Edição Nº 14 - São Paulo, 2009

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REVISTA BRASILEIRA DE

S達o Paulo 2009


Diretoria Presidente Vice-presidente

A B R A L I C 2009-2011 Marilene Weinhardt (UFPR) Luiz Carlos Santos Simon (UEL)

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Benito Martinez Rodriguez (UFPR)

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2º TTesoureiro esoureiro

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Suplentes

Adeítalo Manoel Pinto (UEFS) Zênia de Faria (UFG)

Conselho editorial Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Yves Chevrel.

ABRALIC CNPJ 91.343.350/0001-06 Universidade Federal do Paraná Rua General Carneiro, 460, 11.o andar 80.430-050, Curitiba - PR E-mail: revista@abralic.org


REVISTA BRASILEIRA DE

ISSN 0103-6963 Rev. Bras. Liter. Comp. S達o Paulo

n.14 p. 1-311 2009


2008 Associação Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

Editor Organizadora

Luís Bueno Marilene Weinhardt

Comissão editorial Luiz Carlos Santos Simon Benito Martinez Rodriguez Silvana Oliveira Luís Bueno Maurício Mendonça Cardozo Preparação/Revisão Patrícia Domingues Ribas Diagramação

Rachel Cristina Pavim

Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Rio de Janeiro: Abralic, 1991v.2, n.14, 2009 ISSN 0103-6963 1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada. CDD 809.005 CDU 82.091 (05)


Sumário

Apresentação Marilene Weinhardt Luís Bueno

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Artigos Realismo: a persistência de um mundo hostil Tânia Pellegrini

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A imagologia no Brasil: primeira tentativa de sistematização Celeste H. M. Ribeiro de Sousa

37

O artista fantasma e a máquina mitológica Raúl Antelo

57

A condição americana da nossa identidade e a história da literatura brasileira Luiz Roberto Velloso Cairo

77

Nações em confronto: as histórias literárias e as literaturas comparadas no século XIX Luiz Eduardo Oliveira

99

Entre o cânone e a história: notas sobre historiografia literária e escrita da história Erivan Cassiano Karvat

117

Considerações sobre a teoria e o método histórico-literário Marcos Rogério Cordeiro

141

História híbrida da literatura: uma questão de gêneros Biagio D’Angelo

173


A imaginação do passado: uma contribuição de Alexandre Eulalio à crítica literária brasileira Silvia Quintanilha Macedo

191

Alexandre Herculano, Gonçalves Dias e a teoria da história Wilton José Marques

207

A paródia como fantasma Josalba Fabiana dos Santos

227

Graciliano Ramos e “os fuzuês de Rocambole”: leituras sob o império da imaginação Fernanda Coutinho

247

E se o reverso da história chegasse em dobras: os mutantes em Maria Gabriela Llansol Celina Martins

263

Porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro: memory and narrative in Antonio Lobo Antunes Aino Rinhaug

285

Pareceristas

305

Normas da revista

307


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Apresentação

A escolha do tema deste número 14 da Revista Brasileira de Literatura Comparada, “Literatura Comparada e Historiografia Literária”, tinha a intenção de propor um desafio. Desafio constituído, em primeiro lugar, pela grande amplitude do debate que envolve essas duas áreas. E, também, por tratar-se de aproximação entre elas, que muitas vezes têm permanecido distantes. As respostas a esse desafio foram bastante abrangentes, e vários temas e questões as atravessam nos mais diferentes sentidos. Ordenar as contribuições que nos chegaram não foi, portanto, tarefa fácil. Como se sabe, ordenar é propor um itinerário em linha reta. Que critério usar? Diante da constatação de que qualquer caminho linear seria insuficiente, a opção foi pelo modelo mais simples. Assim, apresentam-se inicialmente os artigos que se debruçam sobre problemas e, em seguida, os que se debruçam sobre autores. É evidente que até mesmo essa divisão é complicada, mas é pelo menos um ponto de partida. Dessa maneira, o artigo “Realismo: a persistência de um mundo hostil”, de Tânia Pellegrini, parte da observação da literatura brasileira contemporânea e de sua filiação a algo que tantas vezes já foi dado como superado e esgotado: o realismo. Investigando as origens do realismo como movimento no século XIX, em cuja base estaria a reação a um mundo hostil, propõe, ao final, que o realismo não procura reproduzir o real, mas sim “refratá-lo”, dar-lhe uma resposta estética. Se o mundo hostil permanece, essa reação tende a também permanecer.


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“A imagologia no Brasil: primeira tentativa de sistematização”, de Celeste H. M. Ribeiro de Sousa, além de apresentar o debate atualmente em curso nesta importante área da literatura comparada, procura pensá-la no Brasil construindo um panorama histórico das imagens do Brasil produzidas pela literatura. Raúl Antelo, em “O artista fantasma e a máquina mitológica”, nos apresenta um movimento de vanguarda novaiorquino do início do século XX, pouco conhecido entre nós, o inje-inje, localizando-o perante os outros movimentos de vanguarda do período e apontando o quanto, na forma particular de primitivismo que criou, tem a dizer à contemporaneidade. A problemática condição americana dos brasileiros, que frequentemente se veem apenas como brasileiros, identificando o americano nos homens das outras nações do continente – seja de fala espanhola, inglesa ou francesa –, ganha nova luz no artigo de Luiz Roberto Velloso Cairo, “A condição americana da nossa identidade e a história da literatura brasileira”. O recuo ao século XIX, quando o debate sobre o nosso “caráter nacional” se cristaliza, e o recurso às histórias literárias, lugar privilegiado desse debate, permite apanhar o problema em seu nascedouro e revelar facetas novas e reveladoras da questão. Um tema vizinho a esse é explorado por Luiz Eduardo Oliveira em “Nações em confronto: as histórias literárias e as literaturas comparadas no século XIX”. Retomando os debates que fundam a história literária no ocidente, notadamente o papel que as línguas nacionais ocupam como elemento diferenciador da nacionalidade, procura esclarecer um outro lado da questão. Ao retomar a historiografia literária brasileira do século XIX, trata do apagamento das diferenças que se opera para que seja possível construir uma ideia una do que seja a nação. E é ainda a ideia de nação que serve de eixo para a discussão das relações entre a teoria da história e a teoria da literatura levada a cabo por Erivan Cassiano Karvat em “Entre o cânone e a história: notas sobre historiografia li-


Apresentação

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terária e escrita da história”. Partindo do ponto de vista do historiador, ele examina parte da historiografia literária brasileira do século XIX e propõe que a história literária seja vista menos como algo que consolide uma tradição e mais como uma história da leitura. A relação entre literatura e história, vista num longo balanço interpretativo que abarca as obras fundamentais de Lucien Febvre, Raymond Williams, Carlo Ginzburg, Hayden White, Georg Lukács, Walter Benjamin, Theodor Adorno e Erich Auerbach, reaparece em “Considerações sobre a teoria e o método histórico-literário”, de Marcos Rogério Cordeiro. Biagio D’Angelo, em seu “História híbrida da literatura: uma questão de gêneros”, faz um caminho noutro sentido: propositivo. Procurando apontar as limitações da historiografia literária tradicional, indica o papel central que a literatura comparada tem numa outra historiografia literária, mais atenta à “contaminação”, ou seja, às fronteiras – nacionais, de gênero e tantas outras. Localizado ele próprio no entroncamento que dividiu historicamente a crítica brasileira em duas, a “jornalística” e a “acadêmica”, Alexandre Eulalio é evocado por Sílvia Quintanilha Macedo em “A imaginação do passado: uma contribuição de Alexandre Eulalio à crítica literária brasileira”. E essa evocação chega exatamente para matizar uma visão monolítica, composta por formas estanques de ver a literatura – afinal, é apenas num arcabouço mental como esse que se pode falar em “divisão”, em separação radical. Certas concepções de Alexandre Herculano acerca da história são convocadas por Wilton José Marques em “Alexandre Herculano, Gonçalves Dias e a teoria da história”, como forma de apresentar Gonçalves Dias, em seu momento de formação: não o autor consagrado anos depois pela crítica do próprio Herculano, mas o autor do inacabado Meditação. Josalba Fabiana dos Santos lança mão do conceito de paródia para reavaliar a obra de Cornélio Penna. Se a crítica já aproximou a obra do escritor brasileiro ao romance


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gótico, foi no sentido de apontar seu anacronismo. Em “A paródia como fantasma”, essa aproximação é refeita, mas agora o Cornélio Penna é visto como um escritor moderno, que lança mão da paródia do romance gótico, incorporando-o como fantasma ao seu próprio texto. Ao flagrar um Graciliano Ramos menino, no interior de Alagoas, leitor do Rocambole, Fernanda Coutinho, em seu “Graciliano Ramos e ‘os fuzuês de rocambole’: leituras sob o império da imaginação”, aponta o alargamento de visão que pode representar para a historiografia literária nacional lançar mão dos estudos comparatistas. Por meio da leitura da obra de Maria Gabriela Llansol, nomeadamente a análise meticulosa de O livro das comunidades, o artigo “E se o reverso da história chegasse em dobras: os mutantes em Maria Gabriela Llansol”, de Celina Martins, nos convida a pensar a história como algo não linear e mesmo não cronológico, e a ficção como o espaço em que os eventos atualizam-se como relação e como leitura, engendrando mais uma vez esses mesmos eventos. E se a escrita desconstrói/reconstrói a história, que papel não terá em uma outra forma de recuperação do passado: a memória. É isso que investiga Aino Rinhaug em “Porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro – Memory and narrative in Antonio Lobo Antunes” por meio da abordagem de Ontem não te vi em Babilónia, da obra recente do romancista português. Para além desse caminho, convidamos o leitor a propor outras trajetórias, outras recorrências e outras histórias. Marilene Weinhardt Luís Bueno


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Realismo: a persistência de um mundo hostil Tânia Pellegrini*

RESUMO: O objetivo deste artigo é procurar explicar a persistência do realismo como técnica expressiva, nas narrativas contemporâneas, com base na análise de alguns aspectos da evolução do conceito, propondo que ele esteticamente opera, ao longo da história, uma refração da realidade e não uma “cópia”, uma “imitação” ou mesmo uma “interpretação”. Tal ponto de vista, de caráter histórico e social, permite entender sua continuidade como corolário da persistência do mesmo “mundo hostil” que lhe deu origem. PALAVRAS-CHAVE: realismo, romance, representação, refração. ABSTRACT: This text aims to explain the persistence of realism as an expressive technique in contemporary narrative, departing from the analysis of some aspects of its evolution. It defends that it esthetically operates, in the course of history, a refraction of reality and not a “copy”, or “imitation”, or either an interpretation of it. This point of view, of a historical and social character, allows understanding realism’s continuity as a corollary of the persistence of the same “hostile world” which allowed its birth. KEYWORDS:

realism, novel, representation, refraction. Le débat de ma vie a été celui de l’expression des choses qui existent en dehors de moi, qui m’ont précedé en ce monde et y subsisteront quand j’en aurai été éffacé. Dans le langage abstrait cela s’appelle le réalisme. (Louis Aragon, 1963)

Departamento de Letras e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). *


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Gênero e realidade Um exame mais cuidadoso da produção ficcional brasileira das últimas décadas chama a atenção para um dado no mínimo curioso: cada vez mais se acentua a tendência realista das formas de narrar. Convivendo com outras possibilidades expressivas, essa tendência cresce sensivelmente, desde a década de 1970, sustentando-se na veia imaginativa preferencialmente urbana que a alimenta, fértil de todo tipo de matéria humana, das mais elevadas às mais ignóbeis. A persistência desse realismo, ao mesmo tempo que fascina, intriga e faz pensar em possíveis razões e motivos: a que se deveria o eterno retorno dessas representações documentais, explícitas, figurativas? Que força teriam elas para competir com a consagração e poder das soluções modernistas? Qual o sentido social dessas reconfigurações miméticas da realidade? Com base nestas questões, o fio condutor deste texto, de viés histórico-teórico, é exatamente a ideia de que o realismo em literatura continua vivo e atuante nas formas narrativas contemporâneas, assumindo as mais diferentes roupagens e possibilidades de expressão. A aparente obviedade do termo realismo esconde ambiguidades de sentido e imprecisões que sempre o fizeram difícil de apreender e definir, tanto no campo artístico quanto no literário, uma vez que evidência e visibilidade – sua “visualidade” – aparentam constituir o segredo de sua longa vida. Além disso, as duas palavras das quais ele depende, real e realidade, têm uma história bastante complexa, ligada a concepções filosóficas intrincadas, que remontam a séculos, nas diferentes línguas. Mesmo depois da explosão das vanguardas artísticas do início do século XX, quando passou a carregar uma espécie de estigma, significando atraso estético e conservadorismo político, permanecendo esmaecido no convívio com soluções expressivas de ponta, as controvérsias sobre seu sentido continuaram fortes, indicando que seu potencial expressivo não se esgotara. E hoje, ressurgindo com força na prática dos ar-


Realismo: a persistência de um mundo hostil

É importante advertir que este texto é um work in progress, etapa de um projeto maior que venho desenvolvendo desde 2007, primeiro com um pósdoutorado no Centre for Brazilian Studies, da Universidade de Oxford, com auxílio da Fapesp, e depois com uma bolsaprodutividade do CNPq, investigando as recorrências realistas na ficção brasileira contemporânea. 1

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tefatos culturais contemporâneos, tanto literários quanto audiovisuais – e não só brasileiros –, suscita novas interrogações sobre seu valor e vitalidade.1 Visto como um fenômeno que encontrara tempos propícios para eclodir em meados do século XIX, na França, no bojo do positivismo, espalhando-se pelo ocidente, realismo tem sido usado para definir qualquer representação artística que se disponha a “reproduzir” o mundo concreto e suas configurações. E, de modo geral, qualquer que seja o ponto de vista teórico, aceita-se que ele emergiu de um processo histórico-social específico, traduzindo a natureza turbulenta da realidade oitocentista: corresponde ao poder crescente da ideologia burguesa europeia, procurando dar forma própria à cultura e trazendo o povo para o centro da cena, com uma postura politicamente revolucionária, ligada, em muitos autores, aos ideais socialistas surgidos da Revolução Francesa. Libertário, subversivo, confiante, contestador de tradições e instituições, filho dileto de um século de revoluções, para dizer como Hobsbawn (1981), encarnava então o que havia de mais moderno em termos de arte e literatura. Dessa maneira cresceu e se ramificou, fazendo da objetividade da experiência do indivíduo, de sua vida articulada e contínua e de sua luta contra um “mundo hostil” o tema preferencial. Sabe-se que não se trata apenas de um conjunto de ideias, mas também de uma convenção artística extremamente adequada principalmente ao romance. Sabe-se também que os mesmos traços que o valorizaram seriam, mais tarde, o motivo de seu repúdio, tornando-o, assim, um dos mais fascinantes problemas relacionados à arte e à literatura, graças a sua persistente capacidade de transmudarse, travestir-se, transformar-se, espantando críticos e teóricos com a sua vitalidade. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é analisar alguns aspectos da evolução desse conceito – nos termos adequados a um trabalho como este –, propondo que ele esteticamente opera, ao longo da história, uma refração da realidade e não uma “cópia”, uma “imitação” ou mes-


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mo “interpretação”, o que permite entender sua continuidade como corolário da persistência do mesmo “mundo hostil” que lhe deu origem. Desde o início, o romance acomodou-se de modo mais que perfeito ao realismo, por sua incompletude e berço incerto e por eleger como epicentro da narração um indivíduo determinado. De ossatura ainda não consolidada, segundo Bakhtin, o gênero era capaz de refletir “mais profundamente, mais substancialmente, mais sensivelmente e mais rapidamente a evolução da própria realidade” (Bakhtin, 1988, p. 400). A relação entre sua constante mudança e a transformação da realidade é que lhe dá abertura para a incorporação do povo como um critério maior ou menor de veracidade, num momento histórico em que a pressão das massas afirma-se como poder e como ameaça. Pode-se afirmar, então, que o chamado “realismo clássico” ou “burguês” – independentemente da extração social dos seus autores – é a representação necessária de uma nova realidade, em que o confronto das forças sociais e a figuração da vida de sujeitos comuns são tomados de modo “sério” e até mesmo “trágico”, como frisa Auerbach (1974), de acordo com a nova ordem social e o novo gênero, cuja forma lhe corresponde. A representação séria desses sujeitos não aristocráticos está ligada sobretudo à dimensão biográfica no interior da qual o romance os coloca, construindo para eles espaços e tempos sem transcendência; não existem mais deuses, nem o peso do destino ou do sangue, mas a carga de determinações diversas, como o meio, a hereditariedade e a própria história, tão terríveis quanto a imponderabilidade do fatum. Alguns estudiosos identificam no realismo do século XIX dois traços essenciais: uma exigência e uma contradição. A exigência consistiria na palavra-chave “verdade”, que, para eles, acabou por destronar, na escala dos “valores estéticos e morais”, outros valores como o “bom gosto e o sentimento”, relacionados à aristocracia. A contradição


Realismo: a persistência de um mundo hostil

“um personagem simples impede o aprofundamento psicológico.” 2

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residiria no estatuto da representação, pois, escolhendo representar o homem médio ou inferior, corria-se o risco de cair no estereótipo e no clichê, dos quais precisamente se pretendia escapar, pois representar “un personnage simple empêche l’approfondissement psychologique” (Larroux, 1995, p. 76).2 Opiniões de outro tipo apontam a contradição em termos de um conflito difícil de resolver entre a subjetividade do artista e a objetividade que almeja; assim, o realismo seria mais bem percebido não em termos de uma objetividade inatingível, da “cópia fiel”, mas da técnica da impessoalidade, por meio da qual o artista constrói uma estrutura de persuasão aparentemente autônoma, uma ilusão de realidade forte e convincente (Williams, 1978, p. 13). Digamos que aí se enfrentam questões de conteúdo e de forma, uma espécie de nó-cego, alimentando a polêmica até hoje não resolvida, desde quem considera o realismo como uma “estética ruim”, por exemplo, até quem o toma como uma “necessidade histórica”. Na verdade, o que está em jogo é a interpretação dos conceitos de realidade e de representação, mutável ao longo da história.

Realidade e ilusão

Champfleury é o pseudônimo do escritor francês Jules Husson (18211889), tido como o iniciador do movimento realista na literatura francesa; Duranty refere-se ao também escritor Louis Emile Edmond Duranty (1833-1880). 3

A possibilidade de uma representação fiel, isto é, a complexa relação estabelecida entre o sujeito criador e o objeto criado já era um problema consciente para os realistas da primeira hora. Champfleury e Duranty,3 no alvorecer do novo estilo, já apontavam as “deformações” inerentes ao ato de representar, como comprovam seus inúmeros artigos. Afirma o primeiro: La reproduction de la nature par l’homme ne sera jamais une reproduction ni une imitation, ce sera toujours une interpretation. […] À quoi tient cette difference? À ce que l’homme, quoi qu’il fasse pour se rendre l’esclave de la nature, est toujours emporté par son tempérament particulier qui le tient depuis les ongles jusqu’aux cheveux et


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qui le pousse à rendre la nature suivant l’impression qu’il en reçoit. (L’ aventurier Challes) (Champfleury, 1973, p. 171).4

Flaubert, discordando deles, já nesse tempo, sonha fazer uma obra com o mínimo possível de matéria real, como se depreende do conhecido fragmento de uma carta sua a Louise Colet, em 1852: Ce qui me semble beau, ce que je voudrais faire, c’est un livre sur rien, un livre sans attache extérieure, qui se tiendrait de lui-même par la force interne de son style, comme la terre sans être soutenue se tient en l’air, un livre qui n’aurait presque pas de sujet ou du moins où le sujet serait presque invisible, si cela se peut (apud Glaudes, 1999, p. 187).5

Mas, de modo geral, os “realistas clássicos” procuram adquirir primeiro uma competência específica em relação à matéria selecionada, para depois criar, a partir de um acúmulo de informações. Contudo, não renunciam ao ato ficcional propriamente dito, pois sabem que o texto realista não copia o real, mas pretende fazer crer que remete a uma realidade verificável. Daí a ideia de ilusão, de mentira, que se perpetuou, pois existe um sujeito, um olhar que enquadra, recorta, organiza, confere um sentido àquilo que se observa e documenta, ainda como desordem e ausência de significado. É o que atesta também uma carta de Zola ao seu amigo Antony Valabrègue, escrita em agosto de 1864, no auge das grandes discussões a respeito da afirmação do novo movimento artístico:6 Je me permets, au début, une comparaison un peu risqué: toute oeuvre d’art est comme une fenêtre ouverte sur la creation; il y a, enchâssé dans l’embrassure de la fenêtre, une sorte d’ Ecran transparent, à travers lequel on aperçoit les objets plus au moins déformés, souffrant des changements plus ou moins sensibles dans leurs lignes et dans

“A reprodução da natureza pelo homem nunca será uma reprodução nem uma imitação, mas sempre uma interpretação. A que se deve essa diferença? A que o homem, por mais que faça para se tornar escravo da natureza, é sempre levado por seu temperamento particular, que o prende das unhas aos cabelos e que o leva a tomar a natureza de acordo com a impressão que dela recebe (O aventureiro Challes)”.

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“O que me parece belo, o que eu gostaria de fazer, é um livro sobre nada, um livro sem ligação exterior, que por si mesmo se mantivesse, devido à força interna de seu estilo, como a terra se mantém no ar sem sustentação, um livro que quase não tivesse assunto ou cujo assunto fosse quase invisível, se isso é possível.”

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Sob o termo “realismo”, nesse momento, abrigam-se ainda vários significados, às vezes coincidentes, às vezes contraditórios. Apenas em 1879 define-se o naturalismo como um movimento diferente e articulado, com a publicação de O romance experimental, de Zola.

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Realismo: a persistência de um mundo hostil

“Permito-me, de início, uma comparação um tanto arriscada: toda obra de arte é como uma janela aberta sobre a criação; existe, encaixada na esquadria da janela, uma espécie de tela (écran) transparente, através da qual se percebem os objetos mais ou menos deformados, com modificações mais ou menos sensíveis nas suas linhas e cores. [...] A realidade exata é, portanto, impossível em uma obra de arte. [...] Há deformação do que existe. Há mentira.” 7

Apenas como exemplos, Phillipe Hamon, Michel Rifaterre, Tzvetan Todorov e o próprio Roland Barthes. Ver Barthes, R. (Org.). Literatura e realidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984. Pode-se reconhecer nesses autores a influência do texto de Roman Jakobson em “Du réalisme artistique”, publicado em 1921. Ver Todorov, T. (Ed.). Théorie de la littérature. Paris: Le Seuil, 1965. p. 98-108. 8

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leur couleur. […] La réalité exacte est donc impossible dans une oeuvre d’art. [...] I y a déformation de ce qui existe. Il y a mensonge (apud Becker, 2005, p. 154).7

Pesquisando a história do surgimento e evolução do realismo na França, lendo as obras, os manifestos, os artigos e cartas pessoais dos envolvidos – hoje já exaustivamente analisados pelas mais diferentes linhas críticas –, nota-se que a polêmica travada naquela época revela traços muito semelhantes aos que, a partir da eclosão das vanguardas modernistas, consideraram morta a própria ideia de representação, e quase a mesma de hoje, momento em que novas possibilidades e dimensões criadas pelas tecnologias audiovisuais aguçaram a questão, introduzindo outras perspectivas, novos (ir)realismos, novos ilusionismos. As análises críticas de viés formalista e estruturalista,8 grosso modo, enfatizando que as formas e estruturas dos textos não deveriam ser “contaminadas” pela atenção a quaisquer forças externas, reiteravam a “arte pela arte”, já postulada por Flaubert; concentrando a atenção na “tela”, tentavam solucionar o dilema, encarando o texto realista como um modelo funcional ancorado num pacto de leitura entre o autor e o leitor, de acordo com um conjunto de regras por ambos conhecido, que remonta a Aristóteles. Ou seja, toda a complexa problemática realista reduzia-se a uma questão de linguagem, de organização discursiva pura e simples. Essas postulações foram resultado de um novo momento histórico, cujo correspondente estético era consequência da famosa “crise da representação”, como veremos adiante. Há, entretanto, um ponto de vista diverso, defendido por Raymond Williams, nessa mesma época, que introduz outra nuance no debate: existe uma importância histórica ligada ao realismo, ancorada, em última instância, no fato de que ele faz da realidade física e social (no sentido materialista do termo) a base do pensamento, da cultura e da literatura, não se aceitando que estas estejam voltadas apenas para si mesmas ou que nada se representa além do


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próprio texto. Definido como uma relação essencial entre indivíduo e sociedade, que não se esgota em nenhum dos termos, trata-se de uma categoria fundamental da interpretação estética do mundo, em qualquer época: Neither element, neither the society nor the individual, is there as a priority. The society is not a background against which the personal relationships are studied, nor are the individuals merely illustrations of aspects of the way of life. Every aspect of personal life is radically affected by the quality of the general life, yet the general life is seen at its most important in completely personal terms. We attend with our whole senses to every aspect of the general life, yet the centre of value is always the individual human person – not any isolated person, but the many persons who are the reality of general life (Williams, 2001, p. 304305).9

Para o autor, toda a tradição realista está vinculada, desse modo, a um tipo de romance que cria e atribui valor às especificidades de um modo de vida, em termos e características específicas dos sujeitos; isso confere valor ao conjunto, a uma sociedade maior que qualquer dos indivíduos que são parte dela e, ao mesmo tempo, considera-os importantes e absolutos em si mesmos. No interior dessa tradição de representação realista há, com certeza, múltiplas variações ou graus de êxito, mas esse ponto de vista, buscando uma apreensão específica da relação entre indivíduo e sociedade, relativiza a transparência ou a opacidade da “janela”, a espessura da “tela”, pois o que se valoriza são a organização e o amálgama de diversas modalidades de experiência representadas: individual e social, subjetiva e objetiva, reflexiva e prática, pessoal e geral, uma refletida na outra, de modo a compor uma visão do todo, incluindo tudo aquilo que diz respeito às atividades humanas, quaisquer que sejam elas. No mesmo diapasão, Ian Watt (1991), discorrendo sobre a formação do romance inglês, em que identifica um “realismo formal”, sustenta que, todavia, não se trata de

“Nenhum elemento, a sociedade ou o indivíduo, é prioritário. A sociedade não é um pano-de-fundo contra o qual as relações pessoais são estudadas, nem os indivíduos são meras ilustrações de aspectos dos modos de vida. Cada aspecto da vida pessoal é radicalmente afetado pela qualidade da vida geral, mas a vida geral, no seu âmago, é totalmente vista em termos pessoais. Em todos os sentidos, cada aspecto da vida geral é valorizado, mas o centro dessa valorização é sempre a pessoa humana – não um indivíduo isolado, mas as muitas pessoas que formam a realidade da vida geral.”

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uma questão ligada apenas ao objeto (o tipo de vida representada), mas ao ponto de vista (a maneira pela qual o realismo é representado): [...] um conjunto de procedimentos narrativos [...] organizados segundo a premissa de que o gênero constitui um relato completo e autêntico da experiência humana e, portanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor detalhes da história [...] detalhes que são apresentados através de um emprego de linguagem muito mais referencial do que é comum em outras formas literárias (Watt, 1991, p. 31).

Visto também por esse ângulo, o realismo pode ser tomado como uma postura geral e um método específico, aplicável a qualquer época, na medida em que é historicamente transformável. Tal postura sempre teve um forte componente moral, quando não político; tal método é preferencialmente documental, sendo esses dois adjetivos aqui empregados em sentido lato, significando, em conjunto, um compromisso de descrever os fatos e coisas como realmente existem. Daí a possibilidade dos muitos realismos: naturalista, mágico, fantástico, subjetivo, feroz, sujo, traumático, lírico, romântico, neo, hiper, pós...

Realidade e refração Posto nesses termos, o realismo adquire um sentido trans-histórico – que apoia e explica em parte sua persistência – e volta a conferir importância particular ao clássico conceito de representação, hoje destronado pela ideia pós-moderna de “desreferencialização” da realidade. A representação realista, aspirando a levar os objetos a uma espécie de evidência imediata, empenha-se em apagar a distância que os separa da realidade, mas sempre considerando ser a imitação do real menos uma questão de semelhança que de conformidade a regras de composição. E os autores realistas, desde o início, intuem que, baseada em representações compartilhadas com o público, a


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obra constrói seu próprio objeto, essencialmente fictício, em referência às imagens mentais que preexistem à obra. A referência à presença está no centro da ideia de representação. Na origem, representar qualquer coisa é fazêla aparecer, é mostrá-la in praesentia. Pensando em termos históricos, Glaudes (1999, p. 8-10) ensina que o cristianismo aceita, em nome da encarnação, a figuração de Deus, ao passo que as outras religiões monoteístas veem perversão da natureza divina em toda imagem concreta de Deus e de sua criação. Desde a Antiguidade, o culto à imagem viva do Imperador, considerada divina, conferiu dignidade à representação; em decorrência, a teologia cristã nascente, definindo suas condições a partir de dogmas – invisibilidade da essência divina, criação do homem à imagem de Deus –, faz nascer a literatura e a arte cristãs, legitimando a ambição de representar. Durante a Idade Média, a representação visa a estabelecer no mundo sensível o que, pela própria natureza, é inacessível aos sentidos, compensando uma ausência concreta dificilmente tolerável, em relação às crenças e valores coletivos da época. Assim, as imagens proliferam, contendo em si o espiritual e o temporal, afirmando a presença de Deus na Terra. Depois de um longo período em que se mesclam prevenção e liberação, inclusive com a Reforma Protestante, que provocou uma regulação rígida das formas de culto, foi Kant quem associou o gênio do artista ao estado místico, colocando o “sublime” acima do “belo” na escala dos valores estéticos, o qual, para o filósofo, na verdade não reside em nenhum objeto da natureza, mas apenas no espírito. Desse modo, ele coloca a arte fora da esfera da representação, elevando-a ao infinito. Para Glaudes (1999), ganha corpo, portanto, uma espécie de prevenção religiosa ligada à parte mais sensível e concreta da representação, alimentando todos aqueles, desde Baudelaire até os surrealistas, que tentarão escapar dos limites tradicionalmente atribuídos à figuração, essência da concepção esté-


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“Se literatura é ‘representação da vida’, a representação é exatamente o lugar em que a vida, em toda a sua complexidade social e subjetiva, penetra no trabalho literário.” 10

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tica realista, bem como à crítica que defende a “arte pela arte”. A noção de representações compartilhadas, acima citada, reintroduz o dado conceitual básico – fonte de antigos e não resolvidos antagonismos – que norteia este trabalho: a dependência de todas as artes em relação às coletividades humanas de que surgem, inscrita na própria história da representação, pois, “if literature is a ‘representation of life’, then representation is exactly the place where ‘life’, in all its social and subjective complexity, gets into the literary work” (Lentricchia; McLaughlin, 1990, p. 15).10 Por conseguinte, pode-se dizer que o realismo, tomado como nova postura e novo método, sobretudo no período em que aos poucos passa a dominante na literatura, a partir do século XIX, aguça a problemática da representação do mundo, pois, a partir de então, estão postos os termos “modernos” do debate sobre as relações entre literatura e sociedade: os modos de percepção e de compreensão do mundo social, que sustentam a representação, são determinados pelas formas sociais e culturais a que pertencem; à diversidade dos objetos a representar corresponde uma diversidade de modos de composição que organiza globalmente essa representação, em cada autor e em cada época. Portanto, o processo representacional efetivado pelo realismo – sua dimensão mimética – não é de qualidade apenas referencial, descritiva, fotográfica; trata-se de imitação em profundidade, cuja perspectiva geral está inextricavelmente ligada à história e à sociedade. É necessário enfatizar que a representação realista depende da mediação – termo também de longa história –, que se firma a partir do início do século XIX, como uma maneira de tentar conciliar as antigas divergências referentes ao ato de representar. Desafiando a ideia de arte e literatura como simples reflexo – como algo que se vê através da janela –, a mediação pretende descrever um processo ativo, não limitado a uma simples reconciliação en-


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tre opostos, o real de um lado, a obra de outro. Ou seja, não se pode pretender encontrar realidades sociais refletidas diretamente na arte, pois estas passam por um processo de mediação, de refração – esse é o termo que proponho –, no qual seu conteúdo original é modificado, o que envolve, inclusive, questões ideológicas e políticas. Entretanto, isso não significa simplesmente que existe um “meio” (a linguagem, as cores, os volumes etc.) traduzindo a realidade, pois “todas as relações ativas entre diferentes tipos de ser e consciência já são inevitavelmente mediadas antes e esse processo não é uma instância separada – um ‘meio’ – mas é intrínseca às propriedades dos tipos correlatos” (Williams, 1979, p. 101). A refração, portanto, reside ao mesmo tempo no sujeito e no objeto e não em alguma coisa entre o objeto e aquilo a que é levado. Assim, trata-se de um processo intrínseco à realidade social, e não um processo a ela acrescentado como projeção, disfarce ou interpretação, o que permite analisar cada produto cultural sempre como constitutivo das relações sociais. Em Lukács encontra-se a abordagem histórico-teórica mais abrangente que se conhece a respeito de realismo no romance,11 de que são tributários, com diferenças, Auerbach e também R. Williams. Para o pensador húngaro, o realismo é o paradigma artístico por excelência e o romance do século XIX, a sua mais alta realização, por causa da complexidade da representação da vida humana em seu contexto histórico como totalidade. Assim, passa a ser critério essencial de valor a relação da obra com esse contexto: [...] os novos estilos, os novos modos de representar a realidade, não surgem jamais de uma dialética imanente das formas artísticas, ainda que se liguem às formas e sentidos do passado. Todo novo estilo surge como uma necessidade histórico-social da vida e é um produto necessário da evolução social (Lukács, 1968, p. 57).

O livro Problemas do realismo, publicado em 1954, reúne os principais ensaios do autor, inclusive “Narrar ou descrever”.

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É importante pelo menos mencionar o amplo debate sobre as proposições das vanguardas, que desafiavam as concepções do realismo (o “realismo socialista”) aceito pelas posições políticas dominantes dentro do marxismo de então (19371938). Entre outros, envolveram-se Lukács, Brecht e Adorno, de cujos textos há versões em vários números das revistas New Left Review e Aesthetics and Politics. 12

“não é o conceito de estreiteza, mas o de amplitude que cabe ao realismo. A própria realidade é ampla, variada e está cheia de contradições: a história cria e rejeita modelos.” 13

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Mas é necessário aqui introduzir Brecht,12 que, com acerto, reclama um conceito de realismo mais amplo que o lukacsiano: “no es el concepto de estrechez, sino el de amplitud, el que sienta bien al realismo. La realidad misma es amplia, variada, está llena de contradicciones; la história crea y rechaza modelos” (Brecht, 1973, p. 257).13 E é a ideia de refração, com sua multiplicidade de ângulos, linhas e matizes, que pode acolher essa amplitude e as contradições da realidade apontadas por Brecht, sem ignorar a totalidade, enfrentando a história, que mais uma vez obriga a rever os conceitos de real e realidade, hoje inclusive mergulhados nas possibilidades virtuais das novas tecnologias.

Outro caminho Sendo o realismo imitação em profundidade e a refração o fenômeno que lhe permite representar artisticamente a realidade, o próximo passo no seu desenvolvimento – aceitando-se o percurso histórico traçado por Auerbach (1974, p. 491) – viria com a incorporação da representação dos movimentos da consciência, no início do século XX, num mergulho na interioridade individual que, a despeito de si própria, abrange os movimentos da história, mesmo que pareça, às vezes, não existir nenhuma realidade concreta exterior a essa consciência. Esse realismo exige outra posição do escritor diante do real, pois ele perdeu sua segurança objetiva, dada pela certeza positivista; ele não é mais a instância suprema; esta passa a ser a consciência das personagens, que tudo transforma e refrata. O monólogo interior e/ou o fluxo de consciência, aquisições estilísticas agora comuns, correspondem a um conceito de realidade totalmente modificado, que inclui, como reais e representáveis, as tensões e ambivalências da consciência humana. Como frisa Luiz Costa Lima: “A compreensão da realidade passa a depender do acordo prismático de várias subjetividades e não mais é ditada pelo ponto de vista e


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pela imaginação do sujeito mediador, isto é, o narrador” (Lima, 2009, p. 174). O autor fundamental dessa passagem é Proust, que conseguiu representar uma dimensão completa da sociedade francesa, refratada em apenas uma subjetividade. Em busca do tempo perdido (publicado entre 1913 e 1927) é uma interrogação dos incontáveis signos por meio dos quais se manifestam as pessoas e as coisas, mas o objetivo não é a representação da realidade, e sim o seu desvelamento; trata-se da realidade refratada na consciência do narrador. Como percebe Adorno, explicando sua “técnica micrológica”: “o narrador parece fundar um espaço interior [...] – e o que quer que se desenrole no exterior ocorre [...] como um retalho interior, um momento da corrente de consciência...” (Adorno, 1980, p. 271). Assim, Proust ultrapassa a objetividade realista “clássica” e também a subjetividade pura e simples, por meio de uma gama de incontáveis refrações, que, mesmo questionando a ideia de totalidade, remete a ela em cada fragmento representado. Dostoiévski já antecipara o que Kafka, Joyce e Virginia Woolf realizariam logo depois. Manifestações tênues, lábeis, difusas, que acompanham nossos pensamentos e atos cotidianos, aparentemente insignificantes, tornam-se matéria da narração; o romancista agora penetra em refolhos desconhecidos dos realistas da primeira hora, aprofundando a pesquisa de antes em direção aos meandros da consciência: busca-se então um real mais recôndito, o fundo obscuro dos estados psicológicos, muito além da concretude das coisas. Aceita-se, grosso modo, que o esgotamento do primeiro realismo e de sua exacerbação naturalista deve-se principalmente à deterioração da situação europeia em geral, no final do século XIX, por causa das consequências da industrialização desenfreada, que efetivamente não abrira as portas do paraíso para todos. Questiona-se a razão, o mais importante de todos os instrumentos de perquirição herdados do Iluminismo; a especificidade da experiência


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Importante assinalar a influência de Freud, que publica, em 1895, seu Estudo sobre a histeria e, em 1899, A interpretação dos sonhos. 14

Joris Karl Huysmans (1848-1907), escritor e crítico de arte. Publicou, entre outros mais, A rebours (1884). 15

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material de uma individualidade poderosa, como determinante na relação com o mundo, desaparece aos poucos. É outra vez um momento de redefinição do sujeito, como acontecera antes, na gradativa substituição da tradição coletiva pela individual, observada desde o Renascimento (Watt, 1991, p. 30). Agora, a unidade e a permanência subjetivas positivistas são relativizadas, inclusive pela ascensão das forças do inconsciente,14 o que exige novos códigos de representação. Instaura-se uma crítica sistemática à concepção de realidade: ela está alocada na mente, atomizando-se na extrema subjetividade dos pontos de vista. No campo tecnológico, outros elementos contribuem para essa transformação: o aperfeiçoamento dos meios mecânicos de reprodução, como apontou Benjamin mais tarde, determinando novas formas de percepção do mundo, passa a questionar também a própria ideia de criação artística, contribuindo para desvalorizar a ambição mimética da literatura e das artes; os aparelhos agora desempenham melhor e mais rapidamente que a escrita ou a pintura a missão de representar. A partir da última década dos oitocentos, assiste-se, então, ao crescimento de uma crítica cerrada às convicções realistas e também naturalistas, no centro das quais, na França, estão Flaubert e Zola. Desde a morte de Flaubert, em 1880, começam a surgir dissensões, entre elas a ideia de um “romance psicológico”, mais voltado para as questões interiores, espirituais, mentais, a que se seguiriam depois o decadentismo e o simbolismo. Entre os inúmeros artigos e declarações às vezes virulentas que se levantam, principalmente contra o naturalismo, são dignos de nota os de Huysmans,15 que sempre desenvolvera temas caros aos naturalistas, mas agora propõe a necessidade de encontrar um novo caminho, como no excerto abaixo, retirado do primeiro capítulo de seu romance Là-bas, de 1891. Il faudrait [...] garder la veracité du document, la précision du détail, la langue étoffée et nerveuse du réalisme, mais il


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faudrait aussi se faire puisatier d’âme et ne pas vouloir expliquer le mystère par les maladies des sens [...] Il faudrait, en un mot, suivre la grande voie si profondément creusée par Zola, mais il serait necessaire aussi de tracer en l’air un chemin parallèle, une autre route, d‘atteindre les en deçà et les après, de faire, en un mot, un naturalisme spiritualiste […] (apud Becker, 2000, p. 180).16

Aos poucos fica cada vez mais difícil, portanto, acreditar na possibilidade de conseguir objetividade genuína por meio da literatura, mesmo porque essa objetividade significa agora a aceitação do próprio “mundo hostil” que a gerara e a alimentara até então, com as consequências visíveis, em todos os campos da vida social.

Recusa e invenção Como resposta a tudo isso, assiste-se a uma avassaladora perturbação do regime tradicional da representação, a “crise da representação”, traduzindo-se ao mesmo tempo no questionamento ou recusa das práticas anteriores e na invenção de novas poéticas ou modos expressivos. Mas a rejeição da interpretação realista não despojou a ficção de sua ambição de representar; é uma concepção de representação que se esgotou: a da civilização calcada na razão iluminista, a qual, pretendendo ser emancipadora, levara o mundo ocidental à mais sangrenta guerra do século XX; a que encarnava o todo-poderoso e empreendedor espírito burguês positivista e transformara a arte em mercadoria. Já não é mais possível “se entregar ao mundo com um amor que pressupõe que o mundo tem sentido” (Adorno, 1980, p. 269). Buscam-se, então, novos caminhos como possibilidades de resistência: emerge, como negação radical, a fantástica multiplicidade de soluções encontrada pelas vanguardas do início do século XX, notadamente o Surrealismo. Enquanto o realismo, de modo geral, determina racionalmente o sentido da representação, definindo os códigos

“Seria preciso guardar a veracidade do documento, a precisão do detalhe, a língua abundante e nervosa do realismo, mas seria preciso também mergulhar na alma e não querer explicar o mistério por meio das doenças dos sentidos. [...] Em uma palavra, seria preciso seguir o largo caminho aberto por Zola, mas também seria necessário traçar no ar um caminho paralelo, uma outra rota, alcançar o daqui e o de lá, fazer, em uma palavra, um naturalismo espiritualista [...]”.

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“a realidade possui uma miríade de formas”; “a experiência nunca é limitada ou completa; é uma imensa sensibilidade [...] é a verdadeira atmosfera da mente”. Disponível em: <http://www.mantex.co.uk/ ou/aa810/james-o5.htm>. Acesso em 09 mar. 2007. 17

Disponível em: <http://www.culturalbrasil. org/zip/breton.pdf>. Acesso em 04 mar. 2007.

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de leitura e de apreciação, sem dissipar a ilusão da transparência – a verdade da “mentira” –, as novas tentativas expressivas remetem às falhas, às fissuras da representação – às fissuras da própria realidade social –, pois “reality has a myriad forms” e “experience is never limited and it is never complete; it is an immense sensibility [...] it is the very atmosphere of the mind”, tal como define Henry James – cuja obra o demonstra – no seu conhecido texto The art of fiction, de 1884.17 Seja como for, a ênfase no não dito, proveniente da experiência individual e da visão subjetiva, torna-se cada vez mais acentuada, até atingir sua forma final no Surrealismo. Em 1924, André Breton define, no seu Manifesto do Surrealismo,18 a natureza do movimento, procedendo a uma implacável condenação do realismo e insistindo na procura de outros rumos, que não os da razão e da lógica.

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O processo da atitude realista precisa ser instaurado, em seguida ao da atitude materialista. [...] a atitude realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção (Breton, 1924, p. 2).

O que está em jogo e se desenha como a questão central para o Surrealismo é o julgamento da realidade; nesse sentido, a nova postura é lutar por um novo conceito de real e pela possibilidade de instaurar formas também novas de representação. Qual é, pois, a realidade do sonho e do desejo? Como representá-los? A “escrita automática” foi a possibilidade proposta, apoiada nas contribuições de Freud, que Breton saúda. Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vigorosamente, há todo interesse em captá-las (Breton, 1924, p. 5).


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Mas aqui é importante lembrar que o impulso inicial do realismo “burguês” baseava-se também num julgamento da realidade de então, todavia vista como concretude exterior ao sujeito. Veja-se o exemplo do fragmento retirado do prefácio de Germinie Lacerteux, dos irmãos Goncourt, em 1865: Vivant au XIXe siècle, dans un temps de suffrage universel, de démocratie, de libéralisme, nous nous sommes demandé si ce qu’on appelle ‘les basses classes’ n’avait pas droit au Roman; si ce monde sous un monde, le peuple, devait rester sous le coup de l’interdit littéraire et des dédains d’ auteurs [...]. Nous nous sommes démandé s’il y avait encore, pour l’écrivain et pour le lecteur, en ces années d’égalité où nous sommes, des classes indignes, des malheurs trop bas, des drames trop mal embouchés, des catastrophes d’une terreur trop peu noble, [...] si dans un pays sans caste et sans aristocratie légale, les misères des petits et des pauvres parleraient à l’interêt, à l’émotion, à la pitié, aussi haut que les misères des grands et des riches; si, en un mot, les larmes qu’on pleure en bas, pourraient faire pleurer comme celles qu’on pleure en haut (apud Chartier, 2005, p. 152).19

A tendência surrealista, portanto, parece inverter o princípio do realismo em que se funda a arte ocidental moderna, pois se refere a um mundo puramente interior, rejeitando os elementos da realidade concreta e o impulso transformador da sociedade, vista então como indigna, cruel e injusta, de acordo com a postura moral que sustentava o movimento oitocentista. Mas, numa leitura mais atenta, percebe-se que Breton acredita “na resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer” (Breton, 1924, p. 6). Na verdade, é possível pensar que na junção desses dois aspectos, sonho e realidade – vista como interioridade –, estabelece-se apenas uma refração do real e não seu desaparecimento, uma vez que um depende intrinsecamen-

“Vivendo no século XIX, época de sufrágio universal, de democracia e liberalismo, perguntamo-nos se o que se chama de “classes baixas” não teria direito ao romance; se esse mundo abaixo do mundo, o povo, deve continuar esmagado pela proibição literária e o desprezo dos autores [...]. Perguntamo-nos se existem ainda, para o escritor e para o leitor, nesses anos de igualdade em que estamos, classes indignas, infelicidades baixas demais, dramas tão pouco elevados, catástrofes de um terror tão pouco nobre, [...] se num país sem castas e sem aristocracia legal, as misérias dos pequenos e dos pobres falariam ao interesse, à emoção e à piedade, tão alto quanto as misérias dos grandes e ricos; se, em uma palavra, as lágrimas que se choram embaixo poderiam fazer chorar como aquelas que se choram em cima.”

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te do outro, articulando-se esteticamente nas montagens, a linguagem surrealista por excelência. Concretiza-se, portanto, nova possibilidade de representação, outro caminho, que não exclui a realidade, apenas considera suas “refrações”. Como aponta Adorno: As composições surrealistas podem ser consideradas, no máximo, como análogas ao sonho, na medida em que a lógica costumeira e as regras do jogo da existência empírica são descartadas, embora respeitem nesse processo os objetos singulares retirados à força de seus contextos, ao aproximar seus conteúdos, principalmente os conteúdos humanos, da configuração própria aos objetos. Há decomposição e rearranjo, mas não dissolução (Adorno, 2006, p. 136).

“Entramos na era da suspeita.” 20

Pouco depois da segunda Grande Guerra, em 1950, Nathalie Sarraute publica um artigo intitulado “L’ ère du soupçon”, com feições de manifesto, no qual assume sua posição em relação ao romance, rejeitando a antiga receita realista: “nous sommes entrés dans l’ère du soupçon” (Sarraute, 1997, p. 63).20 Percebe-se no subtexto de Sarraute a ideia já cristalizada pelas vanguardas, grosso modo, de que uma totalidade perfeitamente apreensível pelo olhar do artista tornouse inviável; o próprio processo histórico encarregou-se disso: duas guerras terríveis, além de fazer esmorecer qualquer impulso de ação política, destruíram a ilusão da representação total e seus avatares. Suspeita-se agora de um mundo reconstruído à imagem e semelhança da burguesia; suspeita-se de sua estética; suspeita-se, portanto, dos ambientes minuciosamente descritos, dos fatos perfeitamente documentados, dos narradores isentos e impassíveis, dos personagens construídos segundo um “estatuto de verdade”, a fim de manter intactas a “mentira”, a ilusão da referência, a “paisagem através da janela”. Em suma, na esteira do Surrealismo, que durou até 1939 – embora com diferenças, impossíveis de explorar aqui


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–, Sarraute postula “outra realidade” como inspiração do romance, composta de inquietações profundas, movimentos indefiníveis deslizando rapidamente nos limites da consciência e que estão na origem dos gestos, das palavras e dos sentimentos manifestos, parecendo constituir a fonte secreta da existência: “il n’était possible de les communiquer au lecteur que par des images qui en donnent des équivalents et lui fassent éprouver des sensations analogues” (Sarraute, 1997, p. 8).21 Todavia, a representação continua necessária, pois ainda há algo a representar; como refrações – a decomposição, a fragmentação, a atomização – pode-se representar aquilo que para a autora são os “tropismos”, a essência de sua busca, constituindo mais uma resposta à interminável “crise da representação”. A impossibilidade da figuração transparente do mundo administrado torna-se clara para uma consciência traída pela “irrealidade da realidade”, pela impotência dos atos e da própria linguagem. É possível aventar que as inquietações de Sarraute e dos surrealistas testemunham a tensão entre “a busca de uma liberdade subjetiva em uma situação de não liberdade objetiva” (Adorno, 2006, p. 138), acentuando-se então a interrogação sobre os signos, descartadas sua concretude e transcendência. Provavelmente, o último assalto à ideia de um “realismo clássico” tenha surgido com o nouveau roman, de Alain Robe-Grillet. Recusando expressamente o que chama de “mitos” das profundezas de Sarraute, ele se levanta contra qualquer tentativa de exprimir “a alma oculta das coisas”. E afirma que o novo romance deve se concentrar sobre a reprodução literal de um mundo reduzido apenas a superfícies, que diluem e desarticulam os personagens, em descrições longas e minuciosas; daí o nome de “escola do olhar”. Denunciando qualquer interioridade, todavia também não aceita a objetividade de tipo naturalista, pois pretende o registro puro e simples da concretude das coisas. No seu texto de 1963, Pour un nouveau roman,22

“Só é possível comunicálos ao leitor por meio de imagens que lhes sejam equivalentes e façam-no experimentar sensações análogas.”

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Por um novo romance.


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“Trata-se da velha ambição de Flaubert: construir alguma coisa a partir do nada, que se mantém em pé sozinha, sem ter que se apoiar em nada exterior à obra; essa é hoje a ambição de qualquer romance”. 23

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o autor pondera que o romance tradicional cria uma ilusão de ordem e significado inconsistente em relação à natureza radicalmente descontínua e aleatória da experiência moderna. Resultando de uma tensão não resolvida entre as palavras e as coisas – que evidentemente não vale apenas para o romance, desde Mallarmé, Valéry e Rimbaud –, a tarefa do novo romance seria, portanto, dispensar qualquer organização ou interpretação da realidade, simplesmente porque a realidade “está lá”: “C’est déjà la vieille ambition de Flaubert: bâtir quelque chose à partir de rien, qui tienne debout tout seul sans avoir à s’appuyer sur quoi que ce soit d’éxtérieur à l’oeuvre; c’est aujourd’hui l’ ambition de tout le Roman” (Robe-Grillet, 1963, p. 137-139).23 De Flaubert a Robbe-Grillet parece ter-se desenhado um círculo perfeito. O “pai” do realismo já intuíra aquilo a que se chegaria, em termos de possibilidades de representação, um século depois; foi também a recusa insistente do realismo que aguçou as condições de possibilidade de suas múltiplas refrações. Apesar das diferenças radicais entre si, tanto Sarraute quanto Robbe-Grillet não pretendem opor a aparência à essência, ou seja, o concreto ao abstrato, pois, segundo Chartier (2005, p. 191), suas formulações teóricas não são isentas de resquícios de positivismo: se, na primeira, persiste um sujeito que interroga e analisa, no segundo está sempre presente o olhar de um observador. De qualquer modo, ambos procuram dar, às exigências do mundo pósguerra, conturbado pela ascensão de novas formas de exploração e controle, em meio aos quais se debate um sujeito destituído de certezas, algumas respostas que decididamente passam longe de qualquer interpretação fácil. Olhando para trás, hoje se pode afirmar que as tentativas do nouveau-roman situam-se a meio caminho entre as conquistas das vanguardas, principalmente do Surrealismo, e as postulações pós-modernas de morte do sujeito, descentramento, desterritorialização, desidentificação etc.


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deles derivadas, que continuam a incidir diretamente sobre as concepções de realismo. Sua tonalidade austera e anódina, com descrições “físicas” precisas e estáticas, elevado sentido de ambiguidade dos pontos de vista, radicais disjunções de tempo e espaço, comentários autorreflexivos dos processos de composição e obediência à lógica dos próprios textos, na verdade representam – ainda e sempre – as vivências absolutamente novas do período pós-guerra, em que um “eu mínimo” se vê perdido e só num mundo em que reina a gestão tecnológica e a mercadoria, tanto quanto a objetividade fotográfica do realismo clássico representou a potência de um “eu soberano”, racional, seguro de seus poderes e prerrogativas, o “eu solar”, cartesiano, de que fala Luiz Costa Lima (2000, p. 84).

Eterno retorno A ideia de refração que procurei desenvolver, acompanhando a história do realismo, parece-me operacional, nos tempos que correm, para o dilema da representação realista, uma vez que, em nenhum momento, desde o surgimento de um realismo consciente, articulado e sistemático, correspondente ao sujeito positivista, até a sua aparente destruição, cem anos depois, com a crise da representação – o mais sério e duradouro assalto que se lhe fez –, ele deixou de resistir, escondendo-se sob as mais diversas aparências. Desde a transparência absoluta da “tela”, no início, até sua total opacidade, no final, ele resistiu, estilhaçado, para ressurgir reconstituído e forte, sobretudo na produção narrativa de massa, mas também em muitos textos considerados de qualidade. Cabe perguntar, portanto, a que se deve esse eterno retorno. Evidentemente não pode haver resposta conclusiva para uma questão de tal envergadura – e nem é essa a pretensão deste texto –, mas acreditamos ter encontrado uma pista para discussão no viés escolhido desde o início: aquele fornecido pela conceituação de R. Williams, o qual


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encara o realismo como um modo de representar as relações entre o social e o pessoal que não se limita a um simples processo de registro e/ou descrição, pois sempre depende, para sua plena elaboração, da apreensão das formas dessas relações, além da capacidade de também manejar as formas de percepção e de representação artística, mutáveis ao longo da história. Nesse sentido, trata-se de um modo de compreensão estética do mundo social, que o representa em profundidade, e não uma forma de representação presa apenas a aspectos aparentes ou a possibilidades dadas pela linguagem em si. Evidentemente existe aqui uma ideia de totalidade, rejeitada pela maioria da crítica contemporânea, que reafirma a crise da representação, admitindo a fragmentação, a atomização, o estilhaçamento como as únicas formas possíveis de representação de um mundo repetidamente dilacerado por guerras terríveis, tornado maior e menor pelas tecnologias de comunicação, administrado pelo espetáculo e desestabilizado das antigas certezas em relação às identidades e papéis sociais e à eficácia da própria linguagem. Nesse contexto, a noção de “progresso”, tão cara à razão iluminista, foi substituída pela recusa da ideia de história e por um acúmulo de experiências espetaculares administradas, que se sucedem num panorama caleidoscópico de fatos sem relação de causa e consequência. A negação cabal do realismo ou sua condenação crítica como uma “estética ruim”, para dizer o mínimo, viria a ser, então, a única resposta possível a esse admirável mundo novo. Todavia, fragmentação, atomização, indeterminação, ambiguidades traduzindo conceitos como fluidez de identidades, morte do sujeito e outros, nascidos do contexto histórico presente, admitidos como critério único de valor estético e crítico, são elementos que enfatizam apenas a recusa individual como esfera de sentido. Desse modo, o mundo exterior – quando é considerado – passa a ser apenas um dado material de que o eu se alimenta, que existe fora de si como mera contiguidade. Desaparece qualquer


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possibilidade de completude, de complementaridade, de interdependência ou mesmo de contato entre sujeito e objeto, o que desobriga de qualquer compromisso. O ponto a reter aqui é que, talvez justamente pela exacerbação desses aspectos, o realismo, saindo pela porta da frente, volta sempre pela dos fundos, como um modo – uma forma – de se impor ao sujeito como presença inescapável, representação da existência concreta do mundo, mesmo como simulacro. Volta como afirmação da própria impotência da criação autônoma diante do “superpoder do mundo-coisa” (Adorno, 1980, p. 270), do “mundo hostil”, infinitamente multiplicado e reiterado pelo espetáculo, que é sua linguagem. Volta despido de sua postura libertária dos primeiros tempos, de seu sentido coletivo, de sua intenção de penetrar profundamente no reino dos objetos para devorá-los por dentro, pois essa seria a prova – ilusória – da integridade e da potência do sujeito que os representa; volta refratado, como um modo de representar as relações de hoje entre o social e o pessoal; volta como sintoma e diagnóstico de um estado de coisas de alguma forma parecido com o do momento em que ele eclodiu como necessidade histórica. Assim, a violência, o choque, o trauma e mesmo a barbárie, mais que temas realistas, tornamse estratagemas estéticos, e o real avassalador – que deveria, mas não pode ser mudado – volta congelado em texto e imagem, cobrando caro o preço do espetáculo, não como simples “paisagem através da janela” ou como “efeito de real”, mentira, ilusão, mas sim “como testemunha da reversão da liberdade abstrata em uma supremacia das coisas” (Adorno, 2006, p. 139).

