São essas “transposições” que nos possibilitam estudos de ressonâncias de uma arte sobre outra, a par daqueles que têm por objeto as obras onde duas artes se conjugam ou sem encontram: a ópera, o lied, etc. Sem dúvida o estudo e a descrição dos elementos comuns às duas artes é indispensável nesse tipo de investigação porque ele envolve outro tipo de pesquisa, essencialmente, estética, que procura articular, no esquema geral das artes, as posições respectivas das formas postas em confronto.
Colocadas em confronto, as peças teatrais de Plínio Marcos e as respectivas versões cinematográficas revelam as diferentes condições sociais e políticas em que foram realizadas, dizem algo sobre formação e interesses do dramaturgo e dos adaptadores e, às vezes, as versões fílmicas acrescentam novos conteúdos temáticos e (re)criam representações de grupos marginalizados da sociedade brasi-
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leira. São a essas especificidades e a esses acréscimos que vou me ater na análise do filme de José Joffily, 2 perdidos numa noite suja.
O texto base como um sistema proponente A peça Dois perdidos numa noite suja é dividida em dois atos: o primeiro tem quatro quadros e a cada quadro adensa-se a tensão entre Paco e Tonho, personagens marginalizados socialmente, que dividem um quarto de hospedagem de última categoria; nesse ambiente opressivo, degradante e realista, a violência surge como a única forma de sobrevivência, por meio de um jogo de poder que se estabelece entre os dois: PACO: Você tem um sapato velho, todo jogado-fora, e inveja o meu, bacana paca. TONHO: Eu, não. PACO: Invejoso. TONHO: Cala essa boca! PACO: De manhã, quando saio rápido com o meu sapato novo e você demora aí forrando sua droga com jornal velho, deve ficar cheio de bronca. TONHO: Palhaço! PACO: (gargalha) Por isso é que você é azedo. Coitadinho! Deve ficar uma vara quando pisa num cigarro aceso. (Paco representa uma pantomima) Lá vem o trouxão, todo cheio de panca. (Ainda com pose) Daí, um cara joga a bica de cigarro, o trouxão não vê e pisa em cima. O sapato do cavalão é furado, ele queima o pé e cai da panca. (Paco começa a rir e cai na cama gargalhando) TONHO: (Bravo) Chega! (Paco aponta a cara de Tonho e estoura de tanto rir) TONHO: Pára com isso, Paco! (Paco continua a rir. Tonho pula sobre ele e, com fúria, dá violentos socos na cara de Paco. Este ainda ri. Depois, perde as forças e pára; Tonho continua batendo. Por fim, pára, cansado, ofegante, volta para sua cama. Deita-se. Depois de algum tempo levanta e cabeça e, vendo que Paco não move, demonstra preocupação. Aproxima-se de Paco e o sacode.) (Marcos, 2003, p.71-2)
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O poder de Paco está na sua capacidade de perceber e explorar a fraqueza do outro, ou seja, sua violência está nas palavras, no jogo ardiloso para o qual sempre empurra e encurrala Tonho, manipulando-o sadicamente. Em passagens como a destacada, nota-se que os atos violentos de Tonho são expressos fisicamente, pois, intimamente, ele é psicologicamente frágil e não tem capacidade de se perceber como peça nas mãos de Paco. Esse não fala de sua origem, exerce sua maldade e sua ironia, adensadas com o roubo de sua flauta, afinal “ganhava grana com a flauta” de onde tirava “tudo quanto é chorinho”. Tonho sonha com uma vida digna, repete insistentemente que estudou e acredita que vai arrumar um emprego, mas para isso “só precisa de um sapato”. O jogo opressivo se estabelece e novos elementos surgem a cada quadro do primeiro ato. Paco possui o “pisante” que Tonho precisa para conseguir emprego e essa condição favorável é utilizada para humilhar ainda mais o parceiro. Na medida em que as fraquezas de Tonho se evidenciam, Paco vai se aproveitando desses novos elementos. No segundo quadro, invoca a figura do Negrão, “que é fogo numa briga” (ibidem, p.77), para amedrontar ainda mais o parceiro, tratado irônica e sarcasticamente como “Boneca do negrão” (ibidem, p.85). O tom violento, sarcástico, irônico de Paco oprime Tonho durante todo o tempo até que, de repente, há uma inversão e Tonho, com um revólver na mão, assume as características do outro e o fuzila. Os diálogos concisos dão tensão ao conflito estabelecido e ao leitor/espectador são fornecidos poucos dados sobre os protagonistas e, no texto, não há rubricas ou indicações detalhadas sobre as personagens, que determinem, por exemplo, a idade ou a cor das personagens.8 Sabe-se, porém, que Paco intimida Tonho com a história de um certo Negrão, que trabalha no mercado onde “tem muitos negrões”. A partir desses comentários, pode-se intuir que Paco e Tonho são brancos, mas nada impede, a título de exemplificação, que um diretor escolha um ator negro para interpretar um deles.9 No entanto, características psico-
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Em pesquisa realizada pelo Grupo de estudos em Dramaturgia e crítica teatral, com o apoio do CNPq e coordenado por mim, levantamos uma série de dados sobre peças teatrais contemporâneas publicadas, e ao iniciarmos estudos sobre personagens nessa dramaturgia, identificamos algumas peculiaridades do texto dramatúrgico, como a quase ausência de descrição de alguns aspectos físicos das personagens – em poucas peças teatrais o dramaturgo define a raça da personagem. A ausência de descrições deixa em aberto ao diretor/ encenador escolher, por exemplo, interprete com diferentes fenótipos.
9 No filme Barrela (1990), Bahia, personagem da peça, é interpretado pelo ator negro Raimundo Paixão e, no texto teatral, não há nenhum determinação da raça da personagem.
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lógicas diferentes são evidentes e é justamente essa habilidade, entre outras, de criar personagens tão distintas que faz de Plínio Marcos um grande dramaturgo. Na rubrica inicial temos alguns detalhes sobre Paco por meio dos quais se tem um esboço de algumas de suas características psicológicas, que se completa com as atitudes da própria personagem e/ou dos comentários a respeito dela: Paco toca gaita, mas muito melhor flauta de onde tirava certos chorinhos, orgulha-se de calçar um lindo par de sapatos em desacordo com sua roupa, é irônico, sádico, nervoso, provocador, estúpido, não tem origem, não fala sobre seu passado nem de seus familiares, é revoltado e violento e se comporta quase até o fim da peça como o opressor, aquele que detém e se envaidece do poder que exerce sobre o outro. Paco não se revela, quase sempre define o outro, “você é muito fresco” (ibidem, p.76), “você é um cagão” (ibidem, p.79), “você é chato paca” (ibidem, p.97), “é bicha e tudo” (ibidem, p.99) e quando se define é por meio de negações: “Homem macho não tem medo de homem” (ibidem, p.78), “eu não tenho medo de negrão nenhum”, “Nunca ninguém folgou com minha cara” (ibidem, p.85). Algumas dessas descrições, atitudes e silêncios de Paco, permite-nos intuir certo ressentimento que, justifica, inclusive, sua revolta, frieza e afirmações secas do tipo “quem tem amigo é puta de zona” (ibidem, p.75). Sobre Tonho não há descrições na rubrica inicial e, ao adentrar a cena como pede o texto, ele afirma estar incomodado com o barulho que a gaita faz e fica nervoso, pois quer dormir. Tonho, no entanto, orgulha-se de ter estudado e de saber datilografia, sonha em encontrar um trabalho digno, mas não tem um bom sapato para procurar emprego, fala de seus parentes, é ironizado por tratálos como Papai e Mamãe. A partir das falas de Paco é que podemos compor boa parte das características de Tonho, pois, além de defini-lo o tempo todo como “fresco”, “babaca”, “um cagão”, aquele o amedronta e o humilha, tratando-o de Boneca do Negrão. Tonho se comporta de
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modo amedontrado, tímido, frágil, até que, no final, há uma inversão e ele adquire as características de Paco. A partir dessas personagens, Plínio transpõe para os palcos o submundo das grandes cidades brasileiras e, a partir desta ambientação realista, expõe as leis (ou a falta delas), que imperam e regem os marginalizados e excluídos da sociedade, que ainda são encontrados debaixo das pontes e nos semáforos das grandes cidades. Sábato Magaldi (1998, p.216) recorre ao próprio dramaturgo para juntos comentarem sobre aquilo que torna Dois perdidos atual:
onda”, mas é possível, até mesmo, acompanhar o filme com o texto teatral nas mãos. A utilização na íntegra do texto, a interpretação da atriz Glauce Rocha, dos atores Jece Valadão, Emiliano Queirós e Carlos Kroeber e direção de Braz Chediak, somam-se em uma versão em que as técnicas e os mecanismos cinematográficos adensam o universo infernal das três personagens de Navalha na carne. No ano seguinte, além de novamente dirigir, Braz Chediak assina o roteiro de Dois perdidos num noite suja junto com os atores Emiliano Queirós e Nelson Xavier. Sem fazer concessões ao entretenimento fácil, novamente, o filme mantém as características que redundaram na bem-sucedida versão de Navalha na carne: o texto teatral é mantido quase que na íntegra, ou seja, o diálogo virulento, enxuto e seco entre Paco e Tonho está presente durante todo o filme, que centra sua ação em um quarto de hospedaria no Rio de Janeiro, divergindo da peça, que se passa em Santos.