Referências ADORNO, T. W. A posição do narrador no romance contemporâneo. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. _____. Revendo o surrealismo. In: _____. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2006.


Realismo: a persistência de um mundo hostil

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A imagologia no Brasil: primeira tentativa de sistematização Celeste H. M. Ribeiro de Sousa*

RESUMO: O presente texto conforma uma tentativa de acompanhar num primeiro panorama – amplo e não demasiadamente detalhado – o desenvolvimento da imagologia no Brasil. Começa por apontar as primeiras imagens do país, que são heteroimagens; pontua as autoimagens, criadas com a independência nacional; aponta para a crítica imagológica que, ao contrário da europeia, particularmente da francesa, faz seu début no âmbito da psicologia social e da história em vez de na literatura comparada, e termina por sublinhar os estudos mais recentes nesta área. PALAVRAS-CHAVE:

Imagologia brasileira, autoimagens do Brasil, heteroimagens do Brasil, crítica imagológica brasileira.

ABSTRACT:

Professora Sênior colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã da Universidade de São Paulo (USP). Este texto é uma versão alargada, em português, de palestra proferida, a convite, na Conferência Internacional “Imagology today: achievements, challenges, perspectives”, realizada na Universidade de Zagreb – Croácia, em setembro de 2009. *

This text is an attempt to follow in a first outline (extensive and not too detailed) the development of the imagology in Brazil. It begins by pointing out the first images of the country that are heteroimages; punctuates the autoimages, created at the time of the national independence; points out the imagological criticism that, in opposition to the European and, particularly the French, makes its début in the area of social psychology and history, instead of within the area of comparative literature, and ends by underlining the more recent studies in this field. KEYWORDS: Brazilian imagology, brazilian autoimages, brazilian

heteroimages, brazilian imagological criticism.

A construção da primeira imagem: uma heteroimagem Antes de os escritores brasileiros se preocuparem com a autoimagem nacional, o território brasileiro já tinha sido


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alvo de várias tentativas de identificação, isto é, os vários povos que o haviam visitado já lhe haviam tecido uma imagem – uma hetero e arqui-imagem –, veiculada em suas literaturas. Trata-se dos cronistas viajantes portugueses, como, por exemplo, Pero Vaz de Caminha (Carta a el-rei dom Manuel, escrita em 1500), de Pero Magalhães Gandavo (História da província de Santa Cruz a que vulgarmente chamam Brasil, redigida em 1573), de Gabriel Soares de Souza (Tratado descritivo do Brasil, de 1587), de Ambrósio Fernandes Brandão (Diálogos das grandezas do Brasil, de 1618). Embora as primeiras crônicas citadas tenham sido escritas nas datas apontadas, sua publicação é, contudo, tardia: a História da província de Santa Cruz a que vulgarmente chamam Brasil é impressa três anos mais tarde, em 1576, e a Carta só vem a lume em 1817. Além dos portugueses, também escreveram sobre o Brasil recém-descoberto viajantes franceses, entre eles o primeiro, chamado André Thevet, frade católico, (Les singularitez de la France Antarctique – As singularidades da França Antártica, de 1558) ou ainda Jean de Léry (L’ histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, autrement dit Amérique – Viagem à terra do Brasil), publicado pela primeira vez, na França, em 1578, cuja tradução para o português só ocorre em 1889. Além dos franceses, igualmente os alemães estão entre as primeiras testemunhas europeias do Brasil. Já em 1515 surge na Alemanha um pequeno texto de autor desconhecido com o título New Zeutung aus presillandt (Nova gazeta da terra do Brasil) e, em 1557, Hans Staden, que havia sido aprisionado pelos índios Tupinambá, publica em Marburg um livro intitulado Wahrhaftige Historia (Duas viagens ao Brasil). Entre muitos outros, sobressai Carl Friedrich Phillip von Martius com um imenso tratado sobre a flora brasileira (Flora brasiliensis), de 1829, e o romance Frei Apolônio, de 1831. Sobre a obra de cada um destes autores e da dos demais escritores que tentaram retratar o Brasil há inúmeros trabalhos críticos à disposição dos interessados.


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O que se pode perceber dos elementos gerais que constituem a arqui-imagem produzida é que eles têm muito a ver com a ideia de paraíso, o que, aliás, é compreensível, pois durante toda a Idade Média se havia acreditado que o paraíso existia de fato em algum ponto da terra, talvez da Índia. Não sendo lá achado, as probabilidades de encontrar-se o Éden na América, o último reduto terrestre a ser desbravado, eram altíssimas. Diante de uma realidade tão exuberante, tão exótica e tão nova, não havia códigos linguísticos apropriados para sua tradução adequada, pelo que se recorre ao mito judaico do Jardim do Éden e aos mitos da Antiguidade Clássica (o Jardim das Hespérides, o velocino de ouro, a fonte da juventude, os faunos etc.) e, depois, ao mito do Eldorado para lhe dar forma. Assim, os traços gerais da arqui-imagem do Brasil estarão associados num primeiro momento a um espaço fertilíssimo e riquíssimo, de clima ameno, em eterna primavera, ocupado por gente primeva, próxima do primeiro homem. Este substrato, de uma forma ou de outra, dificilmente abandonará as metamorfoses que a heteroimagem do Brasil irá sofrer. Capítulo baseado em: SOUSA, Celeste Ribeiro de. Autoimagens literárias do Brasil: um recorte. In: SOUSA, Celeste Ribeiro de. Do cá e do lá: introdução à imagologia. São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2004. p. 301-348. 1

A construção da autoimagem1 O Brasil, como país outrora colonizado, trabalhou para, após sua independência de Portugal, construir uma literatura que lhe emprestasse identidade nacional, que desse corpo a seu novo status político, uma literatura, portanto, original, diferente das da metrópole e das demais europeias. Assim exigiam até simpatizantes estrangeiros da causa brasileira, tais como o francês Ferdinand Denis, os portugueses Almeida Garrett e Alexandre Herculano. Neste afã, sem dúvida, a preocupação com a construção de uma imagem, de uma autoimagem nacional, era manifesta. A imagem do Brasil e do brasileiro como filho da miscigenação racial e cultural entre um português e uma índia está, por exemplo, registrada pelo romântico José de


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Alencar no romance Iracema, de 1865, configuração de uma lenda de 1611. Com o tempo, a construção desta autoimagem tornase mais e mais complexa. Além das raízes étnicas e culturais, miscigenadas entre índios e portugueses, serão tematizados como elementos da imagem nacional também o locus rural, em particular o sertão, que carrega consigo o reconhecimento das fronteiras distantes do território ainda mal conhecido, e o locus urbano. O locus rural, o mundo distante da civilização, o mundo arcaizante, está, por exemplo, presente em Inocência (1872) do Visconde de Taunay, onde predomina a natureza virgem, a abundância, a hospitalidade sem restrições. Em 1902, Euclides da Cunha, em Os sertões, retoma esta vertente ruralista do Brasil, porque suas fronteiras mais longínquas ainda precisam ser dadas a conhecer. O texto constrói uma imagem de Brasil assente no choque de culturas e etnias diferentes, expande, desta forma, a ideia de nação, ao valorizar o país do interior esquecido em relação ao país do litoral, marcado por contatos mais intensos com o estrangeiro. Os sertões passam, então, a ser vistos como o locus da cultura brasileira mais pura, mais genuína, nacional por excelência. Neste mesmo ano de 1902, Graça Aranha publica o romance Canaã, em que explora a mesma vertente ruralista, mas de uma outra perspectiva. É o primeiro escritor brasileiro a trazer ao plano da ficção a imigração alemã no estado brasileiro do Espírito Santo. É sabido que no Brasil a maioria dos imigrantes de língua alemã se estabeleceu no campo e desenvolveu técnicas agrícolas baseadas no cultivo do minifúndio, algo novo no país à época. A imagem do Brasil, neste romance, é projetada no futuro, como um resultado a ser obtido da influência modernizadora e empreendedora alemã sobre o espaço físico e cultural do país, bem como da influência branqueadora da miscigenação alemã à pele mulata brasileira. Em 1934, Graciliano Ramos retoma a veia ruralista no romance S. Bernardo. Nele, retrata um Brasil arcaico às voltas com a


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modernização do trabalho no campo em nome do capitalismo, o que entra em choque com a tradição latifundiária da região, com os valores humanos e ideologias até aí cultivados. Em 1956, João Guimarães Rosa publica Grande sertão: veredas. Embora no espaço rural do romance se cruzem culturas de brancos, de índios e de negros, e nele se crie uma determinada mundividência que eleva a obra a um plano universal, o Brasil que aí é configurado é um país eminentemente rural, um país sertanejo. Em 1993, Francisco Dantas publica um romance com o título Os desvalidos, em que a linha ruralista é, mais uma vez, retomada, desta vez no estado do Sergipe no final dos tempos de terror do cangaço e da morte de Lampião. Francisco Dantas configura o homem sertanejo pelo viés da compaixão. Enquanto Euclides da Cunha, em 1902, escrevia que o sertanejo é um forte, Dantas registra agora que o sertanejo é um desvalido, nada lhe é favorável, nem o espaço físico, nem o político, nem o religioso, nem o familiar, nem sua própria compleição franzina. Esta vertente ruralista é cultivada por muitos outros escritores canônicos, cuja discriminação, porém, não se faz necessária ao objetivo desta primeira sistematização imagológica. A vertente urbana da autoimagem nacional é apresentada em dois estratos diferenciados: o das camadas populares e o das elites. As camadas populares urbanas como elementos da autoimagem nacional já estão presentes, por exemplo, no folhetim Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida (1852-1853), e resgatam de modo corrosivo o perfil da baixa classe média (barbeiros, comadres, parteiras, meirinhos, “saloias”) do Rio de Janeiro, ao tempo de D. João VI: um grupo social marcado pela malandragem, pela transgressão às leis e à ordem. Também o romance O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, foca a periferia da sociedade brasileira urbana. No ambiente criado pelo romancista, os brasileiros pobres, tipos étnicos variados, são retratados à la Zola, como turbulentos, sensuais, amorais, degradados, preguiçosos, em consonância


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com o meio ambiente tropical que habitam. Os problemas sociais causados pela Revolução Industrial na Europa são aclimatados ao Brasil, onde não há revolução alguma, mas, entre outros problemas, há um aumento desordenado da população mestiça, o aparecimento de marginalizados e uma querela entre escravagismo e antiescravagismo. O estrato social das elites encontra registro significativo no romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, que representa a alta classe social da cidade do Rio de Janeiro à época. Nas palavras do crítico Robert Schwarz, trata-se de um grupo social com as “ideias fora do lugar”, quer dizer, um segmento social que consegue conviver em simultâneo com uma estrutura econômica-social-política arcaica, baseada na exploração do trabalho escravo e favoritismo político e com as ideias modernas iluministas-liberais que, em suas frequentes viagens, vai beber na Europa, mais precisamente na França, e sobre as quais se manifesta durante reuniões dos mais diversos matizes. Em outras palavras, a alta sociedade urbana do Rio de Janeiro é como que esquizofrênica, fala uma coisa e faz outra. Em 1989, Ana Miranda, sem ser historiadora, persegue a reconstituição da história do Brasil no livro Boca do inferno. A imagem recriada do país foca a cidade da Bahia à época da colonização portuguesa, habitada pelo Padre António Vieira e pelo poeta barroco Gregório de Matos. Uma cidade degradada, feia e repulsiva, em muitos aspectos não condizente com os documentos históricos. Cito as palavras do crítico Antônio Dimas acerca do romance e da imagem de Brasil veiculada no romance: Ana Miranda restaura os cacos de um país vulgarmente tido como pacífico, substituindo essa mentira calcificada por uma outra, de caráter ficcional, mas bem consentânea com a verdade histórica [...] a mentira romanesca chega mais perto da verdade histórica do que a mitologia oficial que pinta esta terra como exemplo de cordialidade inesgotável(Dimas, 1989).


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Para além deste modo tríplice de emoldurar autoimagens do Brasil, há autores que tentam e conseguem iluminar o país como uma ampla unidade de diversidades. Em 1928, Mário de Andrade dá a lume o romance Macunaíma, um caleidoscópio de lugares geográficos brasileiros, rurais e urbanos, de épocas, de lendas indígenas, anedotas locais, folclore de origem africana, canções de origem ibérica, tradições portuguesas, incidentes pitorescos, episódios da biografia do autor, transcrições textuais de etnógrafos e cronistas coloniais, frases de personalidades célebres, modismos linguísticos, enumerações exaustivas, sonoridades curiosas etc. O título, por exemplo, é tirado do livro de Theodor Koch-Grünberg, que pesquisou os índios da Amazônia. Pretende o autor superar a visão regionalista do Brasil e dar-lhe um caráter unificado de “pátria tão despatriada”, segundo suas próprias palavras, no sentido de colocar em evidência, a um só tempo, a enorme diversidade que caracteriza a nação/estado brasileiros. Na literatura nacional, é talvez a primeira obra literária que consegue abarcar o Brasil como um Um, para usar terminologia do psicanalista italiano Contardo Calligaris em Hello Brasil. Em 1976, Darcy Ribeiro publica o romance Maíra. Como Mário de Andrade, Darcy Ribeiro quer trazer à literatura a representação de um Brasil uno em sua imensa diversidade. A imagem do país que sai das páginas desta obra dá conta dos choques culturais entre brancos, índios, mestiços, missionários jesuítas, missionários protestantes estrangeiros, fanáticos evangélicos, garimpeiros, políticos, policiais, habitantes civilizados das capitais, cientistas estrangeiros, gerando uma série de dissonâncias articuladas num gênero policial. Talvez seja este o romance que melhor retrata o Brasil como um Um pleno de diversidades. Apresento aqui apenas algumas das mais significativas produções literárias brasileiras, mas suficientes para mostrar como a autoimagem poética do Brasil prima pela fragmentação.


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A crítica imagológica: primórdios Na Europa, talvez à exceção da França, a literatura comparada e por extensão a imagologia literária, sua primeira vertente derivativa,2 sempre encontraram dificuldades diante da força das filologias. Na Europa, a Primeira Guerra Mundial e também a Segunda, a exigirem a defesa de fronteiras e a forçarem o pensamento nacional, acabam por dificultar a trajetória supranacional da literatura comparada [e da imagologia]: a par do reconhecimento de que a literatura comparada poderia ser o veículo de uma “liga de povos”, tomam corpo sentimentos patrióticos poderosos. E, talvez, tenha sido justamente esta dialética intensa entre o nacional e o supranacional, associada ao positivismo, que tenha levado ao desinteresse generalizado pela disciplina, apesar de diversas tentativas de institucionalização, muitas malogradas, tanto na Alemanha, quanto na Itália, na Suíça, na Inglaterra, na Dinamarca, nos USA, onde em conjunto com estudiosos locais, ou separadamente, alguns comparatistas franceses passaram a atuar (Sousa, 2007, p. 3). [...] O nacionalismo tranca as portas, arranca as aldravas e desliga as campainhas, declarando que apenas os que estão dentro têm direito de aí estar e acomodar-se de vez. O patriotismo é, pelo menos aparentemente, mais tolerante, hospitaleiro e accessível – deixa a questão para os que pedem admissão. E no entanto o resultado último é, quase sempre, notavelmente semelhante. Nem o credo patriótico nem o nacionalista admitem a possibilidade de que as pessoas possam se unir mantendo-se ligadas às suas diferenças, estimando-as e cultivando-as, ou que sua unidade, longe de requerer a semelhança ou promovê-la como um valor a ser ambicionado e buscado, de fato se beneficia da variedade de estilos de vida, ideais e conhecimento, ao mesmo tempo em que acrescenta força e substância ao que as faz o que são – e isso significa ao que as faz diferentes (Bauman, 2001, p. 203).

Leia-se sobre esta problemática o ensaio “Da etnopsicologia à etnoimagologia”, de Hugo Dyserinck. Disponível em: <http://www.rellibra.com.br> (publicações: Imagologia. Coletânea de ensaios de Hugo Dyserinck II, 2007). Também o ensaio “Sobre o desenvolvimento da imagologia”, do mesmo autor, trata do tema. Disponível em: <http://www.rellibra.com.br> (publicações: Imagologia. Coletânea de ensaios de Hugo Dyserinck I, 2005).

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Sobre a tensão, ainda hoje perceptível na Europa, mas diluída no Brasil, entre literatura comparada e filologias discorre Wolfgang Bader no ensaio intitulado “Literatura comparada – literatura nacional: sugestões germanísticobrasileiras”. No Brasil, as práticas comparatistas nos estudos de literatura, por assim dizer, sempre existiram, mesmo antes da institucionalização da disciplina entre 1950 e 1960. O status acadêmico confere à literatura comparada, a partir de então, um fôlego que não tem parado de crescer. Em 1986, a Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic) é criada na cidade de Porto Alegre. Neste mesmo ano, é publicado, salvo erro, o segundo manual de literatura comparada de uma autora brasileira – Tânia Franco Carvalhal – com o título Literatura comparada, cujo objetivo explícito é divulgar a matéria para estudantes universitários, e que em 1999 já está em quarta edição. O primeiro manual, também intitulado Literatura comparada, havia sido publicado por Tasso da Silveira em 1964, dedicado “à memória de La Fayette Cortes, eminente educador e criador da Cátedra de Literatura Comparada”, na esteira das propostas do francês Paul van Thiegem. Constam do conteúdo desse primeiro manual brasileiro os seguintes pontos: a obra literária, a literatura comparada, extensão dos estudos comparativos, literatura geral, tecnologia e divisão da literatura comparada, metodologia comparatista, eficácia pedagógica da literatura comparada, morfologia comparatista, tematologia, crenologia, mesologia, sobrevivência da obra literária, interpretações equívocas, um estudo de literatura comparada. Ao contrário das dificuldades enfrentadas pela literatura comparada na Europa, à exceção da França, acima mencionadas, no Brasil, a literatura comparada passa a reunir entusiasticamente todos os estudiosos de literatura em congressos de âmbito nacional, realizados a cada 2 anos a partir de 1988. No Brasil, todos os estudos de literatura se encaixam, de algum modo, em literatura comparada.


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Todavia, a imagologia literária, apesar de ser a sua primeira vertente derivativa, é, em terras brasileiras, uma prática recente e quase invisível. É mencionada de passagem apenas no livro de Tânia Carvalhal, que começa com um breve histórico da disciplina em território francês e em outros países, passa por um texto sobre as relações entre literatura comparada e literatura geral, fala das propostas clássicas e das grandes escolas, dos manuais franceses, do manual brasileiro, da questão das fontes, do caso Etiemble, do comparatismo em crise, do modelo estruturalista, das inovações metodológicas, das relações da teoria literária com o comparativismo, do difícil diálogo dos textos, das relações entre imitação e invenção, da intertextualidade, das noções de autoria e originalidade, da recepção produtiva, da interdisciplinaridade, das relações entre analogia, diferença e dependência, da voracidade antropofágica, das relações entre comparativismo e descolonização literária. Sobre imagologia, constam as seguintes palavras: Cabe ainda referir aqui que a investigação comparativista na Alemanha, dominada sobretudo por um critério de unidade, na tradição legada por Goethe e por todo o romantismo alemão, orientou-se inicialmente para os estudos de temas, motivos e personagens literários que circulam na literatura de vários séculos ou de vários países. Atualmente, volta-se para estudos de imagologia, de casos fronteiriços e de relações literárias, tendo, entre outros centros, desenvolvido esses estudos nos setores comparatistas de Aachen e Bayreuth (Carvalhal, 1986, p. 16).

Tânia Carvalhal refere-se a duas universidades alemãs com centros de literatura comparada onde a imagologia ocupa um lugar de destaque. Bayreuth, com Alois Wierlacher à frente, sempre estabeleceu um vínculo muito intenso com a germanística, em especial a ensinada aos estrangeiros, em que os conceitos de cultura e interculturalidade, bem como o alcance dos processos cognitivos, são usados como suportes teóricos. Todavia, os pontos de referência nos processos


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comparativos recaem muito fortemente nas culturas de língua alemã. O centro de comparatística em Aachen, chefiado por Hugo Dyserinck, reporta-se à tradição francesa e defende, para os processos comparativos, a presença de vários objetos de estudo que deverão ser examinados de uma perspectiva supranacional. Depois do manual de Tânia Carvalhal, vem a lume em 1997 um terceiro manual de literatura comparada, igualmente intitulado Literatura comparada, de autoria de Sandra Nitrini, resultado de suas pesquisas para a tese de livre docência, que logo se esgota. O livro apresentase dividido em 3 partes principais: a primeira sobre percursos históricos e teóricos, a segunda sobre conceitos fundamentais, como influência, imitação, originalidade, intertextualidade e recepção, a terceira sobre literatura comparada no Brasil. Neste livro, porém, não há nenhuma referência à imagologia. No entanto, embora não no âmbito dos estudos literários tidos stricto sensu, é possível descortinar estudos imagológicos a respeito do país, já em 1954, no livro O caráter nacional brasileiro, de Dante Moreira Leite, um psicólogo social, ou no livro de 1958, Visão do Paraíso, do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, duas referências nos estudos da cultura brasileira. Em O caráter nacional brasileiro, Dante Moreira Leite faz um imenso levantamento de autores e obras brasileiros que tentam explicar o Brasil, que delineiam uma série de autoimagens brasileiras, também sistematizadas, desde as crônicas do descobrimento, passando por textos poéticos da literatura brasileira, por ensaios de psicologia social, de antropologia, de história, até chegar aos anos 90 do século XX (Pero Magalhães Gandavo, Gabriel Soares de Souza, José de Alencar, Silvio Romero, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa, Paulo Prado, Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, Caio Prado, Sérgio Buarque de Holanda e outros). Segundo Moreira Leite, o Brasil nestes autores é visto, grosso modo, de 1500 ao Romantismo como uma terra abençoada, um


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paraíso; a partir do Realismo, instala-se uma perspectiva pessimista que retrata o país como um território tropical onde a civilização não é possível, onde tudo se degrada. O objetivo do autor, entretanto, vai além, ao analisar e desconstruir essas autoimagens, criticando o modo de pensar por meio de estereótipos e o afã inglório de apreender o caráter do povo brasileiro ou a psicologia da nação. Sérgio Buarque de Hollanda, em Visão do Paraíso, detém-se no estudo aprofundado daquilo a que chamo arquiautoimagem do Brasil. Trabalha com o imaginário do colonizador europeu, particularmente com o do espanhol e o do português do final da Idade Média e começo do Renascimento. Diferencia o modo de ver o novo mundo do espanhol e do português: enquanto o espanhol cria uma série de mitos da Conquista, derivados dos greco-judaicocristãos (paraíso terreno, Jardim das Hespérides, velocino de ouro, faunos/sátiros), o português só sustentará um mito cristão, o de São Tomé (Sumé), talvez por ser navegador mais experimentado e estar mais acostumado como o exótico.

A crítica imagológica: tempos recentes Estudos sobre a autoimagem do país são fartos em todas as épocas no âmbito das mais diversas disciplinas, muitos dos quais, como disse, foram levantados e analisados por Dante Moreira Leite. Mais recentemente, por exemplo, a filósofa Maria Helena Chauí publica, em 2000, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, uma análise demolidora da construção da autoimagem oficial do Brasil. Em 2009, sai o livro de Janaína Cordeiro Freire intitulado Identidade e exílio em terra estrangeira, um estudo do filme “Terra estrangeira”, de Walter Salles, que não preserva núcleos centrais de cultura, ou brasilidades, e afirma um país híbrido, controverso, de limites e fronteiras frágeis, onde a inscrição no mundo atual distancia-se de referências ou afiliações culturais (latinoameri-


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canas, terceiromundistas) engessadas, e redimensiona o tema da identidade não em termos de atraso ou modernidade, periferia ou centro, mas, de atraso e modernidade, periferia e centro. Terra Brasilis e/é Terra Estrangeira (Freire, 2009, p. 26).

Outros estudos encontram-se, sobretudo, nas Revistas da Abralic e nos Anais dos Congressos da Associação Brasileira de Literatura Comparada. Contudo, um estudo amplo dessa autoimagem, no âmbito estrito da literatura comparada, creio, está por fazer. Tento tocar nesse assunto no último capítulo, “Autoimagens literárias do Brasil: um recorte”, do livro Do cá e do lá. Introdução à imagologia, onde é mostrado que raros escritores conseguem trabalhar com a imagem caleidoscópica de um Brasil abrangente. No âmbito das heteroimagens literárias do Brasil, há estudos esparsos realizados por brasileiros, não relacionados à imagologia, e sim tratados, por exemplo, como presença do Brasil na literatura francesa, ou presença da França na literatura brasileira. Focam-se problemas poéticos, questões de interculturalidade e intertextualidade, mas não há referência específica à imagologia. É o caso das pesquisas do Grupo “Léry Assu”, fundado em 1978 por Leyla Perrone-Moisés. Tanto quanto sei, talvez o passo inicial no estudo sistemático de heteroimagens literárias do Brasil seja o meu livro Retratos do Brasil: Heteroimagens literárias alemãs. Este estudo, no entanto, foi executado na área de literatura alemã, tendo por pano de fundo teórico a germanística intercultural de Alois Wierlacher e Dietrich Krusche, com metodologia tirada do comparatista checo Dionýz Durisin, apoiada em noções de intertextualidade de Julia Kristeva e Laurent Jenny. Nesse livro, são examinadas 33 obras, desde o século XVII até 1982: romances, novelas, peças de teatro, peças radiofônicas, contos e poemas. O ponto de referência no processo comparativo é o topos do paraíso e o topos do Eldorado, encontrados respectivamente na Bíblia, nos livros medievais de Johannes Scotus, Santo Agostinho,


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Ernaldus e outros, bem como nas crônicas espanholas e portuguesas do século XVI sobre a América. Nos textos examinados, o Brasil está presente, ou como tema central, ou como elemento periférico. Algumas das obras são marcadas por altíssima poeticidade como, por exemplo, os poemas de Marie Luise Kaschnitz ou a peça radiofônica Das Jahr Lazertis, de Günter Eich; outras são menos conhecidas, como Der Engelwirt, de Emil Strauß, ou Samba, de Ulrich Becher. Em todos os escritos investigados, as imagens do Brasil evocam, de modos diversos, os topoi acima mencionados. As semelhanças e diferenças entre as imagens do paraíso/Eldorado configuradas por esses topoi e as imagens do Brasil veiculadas nas obras literárias de língua alemã selecionadas foram classificadas em tipos. As images brasileiras, no recorte feito, desvelam-se de duas perspectivas básicas: a espacial e a humana. Da perspectiva espacial, o Brasil surge associado à ideia de paraíso terreal ou psicológico. A fertilidade da terra primeva e as belezas naturais (flores coloridas e perfumadas, animais exóticos, árvores verdejantes, céu magnificamente azul, mar indescritível) assinalam o paraíso terrestre, que assegura a felicidade e o contentamento do espírito. O Brasil também surge, em algumas obras, como o paraíso das riquezas, o país das possibilidades econômicas ilimitadas, ou seja, como Eldorado – uma terra imaginária e lendária, muito rica em ouro, prata e pedras preciosas, onde os imigrantes podem enriquecer e tornar-se felizes. O Brasil também é configurado como paraíso psicológico, como um país de liberdade política, social e moral. No Brasil, as pessoas não sofrem sob uma rígida ordem social. Os imigrantes tentam começar, aqui, uma nova vida, desvinculada do passado, em geral triste. Neste caso, o Brasil é um lugar de refúgio. Da perspectiva humana conformam o Brasil índios, estrangeiros e brasileiros. Os índios – nobres, puros, primitivos e estranhos, os últimos vestígios do primeiro homem sobre a terra – habitam nestes textos a paisagem edênica. Os estrangeiros abrangem uma gama variada (alemães,


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portugueses, dinamarqueses, japoneses, italianos e outros). Todos, à exceção dos alemães, são exploradores do país. Nas obras estudadas, os imigrantes são acusados de destruir a natureza para obter ouro, prata e pedras preciosas, madeira de lei para vender ou construir casas na floresta. Apenas os imigrantes de idioma alemão são capazes de coadunar progresso, economia e proteção ao meio ambiente. Os brasileiros são, em tais textos, gente negra e mulata, primitiva, inculta, mística, irresponsável. O modo poético como estas duas imagens basilares de Brasil, a espacial e a humana, são criadas é variado. Ora as imagens da natureza e dos índios são levantadas sobre metáforas e comparações, ora são conformadas por meio de contrastes entre elementos emprestados da imagem do paraíso e elementos que funcionam como polos a ele opostos. Isto é particularmente visível na representação das cidades degradadas, ou na configuração da maioria dos imigrantes em oposição aos de língua alemã. Os escritores de língua alemã projetam no Brasil seus sonhos e, assim, dão forma metafórica e alegórica a seus próprios paraísos particulares. Configuram imagens da alteridade, mas de uma alteridade que não é senão a projeção da própria identidade às voltas com a tentativa e a dificuldade, senão impossibilidade, de entender ou de aceitar o outro, neste caso a realidade brasileira. Contudo, este paradigma imagológico, conforme minhas investigações, é superado, por exemplo, pelo jovem poeta alemão Ulrich Beil (1957-) em suas várias poesias sobre o Brasil, em especial na de título “Night thoughts”. Neste poema, Beil poetiza um conflito, mas termina o texto com o não reconhecimento, com a negação desse conflito. O poeta tece relações entre o passado e o presente, entre a velha cultura europeia e a suposta absolutamente nova cultura do “Mundo Novo”, entre o conhecido e o desconhecido, entre o presente e o futuro, entre a Alemanha e o Brasil, no fundo, entre o eu e o outro. Trata-se de um problema de identidade, do perigo de perdê-la. O modo


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como o eu-lírico articula todos estes elementos faz lembrar a estrutura de um computador: clica-se uma palavra e, neste clique, abre-se uma janela cheia de informações. Continua-se a clicar em outra palavra, e uma outra janela de saber infinito se escancara ao leitor. Este saber move-se em círculo e liga tudo no poema, de tal forma que aquilo que o eu-lírico conhece, ou seja, a cultura europeia (mitologia grega, alquimia, Idade Média) e aquilo que ele aprendeu, isto é, o exotismo e a modernidade do Novo Mundo (esmeraldas, palmeiras, calor intenso, arranha-céus, bancos gigantes, criminalidade) amalgamam-se num todo. Os elementos exóticos são, no fundo, criações europeias do tempo das grandes descobertas e da colonização do país e os símbolos da Modernidade pertencem, em geral, ao mundo globalizado, são semelhantes em qualquer lugar. Desta maneira, o eu-lírico faz a fusão do velho com o novo, do passado com o presente e o futuro. Talvez se pudesse dizer que esta mudança de paradigma tem a ver com a atual fase internet do movimento de globalização. Pelas media modernas experimenta-se uma gradual desterritorialização do próprio e do alheio. Ambos os âmbitos começam a interpenetrar-se. No poema acima, o Brasil surge não mais como periferia, como o outro, tal como no velho paradigma; o Brasil é agora, simplesmente, uma parte equânime do todo. Voltando ao desenrolar desta pesquisa, é preciso, contudo, observar que só depois de a ter terminado, em 1988, fiquei sabendo, pelo professor visitante Prof. Dr. Theo Buck, da Universidade de Aachen, da existência do Departamento de Comparatística dessa universidade, onde a imagologia ocupava um lugar de destaque, coordenado por Hugo Dyserinck, a quem escrevi, e que gentilmente me remeteu alguns de seus ensaios e livros, os quais vieram a embasar mestrados e doutorados que orientei/oriento dentro do Grupo de Pesquisa “Rellibra” (www.rellibra.com.br), que fundei em 1993.


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Tenho acompanhado os congressos da Associação de Literatura Comparada no Brasil desde o começo, em 1988, e posso dizer que, embora se possam tecer comentários sobre determinadas imagens do Brasil, o assunto não é associado a uma disciplina comparatística de nome imagologia. A designação continua, de um modo geral, ignorada pelo grande público acadêmico e mesmo pelos comparatistas. O livro específico sobre imagologia que publiquei em 2004, Do cá e do lá. Introdução à imagologia, apesar de definir o que se entende, hoje, por imagologia, de oferecer-lhe um método, de trabalhar o alcance e os limites do processo cognitivo por meio das imagens, de questionar as fronteiras da literatura perante a história, de ter sido subsidiado pela minha Universidade, pelo DAAD e pela Fapesp, foi muito discretamente recebido. Os comparatistas brasileiros preferem trabalhar com conceitos tais como ideologia, hibridismo, pós-colonialismo, intertextualidade, literatura de minorias, literatura de imigrantes etc. Já ouvi dizer que, para o Brasil, o estudo das suas heteroimagens é irrelevante, como se as opiniões alheias não fossem fundamentais para o conhecimento do que é próprio. Nestes últimos anos entraram em voga os estudos comparativos entre a literatura brasileira e as demais sulamericanas, mas também aqui a imagologia continua, por assim dizer, uma ilustre desconhecida. Também devo dizer que a comparação entre as realizações literárias dos países de língua portuguesa, ou seja, as literaturas africanas de Angola, de Moçambique, de Cabo Verde, em sua relação com a brasileira e com a portuguesa, também estão em alta. Há estudos imagológicos neste âmbito, mas a palavra imagologia também é preterida em favor de outros termini, como os acima mencionados. Todos esses termini, no entanto, só instrumentalizam a análise linguística/literária e cultural dos próprios textos, inclusive daqueles que conformam imagens de países, em outras palavras, também servem às pesquisas imagológicas. A imagologia, hoje, tem condições de ser uma disciplina autônoma, sendo a imagologia literária uma de suas


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vertentes. Construir imagens de países é costume antigo e está associado à constituição da identidade grupal, que tem a ver com a criação do poder e da proteção do grupo e do indivíduo dentro dele. E, embora não se consiga fechar uma definição para “identidade” (tanto individual quanto grupal), já que o problema “emerge sob uma multiplicidade de elementos, o que sempre leva a impasses, quando se aborda a questão, porque esta se coloca num nível puramente relacional” (Sousa, 2004, p. 142), fato é que o assunto “identidade” ainda hoje se impõe, talvez mais do que nunca, no bojo da tão propalada e irresistível onda de globalização cultural que varre o planeta, pois “a fraternidade comunitária seria incompleta, talvez impensável, ainda que invejável, sem essa inclinação fratricida inata” (Bauman, 2000, p. 198). Sem dúvida, as pesquisas imagológicas em nosso tempo globalizado são indispensáveis para se entender e/ou aceitar não só o próprio e o alheio, mas também e, sobretudo, o modo como o próprio e o alheio se articulam, interligam e interagem. Investigar esses movimentos é a tarefa multidisciplinar da imagologia, de que a imagologia literária é coadjuvante. Cada país ou nação, qualquer que seja seu formato (Estado/nação, comunidade imaginária, comunidade linguística, comunidade pós-nacionalista), precisa aprender a ler-se no contexto planetário, se quiser manter sua voz.

Referências BADER, Wolfgang. Literatura comparada - literatura nacional: sugestões germanístico-brasileiras. In: CARVALHAL, Tânia Franco. 1º Seminário Latino-Americano de Literatura Comparada. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1987. p. 109-118. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. 4. ed. São Paulo: Ática, 1986.


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CHAUÍ, Maria Helena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. DIMAS, Antônio. A retomada do romance histórico brasileiro. Jornal da Tarde, São Paulo, 19 ago. 1989. FREIRE, Janaína Cordeiro. Identidade e exílio em terra estrangeira. São Paulo: Annablume, 2009. HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959. LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. História de uma ideologia. São Paulo: Pioneira, 1983. NITRINI, Sandra. Literatura comparada. São Paulo: Edusp, 1997. SILVEIRA, Tasso da. Literatura comparada. Rio de Janeiro: GRD, 1964. SOUSA, Celeste Ribeiro de. Do cá e do lá. Introdução à imagologia. São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2004. . Apresentação: brevíssima história da literatura comparada. In: SOUSA, Celeste Ribeiro de (Org.). Imagologia. Coletânea de ensaios de Hugo Dyserinck II. 2007, E-book. Disponível em: <http:// www.rellibra.com.br> (publicações). Acesso em 24 abr. 2009.



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O artista fantasma e a máquina mitológica Raúl Antelo*

RESUMO:

A máquina mitológica é um mecanismo que subjaz a nossos modos convencionais de estabelecer a diferença humano-animal. Busca compreender a emergência do humanismo autonomizado, a partir do âmbito animal humano, e tenta atribuir uma certa animalização a certos aspectos da vida nua, numa tentativa de separar o primitivo do civilizado. Quem estiver situado nos limites do humano sofre consequências similares às daqueles seres captados pelo funcionamento da máquina mitológica, de modo que a biopolítica contém em si mesma a possibilidade virtual de certos meios niilistas de produzir e controlar a vida nua. O movimento inje-inje, um grupo de modernistas novaiorquinos, mostra-nos que a diferenciação humano-animal precisa ser abolida junto com a máquina mitológica e antropológica que produz essa diferenciação.

PALAVRAS-CHAVE:

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). *

vanguarda, primitivismo, vida nua.

ABSTRACT: The mythological machine is a mechanism underlying our current means of determining the human-animal distinction. It seeks to understand the emergence of the fully constituted humanism from out of the order of the human animal and tends to involve an animalization of certain modes of human life, in an attempt to separate out what precisely is primitive on the one hand and civilized on the other. Beings situated at the limits of humanity suffer similar consequences to those beings caught within the working of the modern mythological machine so biopolitics contains within it the virtual possibility of certain nihilistic means of producing and controlling bare life. The inje-inje movement, a group of New York avant-garde artists, shows us that the humananimal distinction needs to be abolished altogether along with it the mythological and anthropological machine that produces the distinction. KEYWORDS:

avant-garde, primitivism, bare life.


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…there was one, the ghost artist, and there was one about the famous so-called Inje-Inje, which John Baur at the Whitney Museum wrote about… (Cahill, 1960)

Todos nós nos lembramos da associação que Walter Benjamin faz entre a ficção de Kafka e o mundo primordial das hetairas. As fontes para estas considerações benjaminianas a respeito da proto-história remontam aos estudos de Ludwig Klages (Vom kosmogonischen Eros, 1922), e também aos escritos de Johann Jakob Bachofen (18151887), autor sobre o qual Benjamin chegou a escrever um pequeno ensaio, em 1934, em francês, onde compara Aby Warburg, como exemplo do teórico grand seigneur, à maneira de Alöis Riegl, por seu resgate do bizarro, ao seu complemento, o anarquista Elisée Reclus, autor de uma teoria onicompreensiva de espaços e tempos.1 Mas há outro aspecto da teoria de Bachofen que eu gostaria de relembrar aqui. Em seu ensaio sobre o teórico da Basileia, recentemente editado de forma póstuma, Furio Jesi (1941-1980) ilumina um aspecto da teoria da máquina mitológica, tributária das teses sobre filosofia da história de seu antecessor, que vale a pena recordar: Mentre il rapporto con l’antico, fin dalle prime riscoperte dei monumenti romani e greci, ha dato vita nella cultura occidentale ad un filone di indagini esoteristiche, parallele e sovente intrecciate a quelle propriamente filologiche, il rapporto con i “selvaggi”, fin dagli esordi dell’etnografia e dell’etnologia, è di solito rimasto alieno da un approccio di tal genere: quasi che i diversi in quanto antichi possedessero segreti e i diversi in quanto “selvaggi” ne fossero privi. Ricorderemo un solo esempio. Il benedettino Dom Pernety, archeologo, filologo, esoterista, da un lato era disposto a riconoscere nella tradizione mitologica circa la guerra di Troia i simboli dell’operazione alchemica, d’altro lato, nella relazione del suo viaggio con Bougainville alle Isole Malvine, si limitava ad assumere la parte dell’etnografo e descriveva i costumi dei “selvaggi” senza

Cf. Benjamin, 2002, p. 1124. Sobre Reclus me detive em As flores do mal: sintoma e saber anti-modernos. In: Ausências, 2009, p. 13-33.

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O artista fantasma e a máquina mitológica

Anteriormente, em Mito (1973), dizia Jesi: “Neste quadro global, Creuzer e Bachofen colocam-se imediatamente a uma luz equívoca aos olhos daqueles que do Iluminismo tinham escolhido unicamente a ‘face luminosa’, arrastando a luz para a ‘objectividade filológica’. Tanto Creuzer como Bachofen dirigiam-se, pelo contrário, às ‘profundidades do ser e do pensamento’, à região obscura que se apresentava como um perigo, como um terreno de perigosas areias movediças ou de pântanos cheios de fantasmas, frente às certezas iluministas. E o perigo era particularmente grande porque a essência do pensamento iluminista implicava uma precisa dialéctica entre luz e trevas, que desaguava frequentemente em exorcismo das trevas: na luz entendida como ‘o contrário das trevas’, mais do que na convicção – agostiniana – da ‘treva’ como ‘ausência de luz’. Creuzer era culpado de ter atribuído à ‘ciência’ do símbolo e do mito – por conseguinte, à filologia – características de ‘ciência’ do sentido da história. Mais culpado ainda era Bachofen, o qual propunha um fundamento funerário da propriedade (núcleo da propriedade é a propriedade fundiária, núcleo da propriedade fundária é o túmulo) e punha o estudioso da mitologia frente à responsabilidade rousseauiana de exegeta das características das 2

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ricercarvi alcun segreto, da puro e semplice viaggiatore curioso e discretamente obiettivo2 (Jesi, 2005, p. 25).

Jesi nos diz, em poucas palavras, que, para equacionar as relações entre o antigo e o selvagem, é necessário, antes de mais nada, analisar os modelos gnoseológicos utilizados para produzir as múltipas categorias do diverso às quais recorremos quase sem pensar. Diz-nos que os primeiros viajantes às Malvinas eram esotéricos na medida em que reconheciam, nas formas simbólicas, a precedência de antigos esquemas, mas, não obstante, eram igualmente científicos enquanto, abolindo o segredo, descreviam usos e práticas culturais com uma suposta objetividade universal. Jesi planta assim, no coração mesmo do mito (a fábula), o espelho da mitologia (a ficção). Diz-nos, pois, que a lógica da representação (a história) está minada, então, pelo regime da verdade (da ambivalência). E explica: Nell’attribuire ai diversi-antichi e non ai diversi-selvaggi la proprietà del segreto, gli esoteristi non si limitano a custodire passivamente la loro ricchezza, ma la difendono attivamente, usufruendo della dimensione temporale (in cui collocano l’esibizione dei beni) per conferire fondamento alla progettazione della durata dei beni esibiti. La sfera dei diversi-antichi custodisce come un astuccio definitivamente suggellato la radice del segreto, inteso quale differenza per eccellenza. Nel dicchiarare riposta laggiù quella radice, gli esoteristi la pongono deliberatamente al riparo dai turbamenti della storia: al sicuro, in un luogo ove essa non potrà mai essere tagliata e quindi potrà sempre fondare e alimentare la durata futura della pianta. I diversi-selvaggi, che godono della contemporaneità con gli esoteristi, sono invece esposti quotidianamente ai pericoli della storia – e tanto più dall’istante in cui la loro scoperta da parte dei “civili” ha rotto le ultime barriere che separavano il loro tempo da quello dei “civili”, la loro storia dalla storia d’Europa. Ciò significa, d’altronde, che la vera diversità, la diversità per eccellenza, quella che può coincidere con il segreto in quanto somma diversità, è solo


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la diversità nel tempo, poiché solo la diversità nel tempo è configurabile come efficace elemento di rottura del modello della storia quale unico continuum. E proprio tale rottura è l’obiettivo preliminare delle dottrine e delle prassi esoteriche (Jesi, 2005, p. 27-28).

Em 1916, um poeta claramente esotérico, Ezra Pound, pretendia traduzir um texto de Vicente Huidobro, Horizon carré, para o inglês. Nesse mesmo ano, em sua “Arte poética”, o poeta chileno se perguntava: “Por qué cantáis la rosa ¡oh Poetas!/ Hacedla florecer en el poema”3 (Huidobro, 1916), ideia que pouco depois o mesmo Huidobro admitiria, em francês, que havia sido transmitida, como em uma revelação, a ele mesmo, por um poeta aimará: “esta idea del artista como creador absoluto, del Artista-Dios, me la trasmitió un viejo poeta indigena de Sudamérica (aimará) que dijo: ‘El poeta es un dios; no cante a la lluvia, poeta, haz llover’”4 (Huidobro, 1921). Do mesmo modo, o mexicano José Juan Tablada também registrou, em 1923, que a decadência dos velhos padrões da arte greco-romana inclinava os artistas modernos até os primitivos da Etrúria, Ásia, África e América, em uma busca ardente do Paraíso Perdido e seus frutos dourados, pela visão direta, a forma pura e a expressão clara. Em 8 de abril deste ano, depois de proferir uma conferência sobre a arte mexicana em Washington, Tablada copia em seu diário uma passagem da História da arte, de Élie Faure, em que o crítico francês argumenta que uma civilização é um fenômeno lírico e é por meio dos monumentos que eleva e deixa para trás de si que apreciamos sua grandeza e qualidade.5 Nesta mesma linha de trabalho poético, temos, na Nova York de 1920, uma insólita derivação que não é de fonte científica, mas sim esotérica. Com efeito, Holger Cahill (1887-1960) lança ali o movimento inje-inje, de declarada inspiração indígena sul-americana. Mas quem era Cahill, figura hoje completamente esquecida?6 Recordemos que Holger Cahill organizou as primeiras exposições sobre arte etnográfica norte-americana, American primitives e American

sociedades ‘primitivas’ e, por conseguinte, de todas as sociedades humanas, graças à equivalência ‘primitivo’ = ‘primordial’, portanto fundamento perene” (Jesi, 1977, p. 70). Na tradução de Dante Milano, a Arte Poetica de Vicente Huidobro torna-se “Que o verso seja como uma chave / Que abra mil portas / Cai uma folha. Algo passa voando / Criado seja tudo que os olhos veem / E a alma do ouvinte se extasie trêmula. / Inventa mundos novos e escolhe a tua palavra / O adjetivo quando não dá vida mata / Estamos no ciclo dos nervos / O músculo está pendente / Como uma recordação nos museus / Mas nem por isso temos menos força / O vigor verdadeiro / Reside na cabeça. / Poetas por que cantais as rosas? / Fazei-as florescer no poema / Todas as coisas debaixo do sol / Existem só para nós / O poeta é um pequenino Deus”.

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“Cette idée de l’artiste créateur absolu, de l’ArtisteDieu me fut suggérée par un vieux poète indien de l’Amérique du Sud (Aïmara) qui dit: ‘Le poète est un Dieu, ne chante pas la pluie, poète, fais pleuvoir’”. Ao que Huidobro acrescenta sua ponderação bem século XIX e autonomista: “Bien que l’auteur de ces vers tombât dans l’erreur de confondre le poète avec le magicien et de croire que l’artiste pour se montrer créateur doit troubler les lois du monde, alors que ce qu’il doit faire c’est créer son monde propre et indépendant

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parallèlement à la nature” (Huidobro, 1921, p. 772). L’Esprit Nouveau era a revista do cubismo construtivista animada por Le Corbusier. Seu crítico literário era Paul Dermée, que defendia uma teoria da modernidade de inspiração baudelairiana. Tanto os ensaios de Dermée como os de Huidobro são de capital importância na elaboração do modernismo primitivista de Mário de Andrade. José Maria Arguedas é outro escritor que poderíamos associar a esta dinâmica transcultural. Recordemos seus ensaios sobre “El valor poético y documental de los himnos religiosos kechuas” (La Prensa, Buenos Aires, 28 jan. 1945) ou sobre as “Canciones quechuas” (Américas, Washington, Unión Panamericana, n. IX, out. 1957, p. 33-34). 5

Cf. Tablada, 1992, p. 221.

Para as informações sobre Cahill, baseio-me no trabalho de Alan Moore, que defendeu uma tese sobre o autor, em 1996, e a quem agradeço as informações recebidas. Devo a primeira leitura deste texto a Antonio Saborit, que também se ocupou da sua tradução ao espanhol. Cf. Moore, 2005. 6

Ver, a este respeito, Baur, 1957. A edição foi promovida por Jorge Romero Brest, que inovara na crítica de artes plásticas latino-americana, primeiramente, com seu livro sobre arte norte-americana e, a seguir, em 1945, com seu ensaio sobre a pintura brasileira contemporânea. 7

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folk sculpture, no Museu de Newark, entre 1929 e 1931, e mais tarde, em 1932, outra, American folk art: The art of the common man in America, 1750-1900, seguida por American sources of modern art, no ano seguinte, no mesmo Museu de Arte Moderna de Nova York, instituição da qual foi diretor, assistindo, aliás, nessas tarefas, Alfred H. Barr Jr. Estudante de jornalismo na Universidade de Nova York, Cahill travou amizade, nessa época, com Irwin Granich, mais conhecido como Michael Gold, o eminente escritor comunista americano. Em 1914, Gold conseguiu para o seu amigo o primeiro emprego profissional, como editor de dois jornais de Westchester, o Scarsdale Inquirer e a Bronxville Review. Uma crônica apresenta esses dois recém-chegados aos círculos artísticos de Nova York e os descreve como o “moreno judeu estadunidense volúvel”, no caso de Gold, e no de Cahill, como “um loiro de olhos azuis, forte, com a pálida expressão fanática de William Blake”, ambos, entretanto, unidos fervorosamente em torno do movimento poético inje-inje (Gold, 1921, p. 28-31). Em 1918, de fato, Cahill lembra-se de ter lido uma obra etnográfica escrita por um membro da Real Sociedade Geográfica, que bem poderia ser Exploração na Guiana Brasileira, de Alexander Hamilton Rice, em que se narrava a história de “uma tribo em uma região localizada entre o Amazonas e os Andes que era tão primitiva que só contava com duas palavras, e o resto de sua comunicação era suprida com os gestos. As palavras eram inje-inje”7 (Cahil, 1957, p. 118). Esta esotérica fundação mitológica de Nova York os fez prestar atenção em outros fenômenos coincidentes. Dois amigos de Cahill, os artistas plásticos John e Dolly Sloan – que, em 1919, visitaram Santa Fé, no Novo México, inspirados aliás por uma figura que, à época, gravitava nos círculos de vanguarda, o francês Robert Henri, que, por sua vez, havia estado ali anteriormente, em 1917, levado pelo etnólogo Edgar L. Hewett –, são os que de algum modo importam a arte pueblo para Nova York. A paisagem do deserto e os cerimoniais dos índios pueblo le-


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varam Sloan a pintar e a promover mais tarde, em Manhattan, a arte ameríndia, exibindo, na mostra da Sociedade de Artistas Independentes, pinturas de artistas pueblo provenientes das coleções do doutor Hewett e de Mabel Dodge Sterne. Mas à diferença de Sloan, um esteta, a relação de Cahill com os indígenas americanos teve, segundo um estudioso, Allan W. Moore, uma dimensão extraestética e até mesmo autobiográfica, que remontava a sua infância em Dakota do Norte, onde Cahill havia conhecido os índios sioux e os chipecua. Seja como for, por experiência direta ou constituição teórica a posteriori, o fato é que a exposição novaiorquina dos pueblo precipita, de algum modo, a divisão no seio da Sociedade de Artistas Independentes. Com efeito, organizada na base do modelo francês, a Sociedade de Artistas Independentes era o reflexo fiel das ideias estéticas de Robert Henri e, entre seus diretores, figuravam tanto realistas antiacadêmicos como modernistas radicais. Entretanto, a contratação de Cahill, como promotor da exposição da Sociedade de Artistas Independentes, em fevereiro de 1921, acabou por derrubar o exdiretor da instituição, Hamilton Easter Field e, em pouco tempo, suas atividades à frente da agremiação precipitaram também a divisão irreconciliável entre seus membros. O setor mais conservador, com Walter Pach na liderança, abateu-se, com intolerância iconoclasta, contra as iniciativas de Cahill, tal como ficou refletido na exposição das aquarelas dos índios pueblo. Cahill escreveu então um artigo sobre essas obras para a International Studio, “America has its ‘Primitives’”8 (Cahill, 1922, p. 80-83), onde dizia apreciar particularmente essas obras, primeiro, por testemunharem cerimônias em perigo de extinção, dramas dançantes nos quais se imitam os atos de seres sagrados que auxiliam e sustentam os homens, onde o índio pueblo surge “como artista de una pantomima simbólica”, sem comparação em qualquer outro lugar do mundo. À diferença do “pintor americano ou do europeu”, os quais pintam “o fenômeno”, consignando as sensações visuais, o “índio se

Ao escrever sobre os índios pueblo, Cahill teve o antecedente de vários artigos de Hewett, em que se reconheciam os rastros prévios de Waldo Frank, tal como a nota linguística sobre a beleza e a felicidade que o próprio Cahill atribui a Frank. A ideia é profícua. Permite-nos, ao mesmo tempo, pensar a relação entre mito e máquina. Quando Waldo Frank visitou Amigos del Arte, em Buenos Aires (1929), suas duas primeiras conferências se chamaram “Whitman: El artista, el profeta, el americano” e “Profetas en el arte moderno de Norteamérica. Isadora Duncan y la danza. Alfredo Stieglitz y la pintura. Eugenio O’Neil y el teatro. El desarrollo del jazz. Chaplin y la revolución”. Podemos imaginar suas palavras a partir do que consigna seu livro Ustedes y nosotros, em que Waldo Frank atribui o papel de pai fundador do clã americano a Alfred Stieglitz: “Stieglitz ha sido fotógrafo. Sus obras están en algunos de los más grandes museos del mundo: Nueva York, Londres, París – en tiempos pasados también en Berlín y Viena, hasta que el hecho de ser judío quitó todo valor a la obra de este fervoroso americano. Siempre rechazó el término ‘artista’; nunca retoca un negativo; y es el enemigo jurado del ‘arte fotográfico’. ‘Soy un artesano – dice – un hombre que usa una máquina, humildemente, ante la naturaleza’. Muchos de nosotros creemos que sus 8


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fotografías de Nueva York, sus estudios de nubes, sus retratos mágicamente reveladores del carácter, sus desnudos de mujer que tienen un dinamismo estilizado, no sin relación con la escultura egipcia, hacen de él el más grande fotógrafo que haya vivido. Y si esto es así, es importante que en nuestra tierra de máquinas, nuestra tierra selva de máquinas, el hombre de sensibilidad más profunda, de visión más personal, quizás, haya elegido una cámara fotográfica, – una máquina – para expresar su visión. Stieglitz no es un filósofo. Pero, con todo, si un verdadero Nuevo Mundo nace en América, los filósofos discutirán la significación metafísica de Alfred Stieglitz. Sin embargo, mis pensamientos están hoy con él, no como el artesano cuya humildad ante el hecho ha producido milagros (solo el amor – cuyo otro nombre es humildad – hace milagros): sino como el Sócrates americano que ha nutrido a toda una generación de pintores, escritores, hombres y mujeres creadoras. Digo: nutrido, y no mimado. Este hombre ha sido duro y despiadado. Muchas veces, en los tiempos idos, fuí a él, angustiado, buscando consuelo. Nunca encontré el consuelo; obtuve, en cambio, una visión de la verdad que curaba el egoísmo de mi angustia” (Frank, 1942, p. 146-147).

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concentra na coisa mesma... O índio consigna o que ele sabe, corrigindo sua visão por meio de seu conhecimento e de sua compreensão instintiva”. Mais tarde, em 1934, Cahill colabora no catálogo da exposição de Arshile Gorky, para as Galerias Mellon da Filadélfia, junto a outros artistas conceituais como Frederick Kiesler e Stuart Davis e, nos anos 50, chegou a resenhar para a New York Times Book Review duas obras, The Eagle, the Jaguar, and the Serpent, Indian Art of the Americas (1954) e Indian Art of Mexico and Central America (1957), de alguém muito vinculado ao surrealista Wolfgang Paalen, o pintor mexicano Miguel Covarrubias. Trata-se de peculiares experiências de anacronismo que, na América Latina, tinham sido propostas, inclusive, por Lucio Fontana, que acreditava que os homens pré-históricos, ao perceberem, pela primeira vez, um som produzido por golpes dados sobre um corpo oco, se sentiram subjugados por essas combinações rítmicas, a ponto de transformarem a arte em uma questão de toque e contato (Fontana, in Cipollini, 2003, p. 192), algo em sintonia com as experiências de John Cage, em Totem ancestral (1943), Terra espontânea (1944) ou Música para Marcel Duchamp (1947). É a época, aliás, em que Sérgio de Castro, frequentando o Atelier Torres Garcia, empreende uma viagem pela região andina, para aprofundar o conhecimento das culturas précolombianas. Cahill, pioneiro nesse aspecto, compreende, portanto, na coisa mesmo, a unidade da cultura indígena, entendida como uma vida estética e religiosa integrada à natureza. Aludindo a “algumas das línguas indígenas”, que só contam com uma palavra para descreverem a felicidade e a beleza, Cahill contrasta este fato com o mundo contemporâneo, descrito, em um arroubo crítico, como uma “sórdida Babel industrial”, produto do “Povo da Máquina”, que levou o feio à sua apoteose. Sua proposta estética, o injeinje, não passaria, pois, de uma imitação performativa pautada pelo esforço de empregar elementos ameríndios para


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a estética da vanguarda que ele compartilhava com seus colegas, George Bellows, Max Weber, Mark Tobey, Walt Kuhn, Jules Pascin, Joseph Stella e William Zorach. Cahill, como disse, situa essa experiência do inje-inje em torno de 1920: En esa época, como saben, muchos de nosotros estábamos muy interesados en el arte precolombino. Yo solía recorrer el Museo de Historia Natural, y ahí tenía un amigo especial, el doctor Mead, el curador de lo peruano. De haberse realizado alguno de nuestros conciertos, él me iba a prestar la flauta de percusión, un instrumento curioso hecho de bambú, partido en uno de sus extremos, de origen filipino, y también algunos gigantescos tambores de señales africanos9 (Cahill, apud Moore, 2005, p. 85-112).

Ainda que o motivo desta busca das “qualidades abstratas”, como dizia Cahill, absolutamente panculturais e pan-históricas, não pareça transcender o ecletismo da cultura art-nouveau, as questões sociais, históricas e culturais provocadas pelo primitivismo modernista são, não obstante, inegáveis consequências deste processo de ampla transculturação estética.10 Waldo Frank, um dos mentores indiretos de Cahill, havia construído seus relatos de City Block (1922) segundo a tensão entre o eu inato e o eu adquirido, a pessoa e o ambiente, o que aproximava Frank de narradores como Sherwood Anderson ou Hemingway.11 Mas essa mesma divisão subjetiva explicava igualmente a fascinação de Frank por processos ameríndios soberanos de fusão.12 Essa tensão nos mostra, além disso, que a estética inje-inje se baseava, segundo Moore, no que parecia ser uma etnografia fantástica, mas de base linguística efetiva. De forma semelhante à de Ana Cristina César, que, em Correspondência completa (1979), inclui uma única carta, Inje-inje, una lengua de una sola palabra, ubica esencialmente a un pueblo amerindio en el silencio, desplazado del habla, del discurso, en un dominio de pura presencia

Segundo Moore, Charles W. Mead, o curador de cultura incaica no Museu de História Natural, pode ter colaborado de maneira significativa no inje-inje de Cahill. Mead empenhou-se fortemente pelas coleções de objetos peruanos do Museu, tanto entre os artistas como com o público. Cf. Eberle, 1921, p. 5; Einstein, in Antelo, 2008. 9

Cahill é, neste sentido, pioneiro do “primitivismo” na arte moderna. Ver, a esse respeito, Goldwater, 1966; Rubin, 1984; Rhodes, 1994; Clifford, 1988.

10

É a opinião de Luis Saslavsky, que anos mais tarde filmaria um pastiche de travestimento como Vidalita ou uma ficção Unheimliche como Las ratas, baseada no romance de Pepe Bianco. Cf. Saslavsky, 1929, p. 131-132. Nesta mesma ocasião, a grande amiga de Saslavsky, a escritora Maria Rosa Oliver, traduz para Síntesis “Accolade” e “Esperanza”, dois relatos de City block.

11

Em seu clássico América Hispánica, diz Frank que “filhos do Sol, os incas se tornaram absolutos na sua outorga das leis do Sol. Nenhum dirigente desrespeitou essas leis, cujos verdadeiros intérpretes e expositores eram os amuatas. O ayllu dos incas era sujeito a uma impiedosa disciplina do espírito e do corpo, a qual recorda os Brâmanes e os pitagóricos. O jovem que fraquejava era degradado. Ser Filho do Sol significava estar perpetuamente preso como o 12


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próprio Sol. E tão raramente as pessoas desrespeitavam as leis, que crimes individuais se tornaram históricos; em todos os anais de Tahuantin-suyu, não há exemplo de uma virgem inca dedicada ao Sol ter fugido à virtude. Dia a dia, o Sol perfazia o seu ciclo; e a gente ligada ao Sol não imaginava atos em desacordo com a cadência dele. Contudo, havia liberdades permitidas por lei: a embriaguez parece ter sido costumeira em todas as festas e o canto e a dança irradiavam da vida comunal como os raios se desprendem do sol. O segredo dessa cadência universal encontra-se no fato decisivo de que a vontade pessoal era instintivamente transfigurada pela aceitação instintiva do ayllu como a unidade do eu. Um grupo não pode fazer mal a si mesmo; só o grupo que se julga separado de outros ou que é dirigido por um homem que se sente separado dele pode cair em desvario. Mas esses grupos, desde o mais humilde ayllu sob o seu curaka até Tahuantinsuyu sob o seu inca universal, compunham-se de homens e eram dirigidos por homens que se sentiam não pessoas no sentido europeu de almas, mas meras cargas elétricas do ayllu. E o ayllu sentia-se uma função de Tahuantin-suyu; e o império sabia que era um esboço do ayllu. Por isso, embora o inca fosse o senhor supremo, era o oposto do monarca, sendo o foco articulado do povo” (Frank, 1946, p. 74-75). Alan Moore interpreta que, linguisticamente, “inje13

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física, “la cosa en sí”. El teatro que Cahill […] derivó de los injes fue la pantomima, y así la describe él. “Una de nuestras reglas para el teatro era que las caras y las manos debían estar enmascaradas pues ellas ya habían aprendido muchos sobre las mentiras. Sólo debían estar expuestas las partes más voluminosas del cuerpo” […]. “La idea de las máscaras en las representaciones dancísticas y teatrales (una máscara blanca para la cara, una especie de mitonesmáscara-no-guantes para las manos) era que la cara y las manos ya habían sido muy usadas para una expresividad remilgada y sin sentido y hasta falsa y que el bailarín y el actor dependan más de las partes masivas del cuerpo, las cuales, al igual que la tierra, no ofrecen respuestas falsas” (1950). La idealización que hace Cahill de lo primitivo se basa en la búsqueda de la verdad. Él no buscaba principios universales de dibujo, como Arthur W. Dow o Jay Hambidge, sino variedades de expresión universales en un pastiche ideal primitivo.13

O primitivismo performativo e a teatralização da etnicidade reconciliavam assim, aos olhos de Cahill, a figura do poeta com o histrião, ou seja, filiavam-no à tradição teatral de canção cômica e do teatro de revista, gêneros fortes nos Estados Unidos. Ainda que tanto os espetáculos locais de mímica quanto o vaudeville, de aberta raiz europeia, logo entrariam em decadência, é inegável que as dinâmicas de identificação étnica se incorporaram, entretanto, à música do jazz e ao cinema, monopolizado por Al Jolson e Irving Berlin, incorporando, efetivamente, a fala afro-americana, retrabalhada, por sua vez, na literatura, por escritores como, por exemplo, Ezra Pound, T. S. Elliot e Gertrude Stein. Na Argentina, isso também se manifesta sintomaticamente em um filme como Embrujo (1941), baseado no romance histórico A Marquesa de Santos, de Paulo Setúbal, em que Enrique Susini, fundador da Rádio Municipal e autor de um clássico como Los tres berretines, não hesita em escalar o cantor cubano Bola de Nieve para interpretar o criado Chalaça, nem em pô-lo para cantar, em uma taberna paulista do século XIX, uma


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modinha que não é outra coisa senão um poema afro-cubano de Songorocosongo, o livro de Guillén.14 Não nos esqueçamos tampouco que nos salões dos Amigos da arte, na rua Florida, era possível ouvir, nessa época, tanto o quarteto de alaúdes dos irmãos Aguilar como a música atonal do grupo Renovación ou a voz da cantora francesa Jane Bathori, íntima de Satie ou Debussy, junto a algumas experiências de music-hall, recitais de música negra na voz de Blackie ou tangos suburbanos cantados por Olinda Bozán ou Azucena Maizani.15 Ali mesmo, nos salões de Van Riel, María Dalbaicín – bailarina que se integrara à trupe de Diaghilev, logo após a saída de Massine, aportando a sensualidade de seu Cuadro flamenco (1921), artista retratada por Picasso, e que trabalhara, ademais, entre outros filmes, em Surcouf, com Antonin Artaud – organizou uma série de bailes, “Una tarde española”, “Una tarde vasca”, “Una tarde criolla” e “Una tarde peruana”. Também a cantora paulista Germana Bitencourt, casada com o poeta martinfierrista Pedro J. Vignale, ofereceu ali mesmo recitais de música brasileira, que se somaram ao concerto vocal da Sociedade Cultural de Concertos, dirigida por Gastón Poulet, ou aos poemas de Baudelaire, recitados por Victoria Ocampo. A experiência social do baile estava, portanto, intimamente ligada aos atos de vanguarda. No Brasil são famosas as festas de carnaval promovidas pela Sociedade de Proteção da Arte Moderna (Spam), cujos salões eram decorados por artistas como Lasar Segall e louvadas por Mário de Andrade. O autor de Macunaíma chegou mesmo a compor um poema para o baile carnavalesco “A cidade de Spam”, cujos cenários eram de Lasar Segall. Diz o poeta:

inje” é uma solução reduplicativa, um eco, como “dadá”, “ismism” e muitos outros conceitos que dão cor à linguagem dos anos 1920. Outros, como “choo-choo” ou “fuck-fuck”, aparecem na linguagem infantil e no inglês macarrônico usado na China, segundo explicam Wentworth & Flexner no Dictionary of American Slang. Inje remete logo a Injun, uma palavra com rica história em gírias nos Estados Unidos e que equivale a um juramento de honestidade, “honest Injun!”, a uma expressão de ira, como em “get up one’s injun” e a uma expressão de sinceridade aos princípios “Injun Here!”. Embrujo. Diretor: Enrique T. Susini. Produção: Lumiton Cinematografica. Argumento: Enrique T. Susini e o poeta martinfierrista Pedro Miguel Obligado. Música: George Andreani. Coreografia: Maria Ruanova. Intérpretes: Georges Rigaud (D. Pedro), Alicia Barrié (Domitila de Castro), Pepita Serrador, Ernesto Vilches, Santiago Gómez Cou, Carlos Tajes, Maria Ruanova, Amery Darbon, Pablo Donadio, Carlos Bouhier, Pablo Lagarde e Bola de Nieve.

14

Oposta à dos Amigos da arte era a estética de um cronista mundano como Juan José de Soiza Reilly, redator de El Hogar, que, como nos informa Verónica Meo Zilio, escreveu um extenso artigo insultando “La cultura chic en Buenos Aires. Asociaciones protectoras del arte que terminan en casa de

15

E se abre a farra fanfarrã! Doutores, mendigos, exóticas Pernas, carruagens estrambóticas Barcarolas a rataplã, Heróis nascidos na antevéspera, Jogadores de box e víspora, Esporas, cascos, besta ruã...


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juego o en algo peor”, no qual vaticinava que Amigos da arte, “una vez que obtenga su personería jurídica, empezará a mostrarse tal cual es. Ya nos imaginamos que en sus bellos salones se jugará a las cartas. Al treinta y cuarenta. Ruletita. Timba... Después se pondrá una jazz-band. Mesitas en cuadro. Bailes de cultura ‘chic’. Y gracias a la miseria de los artistas, la institución podrá convertirse en un aristocrático cabaret con anexos donde algunas señoras y niñas de cultura ‘chic’ irán como antes iban a las casas de moda”. Cf. Zayas, 2005; Einstein, 1986, p. 344-353; Einstein, 2002. Inclui “Escritos de Carl Einstein sobre arte africano”, de Liliane Meffre; “La escultura negra” (1915), o ensaio de Carl Einstein; “Notas sobre un torso”, por E. Bassant y J.-L. Paudrat; e dois ensaios de Carl Einstein, “La escultura africana” e “A propósito de la exposición de la Galería Pigalle”. Uma derivação disso é a reflexão sobre a máscara aborígene. Cito somente uma contribuição póstuma, “Iconology and the masking complex in Eastern North America”, que recolhe as observações de um dos mais brilhantes discípulos de Franz Boas, Frank G. Speck, publicada na Filadélfia (University Museum Bulletin, The University of Pennsylvania, v. 18, n. 1, jul. 1950). 16

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E a fauna urbana e suburbana Dançando o fox, o quero-mana Corda bamba, valsa alemã Samba, tango, jongo e bolero! Vinde ver isso ao Trocadero Na carnavalada do SPAM! (Andrade, 2000, p. 551)

Havia, por outro lado, as reuniões mais iconoclastas do Clube dos Artistas Modernos, chefiado por Flávio de Carvalho, mas, tal como a exposição da Sociedade dos Artistas Independentes, o baile no meio artístico era reflexo de modelos europeus, à moda do Baile de Quat’z Arts, a festa anual dos estudantes de Paris. A tendência à fantasia, nessa tresloucada mascarada, sempre esteve presente na vida social dos artistas de vanguarda. Muitos artistas brancos, com a cara pintada de negro, fizeram parte dos eventos dadaístas na Europa. Philippe Soupault apareceu como artista de circo, com a cara pintada de preto, em Paris, na primavera de 1920 e se apresentou no Salão Dadá, no ano seguinte, fantasiado de presidente da Libéria. Em 1919, George Grosz se pintou de preto e imitou o sotaque afro como mestre de cerimônias em um evento dadá em Berlim. E, nas sessões dos Amigos da arte, o escritor espanhol Ramón Gomez de la Serna fez o mesmo com o rosto coberto de betume. Essa identificação tão explícita da vanguarda com os colonizados costuma ser interpretada como “negrofilia”, le tumulte noir, a loucura europeia pelo jazz dos Estados Unidos e o amor pela escultura africana.16 Não se pode ignorar, porém, que foi entre os índios pueblo ou, para ser mais exato, em uma dança ritual destes indígenas, a dança da serpente, que, pouco antes do descobrimento de Edgar L. Hewett, Robert Henri ou John Sloan, Aby Warburg encontraria o estímulo da mitologia (Mnemosyne) para escapar do mito evolucionista (o factum) da cientificidade e do tempo pleno. A saída, a seu ver, seria a de uma causalidade dançada, de estirpe dionisíaca, girando em torno do vazio de sentido do sentido.


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Muito mais tarde, ao comentar A fábula mística de Michel de Certeau, Jacques Derrida aludiria a essa dança dos significantes em torno do sim: Supposons un premier oui, le oui archi-originaire qui avant tout engage, promet, acquiesce. D’une part, il est originairement, dans sa structure même, une réponse. Il est d’abord second, venant après une demande, une question ou un autre oui. D’autre part, en tant qu’engagement ou promesse, il doit au moins et d’avance se lier à une confirmation dans un prochain oui. Oui au prochain, autrement dit à l’autre oui qui est déjà là mais reste pourtant à venir. Le «je» ne préexiste pas à ce mouvement, ni le sujet, ils s’y instituent. Je («je») ne peux dire oui (oui-je) qu’en promettant de garder la mémoire du oui et de le confirmer aussitôt. Promesse de mémoire et mémoire de promesse. Ce «deuxième» oui est a priori enveloppé dans le «premier». Le «premier» n’aurait pas lieu sans le projet, la mise ou la promesse, la mission ou l’émission, l’envoi du second qui est déjà là en lui. Ce dernier, le premier, se double d’avance: oui, oui, d’avance assigné à sa répétition. Comme le second oui habite le premier, la répétition augmente et divise, partage d’avance le oui archi-originaire. Cette répétition, qui figure la condition d’une ouverture du oui, le menace aussi: répétition mécanique, mimétisme, donc oubli, simulacre, fiction, fable. Entre les deux répétitions, la «bonne» et la «mauvaise», il y a à la fois coupure et contamination. «Cruelle quiétude», cruel acquiescement. Le critère de la conscience ou de l’intention subjective n’a ici aucune pertinence, il est lui-même dérivé, institué, constitué (Derrida, 1987).

Promessa de memória e memória da promessa, o segundo sim, o segundo inje, deve ser portador de uma renovação absoluta, inaugural e livre de energias, uma autêntica ruptura antropofágica, de modo que o segundo inje rompa com o primeiro inje, tal como o mesmo Derrida nos demonstra em “Ulisses Gramófono”:


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Em “Nietzsche e a máquina”, Derrida reitera que “There is a time and a spacing of the ‘yes’ as ‘yesyes’: it takes time to say ‘yes’. A single ‘yes’ is, therefore, immediately double, it immediately annouces a ‘yes’ to come and already recalls that the ‘yes’ implies another ‘yes’. So, the ‘yes’ is immediately double, immediately ‘yes-yes’. This immediate duplication is the source of all possible contamination.... The second ‘yes’ can eventually be one of laughter or derision at the first ‘yes’, it can be the forgetting of the first ‘yes’... With this duplicity we are at the heart of the ‘logic’ of contamination. One should not simply consider contamination as a threat, however. To do so continues to ignore this very logic. Possible contamination must be assumed, because it is also opening or chance, our chance. Without contamination we would have no opening or chance. Contamination is not only to be assumde or affirmed : it is the very possibility of affirmation in the first place. For affirmation to be possible, there must always be at least two ‘yes’s’. If the contamination of the first ‘yes’ by the second is refused – for whatever reasons – one is denying the very possibility of the first ‘yes’. Hence all the contradictions and confusion that this denial can fall into. Threat is chance, chance is threat – this law is absolutely undeniable and irreducible. 17

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La repetición del oui puede tomar formas mecánicas, serviles, que a menudo doblegan a la mujer ante su amo; pero no es por accidente, aun si toda respuesta a otro como otro singular, parece, debe escapar a eso. El sí de la afirmación, del asentimiento o de sentimiento, de la alianza, del compromiso, de la firma o del don debe llevar la repetición en sí mismo para valer lo que vale. Debe confirmar inmediatamente y a priori su promesa y prometer su confirmación. Esta repetición esencial se deja asediar por la amenaza intrínseca, por el teléfono interno que la parasita como su doble mimético-mecánico, como su parodia incesante. Regresaremos a esta fatalidad. Pero ya escuchamos esta gramofonía que registra la escritura en la voz más vivaz. Ella la reproduce a priori, en ausencia de toda presencia intencional del afirmador o la afirmadora. Tal gramofonía ciertamente responde al sueño de una reproducción que guarda, como su verdad, el sí viviente, archivado en su más viva voz. Pero por eso mismo, da lugar a la posibilidad de una parodia, de una técnica del sí que persigue el deseo más espontáneo y más dador del sí. Este, para responder a su destino, debe reafirmarse inmediatamente. Así tal es la condición de un compromiso firmado. El sí no puede decirse a menos que se prometa la memoria de sí. La afirmación del sí es afirmación del la memoria. Sí debe conservarse, o sea reiterarse, archivar su voz para volverla a dar a oír. Es lo que llamo el efecto de gramófono. Sí se gramofonea y se telegramofonea a priori. El deseo de memoria y el luto del sí ponen en marcha la máquina anamésica. Y su aceleración hipermnésica. La máquina reproduce lo vivo, lo duplica con su autómata17(Derrida, 2002, p. 74-75).

Este efeito da máquina gramofônica, como a chama Derrida, está presente, como assinalávamos antes, nos trabalhos de Warburg. José E. Burucúa, grande estudioso argentino da obra de Warburg, lembra que esse método sofreu, entre 1933 e 1948, um certo congelamento humanista, uma súbita autonomização, quando Fritz Saxl buscou ampliar os registros das Pathosformeln da civilização europeia


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e incorporou a essa série criada por Warburg a figura do varão que luta contra o animal, a figura do sofrido e a do mensageiro celeste. A partir de então, a vida das Pathosformeln se converteu na vida de simples imagens e a descrição passional de seus avatares históricos se degradou em um mero itinerário iconográfico. Isto quer dizer que el método trágico de Warburg, trágico debido al desgarramiento que produce una construcción historiográfica tensada entre lo universal de una categoría, por más históricamente determinada que se la considere, y lo particular, individual y fragmentario de sus concreciones reales sucesivas, se transformó en un apaciguado método iconográfico merced a Saxl y, mucho más todavía, a los trabajos de Erwin Panofsky.

Por isso Burucúa se impôs a tarefa de “retomar el camino abierto por Aby Warburg e intentar hacer el repertorio de las Pathosformeln que han tejido y tejen todavía la experiencia cultural y civilizatoria de quienes nos tenemos por sucesores de la modernidad euroatlántica”. Porque esas formas representativas e significantes, autênticos vetores de uma constelação emocional, são las intermediarias necesarias en todo proceso de pasaje o transferencia entre las esferas de lo racional-tecnológico y lo mágico que, según la teoría histórica de la cultura de Aby Warburg (replicada en este sentido por la teoría antropológica general de Bronislaw Malinowski), es el prototipo de cualquier práctica de permanencia o de cambio cultural,

com o qual, apoiado em Warburg, Burucúa está nos dizendo, em poucas palavras, que toda leitura descansa casi exclusivamente en los términos de los conflictos, conciliaciones, coexistencias y combates entre la ratio de la iluminación científica, asociada al dominio técnico de la naturaleza, y la comprensión analógica que nos conduce a creer en una unidad mágica y consoladora del mundo, más

If one does not accept it, there is no risk, and, if there is no risk, there is only death. If one refuses to take a risk, one is left with nothing but death.” (Derrida, 2002, p. 247-248).


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allá del principio de no contradicción. Las Pathosformeln, llevadas a la plenitud de su intensidad significante y emocional en el plano de la estética, serían así los eslabones que, aun en los momentos de lucha más encarnizada entre los hombres tecnológicos y los hombres mágicos [...] o bien en los momentos de derrumbe de los sistemas racionales que provocan las grandes crisis de la economía y de la sociedad, salvan y hacen posible la comunicación mínima entre el logos y las analogías emocionales, la relación que preserva la unidad y la continuidad de la vida humana o de la cultura.

Desprende daí que, para Burucúa, uma Pathosformel é un conglomerado de formas representativas y significantes, históricamente determinado en el momento de su primera síntesis, que refuerza la comprensión del sentido de lo representado mediante la inducción de un campo afectivo donde se desenvuelven las emociones precisas y bipolares que una cultura subraya como experiencia básica de la vida social. Cada Pathosformel se transmite a lo largo de las generaciones que construyen progresivamente un horizonte de civilización, atraviesa etapas de latencia, de recuperación, de apropiaciones entusiastas y metamorfosis. Ella es un rasgo fundamental de todo proceso civilizatorio históricamente singular (Burucúa, 2006, p. 12-13).

Sobre o autor, consultar Zimmermann, 2006. 18

19

Cf. Michaud, 2007.

Tanto na obra de Roberto Calasso (2005) como na de Giorgio Agamben (1998; 2007) ou na de Georges DidiHuberman (2002-2007),18 há um evidente retorno aos postulados dinâmicos warburguianos, mas é alguém que vem do cinema, Philippe-Alain Michaud, que, talvez, tenha mostrado mais cabalmente, na montagem warburguiana, em sua máquina mitológica, os primeiros passos das histoire(s) ou passagens que podemos propor a partir dos limites de experiência e memória.19 Por tudo isso, neste ponto, caberia retomar a distinção entre mito e mitologia que Furio Jesi nos propunha no início. Ou melhor, repensá-la à luz de uma releitura muito sintomática, a de Giorgio Agamben. Reconhecendo em Jesi um precursor, alguém que não se adaptou ao pobre


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dualismo do pós-guerra, dilacerado entre racionalidade / irracionalidade, história / mito, religião / laicismo, direita / esquerda, Jesi, que, segundo Agamben, desenha a cartografia imaginária de um território limítrofe – os limiares – entre história e mito, tem em suas mãos um dispositivo – um talismã – com o qual condensa seus “pensamentos secretos”, retomando aporias e paradoxos, que não são só teóricos, mas sim abertamente políticos. A mais emblemática dessas contradições, nos diz Agamben, é a tensão entre rebelião e revolução, entre a experiência de suspensão do tempo histórico e a de introduzir, no tempo histórico, uma determinada ordem. Isso nos leva a entender que a sociedade contemporânea, por meio do controle, não busca disciplinar a ordem, mas sim criar uma ordem que justifique a presença onímoda da vigilância.20 Note-se quão longe estamos da bem-pensante e evolutiva teoria do moderno de Octávio Paz, com sua naturalização da revolução, ao preço de desativar a rebelião. Muito pelo contrário, Jesi busca ativar a máquina mitológica, que é uma forma de confrontar “este mundo” com o “outro mundo”, mostrando que o mito não tem substância, não tem matéria, mas é uma dobra, um modo de ação da máquina mitológica – a linguagem, as instituições, a crença que as sustenta. O ser ou não ser se mostra, assim, impotente no presente. A questão que diz respeito aos limites da cultura, ao contrário, consiste em conhecer a potência da tensão que ela mesma pode produzir entre mito e mitologia, entre o pré-existente e o exsistente, ou seja, gerar a diferença inerente ao próprio ser. Jesi, muito influenciado pelo transformismo de Humboldt, chega a dizer que toda língua desenha, em torno do povo que a fala, uma sorte de círculo mágico, que a protege do risco de entrar no círculo de outra língua e de outro povo. Não há, pois, valor intrínseco. Todo valor só revela uma força. Não é uma forma. Não é possível lê-los autonomamente. Assim, o inje-inje foi, para Cahill, um laboratório macartista, uma América pura, ao passo que, para

É a tese foucaultiana defendida por Agamben em resposta à visão funcional de Bauman. Cf. Bauman, 2008.

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Em seu prefácio às Poesias de San Juan de la Cruz, Agamben assinala que “il paradosso della teologia mistica è appunto questo: che, in quanto è opacità e spossessamento integrale, l’espererienza finale che essa implica è quella, puramente negativa, di una presenza che non si distingue in nulla da un’assenza; in senso proprio, essa non è anzi una teologia (una scienza di Dio), ma una teo-alogia, che approda a un’inconoscibilità ultima, o, almeno, a un conoscere soltanto per opacamento e negazione, a un’appropriazione il cui oggetto è l’Inappropriabile stesso, e che non è, perciò, sostanziabile in un habitus dottrinale positivo, ma soltanto metaforizzabile e alludibile per ossimori, catacresi a altre ‘figure e similitudini stravaganti’”. Esta ideia, que reaparecerá em sua obra mais recente (recordemos a definição de poesia moderna, em Il regno e la gloria, como teo-alogia), o leva a apontar a concomitância entre o poeta espanhol e um pensador como Georges Bataille, que, em sua Somme athéologique, nos revela a dívida com o precursor, não só em conceitos como a nudité souveraine de um e a suma desnudez do outro, o nonsavoir de Bataille e o saber do poeta místico. Este mesmo haveria nos mostrado, diz Agamben, por meio da experiencia interior, a opacidade do mal, razão pela qual San Juan poderia ser lido como fundador da 21

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Huidobro, funcionou como seminal laboratório concretista. “Il mito è questo cerchio magico e la sfera delle cose che ci non-sono con cui esso s’identifica è quella che il linguaggio umano incessantemente produce e presuppone nel suo cuore di non-essere” – nos resume Agamben –, e essa observação fortalece a prévia análise de Jesi, para quem o vazio – a disponibilidade, a linguagem – é aquilo que, a rigor, habita a máquina mitológica. L’una e l’altra, del resto, la rivolta e la rivoluzione, non contraddicono a livello concettuale il modello proposto dalla macchina mitologica. Anzi: nella prospettiva aperta sia dall’una sia dall’altra, codesto modello finisce per identificarsi con l’a priori che resta quale fondamento solido e oscuro del processo gnoseologico. Di fronte all’essenza del luogo comune – o all’essenza del mito – non vi è autentica alternativa concettuale, bensì soltanto alternativa gestuale, di comportamento, ma di comportamento che resta comunque circoscritto entro la scatola delimitata dalle pareti della macchina mitologica. Rivolta e rivoluzione, al livello concettuale, restano null’altro che diverse articolazioni (sospensioni del tempo; tempo “giusto”) del tempo che vige all’interno di quella scatola (Jesi, 1996, p. 3031).

A ideia, pensada para ler o Bateau ivre, obviamente, não se esgota em Rimbaud. É inerente à poesia e podemos reconhecê-la, muito antes do inje-inje, na suma desnudez ou na noche oscura de San Juan de la Cruz.21 Segundo Agamben, neste ponto, autêntico limiar de sua própria subjetividade, o crítico contempla, por um instante, em uma sorte de “disincantata divinazzione”, o autêntico aleph de uma modernidade sem centro e sem matéria, absolutamente pós-autonomizada. “Giunto a questo limite” assinala, conclusivamente, Agamben “in cui il cuore della macchina coincide con la sua stessa esistenza, il mitologo” – ou, poderíamos dizer, o crítico das ficções – “deve deporre i suoi strumenti. L’ esistenza e la non-esistenza della macchina coinvolgano ora la sua strategia vitale, si


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decidono alle frontiere dello stesso linguaggio” (Agamben in Jesi, 1996, p. 8).

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linhagem da potência passiva ou potência do negativo, que, dois séculos mais tarde, seria enunciada por Hegel, que a situaria no centro de seu sistema, como autêntico “poder mágico”. Cf. Agamben in Cruz, 1974, p. VI-VII. Para desenvolvimentos mais recentes dessas ideias, consultar, do mesmo autor, La potencia del pensamiento (2007) ou Il sacramento del linguaggio. Archeologia del giuramento (2008).


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A condição americana da nossa identidade e a história da literatura brasileira Luiz Roberto Velloso Cairo*

RESUMO: Este texto pretende traçar uma possível genealogia do conceito de americanidade, que, embora estivesse tão presente no momento romântico, parece ter-se esmaecido na memória dos brasileiros e mesmo ao longo da história de sua literatura, tão pontuada de signos americanos. PALAVRAS-CHAVE:

Americanidade, identidade nacional, história da literatura brasileira.

ABSTRACT : This paper intends to discuss on an eventual genealogy of Americanism in Brazilian Literary and Culture. Americanism seems to be out of Brazilian memory even though American marks are alive into Brazilian Literary History. KEYWORDS:

Americanism, national identity, Brazilian literary

history. De todos os povos americanos é sem exageração alguma o brasileiro o mais digno da veneração dos estrangeiros. (Joaquim Norberto de Sousa Silva, 1841)

Universidade Estadual Paulista (Unesp) *

Como brasileiro, uma questão que sempre me intrigou diz respeito a nossa condição americana, que, frequentemente, é escamoteada. Americanos são os falantes de línguas espanhola, francesa e inglesa que habitam a América, ou seja, os outros, enquanto nós somos simplesmente brasileiros. Em algum momento, perdemos nossa dimensão continental, talvez até pela extensão territorial, uma vez que ocupamos 70% do espaço sul-americano. O Brasil é uma nação verdadeiramente sui generis, que não costuma identificar-se nem tampouco se ver como América, pois a expressão é sempre usada para nomear a América Hispâni-


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ca, o Canadá, e principalmente os Estados Unidos da América do Norte. O olhar do brasileiro em relação à condição de americano, ou simplesmente o modo como o brasileiro se identifica ou não se identifica com os demais povos do continente americano, funciona mesmo como preâmbulo para as considerações sobre as quais passo a discorrer ao longo deste texto, em que procuro refletir sobre o americanismo da literatura brasileira. O termo americanismo no Novo Aurélio Século XXI: o Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, tanto pode significar “admiração, apreço ou mania das coisas da América, particularmente dos Estados Unidos da América”, ou “tudo que diz respeito à cultura, tradição, instituições do continente americano ou que o caracteriza”, quanto “conjunto das ciências humanas (etnologia, antropologia, linguística, história etc.) consagradas ao continente americano”, ou “peculiaridade do inglês falado nos Estados Unidos da América, do espanhol da América ou do português do Brasil”, e ainda como sinônimo de americanidade, no sentido simplesmente de “amor ao continente americano” (Ferreira, 1999, p. 120). Americanismo ou americanidade são expressões que vêm de americano, podendo significar, dentre várias acepções: “de, ou pertencente ou relativo às Américas do Norte, Central e do Sul, ou ao continente americano” e/ ou “o natural ou habitante do continente americano”. Essas expressões não devem, porém, ser confundidas com americanização, que significa “ação ou efeito de americanizar(-se)”, mais precisamente, no contexto em que vivemos, ação ou efeito de “tornar(-se) americano ou norteamericano; adaptar(-se) ao temperamento, à maneira , ou ao estilo americano ou norte-americano” (Ferreira, 1999, p. 120). Americanidade, ou mesmo instinto de americanidade, como costumo nomeá-lo, se tomarmos o signo instinto no sentido dicionarizado de “impulso espontâneo e alheio à


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razão; intuição” (Ferreira, 1999, p. 1118) ou simplesmente de intenção, de “sentimento de pertença à América” (Bernd; Campos, 1995, p. 5). Tal instinto se manifesta tanto em textos poéticos de autores que escreveram no Brasil desde os tempos coloniais quanto em textos da crítica literária brasileira do momento romântico, quando já não aparece tão espontaneamente, mas, arrisco dizer, de maneira mais consciente e programada, contribuindo para a formação da identidade de uma literatura então em construção, caminhando passo a passo com o que Machado de Assis chamou de instinto de nacionalidade, no clássico ensaio “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade” (1873), ou seja, “certo sentimento íntimo”, que torna o escritor brasileiro, “homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”(Assis, 1962, v. III, p. 804), conforme constatação feita no mesmo texto de que: “Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas acharão ali farto manancial de inspiração e irão dando fisionomia própria ao pensamento nacional (Assis, 1962, v. III, p. 801). Daí a necessidade de voltar o olhar para este instinto na tentativa de traçar uma possível genealogia do conceito de americanidade, que, embora estivesse tão presente no momento romântico, parece ter-se esmaecido na memória dos brasileiros e mesmo ao longo da história de sua literatura, tão pontuada de signos americanos, como: A confederação dos Tamoios (1856), de Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882), A lágrima de um Caeté (1849), de Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885), As americanas (1856), Colombo ou O descobrimento da América (1854), de Joaquim Norberto de Sousa e Silva (1820-1891), Colombo (1866), de Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879), Iracema (1865), de José de Alencar, os “poemas americanos” de Primeiros cantos (1846), Segundos cantos (1848), Últimos cantos (1851) e Os Timbiras (1857), de Gonçalves Dias (1823-1864), O livro e a América (1870), de Castro Alves (1847-1871), Vozes da América


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(1864) e Anchieta ou O evangelho da selva (1875), de Fagundes Varela (1841-1875), O guesa errante (1874-77), de Sousândrade (1832-1902), Americanas (1875), de Machado de Assis (1839-1908), e tantos outros. Em artigo publicado originalmente n’O Estado de São Paulo, de 13 de novembro de 1977, sob o título de “Cristóvão Colombo”, o crítico e historiador Hélio Lopes (19191992) definiu o americanismo como uma exaltação do continente americano, visto como um dos aspectos do nacionalismo romântico brasileiro. O americanismo vem à tona, do seu ponto de vista: “Quando os nossos poetas ou romancistas engrandecem a própria terra, reassumem a visão paradisíaca das crônicas e dos poemas dos séculos coloniais, realçando ou acrescentando-lhes agora a melodia nova do orgulho do berço e da posse” (Lopes, 1997, p. 283). Esta tendência não se restringiu, contudo, aos limites das terras brasileiras apenas, mas se estendeu principalmente pela América Latina, a ponto de Lopes considerar a existência de dois ângulos distintos no americanismo: [...] o culto da natureza virgem e grandiosa, não necessariamente exótica em oposição à natureza européia, embora esta fisionomia se possa distinguir, e o culto dos heróis nacionais. Confluem estes dois ramos para a exaltação única da Liberdade (Lopes, 1997, p. 283).

Vale ressaltar, porém, o fato curioso de que ele viu neste americanismo dos românticos brasileiros uma usurpação mesmo do termo América dos hispano-americanos, ao registrar que: “Tomamos então para nosso uso a cordilheira dos Andes, o condor e os vulcões. E chega-se a roubar o próprio nome da América para restringi-lo ao Brasil” (Lopes, 1997, p. 283). Exemplificando com o poema Anchieta ou O Evangelho na Selva (1875), de Fagundes Varela, no qual a América se apresenta primeiro, no Canto II, como uma reminiscência clássica, bíblica, da terra prometida, e no fechamento do poema, no Canto X, confundindo-se com o Brasil, aos olhos


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de Anchieta moribundo, ela aparece como “o império da Lei, – a majestade/ Suprema da Justiça”, casando-se “com os ideais românticos também quando se caminha para o passado, na revivescência das lendas primitivas, na procura do berço das raças antigas” (Lopes, 1997, p. 284). No fundo, Lopes procura mostrar, apoiado no texto De la poesía en el Brasil (1855), do escritor espanhol Juan Valera y Alcalá Galiano (1824-1905), cujos fragmentos foram publicados na revista O Guanabara (1849-1856), a existência de uma épica romântica brasileira, pouco explorada pelos pesquisadores da nossa literatura, da qual o poema Colombo (1866), de Manuel de Araújo Porto Alegre, é um dos produtos mais significativos, e que é fruto do gosto português, pois, de acordo com a avaliação de Fidelino de Figueiredo (1889-1967), “o feito de Colombo não despertou na Espanha uma épica de aventura marinha como a tiveram os portugueses” (Lopes, 1997, p. 284). A observação de Lopes diz respeito principalmente aos textos poéticos românticos, no entanto, venho observando que, também na crítica, quase todos os textos da fase que costumo chamar dos Bosquejos, Parnasos e Panteóns, o americanismo está presente de alguma forma, em diferentes graus, ao lado do instinto de nacionalidade, haja vista o “Ensaio sobre a história da literatura do Brasil” (1836), de Domingos José Gonçalves de Magalhães, publicado em Paris, na Niterói, Revista Brasiliense (1836) ou mesmo “Da nacionalidade da literatura brasileira” (1843), de Santiago Nunes Ribeiro (?-1847), publicado no Minerva Brasiliense (1843-1845), ambos tidos como verdadeiros manifestos da literatura brasileira romântica. Nesta mesma direção, Afrânio Coutinho, em A tradição afortunada, ensaio memorável sobre o espírito de nacionalidade na crítica brasileira, já havia observado que, na primeira metade do século XIX: [...] a literatura brasileira – para ser brasileira ou nacional, como queriam os escritores inspirados pela poética romântica – tinha que olhar em torno e reproduzir a paisagem


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americana a fim de adquirir a cor local necessária à sua caracterização nacional (Coutinho, 1968, p. 67).

No momento romântico, conforme verbete da Enciclopédia de Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa, chegou-se mesmo a constatar o uso do termo americanas como designação de um tipo de produção poética: Termo geralmente usado durante o Romantismo, no Brasil, para designar a produção literária, particularmente de poesia, tendo em vista caracterizar o aspecto americano ou brasileiro daquela poesia. Indica a tendência nacionalista ou anti-lusa daquela época que procurava acentuar a incorporação dos aspectos locais (costume, flora, paisagem) à literatura. O próprio Almeida Garrett, no prefácio do Parnaso Lusitano, conclamou os escritores brasileiros a usarem mais a Natureza brasileira nas suas produções literárias. Entre outros, Gonçalves Dias e Machado de Assis empregaram a denominação poesias americanas para designar uma parte de sua produção poética, seguindo a tendência geral (Coutinho; Sousa, 2001, p. 222).

Esta tendência americanista, de feição nacionalista ou antilusa, tem uma dimensão continental, na medida em que se observa a publicação de antologias que expressam esse sentimento, também na América hispânica: América poética, Colección escojida de composiciones en verso, escritas por americanos en el presente siglo é uma delas. Organizada pelo crítico argentino Juan María Gutiérrez, esta antologia teve sua primeira edição em fascículos, publicados entre fevereiro de 1846 e junho de 1847 pela Imprensa de El Mercurio, de Valparaíso, no Chile, e a segunda edição, já no formato de livro, em 1866, publicado pela Imprensa de Mayo, de Buenos Aires. América poética reúne poemas de 53 poetas, sendo catorze da Argentina, onze do México, cinco do Chile, cinco do Uruguai, quatro de Cuba, três da Bolívia, três da Colômbia, três do Peru, três da Venezuela, um do Equador e um da América Central, e constitui a


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primeira coletânea sistemática de poesia americana em língua espanhola e busca sintetizar “a progressiva ascensão da inteligência americana”, conforme aponta o crítico José Enrique Rodó, no ensaio “Juan María Gutiérrez (Introducción a un estudio sobre literatura colonial)” (Medina, 1995, v. I, p. 211). Em 1883, ainda na Argentina, Francisco Lagomaggiore organiza e publica América literaria, uma antologia de textos em prosa e verso na qual aparecem, pela primeira vez, poemas de escritores brasileiros, e, em 1897, Carlos Romagosa organiza e publica, em Córdoba, Joyas poéticas americanas, uma coletânea de poemas na qual se incluem textos do poeta norte-americano Edgar Alan Poe, traduzidos para o espanhol, ampliando assim o espectro da dimensão continental dessas antologias de textos americanos. Dizer, portanto, que os escritores românticos brasileiros andaram usurpando o termo América dos hispano-americanos me parece não fazer muito sentido, pois o instinto de americanidade foi uma sugestão romântica europeia acatada, me parece, por todo o continente americano. Em texto clássico sobre o Romantismo brasileiro, o crítico Antonio Soares Amora (1917-1999) observou com propriedade que Quem sabe o que foi na Europa do fim do século XVIII e principalmente do começo do século XIX o crescente movimento de simpatia e até de entusiasmo por tudo que era a originalidade do mundo americano – sua natureza, suas culturas exóticas, a pureza e o sentimento de liberdade de seus bons selvagens – de pronto compreende o espírito com que todos os viajantes europeus viram, na época, o Brasil (Amora, 1973, p. 57).

A partir da leitura de um capítulo do livro La littérature comparée, de M. F. Guyard sobre o tema viagens como marca de presença estrangeira nas diferentes literaturas, o crítico Brito Broca (1904-1961) fez uma curiosa reflexão sobre os influxos estrangeiros das viagens na literatura brasilei-


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ra, arriscando, entre outras coisas, que, no período colonial, “as viagens a Portugal eram não somente elementos de influência como condição quase essencial para que um brasileiro viesse a produzir obra literária” (Broca, 1992, p. 122), haja vista Santa Rita Durão e Basílio da Gama e, após a independência, no período nacional, as viagens, de início preferencialmente à França e depois a outros países da Europa e de outras partes do mundo, inclusive do continente americano, passam a fazer parte do universo dos intelectuais brasileiros que vão buscar as novas teorias poéticas a serem introduzidas no Brasil. Esta tendência, que modifica o fluxo de influência portuguesa na literatura brasileira, pode ser observada no primeiro momento romântico, na trajetória da obra de Domingos José Gonçalves de Magalhães. Ao sair do Brasil em direção à França, no dia 3 de julho de 1833, a bordo do navio Dois Eduardos, o jovem escritor deixou registrados, em sua correspondência dirigida a amigos brasileiros, alguns destes novos influxos. Ao tomar conhecimento das principais tendências românticas, ainda recém-chegado a Paris, escreveu a Cândido Borges Monteiro, insurgindo-se contra “as campanudas odes recheadas de Apolo e de Minerva” e manifestando-se a favor de “uma nova poesia despida dos ouropéis clássicos”, mesmo tendo publicado, no ano anterior, seu primeiro livro Poesia, marcado pela estética árcade (Broca, 1992, p. 123). Vale ressaltar que nesta carta fica documentado o seu rompimento com a cultura clássica e a busca dos “caminhos de nossa literatura nacional, americana romântica” (Amora, 1973, p. 59). Comprometido e preocupado com o projeto de construção da história da literatura do Brasil, publicou o “Ensaio sobre a História da Literatura do Brasil: estudo preliminar”, no primeiro número da Niterói-Revista Brasiliense. Este ensaio é um panorama geral com a finalidade de apresentar um esboço rápido do passado literário brasileiro.


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O texto é um bosquejo formalmente marcado pelo pensamento de Madame de Staël, o que justifica o conceito amplo de literatura, advindo dos irmãos August e Friedrich Schlegel: A literatura de um povo é um desenvolvimento do que ele tem de mais sublime nas idéias, de mais filosófico no pensamento, de mais heróico na moral, e de mais belo na natureza, é o quadro animado de suas virtudes, e de suas paixões, o despertador de sua glória, e o reflexo progressivo de sua inteligência (Magalhães apud Coutinho, 1980, v. I, p. 24).

Além disso, Magalhães confere ao texto um caráter de manifesto divulgador das ideias românticas francesas em oposição à tradição clássica que, no Brasil, era uma herança do colonizador português e por isso precisava ser afastada, pois a natural lusofobia existente a partir da segunda metade do século XVIII, resultante da malfadada colonização promovida por um país atrasado, na medida em que privara a sociedade luso-americana de universidades, tipografias e periódicos, conduzia a este tipo de atitude, ao contrário do que ocorrera nas colônias da América Hispânica, onde já havia universidades desde o século XVI. Daí provavelmente o motivo por que Magalhães registrou que: Não se pode lisonjear muito o Brasil de dever a Portugal sua primeira educação, tão mesquinha foi ela que bem parece ter sido dada por mãos avaras e pobres; contudo boa ou má dele herdou, e o confessamos, a literatura e a poesia, que chegadas a este terreno americano não perderam o seu caráter europeu (Magalhães apud Coutinho, 1980, p. 31).

A lusofobia de Magalhães levou-o equivocadamente a acreditar que um desvio da fonte portuguesa para a francesa daria um impulso à construção da identidade da literatura brasileira, conforme se pode observar no tom enfáti-


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co em que expressou o fim do período colonial e o início do nacional: Hoje o Brasil é filho da civilização francesa; como nação é filho desta revolução famosa, que balançou todos os tronos da Europa, e repartiu com os homens a púrpura, e os cetros dos reis. O gigante da nossa idade até a extremidade da península enviou o susto, e o neto dos Afonsos aterrorizado como um menino temeu que o braço do árbitro dos Reis cair fizesse sobre sua cabeça o palácio de seus avós. Ele foge e com ele toda a sua corte, deixam o natal país, e trazem ao solo brasileiro o aspecto novo de um rei , e os restos de uma grandeza sem brilho. Eis aqui como o Brasil deixou de ser colônia, e à categoria de Reino Irmão foi elevado. Sem a Revolução Francesa, que tanto esclareceu os povos, este passo tão cedo se não daria. Com este fato uma nova ordem de coisas abriu-se para o Brasil. Aqui deve parar a primeira história do Brasil (Magalhães apud Zilberman; Moreira, 1999, p. 35-36).

Vale observar que, neste momento, estou reproduzindo um fragmento retirado da primeira versão desse texto, publicada na Niterói, em 1836, sob o título “Ensaio sobre a história da literatura do Brasil: estudo preliminar”, que, na leitura de Regina Zilberman e Maria Eunice Moreira, revela mais as ideias do jovem Gonçalves de Magalhães do que a versão, datada de 1865, do “Discurso sobre a história da literatura do Brasil”, comumente reproduzida nas antologias, publicada em Opúsculos históricos e literários, isto porque: Entre o “Ensaio” e o “Discurso” notam-se algumas diferenças lingüísticas: o autor corrigiu gralhas, alterou a formulação de certas frases, dividiu o texto em subcapítulos e esclareceu idéias, sobretudo as relativas à nacionalidade da literatura, tema que teve desdobramento posterior e que ele deve ter conhecido mais tarde (Magalhães apud Zilberman; Moreira, 1999, p. 29).


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Ao longo do texto, Magalhães reflete sobre a origem, o caráter, as fases, os autores e as circunstâncias que, em diferentes momentos, contribuíram para o florescimento da literatura brasileira ou mesmo o impediram. Após traçar o panorama geral do passado literário brasileiro, Magalhães anuncia uma descrição e análise de nossos primeiros escritores, mas, em vez de fazê-lo curiosamente, retoma questões que considera concernentes ao país e aos seus indígenas: “Pode o Brasil inspirar a imaginação dos poetas e ter uma poesia própria? Os seus indígenas cultivaram porventura a poesia?”(Magalhães apud Coutinho, 1980, v. I, p. 35) A primeira questão, na verdade, paira no ar durante todo o texto e se relaciona com o americanismo, uma vez que diz respeito à visão edênica do continente americano, lugar privilegiado em que o Brasil se encontra, e onde a natureza, como fonte inspiradora de poesia, faz com que os seus habitantes quase já nasçam poetas. Por este motivo, conclui que “o país se não opõe a uma poesia original, antes a inspira” (Magalhães apud Coutinho, 1980, p. 37). Se isto ainda não havia ocorrido, era [...] porque os nossos poetas, dominados pelos preceitos, se limitaram a imitar os antigos, que, segundo diz Pope, é imitar mesmo a natureza; como se a natureza se ostentasse a mesma em todas as regiões, e diversos sendo os costumes, as religiões e as crenças, só a poesia não pudesse participar dessa variedade, nem devesse exprimi-la. Faltou-lhes força necessária para se despojarem do jugo dessas leis arbitrárias dos que se arvoram em legisladores do Parnaso (Magalhães apud Coutinho, 1980, p. 37-38).

Outro traço do americanismo seria o talento musical dos indígenas, considerado uma tendência natural para a poesia, que, segundo ele, comprovava-se, em trechos de documentos como, por exemplo, o antigo manuscrito Roteiro do Brasil, cuja autoria foi atribuída por Francisco Adolfo Varnhagen a Gabriel Soares.


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Magalhães aproximava a tão decantada veneração dos nativos a seus cantores à admiração que os senhores medievais dedicavam aos trovadores que peregrinavam de país em país. A discussão em torno desta tendência natural dos indígenas brasileiros para a poesia viria a ter continuidade mais tarde principalmente nos capítulos da “História da literatura brasileira”, de Joaquim Norberto de Sousa Silva, publicados na Revista Popular (1859-1862). Estes registros de certa forma justificam meu ponto de vista de que a construção da identidade nacional da literatura brasileira caminhou paralela à consciência de pertença ao continente americano, vale lembrar a imagem já clássica fixada no “Ensaio sobre a história da literatura do Brasil: estudo preliminar”, de Magalhães: A poesia brasileira não é uma indígena civilizada: é uma grega vestida à francesa e à portuguesa, e climatizada no Brasil; é uma virgem do Hélicon que, peregrinando pelo mundo, estragou seu manto, talhado pelas mãos de Homero, e sentada à sombra das palmeiras da América, se apraz ainda com as reminiscências da pátria, cuida ouvir o doce murmúrio da castalha, o trépido sussurro do London e do Ismeno, e toma por um rouxinol o sabiá que gorjeia entre os galhos da laranjeira (Magalhães apud Coutinho, 1980, p. 31-32).

O americanismo no contexto do século XIX é, portanto uma tendência de dimensão continental, conforme observou Bernardo Ricupero em relação ao instinto de nacionalidade no instigante trabalho intitulado O Romantismo e a ideia de nação no Brasil (1830-1870): Já que a nação não é algo dado, natural, ela terá que ser construída. Quem procura fazer isso, como projeto deliberado, são certos homens, os românticos, que, na Europa e na América, criam símbolos do que passará a ser conhecido como constituindo nações. Prova do sucesso relativo dos românticos não está só nas identidades nacionais que


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se formaram com o tempo, mas na ausência dessas identidades anteriormente (Ricupero, 2004, p. 37).

Isto se explica porque: A nação, na verdade, aparece como o conjunto de vilas, cidades e províncias. Ou seja, a soberania não emanaria tanto dela, nem seria una, mas estaria relacionada com entidades anteriores que se combinariam. Portanto, depois de organizado o Estado, trata-se de fazer a nação. À emancipação política, à montagem do aparelho estatal, deve-se seguir a emancipação mental, a constituição de uma sociedade relativamente autônoma e diferenciada (Ricupero, 2004, p. 37).

Como uma tendência de dimensão continental, não se pode também ignorar que: A construção das diversas identidades nacionais latinoamericanas (a despeito dos esforços integracionistas de Bolívar e outros) deu-se com base em condições essencialmente locais e obedecendo a ritmos desiguais, ditados pelas circunstâncias peculiares de cada caso (Santos, 2004, p. 43).

Zilá Bernd opta pelo termo americanidade, na apresentação do livro Literatura e americanidade (1995), organizado juntamente com Maria do Carmo Campos, para nomear o “sentimento de pertença a América com ênfase na possibilidade de contribuir para o esgarçamento de fronteiras indevidamente impostas entre as literaturas americanas, permanecendo a Europa como comparante incontornável” (Bernd, 2003, p. 27). No ensaio “Americanidade e americanização” (2002), ela [...] tenta refazer a trajetória que o conceito de americanidade perfaz através das Américas, retraçando seus deslocamentos, suas transferências e as razões pelas quais ele é ora reivindicado ora rejeitado, pairando quase sempre sobre ele o manto diáfano da ambiguidade (Bernd, 2003, p. 26).


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Com bastante pertinência, justifica seu esforço na reconstituição deste conceito pelo fato de ele estar [...] intimamente associado às questões de identidade, podendo corresponder a um anseio de afirmação identitária mais abrangente, para além das nacionalidades, dos gêneros e das etnias, por tratar-se de um desafio de identificação continental (Bernd, 2003, p. 26).

Ao traçar o percurso brasileiro da americanidade, Bernd observa que no século XVII já se encontram “numerosas citações” do Padre Antonio Vieira (1608-1697) incluindo a palavra América em referência ao continente e registrando no Sermão da Epifania a “concepção da América como um todo onde o Brasil se inclui” (Bernd, 2003, p. 29). No século XVIII, aponta o poema O Uraguai (1769), de José Basílio da Gama (1741-1795) como [...] obra que está nos fundamentos da identidade nacional, invocando “o gênio da inculta América” (canto IV), o que corresponde à personificação da Musa invocada inicialmente no canto I. Menciona, no Canto V, a “Liberdade Americana” (com maiúsculas) e refere-se aos índios vencidos das missões jesuíticas como o “rude Americano,/ que reconhece as ordens e se humilha,/ e a imagem de seu rei prostrado adora” (Gama apud Bernd, 2003, p. 29).

Além disso, Bernd alerta para o fato de a historiografia literária brasileira mostrar que “do século XVII ao XIX, circulava a palavra ‘Americano’ em referência ao Brasil” (2003, p. 29), acrescentando ainda a informação de que: “América” e “Americano” foram gradativamente substituídos por Brasil à medida que se consolidava o projeto nacional e que institucionalizar as letras brasileiras tornou-se uma urgência. Valeu enquanto significava oposição à Europa; quando os Estados Unidos passam a exercer influência sobre a América Latina, o interesse passa a ser o de se desvencilhar de um ideologema ambíguo em favor de


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um que representasse nossa identidade de maneira inequívoca como Brasil, brasilidade e brasileiro (Bernd, 2003, p. 30).

O que vem ao encontro do que penso, confirmando assim a ideia de que o instinto de americanidade dos românticos brasileiros não é uma usurpação da palavra América dos hispano-americanos, mas uma tendência de dimensão continental. Na primeira metade do século XIX, observa-se, no Brasil, um americanismo marcado pelas ideias românticas europeias, em resposta principalmente à lusofobia reinante na ex-colônia politicamente recém-emancipada. A elite intelectual brasileira buscava, como parte da construção da nação brasileira, a constituição de maior autonomia cultural. O Romantismo europeu, na medida em que reage à universalidade da Ilustração, defendendo as especificidades nacionais, veio preencher as expectativas da elite letrada brasileira em busca de sua emancipação mental. Bernardo Ricupero, no texto a que antes me referi, atenta para o fato curioso de que Curiosamente, porém, tanto a crítica literária como a historiografia romântica brasileiras são fundadas por estrangeiros: o francês Ferdinand Denis, os ingleses Robert Southey e John Armitage, e o bávaro Karl Friedrich Phillip von Martius. Ou seja, ironicamente o movimento literário que mais insiste na autonomia de nossa vida intelectual não é iniciado por brasileiros (Ricupero, 2004, p. 86).