Racionalizando, hoje em dia sua criação, Plínio acredita que tenha introduzido nela aspectos sociais, que não perderam a atualidade. Basicamente está em jogo o problema da migração: os conflitos se aguçam, quando alguém se desvincula de sua cultura. [...] Segundo Plínio, Dois perdidos contém um elemento novo – a consciência de que não existe apenas uma cultura. De fato, há a erudita, a de massa, a popularesca e a popular. Cada homem fala em nome de sua própria cultura, não se entendendo com as demais. Tonho e Paco têm, respectivamente, os rudimentos da erudita e da popular. [...] Para Plínio, a tentativa no sistema capitalista, baseado na propriedade privada dos bens sociais, é sempre no sentido massificador e não de respeitar as individualidades, tornando-se cada vez mais difícil a comunicação com o próximo. Por isso Dois perdidos se mantém atualíssima.
Obviamente, a atualidade da peça foi um dos fatores que motivaram as duas adaptações para o cinema,10 acrescentando-se que a abertura da obra às possibilidades de (re)leituras seria um outro motivo, uma vez que ela se configura como um sistema proponente (nomenclatura proposta por este autor). Em 1970, o diretor Braz Chediak adaptou Navalha na carne, mantendo quase que na íntegra o texto teatral de Plínio Marcos. No filme, temos, por exemplo, a substituição do verbo “trepar” por “deitar” ou “ficar”; algumas gírias são atualizadas como em “Sai dessa dança” por “Sai dessa
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Esse interesse em filmar textos teatrais não se restringe às peças de Plínio Marcos. A adaptação cinematográfica dirigida por Anselmo Duarte, da peça teatral de Dias Gomes, O pagador de promessa, ganhou Palma de Ouro em Cannes depois de menos de dois anos de sua estreia nos palcos em 1960; em 1958, o Arena estreou a peça Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, e, 22 anos depois, o filme dirigido por Leon Hirszman passa a colecionar vários prêmios; o espetáculo musical Ópera do malandro, de Chico Buarque, e a versão cinematográfica de Ruy Castro em 1985. Recentemente, várias peças estrearam nos cinemas: A partilha, Ó pai ó, Trair e coçar é só começar, Cócegas.
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A parceira entre José Joffily e Paulo Halm já havia sido premiada com Quem matou Pixote? (1996), filme em que Paulo Halm, além de roteirista, atuou como diretor assistente e produtor executivo.
José Joffily dirige a segunda adaptação de Dois perdidos numa noite suja em 2002, com roteiro de Paulo Halm.11 Diferente da primeira adaptação, à peça teatral são acrescidos elementos temáticos, diálogos, situações, fatos e representações sociais dominantes na contemporaneidade. O confronto entre o texto base e o filme, tendo em vista esses acréscimos, é uma forma de analisar o texto teatral, as leituras e interpretações que o roteirista e o diretor fizeram do texto base, entendendo-o não como um sistema fechado, mas, pelo contrário, aberto e proponente, ou seja, minha intenção é observar o quanto o texto teatral de Plínio Marcos, como sistema proponente que permitiu alterações, adequações, junções, apropriações e analisar como a transmutação fílmica se apropriou dessas propostas. O que se pode afirmar, antecipadamente, é que o diretor e o roteirista souberam vislumbrar as propostas que estão não só nas entrelinhas, mas também explicitadas na
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superfície do texto teatral e souberam “trair bastante o Plínio Marcos, para respeitá-lo”, como afirma Paulo Halm no makinf-off presente na versão em DVD do filme. O ato da migração – que é de uma região para outra na peça, interior de São Paulo para Santos –, no filme, é a de um país para outro, do Brasil para os Estados Unidos. Assim, a crítica social se atualiza e se acentua, pois o problema deixa de ser apenas regional e passa ser o de uma nação que não oferece condições dignas de sobrevivência e exporta gente, ou seja, um ato que deveria ser voluntário, torna-se necessário e, às vezes, única alternativa quando se procura melhorar as condições de vida. Assim, o ato de migrar ganha uma carga de atualidade e coloca em primeiro plano as transformações que ocorreram nas relações de trabalho no Brasil: Tonho busca novas perspectivas de sobrevivência em Nova York, perseguindo o propagado sonho americano. Se os problemas se aguçam, como afirma Sábato Magaldi, quando alguém se desvincula de sua cultura regional, esse aguçamento torna-se, às vezes, crítico, quando se transfere para outro país. E, no filme, o sofrimento de Tonho adensa-se, pois, além dos problemas culturais e do sentimento de fracasso já presentes no texto teatral, ele vive a angústia de estar ilegal, ser perseguido e conviver com o medo de ser deportado. Na peça, Paco intimida e exerce seu sadismo sobre Tonho com a história de que um temido Negrão, que mandou avisá-lo “que vai dar tanta porrada, que capaz de te apagar” (Marcos, 2003, p.76). Tonho entra no jogo de Paco e expõe suas fraquezas e medos e o Negrão, personagem que não aparece em cena, agiganta-se e ganha ar fantasmagórico e diabólico, afinal, segundo o Paco, “o negão é fogo numa briga” (ibidem, p.77), “o negrão é espeto. Briga paca” (ibidem), e Tonho se reduz, nas falas de Paco, a uma “Boneca do Negão”. Ao se deixar levar pelo jogo estabelecido, essa figura tenebrosa e fantasmagórica passa a persegui-lo, a ser uma ameaça, transformando-se numa possibilidade até de morte. Em 2 perdidos numa noite suja, não é
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por intermédio desse “Negão” que Paco passa a exercer poder sobre Tonho, pois o Negão ganha outros correspondentes: presidiários negros, a Polícia Federal e a própria prisão. Nas primeiras cenas do filme, em que Tonho está na prisão, há uma sequência de planos separados por cortes bruscos: foco em Tonho que faz exercícios em uma academia – corte – Tonho sentado sozinho no refeitório enquanto é observado por outros presidiários – corte – Tonho tomando banho – corte – câmera acompanha os passos de dois homens que se aproximam – corte – foco no rosto assustado de Tonho – corte – plano-detalhe numa mão negra que fecha o registro do chuveiro – corte – planodetalhe no chuveiro que pinga as últimas gotas – corte – por fusão plano em Tonho no chão sozinho em postura embrionária – corte – câmera passeia pelo corpo de Tonho mostrando hematomas – corte – plano detalhe em Tonho, sentado e escrevendo uma carta para sua mãe, enquanto o espectador ouve o conteúdo desta em voz over. Ruídos e uma sonoplastia saturam a tensão e o clima pressentidos. Essa primeira sequência na prisão fornece várias informações sobre Tonho, que também estão na peça, afinal ele se sente sozinho, é tímido, medroso, mas acrescenta o fato de ele já ter sido preso e ter sido estuprado por presidiários. As possibilidades de Paco exercer seu sadismo sobre Tonho, portanto, são facilitados por um passado que sempre se presentifica na mente de Tonho e que Paco faz, sadicamente, questão de lembrar. Afinal, Tonho aprendeu a ter medo, foi perseguido, violado na sua liberdade e violentado. A onipotente presença do Negrão, na peça, é construída por Paco; no filme, a partir desse passado e do presente sempre ameaçador: estar ilegal, ser descoberto pela “Migra”, ser preso novamente e deportado. Tonho não é abordado por policiais, mas vê homens que adentram o local onde mora, assiste Paco conversando com eles e o mesmo afirma que são mesmo a “Migra” que está atrás dele. Ao compor a dramaturgia fílmica, Paulo Halm e José Joffily parecem seguir o que Peter Brook (2002, p.9) assevera em Porta aberta:
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O ator e o diretor têm que seguir o mesmo processo do autor, ou seja, saber que cada palavra, por mais ingênua que pareça, não é inocente. Contém em si mesma, bem como no silêncio que vem antes e depois, toda uma complexidade oculta de energias entre as personagens.
E Plínio Marcos deixa a personagem Paco em uma certa obscuridade e oculta descrições a respeito dele. Nas rubricas, tanto nas falas de Tonho quanto nas de Paco, há muito pouco sobre esse. Como apontamos anteriormente, não há informações sobre quem ele é, de onde veio, mas há indicações de seu orgulho e vaidade quando, em rubrica, o dramaturgo informa que ele calça “um lindo par de sapatos”. Além de tocar gaita, ele toca flauta muito melhor, ou seja, atrás de toda uma postura sádica e fria, há interesse pela música, pelo chorinho e, portanto, certa sensibilidade. O ocultamento de alguns traços, as descrições e atitudes que desvelam um pouco das características de Paco levaram os adaptadores a transformar Paco na homossexual Rita.12 Entre as transformações, alterações e adequações contextuais realizadas nessa adaptação para o cinema, certamente, a que causou mais polêmica foi sem dúvida essa transformação. Apesar do tema da homossexualidade masculina estar o tempo todo presente na peça, ele é tratado de forma preconceituosa e estereotipada, pois a condição homossexual de Tonho é uma possibilidade e serve para que Paco o ironize e o agrida. Paco afirma que Tonho é bicha, veado, porque demonstra certa sensibilidade, fragilidade, trata os pais como Papai e Mamãe e, assim, Paco conclui que seu parceiro é a “Boneca do Negão”. No filme, o modo de apresentar e discutir a homossexualidade masculina sofre poucas alterações, mas se adensa, uma vez que cenas sugerem que Tonho tenha sido violentado na prisão. O tema do lesbianismo, entretanto, inclui um novo olhar sobre a temática da homossexualidade presente no texto base, afinal Paco assume e se orgulha de sua opção sexual, a ponto de recusar que o tratem pelo nome de batismo. Os estereótipos continuam presentes, mas, ao lado de
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Débora Falabella interpreta Paco, e Roberto Bontempo, Tonho. Pelo seu desempenho, a jovem atriz global ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Brasília e no Grande Prêmio Cinema Brasil. O filme acumula outros prêmios, como o de melhor direção, melhor trilha sonora em diferentes festivais. Outras informações podem ser encontradas no site: <http:// www.doisperdidos.com.br/ doisperdidos/pub/index.htm>.
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um Tonho que se sente humilhado, temos Paco que se orgulha. No filme, Paco não toca flauta, ele compõe músicas, canta e sonha em ser uma estrela do Rap. Compra um “pisante novo” digno de um pop star. E entre os dois se estabelece o paralelo conflituoso entre desejos distintos: Tonho sonha em voltar para o Brasil; Paco, em ser grande estrela. Quando comparados, os desejos de cada um reforçam a humildade de Tonho e a vaidade e prepotência de Paco, e essas diferenças acentuam a tensão conflituosa e o jogo entre o opressor e oprimido, tanto na peça como em 2 perdidos numa noite suja. Presente no texto base, esse confronto e esse jogo se mantêm e ganham outros elementos no filme: Paco sabe inglês muito bem, é um artista, consegue juntar dinheiro se prostituindo, não foi preso, não está na condicional, cheira cocaína, não foge da “Migra”, seduz Paco e se orgulha de sua condição sexual; enquanto Tonho não sabe inglês muito bem, não tem grandes ambições, está ilegal, já foi preso, é contra drogas, tem medo da Migra e é, a todo tempo, tratado pejorativamente de “viado”. O embate entre posturas tão contraditórias cresce com uma força violenta e opressiva, que resulta num desfecho inesperado e surpreendente como na peça, que não mostra o assalto. No início do segundo ato, tem-se a seguinte rubrica: (Pano abre, vão entrando Tonho e Paco. O primeiro traz um par de sapatos na mãe e, nos bolsos as bugigangas roubadas. Está bastante nervoso. Paco traz um porrete na mão e está alegre)
No filme a rubrica é desdobrada em várias cenas, pois eles assaltam um dos clientes de Paco, uma “bicha velha”. Paco movido e cegado pela ação violenta, mata o velho (na peça, um casal de namorados), enquanto Tonho, nervoso, discorda das atitudes violentas de Paco e do desfecho trágico. No filme, os dois também adentram o quarto, distribuem os objetos e o dinheiro roubados no chão para dividir a “moamba” que conseguiram, como na peça:
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PACO: Metade da grana pra cada um. Relógio, isqueiro, caneta e carteira, pra mim. Pulseira, anel, broche e cinta pra você. Topa? TONHO: O brinco pra você, o sapato pra mim. PACO: Não! O brinco pra você, outro pra mim. Um é de sapato pra você, outro pra mim. TONHO: O sapato é meu. PACO: Um pé pra cada um. TONHO: Não seja burro. O que é que eu vou fazer com um pé de sapato. PACO: Não sei, nem quero saber. TONHO: O sapato é meu. Eu já falei mais de mil vezes. Eu só entrei nesse assalto por causa dele e vou ficar com ele. PACO: Então o resto é meu. TONHO: O resto meio a meio. PACO: Aqui pra você! (Faz gesto) Ninguém me leva no tapa. (pausa) TONHO: Está bem, Paco. Fique com tudo. Você me levou no bico, mas não faz mal. (Marcos, 2003, p.121)
e sai com boa parte do que roubaram enquanto Paco, nu, é desnudado de seu saber, do seu orgulho e da sua sedução. Enquanto na peça, Tonho fuzila Paco e nele se converte, afirmando, aos gritos, que é mau e se autodenominando Tonho maluco; no filme, Paco fica despido não só de suas roupas, mas também de sua arrogância e de seu orgulho, e expõe, enfim, sua fragilidade e fica encurralado enquanto Tonho ganha as ruas. A adaptação fílmica cumpre o papel de trair o texto base, mas o respeita, especialmente, porque mantém a ideia original de Plínio Marcos de escarrar, como voz legítima, a degradante condição social dos marginalizados e denunciar as consequências de uma sociedade excludente.
Depois de abdicar de tudo, Tonho descobre que o sapato não lhe serve, ou seja, não lhe sobrou nem mesmo a possibilidade de arrumar um emprego, pois um belo par de sapatos representa, para ele, trabalho. Por sua vez, o sentido de trabalho, ainda que esteja vinculado à sobrevivência individual e familiar, ultrapassou as fronteiras da necessidade material, e passou a significar um meio pelo qual as pessoas se expressam e afirmam sua identidade. Tonho, portanto, desespera-se e esse desespero é aguçado pelas ironias de Paco. No filme, Paco quer levar a melhor, argumentando que foi ele que “apagou” o cara e por isso conseguiram o dinheiro. Paco usa o tempo todo da fragilidade de Tonho e não quer deixá-lo nem mesmo com dinheiro suficiente para voltar ao Brasil e o ameaça, firmando que pode lhe atribuir o assassinato, afinal ele já tem ficha na polícia. O par de sapatos é substituído, no filme, pelos objetos e pelo dinheiro, ou seja, pela posse do capital, meio de promover socialização. Pressionado e sem saída, Tonho pega sua arma, vira o jogo, uma vez que passa a ameaçar e humilhar Paco
BONASSI, Fernando. Plínio Marcos está morto. Viva Plínio Marcos! Rodapé – Crítica de Literatura Brasileira Contemporânea, São Paulo, n.1, p.179-81, 2001.
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RESUMO:
Este estudo procurou comparar o estilo de Clarice Lispector em relação a padrões estilísticos distintivos e preferenciais de seus tradutores nos seguintes pares de obras: A descoberta do mundo/Discovering the world, traduzida por Giovanni Pontiero; Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres/An apprenticeship or the book of delights, traduzida por Richard Mazzara e Lorri Parris; e Água viva/The stream of life, traduzida por Elizabeth Lowe e Earl Fitz. Os padrões estilísticos encontrados nas traduções indicam que Mazzara e Parris mostram escolhas linguísticas mais convencionais; Lowe e Fitz revelam uma tendência para o uso de padrões moderados de densidade lexical; e Pontiero apresenta mais reiterações enfáticas e soluções para preservar o ritmo idiossincrático e padrões sutis de sons da autora.