Dentre estes estrangeiros, Ferdinand Denis (17981890) interessou-me mais de perto, pelo americanismo presente no seu pensamento, uma vez que, após ter estado no Brasil entre 1816 e 1819, descreveu romanticamente a natureza brasileira como fonte de inspiração, em Scènes de la littérature sous les tropiques (1824), tomando por base as teses de Chateaubriand e Madame de Staël, seguindo uma orientação inspirada por Humboldt; ajudou a criar o


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indianismo romântico no conto Os Machacalis (1824); e fundou, segundo Antonio Candido (1918-), no Resumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du resumé de l’histoire littéraire du Brésil (1826), a teoria da literatura brasileira nos moldes românticos. Denis exerceu, durante muitos anos, o cargo de conservador e administrador da Biblioteca Sainte Geneviève, em Paris, e foi amigo e mentor intelectual dos jovens brasileiros Domingos José Gonçalves de Magalhães, Manuel de Araújo Porto Alegre e Francisco de Sales Torres Homem (1812-1876), editores, em Paris, dos dois únicos números da Niterói-Revista Brasiliense (1836), marco oficial do nosso Romantismo. Se nos anos 30 registramos a presença do instinto de americanidade em Magalhães e Porto Alegre, nos anos 40, da geração que se formou em torno do Minerva Brasiliense, periódico carioca que circulou entre 1843 e 1845, vamos detectá-lo em textos críticos de Joaquim Norberto de Sousa Silva (1820-1891) e do chileno Santiago Nunes Ribeiro (?1847), para quem a fonte inspiradora dos poetas brasileiros estava na própria natureza americana, pois mesmo viajando nenhum deles se afastou efetivamente da pátria, conforme comenta: A poesia do Brasil é filha da inspiração americana. [...] o gênio dos brasileiros pertence ao clima, ao solo, ao Brasil finalmente. Assim em vez de considerar a poesia do Brasil como uma bela estrangeira, uma virgem da terra helênica, transportada às regiões do Novo Mundo, nós diremos que ela é a filha das florestas, educada na velha Europa, onde a sua inspiração nativa se desenvolveu com o estudo e a contemplação de ciênca e natureza estranha (Ribeiro apud Coutinho, 1980, v. I, p. 59).

A presença do instinto de americanidade no discurso crítico de Santiago Nunes Ribeiro emerge nos momentos em que necessário se faz ao crítico marcar a originalidade da literatura produzida no Brasil, portanto na América, em


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oposição àquela produzida em Portugal, isto porque, para ele: “As condições sociais e o clima do novo mundo necessariamente devem modificar as obras nele escritas nesta ou naquela língua da velha Europa” (Ribeiro apud Coutinho, 1980, v. I, p. 46). Ribeiro não fugiu à tendência da maioria dos românticos brasileiros de tomar o Brasil por América e vice-versa. Não se pode esquecer que o caráter específico da crítica, naquele momento, entre nós, é muito mais de tomada de consciência e de formação de um ponto de vista que identificava a literatura clássica à colônia; e sentia a necessidade de uma nova literatura, inspirada em outros modelos, para a jovem nação que surgia. Neste sentido, as ideias críticas de Augusto Guilherme Schlegel e Madame de Staël, que nos chegaram por meio de Ferdinand Denis, forneceram elementos para que os novos escritores percebessem a oposição classicismo-romantismo e, consequentemente, estabelecessem a relação entre Classicismo e Brasil Colônia e Romantismo com Brasil independente. Ao lado de Denis, não se pode minimizar a contribuição de dois portugueses no que se refere à manifestação do instinto de americanidade nos textos produzidos no Brasil por autores brasileiros. Refiro-me a Almeida Garrett (17991875) e Alexandre Herculano (1810-1877). O primeiro, ao estudar a poesia de língua portuguesa, divulgando um corpus até então desconhecido, na medida em que incluiu autores das colônias e ex-colônias de Portugal, apresentou um novo panorama desta literatura com a finalidade de corrigir informações inadequadas de seu ponto de vista, divulgadas por Bouterwek na História da poesia e eloquência portuguesa (1804) e por Sismonde Sismondi em Da literatura do meio-dia da Europa (1813). Além disso, criticou os árcades mineiros Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga pela pouca presença da natureza americana, reivindicando mais originalidade e menos imitação dos europeus: “[...] a educação européia


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apagou-lhes o espírito nacional: parece que receiam de se mostrar americanos; e daí lhes vem uma afeição e impropriedade que dá quebra em suas melhores qualidades” (Zilberman; Moreira, 1998, p. 56-57). Garrett valoriza os textos dos árcades Sousa Caldas, Santa Rita Durão e principalmente Basílio da Gama, a quem “Os brasileiros principalmente lhe devem a melhor coroa de sua poesia, que nele é verdadeiramente nacional, e legítima americana” (Zilberman; Moreira, 1998, p. 58). Alexandre Herculano, por sua vez, manifestou-se favoravelmente à literatura produzida no Brasil num artigo intitulado “Futuro literário de Portugal e do Brasil”, publicado no Tomo IV da Revista Universal Lisbonense, em 1847, ao tecer elogios aos Primeiros cantos (1846), de Gonçalves Dias, enaltecendo o fato do então jovem escritor enfatizar o vínculo com o seu meio social. Diz ele: Naquele país de esperanças, cheio de viço e de vida, há um ruído de lavor íntimo, que soa tristemente cá, nesta terra onde tudo acaba. A mocidade, despregando o estandarte da civilização, prepara-se para os seus graves destinos pela cultura das letras, arroteia os campos da inteligência; aspira as harmonias dessa natureza possante que a cerca; concentra num foco todos os raios vivificantes do formoso céu, que a alumina; prova forças enfim para algum dia renovar pelas ideias a sociedade, quando passar a geração dos homens práticos e positivos, raça que lá deve predominar ainda; porque a sociedade brasileira, vergôntea separada há tão pouco da carcomida árvore portuguesa, ainda necessariamente conserva uma parte do velho cepo. Possa o renovo dessa vergôntea, transplantada da Europa para entre os trópicos, prosperar e viver uma bem longa vida, e não decair tão cedo como nós decaímos! (Herculano apud César, 1978, p. 134)

Assim, Herculano estimulou Gonçalves Dias e os demais poetas brasileiros à busca de uma identidade mais aprofundada, que afastasse cada vez mais a literatura brasileira da matriz portuguesa. O que levou o crítico


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Guilhermino César (1908-1993) a comentar com muita sagacidade: “Não desejar que os escritores da América imitassem os de Portugal, a ex-metrópole, numa submissão servil, representava efetivamente uma atitude inusitada entre portugueses” (César, 1978, p. 129). Como no texto de Garrett, o estímulo à exaltação da natureza americana, da cor local, em Herculano, irá contribuir para a formação de um instinto americanidade que levará muitos dos autores brasileiros à produção dos “poemas americanos”, como se pode ver no trecho que se segue: Quiséramos que as Poesias Americanas que são como o pórtico do edifício ocupassem nele maior espaço. Nos poetas transatlânticos há por via de regra demasiadas reminiscências da Europa. Esse Novo Mundo que deu tanta poesia a Saint-Pierre e a Chateaubriand é assaz rico para inspirar e nutrir os poetas que crescerem à sombra das suas selvas primitivas (César, 1978, p. 136).

Herculano e Garrett, na sinceridade que pontua seus textos, revelam uma confiança para com o futuro da literatura produzida no Brasil que com certeza serviu de estímulo e plantou raízes na construção da identidade nacional da literatura brasileira. Daí a tradição literária brasileira reconhecer principalmente em Garrett, juntamente com o francês Ferdinand Denis, os patronos da nossa historiografia literária. O Parnaso Lusitano e o Resumo da história literária do Brasil são a carta de princípios dos jovens Magalhães, Porto Alegre e Torres Homem, que, em Paris, no ano de 1836, lançaram nas páginas da Niterói, Revista Brasiliense, as bases da literatura brasileira. Graças a Denis e Garrett, observa-se no Brasil um instinto de americanidade que levou os que aqui viviam a expressar um “sentimento de pertença à América” (Bernd e Campos, 1995, p. 5), traduzido na exaltação do continente americano por meio do “culto da natureza virgem e grandiosa, não necessariamente exótica em oposição à na-


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tureza européia [...] e o culto dos heróis nacionais” (Lopes, 1997, p. 283). Antes de concluir esta brevíssima genealogia do americanismo na literatura romântica brasileira, movida pela não espontaneidade da condição americana da cultura brasileira de um modo geral, convém enfatizar que, por volta dos anos 30 do século XIX, já se registram fortes índices de um instinto de americanidade consciente e programado nos textos poéticos, críticos e historiográficos brasileiros, ainda que sem feição pan-americanista e sem sinais de alerta contra o expansionismo dos Estados Unidos da América do Norte, advindos da proposta do senador James Monroe, que sustentava a ideia da América para os americanos. O pensamento libertário de Simón Bolívar (1783-1830) e a doutrina de Monroe (1823) não marcaram o conceito de americanidade da geração romântica, mas irão provocar discussões na imprensa, a partir das últimas décadas do século XIX e primeiras décadas do século XX, quando vêm à tona também os debates em torno das ideias pan-americanistas. Nesse momento, o cenário político brasileiro não é mais o do Romantismo nem o do Império, mas o da recém-proclamada República. Nele, irão circular as figuras de Tristão de Alencar Araripe Júnior (1848-1911), Sílvio Romero (1851-1914), José Veríssimo (1857-1916), Joaquim Nabuco (1849-1910), Manoel de Oliveira Lima (1867-1928), Manoel Bomfim (1868-1932), Eduardo Prado (1860-1901) e tantos outros. Admitida a presença do instinto de americanidade paralela à construção da identidade nacional da literatura brasileira, contribuímos para a aceitação efetiva da condição americana de nossa tradição literária e o reconhecimento mais espontâneo da nossa face latino-americana.

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Nações em confronto: as histórias literárias e as literaturas comparadas no século XIX Luiz Eduardo Oliveira*

RESUMO: A historiografia romântica constitui-se como estratégia discursiva preponderante na construção da narrativa da nação, uma vez que mobiliza mitos fundacionais e inventa tradições. Por outro lado, o Romantismo transcende as barreiras do nacional, pois, ao implicar a relação entre as estruturas das línguas e a índole de suas literaturas, sugere aos historiadores a comparação de diferentes narrativas nacionais. Este ensaio investiga o modo como a comparação entre literaturas configurou-se, no século XIX, como uma comparação entre estadosnação, os quais se constroem discursivamente em mútuo confronto, num processo permeado de relações de poder e estranhamento. PALAVRAS-CHAVE:

história literária, identidade nacional, lite-

ratura comparada. ABSTRACT:

The romantic historiography is constituted as a discoursive strategy which is preponderant in the construction of the narratives of the nation, once it mobilizes foundational myths and invents traditions. On the other hand, Romanticism transcends the limits of the national, for, implying a relation between the structures of the languages and the character of their literatures, suggests to the historians the comparison between different national narratives. This essay investigates the way how the comparison of literatures, during the nineteenth century, configures a comparison between nation states, which are themselves constructed discoursively in mutual confrontation, in a process permeated by relations of power and strangeness. KEYWORDS:

literature. Universidade Federal de Sergipe (UFS). *

literary history, national identity, comparative


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Comparar literaturas é comparar nações, as quais se constroem discursivamente, de forma dialética e dialógica, em mútuo confronto, num processo de assimilação recíproca e, na maior parte das vezes, desigual, permeado de relações de poder e estranhamento. É também conceber de modo quase metafísico uma entidade específica chamada literatura, algo que se constitui como instância legitimadora dos estados-nação, concorrendo de modo privilegiado para o processo de construção das identidades nacionais. Para se imaginar a nação, contudo, foi necessário não somente que as comunidades religiosas e dinásticas entrassem em declínio, mas também que uma nova maneira de apreender o mundo fosse configurada, passando a história a ser concebida como uma cadeia de causas e efeitos, o que implicava uma separação radical entre as noções de passado e presente. Foi quando a concepção medieval de tempo – na qual passado, presente e futuro se confundiam – deu lugar a um “tempo vazio e homogêneo”, nas palavras de Benjamin (apud Anderson, 2008, p. 54), fazendo com que a ideia de simultaneidade se tornasse possível. Tal ideia serviu de suporte aos dois gêneros que proporcionaram, no século XVIII, os meios técnicos necessários para se “representar” – ou “narrar”, como quer Bhabha (2006) – as “comunidades imaginadas” correspondentes à nação: o romance e o jornal. Desse modo, fazer uma nação corresponde a fazer uma literatura, como notou Miranda (1994, p. 33), uma vez que a concepção de história herdeira do Iluminismo, como uma temporalidade linear e contínua, evoluindo ou progredindo de forma monolítica rumo a um futuro ilimitado, contribui de maneira decisiva para a construção de histórias literárias que, em nome do interesse nacional e de prerrogativas étnicas, buscam “re-presentar” – ou “narrar” – a nação de modo unificado e sem fissuras. Para Carpeaux (1959, p. 21), Herder teria sido o fundador da história literária autônoma, ao criar o conceito


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de “literatura nacional” como a expressão mais completa da evolução espiritual de uma nação, inspirando todo o nacionalismo do século XIX, o qual teria dado origem tanto ao “pan-eslavismo” quanto ao “racismo alemão”. Suas Ideias para a filosofia da história da humanidade (1784-1791), ademais, teriam não somente formulado o conceito de “literatura universal” como também estabelecido – ou “naturalizado” – a relação entre as estruturas das línguas e a índole de suas literaturas. Ao tratar das comunidades religiosas, as quais eram imaginadas pelo uso de uma língua e uma escrita sagradas, como foi o caso do árabe e do chinês escritos, bem como do latim, no Ocidente, Anderson (2008, p. 44) relaciona o seu declínio, no final da Idade Média, com as explorações do mundo não europeu e as narrativas de viagem delas decorrentes. Segundo o autor, no confronto com o Outro, “o uso inconsciente do ‘nossa’ (que se torna ‘deles’)” e a “qualificação da fé cristã como ‘a mais verdadeira’” denunciam uma “territorialização dos credos”, prenunciando o discurso nacionalista de que “a ‘nossa’ nação é a ‘melhor’ – num campo comparativo e competitivo”. Desse modo, o rebaixamento gradual das línguas sagradas – o que, no caso ocidental, pode ser representado pelo declínio do latim – corresponde à ascensão dos vernáculos, algo tornado massivo pelo “capitalismo tipográfico”, que possibilitou a produção de livros escritos nas línguas vernáculas (Anderson, 2008, p. 46). Nesse processo de estandardização dos vernáculos europeus, concorreram vários outros fatores, dentre os quais podem ser destacados o desenvolvimento dos saberes linguísticos, a administração dos grandes Estados, a expansão colonial, o proselitismo religioso das duas Reformas e a literarização dos idiomas, em sua relação com a identidade nacional. Nesse sentido, a constituição das nações europeias acarreta uma situação de luta entre elas, institucionalizando, consequentemente, uma concorrência entre as línguas:


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A velha correspondência uma língua, uma nação, tomando valor não mais pelo passado mas pelo futuro, adquire um novo sentido: as nações transformadas, quando puderam, em Estados, estes vão fazer da aprendizagem e do uso de uma língua oficial uma obrigação para os cidadãos (Auroux, 1992, p. 49).

Nessa perspectiva, se o fato da gramatização,1 como fenômeno massivo, pode situar-se no século XVI, no qual se verifica o aparecimento de grande número de gramáticas, e de quase todas as línguas do mundo, cujas descrições eram baseadas na gramática da língua latina, fato verificado inclusive no Brasil, como testemunha a Arte da grammatica da lingoa mais usada na costa do Brasil, de 1595, composta pelo padre jesuíta José de Anchieta (1533-1597), é por essa época também que a disputa entre as línguas se torna objeto dos vários diálogos então publicados, como foi o caso da língua portuguesa. Gênero em voga no Renascimento, o diálogo era uma espécie de encenação de uma conversa entre dois ou mais indivíduos, os quais eram representados pelos homens de letras, nobres e autores da época. No caso português, dois se tornaram célebres: O diálogo em louvor da nossa linguagem, de João de Barros, publicado em 1540, e o Diálogo em defensão da língua portuguesa, de Pero de Magalhães Gândavo, publicado em 1574. Ambos estão articulados em oposição à língua espanhola, na tentativa de provar que o português, estando mais próximo do latim, seria superior e mais nobre do que o espanhol, num momento em que o movimento de defesa e ilustração das línguas vulgares se espalhou pela Europa, suscitando uma série de publicações sobre o tema. Assim, tanto Pietro Bembo, em Prose della volgar lingua (1525), quanto Juan de Valdés, no Diálogo de la lengua (1535), e Joachim du Bellay, em La deffence ET illustration de la langue françoyse (1549), além dos autores portugueses acima mencionados, defendiam a ideia de que a língua vulgar poderia ser tão digna quanto a latina, afirmando ser a própria língua nacional superior às demais:

O conceito de “gramatização”, tal como o define Auroux (1992, p. 65) – “o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário” –, difere-se das primeiras tentativas filológicas de tradução e interpretação de textos, assim como da grammatiké grega, que nasce na virada dos séculos V e IV antes de nossa era. Sua formulação tem origem no século II a.C., com a Escola de Alexandria, e associa-se ao conhecimento empírico dos poetas e prosadores, mas o sentido moderno, como corpo de regras que explicam como construir palavras mediante paradigmas, para aprender a falar – e depois ler e escrever –, é um advento mais recente e coincide com o Renascimento.

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No contexto português, a defesa da língua articulava-se também com a expansão marítima e territorial, com o projeto imperialista da coroa portuguesa e com a colonização das novas possessões orientais e ocidentais. Como sintetizava Antonio de Nebrija no prólogo de sua gramática: “sempre a língua foi companheira do império”. Fernão de Oliveira, nosso primeiro gramático, também enfatizava o caráter político da língua: “porque quando senhoreavam o mundo mandaram todas as gentes a elas sujeitas aprender suas línguas”. [...] O português e também o espanhol se sonhavam como língua imperialista, projetando a sua expansão pelas novas terras conquistadas, a exemplo dos romanos e do latim: uma nova língua imperial, herdeira do império romano (Hue, 2007, p. 16).

No diálogo de João de Barros, em que o autor conversa longamente com o filho sobre as qualidades e potencialidades da língua portuguesa, preconizando uma pedagogia para seu ensino, a relação entre língua e império, bem como os exemplos clássicos, se faz evidente em mais de uma oportunidade, como deixa ver o momento em que o pai, ao tentar convencer o filho de que a aprendizagem da gramática portuguesa, além de garantir a transmissão dos preceitos da fé cristã, facilita o entendimento de outras línguas, refere-se a “Túlio, César, Lívio” – tidos como “fonte da eloquência” – para justificar que eles aprenderam sua “natural linguagem” antes da língua grega, argumentando ainda que Carlos Magno e “outros tão graves e doutos barões” preferiam a vitória que sua língua tinha, em ser recebida – ou imposta – em nações bárbaras, à submissão dos seus povos ao jugo do seu império (apud Hue, 2007, p. 52-53). Gândavo, por sua vez, em seu Diálogo em defensão da língua portuguesa, representa o antagonismo de dois interlocutores: Petrônio, que defende, em português, a sua língua, e seu adversário, Falêncio, que, em seu próprio idioma, argumenta a favor da superioridade do castelhano. Apesar de ter como modelo João de Barros, e de usar muitos de seus argumentos em favor da nobreza da língua portugue-


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sa, por ser mais próxima do latim do que o espanhol, Gândavo sugere uma aproximação entre as línguas e os gêneros, pois, para o autor, cada língua tem um estilo que lhe é mais próprio. Desse modo, o grego seria mais apropriado para versos, o latim para orações, o toscano para os sonetos, o português para as comédias em prosa e o verso heróico e o castelhano para as “trovas redondas e garridas que naturalmente parecem feitas para ela” (apud Hue, 2007, p. 73). É nesse momento que, para provar que os portugueses não tinham necessidade de usar o castelhano, algo criticado pelo autor – que afirma que a nação portuguesa era “mais afeiçoada às coisas dos outros reinos que às da sua mesma natureza, coisa que se não acha nas outras nações”2 (apud Hue, 2007, p. 72) –, Gândavo faz uma relação dos poetas e escritores portugueses, indicando suas obras. Trata-se, nesse caso, do estabelecimento do primeiro cânone de autores de língua portuguesa: Francisco Sá de Miranda, cujas comédias e versos são tidos como os primeiros verdadeiramente portugueses; João de Barros; Frei Heitor Pinto, autor da Imagem da vida cristã; Lourenço de Cárceres; Francisco de Moraes; Jorge Ferreira; Antonio Pinto; Luís de Camões, “de cuja fama o tempo nunca triunfará”; Diogo Bernardes; António Ferreira e André de Resende (apud Hue, 2007, p. 73-75).3 Nesse sentido, tem razão Buescu (1969, p. 18), quando afirma que Ao pretender forjar para as línguas vulgares uma regularidade idêntica à das línguas antigas, os Gramáticos do século XVI estão, pois, coerentes consigo mesmos, na medida em que o grande leitor motivo de toda a actividade mental renascentista se concentra na dignificação das nações modernas em paralelo com os povos da Antiguidade, sobretudo o povo latino. A consciência lingüística vai, pois, a par com a consciência nacional, até mesmo com a consciência imperial, e a língua aparece-nos pela primeira vez considerada como o espírito e alma de cada Nação.

Como afirma Hue (2007, p. 11), “a ameaça do castelhano, língua de corte, arte e saber, refletia uma configuração ibérica em que o espanhol tinha se afirmado como idioma de cultura desde meados do século XV. Carlos V, em 1536, em Roma, adota o espanhol no âmbito da diplomacia, configurando oficialmente uma ‘praxis de poder’ da língua e promovendo sua ‘internacionalização’. São vários os autores portugueses no século XVI que escrevem em espanhol para que suas obras alcancem um público maior, reconhecendo-o como língua mais difundida e com maior número de leitores”.

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Em seu cânone, não está presente o único autor português mencionado por João de Barros, em seu diálogo: Gil Vicente. Para Hue (2007, p. 26-27), “seu teatro popular, de raízes medievais, não se prestava ao objetivo de mostrar a língua portuguesa próxima do latim e imersa no classicismo”, razão por que “dá preferência a autores cujas obras estão pontuadas por um vasto – e por vezes exibicionista – saber erudito e por inúmeras citações de autores latinos e gregos”.

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Para Anderson (2008, p. 73-75), três fatores externos contribuíram para o surgimento da consciência nacional, contribuindo para a dignidade literária dos vernáculos: 1) a mudança de caráter do latim, que, de língua sagrada, graças à sua condição de texto, passa a ser objeto de apreciação estética e/ou estilística, tornando-se arcano por conta do que estava escrito, isto é, da “língua-em-si”; 2) o impacto da reforma, especialmente com a aliança entre o protestantismo e o capitalismo editorial; 3) a lenta difusão de alguns vernáculos como instrumentos de centralização administrativa, por obra de certos monarcas bem posicionados, com pretensões absolutistas. Há que se observar, contudo, a diferença entre uma “escolha” da língua como fruto de um desenvolvimento inconsciente ou aleatório, como foram os casos inglês e francês, e as políticas linguísticas autoconscientes dos dinastas oitocentistas – e mesmo setecentistas, como foi o caso da política linguística e educacional do rei português D. José I, por meio do seu ministro, o Marquês de Pombal (Andrade, 1978) –, diante dos nacionalismos linguísticos populares de oposição. Se por meio do “gênio” de uma língua poderíamos apreender o espírito de uma nação, é pela sua expressão mais alta, a literária, que a nação é narrada. Assim pensava Herder, em suas já mencionadas Ideias para a filosofia da história da humanidade (1784-1791). Sua obra, nessa perspectiva, teria sugerido a Humboldt, “o criador da linguística comparativa”, o estudo filológico das literaturas modernas, e a Friedrich Schlegel a ideia de um paralelismo histórico na evolução de todas as artes, a partir de uma “lei de evolução espiritual” que apareceria na narrativa cronológica dos fatos literários. Tal concepção de tempo estaria ligada ao “passadismo” dos românticos, pois o fio cronológico seria a “árvore genealógica das obras do espírito” (Carpeaux, 1959, p. 22). Esse era o mote, por exemplo, das primeiras obras da historiografia da literatura inglesa, como observou Wellek


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(1962, p. 315-316): Thomas Warton, em sua história da poesia inglesa, de 1774, afirmava que o objetivo do estudo da literatura antiga era “registar fielmente as feições das épocas e preservar as mais pitorescas e expressivas representações dos costumes”. Henry Morley, no prefácio a English writers (1864), concebia a sua obra como a “história do espírito inglês”. W. J. Courthope, por sua vez, em outra história da poesia inglesa, publicada em 1895, definia o estudo da poesia inglesa como “o estudo do contínuo crescimento das nossas instituições nacionais tais quais elas aparecem reflectidas na nossa literatura”. A historiografia romântica, nesse sentido, ao estabelecer como critério o princípio cronológico, alarga os horizontes temporais retrospectiva e prospectivamente, na medida em que (re)descobre períodos até então inexplorados ou desprezados, como a Idade Média e o Barroco, graças ao desenvolvimento dos estudos arqueológicos e filológicos. Ademais, constitui-se como estratégia discursiva preponderante na construção da narrativa da nação, uma vez que mobiliza mitos fundacionais e de “povo original”, ou raça pura, inventando tradições (Hall, 2005, p. 52-56). Por outro lado, o Romantismo transcende as barreiras do que Carpeaux (1959, p. 23) denomina “miopia nacional”, uma vez que, ao implicar a relação entre as estruturas das línguas e a índole de suas literaturas, sugere aos historiadores da “literatura universal” a comparação de diferentes tradições literárias, ou de diferentes narrativas nacionais: A França devia a Chateaubriand contatos novos com a literatura inglesa, e a Madame de Stael a descoberta da literatura alemã. A Histoire des Littératures Du Midi de l’Europe (1813/1819), de Sismonde de Sismondi, chamou a atenção para os trovadores provençais, para Petrarca e Ariosto, Cervantes e Camões. Sainte-Beuve, no Tableau Historique et Critique de la Poesie Française et du Théàtre Français au XVI Siècle (1828), reabilitou a honra de Ronsard. O professor alemão Friedrich Bouterwek (Geschichte der neu-


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en Poesie und Beredsamkeit, 1801/1819) deu notícia exata de todas as literaturas ao alcance da sua vasta erudição linguística (Carpeaux, 1959, p. 23).

Tal comparação entre literaturas configurava-se, em muitos aspectos, como uma comparação entre estados-nação, pois sugeria a associação entre unidades geopolíticas e/ ou linguísticas e determinadas identidades que, tidas como nacionais, consistiam na padronização, ou estereotipificação, de suas (auto)representações. Tal foi o caso de Bouterwek, tido como precursor da historiografia da literatura brasileira. Ao comparar entre si as literaturas do Ocidente, em sua já mencionada História da poesia e eloquência desde o final do século XIII (1801-1819) – a qual era parte de um ambicioso projeto coordenado por Johann Gottfried Eichhorn, que pretendia formular, com a ajuda de outros intelectuais alemães, uma História das artes e da ciência desde a sua criação até o final do século XVIII –, Bouterwek faziase valer dos pressupostos estabelecidos por Madame de Stäel, segundo os quais a natureza do homem do Norte contrapunha-se à do homem do Sul. Ao tecer comentários sobre a literatura espanhola, por exemplo, o autor ressalta o seu “iberismo congenial”, bem como sua “originalidade meridional”, em confronto com a “sensaboria nórdica” (César, 1978, p. xix-xx). Com efeito, na “Introdução geral à história da poesia e eloquência mais novas”, Bouterwek associa a pobreza ou riqueza dos povos – isto é, das nações – à riqueza ou pobreza de suas línguas, as quais encontram a sua mais alta expressão na poesia e na eloquência: O poeta não pode expressar simbolicamente, por meio de palavras, aquilo que o público não consegue entender. Como consequência, da mesma maneira que o espírito de um povo se mostra na sua língua, ele também se mostra inevitavelmente em todos os trabalhos poéticos feitos nessa língua. A quantos fios de representações obscuras, que


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acompanham cada palavra, não está preso o significado estético de uma poesia! E este jogo de representações obscuras, para o qual quer ativar o espírito de seu público, é, em grande parte, resultado do caráter nacional, da cultura nacional e da maneira geral de pensar do povo, em cuja língua ele se expressa (apud Bolognini, 2003, p. 98-99).

Tal dicotomia entre as literaturas do Norte e do Sul, professada por Madame de Stäel, repercute também nos quatro tomos da obra de Sismondi, De la littérature du midi de l’Europe (1813): Não sabemos, até hoje, exatamente quais as razões que a inspiraram, mesmo porque a animadora do grupo de Coppet não o disse com suficiente clareza, nem os seus discípulos o puderam fazer. A verdade, hoje reconhecida, é que, se falta peso a tal divisão, teve ela entretanto o mérito de dirigir a curiosidade crítica de homens como Sismondi para as regiões meridionais (César, 1978, p. xxiv).

Com Ferdinand Denis, em seu Resumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du resumé de l’histoire littéraire du Brésil (1826), tal relação é levada ao extremo, tornando-se receituário, especialmente para a “literatura brasileira”, que pela primeira vez aparecia desvinculada de Portugal, pois o autor francês, ao eleger, entre os poetas setecentistas nascidos no Brasil, precursores para um certo indianismo brasileiro – que, em sua opinião, deveria ser mais bem explorado, a exemplo do que fizera Cooper nos Estados Unidos –, aconselha os autores aqui nascidos a fazerem mais uso da matéria nativa, isto é, da fauna e da flora do país, sugerindo um verdadeiro “programa nacional literário” (Rouanet, 1991, p. 229), no intuito de assegurar à literatura produzida no Brasil uma legitimidade que pudesse conferir-lhe, junto com a recente independência política, uma autonomia estética. Nessa perspectiva, pode-se traçar uma linha de continuidade entre a historiografia romântica e a historiografia naturalista – cujo modelo clássico é a Histoire de la littérature


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O narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas, no prólogo intitulado “Ao Leitor”, ao revelar a adoção da “forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre”, refere-se à possível introdução de “algumas rabugens de pessimismo” na obra. (Assis, 1991) A crítica, talvez motivada por tais pistas, não hesitou em caracterizá-la com o humour sterneano ou com os seus elementos pessimistas, construindo assim, a despeito da solene discordância de Sílvio Romero, consensos que se reproduzem até na historiografia recente da literatura brasileira, como na História concisa da literatura brasileira (1970), em que, a propósito de alguns poemas que teriam precedido a segunda fase do autor, alude-se o “pessimismo cósmico de Schopenhauer e Leopardi” (Bosi, 1994, p. 178), ou em De Anchieta a Euclides, onde Brás Cubas é considerado um “romance sterneano” (Merquior, 1979, p. 166). 4

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anglaise (1877), de Hippolyte Taine –, na medida em que esta, ao adotar os métodos objetivistas das ciências naturais, priorizando os condicionamentos ou fatores extrínsecos à obra – a raça, o meio e o momento histórico –, vai proporcionar um instrumental científico que servirá de suporte à associação romântica entre unidades geopolíticas e/ ou linguísticas e identidades nacionais. Um exemplo célebre, no caso brasileiro, é o de Sílvio Romero, que, em sua História da literatura brasileira (1888), foi o primeiro – e talvez o único – a discordar do “humorismo” e “pessimismo” de Machado de Assis, sendo, por isso, o pioneiro no trato da questão da influência não só dos humoristas britânicos, mas também dos filósofos pessimistas.4 Segundo o crítico e historiador sergipano, o humour só podia ser verdadeiro, ou “genuíno”, quando se confundia com a “índole” do escritor, que por sua vez era um produto da “psicologia”, da “raça” e do “meio” do seu povo: “o temperamento, a psicologia do notável brasileiro não eram os mais próprios para produzir o ‘humour’, essa particularíssima feição da índole de certos povos. Nossa raça em geral é incapaz de o produzir espontaneamente” (Romero, 1954, p. 1629). Para assegurar seus argumentos, Romero contrapõe alguns dados biográficos de Laurence Sterne, “filho de militar inglês”, ao “sensato, manso, criterioso e tímido Machado”, asseverando a profunda diferença entre o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas e o de Tristram Shandy. Quanto a uma possível relação entre as obras, não há nenhuma referência, limitando-se o crítico à menção das cenas mais famosas criadas pelo romancista inglês, “no dizer dos mestres, verdadeiras obras primas”, e à afirmação da disparidade entre os personagens de Sterne, “criações cheias de realidade”, e os do escritor brasileiro, que “jamais ideou nada que lembre os dois irmãos Shandys” (Romero, 1954, p. 1630). Os mesmos pressupostos naturalistas – “a psicologia”, “a raça” e “o meio” – são utilizados para descartar o pessi-


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mismo de Machado de Assis. O nosso romancista, não descendendo das raças arianas, não poderia ser um desencantado à maneira dos verdadeiros pessimistas: Nós brasileiros somos faladores, desrespeitadores das conveniências, assaz irrequietos, até onde nos deixa ir nossa ingênita apatia de meridionais, não somos pessimistas, nem nos agrada o terrível desencanto de tudo, sob as formas desesperadoras dos nirvanistas à Buda ou à Schopenhauer (Romero, 1954, p. 1631).

O que está em causa, aqui, não é a obra do autor brasileiro em suas relações com a do romancista inglês, mas simplesmente a sua suposta personalidade, no que tem de inferior e incompatível com a de Laurence Sterne. Ao que parece, Sílvio Romero nunca lera o autor de Tristram Shandy, sendo talvez esse o motivo pelo qual não desenvolve suas afirmações, podendo-se supor que suas opiniões a respeito de Sterne fossem adquiridas de segunda mão – provavelmente via Taine. Tal preconceito de Romero justifica-se pelo próprio projeto de sua obra, que buscava encontrar as “leis” que presidiam a formação do gênio, do espírito e do caráter do “povo brasileiro”. Para tanto, era de suma importância o fenômeno da miscigenação, o qual seria gerado a partir de cinco fatores: o português, o índio, o meio físico e a imitação estrangeira. Desse modo, a literatura somente adquiriria um caráter nacional quando exprimisse, literariamente, o novo tipo histórico criado pela miscigenação, algo que, a seu ver, não seria realizado por Machado de Assis. Embora sua proposta e seu método sejam diferentes daqueles dos historiadores românticos, uma vez que buscam identificar a nacionalidade literária a partir de critérios objetivos e tidos à época como científicos, Romero acaba por (in)definir o “caráter nacional” como “um não sei quê” indicativo de nacionalidade, reforçando assim, nesse aspecto, o pressuposto romântico de que a literatura representa o espírito – algo difícil de definir – das nações:


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Essa aproximação auxilia, assim, na inserção de Romero na tradição historiográfica, como também dimensiona o ensaio de Machado [“Literatura brasileira – instinto de nacionalidade”, publicado em 1873] como “ponte” entre os românticos e os “modernos” do fim do século. A noção do “caráter nacional”, do “sentimento íntimo”, já podia ser lida em Santiago Nunes Ribeiro; ela passa por Machado, que a desvincula dos índices específicos da nacionalidade – a natureza, o indígena etc. – abrindo a literatura para os temas gerais da humanidade; e deságua em Sílvio Romero, que busca, embora problematicamente, desvendar-lhe historicamente os fundamentos (Weber, 1997, p. 76).

A busca pela nacionalidade literária, meta principal da historiografia romântica e naturalista, atravessa toda a historiografia da literatura brasileira, tornando-se problemática na historiografia produzida durante a década de 1970, principalmente entre os partidários da teoria da dependência. Apesar da ideia de uma literatura nacional homogênea e integrada à tradição ocidental desse lugar a uma visão dialética de seus descompassos e descontinuidades, inserindo as literaturas da América Latina na zona de influência das literaturas metropolitanas, a tradição historiográfica inaugurada com o Romantismo se mantinha presente, especialmente no tocante à questão sempre reiterada da circulação de ideias, dentro e “fora do lugar”: Reescrevia-se, dessa forma, portanto, boa parte da tradição – de uma tradição, melhor dito, que, desde o Romantismo, levantava a questão por vezes incômoda da imitação, das influências, da transplantação: a da imitação dos clássicos pelos árcades, sinônimo, para os românticos, de imitação da e de subserviência à literatura portuguesa (enquanto, “paradoxalmente”, se saía a campo consumindo modelos franceses...); a da importação constante de modismos estrangeiros, já denunciada por um Sílvio Romero, por exemplo, a fazer com que um modismo se substituísse


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a outro, sem que as idéias apresentassem “seriação interna” (atitude “paradoxalmente” reforçada pelo próprio Sílvio, ao consumir a última moda cientificista européia e o “último autor”, ou ao propor a substituição do francesismo pelo germanismo...); a da importação que levaria um Oswald de Andrade, nos anos 20, a propor a devoração antropofágica (modo “paradoxal” de se continuar a importação...); a da transplantação de Nelson Werneck Sodré (que, “paradoxalmente”, denunciava a “ideologia do colonialismo”, a resultar na diferença entre a cultura importada e a realidade nacional, com base na ortodoxia stalinista...) (Weber, 1997, p. 144-145).

Essa busca da nacionalidade literária, como se vê, só pode realizar-se em confronto com as outras nações, por meio de relações de poder e estranhamento, se pensarmos o Outro como uma oposição ou negação contra a qual uma subjetividade dominante é definida, pois, como a psicanálise lacaniana tem postulado, é a partir das alteridades que as identidades se constituem (Boehmer, 1995, p. 21). Ela remonta tanto à origem dos saberes linguísticos – uma vez que, nas tradições egípcia, babilônica e grega o florescimento do saber linguístico tem sua fonte no fato de que a escrita, fixando a linguagem, tem por objetivo a alteridade e a coloca diante do sujeito como um problema a resolver (Auroux, 1992, p. 23) – quanto aos primórdios da história literária, na época da produção das primeiras bibliotecas sistemáticas e dicionários biobibliográficos, no século XVI.5 É o que sugere Diogo Barbosa Machado, em sua Biblioteca Lusitana (1741), ao justificar a publicação de sua obra, que buscava inscrever-se no “movimento geral de dotar as nacionalidades européias de histórias de literatura” (Lajolo, 1994, p. 88): Estimuladas de ambição da glória as mais célebres nações do mundo querendo estender a sua fama, assim como a tinham dilatado com as espadas, perpetuarão nos monumentos literários das bibliotecas os admiráveis progressos

Entre essa primeiras obras, Carpeaux (1959, p. 18) menciona a Bibliotheca Universalis (1545-1555), de Conradus Gesner, e o Dictionarium Historicum, Geographicum et Poeticum (1553), de Carolus Stephanus.

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que fizeram em todas as faculdades [...]. Entre todos os reinos e cidades da Espanha, que com gloriosa emulação compuseram bibliotecas para perpetuar na república das letras os nomes de seus naturais, unicamente Portugal se não jactava de semelhante brasão (apud Lajolo, 1994, p. 88).

Desse modo, se, no processo de constituição das nações europeias, a produção das histórias literárias se fazia acompanhar da aliança entre língua e império, ou por uma espécie de nacionalismo imperialista que se forjava em oposição ao Outro colonial, como no caso inglês (Boehmer, 1995, p. 32), no caso dos países americanos, nos quais a língua não era um elemento que os diferenciava das respectivas metrópoles imperiais, nunca tendo se colocado como questão nas primeiras lutas de libertação nacional (Anderson, 2008, p. 84-85), os primeiros impulsos historiográficos confundem-se com o corte dos vínculos políticos com as potências colonialistas europeias, na tentativa de tornar possível o aparecimento de novas nacionalidades literárias, as quais, em oposição à metrópole, inseriam-se em um projeto de independência nacional para o qual era de suma importância uma narrativa de sua fundação e destino (Souza, 2007, p. 13). Assim, a ênfase de boa parte da reflexão teórica sobre o passado, especialmente em países de condição pós-colonial, tem levado a uma revisão dos pressupostos da historiografia romântica e, portanto, do próprio projeto da modernidade, uma vez que passa a ser postulada a multiplicidade de relatos e sujeitos, em oposição a uma narrativa monolítica e unificadora que despreza os fenômenos de desterritorialização, migração e integração: O sujeito enunciador do discurso fundante do estado-nação na América Latina durante o século XIX – independentemente de sua individuação – teve um projeto patriarcal e elitista que excluiu [...] não só a mulher, como também índios, negros, escravos, analfabetos e, em muitos casos, aqueles que não tinham propriedades. Esse perfil do


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sujeito enunciador contribuiu, por sua vez, para a construção do perfil de um sujeito da nação (o cidadão) que se identificou com o discurso de certo nacionalismo (Achugar, 1994, p. 49-50).

Tal nacionalismo, por sua vez, em função de uma língua e uma literatura nacional que “esquece” – no sentido que Renan (2006) dá ao termo – ou apaga as diferenças étnicas, sociais, linguísticas e culturais que não se encaixam no projeto nacional de que o Estado e os homens de letras são os principais representantes, estabelece o padrão necessário para a produção de dicionários, gramáticas, antologias, parnasos e, principalmente, histórias literárias, os quais, institucionalizando-se nos sistemas de educação nacionais, serão uma instância preponderante, no século XIX, para a legitimação das identidades nacionais. Estas, como já se afirmou, constituem-se discursivamente, em confronto com uma alteridade, que pode ser representada pelo colonizador ou pelas nações concorrentes, em relação às quais, ou em decorrência das quais, suas narrativas foram sendo produzidas. Nesse sentido, o processo de institucionalização da historia literária, seja como instância legitimadora do estado-nação, seja como disciplina escolar e acadêmica, encontra-se indissoluvelmente associado ao da configuração dos primeiros estudos de literatura comparada.

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Entre o cânone e a história: notas sobre historiografia literária e escrita da história Erivan Cassiano Karvat*

RESUMO: Este artigo pretende discutir – a partir do “olhar do historiador” – a tensa relação entre a escrita da história e a historiografia literária, principalmente a partir de aspectos e questões que envolvem a constituição dos cânones e seus mecanismos – e que afetam e transpassam a historiografia da literatura, bem como a historiografia de modo geral, configurando-se como elemento possível de promoção de diálogo entre a teoria da história e a teoria literária e, portanto, entre a história e a literatura. PALAVRAS-CHAVE:

historiografia literária, cânone, teoria da história, teoria literária, literatura brasileira.

ABSTRACT: This article intends to discuss – from the “historian point of view” – the tense relation between history writing and literary historiography, mainly regarding aspects and questions involving the constitution of canons and their mechanisms – and that affect and go through literature historiography, as well as historiography as a whole, configuring itself as an element possible of fostering the dialogue between theory of history and literary theory and, consequently, between history and literature. KEYWORDS : literary historiography, canon, history theory, literary theory, Brazilian literature.

Reflexões sobre uma leitura/abordagem historiográfica Como um doente, ardendo em febre, transforma em idéias delirantes todas as palavras que ouve, o espírito do nosso tempo se apropria de todas as manifestações de mundos Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). *


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intelectuais passados ou distantes, arrasta-os para si e, [...] incorpora-as às suas fantasias egocêntricas. (Benjamin,1984)

Ainda que já se tenha dito, e muitas vezes, que a nacionalidade é um dos elementos definidores de uma ideia de literatura brasileira e, consequentemente, de uma história literária, ainda assim, textos como Ensaio sobre a história da literatura brasileira, de Gonçalves de Magalhães (1836) ou Da nacionalidade da literatura brasileira, de Nunes Ribeiro, de 1843, parecem pertencer a um outro tempo histórico ou, melhor, implicam um outro “regime de historicidade”. Ainda que tal assertiva – ligeira e aparentemente superficial – pareça de uma obviedade extremada, cabe lembrar que diversas leituras em torno dos diferentes discursos historiográficos se notabilizaram – e notabilizamse – justa e negativamente por seu aspecto anacrônico, impondo a tais discursos elementos que fogem da sua coerência e de seu tempo. É neste sentido, então, que se entende que a noção de “regime de historicidade”, conforme utilizada por François Hartog, pode ser de notável ganho quando tratamos de textos e discursos historiográficos. Antes, porém, uma ressalva: que fique claro, desde já, os sentidos que atribuímos às palavras história e historiografia. Termo polissêmico, presta-se a história, entre outras, a um mar de confusão vocabular, pois a mesma palavra permite a referência a coisas e significados diversos: [d]esde logo, observamos a tradicional polissemia da palavra. Ora a história é tomada por ontologia, ora como representação da ontologia. Ora ela é um conjunto fragmentário de eventos (as histórias), ora a totalidade processual destes (a História Universal). Por vezes se confunde com a empiria em geral; em outras, com um certo modo específico de estruturação diacrônica dessa empiria. Assim, partindo da ambiguidade básica da palavra que conota tanto os fatos do passado como sua instituição e ordenação pela atividade crítica do conhecimento, teremos concepções distintas tanto do que seja o devir (concepções histórico-ontoló-


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gicas) como dos modos adequados ao seu conhecimento (concepções historiográficas) (Jasmin, 1997, p. 17).

De acordo com William Dray, enquanto a filosofia especulativa objetiva “descobrir na história o curso de acontecimentos”, a filosofia crítica, aparentandose da(s) filosofia(s) da ciência, “empenha-se em tornar clara a natureza da própria investigação do historiador, de modo a ‘situála’, por assim dizer, no mapa do conhecimento” (Dray, 1977, p. 9). Note-se que, ainda que recentemente tenhamos assistido à ampla divulgação do trabalho de Francis Fukuyama, há mais de quarenta anos o próprio Dray apontava o caráter “fora de moda” dos sistemas especulativos de história. Ressalte-se que a edição original do livro é de 1964. 1

O conhecimento histórico, ou a história como forma de conhecimento, articulando-se entre o vivido e o ensinado (portanto, entre história vivida e história ensinada), voltando-se à compreensão/interpretação, enfim, à construção de entendimento acerca do passado, caracteriza-se como historiografia e, portanto, como a própria escrita da história. A historiografia, então, manejando diferentes temporalidades, produz, assim, a própria inteligibilidade sobre a história vivida, tornando a história toda história sinônimo dessa expressão. A escrita da história apresentase, consequentemente, como possibilidade privilegiada de conhecimento sobre o já vivido. Dessa forma, a polissemia da História parece arremeter-se de um sentido circular, pois nos parece voltar ao mesmo ponto: toda História sendo História (ou toda história sendo história) infunde o complicador semântico. Pois se “a história fala da História”, como dizia Pierre Vilar (apud Falcon, 2002, p. 28), toda história é historiografia, uma vez que todo e qualquer conhecimento sobre o passado é produto da historiografia. Da mesma forma, portanto, e em concordância com o historiador Keith Jenkins, pode-se dizer também que todo estudo de história é um estudo de historiografia (Jenkins, 2000, p. 32). No roldão desses diferentes significados da palavra história, ou dessas diferentes possibilidades, percebe-se a complexidade, ou complexificação, de designações atreladas ao vocábulo história. É isso que ocorre, por exemplo, com a própria expressão historiografia – à qual voltaremos adiante –, ou ainda com os seus desdobramentos, talvez ainda pouco usuais, historiografia cognitiva e historiografia normativa. O mesmo vale para a malfadada expressão Filosofia da História, que pode referir-se a uma filosofia especulativa ou, ainda, a uma filosofia crítica da história.1 A historiografia – a escrita da história ou a história como escrita – se impõe, ainda, como a história da própria


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história. Assim, pois, a historiografia apresenta-se como “nada mais que a história do discurso – um discurso escrito e que se afirma verdadeiro – que os homens têm sustentado sobre o seu passado” (Carbonell, 1992, p. 6). Com efeito, se todo conhecimento acerca do passado, ou acerca da história, é historiografia ou resulta desta, por sua vez a expressão adquire certo grau de especialização na medida em que é (ou que diz respeito), concomitantemente, a história do próprio conhecimento histórico, ou a “história do modo de elaborar e de escrever história” (Palmade, 1988, p. 35). A historiografia, a escrita e/ou o discurso sobre a história, caracteriza-se, dessa maneira, como o exercício de reflexão sobre as obras históricas e, portanto, sobre a produção dos historiadores. É, enfim, o debruçar-se sobre a história-conhecimento que, voltando-se aos circunstanciamentos, ditames, limites e/ou dilemas do próprio conhecimento histórico, promove o necessário diálogo – ou metadiálogo – acerca da própria legitimidade e possibilidades deste conhecimento e de seus preceitos, conceitos e mecanismos de produção.2 Assim, de um “conjunto de obras históricas” – podendo remeter a um campo particular (Tétart, 2000, p. 156) e, por exigência do ofício, um campo de estudo do qual nenhum historiador pode se furtar (Silva; Silva, 2005, p. 189), ou não deveria se furtar –, temos aí a historiografia tornada uma perspectiva de trabalho, aquela que se volta ao “exame dos diferentes discursos do método histórico e dos diferentes modos de escrita da história [...]”, segundo a observação de Guy Bourdé e Hervé Martin. (Bourdé; Martin, 1990, p. 9). Passa a historiografia, desse modo, de objeto a uma possibilidade de abordagem deste mesmo objeto. Ainda nesta senda, poderíamos abandonar o caráter antes referendado da tradicional polissemia da palavra história e assinalar o seu malfazejo aspecto homonímico, como aponta Jacques Rancière em sua poética do saber: Problemas de palavras, dirão. É uma infeliz homonímia própria a nossa língua que designa com um mesmo nome a

Segundo Rogério Forastieri da Silva, “[...] podemos considerar o estudo historiográfico como o estudo da história dos escritos históricos, métodos, interpretações e as respectivas controvérsias.” Enfim, como “o estudo que envolve reflexões, de natureza vária, sobre os historiadores e suas respectivas obras” (Silva, 2000, p. 26 e 22).

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experiência vivida, seu fiel relato, sua ficção mentirosa e sua explicação erudita. Exatamente para perseguir as armadilhas da homonímia, os ingleses distinguem story e history. Ciosos de explorar na sua especificidade a experiência vivida e as condições de construção do discurso, os alemães separam Historie e Geschichte. Estas convenientes referências podem fechar alguns buracos nas exposições metodológicas. Sua virtude pára aí. Os caçadores de homonímias fazem como os outros: atribuem séries de acontecimentos a sujeitos. É que não há nada diferente a fazer, a menos, precisamente, que não se faça história (Rancière, 1994, p. 11).

O aspecto da ambiguidade da palavra História é apontado, dentre outros, por Commager, 1967, p. 11. 3

Cabe ressaltar, contudo, que a passagem da tradicional polissemia ao mal da homonímia revela, além da ambiguidade da palavra, a riqueza vocabular da expressão,3 ou seu próprio paradoxo: “A historiografia (quer dizer ‘história’ e ‘escrita’) traz inscrito no próprio nome o paradoxo – e quase o oximoron – do relacionamento de dois termos antinômicos: o real e o discurso” (Certeau, 1982, p. 11). Assim, e como pretendemos desenvolver uma reflexão historiográfica ao longo deste estudo, entendemos que os aspectos terminológicos apresentam-se, já de início, como fundamentais e reveladores.

Histórias da literatura e mais alguma história

João Alexandre Barbosa refere-se, fundamentalmente, aos trabalhos de Alfredo Bosi e Massaud Moisés, intitulados, respectivamente, História concisa da literatura brasileira e História da literatura brasileira (Barbosa, 1996, p. 56-57). 4

Há apenas dez anos, João Alexandre Barbosa, discutindo a formação do cânone na história da literatura brasileira, simultaneamente à própria formação da historiografia e da crítica literária brasileiras, observava a existência de uma certa posição conservadora adotada pelas Histórias da literatura brasileira escritas a partir dos anos 1970, decorrente dos métodos histórico-literários adotados pelos autores dessas obras.4 Sem problematizar aquilo que Barbosa chama de discurso histórico-literário, essas obras, escritas nos limites de um naturalismo crítico tradicional, recaíam na repetição e no lugar-comum historiográfico:


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Mesmos autores, mesmas obras, na sucessão de quadros canônicos seculares, acrescidos, aqui e ali, mas sem maiores repercussões de análise literária, pelo próprio tempo histórico, e em decorrência dos métodos historiográficos adotados. Não aquela adição ao cânone, advinda de uma releitura capaz de pôr em xeque as fables convenues da historiografia tradicional (Barbosa, 1996, p. 57).

Assim, curiosamente, se esta posição conservadora acaba marcando obras que buscavam promover uma revisão do próprio cânone por meio da releitura de autores que até então não haviam merecido maior atenção por parte das sistematizações historiográficas, não conseguem superar a prática (além de canônica, também canonizada) das próprias histórias da literatura que as precedem, gerando, portanto, um discurso com a marca do continuísmo ou da continuidade de um tipo de história. Recuperam-se autores e obras, mas se mantém a mesma forma de abordagem. Ainda que, claramente, se faça necessária a superação de tal forma de elaboração historiográfica, uma vez que agora é cada vez mais evidente que a história não se define apenas como tarefa de acumulação de datas e dados, mas se impõe, para a sua própria efetivação, uma metalinguagem que se volte para o discurso histórico, ainda assim, e talvez por isso mesmo, ressalta-se na permanência desta(s) história(s) já realizada(s) o próprio movimento entre escrita da história literária e a urgência da canonização, que enleva autores e obras, institucionalizando nomes e marcas. A instauração do cânone literário supõe a própria instauração e reconhecimento das histórias literárias. Uma história que impõe, para a sua própria efetivação, uma metalinguagem que se volte para o discurso histórico. Este será, com toda probabilidade, o trabalho principal de uma historiografia literária para o futuro. Eis, em 1996, o prognóstico que encerrava o balanço de Barbosa, mas que, antes de tudo, deixava entrever o incômodo em relação à manutenção das tradições dos discursos da historiografia literária brasileira. Se, por um lado, justamente deste in-


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cômodo, e de sua constatação, é que se pode destacar uma possível via de acesso à problematização desta mesma historiografia, aquela que diz respeito a sua própria constituição de outro lado, as observações de A biblioteca imaginária remetem aos próprios problemas acerca da constituição do próprio campo de estudos da história literária e uma possível historicização desse campo. Assim, o mesmo texto de João Alexandre Barbosa nos induz às reflexões de René Wellek, realizadas ao longo dos anos 1930-1940. Da mesma maneira que o autor de Biblioteca imaginária ou o cânone na história da literatura brasileira recusava, em 1996, uma história da literatura como mera tarefa de acumulação de datas e dados e apontava para um futuro possível ou desejável ainda a se realizar, Wellek, em 1936, apontava para a importância crucial do conceito de evolução em relação à arte literária, prescrevendo: O conceito de evolução é o principal conceito do historiador real, e sem ele não há História. O dever do futuro será o de elaborar este conceito de evolução e mostrar, concretamente, como a literatura como arte se desenvolveu: primeiramente, em uma nação, e depois no concerto das nações, através do mundo inteiro. Só então poderá ser escrita, com uma razoável possibilidade de êxito, uma verdadeira história da literatura, que será mais do que uma compilação de fatos sobre influências e migrações de motivos (Wellek, 1975, p. 294-295).

Ainda que as orientações dos autores se distanciem (Barbosa, tratando da instauração do cânone na historiografia literária brasileira, nos chama atenção sobre a necessidade de uma metalinguagem que se volte para o discurso histórico, enquanto Wellek, acenando para uma possível teoria da história literária, aponta para o polêmico, e, para nós, aparentemente distante, conceito de evolução), ainda assim ambos promovem um balancete acerca da situação dos estudos atrelados à historiografia literária. E mais: ao realizar tal promoção, cada um em sua época, e com seu devido


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interesse, alerta para o quadro a ser superado. Se para o ensaísta brasileiro faz-se necessário superar uma definição de história e, consequentemente, de crítica, atrelada a um corte naturalista, que não problematiza sua própria configuração, com Wellek, voltamos ao próprio problema da configuração das histórias literárias no século XX, e a discussão em torno da própria viabilidade de se fazer ou em se fazer uma história literária propriamente dita. E é neste sentido que o texto do autor de Teoria da história literária mostra-se instigante. Escrevendo num contexto de acirrada discussão em torno dos problemas da escrita da história literária, num momento que questionava as orientações anteriormente estabelecidas àquelas que, por exemplo, transparecem nos historiadores brasileiros oitocentistas, Wellek propunha uma nova história da literatura, com uma abordagem menos propensa aos métodos extrínsecos e mais voltada para a própria obra literária.5 Inicialmente indagando sobre a existência de uma história literária, diferente da crítica literária ou da história social, e admitindo que geralmente a resposta fosse afirmativa, acabava por apontar que a única vinculação das ditas histórias da literatura à história é tão somente pelo fato de tratarem do passado, pois: não são nada mais que do que histórias sociais ou história das idéias [...] refletidas em uma certa literatura nacional, ou são simplesmente uma série de julgamentos e de impressões sobre trabalhos individuais de arte, ou sobre a psicologia dos escritores, organizados numa ordem mais ou menos cronológica (Wellek, 1975, p. 294-295).

Sem, contudo, negar ou negligenciar a importância da relação da obra com seu contexto social, o que seria, em sua opinião, um absurdo, Wellek chamava atenção para o emprego de uma concepção semiológica de obra de arte: um sistema global dinâmico de signos ou como uma estrutura de signos servindo a uma finalidade estética definida (Wellek, 1975, p. 282). Procurando responder ao problema

Sobre o termo, ver o próprio Wellek, s/d. Edição original norte-americana de 1963.

5


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do modo de existência da obra de arte em geral, e literária em particular, o autor desviava-se, assim, das abordagens que promoviam o estabelecimento da dependência causal, que entendem a obra como mero reflexo do meio social e histórico, bem como das leituras de caráter psicologizantes e/ou subjetivistas. Em seu lugar, Wellek, conclamando o chamado perspectivismo, propunha um processo que permite atingir o conhecimento do objeto, segundo diferentes pontos de vista: Ver as coisas em perspectiva, ou vê-las historicamente é exatamente o mesmo. Ainda que haja documentos para o reagrupamento de uma estrutura, o historiador literário deve ser capaz de situar uma obra de arte tanto em relação aos valores da época em que ela foi criada, como em todas as épocas subseqüentes (Wellek, 1975, p. 289).