MARCOS, Plínio. Melhor teatro – Plínio Marcos. Seleção e Prefácio de Ilka Marinho Zanotto. São Paulo: Global, 2003. (Coleção Melhor Teatro) MARTINS, Gilberto. De pisantes e pisados – Representações da falta. Percursos intertextuais e interdiscursivos com Alberto Moraiva e Plínio Marcos. In: CAIRO, Luiz Roberto et al. (Org.) Nas malhas da narratividade: ensaios sobre literatura, história, teatro e cinema. Assis: FCL-Unesp Publicações, 2007. VIEIRA, Paulo. Plínio Marcos: a flor e o mal. Petrópolis: Firmo, 1994. . A vingança do maldito. Revista Cultura Vozes, Petrópolis, ano 89, n.4, p.112-5, jul.-ago. 1995. XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Senac, Itaú Cultural, 2003. p 61-90.
PALAVRAS-CHAVE:
Tradução literária, literatura brasileira contemporânea traduzida, estilo clariciano, estilo do tradutor.
ABSTRACT:
* Doutora em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo (USP), professora adjunta da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de São José do Rio Preto (SP).
Our investigation aimed at comparing Lispector’s style in relation to her translators’ distinctive and recurring stylistic patterns in three pair of works: A descoberta do mundo/ Discovering the world, translated by Giovanni Pontiero; Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres/An apprenticeship or the book of delights, translated by Richard Mazzara and Lorri Parris; and Água viva/The stream of life, translated by Elizabeth Lowe and Earl Fitz. The stylistic patterns found in the translations indicate that Mazzara and Parris show more conventional linguistic choices; Lowe and Fitz reveal a tendency to use moderate patterns of lexical density; and Pontiero presents higher use of emphatic repetitions and translating options trying to maintain the author’s idiosyncratic rhythm and subtle sound patterns.
KEYWORDS:
Literary translation, translated contemporary Brazilian literature, Lispector’s style, translator’s style.
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Introdução Diferentemente do que tradicionalmente tem sido desenvolvido por grande parte das pesquisas constantes nas áreas da Literatura Comparada e dos Estudos da Tradução, as quais buscam verificar se o estilo do autor ou autora foi adequadamente transposto na tradução, este estudo procurou colocar o foco sobre a questão de um estilo individual por parte dos tradutores literários selecionados para análise, a fim de investigar se mostrariam evidências do uso de padrões estilísticos próprios, distintivos e recorrentes. Tais preferências estariam, de certa forma, sendo empregadas independentemente do estilo do autor ou autora, da obra original, dos sistemas linguísticos específicos e, possivelmente, das normas de um dado socioleto (Baker 1996, 2000). Dentro dessa perspectiva, o presente trabalho procura comparar o estilo de Clarice Lispector em relação ao uso de padrões estilísticos próprios e preferenciais de um tradutor literário e de duas equipes com dois tradutores literários. Com esse propósito, foi criado um corpus de estudo do tipo paralelo, contendo três subcorpora com as obras compiladas na íntegra. O primeiro é constituído por A descoberta do mundo (DM) e Discovering the world (DW), traduzida por Giovanni Pontiero; o segundo é formado por Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (ALP) e An apprenticeship or the book of delights (ABD), traduzida por Richard Mazzara e Lorri Parris; e o terceiro é constituído por Água viva (AV) e The stream of life (SL), traduzida por Elizabeth Lowe e Earl Fitz. No que concerne ao ato tradutório, o “texto literário” é visto como valorizando os aspectos estético-estilísticos, de modo que a importância atribuída à linguagem empregada pelo autor é comparável à importância dada ao conteúdo do texto (Aubert, 1991, p.66). Desse modo, a tradução de textos literários poderia ser considerada como tendente a exigir um paralelismo à forma original. Também na área da tradução, mesmo com teóricos da corren-
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te de pensamento de base textual e pós-estruturalista questionando a oposição entre tipos de textos (Arrojo, 1984, 1993; Rodrigues, 1990, 2000), a distinção entre a tradução literária e outros tipos de tradução mostra-se uma questão polêmica, porquanto constitui hábito arraigado diferenciar duas grandes categorias tradutórias, referentes à categoria da tradução literária e à da tradução não literária (Aubert, 1996). Subjacente às referências de tradução literária, tem-se a hipótese de Newmark (1981, 1982) de haver uma correlação estreita entre tipologia textual e tipologia tradutória, ou seja, a de que cada tipo de texto requer uma abordagem tradutória correspondente. Tendo instituído o princípio do efeito equivalente como sendo a linha mestra da tradução, Newmark (1982, p.132) vincula o método semântico ou comunicativo às funções da linguagem. Para a tradução literária, em virtude do predomínio da função expressiva, preconiza que o tradutor se valha da tradução semântica, pelo maior emprego da tradução literal, enfatizando o texto original e o uso pessoal que o escritor faz da linguagem, bem como a obrigatoriedade da tradução de neologismos e metáforas originais. Também Aubert (1996, p.8) corrobora a hipótese de que existe uma correlação entre tipos de texto e tipos de tradução; porém, destaca que essa correlação não se dá “em termos determinísticos ou automáticos”, uma vez que um dado texto a ser traduzido pode ter uma intenção tradutória diferente da do texto original. Caberá à tradução de textos literários, segundo o autor, ora uma prioridade à forma de partida (como, na escola alemã, com Schleiermacher), ora uma valorização da equivalência estética (como na tradição francesa das belles infidèles), ora uma opção do tradutor por uma posição intermediária entre essas duas oscilações. Ainda sobre a questão da tradução literária e do tradutor literário, podese tomar como apoio teórico a fundamentação fornecida por Berman (1971), a fim de levantar mais alguns dos seus traços distintivos. Apesar de nunca promulgada, Berman ressalta haver uma lei da “fidelidade” da tradução literária,
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a qual não implica uma literariedade primária, porquanto uma fidelidade à letra e à tecitura da obra admite uma variedade de formas sutis de transformação. A tradução literária pertence, segundo o teórico francês, ao campo da produção humana: as obras ocupam um espaço na cultura humana desde tempos imemoriais, e as obras literárias assemelham-se, condensam-se, articulam-se e manifestam o nosso ser-no-mundo. Conforme a visão de Goethe (apud Berman, 1971, p.9-15), ao migrarem, via tradução, de uma língua para outra, provocam mudanças na significação e na abrangência da obra original. Já consoante a concepção de Even-Zohar (1978, 2000) e de Toury (2000), passam a interagir com os demais sistemas de produção textual de uma determinada cultura de chegada.