Voltando-se para os aspectos da estrutura, signo e valor da obra de arte, que não podem ser separados da/na análise da obra, Wellek, com o perspectivismo, se opunha àquilo que chamava de teses do absolutismo e do relativismo da análise. Para nós, deste rico debate interessa o seguinte aspecto: a partir dessas observações, de maneira geral, podemos refletir sobre a própria constituição da historiografia literária, seus dilemas e suas relações com a escrita da história. Desde o início de suas notas, o autor questiona-se sobre o porquê da inexistência, até aquela data, de uma história que tentasse delinear a evolução da literatura inglesa como arte. A possível resposta, segundo Wellek, decorreria da dificuldade de se pensar em duas concepções: a da função artística e a da evolução da arte. A complicação em se analisar a obra a partir da função estética (ou artística), isolando tal função das demais, acabou, de acordo com o autor, por restringir tal tipo de abordagem. Além disso, por causa da existência de outras funções relacionadas à obra e, talvez, mais acessíveis à análise, e por se entender a existência da forma como único elemento artísti-


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co, priorizou-se, na historiografia literária, o exame das relações externas da obra com o contexto social, bem como com sua relação com a psicologia do autor e com o seu conteúdo comunicativo. Essas são, sabidamente, práticas comuns às historiografias da literatura da segunda metade do século XIX. E aqui volta a importância ao elemento estrutural da análise, acima já referido: um conceito que inclui tanto forma quanto conteúdo e rompe, simultaneamente, com as tradicionais análises dicotômicas. Ainda que possa ser arriscado tal comentário, podemos dizer que, guardadas as devidas diferenças e proporções, é possível vislumbrar na teoria da história literária, de Wellek, uma antecipação daquilo que constituiu, em termos, as grandes linhas do debate historiográfico da história da literatura na segunda metade do século XX. Afinado com o Círculo de Praga, parece prever a inovação da teoria da recepção, levada a cabo em fins dos anos 1960, bem como parece antever um diálogo com Hayden White, ao discutir a relação forma versus conteúdo. Além destes, também parece predizer a recorrência à possibilidade da abordagem sincrônica, exaltada no Brasil por Haroldo de Campos, a partir de uma livre manipulação da obra de Saussure e da leitura de uma poética sincrônica de Jakobson. Ao discutir o problema da significação artística de uma obra de arte, permite que lembremos da atual recorrência ao conceito de representação, difundido pela obra de Roger Chartier.6 Muito possivelmente as vinculações por nós referidas procedam, antes de mais nada, do período vivido por Wellek, período do qual decorreram as próprias definições e problemas para a escrita das histórias da literatura. Expresso em outros termos, parte dessas formulações buscam responder a questões que já se apresentavam à época em que Wellek escreve. Tais formulações, assim como as ponderações do próprio autor em questão, dialogam, aproximando-se ou distanciando-se, em diferentes graus, de problemas postos naquele momento fulcral para a problematização historiográfica em questão. Assim, justifica-se, para nós, a

No que diz respeito a Haroldo de Campos, ver os ensaios “Poética sincrônica” (In: Campos, 1977), e “Texto e história” (In: Campos, 1976). Em relação à obra de White, consultar, principalmente, “O texto histórico como artefato literário” (In: White, 1994).

6


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Além da apresentação no referido Congresso, o texto integra a coletânea Opus 60 (Barbosa, 1980, p. 25-52). 7

Como curiosidade apenas, podemos dizer, portanto, que Barbosa se equivoca ao afirmar que o texto foi escrito por Wellek e Warren. O autor brasileiro se utilizou da edição espanhola da obra de ambos (Editorial Gredos, 1959), que suprimiu o prefácio acima indicado, no qual são referenciados os capítulos pertencentes a cada autor. 8

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própria referência à teoria de Wellek: um texto em discussão com sua época e que se abre para outras configurações que, de diferentes maneiras, nos atingem ainda. Dito isto, cabe recordar que foi uma discussão parecida com a de Wellek, só que realizada bem posteriormente ao fechamento do balanço realizado por João Alexandre Barbosa em 1996, e sua expectativa em relação a uma outra escrita da história literária brasileira que nos remeteu ao texto de 1936. Ainda que o texto de Barbosa não faça menção direta ao texto de Wellek – apesar da reivindicação da necessidade da mudança quanto à elaboração de uma nova história literária, presente em ambos –, podemos nos lembrar de outros dois ensaios, dos mesmos autores, que possibilitam que continuemos refletindo sobre o próprio caráter de configuração geral de uma história literária e, mais especificamente, que permitem que continuemos indagando a respeito das mazelas da escrita da história da literatura brasileira. Assim, se em Biblioteca imaginária, escrita em fins do século XX, Wellek não era citado, o mesmo não ocorre no Ensaio de historiografia brasileira, outro texto de João Alexandre Barbosa, apresentado no II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, em Assis, São Paulo, em 1962.7 Em certo sentido, o diálogo que o ensaísta brasileiro estabelece com Wellek acaba por transparecer um diálogo entre os seus próprios textos, isto é, entre A biblioteca imaginária, de 1996, e o texto apresentado em 1962. Barbosa, em seu Ensaio, parte da leitura de um texto, “A história literária”, de René Wellek, que, de certa forma, retomava a discussão iniciada nos anos 1930. Último capítulo do já anteriormente citado Teoria da literatura, escrito em parceria com Austin Warren e publicado em 1949, “A história literária” é, contudo, de autoria do próprio Wellek, como aparece no prefácio à primeira edição da obra.8 Novamente recorrendo à ideia de evolução, o autor frisava que a história só pode ser escrita em referência a esquemas variáveis de valores, e esses têm de ser abstraídos da própria história (Wellek; Warren, 2003, p. 352).


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Ainda que haja uma diferença de mais de uma década entre A teoria da história literária e “A história literária”, mais uma vez, Wellek, a partir de um balanço, exercitava a crítica às concepções vigentes no campo da historiografia literária. Contudo, agora, em 1949, utiliza um tom aparentemente mais didático. O autor comenta, numa lúcida narração, como designa Barbosa, os principais problemas com os quais se defronta(va) a história literária. Por se tratar de questões que marcam, como já dissemos antes, a constituição da própria disciplina (história da literatura) e por assim afligirem-na continuamente, além de implicarem a elaboração da historiografia da literatura brasileira e, consequentemente, de seus dilemas, vale apontá-las: - o problema das relações entre as obras de arte, suas fontes e influências (que constituiriam, segundo Wellek, o principal elemento dos estudos tradicionais); - o problema da originalidade da obra. De acordo com o autor, estabelecer a posição que uma obra ocupa em uma tradição caracterizaria a tarefa primeira da história literária; - o problema adicional na evolução da história literária: estudo das relações entre obras (séries de obras) de um mesmo autor, para a constituição de uma série evolutiva; - o problema decorrente de outro tipo de série evolutiva: isolar certa característica na obra e acompanhar seu progresso rumo a um tipo ideal; - o problema da definição de gêneros e tipos literários; - o problema da definição de período ou movimento literário; - e, finalmente, o problema adicional mais amplo: aquele que diz respeito à escrita de uma história da literatura nacional como arte, sem pender para os elementos extraliterários ou não literários. De maneira muito clara pode-se perceber que é a partir de uma leitura daquilo que, em seu tempo, era praticado como história da literatura, que Wellek propõe uma outra perspectiva para a abordagem dessa história. Ainda


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que, aqui, sua concepção de história literária nos interesse menos objetivamente, essa sua leitura da historiografia da literatura produzida até aquele momento nos parece, como já dito antes, fundamental. Serve como uma porta de entrada, para refletirmos sobre a própria disciplina. Cabe lembrar, da mesma maneira, que essa visão sobre a escrita da história permite que pensemos a constituição da historiografia da literatura aqui no Brasil e suas relações com a própria historiografia, por exemplo. Apontados por Wellek, problemas como o da escrita da literatura nacional, da definição de períodos ou de movimentos literários aparecem constantemente na elaboração dos programas da historiografia da literatura brasileira, ao menos naquela do século XIX. E mais: parte daquilo que constitui o conhecimento historiográfico da literatura brasileira comumente designada como nacional procede desta mesma historiografia, que produziu verdades que perpassaram gerações e foram sendo naturalizadas ao longo dos anos. Assim, menos do que discutir a própria concepção de história literária em Wellek, o que se revelaria instigante, pois é sabido que o autor influenciou parte da crítica literária a partir dos anos 1950, interessa-nos perceber a instauração dos planos para a escrita das histórias literárias no Brasil, vistos a partir daquelas discussões suscitadas na fase que antecede as chamadas grandes sínteses históricas desta mesma literatura, fase marcada, principalmente, pelos trabalhos de Sílvio Romero e José Veríssimo. Parte daquilo que se revela problema para a história literária pode bem ser detectada nos estudos que se referiram aos planos (ou programas) da história da literatura brasileira, bem como a respeito de seus autores, geralmente lidos como românticos, nacionalistas ou precursores, o que facilmente deixa perceptíveis os encaminhamentos da recepção que lhes foi feita. Se os planos se legitimavam ao estabelecer determinadas leituras do passado literário, acabaram por ser lidos da mesma maneira pelas gerações pos-


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teriores, que também buscavam instituir uma leitura acerca do passado. Assim, a via dupla, ou mais que isso: os planos elaborados, principalmente ao longo do século XIX – do Resumo da história literária do Brasil, de Ferdinand Denis (1826), à Introdução à história da literatura brasileira, de Sílvio Romero (1882) – se voltam para um suposto passado literário brasileiro (do século XVI até parte do XIX), institucionalizando-o e institucionalizando-se. A constituição da crítica literária e das chamadas obras referenciais da historiografia da literatura brasileira, em fins do século XIX, retomam esses planos, seus autores e orientações, produzindo diferentes avaliações sobre esses planos, ao mesmo tempo em que se voltam ao mesmo objeto destes. Portanto, leituras sobre leituras, avaliações sobre avaliações e que acabaram por produzir canonizações possíveis: sobre a própria literatura, sobre a crítica e seus críticos e sobre a própria historiografia literária. Por mais que não nos utilizemos da concepção de Wellek propriamente dita, é inevitável não retomá-lo aqui. Referindo-se ao significado total de uma obra de arte, dizia ele: [tal significado] não pode ser definido meramente em função do seu significado para o autor e aos seus contemporâneos. Trata-se, antes, do resultado de um processo de adição, isto é, a história da crítica pelos seus muitos leitores em muitas épocas (Wellek; Warren, 2003, p. 42).

Entendemos que é possível a mesma observação em relação àqueles textos que se constituem como discursos fundadores que buscaram, num primeiro momento, produzir uma ideia de literatura e de história da literatura no Brasil. Desde o século XIX, ora lidos e relidos, recebem interpretações, viabilizando marcos, ora, simplesmente, são preteridos da memória literária e historiográfica. Assim, tão revelador quanto a própria leitura destes documentos, por vezes transformados em monumentos, outras relegados ao apagamento, é deparar-se com as leituras, histórica e historiograficamente promovidas, que incidiram sobre esses textos.


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De marcos e eras: o Romantismo O acima citado processo de adição ou, poderíamos dizer, de recepção crítica afigura-se aqui como fundamental, uma vez que nos voltamos, justamente, para textos que padeceram desse processo ao serem inscritos numa história da crítica e da historiografia literárias brasileiras, sendo apontados como iniciadores dessas mesmas crítica e historiografia. O mesmo Wellek que entendia que o significado da obra decorre tanto do tempo em que é produzida – em função do seu significado para o autor e aos seus contemporâneos – quanto da adição das demais leituras que posteriormente sobre ela se voltam (e que para nós é crucial, pois é daí que decorrerá uma possível historicização das leituras da própria crítica) aponta para a suposta função do historiador literário: “[...] antes de mais nada, atentar para as idéias e concepções, os programas e nomes dos próprios escritores e, assim, contentarmo-nos em aceitar as suas próprias divisões”. Contudo, continua o autor: O valor do testemunho fornecido por programas, facções e auto-interpretações formuladas conscientemente na história da literatura não deve, naturalmente, ser minimizado, mas, com certeza, o termo movimento poderia muito bem ser reservado para atividades autoconscientes e autocríticas a serem descritas como descreveríamos qualquer outra seqüência histórica de acontecimentos e pronunciamentos. Mas tais programas são apenas materiais para o nosso estudo de um período, exatamente como toda a história da crítica oferecerá um comentário contínuo a qualquer história da literatura. Podem nos dar sugestões e indicações mas não devem prescrever os nossos métodos e divisões, não porque nossas visões sejam necessariamente mais penetrantes que as suas, mas porque temos o benefício de ver o passado à luz do presente (Wellek, 2003, p. 361).

Cabe lembrar que o autor desenvolve essas observações quando reflete acerca dos problemas que tocam a his-


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tória da literatura, referindo-se, neste caso, especificamente, à definição de período e/ou movimento literários, como dito nas páginas anteriores. Tal observação merece atenção. A ênfase final, do benefício de ver o passado à luz do presente, nos garante muito pouco, acreditamos, contribuindo para incorrermos nas mazelas da acronia ou do anacronismo,9 problema que não poucas vezes se revela bem presente nos trabalhos de história da literatura, história que, não poucas vezes também, homogeneíza o passado para ajustá-lo aos olhos do presente (Teixeira, 2003, p. 138). Ainda que aloquemos a fala no seu devido lugar, uma proposta de encaminhamento para a escrita da história literária, faz-se necessário lembrar que a leitura da crítica nem sempre se pauta pelo apreço à objetividade ou à historicidade, muitas vezes recepcionando os programas, facções e autointerpretações a partir de questões que escapam a estes mesmos programas, facções e autointerpretações. Dito isso, e ainda pensando na citação exposta acima, nos interessam justamente esses programas e aquilo que o autor chamou de comentário contínuo da história da crítica sobre esses mesmos documentos, pois entendemos, diferentemente de Wellek, que esses documentos se caracterizam em algo mais que apenas materiais, e que o processo de adição, mais do que nos levar à união de diferentes fatores ou frações em um único resultado, permite que percebamos, sim, a construção de diferentes sentidos, por vezes incongruentes, a respeito da história literária e do próprio passado. Assim, voltamo-nos, aqui, à crítica romântica que atuou no Brasil, nas primeiras décadas do século XIX e que, em certo sentido, estabeleceu os primeiros estudos literários nas terras tropicais. Longe de qualquer pretensão de objetividade, que se revelaria improvável, ou afastados de qualquer expectativa que supusesse possível a obtenção de uma apresentação imparcialíssima do suposto tema-objeto de interesse, ainda assim, estruturemos um

O problema do anacronismo é comentado tanto em Apologia da história, de Marc Bloch, de 1949, quanto em Le problème de l’incroyance au XIV.e. siécle, de Febvre, de 1942 (Cf. Febvre, 2009 e Bloch, 2001). Paul Veyne lembra que o exercício historiográfico desempenha, ou deve desempenhar, um papel de “luta incessante contra nossa tendência ao contra-senso anacrônico” (Veyne, 1998, p. 112).

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A expressão “quadro” aparece, com frequência, na estética romântica, referindo-se a texto (v. Rouanet, 1999, p. 21 e SS). 10

Em relação a estes “programas” e “histórias”, destacamos: DENIS, Ferdinand. Resumo da história literária do Brasil (1826); MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de. Ensaio sobre a história da literatura do Brasil (1836); RIBEIRO, Santiago Nunes. Da nacionalidade da literatura brasileira (1843); VARNHAGEN, Francisco A. de. Ensaio histórico sobre as letras no Brasil (1850); SILVA, Joaquim Norberto de Sousa. História da literatura brasileira (1843-1862); Pinheiro, Joaquim Caetano Fernandes. Curso de literatura nacional (1863) e Resumo de história literária (1873). 11

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quadro histórico acerca do objeto em questão.10 Interessados na constituição dos estudos acima referidos, e mais especificamente na elaboração das primeiras histórias da literatura, ou nos programas que as anunciavam,11 nos voltamos, inevitavelmente, para o contexto da primeira metade do século XIX, comumente designado como era romântica (Coutinho, 1997), período que, como lembra Abel Barros Baptista, se notabiliza na literatura brasileira – e na sua historiografia consequentemente – como “um momento verdadeiramente fundador, não porque só então ela comece, mas porque aí se coloca o problema do seu começo” (Baptista, 2003, p. 24). Para movimentarmo-nos nesse quadro, ou melhor, para ambientá-lo, recorremos às próprias histórias da literatura brasileira, buscando, portanto, e desde já, dialogar com nosso problema, qual seja, estas mesmas histórias da literatura. Os programas e histórias que apontamos abaixo, em nota, foram e continuam sendo objeto privilegiado de estudo no campo da história intelectual no Brasil. E disso decorre que foram estudados a partir de diferentes tradições, o que implica dizer que a chamada Era Romântica foi, como bom objeto da história, interpretada de maneiras diversas, de acordo com diferentes épocas e pretensões. Dessa maneira, não se pode ignorar que as leituras sobre o tema-objeto decorrem, muitas vezes, de interpretações estabelecidas, diríamos, quase (quase?) canônicas. Assim se desenha um objeto: a construção das histórias da literatura no Brasil, ao longo do século XIX, bem como a constituição, entre este mesmo século XIX e o XX, de uma suposta fortuna crítica sobre essa historiografia. A partir delas se pode vislumbrar, por exemplo, o encaminhamento dado pela crítica de fins do século XIX ao passado que o antecede, ou a apropriação realizada pela própria historiografia literária do período acerca da produção anterior e que vai, por sua vez, orientar a elaboração de um cânone da crítica e historiografia literárias brasileiras oitocentistas.


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Nesse movimento, de diferentes estratégias de leitura (Cunha, 2006, p. 22), pode-se notar também, e principalmente, os usos do passado pela crítica de fins do século XIX, e aparentemente, até mesmo pela crítica posterior buscando validar seu próprio lugar e discurso: movimento incessante, portanto, gerador de leituras convenientes (Rouanet, 1991, p. 168) e por elas gerado, que acenam a uma comunidade de leitores, específica, da qual se originaram, constituída pelos historiadores/críticos da literatura brasileira, o que possibilita a aproximação junto àquelas estratégias de leitura que apontamos acima. Tal comunidade, cujos membros compartilham os mesmos estilos de leitura e as mesmas estratégias de interpretação (Chartier, 1992, p. 216), também designada como comunidade interpretativa, é responsável (ou assim se outorga) pelo estabelecimento de leituras autorizadas dos textos de que se apropria. Leituras que implicam a imposição de um sentido único ou de um único significado, bem como a instauração de uma compreensão/interpretação corretas.12 Ainda que menos preocupados com as práticas de leitura, que implicam necessariamente o reconhecimento da materialidade ou suporte do texto lido, bem como da tensão central de toda a história da leitura (Chartier, 1992, p. 213), que opõe, de um lado, a prática criativa do leitor e, de outro, o refreamento desta, pela imposição da leitura pretensamente correta, entendemos, com Chartier, que o historiador deve buscar um meio de determinar os paradigmas de leitura predominantes em uma comunidade de leitores, num dado período e lugar. Com isso, querse acreditar, aproximam-nos das chamadas estratégias de leitura, apontadas acima, reveladoras das formas de apropriação e manipulação dos próprios textos (Chartier, 1992, p. 226-227). Interessam-nos, assim, nestes autores, portanto, suas próprias concepções de história/historiografia, pois é delas que decorreram, obviamente, a(s) leitura(s) que fizeram do passado literário brasileiro. A ênfase na nascente críti-

A expressão comunidade interpretativa, usada por Chartier, é de Stanley Fish.

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ca literária/historiografia da literatura, ou histórias(s) da literatura, no século XIX, justifica-se, uma vez que, a partir delas, temos o estabelecimento de um cânone literário e historiográfico, que legitima e autoriza leituras sobre as obras escolhidas, ou melhor, canonizadas. Neste sentido, cabe lembrar, como aponta Marisa Lajolo, que os organizadores das primeiras histórias das literaturas ocidentais faziam parte de instituições às quais cabia um projeto de constante redefinição dos protocolos vigentes entre vida cultural (particularmente vida literária) e sentido de nacionalidade. (Lajolo, 1995, p. 23) Talvez possamos, a partir dessa observação, estabelecer um primeiro elemento apontado como comum às histórias da literatura brasileira e que, em certo sentido, acaba criando vínculos entre os seus autores: todos parecem partilhar, ainda que fundamentados em diferentes concepções de história, crítica e literatura (e, portanto, respaldados em uma suposta autoridade intelectual), do desejo de, a partir do estabelecimento de uma história da literatura brasileira, projetar o próprio sentido ou o sentido da própria nacionalidade brasileira. Acabam, assim, esses críticos/historiadores, definindo e fixando uma seleção em termos de obras e autores, promovendo, como dizíamos antes, a própria canonização dessas mesmas obras e autores. Cabe, portanto, e assim entendemos, problematizar a constituição desse(s) cânone(s) literário(s), historiando ou historicizando essa mesma constituição. Conforme comenta Roberto Reis, o critério para se questionar um texto literário ou, podemos dizer, qualquer texto, não somente o de caráter literário, não se pode descurar do fato de que, numa dada circunstância histórica, indivíduos dotados de poder atribuíram o estatuto de literário àquele texto (e não a outros), canonizando-o: perguntar quem articulou o cânon, de que posição social falava, que interesses representava, qual seria seu públicoalvo e qual a sua agenda política [...], por quais critérios norteou a sua eleição e rejeição de obras e autores. A noção


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de valor e a atribuição de sentido não são empresas separáveis do contexto cultural e político em que se produzem, não podendo por conseguinte, ser desconectadas de um quadro histórico. O significado de qualquer juízo de valor sempre depende, entre outras coisas, do contexto em que for emitido e de sua relação com os potenciais destinatários e a sua capacidade de afetá-los ou mesmo convencêlos (Reis, 1992, p. 65-92).

Mesmo que nos interesse menos a própria natureza ou o estatuto de literário do texto, interessam-nos, sim, os circunstanciamentos históricos e, principalmente, as leituras (geradas por estes, ou nestes, circunstanciamentos históricos) realizadas sobre determinados textos e que produziram diferentes sistematizações sobre esses escritos. Por isso, nesse sentido, antes de questionarmos a própria produção literária, interessa-nos, primeiramente, problematizarmos a própria leitura que canoniza essa produção, ou seja, a leitura realizada pela crítica oitocentista, uma vez que (pode-se dizer): [...] o crítico foi o grande beneficiário quando [...] se separou a obra do autor para concentrar o objeto de análise literária no próprio texto. É o crítico que passa a exercer a autoridade sobre o sentido, a estrutura. As relações internas do artefato literário e, através do exercício profissional, a disseminar as interpretações que lhe convêm [...]. Sem o autor para reivindicar a sua interpretação e a integridade semântica de sua obra, o crítico está liberado para direcionar a exegese de acordo corn suas premissas e propósitos, sejam eles conscientes ou não (Reis, 1992, p. 75).

Voltando-nos a uma possível sociologia das práticas de leitura, como propõe Roger Chartier, cabe, portanto, superar o caráter todo poderoso do texto e seu poder de condicionamento sobre o leitor, bem como relativizar a própria noção de liberdade do leitor, pretendendo, sim, identificar, para cada época e para cada meio, no nosso caso, a crítica/ historiografia brasileira oitocentista, as modalida-


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A citação se refere ao mesmo texto, utilizado anteriormente, Textos, impressos, leituras. Aqui na sua versão portuguesa, oriunda de CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. p. 121. Na versão brasileira, antes adotada, tal trecho foi suprimido. Originariamente, este artigo do prof. Chartier foi apresentado no Colóquio “Conceitos, métodos e objecto em história da cultura”, realizado em 1986, na Universidade do Porto. 13

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des partilhadas do ler (as quais dão formas e sentidos aos gestos individuais) e que colocam no centro de sua interrogação os processos pelos quais, perante um texto, é historicamente produzido um sentido e diferenciadamente construída uma significação.13 Nesse mesmo sentido, recorremos novamente a Roberto Reis, que parece corroborar a observação de Chartier: A indagação da literatura não deve, em suma, se resumir a pensar o que lemos, interpretando o livro [...] que temos diante de nós: é imperioso considerar quem lê e quem escreveu e em que circuntâncias históricas e sociais se deu o ato de leitura, sem deixar de ter em conta que tipos de textos são escritos e lidos e, neste último caso, por que leitores. Sob este prisma, o texto [...] deixa de ser um objeto estático (e estético) e passa a se entrançar com o autor, o leitor, com o horizonte histórico que lhe é subjacente ou que lhe deixou pegadas, com outros textos, com o passado e o presente e o futuro, estabelecendo uma emaranhada rede de afiliações intertextuais (Reis, 1992, p. 74).

Por outro lado, a sistematização promovida por críticos e historiógrafos advém de uma determinada leitura, e estes críticos e historiógrafos congregam-se, justamente, ern termos de comunidades interpretativas. Em outras palavras, e no caso específico daquilo que pretendemos estudar, seriam essas comunidades interpretativas, ou comunidades de leitores, que efetivam determinados juízos de valor acerca de obras e autores lidos. Em resumo, a comunidade de leitores, organizada em torno de críticos e historiógrafos/historiadores, ao mesmo tempo em que promove aquilo que Chartier chama de “os mesmos estilos de leitura e as mesmas estratégias de interpretação”, promove, insistimos, a leitura autorizada, ou forçada, sobre os textos aos quais se volta, estabelecendo determinadas propostas de sentido e significação para esses mesmos textos. Assim, é interessante que se perceba, as diferentes histórias da literatura brasileira, resultando de estratégias próprias de interpretação, embasando-se na au-


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toridade concedida principalmente pelo emprego de diferentes preceitos (e que caracterizam o Ocidente oitocentista) e respaldando-se num locus institucional, acabam por legitimar, ou não, o próprio texto lido, conferindo-lhe, ou não, um lugar nessas mesmas histórias. Podemos, nesse sentido, arriscadamente propor que, nessa relação, o texto que nos interessa sondar, aquele produzido pela crítica literária e/ou a historiografia da literatura oitocentista ao recepcionar a produção anterior e sistematizá-la, produzindo leituras autorizadas, acaba por se tornar um dispositivo de intervenção sobre essa mesma produção e, portanto, suporte para o próprio texto. Ainda que tenhamos clara a necessidade de reconhecer os elementos que compõem o texto apropriado ou reconhecer os elementos que dão coerência a este texto, cabenos lembrar que a crítica/historiografia, tornada dispositivo de intervenção (sendo, assim, também leitura), acaba por produzir expectativas de leitura e perspectivas de entendimento, ou antecipações de compreensão sobre o texto ao qual se volta (Chartier, 1990, p. 132).14 Dessa maneira, a produção crítica/historiográfica da literatura brasileira do oitocentos é uma possibilidade de leitura sobre a produção que a antecede, que estabelece o cânone e a tradição sobre essa mesma produção – ou, em outras palavras, o cânone tornado “garantia a uma tradição” (Curtius, 1996, p. 323) –, cabendo, assim, tratá-la na perspectiva de uma nova e possível história da leitura, uma história que, principalmente, rompa com os simplismos, dicotomias e explicações deterministas. Pois, enfim, a história dos textos e livros e, diríamos, das interpretações e dos processos de canonização de autores e obras, deve ser, acima de tudo, uma reconstituição das variações nas práticas, em outras palavras, uma história da leitura. Uma história do próprio ato de ler.

Na edição brasileira, v. p. 228.

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Entre o cânone e a história: notas sobre historiografia...

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Considerações sobre a teoria e o método histórico-literário Marcos Rogério Cordeiro*

RESUMO : Este artigo busca reconhecer alguns pontos de tangência entre literatura e história, fazendo uma análise comparativa de teorias e metodologias. Com esse intuito foram pesquisadas as obras de Lucien Febvre, Raymond Williams, Carlo Ginzburg, Hayden White, Georg Lukács, Walter Benjamin, Theodor Adorno e Erich Auerbach. PALAVRAS-CHAVE:

literatura, história, historiografia.

ABSTRACT: This article aims to identify some tangential aspects between literature and history, making a comparative analysis of different theories and methodologies. The research involved the works by Lucien Febvre, Raymond Williams, Carlo Ginzburg, Hayden White, Georg Lukács, Walter Benjamin, Theodor Adorno and Erich Auerbach. KEYWORDS:

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). *

literature, history, historiography.

Somando as conquistas das diversas escolas e correntes da literatura comparada, observamos que os estudos a respeito das relações entre literatura e história puderam superar alguns entraves teóricos e metodológicos como, por exemplo, as lições historicistas que ensinavam o cotejamento texto-contexto sem mediação, isto é, sem considerar as nuances e complexidades que cada uma dessas áreas apresentava e, ainda, as que nasciam a partir do ato mesmo de as relacionar. Hans Robert Jauss aponta para problemas dessa natureza em seu ensaio sobre a renovação metodológica empreendida pela teoria da recepção, na medida em que esta incorporava o horizonte histórico como fatura interior da compreensão da obra (Jauss, 1994). Mas os caminhos tomados pelos teóricos da literatura comparada não se resumiam a esse ponto; eles foram muitos e variados, obede-


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cendo, por sua vez, às diversas demandas que a teoria e a análise exigiam: superação do formalismo excessivo, introduzindo problemas de ordem extrínseca aos de ordem intrínseca à literatura; adoção de uma perspectiva política e cultural pluralista contra o etnocentrismo dos grandes centros de influência; redefinição dos padrões de arte e cultura; ruptura com as amarras da periodização do processo de produção e recepção de obras literárias etc. Podemos afirmar, portanto, que os estudiosos, filiados ou não a alguma corrente ou escola da literatura comparada, procuraram aprofundar a análise de obras literárias, tornando mais complexas as relações entre literatura e história social. Para tanto, houve uma preocupação cada vez maior com os problemas teóricos e metodológicos que tal análise exigia, uma preocupação que levou à ampliação do campo conceitual e à diversificação do objeto de interesse, dedicando-se a outras áreas de conhecimento, como a história, a sociologia, a antropologia e a filosofia, por exemplo. Meu interesse neste artigo está voltado para a discussão do problema teórico-metodológico de análise históricoliterária, ou seja, para uma reflexão sobre os pressupostos teórico-metodológicos que dão lastro aos estudos comparatistas, embora evite o uso excessivo de terminologias, conceitos e teorias que norteiam a prática de análise da literatura comparada. Procurei evitar partir diretamente dos trabalhos de teóricos e críticos reconhecidamente vinculados à literatura comparada, como Manfred Schmeling (1984), Fritz Strich (1946), René Wellek (1976 e 1994), Gerard Kaiser (1989), P. Brunel (1995), Eduardo Coutinho (2003), Tânia Franco Carvalhal (2003) e Sandra Nitrini (2000), por exemplo, que desenvolveram muito bem – cada um ao seu modo e seguindo um interesse particular – os problemas que aqui aponto. Embora não os cite diretamente, nem exponha aqui em detalhes seus argumentos e suas proposições, procurei levar em consideração as conquistas de todos eles, tomando-as como inspiração e fundamentação dos argumentos que pretendo apresentar, mas alteran-


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do aqui o foco de interesse: em vez de partir de questões teóricas nascidas no âmbito da teoria literária em geral ou da literatura comparada em particular para alcançar sua relação com a história e a historiografia, serão considerados os problemas teóricos nascidos no campo da história, da historiografia e, ainda, da filosofia para discutir o modo como a literatura é absorvida por essas áreas, tornando-se para elas matéria de reflexão. Acredito que esse procedimento poderá servir para ampliar e diversificar de alguma maneira o campo de forças estabelecido pela literatura comparada, na medida em que esta adota métodos de abordagem crítica que reconhecem e exploram as relações entre literatura e história. A seguir será desenvolvida uma reflexão sobre a contribuição de historiadores e historiógrafos que promoveram uma renovação em suas áreas de atuação na medida em que incorporam um novo objeto (a obra de arte literária) ao seu campo de interesse. Depois serão consideradas as contribuições de autores de formação filosófica que procuraram refinar a teoria interdisciplinar partindo de uma discussão teórica avançada, muito preocupada em especificar o modo como a obra literária internaliza questões históricas e sociais e as torna matéria estética. Por fim, seguirá uma breve conclusão na qual será discutido o saldo da contribuição da historiografia e da filosofia para o processo de acumulação teórica e metodológica da literatura comparada como área – paradoxalmente – específica e multidisciplinar.

Realinhamento teórico-metodológico O interesse por estudos relacionados com a literatura foi crescendo e se diversificando aos poucos entre os historiadores. Embora possamos encontrar apenas exemplos dispersos através da história da historiografia (Giambattista Vico e Wilhelm Dilthey, por exemplo), essa tendência se tornou constante e foi se consolidando a partir da década


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de 1930 com a contribuição da escola dos Annales (Dosse, 1994, 2001). Seus membros procuraram se antepor à tendência dominante nos estudos históricos de inspiração metódica e base positivista, que visavam a uma análise segura, excessivamente objetiva, apegada a conceitos pouco flexíveis, manipulados com o fim de garantir a cientificidade da disciplina. Contra isso, a escola dos Annales procurou construir uma concepção e uma prática de pesquisa distinta. Vou destacar um desses aspectos e suas consequências: os historiadores dos Annales procuraram aproximar e imiscuir os estudos históricos aos de outras áreas do conhecimento, como a geografia, a sociologia, a psicologia, a arte e a literatura. Com isso, eles passaram a manipular conceitos e métodos de pesquisa diversificados, ampliando assim o modo de compreender a história; exploraram o sentido histórico depositado na cultura material (vestuário, mobiliário e alimentação, assim como linguagem, imaginário e crenças), constituindo um campo novo chamado genericamente de “mentalidades”; por fim, começaram a desconstruir a cientificidade do dispositivo factual e deram início a um trabalho que parte do princípio de que a compreensão dos fatos depende mais da interpretação sobre eles do que deles mesmos. Todos esses aspectos estão mutuamente implicados: a multiplicação de objetos equivale à multiplicação de métodos e ambos correspondem à flexibilidade da epistemologia histórica. Somando tudo, os historiadores dos Annales desenvolveram a hipótese de que a história é uma forma de representação. O interesse pela literatura e sua relação com a história advêm diretamente desse tour de force teórico e metodológico: se os estudos históricos não mais dependem de documentos stricto sensu, se não mais dependem da análise de fatos e se a representação passa a ser vista como algo historicamente construído e compreensível, então a arte e a literatura podem ser alçadas a objetos privilegiados de interpretação histórica, e as teorias que delas se


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ocupam podem ser tomadas como princípios epistemológicos para os estudos históricos. Dentro dessa visão, a literatura é apropriada como um recurso novo e original de análise, que aparece amplo e aberto como modo de representação de uma prática social formada historicamente. A concepção teórica que orienta esse tipo de investigação é muito bem apresentada por Lucien Febvre: Uma história histórica da literatura, quer dizer ou deveria querer dizer história de uma literatura, em dada época, em suas relações com a vida social dessa época. Para escrevê-la seria preciso reconstituir o meio, perguntar-se quem escrevia e para quem; quem lia e para quê (Febvre, 1989, p. 274).

Febvre queria fazer no âmbito da literatura aquilo que fizera no âmbito das mentalidades (como mostram seus estudos sobre Lutero e Rabelais, por exemplo): analisar uma rede de significações simbólicas historicamente constituída por meio de um “objeto” particular, salvando-a de distorções anacrônicas e de apropriações subjetivas. Na verdade, como mostrou François Dosse, essa novidade já havia sido apresentada por Gerard Lanson, de quem, aparentemente, Febvre apanhou a ideia (Dosse, 2001, p. 88). Mas não há como negar que foi a partir de Febvre e da escola dos Annales que ela adquiriu consistência e foi introduzida definitivamente nos planos dos estudos históricos. Se pensarmos nas possibilidades teóricas que essa concepção abriu aos estudos históricos, veremos que ela se mostra muito esclarecida e se justifica por sua anteposição às correntes metódicas e positivistas que se queria combater. Mas é preciso atentar para o fato de que a literatura é incorporada ao campo da análise histórica menos pelo significado social implícito de uma obra e mais pelo modo como ela se insere numa teia intrincada de sociabilidade. Portanto, para efeito de um entendimento da obra literária propriamente dita ou de sua inter-relação com a história, essa perspectiva teórica mostrou certa limitação. A crítica


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direta vem de Gerard Genette, um crítico literário que reage a esse tipo de instrumentalização, advogando em favor de “uma história da literatura tomada em si mesma (e não em suas circunstâncias exteriores) e por si mesma (e não como documento histórico)” (Genette, 1974, p. 21). Os teóricos da literatura comparada reconheceram aqui um impasse que procuram superar, evitando as proposições de Lucien Febvre, que não concebe a autonomia da obra literária, e as de Gerard Genette, que, destacando o valor dessa autonomia, não reconhece tais relações (Kaiser, 1989, p. 71-137; Coutinho, 2003, p. 69-79; Carvalhal, 2003, p. 13-34; Nitrini, 2000, p. 117-156). Outra contribuição importante foi dada pelos historiadores ingleses reunidos em torno da New Left Review em meados da década de 1940, que acabaram lançando as bases para o que ficou conhecido como “estudos culturais”. Assim como no caso dos Annales, o objetivo era promover uma renovação nos estudos históricos contra uma visão positivista, mas, neste caso, também contra uma tendência marxista dominante, de inspiração soviética e orientada pelas determinações ideológicas das III e IV Internacionais. Mas aqui reside um paradoxo, porque, ao mesmo tempo, os membros da New Left – como o próprio nome indica – tinham forte orientação ideológica e política de esquerda. Assim, os historiadores pertencentes a essa corrente se empenharam em superar o marxismo no sentido de refiná-lo, não de negá-lo como um todo, e isso contribuiu para um debate teórico mais ideologizado do que aquele que existiu entre os historiadores dos Annales. Tal como seus colegas franceses, os historiadores da New Left buscaram construir um corpus teórico e metodológico com envergadura multidisciplinar para melhor reconhecer uma rede de significações no corpus cultural e simbólico e analisar como ela surge, se estabelece, se desenvolve e se transforma historicamente. Os livros de Edward Thompson sobre costumes e leis e sobre a formação ideológica, política e cultural de classes sociais, de Chistopher Hill sobre


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semelhanças e diferenças de ideologias política e religiosa, sobre a atividade intelectual boêmia e as bases da revolução na Inglaterra, ou de Eric Hobsbawn sobre as práticas de vida, a economia, a política, a ideologia etc., num processo de transformações contínuas e desiguais, são provas do empenho dos historiadores vinculados à New Left. Mas os estudos mais consistentes no âmbito aqui analisado são da lavra de Raymond Williams, pois foi ele quem mais se dedicou em construir um quadro teórico e metodológico próprio para pensar a relação entre o processo histórico e as manifestações artísticas e culturais. Para levar adiante seus propósitos, ele procurou aliar duas tendências teóricas opostas, corrigindo os excessos de uma por meio da outra e vice-versa: de um lado, inspirou-se no close reading, técnica de análise literária desenvolvida por I. A. Richards e Frank R. Leavis que se orientava por uma interpretação cerrada do texto e pela abstração do processo histórico-social; de outro lado, foi influenciado pelo marxismo, que insistia na relação entre os dados históricos e os artísticos e culturais, partindo de uma visão mais arejada que vinha do chamado “marxismo ocidental”. Essa dívida é reconhecida pelo próprio Williams: Quando cheguei a Cambridge, duas influências marcantes causaram uma impressão profunda em minha maneira de pensar. A primeira foi o marxismo e a segunda os ensinamentos de Leavis. Mesmo depois, quando começaram a aparecer minhas divergências com essas posições, nunca deixei de respeitá-las (Williams, 1968, p. 13).

A produção teórica e crítica de Raymond Williams é uma tentativa de compreensão da cultura a partir da história e da história a partir da cultura, sem, no entanto, sucumbir às armadilhas da teoria do reflexo. Para isso desenvolve dois conceitos que ajudarão a consolidar sua teoria: “materialismo cultural” e “estrutura de sentimentos”. O primeiro conceito vem de uma acepção livre e invertida do marxismo dogmático: no lugar de pensar a rela-


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ção entre infraestrutura (meios e relações de produção) e superestrutura (ideias, arte, cultura) de maneira que esta se mostrasse um resultado direto daquela, estabelecendo assim uma hierarquia de valores e uma pressuposição da função, Williams defende a ideia de que o nervo da explicação desse esquema se encontra na noção de produção e infere que cultura não é mera reprodução dos meios e das relações de produção, mas é – ela mesma – produtora de valores que intermedeiam as relações estabelecidas na infraestrutura. Se “produção” em uma sociedade capitalista é a produção de mercadorias, então termos diferentes e capciosos acabam sendo usados para qualquer outro tipo de produção ou de força produtiva. [...] [as superestruturas] nunca são atividades superestruturais. São as produções materiais necessárias que possibilitam a continuação de um modo de produção auto-sustentado apenas na aparência (Williams, 1979, p. 94).

Williams trabalha livremente com as categorias marxianas, diversificando sua aplicação, mas conservando o seu sentido. O “materialismo cultural” se mostra um meio de pensar as relações entre história e literatura como forças produtoras por si mesmas e não como se a primeira produzisse a segunda, ou como se esta não tivesse nenhuma autonomia diante daquela. O segundo conceito desenvolvido por Raymond Williams – “estrutura de sentimentos” – se mostra mais adequado para a análise literária propriamente dita, o que, como o historiador mesmo admite, se mostra uma tarefa mais complexa e mais difícil de realizar. A parte mais interessante e mais difícil de uma análise cultural é a procura por compreender os processos ativos e formativos, mas transformacionais. As obras de arte, por seu caráter substancial e generalizado, são especialmente importantes como fontes dessas evidências complexas. (Williams, 1979, p. 161)


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A partir dessa constatação, Williams empreende uma análise que busca realçar os perfis de personagens de obras literárias e teatrais para empreender uma análise das relações históricas. Ou seja, o objetivo é compreender como as relações sociais historicamente constituídas são configuradas nas obras. Quando as obras estavam sendo feitas, seus autores muitas vezes pareciam estar sozinhos, isolados. No entanto, muitas vezes, quando essa estrutura de sentimento tiver sido absorvida, são as conexões, as correspondências, e as semelhanças de época que mais saltam à vista. O que era uma estrutura vivida é agora uma estrutura registrada, que pode ser examinada, identificada e generalizada (Williams, 1964, p. 18).

O objetivo de Williams é bastante interessante, mas é preciso atentar para aquilo que pode se tornar uma limitação intrínseca de sua teoria: existe o perigo de tornar o método um esquema lógico, o que levaria a conceber os elementos internos da obra artística a partir de prefigurações extra-artísticas. Assim, em sua análise, os personagens surgem como tipos sociais e não como construções estéticas. A escola italiana, que desenvolveu uma teoria conhecida como “micro-história”, também acrescentou conquistas importantes para o debate teórico aqui analisado. Dois aspectos devem ser destacados: a inclinação para o estudo de casos menores e o uso de um estilo de escrita semelhante à narrativa ficcional. A primeira característica nos remete às conquistas da escola dos Annales: adesão à recusa antimetódica e antipositivista de construir uma historiografia guiada pela noção de cientificidade e veracidade, e esforço de pensar historicamente – mediante metodologia interdisciplinar – as representações simbólicas, o cotidiano, o imaginário, a arte e as relações que conservam com a cultura, a sociedade, a política e a economia. Mas, como adverte Ronaldo Vainfas, não se deve entender a micro-história como um


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prolongamento da concepção de história das mentalidades, mas como uma herdeira que questiona alguns aspectos dessa herança (Vainfas, 2002, p. 13-51). Carlo Ginzburg, um dos mais destacados historiadores dessa corrente, chama atenção para isso quando questiona o fato de Lucien Febvre conferir importância demasiada às ideias, aos costumes e às práticas sociais cotidianas de personagens proeminentes da história, mas se mostrar insensível aos problemas dos anônimos. Um dos maiores historiadores deste século, Lucien Febvre, caiu numa armadilha. Num livro inexato mas fascinante, tentou, através da investigação sobre um indivíduo – ainda que excepcional, como Rabelais – identificar as coordenadas mentais de toda uma era. [...] Os camponeses, isto é, a grande maioria da população daquela época, são vislumbrados no livro de Febvre só para serem apressadamente liquidados como “massa semi-selvagem, vítima das superstições” (Ginzburg, 2002, p. 29).

Os historiadores italianos se voltam justamente para a biografia desses anônimos: em O queijo e os vermes, por exemplo, Ginzburg estuda a vida de um moleiro italiano do século XVI acusado de heresia e, a partir daí, reconstrói todo o seu cotidiano inserido no ambiente ideológico e político da contrarreforma. Essa proposição metodológica revela o vínculo paradoxal com a escola dos Annales: enquanto esta aproxima, a ponto de assemelhar e nivelar, a forma mental de membros da elite e do populacho,1 a micro-história defende as particularidades de cada segmento, reconhecendo que uma formação social se mostra bastante complexa em um recorte sincrônico. Voltando ao principal, o caráter miúdo dos estudos biográficos e a forma de enunciá-lo levam à percepção da homologia entre o discurso histórico e o ficcional. Livre dos entraves documentais, a literatura comporta uma infinidade de modelos e esquemas biográficos que influenciaram amplamente os historiadores. Essa influência, em

Jacques Le Goff afirma que “a mentalidade de um grande homem é comum a outros homens de seu tempo [...] César e o último soldado de suas legiões, São Luís e o camponês de seus domínios, Cristóvão Colombo e os marinheiros de suas caravelas” (Le Goff, 1976, p. 71)

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geral mais indireta do que direta, suscitou problemas, questões, esquemas psicológicos e comportamentais que puseram o historiador diante de obstáculos documentais muitas vezes intransponíveis: a propósito, por exemplo, dos atos e dos pensamentos da vida cotidiana, das dúvidas e das incertezas, do caráter fragmentário e dinâmico da identidade e dos momentos contraditórios de sua constituição (Levi, 2002, p. 168).

Antes de mais nada, nota-se aqui o mesmo tipo de impasse com o qual Raymond Williams se deparou, denunciando as dificuldades do historiador em conciliar seus objetivos com um tipo de análise menos instrumentalista da obra literária. A proposição da escola italiana, resumida nas palavras de Giovanni Levi, apresenta o recurso biográfico como um procedimento similar ao recurso narrativo e o personagem histórico passa a ser encarado como personagem literário. Os procedimentos discursivos de O queijo e os vermes, por exemplo, revelam claramente a base dessa teoria historiográfica: todo o desenvolvimento do livro repousa sobre uma estrutura semelhante à do romance, na qual podemos identificar uma composição que delimita a ação dos personagens e os relaciona no tempo e no espaço. Deste modo, os personagens históricos são construídos meticulosamente e a trajetória de suas vidas é apresentada segundo certas regras de narração que integram os fatos da vida de um indivíduo (suas ideias e seus sentimentos) aos da sociedade. No final, Mennochio, o herege do livro de Ginzburg, aparece como um personagem de papel, assim como toda a sociedade em que viveu. Podemos dizer que a micro-história se encontra no meio do caminho entre a escola dos Annales – com sua inclinação para o universo das práticas cotidianas e suas simbologias complexas – e a tendência historiográfica, que tende a aproximar a história e a literatura por meio das afinidades discursivas. Não existe propriamente uma escola que trate disso, mas uma série de autores – a maioria deles historiadores – que refletiram sobre o tema. Entre eles, podemos


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destacar alguns nomes: Paul Veyne, que atribuiu à escrita historiográfica a necessidade de integrar os fatos por meio de recursos narrativos semelhantes à intriga romanesca (Veyne, 1987, p. 43-59 e 107-137), e neste ponto se aproxima das conquistas dos historiadores italianos, parecendo justificá-las; Michel de Certeau, para quem a história não deve ser pensada como referência puramente objetiva, mas como uma construção discursiva, ou seja, uma realidade construída mediante a linguagem (Certeau, 2006, p. 45-46 e 107-137); Paul Ricoeur, que procurou superar a dicotomia entre história e linguagem, defendendo a ideia de que qualquer modo de compreensão da primeira se realiza por intermédio da segunda, isto é, qualquer relato histórico, por mais analítico ou estrutural que seja, recorre aos expedientes da narração (Ricoeur, 1997, v. III, p. 173-415); e Dominick LaCapra, que entendeu a história como um texto, o qual a todo historiador é dado ler (LaCapra, 1985, p. 15-44 e 115-134). Dentro dessa linha de interpretação, o historiador norte-americano Hayden White merece destaque. Seu livro Metahistória é o melhor e mais bem acabado exemplo de obra que mostra a síntese entre discurso historiográfico e linguagem literária, não tanto pelas ideias apresentadas em forma de teoria na introdução (“A poética da história”), mas pelo desdobramento que se segue no corpo do livro. As ideias expostas teoricamente variam, mas não inovam o que já vinha sendo discutido antes da publicação de seu livro, nem o que passou a ser defendido após: o debate sobre a cientificidade da história, a marca de um estilo pessoal de escrita por parte de cada historiador, o recurso narrativo utilizado no ato da escrita e sua função hermenêutica, a tendência natural da historiografia de se inclinar à força organizadora da narração, o apego à trama e à intriga como forma de composição textual etc. O historiador resume sua tese com as seguintes palavras: Em todos os casos a tensão dialética evolui dentro de um contexto de uma visão coerente ou imagem governante da


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forma do campo histórico completo. Isso dá à concepção desse campo particular do pensador o aspecto de uma totalidade autoconsciente, e essa coerência e consistência dão à sua obra seus atributos estilísticos distintivos. O problema aqui consiste em determinar a base dessa coerência e consistência. Em minha opinião, essa base é de natureza poética, e especialmente linguística (White, 1992, p. 39).

A parte mais interessante e inovadora de seu estudo está no corpo do trabalho, dividido em três partes e dez capítulos – cada um deles dedicado a um historiador ou filósofo da história –, nos quais White identifica e interpreta um estilo particular, dividindo e classificando os autores estudados (Hegel, Michelet, Ranke, Tocqueville, Burckhardt, Marx, Nietzsche e Croce) em esquemas e modelos estabelecidos pela tradição retórico-poética (comédia, drama, tragédia, poesia, romance), figurativa (ironia, metáfora, metonímia, sátira), explicativa (formista, mecanicista, contextualista, organicista) e ideológica (anarquista, radical, conservadora, liberal). Ele finaliza sua obra explicando que “o estilo de determinado historiógrafo pode se caracterizar em termos do protocolo lingüístico que utiliza para prefigurar o campo histórico antes de lhe aplicar as várias estratégias explicativas que utiliza para modelar um relato” (White, 1992, p. 405). Embora toda sua exposição seja feita com inteligência e rigor, a proposição de Hayden White apresenta algumas distorções teórico-metodológicas. Primeiro, por partir de modelos estabelecidos a priori e aplicá-los a autores que são mais complexos do que ele os apresenta. Assim, por exemplo, Nietzsche não é somente metafórico, como White afirma, mas também irônico, metonímico, dramático, trágico, iliberal, radical etc.; Marx não é somente metonímico, mas irônico, romântico, realista, radical etc. – os exemplos poderiam ser multiplicados até o limite de sua exposição. White parece cair na armadilha de partir de “fôrmas” estilísticas em vez de ver o estilo se formar. O aspecto esquemático e classificatório fica registrado em outro tex-


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to seu: “a questão que se coloca para os historiadores contemporâneos não é a de saber se vão utilizar ou não um modelo lingüístico que os ajude em seu trabalho, mas que tipo de modelo lingüístico vão usar” (White, 1987, p. 189).2 Como se vê, o uso sistemático de modelos constituídos de antemão persiste, denunciando o lado duro da tese de White. Outro problema que sua tese apresenta reside no fato de que, embora White procure afirmar a inter-relação entre história e literatura, na verdade ele tratou da relação entre historiografia e literatura, ou seja, ele tratou das afinidades estilísticas entre dois tipos de discursos. Neste ponto, ele se assemelha muito aos outros autores que trabalharam o mesmo tema: nenhum deles analisou o problema da história propriamente dita, isto é, das relações sociais objetivas que se formam no decorrer do tempo sob pressão de fatos e acontecimentos, de vivências concretas ou simbólicas, mas elaboraram uma série de reflexões sobre a interrelação de modos e estilos de construção textual. Entre parênteses, lembre-se da crítica que White sofreu da parte de diversos historiadores que o acusaram de tornar a história uma abstração impalpável.3 Vistas em conjunto, com olhar retrospectivo, as diversas tendências teóricas aqui apresentadas, embora diferentes entre si, têm em comum o fato de procurar desenvolver uma metodologia de análise cujo objetivo é esclarecer a relação entre história e literatura. As imperfeições teóricas ou metodológicas que porventura apresentam são, na verdade, percalços desse tipo de análise, isto é, fazem parte do processo de acumulação paulatina de conquistas que vão se corrigindo e aprimorando no próprio movimento que o produz. Como nenhuma teoria ou metodologia por si só pode dar conta de um objeto complexo e multifacetado, como é o caso da literatura, faz-se necessária a análise cuidadosa de cada proposição, de cada corrente ou escola, para que se possam encontrar dispositivos válidos que permitam o cruzamento com propostas,

Ver também o capítulo 1: “The value of narrativity in the representation of reality” (White, 1987, p. 1-25).

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Roger Chartier apresenta um resumo das críticas dirigidas a Hayden White, acrescentando as suas próprias restrições ao método e às conclusões do historiador inglês (Chartier, 2002, p. 81-100 e 101-116).

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correntes e escolas distintas. As proposições de historiadores e historiógrafos acima apresentadas e analisadas revelam um grande avanço na área de conhecimento que representam, destacando temas que vão da importância reconhecida da linguagem como matéria de reflexão histórica à aproximação discursiva na construção do corpus histórico. Parecem faltar, neste âmbito do debate, questões que se mostram muito importantes para a teoria da literatura e para a literatura comparada, como, por exemplo, o modo como a linguagem estética internaliza os dados históricos e sociais e os torna parte de sua fatura. Ou seja, parece faltar uma reflexão mais detida a respeito das mediações que articulam e relacionam em profundidade história e literatura, algo que será desenvolvido por uma série de filósofos atentos para os problemas da forma e da formação.

A busca pela mediação Em outra raia, podemos identificar um grupo de autores que se voltou para o mesmo problema, de um modo mais ou menos parecido. Apesar de cada um ter biografia intelectual própria, eles procuraram compreender a relação entre história e literatura partindo de uma tentativa de fundamentá-la teórica e metodologicamente. Para tanto, dedicaram-se em apurar a noção de forma. Lembremos primeiramente de Georg Lukács. Toda sua produção teórica gira em torno desse problema e, levando em conta as mudanças que seu pensamento sofreu ao longo dos anos, observamos que seu sentido foi substancialmente alterado e depurado, mas não deixou de ser central em seus trabalhos. Para resumir, vou destacar dois momentos nitidamente distintos dessa trajetória. O primeiro vem impresso em dois livros de juventude que denunciam a influência da metafísica de Kant, do idealismo de Hegel, da sociologia de Weber e do historicismo de Dilthey e Simmel (Lukács, 1969; 1999; 2000). Em A


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alma e as formas, Lukács atribui um valor fundamental ao conceito de forma, tornando-o o eixo em torno do qual todos os ensaios ali reunidos giram: apresenta aspectos e funções diferentes do conceito, mas aponta sempre para a tendência que ele tem de estruturar uma totalidade heterogênea: “as formas delimitam uma matéria que, se não fosse por elas, seria como o ar e se dissolveria no todo” (Lukács, 1975, p. 24). Em A teoria do romance, ele procura aplicar mais precisamente esta concepção à análise do gênero, que considera – ao mesmo tempo – uma força desagregadora dos gêneros anteriores (que apresentavam uma forma mais coesa) e a estruturação ordenadora dos fragmentos desses mesmos gêneros (que foram internalizados pelo processo de transformações históricas). Ou seja, a forma literária apresenta a organização estruturada de transformações ocorridas na linguagem e também na história. Toda forma artística é definida pela dissonância metafísica da vida que ela afirma e configura como fundamento de uma totalidade perfeita em si mesma; o caráter de estado de ânimo do mundo assim resultante, a atmosfera envolvendo homens e acontecimentos é determinada pelo perigo que, ameaçando a forma, brota da dissonância não absolutamente resolvida (Lukács, 2000, p. 71).

Nota-se neste fragmento a dívida metafísica e idealista de Lukács: primeiro na linguagem que evita terminologias materialistas, definindo seu campo de análise com conceitos mais abstratos e difusos como “vida” e “mundo” no lugar de “história”; e “atmosfera” no lugar de “relações sociais”; segundo, ao determinar que é a forma artística que configura e conforma a história, imprimindo-lhe uma forma, ou seja, tornando-a uma forma. Nem por isso ele deixou de perceber que qualquer alteração ou variação da forma interna da obra literária é uma manifestação (em nível estético) de características precisas (embora apanhadas em sua forma abstrata) das transformações históricas.


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A estrutura descontínua do mundo exterior repousa em última instância no fato de que o sistema de idéias exerce somente um poder regulativo sobre a realidade. A incapacidade de as idéias penetrarem no seio da realidade faz dessa última um descontínuo heterogêneo e, a partir dessa mesma proporção, cria para os elementos da realidade uma carência de vínculo. O processo segundo o qual foi concebida a forma interna do romance é a peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro na realidade simplesmente existente, em si heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoconhecimento (Lukács, 2000, p. 81-82).

Uma análise resumida e inteligente desta concepção é desenvolvida por Kosik (1976, p. 9-20, 33-58 e 139168). 4

O mundo histórico apresenta, portanto, uma forma, que se mostra heterogênea e cuja lógica só poderá ser compreendida mediante a ação da consciência do indivíduo. Mas esse indivíduo é, por sua vez, carente de unidade, o que torna fragmentado e abissal todo o universo interior e exterior à consciência. O romance, não sendo capaz de superar essa fragmentação heterogênea, a incorpora e a torna forma interior. Vemos que a concepção idealista se confirma nessa citação, mas apresenta de maneira inequívoca o nível superior e abstrato do vínculo indissolúvel entre o mundo extrínseco e o mundo intrínseco à forma do romance. Esta última limitação do pensamento do jovem Lukács será superada aos poucos e o motivo da mudança será a construção de um pensamento materialista por parte do filósofo. Em História e consciência de classe, Lukács apreende a ideia marxista de que a história – ela mesma – é forma. Para Karl Marx, as relações sociais historicamente constituídas se orientam pela forma da contradição, forma essa que se manifesta nos vários estratos da história: nos modos de produção, nas relações que daí advêm, no aparelho ideológico, nas manifestações artísticas e culturais etc.4 Uma das características facultativas dessa noção materialista de forma é que sua contradição se mostra interior a ela mes-


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ma, e, logo, sua transformação é ativada por forças que a constituem. Outra característica é que a forma – no ato de se formar e se transformar – oculta o processo que a constitui, daí ela se apresentar como um fetiche.5 Entendendo a história como forma nesses termos, Lukács procurará então analisar uma de suas formações fetichizadas: a obra de arte. A partir daqui, podemos identificar duas tendências no pensamento lukacsiano. Uma delas é aquela que traça conceitos e métodos de análise mecanicistas, que procuram estabelecer uma relação direta e causal entre processo histórico-social e obra literária e, ao mesmo tempo, apresentar uma série de prescrições artístico-filosóficas que deveriam ser adotadas pelos escritores para que eles não reproduzissem, como forma literária, a forma fechitizada da alienação das sociedades modernas. Segundo Helga Gallas, essa concepção não surge em Lukács por causa do marxismo propriamente dito, mas por causa do contato que o filósofo estabeleceu com a Federação de Escritores Proletários-Revolucionários de Moscou nos anos 1930: juntamente com a FEPR, Lukács ajudou a elaborar as diretrizes do “realismo-socialista”, a partir das quais escreveu uma série de artigos de análise e julgamento de obras literárias (Gallas, 1977, p. 15-24 e 90-96). Esses artigos se encontram reunidos em diversos livros, como Ensaios sobre literatura, Marxismo e teoria da literatura e Realismo crítico hoje. A outra tendência aparece no velho Lukács, quando ele diminui um pouco a voltagem dogmática dos ideais marxistas, misturando-os com a flexibilidade de uma reflexão mais arejada, menos ideologizada, que tinha na juventude. Essa concepção aparece em livros como Goethe e sua época, Introdução a uma estética marxista e, principalmente, Estética: a peculiaridade do estético, a obra que vai coroar sua trajetória intelectual. Nos quatro volumes dessa obra – um deles voltado inteiramente à literatura –, Lukács apresenta uma investigação minuciosa a respeito de como a obra de arte literária internaliza a forma histórica, isto é, a forma das

Em O capital, Marx desenvolve essa teoria quando analisa a metamorfose do trabalho em mercadoria, da mercadoria em dinheiro e de tudo em forma simbólica. A análise chega ao ponto mais decantado no capítulo “O fetichismo da mercadoria: seu segredo” (Marx, 1996, p. 79-93). Lukács se inspira nesses textos para desenvolver sua própria teoria em “A reificação e a consciência do proletariado” (Lukács, 1981, p. 97-231).

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relações sociais historicamente produzidas: “o caráter elementar da mimesis, anterior a toda atividade artística, se encontra entre os fatos da vida” (Lukács, 1972, v. 2, p. 30). Para ele, a forma literária apreende e organiza uma forma que já existe, criando um reflexo, não entre a história e a literatura, mas entre as afinidades e dissonâncias inscritas na essência e na aparência dessas duas esferas. Outro filósofo que se dedicou ao tema foi Walter Benjamin, que, embora trilhando um caminho diferente, chegou a conclusões semelhantes às de Lukács. O problema da forma aparece amadurecido em Benjamin também em um texto de juventude, no qual ele parte do idealismo crítico de Fichte, segundo o qual a forma aparece e se efetiva no ato de conhecimento orientado pela reflexão: “[Fichte] determina a reflexão como reflexão de uma forma, demonstrando, desta maneira, a imediatez do conhecimento dado nela” (Benjamin, 1993, p. 31). Ou seja, a reflexão sobre a forma nasce nela e dela, pois a forma apresenta em ato a possibilidade de pensá-la. A partir daí, Benjamin procura mostrar que os pressupostos gnosiológicos da filosofia fichiteana inspiraram a ideia de forma poética desenvolvida pela primeira geração romântica na Alemanha, como foi explicitado por um dos mais importantes representantes dessa escola: “Seria bem possível que Fichte fosse o inventor de uma espécie nova de pensar. Podem nascer aqui prodigiosas obras de arte, se um dia se começar a praticar artisticamente o fichitizar” (Novalis, 1988, p. 111). Voltando às ideias de Benjamin, a forma tem uma estrutura intrincada cujos passos revelam o ato contínuo da reflexão, que se desdobra e se completa no ato de autorreflexão: O Eu põe-se (A), contrapõe-se na imaginação um Não Eu (B). A razão intervém e a determina a acolher B no A determinado: mas então A, posto como determinado, tem de ser mais uma vez delimitado por um B infinito, com o qual a imaginação procede exatamente como acima; e assim prossegue até a determinação completa da razão por si


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mesma, quando não é preciso mais nenhum B delimitante fora da razão, isto é, até a representação do representante (Benjamin, 1993, p. 33).

Transposta para o domínio da arte, essa concepção de forma consiste em construir dois movimentos distintos e complementares: a forma literária consiste numa unidade tensa, mas indissolúvel, na qual expressão e reflexão sobre a expressão se efetuam incessantemente. A forma artística, portanto, apresenta, segundo Walter Benjamin, a unidade da contradição, que se constitui num movimento de reflexão contínua e infinita. Nos termos de hoje, seria o que a crítica literária se acostumou a chamar de “metalinguagem”, mas esse termo não representa bem o que essa noção significa para os românticos, nem para Benjamin. Ele recorre a Friedrich Schlegel, principal ideólogo do romantismo alemão, para quem a forma artística representa a reunião de todas as formas e, ao mesmo tempo, reflete sobre si mesma como tal: A poesia romântica é uma poesia universal progressiva. Sua determinação não é apenas a de reunificar todos os gêneros separados da poesia e estabelecer um contato da poesia com a filosofia e a retórica. Ela também quer, e deve, fundir às vezes, às vezes misturar, poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia artística e poesia natural, tornar a poesia sociável e viva, fazer poéticas a vida e a sociedade, poetizar a espiritualidade, preencher e saturar as formas da arte com toda espécie de cultura maciça, animando-as com vibrações do humor (Schlegel, 1994, p. 99).

Por isso Benjamin fala em autorreflexão da forma e não em metalinguagem, porque a forma que a forma literária “reflete” (no duplo sentido de representação de algo e meditação sobre a representação de algo) é a forma do mundo. Por isso podemos dizer que Benjamin atribui à obra literária uma interioridade complexa: ela apresenta uma contradição formal que garante a inteligibilidade de sua autonomia, mas também – e ao contrário – ela decanta a


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forma da contradição do mundo, demonstrando ter uma relação intrínseca (ou melhor, uma relação formal) com ele. Reconhecer a interioridade complexa (dialeticamente contraditória e relativamente autônoma) da forma literária é fundamental para entendermos as ideias estéticas de Benjamin, mas não esgota o problema aqui investigado. Em Origem do drama barroco alemão, ele reaparece e ajusta melhor os termos de comparação que aqui interessa especificar. Nessa tese, Benjamin procura analisar o problema da interioridade complexa da forma a partir da noção de alegoria: “a dialética da convenção e da expressão é o correlato formal da dialética do conteúdo. A alegoria é as duas coisas, convenção e expressão, e ambas são por natureza antagonísticas” (Benjamin, 1984, p. 197). A forma da contradição é a forma alegórica do barroco – isso é fácil constatar –, no entanto, a questão elevada do problema não está aí, mas em saber o que produz essa forma: A história filosófica é a forma que permite a emergência, a partir dos extremos mais distantes e dos aparentes excessos do processo de desenvolvimento, da configuração da idéia, enquanto Todo caracterizado pela possibilidade de uma coexistência significativa desses contrastes (Benjamin, 1984, p. 69).

Assim, o que observamos nos escritos de Walter Benjamin é a constatação de que a forma do barroco, baseada no arranjo de contrastes, contradições e antíteses, é o extrato da forma histórica. Logo, o processo que inter-relaciona história e literatura não é um paralelismo entre os acontecimentos e a sua configuração no âmbito da arte, mas um processo que internaliza uma forma (histórica) na outra (estética). A virtualidade dessa construção é revelada por Benjamin com um engenho muito sutil, cuja compreensão exige uma educação no estilo de pensamento do filósofo: para analisar as implicações e as metamorfoses da forma alegórica, Benjamin desenvolve um método alegóri-


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co de exposição, isto é, ele não desenvolve seu pensamento de maneira conceitual, mas por meio de alusões e imagens. Um dos momentos mais intrincados de sua análise – e que se refere às relações profundas entre forma histórica e forma artística – é apresentado assim: “As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas” (Benjamin, 1984, p. 200). Segundo essa ideia, a ruína tem uma importância maior para o historiador porque ela não só presentifica o passado como mostra o que o presentifica: o tempo. Mas ao fazê-lo, ao presentificar o passado, o tempo o corrói, o transforma em restos, e são esses restos que são presentificados. Mas Benjamin vai mais longe, pois compara a ruína à alegoria, o que mostra que seu objetivo não era somente refletir sobre a história, mas também refletir sobre a arte. Assim – e se não há engano de minha parte –, ao inferir que a alegoria representa no reino da arte o que a ruína representa no reino da história, Benjamin deu dois passos: primeiro, no terreno específico da estética, mostrando que o sentido artístico não está evidente na obra, mas oculto, porque sua expressão – aquilo que é desentranhado dos interstícios da linguagem e se manifesta à consciência crítica – passou por um processo de rasura, um processo de corrosão, que oblitera o sentido explícito das formas: por isso, a alegoria nunca é evidente; segundo, no terreno filosófico, mostra que a forma artística se assemelha à forma histórica porque ambas ativam um processo homólogo de corrosão e ocultamento do sentido pleno. Deste modo, podemos dizer que Benjamin encaminha e aprofunda o sentido de fetichização do mundo extrínseco e intrínseco da arte, tal como vislumbrado por Lukács. Se observarmos a produção teórica e crítica de Walter Benjamin, poderemos notar como ele desdobra essa noção ao mesmo tempo materialista e alegórica de forma em outras tantas situações: na estrutura narrativa que internaliza a desagregação da unidade da consciência e das relações sociais; no processo infinito de produção imagética no mo-


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mento de reorganização dos meios de produção capitalista; no realinhamento da notação lírica no contexto de transformações econômicas e sociais etc. (Benjamin, 1987, p. 114-119, 197-221 e 165-196; 1988, p. 21-120 e 123-170). Esses questionamentos perpassam o pensamento de Theodor W. Adorno, para quem a forma é uma determinação própria do mundo, a qual o pensamento só consegue apreender e refletir se considerá-la como forma do próprio ato de pensar. Adorno renega a dialética hegeliano-marxista – “uma dialética que reduz tudo o que cai em seu moinho à forma pura da lógica da contradição” (Adorno, 1984, p. 14) – e advoga em favor de uma dialética negativa, “que procura desfazer a rígida estrutura dicotômica e determinar cada pólo como componente de sua própria antítese” (Adorno, 1984, p. 143). A forma da contradição sem síntese (a forma própria do mundo objetivo, forma produzida pelas relações histórico-sociais) deve ser apropriada pelo pensamento de tal modo que se estruture como forma própria do pensar. Essa mesma determinação é transposta para o âmbito da arte: A forma [artística] funciona como um magneto que ordena os elementos da realidade empírica de um modo que provoca estranhamento às conexões de sua existência extra-estética e só através disso eles podem se apoderar de sua essência extra-estética (Adorno, 1988, p. 336).

Em seu estudo sobre as transformações da lírica, Adorno insiste nessa feição ambígua da forma literária e adverte contra aquilo que Lucien Febvre, por exemplo, afirmava ser o objetivo de uma análise histórico-social da literatura e que Raymond Williams praticava em suas análises, escapando também da contra-argumentação de Gerard Genette: “o procedimento [de análise] deve ser, conforme a linguagem da filosofia, imanente. Conceitos sociais não devem ser trazidos de fora para dentro das formações líricas, mas absorvidos na intuição delas mesmas” (Adorno, 1993, p. 39). Assim, a configuração histórico-social pre-


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sente na literatura deve se manifestar como instância interior, ou seja, propriamente literária. Mais ainda, Adorno procura especificar o elemento estruturador responsável pela mediação existente entre história e literatura, atribuindo esse papel à linguagem: A linguagem é algo duplo. Através de suas configurações ela se molda às emoções subjetivas, fazendo-as brotar e amadurecer. Mas, por outro lado, ela continua sendo o meio dos conceitos, restabelecendo a referência irrenunciável ao universal e à sociedade (Adorno, 1993, p. 43).

A linguagem, portanto, é o dispositivo que estrutura internamente a obra, e o faz de tal modo que torna os fatores extrínsecos imanentes a ela. A relação entre história e literatura se realiza plenamente na medida em que a linguagem cumpre esse papel de mediação. Neste ponto, Adorno se aproxima dos outros pensadores aqui lembrados, todos procurando avaliar as vibrações no plano da organização estética como uma estratégia que internaliza a essência de uma formação histórico-social. Alguns estudiosos da obra de Adorno comungam a opinião de que sua concepção de forma atinge o grau máximo de validade nos estudos sobre música (Duarte, 1997, p. 85-107; Gómez, 1998, p. 61-80; Paddison, 1993, p. 121162). Segundo Adorno, a forma musical configura de maneira mais abstrata – ou seja, de uma maneira em que a linguagem adota um caráter essencialmente artístico – a forma histórica. É o que ele defende ao mostrar como a sofisticação da composição dodecafônica levou a música a uma aporia, pois ela não encontraria mais espaço para a fruição num ambiente dominado pela secularização dos bens artísticos tal como foi perpetrado pela indústria cultural. Assim, a música ficou encurralada entre dois impasses: de um lado, a fragmentação da estrutura musical (tal como criada por Schoenberg) parece decalcar a fragmentação e a alienação da consciência crítica no auge do capitalismo; de outro lado, a restauração dessa estrutura (tal como apa-


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rece nas composições de Stravinski) leva a um estreitamento que facilita a fruição para as consciências alienadas. Afora o pessimismo adorniano (uma marca de seu pensamento), chamo atenção para o seu método de análise (outra marca): “Trata-se de um procedimento imanente: a exatidão do fenômeno num sentido que se desenvolve somente no exame do próprio fenômeno” (Adorno, 1989, p. 31). Todo o debate a respeito de como a forma literária internaliza e especifica uma forma histórico-social leva a uma questão básica na teoria da literatura e da arte: o problema da mimese. Para melhor compreendê-la de modo bastante delimitado, isto é, atendendo aos interesses apresentados e discutidos neste artigo, recorro aos escritos do filólogo Erich Auerbach, um crítico que não se filiava a nenhuma vertente marxista, como os outros, mas que conservava a mesma noção materialista de forma estética. Sua noção de forma se mistura com as de mimese e estilo, mas isso serve para apreender melhor o processo pelo qual a realidade extra-artística é transfigurada para se tornar realidade artística. É preciso enfatizar dois pontos. Primeiro, que mimese e estilo correspondem a uma adequação entre a escrita e a história, numa inter-relação na qual ocorre a apuração dos dados escolhidos (portanto, não é a realidade como um todo que entra na fatura da obra, mas alguns aspectos determinados que são internalizados de modo a se constituírem como um todo organizado). Segundo, que não existe um único modo de mimetizar ou estilizar a realidade e cada modo corresponde a uma disciplina de escrita particular. Na junção desses dois aspectos está a vantagem da concepção de Auerbach a respeito da relação entre processo social e constituição estética da literatura: A vida política, econômica e social entrou na literatura, em toda sua extensão e com todos os seus problemas; trata-se da vida contemporânea e atual não na forma generalizadora e estática, mas como um conjunto de fenômenos apresentados com suas causas profundas, sua interdependência, seu dinamismo. [Foi] portanto [assim] que se rea-


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lizou a mistura dos gêneros na sua forma moderna. Essa mistura me parece a forma mais importante da literatura moderna; acompanhando de perto as rápidas transformações de nossa vida, abrangendo cada vez mais a totalidade da vida dos homens sobre a Terra (Auerbach, 1972, p. 243).

Essa citação sintetiza aqueles dois aspectos apontados anteriormente: a realidade histórica é compreendida como ampla, heterogênea e complexa; o modo como ela é internalizada em uma determinada obra literária, tornando-se, portanto, manifestação do belo artístico (Auerbach, 2000, p. 341-356; Adorno, p. 81-84, 98-100), exige que seja disciplinada (ela é internalizada, portanto, como forma). O resultado das reflexões de Auerbach se mostra muito complexo e igualmente rico: a realidade histórico-social apresenta uma estrutura heterogênea, coerente e contraditória em si mesma; o processo de reconstrução mimética supõe a abstração e apreensão dessa estrutura, cujo resultado artístico se conforma em um estilo mesclado (Auerbach, 1971, p. 345-377). Em outras palavras, assim como a história se constitui a partir de elementos díspares, assim o estilo de uma obra os reproduz como tal. Neste ponto, Auerbach se aproxima muito das conclusões do jovem Lukács, embora sem o pendor metafísico e idealista que marcou o pensamento deste último. Na verdade, todos esses autores, embora partindo de princípios distintos, chegaram a conclusões mais ou menos parecidas. Isso assim ocorreu porque eles perseguiam um objetivo semelhante: compreender as relações intrínsecas entre formação histórica e estilização da linguagem como forças capazes de se formarem mutuamente, isto é, uma à outra. Ou seja, a dicotomia extrínseco/intrínseco perde força e sentido, pois esse par aparece amarrado numa dialética em que um e outro se traspassam mutuamente. É preciso destacar ainda que a perspectiva metodológica também aproxima esses pensadores: no lugar de trabalhar com


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conteúdos prontos, eles se esforçaram em tentar descobrir o processo que os constitui, focando o interesse nos elementos estruturadores das duas instâncias (história e literatura). Assim, a análise se encontra centrada nos problemas advindos do próprio movimento da análise, percebendo, ou procurando perceber o mais claramente possível, as conexões mediadoras que organizam de maneira escolhida o método crítico.

Considerações finais Embora a literatura comparada tenha uma história muito longa, ao ponto de dificultar a datação de seu início, alguns estudiosos situam seus primórdios no século XVIII (Wellek, 1976, p. 53-62; Kaiser, 1989, p. 35-66; Carvalhal, 2003, p. 89-107). O fato é que somente no decorrer do século passado esse campo de estudo adquiriu notabilidade como disciplina acadêmica e área de conhecimento. Todavia, sua institucionalização científica acarretou um paradoxo que merece ser discutido: se por um lado a literatura comparada adquiriu um corpus conceitual e metodológico específico, por outro, cada vez mais, fez uso do corpus conceitual e metodológico de outras disciplinas. Longe de ser uma contradição que enfraqueça sua credibilidade científica e acadêmica, esse aspecto a torna mais consistente como área de conhecimento, uma vez que permite que sua interação epistemológica se diversifique e se renove constantemente. Mais que isso: o fato de os estudiosos da literatura comparada se apropriarem de teorias e métodos de outras disciplinas reforça o caráter interdisciplinar ou multidisciplinar que a análise requer e revela que esses estudiosos não se acomodaram em colher um ou outro aspecto das disciplinas vizinhas, mas se dedicaram ao seu conhecimento profundo e seu uso consciente. Por outro lado – outro lado do mesmo processo aqui analisado –, também houve por parte dos estudiosos da história e da historiografia uma flexibilidade epistemológica


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semelhante: desde o momento em que Hegel rompeu com a ideia de que ao historiador cabia apenas o exame de documentos que atestassem a veracidade de um fato empírico e propôs uma atitude reflexiva diante desses fatos (Hegel, 2001), os estudos históricos começaram a adquirir uma forma mais aberta e pluralista. As conquistas obtidas pela escola dos Annales rotinizaram essa aquisição, e a inclusão de novos objetos e perspectivas teórico-metodológicas aproximou a historiografia dos estudos culturais. Esse foi um dos pontos de convergência entre a história e a literatura, mas não foi o único. Como vimos, existem outros termos de mediação, dentre os quais foi destacada a linguagem: é por meio da linguagem que a literatura se firma como tal, e ela não pode ser compreendida somente como algo intrínseco à fatura estética de uma obra; ela, a linguagem, é forma, e aquilo que ela representa – a realidade histórico-social – é também, por sua vez, forma. A mediação entre essas duas formas é o que garante a especificidade ambígua da literatura comparada como área de conhecimento, distanciando-a do esteticismo puro e do culturalismo aplicado.

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História híbrida da literatura: uma questão de gêneros Biagio D’Angelo*

RESUMO: Há algumas décadas, nota-se, nas manifestações culturais contemporâneas, a insistência para uma redução das fronteiras entre os esquemas tradicionais de taxonomia dos gêneros literários. A consequência inevitável dessa diluição das fronteiras é o fortalecimento do hibridismo como necessidade de renovação cultural perante os novos paradigmas estéticos. A história da literatura hoje não pode desconsiderar a convivência desses fatores heterogêneos que renovam não apenas o paradigma historiográfico, mas também o próprio cânone tradicional de textos nacionais, continentais e universais. PALAVRAS-CHAVE:

fronteiras literárias, hibridismo, história da literatura, taxonomias, evolução. ABSTRACT: For a few decades, a strong tendency on a reduction

of the boundaries between literary genres can be observed with the rupture of traditional schemes in cultural manifestations. The inevitable consequence of such a dilution of boundaries is the strengthening of hybridism as a necessity for a cultural renovation before the new aesthetical paradigms. Today history of literature cannot ignore the co - existence of these heterogeneous factors that renew not only the paradigm of historiography but also the traditional canon of national, continental and universal texts as well. KEYWORDS: literary boundaries, hybridism, history of literature,

taxonomies, evolution. Professor Doutor de Literatura Comparada do Programa de Pós-Graduação: Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). *

“Tudo funciona por contaminação” (Bernardo Carvalho, O sol se põe em São Paulo) “Um homem distinto é um homem misturado” (Montaigne, Essais)


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Misturas e contaminações A ambiguidade do termo e do conceito de “história” nos processos literários tem sido posta em evidência por Antoine Compagnon, que, no seu Demônio da teoria, escreve: “A história designa ao mesmo tempo a dinâmica da literatura e o contexto da literatura. Essa ambigüidade se refere às relações da literatura com a história (história da literatura, literatura na história)” (Compagnon, 2006, p. 197). Há algumas décadas, nota-se, nas manifestações culturais contemporâneas, a insistência para uma redução das fronteiras entre os esquemas tradicionais de taxonomia dos gêneros literários. A consequência inevitável dessa diluição das fronteiras é o fortalecimento do hibridismo como necessidade de renovação cultural perante os novos paradigmas estéticos, além da presença de olhares multiperspectivos, como a cultura de massa, a renovação dos processos da oralidade, a inclusão dos procedimentos hipertextuais. A história da literatura hoje não pode desconsiderar a convivência desses fatores heterogêneos que renovam não apenas o paradigma historiográfico, mas também o próprio cânone tradicional de textos nacionais, continentais e universais. Esses elementos heterogêneos funcionam como propostas desfamiliarizantes, no sentido que os formalistas deram a essa noção. Assim, o texto “se caracteriza por um deslocamento, uma perturbação dos automatismos da percepção” (Compagnon, 2006, p. 208). Todo o sistema literário, inerente ao texto, é sacudido, e com ele o processo histórico que o envolve: “A descontinuidade (a desfamiliarização) substitui a continuidade (a tradição) como fundamento da evolução histórica da literatura” (Compagnon, 2006, p. 208). Nesse sentido, vale mais pensar na “descontinuidade” de uma obra literária que não na sua “permanência”, contradizendo assim a ideia historicista de um progresso linear da obra de arte: “A história literária não é mais o relato rarefeito do autoengendramento das obras-primas nem uma tradição de


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formas que se perpetuam de forma idêntica ao longo dos séculos” (Compagnon, 2006, p. 209). A história da literatura se produz também por meio daqueles textos que parodiam e dialogam com textos anteriores, retirando, das fronteiras discursivas, o fio de novos paradigmas, amiúde transgressivos. A América Latina, por exemplo, propõe-se como lugar de produção de conhecimento híbrido por natureza, pois os gêneros literários têm alcançado aqui uma funcionalidade inovadora nos processos culturais. Nesse sentido, é interessante repensarmos novas aberturas para o comparatismo latino-americano a partir da discussão sobre o “latino”-americano como espaço e discurso insuficiente à abrangência dos discursos da atualidade. Parece-nos indispensável reler figuras como Haroldo de Campos e Octávio Paz, e romper as marcas “latinas” de um continente que é plural, marcado pela heterogeneidade, pelo plurilinguismo, pelos movimentos utópicos, pelas conexões com África e Oriente. Os debates atuais sobre a globalização, o multiculturalismo, o transnacional e as migrações tornaram indispensável retomar a discussão sobre a vivacidade da multiplicidade narrativa, etnográfica, antropológica e epistemológica das Américas. Digo “das Américas”, e não apenas “da América”, pois as narrações e as fábulas investem verticalmente todo um mapa geopolítico. A recuperação das fábulas como expressão de uma força ficcional e intelectual “americana” representa a tentativa de romper as barreiras e os limites com os quais estão sendo lidos e interpretados, culturalmente e ideologicamente, o Norte, o Centro e o Sul da América. É com razão que Pierre Rivas enfatiza o caráter inovador da literatura latinoamericana: “A literatura estrangeira, em particular a dos países emergentes (Índia, América Latina, África, Caribe) dá sentido à vida e à imaginação” (Rivas, 2008, p. 52). De fato, o espaço simbólico americano não é apenas ficcional: ele é, sim, ficcional, mas tam-


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bém nele se reescrevem doutrinas, pensamentos, estudos antropológicos, debates etnográficos. O continente latino-americano se configura como um espaço real e alegórico, ao mesmo tempo, pois as sociedades tradicionais deixam espaço à constituição de “comunidades interliterárias”, conforme a intuição de Tânia Carvalhal, sistemas plurais por definição e por natureza – geográfica, política, cultural, artística. Noções como a ideia de literatura nacional ou como o espaço da tradição oral e do literário devem ser examinadas em uma articulação não nacional: “Cada literatura nacional pode tornar-se, ao longo de seu desenvolvimento histórico, um componente de várias comunidades interliterárias, não se constituindo essas em sistemas fechados ou invariáveis” (Carvalhal, 2003, p. 84-85). A exigência de reconsiderar tanto as narrativas quanto as nações demonstra amplamente a vivacidade e a importância dos estudos comparados sobre o continente americano. Os problemas e as questões que se formulam, há algumas décadas, sobre a necessidade de superar os obstáculos geográficos e históricos do continente, configuram, hoje, um panorama da dispersão e do ainda insuficiente conhecimento recíproco cultural e literário. A literatura comparada permite ressimbolizar os obstáculos e as distâncias, isto é, reunir e discutir a heterogeneidade americana, cuja mobilidade de questionamentos e discursos se encaminha, cada vez mais intensamente, para práticas transdisciplinares múltiplas e críticas. A proposta de heterogeneidade, que Antonio CornejoPolar considerou como o elemento “estável” da latinoamericanidade, leva a uma redefinição de nação e identidade, a uma ressignificação dos confins planetários, uma reescrita utópica, impossível; um “espaço (que) é simultaneamente explorado e constituído, re-achado por sua metamorfose em lugar de uma procura” (Moura, 2007, p. 195). América Latina se transforma, assim, em um território plural, global. Mas também em uma “identidade múltipla” –


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conforme a proposta de Edouard Glissant –, uma tradição “diversa”, incompleta, em discussão contínua, aproximativa, na qual “as etnias e as culturas coexistem sem efetivamente interpenetrar-se” (Glissant, 2005, p. 50). O Mundo treme, se criouliza, isto é se multiplica, misturando as florestas e seus mares, seus desertos e seus blocos de gelo, todos ameaçados, trocando e mudando seus costumes e suas culturas e aquilo que, no passado, chamávamos ainda as suas identidades, na grande maioria hoje massacradas (Glissant, 2005, p. 75).

O discurso de Glissant busca as orientações básicas para sistematizar uma cultura “nacional” – talvez liminar como aquela caribenha ou martinicana – a favor de uma mudança de percurso. O continente latino-americano tem cooperado para observar a história da literatura enciclopedicamente – como queriam Borges e Valéry – como “história do espírito produtor e consumidor”, sem que seja mencionado um único escritor. Lembrando a posição crítica de Bakhtin, segundo o qual cada ato autenticamente criador “evolui em fronteiras” (Carvalhal, 2003, p. 153), Tânia Carvalhal abre um ensaio lucidamente dedicado às fronteiras da crítica como problemática sempre atual dos estudos literários e culturais. Poderíamos tratar aqui as fronteiras segundo uma determinação geográfica ou política, ou ainda como ferramenta de distinção exemplar, rígida, “extrema” entre dois ou mais campos, que se constituem, portanto, a partir de suas diferenças. Todavia, nesse âmbito, retomar-se-á o termo “fronteira” em sua acepção de margem, de orla, de linhas de demarcação que se sucedem ou que se cruzam, isto é, retomaremos o espaço de pertença às fronteiras não nas suas divisões, mas naquilo que elas propõem de comum e coincidente, embora, talvez, divergente. A “fronteira”, nesse sentido, é (e não apenas simbolicamente) um meio que a literatura comparada e a história


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da literatura têm à disposição para a análise e a atuação de objetos textuais, cuja diversificação representa a variabilidade do gesto literário e cultural. Tânia Carvalhal tem razão quando afirma que “aos poucos torna-se mais claro que literatura comparada não pode ser entendida apenas como sinônimo de comparação” (Carvalhal, 1986, p. 5). Se fosse a comparação entre dois objetos ou se fosse dado excessivo espaço à natureza do “sinônimo”, constataríamos que a disciplina – que já não admite uma orientação única a ser seguida, mas propõe, às vezes, sem suficientes justificações, um arriscado “ecletismo metodológico” – seria reduzida a uma perigosa dicotomia, a um binarismo lamentável para os estudos literários. Estudar e debater a figura alegórica da “fronteira”, especialmente dentro da significação que ela adota na conformação dos gêneros literários, constitui uma reflexão fundamental sobre a comparação literária. Para Tânia Carvalhal, o fazer da literatura comparada coincide com um procedimento mental que favorece a generalização ou a diferenciação. É um ato lógico-formal do pensar diferencial (processualmente indutivo) paralelo a uma atitude totalizadora (dedutiva). Comparar é um procedimento que faz parte da estrutura do pensamento do homem e da organização da cultura (Carvalhal, 1986, p. 5).

Esse processo, que envolve a ação da contemporaneidade do crítico comparatista, é revelador de desierarquizações dos elementos do sistema literário, sem deixar de ser, justamente por causa disso, fator de enriquecimento e lugar de discussão de dados e noções estancadas e sem brilho. De acordo com a leitura crítica de George Steiner, Tânia Carvalhal detalha o que deveria se compreender hoje com o termo “fronteira”, em uma passagem do texto em que as orientações da literatura comparada configuram as posturas epistemológicas da crítica contemporânea. Falar em fronteiras significa aqui ocupar-se com o como, os modos por meio dos quais uma determinada atuação críti-


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ca torna-se ela mesma híbrida, apropriando-se de recursos de uma e de outras orientações, levadas pela natureza dos textos, que as solicita. Falar em fronteiras implica, sobretudo, uma postura adotada pelo leitor crítico, que confronta, contrasta, que lê nos limites, nas bordas, nas vizinhanças (Carvalhal, 2003, p. 171).

O fenômeno literário manifesta-se por meio de partes integrantes e atuantes na construção da atividade do imaginário: discurso, ficção, narratividade, poética, estilo, temas e o texto por sua natureza representam, na síntese de Cesare Segre, os pontos convencionais da experiência da comunicação literária. Os gêneros, que, por muito tempo, a história da literatura considerou como modelos fixos, extremamente coesos e, sobretudo, impenetráveis, participam, com pleno direito, dessa “experiência” de “regras” do literário. Seria impensável uma teoria dos gêneros, hoje, sem referir-se a eles como um organismo vivo, produtor e reprodutor de canalizações estéticas diferentes. Os gêneros literários configuram-se como estruturas taxonômicas que – incorporando-se a um espaço cultural que se pretende global e, ao mesmo tempo, fragmentado – funcionam como resultantes dinâmicas e como geradores de novas realidades. Como afirma Tânia Carvalhal, referindo-se à produção sul-rio-grandense que experimentou na própria pele a simbolização do fronteiriço, por meio da literatura de Érico Veríssimo, Ivan Pedro Martins, Brasil Dubal, Simões Lopes Neto e Ricardo Güiraldes, a “fronteira” geográfica interfere com o efeito do gênero no pensamento e na escolha da filiação estética: “os efeitos de representação da realidade em zona fronteiriça” resultam ser, portanto, “recursos dessa ordem que asseguram a formação dos conjuntos supranacionais” (Carvalhal, 2003, p. 158). Pensemos, por exemplo, no questionamento da identidade regional na América Latina e da co-presença de um espaço de fronteiras rico de convergências, diversidades e incompreensões, como o descrito em Radiografia do pampa por Ezequiel Martinez Estrada em 1933. Nesse pampa, cuja


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regionalização concerne a múltiplos lugares de diferentes soberanias nacionais, a fronteira entra em crise e, com ela, o gênero do ensaio, que começa a perder a aura de objetividade suprema para refugiar-se num sentimento de pessimismo e de solidão, que perdurará por muito tempo ainda nas letras latino-americanas. Trata-se de uma marca constante, um fio invisível que “desvela” mitos e ficções, heróis e deformações históricas (um exemplo que vale por todos: Cem anos de solidão, de Garcia Márquez). Em outras palavras: a fronteira geográfica influencia o próprio gênero literário, que se torna, ele mesmo, fronteiriço. Escreve Gregorio Weinberg na introdução à obra do ensaísta argentino: ¿estaban fundidos, confundidos o apenas entreverados, el indio, el gaucho, el criollo, el inmigrante?¿Cuál era la resultante, el perfil cierto de la Argentina? Interrogantes todas llenas de sentido. La imprevisibilidad, que linda con el pesimismo, atiza la crisis de conciencia; el tema de la identidad, angustia (Martinez Estrada, 1994, p. XVIIXVIII).

A partir dos conceitos explicados por Guilhermino César, Tânia Carvalhal agrega à figura da fronteira uma metáfora peculiar por meio da qual exemplifica-se o gosto da estudiosa brasileira pela prática comparatista como operação inventiva e intuitiva: o contrabando. Dos Contos gauchescos, de Lopes Neto, aos contos de Noite de matar um homem, de Sérgio Faraco, Carvalhal propõe uma superação do limite regionalista. Inserindo essas obras em uma mais ampla dinâmica, na qual a região do Sul do Brasil estreita fortes vínculos fronteiriços com Argentina e Uruguai, cria-se assim uma “nova” possível zona de contatos literários (já que os contatos culturais são evidentes a todos). O regional penetra na fronteira do continental, abatendo as fronteiras limitadoras dos estados nacionais. A respeito das fronteiras geopolíticas, é importante analisar “os processos de integração de novos espaços”, que,


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sofrendo influxos diversos, permitem observar que “uma fronteira não pode existir senão a partir de uma fronteira outra, ou seja, que uma fronteira origina outra, como espaço de incorporação ao espaço global” (Carvalhal, 2003, p. 159). Já que a problematização da fronteira se abre justamente em um complexo fenômeno de contextualidade, interdependência e relações culturais, com as quais as fronteiras integram-se e complementam-se, gostaríamos de retomar aqui esse mesmo conceito de Tânia Carvalhal para discutir a zona fronteiriça que permeia a conformação dos gêneros literários. Sabemos o quanto é complexo sublinhar a mesma “genealogia” para literaturas provenientes de diferentes substratos culturais; a afinidade que o comparatista descobre, por exemplo, entre literaturas ocidentais e orientais (veja-se o gênero ficcional do diário nas produções europeias e latino-americanas de, respectivamente, Lermontov, Bachmann, Arguedas com a escritura do journal intime em Tanizaki) é um terreno fascinante que revela o quanto as regras que subjazem aos códigos dos gêneros são maleáveis, porosas e nunca rígidas. “Tudo funciona por contaminação”, repete com assiduidade o narrador do romance de Bernardo Carvalho, O sol se põe em São Paulo (2007). Certamente, a “contaminação” descreve o dinamismo da produção literária e, como afirmava já Tynianov, a passagem de temas e motivos de um gênero ao outro, ou os canais de permeação, as marcas comuns a gêneros distintos, constituem a vitalidade autêntica do fazer literário. A contaminação, além disso, influencia, como é óbvio, a própria personalidade do autor. Utilizando certos materiais e escolhendo lugares específicos do imaginário, o autor modifica, renova, inventa gêneros novos (até inconscientemente), muda as relações interliterárias e interdisciplinares, por meio de “alargamentos, restrições, deslocamentos” (Segre, 1985, p. 260). A contaminação “contamina”, propala a saudável epidemia de romper “com as concepções fixas, sedentárias”, de tornar “problemático o desenvolvi-


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mento de estratégias unidirecionais e centralizadoras” (Abdala, 2004, p. 11). As articulações propostas por Serge Gruzinski, que vê, na heterogeneidade dos processos de construção da identidade, a pluralidade e a atualidade do “pensamento mestiço”, indicam que cada identificação unitária acaba por ser desrespeitosa do presente e reduz o contexto histórico-cultural a mera estratégia binária. Cada criatura é dotada de uma série de identidades, ou provida de referências mais ou menos estáveis, que ela ativa sucessivamente ou simultaneamente [...] A identidade é uma história pessoal, ela mesma ligada a capacidades variáveis de interiorização ou de recusa das normas inculcadas (Gruzinski, 2001, p. 53).

É possível substituir o elemento autoral pela taxonomia dos gêneros para constatar surpreendentemente as similitudes. Os gêneros se “comportam” da mesma maneira. As condições que eles apresentam poderiam chamar-se de “mestiças”. Mestiçagem e hibridismo vivem tangencialmente nos gêneros literários. A “leitura em vizinhança”, que mencionávamos utilizando as palavras de Tânia Carvalhal, consolida uma operação de típica natureza comparatista. Nessa relação entre as margens e as fronteiras, não há como negar a produtividade da literatura comparada para a análise de literaturas/culturas próximas e vizinhas, cujos processos históricos de formação e consolidação, com posterior autonomia, conferem aos seus integrados uma feição parecida, sem os tornar iguais (Carvalhal, 2003, p. 174).

Os pontos de contato entre fronteiras dos gêneros respeitam a natureza própria do hibridismo, isto é, não uma total integração e reabsorção dos elementos em jogo, mas uma coexistência no cruzamento, uma predileção mais pelo deslocamento de signos simbólicos do que de uniformidade. De fato, já Tynianov, nos anos 1930, não concordava com uma história da literatura linear, mas apostava em um


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desenvolvimento “por saltos”. As novas categorias dos gêneros nascem justamente dessas fronteiras, talvez inexplicáveis, como os desvios, os “erros”, os atalhos casuais, a utilização arbitrária dos materiais de conhecimento do autor. Assim, as fronteiras, por meio da porosidade estrutural com que se apresentam, evitam a automatização do literário e o renovam a partir de dentro, reavaliando discursos não canônicos e procedimentos interdisciplinares, renovando formas vetustas ou introduzindo diálogos extraliterários. É, em outras palavras, a força ainda atual da problemática dos gêneros: “o gênero como sistema pode, dessa forma, oscilar. Ele surge [...] e cai, se transformando nos elementos de outros sistemas” (Tynianov, 1929, p. 26), afirma Tynianov. Das cinzas dessa alteração e contrafação, as fronteiras ressurgem, reafirmando-se em novos paradigmas, em novas genealogias. A hibridez dos gêneros não é monstruosidade, mas um novo organismo que vibra “das inépcias da produção literária, dos cantos mais recônditos” (Tynianov, 1929, p. 27) – das dobras, para usar um termo caro a Deleuze – que fogem do esconderijo para se mostrar por completo. Resulta assim a tarefa do comparatista como explorador de fronteiras, em busca, hoje, de revelar figuras e modelos híbridos, assim como reescrever a história da literatura como história de rupturas e paródias. Justificar-se-ia, também, dessa forma, a tentativa de uma Weltliteratur, como aspirava Goethe, que deslumbra ainda hoje, numa época de re-pensamentos globais e de retorno de afirmações dos universais. Um fenômeno como o barroco, tão decisivo para a cultura e para a literatura do continente latino-americano, em particular, do Brasil, articular-se-ia não tanto em um conjunto utópico de textos falantes de forma homogênea, mas, sim, como busca de uma pluralidade necessária às formações das entidades nacionais. A literatura mundial – conforme as palavras de Haroldo de Campos – não poderá neutralizar-se, nem esvaziar-se “em um otimismo messiânico, em um horizonte apokatástico do surgimento inelu-


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tável de uma comunidade ideal alienada, livre da maldição pós-edênica e babélica de separação das línguas e da divisão do trabalho” (Campos, 1997, p. 107). Uma literatura mundial alimentar-se-á hoje, ao contrário, como afirma Krysinski, “pela heterogeneidade de suas obras, das línguas que ela fala e das paixões que a sustentam” (Krysinski, 1995, p. 151). Krysinski, Haroldo de Campos e Tânia Carvalhal coincidem, apesar de suas diferentes perspectivas de leitura, com o fato de os comparatistas trabalharem com “conceitos em constante formação, de equilíbrio instável” (Carvalhal, 2003, p. 106), problematizando assim os cânones literários universais, a formação e diversidade de gêneros, o lugar do hibridismo como ontológico aos processos estéticos e a necessidade da literatura comparada como campo epistemológico. É nesse sentido que Tânia Carvalhal sintetiza de maneira apropriada a importância de ultrapassar “os limiares das diversas categorias, de gêneros e de formas de aproximação ao literário” e examiná-los, explorá-los, como sugeríamos, para entrever o atuar na investigação das fronteiras com o que realmente compõe o fenômeno literário: “questões que decorrem do confronto entre o literário e o não literário, entre o fragmento e a totalidade, entre o similar e o diferente, entre o próprio e o alheio” (Carvalhal, 2003, p. 11).

Gingando no final Para os gregos, falar de hibridismo (cuja raiz, hybris, pode significar tanto ultraje quanto orgulho exorbitante) correspondia a uma violação das leis da natureza. Híbrido é também o anômalo, o misturado: “o híbrido mistura cores, idéias e textos sem anulá-los” (Schüler, 1995, p. 11), permitindo que o discurso que não aceite a lógica viva nas margens e das margens. O híbrido procura uma “terceira margem”, poderíamos dizer, tomando emprestada uma expressão de Guimarães Rosa, ou um espaço in-between, con-


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forme as palavras de Homi Bhabha: “não se esqueça do espaço fora da frase” (Bhabha, 1992, p. 455). Assim é explicada a teoria do hibridismo literário de Homi Bhabha por Lynn Mario Menezes de Souza: Lembrar o espaço “fora da frase” é recusar a ditadura do enunciado normatizado, pronto e fechado; é lembrar do contexto, da história da ideologia e das demais condições da produção da significação que constituem o momento de enunciação e, portanto, que contribuem para a constituição do sentido do enunciado. É nesse espaço intersticial e particularizante que se desfazem os desejos substantivos pela universalização, pela homogeneidade e pela estabilidade; portanto, é nesse mesmo espaço que a diferença e a alteridade do hibridismo se fazem visíveis e audíveis (Menezes de Souza, 2004, p. 131).

Não há dúvida de que o questionamento da rigidez dos gêneros literários tem encontrado um terreno fértil no século XX, em particular, na região cultural latino-americana e nas áreas pós-coloniais por causa da transformação e da tomada de consciência de um imaginário singular e novo, posto que periférico. Um primeiro fenômeno emergente dessa configuração híbrida dos gêneros é uma textualidade vivenciada e enriquecida pelas linguagens da oralidade, numa forma de transcendência e superação do escrito como “puro estilo”. Daqui, por exemplo, a codificação da música popular brasileira como canção e, ao mesmo tempo, como discurso poético de protesto e de presença cultural esteticamente elevado; também é notória a recuperação da simbolização oral das culturas latino-americanas, cuja pluralidade étnica incorpora falares, línguas, modus vivendi, ditados que superam as fronteiras do regional para aproximar-se, de maneira interdisciplinar, da antropologia e da poesia como campos de conhecimento porosos e já não esquematizados. É o caso da narrativa de Guimarães Rosa, de Arguedas, de Luandino Vieira e de Mia Couto, só para citar alguns nomes de relevo. Poderíamos apropriar-nos da célebre imagem de Dona Flor, do ro-


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mance de Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridos, para observar, na “ginga” da protagonista, a graça de um movimento oscilatório que não tende a fusionar elementos disparatados, mas a co-estar, co-existir sem que os conflitos sejam ultrapassados: não há necessidade disso, diria Benjamin Abdala, pois, entre os dois maridos, a imagem simbólica de Dona Flor está entre “duas posturas de gênero, duas culturas, duas maneiras de ser que se aproximam em função do sujeito, mas que também se opõem conflituosamente” (Abdala, 2004, p. 16). Junto com Dona Flor, outro herói da literatura brasileira participa da configuração do gênero híbrido, contribuindo para criar, por meio dessa mixagem cômica e carnavalesca, paródica e antropológica, o emblema nacional: Macunaíma, de Mario de Andrade. Caracterizada por “fratura e precariedade”, a identidade nacional coincide, nesse caso, com a formação de um romance e de um “caráter” trágico (posto que sem uma origem reconhecidamente única) e burlesco (porque aceita a lacuna da origem, com um ridículo processo de conhecimento). Esse hibridismo, que foi visto, sobretudo, em termos culturalistas, de transculturação narrativa (Angel Rama), heterogeneidade multitemporal (Canclini) ou totalidade contraditória (Cornejo Polar), é, a nosso ver, um fenômeno originariamente literário; é o que chamaria de “hibridismo genético”, no sentido de um hibridismo de concepção: o gênero literário é, desde o começo, impuro, misturado, plurilíngue, mestiço, errático e gerador de culturas constantemente movediças. Para resistir à função nomenclativa ou taxonômica, o gênero deve se distanciar e criar, desde o começo, uma alternativa à norma; dessa maneira, o gênero é errático e, “ao gerar novas formas de trânsito e de intercâmbio cultural, essas culturas em errância favorecem a formação de novas identidades interativas e hibridas” (Fantini, 2004, p. 175), isto é, novas formas genéticas que se perpetuam hibridamente. São gêneros híbridos, hoje particularmente em voga, a literatura e a escrita de viagem, com a sua variante de noma-


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dismo, escritas marginais como o romance gótico, que oscila, apesar de seu modelo manter-se sempre uniformizado, entre ideais românticos, ruptura com o racionalismo e inquietações do passado medieval; ou como a ficção utópica e científica que, se abrindo a recentes tecnologias, assinala para uma personagem inovadora, híbrido por excelência, o cyborg, (herói semi-humano, sob espécie de máquina) que sacode a ilusão de estabilidade heróica e ficcional tradicional e atua sobre o pensamento filosófico apocalíptico de uma crise irrefreável da subjetividade (Fantini, 2004, p. 175).

Todo ato de paródia ou de hibridismo corresponde sempre a um momento explícito de crise. No começo da modernidade, as fronteiras entre os campos de conhecimento se configuravam como rígidas, delimitando o saber e o reconhecimento da cultura alheia em disciplinas e métodos setorizados, como se os vasos comunicantes da experiência humana fossem obstruídos por um empirismo de derivação positivista. Também o híbrido (e com ele, o hibridismo cultural) que discutimos representa outra faceta da mesma crise. O hibridismo está, de fato, bem longe de ser identificável com um estado de graça. O comparatista tem de aguçar as antenas intelectuais em sua posse, e acolhê-lo polemicamente, dialogicamente, poder-se-ia dizer, referindo-se a Bakhtin. O híbrido gera, portanto, novos espaços comunitários, novas comunidades dialógicas, as quais, como bem lembrado por Benjamin Abdala, reescrevem os processos culturais das histórias das literaturas e das nações: “o híbrido, ao contrário, é marcadamente heterogêneo: um processo em contínua transformação, sem um ponto de chegada” (Fantini, 2004, p. 19). Faltando a meta, o comparatista migra, erra, desloca-se ainda perturbado (justamente perturbado). Talvez a máscara da utopia deste começo de século se revele no conceito de hibridismo, já que ele “favorece o entendimento entre pessoas e povos desde que não se reduza a um pastiche sem história” (Fantini, 2004, p. 19).


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Na região austral das Américas, os processos discursivos pós-utópicos (ou, se quisermos, pós-modernos) estão encorajando um achatamento preocupante da significação e das repercussões da literatura comparada. A ausência das práticas comparatistas compromete o conhecimento do outro; portanto, repensar a literatura (mundial e latinoamericana) deveria ser associado à problemática cultural das nações e das identidades. Tânia Carvalhal escreve: “Propor a comparação dos comparatismos é, efetivamente, reconhecer que a literatura comparada é hoje plural” (Carvalhal, 1997, p. 11). Estamos convencidos da força que permanece ainda na configuração dos gêneros literários dentro dessa dinâmica inquieta, concedendo vitalidade à crise. Por outro lado, a história da literatura se resume na história dos trânsitos e mudanças entre um gênero e outro, entre fronteiras ultrapassadas e fronteiras invisíveis nas quais se vivencia. Isso permite, paradoxalmente, que a crise seja geradora de novas fronteiras, novos híbridos, novos contatos (a crioulização visada por Edouard Glissant). As “imperfeições” e os hibridismos dos gêneros literários devem servir para refletir, como sugere Segre, sobre “a crise verdadeira”, que é “aquela do Eu, do mundo e de suas relações” e “talvez antecipar uma solução (se ela existe)” (Segre, 1985, p. 278). A tarefa do comparatista atual, para entender os devaneios do eu e da atividade literária e cultural, é distinguir, isto é, historicizar zonas híbridas e indicar margens em tensão entre contrários, procurando a “ansiedade” da coexistência, como desejo utópico e proposta cordial.

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A imaginação do passado: uma contribuição de Alexandre Eulalio à crítica literária brasileira Silvia Quintanilha Macedo*

RESUMO: O maior interesse deste trabalho é analisar a trajetória intelectual de Alexandre Eulalio, no sentido de compreender sua poética crítica, que incorpora o exercício do jornalismo cultural somado à influência do meio acadêmico. O estudo do texto “Imaginação do passado”, escrito na maturidade do autor, ilustra como se orienta a inquietação do crítico principalmente quando defende o ponto de vista histórico na apreciação da literatura, sem abandonar a perspectiva estética. PALAVRAS-CHAVE:

Alexandre Eulalio, trajetória intelectual, poética crítica, teoria literária, jornalismo cultural. ABSTRACT: This research intends to analyse Alexandre Eulalio’s

intelectual trajectory so as to comprehend his critical poetics, which encompasses cultural journalism and academic environment influence. The study of the text “Imaginação do passado”, a text which was written when the author was more mature, illustrates the path of the critic’s restlessness, especially when he defends the historical point of view in literary appreciation without abandoning the aesthetic perspective. KEYWORDS:

Alexandre Eulalio, intelectual trajectory, critical poetics, literary theory, cultural jornalism.

Um crítico muito original

Centro Universitário FIEO (Unifieo). *

Alexandre Eulalio (1932-1988) inicia sua obra de crítico e estudioso da cultura como jornalista e, um pouco mais tarde, como editor da Revista do Livro, publicada a partir de 1956 pelo Instituto Nacional do Livro. No meio da década de 50, abandona o curso universitário e começa a atuar em jornais do Rio, São Paulo e Minas. Redator-


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chefe da Revista do Livro, elaborou uma agenda rica de publicações inéditas, além de contribuir com a redação de artigos e ensaios. À atividade editorial seguem muitas outras ao longo dos anos: tradutor, prefaciador, resenhista de vários livros, conferencista, leitor brasileiro na Itália, professor convidado de universidades estrangeiras, funcionário da burocracia estatal ligada à cultura e, finalmente, professor no departamento de teoria literária da Universidade de Campinas. A obra deixada por Alexandre Eulalio merece, sem dúvida, um estudo que detalhe sua importância, avalie sua profundidade e alcance no campo da história da ensaística brasileira. Produção recente no conjunto das realizações de nossa crítica, traz uma contribuição que sintetiza a vivência do jornalismo, sem perder de vista o universo da experiência acadêmica e o da erudição. Na tese de doutoramento Alexandre Eulalio, retrato de um intelectual singular,1 estudo a ensaística crítica do autor e a trajetória do intelectual participante da vida cultural do país. Uma das proposições desse doutorado consiste em demonstrar que a especificidade da produção eulaliana resulta do processo de renovação da imprensa cultural que ocorre durante as décadas de 1950 e 1960. A influência do meio acadêmico e dos experimentos vanguardistas dos anos 50 atuará de modo decisivo na imprensa do período, contribuindo para a formação do crítico. A incursão de Alexandre por revistas e jornais resulta em uma maneira própria de conceber o texto crítico, que assume a forma ensaística ou ainda a de resenha, artigo, prefácio. Vista em conjunto, sugere, à primeira vista, uma produção feita de fragmentos, “em pedaços”, como o próprio Alexandre chamou a obra de Brito Broca. Publicados postumamente, Escritos,2 Livro involuntário3 e a revista Alexandre Eulalio diletante4 levam a crer no caráter dispersivo dessa obra destinada, em seu princípio, à imprensa, especializada ou não. Mesmo o livro que publi-

Tese apresentada em 2004, com orientação do professor doutor Antonio Dimas, na área de Literatura Brasileira, da FFLCH – USP.

1

EULALIO, Alexandre. Escritos. (Orgs.: Berta Waldman, Luiz Dantas). Campinas: Unicamp; São Paulo: Unesp, 1922.

2

EULALIO, Alexandre. Livro involuntário: literatura, história, matéria e memória. (Orgs.: Carlos Augusto Calil, Maria Eugenia Boaventura). Rio de Janeiro: UFRJ, 1993. 3

CALIL, Carlos Augusto; BOAVENTURA, Maria Eugenia (Orgs.). Alexandre Eulalio diletante. Remate de Males, Revista do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, Campinas, 1993.