Fundamentação teórica Ainda hoje, a conceituação de “estilo” não obteve um consenso geral por parte das disciplinas da crítica literária e da estilística. Também o mesmo ocorre quanto ao emprego de concepções de estilo para a tradução, porquanto as várias tentativas têm abordado as escolhas “boas” ou “más” feitas por determinados tradutores ou, mais frequentemente, têm prescrito regras para a seleção de estratégias tradutórias específicas a partir de tipos de texto ou registro. Esse fato reflete que, nos estudos literários, a noção de estilo está tradicionalmente associada quer a um dado escritor ou orador (exemplo: o estilo de Steinbeck, Guimarães Rosa, Clarice Lispector; Rui Barbosa, Joaquim Nabuco), quer a características estilísticas específicas de textos produzidos num dado período literário (exemplo: barroco, romantismo, modernismo). Em decorrência, os estudos da tradução herdaram dos estudos literários a valorização do original e a preocupação com o estilo do autor, sua individualidade e criatividade, mas somente para descrever como as características estilísticas do escritor poderiam elucidar o processo de tradução da sua obra. Subjacente a tais associações com a escritura original, caberia ao tradutor a
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[impossível] incumbência de não ter estilo próprio, e simplesmente reproduzir, da maneira a mais impessoal, o estilo do autor. Até recentemente, pouco se havia investigado sobre o estilo de determinado tradutor, ou grupo de tradutores, ou corpus de material traduzido que pertença a certo período literário. Somente nas últimas décadas que a presença do tradutor no texto ou, mais especificamente, de traços individuais que essa presença deixa no texto começou a receber certa atenção da literatura sobre tradução. Contudo, o enfoque tem-se ainda restringido: a) ou para a avaliação da qualidade das traduções; b) ou para a descrição de tendências gerais do texto traduzido em relação ao texto original, mas ignorando as idiossincrasias do tradutor; c) ou para a descrição da intervenção do tradutor apenas no tocante a acréscimos de material paratextual ou glossários. Dentre os modelos mais conhecidos, tem-se o de House (1997) que descreve o texto-fonte quanto a peculiaridades linguísticas (dimensão do usuário da língua) e peculiaridades situacionais (dimensão dos usos da língua), comparando o texto-fonte e o texto-meta quanto a aproximações relativas entre ambos. Todavia, consoante a afirmação de Baker (2000, p.242), esse modelo não fornece um tratamento sistemático da noção de estilo, porquanto o que permite descrever não seria tanto o estilo do textofonte ou do autor, e também não seria o estilo da tradução ou do tradutor, mas os pontos em que os dois textos divergem ao longo apenas das duas dimensões mencionadas. Nos últimos anos, alguns teóricos da tradução têm enfatizado a presença do tradutor; no entanto, não apresentam nenhuma demonstração dos traços efetivamente deixados nos textos traduzidos. Venuti (1992, 1995, 1998) recrimina a transparência como efeito ilusionístico da presença do autor que seria [supostamente] alcançada pelas estratégias da tradução “domesticadora” e advoga a visibilidade do tradutor por meio de estratégias de resistência da tradução “estrangeirizadora”, mas sem explicitar quais seriam as marcas de uma “fidelidade abusiva”. De
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modo análogo, Hermans (1996) claramente reconhece a voz do tradutor; porém, focaliza especialmente a “voz do outro” no que tange ao emprego autorreferencial de primeira pessoa nas notas do tradutor. No que concerne à tradução, a noção de estilo poderia incluir a escolha pelo tradutor de material a ser traduzido, a utilização consistente de estratégias tradutórias da parte de cada tradutor (incluindo o uso de prefácios, glossários, notas de rodapé etc.), e, sobretudo, o modo de expressão que é típico de um dado tradutor (mais do que simplesmente instâncias de intervenção aberta de material extratextual). Por seu turno, mesmo com as disciplinas da crítica literária, da estilística e dos estudos da tradução não tendo chegado a um consenso geral sobre a concepção de estilo, Munday (1997, p.117) explica que a estilística computacional (embora sendo ainda uma disciplina relativamente nova, e não existindo um arcabouço consolidado para estudos na área) parece já ter mais estabelecido o conceito básico de perfil estilístico apoiado em medidas estatísticas. No campo geral da estilística computacional, o conceito de estilo é visto como um fenômeno quantitativo, destacando-se as linhas de investigação desenvolvidas por Leech & Short (1981) sobre frequência e estilo, e por Biber & Finegan (1986) sobre análise de características múltiplas. Butler (1985), outro pesquisador importante nesse campo, descreve estudos que usam a estatística para observar aspectos estilísticos de determinados textos, autores e gêneros, e para examinar grandes quantidades de características linguísticas de textos individuais (incluindo a frequência e a extração de palavras mais comuns) numa tentativa de isolar o perfil estilístico ou “marca digital”, útil em casos de atribuição de autoria ou de determinação da cronologia dos textos. Contudo, Munday (1997, p.117) é de opinião de que “it should be possible to carry out a broad, yet systematic, stylistic profiling of corpora without resorting to overcomplex word statistics”.1
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Dado que o conceito de estilo tem-se mostrado ainda de difícil definição, este estudo sobre o estilo clariciano em relação aos respectivos tradutores representados nos corpora optou por fundamentar-se na noção fornecida por Baker (2000, p.245-6), que entende:
2
1
“deveria ser possível desenvolver um perfil estilístico amplo, além de sistemático, dos corpora sem ter de recorrer a estatísticas demasiadamente complexas de frequência de palavras”. As traduções são minhas.
“estilo como uma espécie de impressão digital que fica expressa [no texto traduzido] por uma variedade de características linguísticas [...] as quais estão provavelmente mais no domínio do que algumas vezes é chamado de ‘estilística forense’ que no da estilística literária (Leech e Short, 1981, p.14). Tradicionalmente, a estilística literária focaliza o que se assume serem escolhas linguísticas conscientes da parte do autor, porque os estilistas literários estão especialmente interessados na relação entre as características linguísticas e a função artística, em como um dado autor obtém certos efeitos artísticos. Por outro lado, a estilística forense tende a focalizar hábitos linguísticos razoavelmente sutis e moderados que estão bem acima do controle consciente do autor e que nós, como receptores, registramos, na maioria das vezes, de forma subliminar. Todavia, como ambos os ramos da estilística, estou interessada em padrões de escolha (quer essas escolhas sejam conscientes ou subconscientes) mais do que em escolhas individuais isoladas”.
style as a kind of thumb-print that is expressed in a range of linguistic features [...] which are probably more in the domain of what is sometimes called “forensic stylistics” than literary stylistic (Leech and Short, 1981, p.14). Traditionally, literary stylistics has focused on what are assumed to be conscious linguistic choices on the part of the writer, because literary stylisticians are ultimately interested in the relationship between linguistic features and artistic function, in how a given writer achieves certain artistic effects. Forensic stylistics, on the other hand, tends to focus on quite subtle, unobtrusive linguistic habits which are largely beyond the conscious control of the writer and which we, as receivers, register mostly subliminally. But like both branches of stylistics, I am interested in patterns of choice (whether these choices are conscious or subconscious) rather than individual choices in isolation.2
Dessa maneira, partindo da concepção de Baker e almejando observar o perfil estilístico dos tradutores escolhidos para exame, propus, dentro do âmbito do presente trabalho, um conceito operacional de “estilo” como sendo os padrões de escolha próprios, recorrentes e preferenciais dos respectivos tradutores literários, referentes ao uso individual e distintivo do vocabulário em relação a variações mais altas ou mais baixas de formas (vocábulos: types) e de itens (ocorrências: tokens) nos textos traduzidos selecionados. Dentre as diversas conceituações de estilo oferecidas pela literatura, pela linguística e pela estilística computacional, proponho essa delimitação da noção de estilo, voltada para o perfil dos padrões de escolha vocabular feita consciente ou inconscientemente pelos tradutores literários em pauta, por mostrar-se a mais adequada às necessidades desta investigação. Dessa forma, este estudo não está voltado para o sentido tradicional de examinar se o estilo do autor foi ade-
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quadamente transposto “na” tradução, mas, sim, direciona o foco para um estilo “de” tradução. Apesar das dificuldades que uma investigação de um estilo “de” tradução possa acarretar, a importância dessa mudança de enfoque aponta para a necessidade de estudos que proponham abordagens que possibilitem a identificação da presença do tradutor na obra traduzida, referente ao uso de padrões estilísticos próprios, específicos ou que apresentem ocorrências mais altas ou mais baixas no texto traduzido do que em relação ao estilo do autor, da obra original e do par lingüístico envolvido. Embora Camargo (2005, p.119-77) tenha comparado, em sua tese de livre-docência, o estilo de três autores (Clarice Lispector, Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro) em doze obras da literatura brasileira contemporânea3 em relação aos padrões estilísticos, respectivamente de seis tradutores individuais (Pontiero, Levitin, Rabassa, Onís, Ubaldo Ribeiro, e Bush) e de duas equipes com dois tradutores (Lowe e Fitz, e Massara e Parris), foram selecionados para observação, em virtude da necessidade de limitação de espaço para o presente trabalho, os padrões estilísticos de apenas um tradutor individual e de duas equipes com dois tradutores em três obras claricianas, conforme mencionado na Introdução. Com referência à linguagem da tradução, o uso de corpora eletrônicos paralelos possibilita maior amplitude e funcionalidade para estudos da natureza da tradução. Investigações, realizadas no Centre for Translation and Intercultural Studies (CTIS), sediado na Universidade de Manchester, têm detectado certas características recorrentes (Baker, 1996, p.180-4) que se apresentam tipicamente na tradução. Dentre os traços recorrentes, um dos que mais especificamente se relacionam com esse trabalho é a simplificação, que pode ser identificada como uma tendência em tornar mais simples e de mais fácil compreensão a linguagem empregada na tradução, como a maior utilização de repetições em relação à obra original. Uma análise possí-
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3
Os títulos dos doze pares de obras encontram-se elencados nas referências no final deste artigo.
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vel de traços de simplificação é fornecida pela observação de formas e item, a fim de examinar o uso de padrões linguísticos próprios do autor e do tradutor num dado corpus ou corpora. Por meio do programa computacional WordSmith Tools, são contadas todas as palavras corridas (running words ou tokens) nos textos, e cada forma ou vocábulo (type) é contado apenas uma vez a fim de identificar padrões de repetição nos textos originais e nos textos traduzidos. Por exemplo, o fragmento extraído da crônica “Writing between the lines”, em Discovering the World: “To write, therefore, is the way in which someone uses the word as bait: the word fishes for something that is not a word” (Lispector, 1992b, p.392, trad. Pontiero) contém 24 itens (tokens), mas somente 19 formas (types), porquanto há dois itens para a forma: is, e três itens para as formas: the e word. Outro traço relacionado a este estudo é a explicitação, que corresponde à tendência geral em explicar e expandir dados do texto original, por meio de uma linguagem mais explícita, mais clara para o leitor do texto traduzido. Manifestações dessa tendência podem ser expressas sintática e lexicalmente, e podem ser observadas habitualmente, em relação aos originais, como a maior extensão das traduções, o emprego exagerado de vocabulário e de conjunções coordenativas explicativas. A hipótese da explicitação também foi postulada por Blum-Kulka (1986, 2000). Considerando a tradução como operando um terceiro código, Blum-Kulka (2000, p.300-1) detectou que os textos traduzidos tendem a ser mais explícitos do que os textos não traduzidos, o que evidenciaria uma estratégia universal inerente a qualquer processo de mediação da linguagem.
Algumas comparações entre as três traduções e seus originais Embora a pesquisa de traduções de um mesmo texto por profissionais diversos possa trazer informações interessantes, é raro encontrar textos da literatura brasileira contemporânea traduzida para o inglês por diferentes tra-
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dutores profissionais. Essa possibilidade foi aberta por Lispector ao ter selecionado textos para serem inseridos em mais de uma publicação. No seu trabalho de livredocência em Literatura Brasileira, Gotlib (1993, p.316) esclarece que Clarice escolheu, dentre seus contos e romances, muitos dos textos que publicou no Jornal do Brasil; também repetiu no romance A aprendizagem ou o livro dos prazeres textos escritos anteriormente, como “O silêncio da Suíça e o inverno em Paris” e “Uma prece” (ibidem, p.308). A esse respeito, Ranzolin (1985) mostra, em sua dissertação de mestrado, que há (re)aproveitamentos de Lispector que tanto fazem parte de A aprendizagem ou o livro dos prazeres como também integram as crônicas publicadas no Jornal do Brasil. Nos moldes de Ranzolin (1985), também me refiro a esses trechos como (re)aproveitamentos por ser difícil determinar com segurança se esse romance proviria de suas crônicas ou, inversamente, se a autora teria primeiramente escrito as crônicas. Após o falecimento de Clarice, boa parte das crônicas foi coletada por seu filho, Paulo Gurgel Valente, para compor a antologia A descoberta do mundo. Outrossim, para a dissertação de mestrado de Lima (2005), integrante do projeto de pesquisa PETra, sob minha coordenação, foi efetuado um levantamento em A descoberta do mundo e em A aprendizagem ou o livro dos prazeres, e nas respectivas traduções, correspondentes a 22 fragmentos semelhantes (re)aproveitados, a saber:
07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22
Quadro 1 – Listagem dos fragmentos (re)aproveitados por Clarice Lispector em dois pares de obras
01 02 03 04 05 06
DM – página(s) 144 132 165 67-68 121 205
DW – página(s) 192 177 217 90-92 162 269
ALP – página(s) 14 17 19-20 22-25 28-29 34-35
279
ABD – página(s) 2-3 4-5 6-7 8-10 13 17-18
DM – página(s) 128 32 118-119 35 119-121 147-148 148 80-81 252 99-100 33-35 112 26-27 156 91-93 51
DW – página(s) 171-173 46 158 50 159-161 195-196 196-197 108-109 328 133 48-49 150 38 207-208 122-124 71
ALP – página(s) 36-39 56 56-57 73 78-80 83-85 86 85-86 98 103-105 114-116 121 127-128 125-126 131-134 138
ABD – página(s) 19-21 34 34-35 48 52-54 56-58 59 58-59 68 73-74 82-84 87-88 94 92-93 97-100 103
Clarice Lispector é considerada, em trabalhos que integram a sua fortuna crítica (Gotlib, 1993; Nunes, 1995; Ranzolin, 1985; Ruggero, 2000; Sá, 2000; Varin, 2002; Cherem, 2003), uma escritora hermética, introspectiva, cuja temática existencialista aborda a questão do ser no mundo, em uma espécie de procura pela essência da vida onde há plena consciência da morte. A respeito do estilo da autora, o pesquisador e tradutor Alexis Levitin explica, em palestra proferida na Universidade de São Paulo, em 18 de setembro de 2003, que as “palavras dão uma direção, mas não uma definição”. Em Clarice, não se lê o que está nas linhas do texto, mas sim aquilo que se esconde entre elas. Consciente da sua técnica de comunicar-se pelas entrelinhas, assim como do valor dos (re)aproveitamentos, Clarice aborda o seu processo de escrita na obra Água viva. Esse trecho é (re)aproveitado pela autora como crônica, intitulada: “Escrever as entrelinhas”, publicada no Jornal do Brasil (6 nov. 1971); mais tarde, também passa a integrar a obra póstuma A descoberta do mundo. A título de ilustração,
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transcrevo, a seguir, a referida crônica e o correspondente fragmento original, acompanhados dos respectivos fragmentos extraídos de Discovering the world, traduzido por Pontiero, e de The stream of life, por Elizabeth Lowe e Earl Fitz:
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there the analogy ends: the non-word, in biting the bait, incorporates it. What saves you, then, is to write absent-mindedly. (Lispector, 1989a, p.6, trad. Lowe e Fitz)
Por meio dos dois fragmentos iguais citados pode-se ter um exemplo de reiterações da autora inseridas numa prosa sonora e “rarefeita”. Clarice usa as palavras para escrever e as entrelinhas para mostrar as verdades, o que dá uma margem maior para diferentes interpretações dos leitores. Em decorrência, no processo tradutório, aumentam as dificuldades com o jogo palavra/entrelinha e repetições numa sintaxe densa, levando a mais leituras diferentes e também a possibilidades diversas de compensações e de (re)criação pelos tradutores. Para facilitar a visualização, as diferentes escolhas de palavras pelos tradutores estão dispostas no Quadro 2:
[DM, 1971] 6 de novembro ESCREVER AS ENTRELINHAS Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa nãopalavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia; a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente. (Lispector, 1987b, p.385). [Destaque dado pela autora.] [DW, 1971] 6 November WRITING BETWEEN THE LINES To write, therefore, is the way in which someone uses the word as bait: the word fishes for something that is not a word. When this non-word takes the bait, something has been written. Once what lies between the lines has been caught, the word can be discarded with a sense of relief. But here the analogy ends: the non-word, upon taking the bait, has assimilated it. Salvation, then, lies in writing without thinking. (Lispector, 1992b, p.392, trad. Pontiero) [AV] [...] Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra - a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poderse-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia; a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente. (Lispector, 1989a, p.5) [SL] [...] Writing, then, is the way followed by someone who uses words like bait: a word fishing for what is not a word. When that non-word – the whatever’s between the lines – bites the bait, something’s been written. Once the between the lines has been hooked, you can throw the word away with relief. But
Quadro 2 – Exemplo de escolhas de palavras diferentes dos tradutores a partir de dois fragmentos iguais da autora Lispector Fragmentos iguais DM e AV Então escrever de a palavra como a [palavra] pescando o que essa não-palavra – a entrelinha – morde alguma coisa se escreveu se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. aí ao morder a isca, incorporou-a. O que salva é escrever distraidamente
Pontiero Fragmento de DW To write, therefore, in which the word as the [word] fishes something that this [non-word] takes [something] has [been written] what lies [between the lines has been] caught, the word [can] be discarded [with] a sense of [relief] here upon taking [the bait], has assimilated [it]
Lowe e Fitz Fragmento de SL Writing, then, followed by words like a [word] fishing what that [non-word] – the whatever’s between the lines – bites [something] ‘s [been written] the [between the lines] has been hooked, you [can] throw the word away [with] [relief] there in biting [the bait], incorporates [it]