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ca, A aventura brasileira de Blaise Cendrars, guarda a composição de caráter fragmentário, do escritor que associa a prática da escrita à da colagem, do recorte e da montagem. Mas é bastante particular a natureza dispersiva dos escritos de Eulalio. A fortuna crítica que aborda a produção eulaliana dá a medida do papel exercido pela imprensa na formação do crítico, bem como seu contato com o pensamento universitário, principalmente aquele fundado na História. Essas duas linhas diretivas afirmam-se em “A imaginação do passado”, pequeno texto no qual Alexandre Eulalio discute a medida de valor para o trabalho desempenhado pela imprensa e pela universidade. Ambas vinculam-se à história da moderna crítica literária brasileira, vista segundo a mudança de rota dos estudos literários que substituem a imprensa pelo mundo acadêmico. Talvez não seja exagero conceber a crítica de Alexandre Eulalio como um exercício de equilíbrio entre uma prática que se despede e outra que se consolida dentro do universo intelectual brasileiro. Portanto, é oportuno verificar como a apreensão dos novos instrumentos de análise oferecidos pela teoria literária sofre, no interior do pensamento eulaliano, uma pressão de ordem mais pessoal, francamente possível para quem ainda não se desligou totalmente do jornalismo cultural. Explicam melhor esse duplo movimento o conceito de história e o de história literária; ambos se articulam com a matéria estudada pelo crítico, escolha que muitas vezes ocorre a partir de um sentimento de ordem afetiva e pessoal. É o caso, por exemplo, dos laços familiares que prendem Alexandre Eulalio a Diamantina, resultando no interesse sempre renovado do autor pela obra de um dos mais ilustres diamantinenses, o historiador Joaquim Felício dos Santos; a causa do Império merece, igualmente, tratamento diferenciado: muitos monarquistas históricos, como Eduardo Prado, Afonso Celso e mesmo o príncipe-herdei-


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ro, Dom Luís, figuram como protagonistas de estudos eulalianos. Embora dialogue com a pesquisa universitária representada pela divulgação do new criticism e pela publicação de Formação da literatura brasileira, o ensaísta atribui à história e à crítica literárias um tratamento que não dispensa a antiga prática jornalística à maneira de Brito Broca, um dos mais caros interlocutores do autor. A presença de Alexandre Eulalio na Revista do Livro, durante quase dez anos, contribui para a realização de um projeto literário-cultural que marca definitivamente sua produção crítica futura. A linha editorial da Revista do Livro corresponde às expectativas do jovem erudito, que encontra espaço nas seções destinadas à publicação de documentos inéditos ou dispersos em jornais e arquivos. O trabalho do editor consiste na busca, na seleção desses registros e na adoção de uma linha interpretativa que conduza essas escolhas. Para acompanhar os documentos publicados, Alexandre Eulalio redige os textos de apresentação, artigos cujas características particulares e aspectos comuns dão uma fisionomia própria ao conjunto. O recorte extraído da Revista do Livro serve para ilustrar o primeiro grande passo na carreira intelectual de Eulalio. Ela se inicia com o compromisso de recuperar documentos e publicá-los, uma contribuição considerável no campo da história literária brasileira. Entende-se, portanto, a orientação basicamente historiográfica exigida na compreensão de um material ainda pouco explorado pela crítica jornalística daquele momento, interessada em resenhar os lançamentos mais recentes. Daí a importância pioneira de Brito Broca, que vasculhou os arquivos em busca de matéria que ainda não encontrara seu pesquisador. O ingresso de Brito Broca na Revista do Livro confirma a sintonia entre o jovem editor e o velho jornalista. Esses textos de juventude também conduzem ao encontro entre crítica e história literária. Isso significa abor-


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dar o direcionamento adotado pelo escritor nos documentos escolhidos para a publicação. Explorar o valor desses escritos significa rastrear as informações que compõem o quadro das ideias, do gosto estético, das relações sociais e familiares de uma determinada época. Para realizar essa tarefa, Alexandre Eulalio segue o caminho teórico aberto pelo livro Formação da literatura brasileira, publicado justamente naquela ocasião por Antonio Candido. A Revista do Livro empreende um trabalho de recuperação da memória cultural brasileira, de acordo com uma tradição construída sobretudo pelo conjunto de obras, autores e gêneros secundários, matéria essencial da pesquisa eulaliana e aspecto importante da teoria de Antonio Candido. A produção do crítico ganha ainda espaço nos cadernos culturais da grande imprensa, onde ocupa a função de jornalista e escritor de matérias bastante diversificadas. Entretanto, tais artigos guardam sempre a marca particular do autor interessado na história literária e cultural do Brasil. Estudos que o escritor dedica a Machado de Assis, particularmente ao romance Esaú e Jacó, refletem as obrigações do jornalismo literário, mas também a abordagem minuciosa e detalhista de um crítico que sempre valorizou um cânone muito particular. Neste convive o interesse pelo maior escritor brasileiro e também um imenso empenho dedicado aos artistas de província. Interpretar a poética crítica de Alexandre Eulalio significa acompanhar certas escolhas temáticas de seu agrado, como aquela que privilegia o memorialismo, a vanguarda, as obras da província; certos procedimentos metodológicos concebidos a partir da história literária e cultural, da interpenetração entre as artes, da editoração. Na trajetória desse autor singular, o trabalho do crítico comporta a invenção de um mundo particular, fragmentos recolhidos de tantas fontes, tantas leituras, reunidas pelo desejo de descobrir o lugar de cada parte na construção da obra, da cultura, da própria vida.


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A efervescência da década de 1950, marcada pela qualidade dos cadernos culturais, é reconhecida pelo próprio crítico na introdução que escreveria anos mais tarde para o texto de juventude “Roteiro de Jorge de Lima” (Eulalio,1993, p. 123). Aliada à lembrança pessoal, a referência às condições oferecidas pelos cadernos literários da época amplia o valor do relato. Nele se afirma o prestígio do Diário Carioca, que, ao lado do Correio da Manhã, era o mais conceituado do Rio de Janeiro. À frente da coordenação do Diário, figuram Pompeu de Souza e Prudente de Moraes, neto, este último responsável pela acolhida ao “plumitivo” (Eulalio, 1993, p. 123). Alexandre Eulalio parece pensar em si mesmo ao considerar o período, marcado pela movimentada produção dos cadernos culturais. Incluem-se aí: O Jornal, o Diário de Notícias, o Jornal do Commércio, A Noite, o Jornal do Brasil – “suplementos sem os quais, aliás, será impossível fazer a sério a história intelectual do período” (Eulalio, 1993, p. 123). Iniciando muito jovem na imprensa, em 1952, Alexandre Eulalio começa a publicar alguns artigos na universidade e também em jornais de grande circulação, entre os quais ganham destaque o Correio da Manhã e O Globo, segundo o levantamento proposto por Carlos Augusto Calil e Maria Eugênia Boaventura na revista Remate de Males, em número especialmente dedicado ao estudioso diamantino.5 A projeção ocorre de fato com o ingresso do escritor na Revista do Livro em 1956, fundada nesse mesmo ano, que também viu nascer os suplementos literários de O Estado de São Paulo e do Jornal do Brasil (Cf. Martins, 19771978, p. 365-366). A crítica literária brasileira, “seguindo o ciclo do jornalismo, desde o século XIX, a caixa de ressonância da literatura do país”, foi, segundo Benedito Nunes, “regularmente veiculada pelos jornais das duas metrópoles, Rio e São Paulo (Correio da Manhã, Diário de Notícias, A Manhã, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil) – antes que seus autores as enfeixassem em livros” (Nunes, 2000, p. 61).

Nascido no Rio de Janeiro, em 18 de junho de 1932, filho de Elisário Pimenta da Cunha (1890-1961) e de Maria Natália Eulalio de Sousa da Cunha (1891-1974), Alexandre Magitot Pimenta da Cunha resolveu por conta própria trocar sua cidade de origem por Diamantina. Substitui o nome Magitot, homenagem do pai dentista ao patrono de sua profissão, pelo sobrenome Eulalio, “uma lembrança do clã materno e mais condizente com o seu obsessivo culto à ancestralidade mineira” (Calil; Boaventura, 1993, p. 323).

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MERQUIOR, José Guilherme. O demônio do perfeccionismo. Remate de Males, Alexandre Eulalio diletante, Campinas, p. 291296, 1993. 6

Quem melhor analisou o poder de influência da História no ensaísmo crítico de Alexandre Eulalio foi José Guilherme Merquior. Na conferência que proferiu sobre o ensaísmo eulaliano, “O demônio do perfeccionismo”,6 conferiu-lhe uma posição exemplar dentro da crítica literária brasileira, por causa do compromisso do escritor mineiro com uma tradição crítica que Merquior denomina explicativa, voltada para os aspectos contextuais da obra. Apoiado no conceito de crítica explicativa e interpretativa, Merquior explicita a participação de Brito Broca e Augusto Meyer como os mentores, no plano nacional, da formação do crítico diamantino, ajustada ao modelo de crítica que sintetiza explicação de ordem histórica e interpretação de caráter formal. Augusto Meyer comparece relacionado ao aprendizado de sensibilidade da forma e da leitura imanente do texto, inspirada na estilística. A valorização pioneira da obra de Brito Broca ilustra o interesse de Alexandre Eulalio pelo enfoque na vida literária como meio de enriquecer a crítica interpretativa, voltada para os condicionamentos sociais. A ênfase no contexto, no entanto, supera, de acordo com Merquior, o modelo inspirado em Brito Broca, porque integra o senso da forma e a atenção mais apurada para o estético. O conferencista não descarta a outra parte, interpretativa, de caráter formalista, na produção do homenageado, cuja dinâmica sintetiza aquelas duas dimensões propostas da crítica (explicativa e interpretativa), de modo a não incorrer no erro de “explicar” a obra do ponto de vista externo, justapondo explicação e interpretação. Alexandre tratou de negar a legitimidade dessa separação entre forma e processo social, e o fez soberanamente. Essa foi uma de suas contribuições à crítica brasileira, talvez por mobilizar armas de erudição incomuns, com um co-


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nhecimento de literatura e época ímpar no contexto nacional (Merquior, 1993, p. 292).

Já em meados da década de 1940, a cena intelectual brasileira delineia um quadro de confronto entre as duas instâncias, representadas, de um lado, pelo bacharel letrado que faz do jornal veículo de sua reflexão e, de outro, pela figura do especialista, crítico universitário cuja produção aparece vinculada ao livro e à atividade de professor. Flora Süssekind ilustra essa tensão, lembrando a campanha que Afrânio Coutinho move, na época, contra os rodapés, e seu conflito com Álvaro Lins, o maior representante dessa modalidade crítica (Süssekind, 1993, p. 13). A definição de Flora Süssekind, segundo a qual o perfil do crítico moderno brasileiro se originou a partir da tensão entre o crítico-jornalista e o crítico-scholar, cabe perfeitamente para compreender a posição de Alexandre Eulalio, sem perder de vista que essa especificidade deriva de uma conjuntura precisa, relacionada a “um período de estreitamento de laços entre a crítica universitária e os suplementos, entre literatura de invenção e grande imprensa” (Süssekind, 1993, p. 28). A fermentação do ambiente cultural produzida nas redações de jornais e revistas pode ser certamente avaliada pela variedade de posições e representatividade de seus autores, já a partir década de 1930, marco da crítica moderna no Brasil. Como reconhece Flora Süssekind, se o solo comum da crítica jornalística abriga nas colunas exclusivas ou pés de páginas nomes importantes da inteligência brasileira, as posturas, entretanto, a respeito do conceito de crítica e de seu exercício nem sempre são convergentes. Sem dúvida, o time que frequenta os rodapés e suplementos literários é de primeira linha: Mário de Andrade, Tristão de Ataíde, Sérgio Milliet, Lúcia Miguel Pereira, Augusto Meyer, Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Álvaro Lins e outros. O conflito central de posições que Flora Süssekind aponta refle-


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O título “(à guisa do prefácio) A imaginação do passado” é uma atribuição à livre montagem que os organizadores do Livro involuntário realizaram no texto da comunicação “A crítica literária contemporânea”. Editora/ Bienal Nestlé, 1986. p. 119127. 7

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te a polêmica entre a geração dos “homens de letras” e a dos pesquisadores universitários, nos decênios de 1940 e 1950. Mas o arco de diferenças abriga um debate intenso de posicionamentos diversificados. Na prática diária, em jornais e revistas, Alexandre Eulalio percebe o alcance das transformações culturais e mesmo admite, no ensaio “A imaginação do passado”, que a imprensa não precisa ceder o espaço da reflexão sobre a literatura e a arte para a universidade. Em “A imaginação do passado” (Eulalio, 1993, p. 97 16), texto escrito na maturidade e um dos poucos de caráter teórico na bibliografia do autor, aparece esboçada uma síntese especial entre jornalismo literário e especialização universitária. Trata-se de um pacto de convivência, a fim de melhor aparelhar a crítica para comparecer “com agilidade e competência no enfrentamento de problemas até agora inéditos do seu ofício” (Eulalio, 1993, p. 10). Torna-se evidente, portanto, a falsidade da oposição maniqueísta que uma apologia pro domo promoveu ao contrastar emblematicamente o espaço degradado, frustro e árido do jornal com um idealizado espaço de laboratório universitário, habitat ideal da nova crítica. Oposição que não se mantém de pé e é inteiramente alheia à realidade factual, embora também seja verdade que a imprensa diária jamais poderia ser, como jamais pretendeu, nem poderia, a estufa propícia onde as catléias raras do mais complexo ensaísmo crítico iriam florescer. Não fiquem esquecidas, portanto, as mediações constantes entre as duas áreas, inclusive o vivíssimo intercâmbio de estímulos que ainda hoje tem lugar entre uma e outra (Eulalio, 1993, p. 10-11).

Desse “espaço frustro e árido” fazem parte diferentes segmentos da intelectualidade, assim representados: “o articulismo avulso de autodidatas e curiosos”, “o ‘rodapé’ crítico subscrito por alguma autoridade do ramo”, e ainda “movimentos de experimentação estética”. Se continuarmos a leitura do texto, veremos confirmar os respectivos perfis incluídos no processo de formação da crítica


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jornalística e as diferentes possibilidades de trocas que essa convivência estabelece. Nessa linha, Alexandre Eulalio cita os “formandos de Letras da Universidade Anos 40”, uma intervenção que se manifesta na imprensa por meio das especializações de cada um, novidades que começarão a ser absorvidas também pela comunidade não iniciada na alquimia acadêmica [...] colaboradores mais alertas e inquietos, que na imprensa levam avante empiricamente reflexões e estudos sobre o temário da cultura nacional (Eulalio, 1993, p. 10).

Embora o escritor ressalte, sempre genericamente, a importância do conjunto sem referir a si mesmo, é evidente a correspondência entre ele e “os colaboradores mais alertas e inquietos”, e com os articulistas autodidatas. “Foro animado e apaixonado de debates intelectuais”, assim Alexandre Eulalio define a crítica exercida na imprensa, que passa a contar com a especificidade do conhecimento universitário e, com isso, torna-se mais apta para enfrentar as mudanças exigidas pela nova conjuntura intelectual. A atuação das vanguardas, “que também reabre espaço experimental na imprensa do tempo”, completa esse quadro de manifestações decisivas, que tornam as revistas e jornais um espaço privilegiado de discussão cultural. Com Alexandre Eulalio à frente, a Revista do Livro garantiu, em suas páginas, a presença dos artistas ligados ao Concretismo e a exegese das manifestações literárias contemporâneas, podendo então definir-se como “publicação destinada aos estudos de história literária, erudição e pesquisa bibliográfica”, sem entretanto descuidar “dos problemas que agitam a nossa literatura no momento”. A explicação encontra-se no volume 10 e serve de introdução à polêmica instalada por ocasião do lançamento do Concretismo.


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Se a imprensa é o lugar da crítica, a História figura como meio de sua realização. É o que Alexandre Eulalio sustenta em “A imaginação do passado”, a partir do qual discute a solução de privilegiar a História, sem abrir mão da forma literária: Será neste ponto que a análise concreta do texto individual e a generalização organizativa da história literária podem se integrar e se completar – a forma da História integrando a História-das-Formas. Trata-se do momento de reintegração do texto no contexto (Eulalio, 1993, p. 11).

É o próprio ensaio, “Imaginação do passado”, que melhor explica essa convergência entre História e forma literária. A solução encontrada para se chegar à “história das ideias, da cultura e história intelectual de uma coletividade” deriva do poder de abrangência conferido pelo conhecimento histórico: “Abertura de horizonte, ela é fruto de um súbito iluminar de perspectivas graças ao concurso de novas informações de origem diversas” (Eulalio, 1993, p. 11). De acordo com Alexandre Eulalio, tal abertura falta à crítica contemporânea em vista do estado de “compartimentação sufocante” em que se encontra. Como solução, o ensaísta mineiro sugere o caminho proposto pela “indispensável confluência de saberes complementares”. Eulalio parece estabelecer uma relação de dependência entre a noção de “pensamento ensaístico englobante” e “minuciosa reflexão estética”, assim como antes tratara a questão em termos semelhantes: “análise concreta do texto individual”, “levantamento crítico do caso particular” – termos sempre associados à ideia de “generalização organizativa da história”, “espaço abrangente da história”. A proposição finalmente se confirma: “análise formal e interpretação histórica muito concretas se defrontem numa instância dialógica cheia de intensidade e que assim anule provisoriamente os feixes de interseção de diacronia e sincronia” (Eulalio, 1993, p. 13). A proposição que leva em conta um movimento integrado entre sincronia e diacronia pede “rigoroso aparato


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filológico”, “técnicas de explicação do texto através da leitura colada, da close reading, dando toda ênfase à consciência do fato literário, enquanto específico fenômeno comunicativo” (Eulalio, 1993, p. 14). A partir desse procedimento se estabelecem as “condições de tempo, lugar, mentalidade, alusões específicas”. Portanto, não se trata aqui de privilegiar “generalizações pseudo-englobantes” (Eulalio, 1993, p. 14). Estamos no centro do problema. Isto porque é importante para Alexandre Eulalio formular o conceito de crítica literária como totalidade que reivindica a tradição cultural, para em seguida associá-la às conquistas do presente: Daí a crítica literária se constituir idealmente o sítio em que contemporaneidade e sucessão dos tempos se integrem, e onde se tenha lugar, com rigorosa verossimilhança, a imaginação do passado, segundo os indícios que amorosa arqueologia do saber vai permitir efetuar (Eulalio, 1993, p. 14).

A questão da síntese de saberes complementares e diversificados, vista de modo tão insistente por meio da generalidade e abrangência do pensamento histórico, integra forma e História: “integração do conhecimento que é, ao mesmo tempo, resenha das formas e história social dos meios de criação” (Eulalio, 1993, p. 15). Importa assinalar a consciência de uma forma historicizada, integradora, que o crítico manifesta sobretudo quando se refere à “busca intrínseca da poeticidade do texto, vale dizer, da complexidade compositiva que tem lugar na peça observada” (Eulalio, 1993, p. 15). Logo em seguida, a ideia de “problematização poética” confirma como Alexandre Eulalio de fato concebe uma noção unificadora da forma artística: “a sua [a obra analisada] problematização poética, ou seja, [a avaliação] dos seus níveis cultural, existencial e intelectual. Questões implícitas na linguagem dessas obras” (Eulalio, 1993, p. 15).


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Para chegar a essa síntese, o crítico aconselha o afastamento da especialização e faz a defesa da interdisciplinaridade, do poder abrangente do conhecimento e do diálogo entre as disciplinas e também entre as artes. O enriquecimento da crítica literária tem que se dar assim, em nosso meio, pela interpenetração não apenas com a Sociologia [...] mas principalmente com a História e a Antropologia, muito em especial com esta última, com a Psicanálise e com o urgente conhecimento da teoria e da prática das outras artes. Não se trata da proposição de um novo Ecletismo mas da instrumentalização de saberes complementadores que contribuem de modo decisivo para a operação hermenêutica (Eulalio, 1993, p. 15) (Grifo nosso).

Nos anos em que Alexandre Eulalio surge como o jovem redator da Revista do Livro, duas questões movimentam o debate em torno do conceito de crítica. A primeira delas expressa a insatisfação dos scholars diante do exercício crítico calcado no impressionismo, no biografismo, falhando no cumprimento de exigências do pensamento científico. A segunda questão reflete o triunfo dos scholars, mas novamente outro dilema aparece, dessa vez configurado no confronto entre as posições de Afrânio Coutinho e Antonio Candido. Embora ambos se voltem para a historiografia literária e para as relações entre literatura e história social, no “caso de Afrânio, porém, trata-se de pensar tais relações com a supressão parcial de um dos termos (a ‘história’) e a afirmação de uma autonomia plena do literário” (Süssekind, 1993, p. 22). Antonio Candido, ao contrário, importa-se com as relações entre literatura e sociedade e ainda com “a adoção de uma crítica que trabalhe dialeticamente tais relações” (Süssekind, 1993, p. 23-24). Não há dúvida de que a trajetória intelectual de Alexandre Eulalio seja influenciada pelo interesse que os estudos histórico-literários despertam em torno dos anos 1940 e 50. João Alexandre Barbosa considera Antonio Candido


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e Afrânio Coutinho os dois críticos que “mais procuraram pensar, por essa época, de modo teórico e sistemático, o problema das relações entre literatura e história, no quadro da literatura brasileira” (Barbosa, 1996, p. 34). Como o texto “A imaginação do passado” deixa claro, não existe uma prevalência do estético na relação entre história e literatura, proposição defendida por Afrânio Coutinho, que segue a orientação do new criticism ao enfatizar a noção da obra literária como estrutura estética. A proposta de Eulalio parece afinada com aquela concebida por Antonio Candido, de acordo com a qual o texto é o resultado da integração de elementos expressivos e elementos não literários. Na Formação da literatura brasileira (1959), que é “um livro de crítica, mas escrito de um ponto de vista histórico”, Antonio Candido defende e demonstra pela prática analítica, com a clareza de sempre, a legitimidade do ponto de vista histórico no estudo da literatura, sem que isto signifique o abandono da perspectiva estética (Arrigucci, 1999, p. 244).

A referência “saturado de experiência histórica”, aplicada a Alexandre Eulalio, é usada por Merquior um pouco antes de ele estabelecer a distinção entre historista e historicista. Cabe ao primeiro, ao contrário do segundo, não revelar “qualquer preocupação com o marco do processo histórico e com grandes etapas da evolução histórica”. Historista, Alexandre Eulalio demonstra uma disposição profunda para mergulhar num contexto específico, produzindo uma crítica eminentemente detalhista, que dispensa uma tese central e incorpora uma massa de conhecimentos históricos extremamente específicos. Disto resulta a importância das notas, como meio de conduzir um emaranhado de vias interpretativas e hipóteses explicativas (Merquior, 1993, p. 294-295). O vasto repertório que garante a Alexandre Eulalio uma maneira particular de conduzir a reflexão crítica não


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prioriza uma visão da obra reduzida a documento da realidade social ou enfocada apenas em seus elementos de fatura. Como bem observou Vinícius Dantas, Na mania detalhista do perito, havia uma porção de devaneio e, principalmente, paixão pela matéria tal como ela é produzida e plasmada pela imaginação de um fazer técnico. Havia igualmente o desejo de encontrar algo concreto que justificasse a realidade menos palpável, mas realidade ao quadrado, da criação literária. Alexandre queria assim ensinar a ler a tessitura dessas relações múltiplas e históricas com lupa e paciência (Dantas, 1993, p. 333).

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Alexandre Herculano, Gonçalves Dias e a teoria da história Wilton José Marques*

RESUMO: O presente artigo apresenta alguns aspectos das relações literárias entre Alexandre Herculano e Gonçalves Dias. Tais aspectos são discutidos, sobretudo, em função da influência do texto panfletário A voz do profeta (1836), de Herculano, sobre Meditação (1850), de Dias. Nesta obra inconclusa, além de dialogar textualmente com A voz do profeta, o poeta brasileiro também faz uso da teoria da história do autor português. PALAVRAS-CHAVE: Alexandre Herculano, A voz do profeta, Gonçalves Dias, Meditação, teoria da história. ABSTRACT: This article presents some aspects of the literary relations between Alexandre Herculano and Gonçalves Dias. These aspects are discussed, especially in light of the influence of the pamphleteer text A voz do profeta (1836), by Herculano, about Meditação (1850), by Dias. In this unfinished work, besides establishing a textual dialogue with A voz do profeta, the Brazilian poet also makes use of the theory of History from the Portuguese author. Professor de Literatura Brasileira e Teoria Literária do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Araraquara). Este artigo é parte integrante da pesquisa Gonçalves Dias: o poeta na contramão (literatura & escravidão no romantismo brasileiro), financiada pela Fapesp. *

KEYWORDS: Alexandre Herculano, A voz do profeta, Gonçalves

Dias, Meditação, theory of history.

A missão do vate No Brasil romântico, a principal missão de seus primeiros autores, notadamente os que cresceram à sombra programática de Gonçalves de Magalhães, foi a de configurar os elementos temáticos necessários à definição da imagem e do discurso formador da nacionalidade brasileira. Dessa forma, nos anos subsequentes ao da independência política, e ainda escorada na retomada de um desejado


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nexo histórico, cuja função primordial era a de legitimar o novo status do país, a literatura romântica exerceu um papel fundamental no duplo processo de construção e disseminação da ideia de nação entre os próprios brasileiros. Nesse sentido, não se pode deixar de reconhecer que o aparecimento literário de Gonçalves Dias, sobretudo pela imediata ressonância pública de seus “poemas americanos”, foi igualmente fundamental para o efetivo delineamento de um “nacionalismo propriamente literário” no Brasil. Entretanto, não custa ressaltar, a produção literária gonçalvina não se restringiu apenas à vertente indianista, ela também dialogou com outros temas inerentes à estética romântica, tais como o amor, a relação com a natureza, a religiosidade etc. Em sua obra, o poeta maranhense conseguiu encontrar algumas brechas que lhe permitiram expressar em outros textos, para talvez até melhor compreender o país, as várias e inerentes contradições que, desde sempre, permearam o cerne das relações de poder na sociedade oitocentista brasileira, incluindo-se aí o espinhoso problema da escravidão. Primeiro autor brasileiro que, sem nenhum tipo de hesitação, pode ser reconhecido como essencialmente romântico, e, nesse sentido, dotado de uma sensibilidade que o caracteriza como “gênio”, isto é, aquele que, como verdadeiro vate e profeta, acredita ser o portador “de verdades ou sentimentos superiores aos dos outros homens” e, por isso mesmo, acredita ser “a nítida representação de um destino superior, regido por uma vocação superior” (Candido, 1981, p. 27), Gonçalves Dias não somente assumiu para si a crença de que sua obra era revestida de um caráter de missão estético-social, como se sentiu igualmente responsável para com os destinos do país. Para o poeta, contribuir literariamente para a consolidação do projeto civilizatório brasileiro, alçado de imediato à condição de principal bandeira de luta do movimento romântico local, passava também pelo entendimento e pela consequente expressão das várias contradições sociais, o que, de algu-


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ma forma, já representava um primeiro passo para transformá-las. Em outras palavras, pode-se afirmar que havia por parte do poeta um forte desejo de fazer com que sua obra literária, ecoando até mesmo certos padrões morais de conduta, se tornasse um exemplo importante de intervenção social. Tal desejo se aplica, sobretudo, à Meditação. Nesta obra, como bem observou Antonio Candido, o poeta esboça uma larga visão poética do país, retratando: as suas raças, os escravos, os índios à margem do progresso, a iniquidade da vida política, as dificuldades de acertar – abrindo uma perspectiva otimista com o apelo ao patriotismo, chamado a cumular as lacunas da civilização e compensar, tanto as falhas dos governos quanto a indisciplina dos costumes públicos (Candido, 1981, p. 52).

Contrariando uma possível atitude passiva, num momento em que o silêncio de resignação diante das mazelas sociais do país talvez fosse a opção mais fácil entre os literatos, que, em sua grande maioria, também eram funcionários públicos, Gonçalves Dias, então professor de latim e de história do Brasil no Imperial Colégio Pedro II, não apenas insistiu em tornar pública essa obra de juventude, que, apesar de inacabada, cristalizava sua visão crítica sobre o país, como também escolheu um periódico emblemático para a consolidação do romantismo brasileiro, isto é, a revista Guanabara (1849-1856). Publicada ao longo de 1850, essa obra inacabada de Gonçalves Dias foi provavelmente inspirada tanto em A voz do profeta (1836), de Alexandre Herculano, quanto em As palavras de um crente (1834), de Lammenais. Aqui, no entanto, a despeito da influência do padre francês, a preocupação maior será a de rastrear alguns aspectos das relações literárias entre Herculano e Gonçalves Dias e, por tabela, mostrar que, em Meditação, o poeta maranhense também lançou mão do conceito de teoria de história de Herculano.


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Alexandre Herculano & Gonçalves Dias A história das relações literárias entre Alexandre Herculano e Gonçalves Dias é demarcada, sobretudo, pelo aparecimento, em novembro de 1847, do artigo “O futuro literário de Portugal e do Brasil”, em que o autor português, por ocasião da leitura do livro de estreia do jovem poeta brasileiro, tece algumas considerações sobre as futuras possibilidades literárias da ex-colônia e da ex-metrópole.1 Originalmente, o texto foi publicado na Revista Universal Lisbonense (1841-1853), semanário fundado e dirigido inicialmente por Antonio Feliciano de Castilho e considerado um dos mais influentes periódicos de divulgação do romantismo em Portugal. O artigo de Alexandre Herculano inicia-se com uma longa digressão comparativa entre os dois países. Para ele, o Brasil, destinado pela novidade de seu status de recémliberto, e notadamente influenciado pelo “favor da natureza” a representar um grande papel na história do novo mundo, “é a nação infante que sorri”; ao passo que, ao contrário, Portugal é o “velho aborrido e triste, que se volve dolorosamente no seu leito de decrepidez”.2 Para o romântico português, sempre pessimista em relação aos destinos de seu país, “estas amarguradas cogitações surgiram[-lhe] na alma com a leitura de um livro impresso o ano passado no Rio de Janeiro, e intitulado: Primeiros cantos: Poesias por A. Gonçalves Dias”: Naquele país de esperanças, cheio de viço e de vida, há um ruído de lavor íntimo, que soa tristemente cá, nesta terra onde tudo se acaba. A mocidade, despregando o estandarte da civilização, prepara-se para os seus graves destinos pela cultura das letras; arroteia os campos da inteligência; aspira as harmonias dessa natureza possante que a cerca; concentra num foco todos os raios vivificantes do formoso céu, que alumia; prova forças enfim para algum dia renovar pelas idéias a sociedade [...].

Conta Antonio Henriques Leal que os Primeiros cantos foram parar nas mãos de Alexandre Herculano por meio de seu irmão, o Sr. Ricardo Henriques Leal, que então se achava em Lisboa. Foi o próprio Ricardo que, desejoso de saber a opinião de Herculano, encaminhou o volume de poemas ao livreiro Sr. Bertrand para que este mostrasse ao grande escritor português. “O livreiro – escreve Henriques Leal – assim o fez, e passados dias declarou-lhe o exímio literato transportado de entusiasmo que se lhe não daria de ficar com aquele excelente livro que lhe proporcionara horas tão aprazíveis, e dentro em pouco apareceu na página 5 do tomo VII da Revista Universal Lisbonense de 1847 este artigo tão animador e benévolo” (Leal, 1875, p. 84).

1

Herculano nutria grandes expectativas em relação ao futuro do Brasil, tanto que, dez anos antes do texto sobre o livro de Gonçalves Dias, ele afirmou num artigo, “O Brasil”, publicado em O Panorama, em 30 de dezembro de 1837, que “o Brasil é uma terra de esperanças. [...] À sombra de boas leis, e se alcançar a tranqüilidade interior, aquele império crescerá cada vez mais em navegação e indústria; assim o horizonte do seu futuro brilhante não é difícil de compreender” (Herculano, 1980, p. 173174).

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[O Brasil] É um mancebo vigoroso que derriba um velho caquético, demente e paralítico. O que completa, porém, a prova é o exame não comparativo, mas absoluto, de algumas das modernas publicações. Os Primeiros cantos são um belo livro; são inspirações de um grande poeta. A terra de Santa Cruz que já conta outros no seu seio pode abençoar mais um ilustre filho. O autor, não o conhecemos; mas deve ser muito jovem. Tem os defeitos do escritor ainda pouco amestrado pela experiência: imperfeições de língua, de metrificação, de estilo. Que importa! O tempo apagará essas máculas e ficarão as nobres inspirações estampadas nas páginas desse formoso livro (Herculano apud Dias, 1944, p. 8-14).

Como se sabe, as palavras sinceras de Alexandre Herculano foram fundamentais tanto para a afirmação do projeto poético gonçalvino quanto para a própria consagração de Gonçalves Dias na literatura brasileira. Nesse sentido, quando da reunião de seus três livros de poesia em um único volume batizado de Cantos, em 1857, o poeta maranhense passou a reproduzir o artigo de Herculano na forma de prólogo. No texto que antecede a reprodução do artigo, expressando sua gratidão, ele afirma que: [...] merecer a crítica de A. Herculano, já eu consideraria como bastante honroso para mim; uma simples menção do meu primeiro livro, rubricada com seu nome, desejavao de certo; mas esperá-lo, seria de minha parte demasiada vaidade. [...] [O] ilustre escritor pôs por alguns momentos de parte a severidade que tem direito de usar para com todos, quando é tão severo para consigo mesmo – e, benevolamente indulgente, dirigiu-me algumas linhas, que me fizeram compreender quão alto eu reputava a sua glória, na plenitude do contentamento, de que suas palavras me deixaram possuído (Dias, 1944, p. 7-8).

Antes de tecer apenas elogios, que evidentemente muito lisonjearam o poeta maranhense, o escritor português também se preocupou em fazer uma ressalva em relação aos Primeiros cantos. Na verdade, ele reclama um maior


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espaço no livro para as “Poesias americanas”.3 Para Herculano, como existia “nos poetas transatlânticos [...] por via de regra demasiadas reminiscências da Europa”, Gonçalves Dias deveria ter se ocupado mais com a temática nacional, já que os poemas americanos funcionavam, para o crítico, como uma espécie de verdadeiro “pórtico do livro” (Herculano apud Dias, 1944, p. 13). Semelhante a outra observação feita anteriormente por Almeida Garrett que reclamava de falta de cor local na produção literária dos árcades brasileiros,4 Herculano remata sua opinião observando, como outro sincero conselho de mestre preocupado em indicar o melhor caminho para o aprendiz, que “esse Novo Mundo que deu tanta poesia a Saint-Pierre e Chateaubriand é assaz rico para inspirar e nutrir os poetas que cresceram à sombra das suas selvas primitivas” (Herculano apud Dias, 1944, p. 13). A despeito das futuras consequências que esse artigo terá sobre o desenvolvimento da obra literária de Gonçalves Dias, deve-se, no entanto, atentar aqui que a influência do autor português vinha de longe, relacionando-se com o processo de formação intelectual do poeta brasileiro, notadamente no período em que este cursou Direito na Universidade de Coimbra (1840-1844). Aliás, em 1857, no já referido texto que antecede o artigo de Herculano em Cantos, Gonçalves Dias reconhece tal influência, afirmando com igual sinceridade que: “o escritor [Herculano] conhecia-o eu há muito, mas de nome e pelas suas obras: essas obras que todos nós temos lido e esse nome que eu sempre ouvira pronunciar com admiração e respeito” (Dias, 1944, p. 7).

Herculano e A voz do profeta Em novembro de 1836, aos vinte e seis anos, Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo aparece propriamente para a literatura portuguesa por meio da publicação da primeira série de textos de um panfleto, de nítido teor po-

Os Primeiros cantos, da mesma forma que os demais livros de poemas publicados por Gonçalves Dias, são divididos em três partes: Poesias americanas, Poesias diversas e Hinos. Na primeira edição do livro, em 1847, apenas cinco poemas apareciam sob o nome de Poesias americanas: “Canção do exílio”, “O canto do guerreiro”, “O canto do Piaga”, “O canto do índio” e o “Morro do Alecrim”. Quando da publicação de Cantos (1857), Gonçalves Dias reescreveu o poema “Morro do Alecrim”, dividindo-o em dois: “Deprecação” e “Caxias”.

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Em 1826, Almeida Garrett, ao comentar sobre a produção literária dos árcades brasileiros, no capítulo “Restauração das letras, em Portugal e no Brasil, em meados do século XVIII” do ensaio Bosquejo da história da poesia e língua Portuguesa, que serviu de abertura à coletânea de poemas conhecida como Parnaso lusitano, queixa–se que “as majestosas e novas cenas da natureza” deveriam ter dado aos nossos poetas “mais originalidade, mais diferentes imagens, expressões e estilo”. Para o escritor português, “o espírito nacional” parece estar tolhido pela “educação européia” e que por isso os poetas “receiam de se mostrar americanos” (Garrett apud César, 1978, p. 87-92). 4


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Para Saraiva e Lopes, já em sua mais antiga composição poética, “Semana santa”, datada de 1829, Herculano, dando vida a esse tom profético, enaltece os ideais cristãos e liberais (“Creio que Deus é Deus e os homens livres!”) e, ao mesmo tempo, credita o assassinato de Cristo aos “tiranos e hipócritas” e às “turbas envilecidas, bárbaras, e sevas” (Saraiva; Lopes, 1989, p. 770). 5

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lítico, que ficou conhecido como A voz do profeta. Em fevereiro do ano seguinte, sairia a segunda série, juntamente com uma nova edição da primeira. Além dessas republicações em Portugal, é importante salientar ainda que nesse mesmo ano também foi publicada no Brasil uma outra edição de A voz do profeta. De imediato, pode-se conjecturar que as sucessivas edições do livro em tão curto espaço de tempo indicam o grande potencial de impacto desse texto panfletário. Além de discutido nos meios literários e políticos locais, inclusive tornando seu autor, nas palavras de um crítico português, “conhecido de um dia para outro” (França, 1993, p. 127), essa obra de Herculano tem sua gênese explicada pelo atropelo dos acontecimentos históricos em Portugal causado principalmente pela cisão política entre os liberais no período imediatamente posterior ao término da Guerra-Civil, em 1834, e que culminou, em 1836, com a chamada Revolução de Setembro. Liberal conservador e, acima de tudo, cartista, Alexandre Herculano opunha-se à ideia do sufrágio universal, defendendo que o efetivo poder político deveria ser exercido predominantemente por uma aristocracia recrutada na nova burguesia rural. Dessa maneira, descontente com a ação política dos setembristas, Herculano, além de, como forma de protesto, demitir-se da direção da Biblioteca Pública do Porto, cargo que ocupava desde o final da Guerra Civil, escreveu e publicou, no calor dos próprios acontecimentos, A voz do profeta, que, por sua feita, transformou-se na sua resposta literária e pública à Revolução de Setembro. Em A voz do profeta, como o nome já o antecipa, e num tom severo que dialoga com o tom de seus poemas, nos quais, inclusive, já aparece, como marca recorrente, uma solenidade de profeta bíblico,5 Herculano adota uma postura, inerente ao gênio romântico, que, transcendendo a sua mera condição de indivíduo, comporta-se antes como a Voz, o Guia, enfim, o Profeta. De modo geral, e mais do que nunca, acreditando não somente numa utilidade social para a sua literatura como também no seu poder de intervenção histórica, o texto de Herculano, para quem o


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abandono da Carta Constitucional contrariava todos os princípios pelos quais ele tinha lutado, direciona-se tanto contra os excessos de violência cometidos pela “ralé popular”, a quem chama de “fezes da sociedade”, quanto contra os malditos dirigentes setembristas que “acenderam o vulcão popular”.

Gonçalves Dias e a Meditação Apesar de ter sido publicado apenas ao longo do primeiro semestre de 1850, na revista Guanabara, quando Gonçalves Dias já era um autor consagrado e plenamente reconhecido nas letras nacionais, é importante não perder de vista que o fragmento de Meditação é, antes de qualquer coisa, uma obra de juventude. Em função disso, é possível não apenas constatar que se, por um lado, nesse primeiro estágio a obra literária é muito mais infensa a influências estéticas, por outro, também já apresenta algumas de suas principais matrizes temáticas, incluindo-se o indianismo. Concomitante à feitura dos últimos poemas que entrariam nos Primeiros cantos, essa obra singular foi escrita entre os anos de 1845 e 1846. De modo geral, os três capítulos que compõem o texto articulam-se em torno de um diálogo travado entre um jovem e um velho sobre as possibilidades futuras de um país que, pela leitura do texto, infere-se obviamente ser o Brasil. Dentro do texto, a personagem do jovem ainda ocupa a posição central de narrador. Por sua vez, o velho, além de representar em si a voz da experiência, é dotado de um caráter quase divino, pois, com a simples a intervenção do toque mágico de suas mãos sobre os olhos do rapaz, permite a este viajar pelo novo país. E tal viagem adquire um caráter peculiar, uma vez que ela não se realiza apenas do ponto de vista espacial, mas, sobretudo, do ponto de vista temporal. Em outras palavras, a ação do ancião faz com que o jovem possa ter acesso tanto ao presente quanto aos outros e diversos tempos históricos do Brasil. Por conta do


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ir e vir, o jovem, ao se defrontar com esses vários tempos e, por conseguinte, ao narrá-los, acaba assumindo uma postura semelhante à de um profeta que medeia (revelando) as relações entre os homens e os mistérios de Deus, inacessíveis a esses mesmos homens. Pensado dentro dessa perspectiva, ao imitar a postura de guia e profeta inerente ao gênio romântico, o comportamento do jovem narrador de Meditação reflete de certo modo tanto a postura quanto o desejo do próprio Gonçalves Dias de também interferir, ao menos literariamente, no processo de formação da sociedade brasileira, cuja ascensão à civilidade, para ele, passava igualmente pelo fim do trabalho escravo.

Diálogo textual No primeiro capítulo de Meditação, composto por seis partes, o grande problema que evidentemente salta aos olhos é, sem sombra de dúvidas, o da escravidão. Na primeira visão do jovem profeta sobre o Brasil, o problema apresenta-se a partir da constatação de que a sociedade brasileira assentava-se e, por conseguinte, dependia sobremaneira do trabalho escravo. Nesse sentido, tal condição, entranhada na estrutura socioeconômica do país, tornava-se o maior empecilho, que obviamente deveria ser transposto, para que o país, enfim, pudesse alçar-se a um novo e desejado status de civilidade. Ao longo desse capítulo e entre outros argumentos, a crítica à escravidão é feita em função do “grande medo” de uma possível revolta dos escravos. Para o velho, se suas duras palavras sobre a escravidão não surtirem efeito sobre os brasileiros, talvez um acontecimento doloroso possa, na prática, levá-los à reflexão. Desse modo, as amargas lições da experiência, não apreendidas em tempos de relativa calma, poderiam, no entanto, ser apreendidas agora por meio do risco eminente de uma possível e traumática ruptura social. É nessa direção que, na última parte do pri-


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meiro capítulo, o pensamento do jovem profeta é subitamente tomado por uma terrível visão: [...] os meus olhos seguiam um objeto – horrível como o talvez de um grande infortúnio. Como Laocoonte, sofrendo terríveis agonias, concentrava todas as suas forças para espedaçar os anéis vigorosos da serpente que o enlaçava. Como no meio de uma habitação que arde, o homem louco e delirante agarra-se às traves em brasa meio consumidas pelo incêndio, e não sente a dor do fogo, que lhe rói a carne dos membros. Os homens que sofriam reuniram-se como um só homem, e soltaram um grito – horríssono, como seria o desabar dos mundos. E pareceu-me que eles se transformavam em unidade como um colosso enorme e válido, cuja fronte se perdia nas nuvens, e cujos pés se enterravam em uma sepultura imensa e profunda como um abismo. E o colosso tinha as feições horrivelmente contraídas pela raiva, e com os braços erguidos tentava descarregar às mãos ambas um golpe que seria de extermínio. E a vítima era um povo inteiro; eram os filhos de uma numerosa família, levados ao sacrifício por seus pais, como Abraão levou a Isaac, seu filho. E como Isaac, as vítimas deste sacrifício cruento tinham cortado a lenha para a sua fogueira, e adormeceram sobre ela, sonhando um festim suntuoso. E como Isaac também, eles acordaram com as espadas sobre as suas cabeças, e o seu despertar foi terrível, porque somente Deus os poderia salvar. E um calafrio de terror percorreu a medula dos meus ossos, e o meu sangue parou nas minhas veias, e o meu coração cessou de bater. E o ancião que tudo sabia, compreendeu o meu sofrimento, e tirou a mão de sobre as minhas pálpebras, e os meus olhos se abriram de novo. E um manto de trevas impenetráveis se desenrolou subitamente diante dos meus olhos, como diante dos olhos de Tobias, quando o Senhor quis provar a sua virtude.


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E eu senti que a vida fugia dos meus sentidos, e caí de face contra a terra com a inércia de um corpo sem vida (Dias, 1850, p. 107).

Nessa passagem, a imagem poética diz tudo. Gonçalves Dias, ao frisar no seu texto que “os homens que sofriam reuniram-se como um só homem, e soltaram um grito – horríssono, como seria o desabar dos mundos”, refere-se metaforicamente ao grande medo que, desde fins do século anterior, povoava o imaginário das elites brasileiras oitocentistas, isto é, a possível repetição no Brasil de uma revolta de negros nos mesmos moldes da que acontecera em São Domingos, atual Haiti. Segundo Célia de Azevedo, o início do século XIX trouxe pelo menos dois grandes acontecimentos que, por sua vez, tiveram grande influência no arraigado modo de vida escravista local. De um lado, o movimento emancipacionista, que, ancorado inicialmente nas ideias da ilustração, foi posteriormente fortalecido pela adesão da Inglaterra, que iniciou, inclusive sobre o Brasil, as pressões para coibir o tráfico de escravos africanos para a América; e, de outro, o grande medo suscitado pelo sucesso da sangrenta revolução de São Domingos. Sobre esta, a historiadora afirma: [...] os negros não só haviam se rebelado contra a escravidão na última década do século XVIII e proclamado sua independência em 1804, como também – sob a direção de Toussaint L’Ouverture – colocavam em prática os grandes princípios da Revolução Francesa, o que acarretou transtornos fatais para muitos senhores de escravos, suas famílias e propriedades (Azevedo, 1987, p. 35).

De maneira mais do que explícita, a alusão no texto à revolta do Haiti é construída metaforicamente por meio da súbita transformação dos “homens que sofriam” num imenso gigante, cujas feições estavam “horrivelmente contraídas de raiva”, e que, movido por uma força irracional, “tentava descarregar às mãos ambas um golpe que seria de extermínio”. Nessa visão apocalíptica, “a vítima era o povo


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inteiro”, que, a exemplo do Isaac bíblico, seria conduzido, sem nenhuma suspeita, ao seu próprio sacrifício. Nesse sentido, fazendo o papel de Abraão, a elite brasileira, sem, é claro, os motivos religiosos que norteavam as ações do patriarca bíblico, e ao insistir na manutenção da escravidão e no consequente e reinante estado de tensão social, seria a responsável, em primeira e última instâncias, pela própria destruição do país e de seu povo. Portanto, tal manutenção suscitava um iminente risco a todos os brasileiros. Nesse sentido, e relembrado a todo momento, o exemplo do Haiti apresentava-se aos olhos de todos como um perigo constante, como um grande medo, quase sempre prestes a explodir. Se, no caso de Meditação, a terrível consequência do grande golpe, que poderia ser desferido pelos “homens que sofriam”, é suspensa pela ação providencial do velho, que, compreendendo o sofrimento causado pela visão no jovem, faz com que ele abra novamente os olhos, no caso da realidade brasileira, a manutenção da escravidão implicava a convivência forçada e cotidiana com a possibilidade de, a qualquer momento, esse fantasma tornar-se real. Expresso por Gonçalves Dias, o medo latente das elites brasileiras das chamadas “classes perigosas”, que naquele momento restringia-se notadamente aos escravos, não era um medo restrito apenas ao Brasil. Alexandre Herculano, na sua A voz do profeta, também escreve um capítulo emblemático, que, pela evidente similitude com essa última passagem de Meditação, bem poderia ter servido de exemplo a Gonçalves Dias. Como já se mostrou anteriormente, para Herculano, as “classes perigosas” eram as chamadas “ralés populares”, que, por sua vez, seriam nada mais que as “fezes da sociedade”. No capítulo XIII de sua obra, Herculano revela uma visão de futuro em que “os magotes” dos campos e das cidades transformam-se, cada um, numa única e grande turma, que, convertida numa “besta-fera”, assemelhada a um tigre, lança por toda parte gritos de extermínio:


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Eu vi uma visão do futuro, e o Senhor me disse: vai e revela-a na terra. Como em panorama imenso, um reino inteiro estava diante dos meus olhos. E nas duas cidades mais populosas dele homens de má catadura começavam de aglomerar-se nas praças e a trasbordar pelas ruas. E nos campos e nas aldeias outros homens com aspecto de réprobos começavam tambem a apinhar-se nos passos das serras, nas assomadas das montanhas e nas clareiras das florestas. E tanto nas faces dos filhos dos campos, como nas dos habitadores das cidades adivinhava-se o grito de exterminio que bramia no fundo dos corações. Os magotes de serranos fundiram-se n’uma só turma; e o mesmo sucedeu aos das cidades. E cada uma das turmas se converteu em uma besta-fera, que se assemelhava ao tigre. Agigantada era a sua estatura, e na fronte de uma lia-se: “fanatismo”; e na da outra: “desenfreamento”. Com os olhos tintos em fel e sangue, correram então os dois monstros um para o outro, ergueram-se em pé e estenderam as garras. No mesmo instante abriram-se os céus: dous grandes cutelos afiados e dois fachos encendidos cahiram junto das alimárias ferozes. E nas lâminas dos cutelos estavam escritas com letras de fogo as palavras seguintes: “maldição de Deus”. E cada uma das alimárias segurou com a esquerda um dos fachos, e com a direita um dos cutelos. A das cidades arrojou o seu facho sobre os campos, e os campos ficaram em um momento áridos e ermos. E a outra sacudiu o seu sobre as duas cidades, e súbito no lugar onde elas foram estavam dois montões de ruínas. Depois, combatendo por largo tempo e atassalhadas de golpes, caíram e renderam os espíritos. Então as lágrimas me ofuscaram os olhos; porque bem entendia o que significava a visão.


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Mas enxugando-os, tornei a lançá-los para o lugar da peleja. E vi uma solidão sáfara e negra, sobre a qual a perder de vista para todos os lados alvejavam milhares de ossadas. E em cima dellas estavam assentados dous espectros gigantes. Chamavam-se Assolação e Silêncio (Herculano, 1993, p. 48-50).

Perceptível, a imagem literária dos dois textos é muito semelhante; de um lado, “a ralé popular”, tanto do campo quanto da cidade, transforma-se numa “besta-fera”, lançando por toda parte “gritos de extermínios”; por outro, “os homens que sofriam”, do texto de Gonçalves Dias, reuniram-se como um só homem (um enorme colosso), lançando um grito horríssono como seria o desabar dos mundos. De qualquer forma, e a despeito de seus intuitos diferentes, tanto a idêntica postura de profetas quanto a similitude entre os dois fragmentos sugerem mesmo a possibilidade de o texto do escritor português ter servido de exemplo ao brasileiro, reforçando, dessa forma, o evidente diálogo entre ambos.

A teoria da história Além desse evidente diálogo textual, Gonçalves Dias também se apoia na teoria de ciclos históricos de Herculano. No terceiro e último capítulo de Meditação, e ainda pressupondo uma evidente e providencial intervenção divina do velho, o espírito do jovem narrador é transportado ao início dos tempos locais. A partir daí e aos poucos, e sem nunca perder de vista o referencial de comparação com “a triste experiência do presente”, ele revelará ao leitor alguns aspectos da história do Brasil. De saída, assumindo-se como um “viajor que vai empreender longa viagem”, cujo espírito, confundindo o presente com o passado, assistiu “com prazer inefável ao espetáculo das eras transactas”, o jovem observa que encontrou “nas cenas da natureza e da sociedade em seu começo quadros belíssimos


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de poesia e lições de moral sublime, que são como inerentes à natureza humana” (Dias, 1850, p. 171). Em outras palavras, ao transitar por diferentes tempos históricos e dentro dos próprios preceitos românticos que caracterizam o sujeito poético como um vate, o narrador adota uma postura semelhante à de um profeta bíblico, uma vez que também lhe será concedido o privilégio de ter acesso a realidades que teoricamente são inacessíveis aos homens comuns. No seguinte fragmento, e num tom ainda pessimista, o jovem narrador arremata sua visão histórica sobre a colonização brasileira, destacando em chave negativa que, apesar de aplaudida pela “Europa inteligente”, a “nação marítima e guerreira” fundava “um novo império em novo mundo” em bases espúrias, pois assentavam-se antes no vício do “cancro da escravatura” e no “amor ao ouro” do que propriamente “no amor do trabalho”: E a Europa inteligente aplaudiu a nação marítima e guerreira que através do oceano fundava um novo império em mundo novo, viciando-lhe o princípio como o cancro da escravatura, e transmitindo-lhe o amor do ouro sem o amor do trabalho. E os valentes soltaram o grito da vitória, e em lembrança dela quiseram assentar uma cruz no solo por eles conquistado. E no chão que eles cavavam para o assento da cruz encontraram uma veia de ouro, que os distraiu do seu trabalho. E a cruz ficou por terra enquanto eles espalhavam prodigamente o azougue fugitivo para descobrir o depósito do metal precioso. E viu Deus que a nação conquistadora se tinha pervertido, e marcou-lhe o último período da sua grandeza. E deu-lhe uma longa série de anos para que ela lastimasse a sua decadência, e conhecesse a justiça inexorável do TodoPoderoso. Ela tornar-se-ia fraca, porque tinha escravizado o fraco; incrédula, porque tinha abusado da religião; e pobre, porque sobremaneira tinha cobiçado a riqueza.


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E todas as nações do mundo passariam diante dela, comparando a sua grandeza d’outros tempos com a miséria de então. E ela tornar-se-ia o opróbrio das gentes de maravilha que tinha sido (Dias, 1850, p. 174).

Além de criticar o “cancro da escravidão” e a ausência do amor ao trabalho como impeditivos futuros ao desenvolvimento do Brasil, o jovem narrador, por meio da imagem literária do abandono da cruz, reitera o real interesse da exploração. Num jogo de aparência e essência, o narrador observa que do mesmo chão, escavado pelos portugueses para a fixação da cruz, brota um veio de ouro que “os distraiu do seu trabalho”. Desse modo, diante da possibilidade imediata da riqueza, a preocupação religiosa é relegada a um providencial segundo plano, já que a “cruz ficou por terra” e, prontamente, a cobiça é elevada à razão primeira que não somente legitima a dizimação e escravização dos indígenas como também passa a justificar a expropriação das riquezas do novo mundo. Em função do abandono da religiosidade e, nesse sentido, comportandose aqui como verdadeiro profeta bíblico, o narrador revela que foi a inexorável vontade de Deus que condenou Portugal, a nação conquistadora que tinha se pervertido, a uma “longa série de anos para que ela lastimasse a sua decadência”. Ou seja, por ter “escravizado o fraco”, “abusado da religião” e apenas “cobiçado a riqueza”, a ira divina condena a nação lusa a se tornar “o opróbrio das gentes de maravilha que tinha sido”. A condenação tácita de Portugal a um longo período de decadência, ligado ao momento histórico dos descobrimentos e mais especificamente ao contexto da montagem do sistema colonial brasileiro, dialoga diretamente com a visão de ciclos históricos que permeia as posições teóricas de Alexandre Herculano na escrita de sua História de Portugal, cujo primeiro volume saiu em 1846. Novamente, aparece aqui mais uma possível influência do escritor português sobre o poeta brasileiro. Inicialmente, o conceito de


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ciclos históricos foi desenvolvido numa série de cinco textos (Cartas sobre a história de Portugal) publicados na Revista Universal Lisbonense, de 7 de abril a 3 de novembro de 1842. Na quinta carta, Herculano afirma que: [...] em dois grandes ciclos me parece dividir-se naturalmente a história portuguesa, cada um dos quais abrange umas poucas fases sociais, ou épocas: o primeiro é aquele em que a nação se constitui; o segundo, o da sua rápida decadência: o primeiro é o da Idade Média; o segundo, o do Renascimento (Herculano apud Catroga, 1998, p. 93).

Dito de outro modo, agora segundo a interpretação do historiador Fernando Catroga, para Herculano, o Renascimento representava o começo da decadência pátria, uma vez que foi o responsável direto pelo início do processo que conduziu ao império da unidade e do centralismo. E este levou ao estabelecimento da monarquia absoluta sobre as ruínas da “monarquia liberal” da Idade Média, por que os Descobrimentos e as conquistas acabaram por mudar a índole da nação, transformando-a, de guerreira em mercadora, de municipal em cortesã (Catroga, 1998, p. 9394).

Ou ainda, nas palavras do próprio Herculano, “adquirimos um largo patrimônio para dividir com as outras nações: reservamos para nós a fraqueza interior, consequência de esforços mui superiores aos nossos recursos para remotas conquistas; reservamos para nós a corrupção moral e a decadência material” (Herculano apud Catroga, 1998, p. 94). Assim, arremata Catroga, ao responsabilizar a centralização política, a aventura colonial e o centralismo católico e inquisitorial como causas primordiais da decadência lusa, Herculano “fixou uma das interpretações mais controversas sobre a história de Portugal que, daí para frente, será um ponto de referência obrigatória em todas as interrogações sobre o nosso destino” (Catroga, 1998, p. 94).


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Em suma, pelo menos no que tange à Meditação, pode-se dizer que, ao explicitar tal “referência obrigatória”, Gonçalves Dias seguiu de perto a lição do mestre português.

Referências AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra, medo branco; o negro no imaginário das elites – século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 6. ed., Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. CATROGA, Fernando. Alexandre Herculano e o historicismo romântico. In: CATROGA, Fernando; MENDES, José Maria Amado; TORGAL, Luís Reis (Orgs.). História da História de Portugal (sécs. XIX e XX). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998. p. 4598. DIAS, Antonio Gonçalves. Meditação. Guanabara, revista mensal, artística, científica e literária, Rio de Janeiro, Tomo I, p. 102-107, 125134, 171-177, 1850. . Obras poéticas de Gonçalves Dias. São Paulo: Nacional, 1944. GARRETT, Almeida. Restauração das letras, em Portugal e Brasil, em meados do século XVIII. In: CÉSAR, Guilhermino (Org.). Historiadores e críticos do romantismo. Rio de Janeiro/São Paulo: LTC/Edusp, 1978. p. 87-92. FRANÇA, José Augusto. O romantismo em Portugal (estudo dos fatos socioculturais). 2. ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1993. HERCULANO, Alexandre. A voz do profeta. 1ª série. Ferrol: Imprenta de Ezpeleta, 1836. . A voz do profeta. 2ª Série. Lisboa: Tipografia Patriótica de Carlos José da Silva & Companhia, 1837. . A voz do profeta. 2. ed. Porto: Imprensa de Álvares Ribeiro, 1837. . A voz do profeta. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve & Cia., 1837. . A voz do profeta. In: Bertrand, T. I, 1993.