What saves you is to write absent-mindedly Salvation lies in writing without thinking
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Pelo cotejo das opções de tradução aqui citadas, podese depreender uma busca por maior literalidade e o uso de um vocabulário menos extenso no fragmento extraído da obra traduzida por Lowe e Fitz. Já no fragmento correspondente, Pontiero mostraria estar menos preso a uma tradução palavra por palavra e mais voltado para reiterações enfáticas, bem como apontaria para um fazer tradutório mais direcionado para as solicitações da autora quanto a seus ritmos idiossincráticos e a padrões sutis de sons. Dada a maior utilização das modalidades tradutórias (Aubert, 1998) concernentes à tradução literal e à transposição no excerto retirado da tradução produzida pela equipe dos dois profissionais e o maior emprego da modulação na crônica “Writing between the lines” pelo tradutor individual, a observação do uso diferente de palavras nessa amostra parece estar em consonância com a análise efetuada por meio das formas e itens, geradas ao longo das obras originais e das respectivas obras traduzidas. Também outra amostra, agora com três fragmentos semelhantes (re)aproveitados por Clarice e com opções diferentes dos tradutores, pode ser observada na transcrição, a seguir, da crônica “Uma experiência”, publicada em A descoberta do mundo, e os correspondentes fragmentos semelhantes extraídos de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e de Água viva, os quais são seguidos dos respectivos fragmentos traduzidos retirados, respectivamente, de Discovering the world, por Pontiero, de Apprenticeship or the book of delights, por Mazzara e Parris, e de The stream of life, por Elizabeth Lowe e Earl Fitz. A fim de distinguir para cotejo as palavras diferentes encontradas no último parágrafo dos três excertos originais, coloco-as entre colchetes e, quando tais palavras mostram-se diferentes apenas no fragmento de ALP, o destaque encontra-se acrescido do sublinhado: [DM, 1968] 22 de junho UMA EXPERIÊNCIA Talvez seja uma das experiências humanas e animais mais importantes. A de pedir socorro e, por pura bondade
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e compreensão do outro, o socorro ser dado. Talvez valha a pena ter nascido para que um dia mudamente se implore e mudamente se receba. Eu já pedi socorro. E não me foi negado. Senti-me então como se eu fosse um tigre perigoso com uma flecha cravada na carne, e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem lhe tiraria a dor. E então uma pessoa tivesse sentido que um tigre ferido é apenas tão perigoso como uma criança. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada. E o tigre? Não, certas coisas nem pessoas nem animais podem agradecer. Então [eu], o tigre, [dei] umas voltas vagarosas em frente [à pessoa, hesitei, lambi] uma das patas e depois, como não [é] a palavra o que [tem] importância, [afastei-me] silenciosamente. (Lispector, 1987b, p.112) [DW, 1968] 22 June AN EXPERIENCE Perhaps this is one of the most important experiences known to man and beast. The need to seek someone’s help and receive it, out of sheer generosity and understanding. Perhaps it is worth being born in order to make a silent plea and be heard. I have pleaded for help. And received it. I then felt like a dangerous tiger with an arrow stuck in its flesh, a tiger circling the terrified onlookers to discover who had inflicted this terrible pain. Until someone sensed that a wounded beast is no more dangerous than a child. Bravely approaching the tiger, the stranger carefully removed the arrow. And the tiger? Certain things defy words of gratitude from humans and animals. So I, the tiger, slowly circled several times in front of my Good Samaritan, paused, and licked my paws, before withdrawing in silence, since words are unimportant. (Lispector, 1992b, p.150, trad. Pontiero) [ALP] [...] talvez essa fosse uma das experiências humanas e animais mais importantes: a de pedir mudamente socorro e mudamente este socorro ser dado! Pois, apesar das palavras trocadas, fora mudamente que ele a havia ajudado. Lóri se sentia como se fosse um tigre perigoso com uma flecha cravada na carne, e que estivesse rondando devagar
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as pessoas medrosas para descobrir quem lhe tiraria a dor. E então um homem, Ulisses, tivesse sentido que um tigre ferido não é perigoso. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada. E o tigre? Não, certas coisas nem pessoas nem animais podiam agradecer. Então [ela], o tigre, [dera] umas voltas vagarosas em frente [ao homem, hesitara, lambera] uma das patas e depois, como não [era] a palavra [ou o grunhido] o que [tinha] importância, [afastara-se] silenciosamente. (Lispector, 1998, p.121) [ABD] [...] And Lori thought that that was perhaps one of the most important experiences for humans and animals alike: silently asking for help and that help being given silently. For despite the exchange of words, it had been silently that he had helped her. Lori felt like a dangerous jaguar with an arrow embedded in its flesh which was slowly circling about some frightened people to determine who would take the pain away. And then a man, Ulysses, had sensed that a wounded jaguar is not dangerous. And approaching the beast, unafraid to touch it, he had carefully pulled out the arrow. And the jaguar? No, there were certain things that neither humans nor animals could be grateful for. Then she, the jaguar, had taken a few slow turns in front of the man, hesitated, licked a paw and then, as if neither word nor sound was important, had quietly moved away. (Lispector, 1986, p.87-8, trad. Mazzara e Parris) [AV] [...] Vou falar do que se chama a experiência. É a experiência de pedir socorro e o socorro ser dado. Talvez valha a pena ter nascido para que um dia mudamente se implore e mudamente se receba. Eu pedi socorro e não me foi negado. Senti-me então como se eu fosse um tigre com flecha mortal cravada na carne e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem teria coragem de aproximar-se e tirar-lhe a dor. E então há a pessoa que sabe que tigre ferido é apenas tão perigoso como criança. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, arranca a flecha fincada. E o tigre? Não [se pode] agradecer. Então [eu] [dou] umas voltas vagarosas em frente [à pessoa e hesito]. [Lam-
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bo] uma das patas e depois, como não [é] a palavra que tem [então] importância, [afasto-me] silenciosamente. (Lispector, 1980a, p.31) [SL] [...] I’m going to speak of what’s called experience. It’s the experience of asking for help and having help given. Perhaps it’s worth it to have been born in order one day to mutely implore and mutely receive. I asked for help and it was not denied me. I felt then as if I were a tiger with a fatal arrow nailed into its flesh and that I was slowly stalking fearful people to discover who would have the courage to come close and relieve it of its pain. And then there’s a person who knows that a wounded tiger is only as dangerous as a child. And approaching the beast without being afraid to touch it, the person pulls out the embedded arrow. And the tiger? It can’t thank you. So I pace slowly back and forth in front of the person and hesitate. I lick one of my paws and then, since it’s not the word that’s important anymore, I silently move away. (Lispector, 1989a, p.30, trad. Lowe e Fitz)
Por meio do último parágrafo dos três fragmentos semelhantes (re)aproveitados pela autora, podem-se observar, no Quadro 3, diferenças na escolha de palavras por parte dos seus tradutores: Quadro 3 – Exemplo de escolhas de palavras diferentes dos tradutores a partir de três fragmentos semelhantes da autora Lispector Fragmentos semelhante de DM Não, nem pessoas nem animais podem agradecer. dei umas voltas vagarosas à pessoa, hesitei, uma das depois, como não é a palavra o que tem importância, afastei-me silenciosamente.
Pontiero Fragmento de DW [...] defy words of gratitude from humans and animals. slowly circled several times my Good Samaritan, paused, and [...] my before withdrawing in silence, since words are unimportant.
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Lispector Fragmentos semelhante de ALP tigre [certas coisas] [podiam] agradecer. tigre, dera umas voltas vagarosas uma das patas como não era a ou o grunhido o que tinha importância, afastara-se silenciosamente. Lispector Fragmentos semelhante de AV se pode [agradecer]. dou umas voltas vagarosas tem então importância afasto-me silenciosamente.
Mazzara e Parris Fragmento de ABD jaguar there were [certain things] that [could] be grateful for. jaguar, had taken a few slow turns a paw as if neither nor sound was important, had quietly moved away. Lowe e Fitz Fragmento de SL It can’t [thank] you. I pace slowly back and forth that’s important anymore I silently move away.
Pode-se novamente verificar certa preocupação com o nível lexical, em virtude de uma maior literalidade no fragmento extraído da obra traduzida por Lowe e Fitz, seguida, com um pouco menos de traduções literais e transposições pelo respectivo fragmento por Mazzara e Parris. Já no fragmento correspondente, Pontiero apresentaria maior uso de modulações, indicando uma possível tentativa de manter a estrutura da prosa clariciana. A brevidade das narrativas de Lispector provém, em parte, da concisão métrica e da densidade sintática. A exploração desses recursos é facilitada pela própria língua portuguesa (com sílabas tônicas, em geral, nas paroxítonas em relação à língua inglesa; ausência de phrasal verbs; elipses de pronomes, artigos, preposições), o que possibilita ritmos comparativamente regulares em relação a ritmos mais variados da língua inglesa. Na tradução de Pontiero, poder-se-ia notar uma preocupação em preservar o léxico e ritmo da autora, procurando evitar a múltipla acentuação de phrasal verbs, como na seqüência extraída, respectivamente, da crônica “Uma experiência” e dos dois fragmentos antes citados:
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[...] tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada. (Lispector, 1987b, p.112) → the stranger carefully removed the arrow. (Lispector, 1992b, p.150, trad. Pontiero) [...] tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada. (Lispector, 1998, p.121) → he had carefully pulled out the arrow. (Lispector, 1986, p.87-8, trad. Mazzara e Parris) [...] arranca a flecha fincada. (Lispector, 1980a, p.31) → the person pulls out the embedded arrow. (Lispector, 1989a, p.30, trad. Lowe e Fitz)
Tais observações parecem coadunar-se com as comparações feita anteriormente, a partir dos dois fragmentos iguais (re)aproveitados por Lispector. No tocante a essa amostra com três fragmentos semelhantes encontrados nas respectivas obras originais, torna-se novamente possível observar as diferentes opções de tradução pelos profissionais em pauta. No correspondente excerto extraído de Apprenticeship or the book of delights, a equipe de Mazzara e Parris apresenta um padrão vocabular menos extenso em relação aos respectivos fragmentos originais extraídos de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Já os fragmentos traduzidos extraídos de Discovering the world registram um padrão de acentuada diversidade lexical em relação a Mazzara e Parris, e um padrão de ligeira diversidade lexical em relação aos respectivos fragmentos originais extraídos de A descoberta do mundo. Apesar da série de possíveis variáveis, os resultados obtidos com o presente trabalho também indicam que, no conjunto das três obras de Lispector traduzidas para o inglês, e observadas na sua totalidade, ocorre um distanciamento moderado entre o estilo de Pontiero e da equipe de Lowe e Fitz.
À guisa de conclusão Ao recorrer menos a traduções palavra por palavra e mais a modulações e a repetições expressivas, Pontiero
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apresentaria, com frequência, uma ampliação deliberada de marcadores estilísticos de reiteração utilizados por Clarice. Em um de seus ensaios, Pontiero (1971, p.266) comenta sobre a significância da “obsessive repetition of certain words”4 na ficção clariciana. A esse respeito, Sabine (1997, p.150) atesta que “his translations not only preserves such repetition consistently but on well-chosen occasions increases it”.5 Conviria esclarecer que, com as amostras dadas, não tive a intenção de avaliar se os textos originais foram adequadamente transpostos “nos” respectivos textos traduzidos. Na verdade, procurei mostrar alguns exemplos de padrões de estilo “de” tradução para o inglês por diferentes profissionais a partir de excertos iguais ou semelhantes originalmente escritos em português por uma mesma autora. Para isso, tornou-se necessário assinalar determinados padrões da sua escrita, como ritmos próprios não semelhantes na língua de chegada e certos “minimalismos” textuais, porquanto Clarice Lispector (1987b, crônica de 7 de junho de 1969, “Mas já que se há de escrever...”) insiste: “Mas já que se há de escrever, que ao menos não esmaguem as palavras nas entrelinhas”. Dado que, nas traduções de Lispector, Discovering the world apresenta o uso de um padrão recorrente, distintivo e preferencial revelando a menor utilização de estratégias identificadas como características de simplificação, poderia levantar-se a suposição de que, no conjunto das obras claricianas estudadas, o tradutor britânico Pontiero se valeria de escolhas linguísticas mais convencionais do que as da autora, porém menos usuais do que as apresentadas pelos padrões estilísticos dos tradutores da América do Norte: Lowe e Fitz e Mazzara e Parris. A postura tradutória de Ponteiro poderia corresponder a uma tendência identificada com o processo de “estrangeirização” (Venuti, 1995), ao procurar manter a rede densa de ligações do respectivo original. Em contrapartida, as duas equipes de tradutores norte-americanos de Lispector mostrariam um processo maior de “domesticação” nos respectivos textos traduzidos, ao apresentarem uma tendência
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para desfazer essas redes e substituí-las por algo mais usual na língua meta, tornando mais simples a linguagem da tradução por meio do uso de vocabulário menos variado. 4
“repetição obsessiva de certas palavras”.
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5
“a sua tradução não apenas preserva, de forma consistente, tais repetições como aumenta-as em situações que se mostrem adequadas”.
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Eloá di Pierro Heise (USP) Eneida Leal Cunha (UFBA)
Ismail Xavier (USP) João Roberto Gomes Faria (USP) Laura Patrícia Zuntini de Izarra (USP) Leda Cecília Szabo (Umesp) Lílian Lopondo (Mackenzie/USP) Márcia Abreu (Unicamp) Márcia Valéria Zamboni Gobbi (Unesp – Araraquara) Marcos Piason Natali (USP) Marcus Vinicius Mazzari (USP) Maria José P. Gordo Palo (PUC – SP)
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Mário Miguel González (USP)
Normas da revista
Marisa Lajolo (Mackenzie) Maurício Mendonça Cardozo (UFPR) Miguel Koleff (Universidade de Córdoba) Olga de Sá (Fatea – Lorena) Regina Dalcastagnè (UnB) Regina Lúcia Pontieri (USP) Renata Soares Junqueira (Unesp – Araraquara) Silvana Oliveira (UEPG) Sylvia Helena Telarolli de Almeida Leite (Unesp – Araraquara)
Normas para apresentação de artigos • Os artigos podem ser apresentados em português ou em outro idioma. Devem ser enviados em CD ou disquete (Windows 6.0 ou compatível) e em três vias impressas, sendo uma com identificação: nome, instituição, endereço para correspondência (com o CEP), e-mail, telefone (com prefixo) e temática escolhida. O disquete ou CD deve trazer uma etiqueta indicando o(s) autor(es) do trabalho e o programa utilizado. A extensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas, no máximo, 20, espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar também Abstract e Keywords. • Os trabalhos – CD ou disquete e vias impressas – deverão ser enviados pelo correio para o endereço indicado a cada número. • Não serão aceitos, em nenhuma hipótese, trabalhos enviados pela internet. • O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de não-doutor, desde que a convite da comissão editorial – casos de colaborações de escritores, por exemplo. • O trabalho deve obedecer à seqüência: – Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem grifos); – Nome(s) do(s) autor(es), à direita da página (sem negrito ou grifo), duas linhas abaixo do título, com
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maiúscula só para as letras iniciais. Usar asterisco para nota de rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a). O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da sigla; – Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito, maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado em corpo 10, com recuo de dois centímetros de margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10; – Palavras-chave – dar um espaço em branco após o resumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto 10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito, itálico e maiúsculas, seguida de doispontos. Máximo: 5 palavras-chave; – Abstract – mesmas observações sobre o Resumo; – Keywords – mesmas observações sobre as palavraschave; – Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas, quando houver. Parágrafos: usar adentramento 1 (um); Subtítulos: sem adentramento, em negrito, só com a primeira letra em maiúscula, sem numeração; Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos etc.) devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo autor; Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10; Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras em língua estrangeira – itálico; Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico), seguidas das seguintes informações entre
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parênteses: sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte 11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). As citações em língua estrangeira devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé; Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando constituírem textos já publicados, devem incluir referência completa bem como permissão dos editores para publicação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas quando absolutamente necessários; Referências: devem ser apenas aquelas relativas aos textos citados no trabalho. A palavra Referências deve estar em negrito, sem adentramento, duas linhas antes da primeira entrada.
Alguns exemplos de citações • Citação direta com três linhas ou menos [...] conforme Octavio Paz (1982, p.37), “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” • Citação indireta [...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as conseqüências.
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• Citação de vários autores
• Dissertação e tese
Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, 1991; Borges, 1998; Campos, 1969).
PARMAGNANI, Claudia Pastore. O erotismo na produção poética de Paula Tavares e Olga Savary. São Paulo, 2004. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
• Citação de várias obras do mesmo autor As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confronto entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidoscópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992). • Citação de citação e citação com mais de três linhas Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire (1759, p.87 apud Teixeira, 1999, p.148): Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...]
Alguns exemplos de Referências • Livro PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. Paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. • Capítulo de livro BERND, Zilá. Perspectivas comparadas trans-americanas. In: JOBIM, José Luís et al. (Org.) Lugares dos discursos literários e culturais – o local, o regional, o nacional, o internacional, o planetário. Niteroi: EdUFF, 2006. p.122-33.
• Artigo de periódico GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: uma breve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n.22, p.3757, 2004. • Artigo de jornal TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p.4. • Trabalho publicado em anais CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Maria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Anais..., Belo Horizonte. p.85-95. • Publicação on-line – Internet FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e geografia) literária na Itália contemporânea. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v.10, n.1, jan./jun. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S1517-106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acesso em: 6 fev. 2009. OBSERVAÇÃO FINAL: A desconsideração das normas implica a não-aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).