. Opúsculos. Lisboa: Livraria


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. O Brasil. In: BEIRANTE, Cândido; CUSTÓDIO, Jorge (Orgs.). Alexandre Herculano: um homem e uma ideologia na construção de Portugal. 2. ed. Lisboa: Livraria Bertrand, 1980. p. 173-174. LEAL, Antonio Henriques. Antonio Gonçalves Dias – Notícia da sua vida e obras. Lisboa: Imprensa Nacional, 1875. SARAIVA, Antonio José; LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. 15. ed. Porto: Porto, 1989. SILVA, Inocêncio Francisco. Dicionário bibliográfico português. Lisboa: Imprensa Nacional, 1858.



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A paródia como fantasma Josalba Fabiana dos Santos*

RESUMO: A menina morta, de Cornélio Penna, é um romance que sempre desnorteou a crítica brasileira pelo seu aspecto aparentemente anacrônico. No entanto, um estudo mais cuidadoso demonstrará que esse livro publicado em 1954 dialoga sobremaneira com o seu momento histórico e estético, pois se apresenta como uma paródia do tradicional romance gótico inglês. Vale lembrar também que a paródia foi um recurso utilizado à exaustão pelo modernismo. De maneira que Cornélio Penna não seria anacrônico, ao contrário, seria um romancista do seu tempo e até além, pois se trata aqui de uma narrativa requintada – A menina morta – que se constitui a partir de um gênero da cultura de massa, o romance gótico. PALAVRAS-CHAVE:

paródia, gótico, Cornélio Penna.

ABSTRACT: Brazilian literary critics have always been puzzled by the apparent anachronism of A menina morta, by Cornélio Penna. However, a closer examination will demonstrate that this book, published in 1954, is strictly connected with its historical and aesthetic period, since it is characterised as a parody of the traditional English Gothic novel. It is worth mentioning that the parody was a highly utilised resource during the modernist movement. Therefore, Cornélio Penna should not be seen as anachronistic but as a novelist of his time and beyond, since A menina morta is an exquisite narrative woven from elements of the Gothic novel, a mass-production genre. KEYWORDS:

Universidade Federal de Sergipe (UFS). *

parody, gothic, Cornélio Penna.

Em Uma teoria da paródia, Linda Hutcheon fala, entre várias outras coisas, de uma “reacção intencionada inferida, motivada pelo texto” (1989, p. 76), que ela chama de ethos. Enquanto a intertextualidade estaria no leitor, de forma


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que este seria livre para fazer diferentes associações, a paródia se inscreveria ela própria como intenção, pedindo um leitor relativamente instrumentalizado dentro da tradição literária. Logo, é preciso buscar os vestígios do texto que desencadeou a paródia. A saber, os vestígios do gótico inglês possíveis de se encontrar no romance de Cornélio Penna ora abordado.1 Esses vestígios, essas pistas, deverão acenar para os inumeráveis enigmas que a narrativa corneliana proporciona. É objetivo deste trabalho também marcar a necessidade de uma leitura crítica que busque agregar contexto histórico (cultura) e texto (na sua dimensão estética), lembrando que a literatura é cultura e estética, sobretudo trabalho de elaboração estética. Estudar a paródia, principalmente a estrutura paródica do texto ou o que faz do texto uma paródia, não exclui (muito ao contrário) outras correlações possíveis: entre o romance moderno e o gótico, entre a paródia como fantasma ou duplo, o fantasma ou duplo como metáforas, as metáforas como alegoria, e, no caso do romance corneliano, a alegoria no lugar da violência patriarcal-escravocrata. De 1954, A menina morta é o último livro publicado por Cornélio Penna. A narrativa transcorre em meio a um forte clima de mistério. As cenas iniciais são construídas em torno dos preparativos para o enterro da filha mais nova da rica família Albernaz, proprietária do Grotão, uma fazenda produtora de café no século XIX, situada às margens do rio Paraíba, na fronteira entre as então províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. A produção é controlada pelo Comendador, o patriarca, e executada por escravos. Não se diz o que levara a menina à morte. E esse será apenas o primeiro de uma série de enigmas lançados ao leitor, mas outros virão, como, por exemplo, o dissenso entre os pais da criança – o Comendador e Dona Mariana –; a tentativa de assassinato que sofrerá o Comendador; a morte do escravo que tentara matá-lo; a saída repentina de Dona Mariana da fazenda.

Este artigo é parte integrante do projeto A questão do mal em Cornélio Penna e Lúcio Cardoso, que recebe apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

1


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Já que a menina, quando viva, funcionara como um elo a unir a casa-grande e a senzala, o Comendador ordena que a filha mais velha regresse do colégio da Corte, onde estudava, para ocupar o lugar da irmã morta. É assim que Cornélio Penna constrói um romance cindido, no qual a primeira metade é dominada pela presença ausente da criança ou por sua memória e a segunda metade será, por sua vez, ocupada pelo retorno de Carlota, a filha mais velha. A opção por essa forma ou fôrma narrativa cindida, dividida, constituirá, por assim dizer, um fantasma ou duplo do texto, pois a menina, morta desde o início da narrativa, se presentificará por meio da irmã, que retorna a partir da metade do livro. Isto é, as duas irmãs são duplos uma da outra e existe ainda uma série de outros duplos ao longo do romance. Contudo, neste momento preferimos nos deter nos fantasmas ou duplos que avultam da construção do texto como tal e não naqueles que são narrados, que fazem parte da história. Ora, se A menina morta se desdobra e se duplica sobre si, não é difícil intuir que seja, por sua vez, um romance desdobrado de outro ou de outros, dada a fixação de seu autor por duplos. Uma leitura da fortuna crítica da obra de Cornélio Penna confirmará essa hipótese e mostrará uma tendência geral a vê-lo como anacrônico, deslocado do seu momento estético e histórico. Mas o encaminhamento aqui pretende dizer exatamente o contrário disso. Para a crítica, é como se Cornélio Penna fosse um autor ocupado com fantasmas, pois haveria nele uma tendência a tratar do passado, do já morto. Afinal, ambientado na segunda metade do século XIX e aparentando seguir uma escrita que desconsideraria as conquistas das vanguardas europeias e nacionais do modernismo, A menina morta faz pensar em antiguidades. Mário de Andrade, que não conheceu este romance, fala de seu autor como um antiquário, um guardador de peças caídas em desuso, mas ainda com algum valor. Diz ele: O Sr. Cornélio Penna tem uma força notável na criação do sombrio, do tenebroso, do angustioso. As suas evocações


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de ambientes antiquados, de pessoas estranhas ou anormais, de cidades mortas onde as famílias degeneram lentamente e a loucura está sempre à “espreita de novas vítimas”, tudo isso é admirável e perfeitamente conseguido. Alma de colecionador vivendo no convívio dos objetos velhos, o Sr. Cornélio Penna sabe traduzir, como ninguém entre nós, o sabor da beleza misturado ao de segredo, de degeneração e mistério, que torna uma arca antiga, uma caixinha de música, um leque tão evocativo, repletos de uma sobrevivência humana assombrada e trágica. Sentese que os seus romances são obras de um antiquário apaixonado, que em cada objeto antigo vê nascer uns dedos, uns braços, uma vida, todo um passado vivo, que a seu modo e em seu mistério ainda manda sobre nós (Andrade, 1958, p. 174 – grifo meu).

Queremos salientar dois aspectos nesta passagem de “Romances de um antiquário”, o título desse artigo de Mário de Andrade. Primeiro, a vocação do autor de A menina morta para se deter no antigo, no passado, e, segundo, a sua singularidade. Isto é, por um lado Cornélio Penna não seria um autor do seu tempo, estaria incondicionalmente preso ao que passou, ao que não é mais. Ele, Cornélio, como um colecionador privilegiado, teria a capacidade de trazer para o âmbito da ficção qualquer objeto perdido em sua materialidade, mas potencialmente vivo para o romance. Ou seja, tudo o que compõe a sua narrativa estaria morto e vivo ao mesmo tempo, de modo que a própria matéria do romance corneliano seria fantasmagórica. O escritor traria ainda para dentro da literatura brasileira uma escrita única, ocupada com o mistério. O texto de Mário não deixa completamente claro se ele está falando que ninguém entre nós fez isso antes ou se Cornélio seria o que o fez melhor. De todo modo, a singularidade, o lugar especial do autor de A menina morta estaria reservado. No entanto, em alguns casos a presença constante do mistério incomoda Mário de Andrade, que descreve exageros:


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Não vejo razão para ele [Cornélio Penna] se utilizar assim de truques fáceis, que atingem mesmo, às vezes, o irritante dos romances de fantasmas, ruídos atrás de portas, cochichos indiscerníveis, medos inexplicáveis, que nada podem acrescentar ao verdadeiro mistério (Andrade, 1958, p. 174175).

Como já foi dito, Mário de Andrade não conheceu o último livro de Cornélio Penna, de maneira que não se sabe se este comentário o atingiria, ao último livro. O fato é que aqui dois aspectos interessam especialmente: a insistência na associação entre a obra corneliana e o mistério e a aproximação com os romances de fantasmas. Um não exclui o outro, na verdade, somam-se: mistério e romances de fantasmas. Onde há um, há outro. Note-se que, enquanto Mário discutia a presença do mistério, tudo era admissível, por assim dizer, mas, quando ele acha que Cornélio “pesa a mão”, surge uma nova classificação: romance de fantasma. Romance de fantasma seria o limite para o bom gosto, quando as narrativas cornelianas entram nesse território elas se perdem, elas perdem em valor literário. Abandonemos Mário e passemos a Luiz Costa Lima, que é um pouco mais específico do que o autor de Macunaíma. Costa Lima afirma: Pensar que A menina morta é de 1954 é de difícil entendimento, pela absoluta falta de contato que o romance mostra com a produção imediatamente anterior. [...] deveremos tomar Cornélio como o raro epígono de alguma corrente precedente – do romance gótico, talvez, misturado a Camilo Castelo Branco (Lima, 1976, p. 56).

Costa Lima retoma a ideia da singularidade já apontada por Mário de Andrade e levanta uma hipótese: Cornélio seria um epígono do romance gótico, talvez. Não se trata de uma afirmação contundente. Talvez Cornélio possa ser considerado um representante do gótico no Brasil, mas Costa Lima não o afirma categoricamente, apenas indaga, nem sequer retoma essa ideia ao longo do seu livro, A perversão


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do trapezista: o romance em Cornélio Penna. Como epígono, Cornélio pertenceria a uma geração seguinte ao gótico, seria uma espécie de pós-gótico. Portanto, novamente o seu caráter anacrônico é destacado: nem moderno nem gótico, porque o romance gótico propriamente dito já teria se esgotado. A menina morta estaria assim, na visão desse crítico, fora do seu tempo, seria um romance deslocado, alienado do seu momento histórico e estético, talvez por isso estéril para muitos dos seus leitores. Ao se referir a Fronteira (1935), o primeiro romance de Cornélio Penna, Léo Schlafman sai do território das dúvidas, do “talvez” de Costa Lima, e afirma claramente: O espaço exterior de Itabira engloba os estados subjetivos e expressa o sinistro, o triste, como inerentes à própria natureza. A paisagem torna-se lúgubre pela projeção de estados de alma estranhos. Cornélio fala da magia e da vibração que lhe inspira a gente de Itabira, e encontra no ambiente mineiro as premissas do gótico. Entre as montanhas erguem-se os casarões cheios de sombras, esmagados por telhados enormes. Paredes altas, sótãos, móveis pesados, malas, relógios antigos, escorpiões, aranhas negras – tudo isso forma a moldura dentro da qual atuam presenças impalpáveis, o perigo próximo, ameaçador... (Schlafman, 2001, p. 14).

Segundo Léo Schlafman, Minas Gerais, a região de Itabira, ao menos tal como configurada em Fronteira, se coadunaria com a atmosfera do gótico. Ou melhor, este romance corneliano – ambientado nos primeiros anos da República, portanto, no final do século XIX – soube aproveitar um potencial que Itabira já retinha: as montanhas, os casarões e os móveis antigos seriam perfeitos para emoldurar fantasmas e perigos, elementos que Léo Schlafman atribui ao gótico, de maneira que Cornélio Penna teria sido suficientemente sensível para perceber no Brasil um local que se coaduna com o clima de mistério descrito no romance gótico europeu.


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E o que seria exatamente o gótico? Segundo o Dictionary of literature, gótico é um tipo de romance que foi extremamente popular no final do século XVIII, combinando elementos do sobrenatural, do macabro e do fantástico, geralmente em cenários bem ao estilo Radcliffe, como abadias arruinadas ou castelos antigos. Os heróis e/ou heroínas, tanto medievais quanto modernos, na maioria dos casos usam uma linguagem formal, afetada, curiosamente em contraste (para o leitor moderno) com as situações estarrecedoras em que se encontram. The castle of Otranto (1764), de Horace Walpole, e The mysteries of Udolpho (1794), de Ann Radcliffe estão entre os exemplares mais conhecidos do gênero. Northanger Abbey (1818), de Jane Austen, continua sendo a paródia definitiva (1995, p. 92-93).

Gostaria de começar destacando a popularidade atribuída ao romance gótico, popularidade de que a obra de Cornélio Penna nunca desfrutou. A localização histórica também é relevante: a maioria dos exemplos é datada da segunda metade do século XVIII e há um único caso no começo do século XIX. Visto que Cornélio Penna produziu sua obra entre os anos de 1930 e 1950, verifica-se que o caráter anacrônico levantado por críticos como Mário de Andrade e Luiz Costa Lima não é nenhum absurdo. Mas a definição acima nos declara ainda mais algumas coisas importantes: o gótico se acercaria do sobrenatural em abadias arruinadas ou castelos antigos. Ora, pode-se dizer que tudo isso pode ser mais ou menos encontrado em A menina morta, como se verá adiante. Outra definição, que, a rigor, não contraria a anterior, é a do Companion to literature in English: Ficção gótica. Um tipo de romance ou novela popular do final do século XVIII e início do século XIX. A palavra “gótico” havia passado a significar “selvagem”, “bárbaro” e “rude”, qualidades que os escritores achavam atraente cultivar, em reação ao neoclassicismo sóbrio da cultura do


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início do século XVIII. Romances góticos geralmente eram ambientados no passado (frequentemente no passado medieval) e em países estrangeiros (particularmente em países católicos do sul da Europa); eles se passavam em monastérios, castelos, masmorras e paisagens montanhosas. Os enredos apoiavam-se no suspense e no mistério, envolvendo o fantástico e o sobrenatural. Elementos da forma começam a aparecer já em Ferdinand count fathom (1753), de Smollett, mas o primeiro romance gótico propriamente dito é The castle of Otranto (1764), de Horace Walpole. Romancistas que posteriormente se associaram ao estilo gótico foram Clara Reeve, Ann Radcliffe, William Beckford, M. G. (‘Monk’) Lewis e C. R. Maturin. Sua influência pode ser sentida na poesia romântica (por exemplo, Christabel, de Coleridge), em Frankenstein, de Mary Shelley, nos contos de Edgar Allan Poe nos EUA, e nos romances das irmãs Brontë (Ousby, 1992, p. 379).

O selvagem, o bárbaro e o rude aqui mencionados também podem ser observados no romance corneliano, tanto na presença dos escravos quanto no sistema patriarcal-escravocrata. Se, por um lado, os cativos da fazenda na qual se desenvolve a narrativa são constantemente apontados como selvagens e bárbaros, por outro é inegável que o patriarcalismo escravocrata, para atingir seus fins, será tão ou mais selvagem e bárbaro do que as pessoas que pretende dominar e controlar. O Companion to literature in English menciona ainda uma predileção por países estrangeiros e pelo passado, sobretudo o medieval. Como já foi mencionado, A menina morta foi escrito nos anos de 1950, mas a narrativa se localiza na segunda metade do século XIX. A história não se desenvolve em nenhum país estrangeiro, mas transcorre distanciada de qualquer centro urbano, os personagens só têm contato com habitantes da própria fazenda, o contato com moradores de outras propriedades é muito pequeno, quase inexistente. Consequentemente, o distanciamento temporal e o isolamento espacial contribuem para criar o clima de mistério.


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Uma última definição do gótico pode ser explorada, a do Dicionário de termos literários (1974), de Massaud Moisés: Derivando o seu nome do fato de passar-se em ambiente medieval, a prosa gótica apresenta, de forma genérica, os seguintes característicos: histórias de horror e terror, transcorridas em castelos arruinados, com passagens secretas, portas falsas, alçapões, conduzindo para locais misteriosos e lúgubres, habitados por seres estranhos que convivem com fantasmas e entidades sobrenaturais, em atmosferas penumbrosas e soturnas, onde mal penetra a luz do dia. [...] Quer se crer que não se trata de uma ficção menor, votada ao entretenimento do leitor, mas de romances, ou novelas, dotados de outro interesse, na medida em que os protagonistas, antes que meros fantoches, seriam autênticos casos psicológicos. Além disso, o gótico busca envolver o leitor, mantendo-o em suspense, alarmá-lo, chocá-lo, incitá-lo, provocando-lhe, em suma, uma resposta emocional (Moisés, 1985, p. 263).

Para Massaud Moisés, o gótico não seria uma narrativa menor, e note-se aqui a necessidade de defendê-lo, o que evidencia que devia (deve?) ser tratado exatamente como um tipo de narrativa desprezível para boa parte da crítica. Também gostaríamos de marcar na definição de Massaud Moisés a função do romance gótico: envolver, alarmar, chocar e incitar o leitor. E esses são dois pontos nos quais a obra de Cornélio Penna se distancia do gótico, porque não é uma obra menor, ao contrário, pois é cuidadosamente trabalhada, tampouco busca colocar medo no leitor por meio de recursos fáceis. Passa-se agora a uma leitura que apontará aspectos na narrativa corneliana até então desprezados pela crítica ora elencada, um verdadeiro contraponto ao que foi citado anteriormente. Marília Rothier Cardoso, assim como Luiz Costa Lima e Léo Schlafman, faz uma ligação entre a obra de Cornélio Penna e o romance gótico. Todavia, o seu ponto de vista é muito diferente do de Costa Lima e, por extensão, do de Mário de Andrade. Apresentando uma nova


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edição para Fronteira, o já mencionado primeiro romance corneliano, Marília Rothier Cardoso comenta: Cornélio Penna constrói sua estratégia narrativa [...] selecionando algumas conquistas da vanguarda, adapta-as a traços do romance gótico e da tradição fantástica. Produz, assim, na contramão do regionalismo em voga, um estilo de alto requinte, capaz de perscrutar a intimidade e sugerir panoramas sócio-históricos, de forma sutil, nebulosa e fragmentária, longe da banalidade realista (Cardoso, 2001).

A partir dessa citação, podemos dizer que Cornélio Penna estabelece uma relação paródica com a ficção gótica que é justamente uma das conquistas das vanguardas. Não que a paródia em si seja fruto exclusivo do modernismo, mas o seu uso sistemático com certeza o é. A paródia chega ao modernismo já bem conhecida pela tradição literária. Mas, a partir desse momento, tal recurso passa a se integrar como técnica de construção na literatura, exacerbando o seu caráter metalinguístico. Afinal, parodiar é um exercício que não apenas desdobra um texto sobre outro, mas igualmente obriga a uma reflexão sobre a linguagem e a sua produção, o fazer literário. Assim sendo, a obra corneliana não seria anacrônica como afirmaram Mário de Andrade e Costa Lima, por exemplo, muito pelo contrário, dialogaria com o seu tempo, estaria muito mais próxima da ruptura proposta pelos escritores ligados à Semana de Arte Moderna e às vanguardas europeias do início do século XX do que da “banalidade realista” – para utilizar ainda uma vez a expressão de Marília Rothier Cardoso. Um livro como A menina morta não estaria simplesmente tentando reproduzir a técnica ou a fôrma do gótico mas estaria parodiando-o, estaria relacionandose com ele para dizer outra coisa. O estado de apreensão que envolve o leitor corneliano não é o do gótico. Os fantasmas e os duplos no último livro de Cornélio Penna não pretendem assustar o leitor, mas desviar o seu olhar para outro foco. Na verdade, os fantasmas e os duplos estabele-


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cem um jogo entre velar e revelar ao leitor a violência patriarcal-escravocrata, presente no romance e na história nacional. Pode-se dizer ainda que A menina morta não é um livro anacrônico porque se vale de fantasmas, de matéria morta, na sua estratégia narrativa, mas que a paródia é um recurso literário que se constitui como um duplo ou um fantasma. Ou seja, o recurso da paródia nesse romance reproduz no seu formato elementos, como o duplo e o fantasma, que fazem parte do seu conteúdo: a forma ou a fôrma espelha o seu conteúdo. Tratando de outra maneira: a paródia é um duplo ou um fantasma de outro texto, a paródia é de um texto que já “morreu” ou que está esquecido e que revive por meio do seu duplo ou fantasma. O duplo, segundo Rank (2001, p. 17 et seq.), é um anúncio de morte. Por extensão, é possível afirmar que por trás de toda a morte há um nascimento, um renascimento. Tudo que morre possibilita que algo venha à vida. Um fantasma propriamente dito é um ser que teria morrido de forma trágica, violenta, um ser que teria morrido antes da sua hora. Este ser morto de forma trágica, violenta ou antes da hora resistiria a abandonar o reino dos vivos, teria uma má morte, uma morte ruim. Obviamente não se pensa num texto nos mesmos termos. São consideráveis as diferenças entre pessoas e livros. No entanto, deve ser observado que a ficção gótica como momento estético acabou. Vários dos seus recursos permanecem utilizados em outros gêneros, mas são precisamente isso, outros gêneros, não são mais exemplos do gótico, não o reproduzem na sua totalidade. Podemos dizer que o gótico morreu, mas continua vivo nos novos gêneros que se valem de alguns dos seus recursos. Da mesma maneira, podemos afirmar que o texto escrito depois de extinta a ficção gótica, mas que se vale de algumas das suas conquistas, se encena como seu duplo. Todavia, nem duplo nem fantasma devem ser reduzidos a cópias, a meras reproduções num sentido negativo. Existe repetição, não há dúvida, no entanto, na esteira do pensamento de Gilles Deleuze (2000), falaremos em repetição


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na diferença. O duplo e o fantasma reafirmam até certo ponto os seres que os motivaram ou precederam, mas são outros, permitem o reconhecimento, mas não a identificação total. O mesmo ocorre com a paródia, ela reafirma o texto que a motivou ou precedeu, mas não o repete na sua íntegra, pois se o repetisse não seria uma paródia, seria o texto que a motivou. Note-se que o par origem/cópia, no qual o segundo elemento é sempre inferiorizado, vem norteando a tradição literária desde Platão e foi reafirmado mais recentemente pelo romantismo, período tão evocativo do chamado “gênio do escritor”. Para Deleuze (2000, p. 136), tal hierarquia inexiste, mesmo porque para ele somente existem cópias, não há original. Na paródia literária, há uma corrupção de outro texto, há uma deformação (Sant’Anna, 1985, p. 28). O fantasma e o duplo, tão presentes no romance corneliano, também são corrupções ou deformações de outros seres. Reforçando o conteúdo por meio da forma, A menina morta se duplica e se fantasmagoriza ao mesmo tempo, num jogo de espelhos para o leitor. Naturalmente, é um romance – como todo romance que se vale de um recurso intertextual – que solicita um leitor bem equipado, inserido na tradição literária, para poder revelar seus enigmas ou pelo menos compreender as suas funções, as dos enigmas. A paródia pode ser considerada elitista (Hutcheon, 1989, p. 112) porque exige esse leitor bem equipado na tradição literária, mas também pode ser didática porque contribui para uma maior bagagem ou equipagem do leitor na medida em que ampliará seu horizonte de leitura. Ao pensarmos na paródia como um texto que tem a intenção (Hutcheon, 1989, p. 76 e 112) de dialogar com outro e que revela essa intenção ao leitor, percebe-se que este pode até não compreender qual o jogo que está sendo jogado, mas possivelmente será capaz de identificar uma regra ou outra, um vestígio ou outro, de forma a se sentir instigado a desvendar os “mistérios” do texto. Além disso, de qual elitismo precisamente se fala quando o texto parodiado é o


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popular romance gótico inglês? Howard Phillips Lovecraft, em O horror sobrenatural na literatura (1987), num tom bastante sarcástico, afirma o caráter apelativo deste gênero, que Incluía o nobre tirânico e perverso como vilão; a heroína inocente, perseguida e geralmente insípida que é a vítima dos principais horrores e serve como ponto de vista e foco das simpatias do leitor; o valente e impoluto herói, sempre de nascimento nobre mas frequentemente em disfarce humilde; a convenção de sonoros nomes estrangeiros, o mais das vezes italianos, para as personagens; e toda uma série de artifícios teatrais entre os quais estranhas luminosidades, alçapões apodrecidos, lâmpadas que não se apagam, manuscritos bolorentos escondidos, gonzos rangentes, cortinas agitadas, e por aí afora (Lovecraft, 1987, p. 16).

É possível que a maioria dos leitores de Cornélio Penna jamais tenha lido um único romance pertencente ao gótico, mas certamente a maioria dos leitores conhece narrativas de mistério literárias ou fílmicas e será capaz, portanto, de reconhecer, de experimentar uma sensação de já visto (déjà vu) em A menina morta. Segundo Linda Hutcheon (1989, p. 17), a ironia é um fator fundamental para a definição da paródia moderna e é da presença dela que trataremos agora. Percebe-se que não deixa de ser irônico que Cornélio Penna parodie o romance gótico num país tropical. Apesar de Minas Gerais apresentar um ambiente em que as premissas do gótico estão dadas – “casarões cheios de sombras, esmagados por telhados enormes. Paredes altas, sótãos, móveis pesados, malas, relógios antigos” (Schlafman, 2001, p. 14) – e de tudo isso ser produtivo em todos os romances cornelianos, é preciso lembrar que o cenário de A menina morta é o vale do rio Paraíba, é a fronteira entre a província mineira e o Rio de Janeiro. Enfim, é o Brasil e não a Europa. E Cornélio Penna faz outras adaptações bem irônicas. A primeira diz respeito ao castelo antigo (do senhor feudal), que é substi-


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tuído pela casa-grande – “rústico palácio, fortaleza sertaneja de senhor feudal sul-americano” (Penna, 1997, p. 118). Em A menina morta, a casa-grande ironiza o castelo antigo porque na verdade não é antiga, é uma construção recente, erguida pelo próprio Comendador e não por seus antepassados, mas que apela para elementos contidos nas construções medievais, ao menos os elementos contidos no romance gótico, pois é enorme, está sempre escura, cheia de sons estranhos à noite, lugar onde se podem ver passar fantasmas em pleno dia (segundo afirma uma das suas mucamas) e, principalmente, labiríntica. O caráter de fortaleza da casa-grande é marcante ao longo da narrativa. Aliás, essa constituição da casa como fortaleza fora comum no Brasil colonial e era utilizada como defesa para ataques indígenas, como nos informa Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala (2000, p. 49). A questão é: do que ou de quem era preciso se defender numa fazenda cafeeira do Segundo Império? E mais uma vez a ironia é reafirmada, porque o possível ataque, se ataque houvesse, não viria do exterior, o ataque seria forjado no interior da fazenda pelos seus “escravos, que formavam pequeno exército” (Penna, 1997, p. 415), expressão que condensa uma total ironia, afinal o exército de escravos que está a serviço do “senhor feudal sul-americano” no eito e no interior da casa-grande pode se virar contra este mesmo senhor a qualquer momento. É um exército que pertence ao seu senhor, mas que lhe é potencialmente o seu contrário. Por isso é preciso que a propriedade se assemelhe a uma fortificação: seus “súditos” são seus maiores inimigos, seus “súditos” naturalmente não lhe são leais. A expressão “senhor feudal sulamericano” é igualmente irônica. Por que feudal se já nascemos modernos como quer boa parte da crítica atual? E se olharmos para as marcas da modernidade que temos, provavelmente concordaremos com essa crítica. À luz da narrativa, percebemos várias analogias entre o Comendador, o “senhor feudal sul-americano”, e o Conde Drácula, do livro homônimo de Bram Stoker, e que seria uma espécie de


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epígono do gótico, visto que é publicado em 1897, portanto já afastado desse momento estético. O Comendador, na obra corneliana, é evidentemente um vampiro, pois vive do sangue dos escravos que para ele trabalham. O passado medieval do gótico é substituído pelo século anterior ao da escrita do romance corneliano, explicitando a curta história nacional brasileira. Quando Cornélio Penna ambienta seu romance, escrito e publicado em meados do século XX, no século XIX, uma nova ironia se constitui. O passado nacional brasileiro é recente, nossa história de país independente é pequena, no entanto nós já constituímos os nossos fantasmas, o nosso horror: A cronologia histórica inverte [...] a cronologia de publicação dos romances, direcionando o romancista para o resgate da herança do passado, onde se localizaria o processo de formação da nossa nacionalidade, que o período escravocrata traduz sob a forma de um violento dissenso. Ao colocá-lo em cena como nenhum outro romancista entre nós, Cornélio Penna não só estaria problematizando a pretensa unidade que nos constituiria enquanto nação, mas assinalando a permanência de um conflito não sanado na origem e que, sob a forma de um fantasma desagregador, continua a nos assombrar e a nos manter exilados no passado, como num pesadelo que parece não ter fim (Miranda, 1997, p. 482).

Tentar esquecer a violência da escravidão, prática que perdurou no Brasil por quase quatro séculos, não a elimina, ao contrário, só contribui para criar fantasmas. Outra ironia a ser mencionada é a ambiência em países estrangeiros presente na ficção gótica e trocada pela ambiência interiorana, sertaneja, em A menina morta. O sertão e o interior foram (e de certa forma ainda são) o nosso exótico (note-se que usamos a palavra sertão aqui no mesmo sentido utilizado no século XIX, ou seja, por oposição ao litoral). Enquanto os autores dos romances góticos localizavam suas histórias em outros países para aumentar o grau de estranhamento daquilo que narravam


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e saindo do pressuposto de que o esquisito é o outro, o escritor brasileiro localiza A menina morta no interior do Brasil. Aparentemente não se trata de um interior assim tão interiorizado, visto ser a fronteira entre Minas Gerais e Rio de Janeiro. Mas registrando a incomunicabilidade ou a dificuldade de comunicação entre o Grotão e as fazendas vizinhas, o difícil acesso à Corte, à cidade do Rio de Janeiro – uma viagem de muitos dias em estradas precárias –, Cornélio Penna deixa claro ao leitor que Paris era mais próxima da capital do Império brasileiro do que uma província vizinha, logo éramos (somos?) estrangeiros para nós mesmos, lembrando aqui o título do livro de Julia Kristeva. Não precisamos temer ou nos assustar com os estrangeiros, com os outros, porque somos estranhos a nós próprios, não nos conhecemos.

Considerações finais A paródia é um texto fronteiriço que se posiciona entre a recriação (do que estava “morto”) e a criação, isto é, a paródia propriamente dita, cumprindo assim o seu papel de fantasma, nem totalmente viva, porque ligada ao que estava morto, nem totalmente morta, porque agente de transformação do texto parodiado. A paródia se coloca entre o passado, a tradição, e o novo, o rompimento com a tradição. Ela anuncia uma repetição, mas é diferença sempre. A paródia é a abertura de uma lacuna no tempo “vazio e homogêneo” mencionado por Walter Benjamin (1993, p. 229) em uma das suas Teses sobre a história. No caso da paródia, será no tempo da tradição literária que se abrirá uma lacuna. Resvalando no passado, ela transforma o próprio presente. Ela pode retirar a aura, para lembrar outra expressão cara a Benjamin no seu artigo “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1993, p. 165 et seq.), do texto parodiado ou pode investi-lo de uma nova aura. Nesse processo, a própria paródia adquire uma aura: a de ser diferença, porque não é mais o texto parodiado, e a de


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ser repetição, porque toda paródia tem um desejo oculto e dissimulado de ressuscitar os mortos. A consciência histórica da paródia “lhe dá o potencial para, simultaneamente, enterrar os mortos, por assim dizer, e também para lhes dar nova vida” (Bethea; Davydov apud Hutcheon, 1989, p. 128). O recurso constante da paródia está voltado em A menina morta, como na maioria dos romances modernos, a um embaralhamento de fronteiras, a um embaralhamento do que seria a alta e a baixa literatura. Grosso modo, poderíamos dizer que a alta literatura seria aquela que resistiria a leituras rápidas e descompromissadas, enquanto a baixa pertenceria ao universo do entretenimento. Parodiando o romance gótico, Cornélio Penna constitui seu romance, sobretudo A menina morta, na fronteira entre a alta e a baixa literatura, uma fronteira que muitos modernistas pretendiam ver destruída e que, como escritor do seu tempo, ele contribuiu para aniquilar. Retomando uma última vez o conceito de Linda Hutcheon sobre a paródia moderna, no qual a ironia se coloca como fundamental, perceberemos que provavelmente essa é a maior de todas as ironias cornelianas: uma obra requintada parodiando um gênero romanesco típico da literatura de massa, o gótico. O autor de A menina morta seria um colecionador de fantasmas, inclusive de fantasmas textuais. E é por isso que ele se emoldura de forma eficiente no epíteto atribuído por Mário de Andrade – um “antiquário apaixonado”. Mas esses fantasmas estão a serviço do presente. Falando do e com o passado, a paródia dialoga com o seu momento histórico, o da própria paródia. Cornélio Penna escreveu e publicou seu principal livro quando o Brasil passava por um período de desenvolvimento econômico financiado sobretudo pelos Estados Unidos. O progresso anunciado então pretendia apagar o passado. Segundo o historiador francês Ernest Renan, no seu clássico “O que é uma nação?” (publicado originalmente em 1882), esquecer a violência da origem é essencial para a configuração do nacional (Renan, 2000, p. 56). O patriarcalismo escravocrata seria precisamente


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essa violência que deveria ser esquecida. No entanto, A menina morta é um romance que resiste, não nos deixando esquecer e problematizando uma suposta fundação nacional harmônica.

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Graciliano Ramos e “os fuzuês de Rocambole”: leituras sob o império da imaginação Fernanda Coutinho*

RESUMO:

O propósito deste trabalho é relacionar historiografia literária e literatura comparada, por intermédio dos modos de apreensão do herói folhetinesco Rocambole, em ambientes distantes geográfica e culturalmente, como o buliçoso Rio de Janeiro do século XIX e a pacata cidade de Viçosa, em Alagoas. Vai-se tomar como bússola, para tal, a circunstância de leitura do romance folhetim por parte do Graciliano Ramos menino, a qual desencadeia no futuro escritor um novo padrão de apreciação do texto literário, fornece notícias sobre o papel dos mediadores locais e lança questionamentos sobre a existência ou não de um cânone literário infantil à época. PALAVRAS-CHAVE: historiografia literária, literatura comparada, leitura, Rocambole. ABSTRACT :

The aim of this paper is to relate Literary Historiography and Compared Literature, by means of the manners of apprehension of the pamphlet hero, Rocambole, in different environments, according to geography and culture, like the XIXth century restless Rio de Janeiro, on one hand, and the peaceful town of Viçosa, in Alagoas, on the other. The compass for this relationship will be the reading of serial popular novels by Graciliano as a child, which causes in the future writer a new pattern of appreciation of the literary text, supplies information about the local mediators’ role, and throws doubts about the existence or not of an infantile literary canon at the time.

KEYWORDS :

Literary Historiography, Compared Literature, reading, Rocambole.

Universidade Federal do Ceará (UFC). *

Na História de 15 dias, de 1877, no Livro I, “Aleluia, Aleluia”, Machado de Assis faz urbe et orbi a confissão de


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um pecado. Essa confissão, na realidade, é dirigida, mais exatamente, “a todos os ventos do horizonte: eu (cai-me a cara ao chão), eu [...] nunca li Rocambole, estou virgem dessa Ilíada de realejo”. O cronista prossegue enumerando uma série de outras “obras mágicas”, que, ao contrário, haviam sido objeto de sua leitura, para ao final, em tom bem-humorado, acrescentar: “[...] nunca jamais em tempo algum me lembrou ler um só capítulo do Rocambole. Inimizade pessoal? Não; posso dizer à boca cheia que não. Nunca pretendemos a mesma mulher, a mesma eleição, o mesmo emprego” (Assis, 1982, p. 357). A título de remissão da aludida falta, o escritor carioca recorda-se da antiga encenação de um drama levado ao teatro por Furtado Coelho1 onde pôde ver e ouvir: o ágil Rocambole, de uma agilidade próxima à ubiquidade – duvidar, quem há-de? –, se não, como escapar ao emaranhado de aventuras, que lhe fartavam a trepidante existência? O controvertido personagem prossegue em sua mira, na História de 15 dias, sendo assunto do Livro II, intitulado “Aquiles, Enéias, Dom Quixote, Rocambole”, no qual, numa comparação empreendida entre ele e os outros personagens igualmente dados a façanhas, o cronista, embora não conceda realeza a Rocambole, como aos dois primeiros, ou sublimidade, ainda que apenas nas intenções, como no caso do cavaleiro da triste figura, não lhe nega, contudo, importância, como se verifica no fecho da crônica: “Outrora excitavam pasmo aquelas descomunais lanças argivas. Hoje admiramos os alçapões, os nomes postiços, as barbas postiças, as aventuras postiças. Ao cabo, tudo é admirar” (Assis, 1986, p. 358). Ao se referir ao personagem folhetinesco e ao glosar o espírito desse gênero de narrativa, tomando-os como assunto dessas saborosas notícias sobre o Rio de Janeiro de seu tempo, a nonchalance de Machado de Assis abre espaço para uma reflexão acerca das relações entre literatura comparada e historiografia literária.

Luís Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado Coelho nasceu em Lisboa em 1831, vindo para o Rio de Janeiro em 1856. Na corte, esse versátil lisboeta desenvolveu as atividades de teatrólogo, romancista, ator, empresário teatral, além de compositor e pianista, daí o pseudônimo de Fallopio. Furtado Coelho faleceu em Lisboa, em 1900, desaparecendo junto com o século que ele tanto ajudou a alegrar. Machado de Assis a ele se refere em outra crônica do mesmo livro, dizendo: “Na hora em que escrevo estas linhas, preparome para ir ver um sapatinho de cetim, – o sapatinho que Dona Lucinda nos trouxe da Europa e que o Furtado Coelho vai mostrar ao público fluminense”.

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É, portanto, o bom, velho e dissimulado Machado de Assis – quem é capaz de garantir que todo esse vácuo quanto às páginas recolhidas via leitura não passa de mais um de seus logros? – que aqui mediará a abordagem da questão. O ângulo preferencial desta análise será o protocolo de leitura que o herói criado por Ponson du Terrail (Montmaur, 1829 - Bordeaux, 1871) desencadeará em Graciliano Ramos (Quebrangulo, AL, 1892 - Rio de Janeiro, 1953), não, porém, no escritor consagrado, e, sim, no Graciliano menino que se iniciava no universo da leitura. Registrando a presença do personagem francês no gosto literário de sua época, Machado de Assis empreende uma ponderação de delineamento historiográfico, na medida em que deixa entrever a compreensão das narrativas literárias como histórias de muitos portos – do Havre ao porto do Rio de Janeiro, por exemplo, por quantos lugares não passara o irrequieto Rocambole? Esse aspecto marca a dinamicidade do fenômeno ficcional, e assinala igualmente a flexibilidade da compreensão da historiografia literária, na medida em que a ela se agrega o influxo irradiador comparatista. Uma viagem dos livros, então, poderia ser uma primeira fórmula para se pensar a literatura, nessa conjunção entre historiografia e comparativismo. Como se sabe, cabe ao historiador literário o papel de ordenador das experiências estéticas de um determinado povo, e, no desempenho de sua tarefa, não poderia prescindir de um critério de ação. Que critério adotar, então? A questão não é simples, pois são inúmeras as variáveis envolvidas nessa que é indubitavelmente uma cartografia intrincada. A pergunta de Yves Chevrel: “Será possível escrever uma história da literatura européia?” (Chevrel, 2004, p. 55) concentra um debate problemático, o qual, ainda que em menor escala, está presente na raiz de indagação semelhante: Será possível escrever uma história da literatura brasileira? Materialmente, a resposta é positiva e boas histórias circulam nas mãos de quem se interessa por essa


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sorte de estudos. O que se quer colocar aqui, partindo das observações de Chevrel, é que, de uma maneira geral, a historiografia tem-se apegado à noção de organicidade, buscando precipuamente ser fiel à linha do tempo em que se inserem autores e obras. O estudioso assinala em seguida que “para integrar a história das criações literárias numa história que não seja uma sucessão de notícias individuais, o historiador de uma literatura nacional faz apelo a grandes conjuntos, delimitados por referências à vida política e social do país em causa” (Chevrel, 2004, p. 66-67). E fornece como exemplos a tendência à sucessividade dos séculos adotada pela literatura francesa, a vinculação aos reinados na da Inglaterra e a ligação a eventos significativos, do ponto de vista literário, na Alemanha, a qual toma como baliza a morte de Goethe. Em “O lugar do leitor: do texto aberto aos protocolos de leitura”, chama-se a atenção para o fato de que a seleção de obras e autores com fins didáticos, que redunda na constituição de escolas e de estilos, dá-se “posteriormente à elaboração das obras em si e que ela tem caráter precário e provisório” (Pinto, 2004, p. 56). Pelo que se percebe, então, é necessário cautela a fim de não deixar prevalecer para a historiografia unicamente um padrão de linearidade, como o sugerido pelo crivo temporal, do contrário, muitas questões permanecerão em aberto, principalmente as relativas à intervenção do leitor como um novo regente no que toca a uma reorganização do campo literário, reorganização sugerida por uma série de aspectos, inclusive os ditados por sua subjetividade. Tratando a questão de forma mais específica: Como explicar momentos fulgurantes da presença de Rocambole em nosso sistema literário – como no caso de Graciliano Ramos – tendo por base uma historiografia de feição periodológica? Sabe-se que o auge da fortuna do personagem corresponde à voga do romance-folhetim, principalmente à época de nosso Romantismo.2

Para esse gênero de estudos, a fonte primordial é o hoje clássico: Folhetim: uma história, de Marlyse Meyer.

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No entanto, proclamando sua paixão pelo personagem, já em pleno século XX, na medida em que o elege como indutor de maravilhamento, Graciliano Ramos implanta uma dupla sinuosidade no traçado historiográfico brasileiro: em primeiro lugar, pela reinstalação do personagem em lugar de destaque no sistema literário, e, em segundo, por alocá-lo como material de evasão a ser fruído pelo público infantil, quando antes fora ele mais legitimamente fonte de leitura de adultos. Fica assim mais um questionamento: como situar Rocambole em face da historiografia literária infantil brasileira? Em outras palavras, o que liam nossas crianças nesse período? Como se verifica, torna-se pertinente, nesse sentido, entender o fenômeno historiográfico a partir da dimensão comparatista, pelo viés de uma história da leitura, a qual também se escreve pelo registro do efeito catártico decorrente do convívio com a dimensão fantasiosa da ficção. A esse propósito, retomando o metadiscurso em que Machado discorre sobre as diferenças entre o outrora e o contemporâneo de sua época, no que diz respeito ao “excitar pasmo”, vê-se aí colocada em evidência a necessidade humana, demasiadamente humana, de fuga ao ordinário, aspecto que remonta às ponderações platônicas, que detectavam na evasão provocada pela arte um descaminho para a harmonia da alma. Essa discussão, por direito, também inclui Aristóteles, que, em desacordo com seu mestre, enxergava nessa espécie de desvio uma das fórmulas de conquista dos leitores das epopeias ou dos espectadores das encenações dramáticas. Mario Vargas Llosa, por sua vez, em A verdade das mentiras, coloca a ficção como o fator de homeostase engendrado pela imaginação para acomodar elementos tão discordantes como a limitação da realidade e a desmedida da vida imaginária. Ao mergulharmos na ficção, diz ele: “Nela nos dissolvemos e nos multiplicamos, vivendo diversas outras vidas além da que temos e das que poderíamos


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viver se permanecêssemos confinados no verídico, sem sair do cárcere da história” (Llosa, 2004, p. 25). Todas essas observações revelam-se pertinentes, na passagem do Rio de Janeiro do século XIX, à Alagoas do princípio do século XX, onde é possível agora, como já se sabe, encontrar o mesmo Rocambole, bem situado no mapa das leituras de formação de Graciliano Ramos, que não quis repetir o “pecado” de seu antecessor. Em seu caso, aliás, se houvesse culpas a confessar, iriam elas exatamente na direção oposta. Se a recepção das mirabolâncias envolvendo o personagem chega a bouleversar o futuro escritor, é bem o caso de se perguntar em que condições ocorreu esse contato, tomando essa circunstância de leitura como um elemento a mais no entendimento da historiografia pela visada comparatista. A resposta à pergunta comporta uma retrospecção acerca dos primeiros anos de Graciliano relatados em Infância, os quais dão conta de um indivíduo totalmente acachapado por temores. É um massacrado narrador retrospectivo que, por exemplo, afirma a certa altura do texto: “Eu vivia numa grande cadeia.” E agudiza ainda mais a afirmação, desdizendo-se, ato contínuo, por meio da retificação amesquinhante: “Não, vivia numa cadeia pequena, como papagaio amarrado na gaiola” (Ramos, 2006, p. 220-221). Nesse sentido, esse livro de memórias tem o poder de um libelo ao expor cruamente as agruras sofridas pelas crianças em geral e pelo narrador em particular, agruras decorrentes do atraso reinante, no interior do Brasil, nesse período, no tocante à qualidade das interações interpessoais, ao modelo dos rituais de entrada no universo das letras e ao desconhecimento da criança como um ser idiossincrático. Essas experiências primordiais trouxeram como consequência muitos transtornos até que o menino conseguisse se desembaraçar das dificuldades encontradas na elucidação dos “cipoais escritos” e da “confusão de veredas espinhosas” (Ramos, 2006, p. 132). Esses sintagmas tra-


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duzem à perfeição a condição de seu contato inicial com o mistério das letras, colocando, inclusive, num mesmo patamar de aridez elementos distintos como natureza e cultura. Por que a forma de se abeberar do conhecimento deveria necessariamente reproduzir a secura da caatinga, com sua vegetação pouco veludosa? Mas, superado o temor dos hieróglifos esfingéticos, e alcançada a decifração dos caracteres antes esotéricos, dá-se uma metamorfose: a criança é tomada por uma febre de leitura, o que também se encontra anotado nas páginas de reminiscências. Eu precisava ler, não os compêndios escolares, insossos, mas aventuras, justiça, amor, coisas até então desconhecidas. Em falta disso, agarrava-me a jornais e almanaques, decifrava as efemérides e anedotas das folhinhas. Esses retalhos me excitavam o desejo, que se ia transformando em ideia fixa (Ramos, 2006, p. 229).

Tomando por base a precariedade de livros no interior alagoano, Dênis de Moraes simula a seguinte situação narrativa, em suas memórias de Graciliano, deixando à mostra a generosidade de Jerônimo Barreto: “Como consegui-los em Viçosa senão recorrendo à sedutora biblioteca do tabelião, porta de entrada para terras inóspitas e segredos bem guardados? Jerônimo sorriu gostosamente, alisando-lhe com a palma da mão os cabelos mirrados. – Pegue o que você quiser, são seus – disse, quebrando a distância entre o menino de calça curta e a fortaleza de tomos encadernados” (Moraes, 1996, p. 6-7). 3

Onde, entretanto, encontrar livros de verdade, naquele meio tão acanhado? Audálio Dantas, biógrafo do Graciliano menino, descreve-o passeando pela calçada da casa do tabelião Jerônimo Barreto, “espichando os olhos para a sala onde uma grande estante exibia encadernações coloridas” (Dantas, 2005, p. 26).3 Alimentando-se dos intercâmbios entre sistemas artísticos, a literatura comparada ampara-se enormemente na noção de “mediador”, noção duplamente conotada, pois reúne “tudo o que condiciona as transferências, quer se trate de suportes materiais ou da ação de personalidades” (Chevrel, 1989, p. 54). Ao confiar seu patrimônio literário ao ávido leitor, Jerônimo Barreto transforma-se em um dos elos dessa cadeia que liga as literaturas de línguas irmãs. Barreto faria o papel de alguém encarregado de entregar o bilhete de viagem ao passageiro, prestes a se lançar no mundo aventuroso. No caso de Graciliano, a referência às capas coloridas dos livros do tabelião contrasta vivamente com a descrição material do breviário infantil da época, o livro do Barão de


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Macaúbas: “Um grosso volume escuro, cartonagem severa. Nas folhas delgadas, incontáveis, as letras fervilhavam miúdas, e as ilustrações avultavam num papel brilhante como rasto de lesma ou catarro seco” (Ramos, 2006, p. 129). Não por acaso, o autor do breviário, Abílio Borges (1842-1891), fundador do Colégio Abílio, e considerado o protótipo para o Aristarco de O Ateneu, romance de Raul Pompéia, publicado em 1888, inspirou ao velho Graça uma crônica nada edificante, transcrita na seção de Linhas tortas, denominada “Traços a esmo”, na qual o autor, sob o pseudônimo de J. Calisto, vocifera: “Voto ao muito ilustre educador Abílio Borges uma profunda aversão. Nunca perdoarei àquele respeitável barbaças as horas atrozes que passei a cochilar em cima de um horrível terceiro livro que uns malvados me meteram entre as unhas” (Ramos, 2005, p. 94). Depois de relatar minuciosamente, em todas as suas estações, o calvário das crianças que tiveram de se submeter a tais padecimentos, o cronista conclui: “Os livros infantis! Que livros! São paus de sebo a que a meninada é compelida a trepar, escorregando sempre para o princípio antes de alcançar o meio, porque afinal aquilo é um exercício feito sem o menor interesse de chegar ao fim” (Ramos, 2005, p. 94). A comparação de Graciliano remete, por contraste, à ideia da leitura como algo indutor de prazer, aventura espontânea e não exercício compulsório e sensaborão como o há pouco descrito. Seria preferível, então, retomar a potência da ideia de viagem para espelhar sua nova forma de relacionamento com os livros, relacionamento mediado pelos encantos da fantasia. A viagem, trazendo em si a noção do abandono ao estático, revela, com precisão, o sentido de dinamicidade, de troca, de convívio com o diferente, aspectos tão caros à imagologia, um dos pilares da literatura comparada. Como tal, é possível pensar, neste segundo momento, nas viagens realizadas pelo leitor por meio das histórias que vão sendo absorvidas por seu imaginário.


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No caso de Graciliano, na faixa dos dez anos de idade, a revelação de outras realidades vai sendo feita, pouco a pouco, pelo próprio Jerônimo Barreto, que inicia sua cruzada literária por meio do empréstimo de obras do Romantismo, como O Guarani, embora Alencar não chegue exatamente a empolgar o leitor principiante. Depois: histórias do Macedinho, e, em seguida, Jules Verne. Na realidade, contudo, o frisson em seu estado mais vivo coincidirá com o sôfrego virar de páginas em busca dos inumeráveis “e depois” que são a própria essência da vida do personagem de maior apelo de Ponson du Terrail. É um narrador distanciado do terra-a-terra de seu cotidiano que registra em Infância: “Nesse tempo eu andava nos fuzuês de Rocambole”. E as aventuras de tirar o fôlego eram sorvidas “em folhetos devorados na escola, debaixo das laranjeiras do quintal, nas pedras do Paraíba, em cima do caixão de velas, junto ao dicionário que tinha bandeiras e figuras” (Ramos, 2006, p. 232). O discurso reiteradamente hiperbólico da afirmação de Graciliano vem ao encontro do entendimento da leitura como “uma viagem, uma entrada insólita em outra dimensão que, na maioria das vezes, enriquece a experiência”. A complementação desse pensamento reside na afirmação de que “o leitor que, num primeiro tempo, deixa a realidade para o universo fictício, num segundo tempo volta ao real, nutrido da ficção” (Jouve, 2002, p. 108). No caso de Graciliano, a evasão como uma experiência nutridora da psique pode ainda ser aferida pela valorização do indivíduo: essas leituras vão representar uma prática balsâmica, um pilar na constituição de um novo sujeito. Se, anteriormente a essa experiência, o menino constrangia-se com o pouco caso em que era levado na escola e em casa, agora conhecia o valor da solidão produtiva, ou melhor, reconhecia que se evadir das pessoas em função de uma boa narrativa, isso, sim, era compensador. Quando tomei pé na Europa, eles exploravam outras partes do mundo. Surdo às explicações do mestre, alheio aos


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remoques dos garotos, embrenhava-me na leitura do precioso fascículo, escondido entre as folhas de um atlas. Às vezes procurava na carta os lugares que o ladrão terrível percorrera. E o mapa crescia, povoava-se, riscava-se de estradas por onde rodavam caleças e diligências. Conheci desse jeito várias cidades, vivi nelas, enquanto os pequenos em redor se esgoelavam, num barulho de feira. O rumor não me atingia. Em vão me falavam. Sacudido, sobressaltava-me, as idéias ausentes, como se me arrancassem do sono (Ramos, 2006, p. 233).

Em histórias de leitura de literaturas de outras procedências também é possível deparar com passeios pelos bosques da ficção, em registro semelhante ao de Graciliano, em que a solidão, longe de estorvar, aparece regida pela plenitude. Esse é um novo eixo que se apresenta para a correlação historiografia versus literatura comparada, sendo, então, interessante lembrar, a respeito, os depoimentos de Marcel Proust e de Jean-Paul Sartre, colhidos em livros que remetem às suas memórias infantis. Em Sobre a leitura,4 é transcrito o comentário que se segue: “Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que pensamos ter deixado sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido” (Proust, 1989, p. 6). No depoimento de Sartre, o que parece ser uma declaração de não infância, a princípio, fica patenteado, ao final, como uma vivência em pleno reino do ludus. As densas lembranças, e a doce sem-razão das crianças do campo, em vão procurá-las-ia, eu, em mim. Nunca esgaravatei a terra nem farejei ninhos, não herborizei nem joguei pedras nos passarinhos. Mas os livros foram meus passarinhos e meus ninhos; meus animais domésticos, meu estábulo e meu campo; a biblioteca era um mundo colhido num espelho; tinha a sua espessura infinita, a sua variedade e a sua imprevisibilidade (Sartre, 1978, p. 14).

As ponderações teóricas de Proust sobre a leitura apareceram inicialmente em um seu prefácio à tradição de Sésame et les Lys, de John Ruskin. O que seria, a princípio, um simples prefácio adquiriu foros de obra independente, pela profundidade do conteúdo. O livro, intitulado Les Hautes et fines enclaves du passé, trazia como subtítulo Sur la lecture. A tradução brasileira ateve-se ao subtítulo, que passou a designar a obra. 4


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Infância, como se verificou, dá ainda a conhecer a rusticidade dos lugares das práticas leitoras de então, dando margem a um cotejo com outra experiência de leitura, no caso, agora, a de um escritor brasileiro, o próprio José de Alencar. Já se tornou lugar-comum em nossa história social a referência ao “ledor da família”, como ele se autointitula em Como e por que sou romancista. Para ele, esse cargo era uma honraria da qual se orgulhava, como nunca acontecerá depois no magistério ou no parlamento. Ao se reportar aos hábitos culturais no ambiente doméstico brasileiro no século XIX, Leila Mezan Algranti relaciona a leitura em voz alta ou silenciosa ao gozo da intimidade dentro dos lares, o que é atestado, segundo ela, pelo achado fortuito de livros nos inventários paulistas e mais ainda no das famílias ilustradas do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. A estudiosa afirma, contudo, que “Não era, todavia, hábito muito difundido, tomando-se em conta, inclusive, o fato de grande parte da população ser iletrada até o início do século” (Algranti, 1997, p. 115). Se Graciliano não experimenta a liberdade de leitura de Proust e Sartre, inclusive na facilidade de posse dos livros, nem o destaque de Alencar, junto aos familiares, sabendo-se que os seus eram, quase sempre, desapegados dos livros, em compensação, depois de adentrar o mundo ficcional, fica difícil pensar, ainda, no “papagaio preso na gaiola”, tristemente agarrado à sua prisão? O arrebatamento provocado pela leitura, a satisfação colhida na viagem por meio dos livros, revela agora alguém presa dos encantamentos, das seduções das histórias cheias de idas e vindas dos personagens, num movimento frenético que ultrapassa as páginas dos folhetos, vindo reverberar no arrebatamento feliz de quem empreende a descoberta de outros mundos. Daí por diante, o novo leitor redesenha os contornos de uma realidade que não esboça nenhuma resistência ao seu comando, ao contrário dos ásperos acontecimentos do mundo empírico. Nesse sentido, é cabível falar na experiên-


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cia do gaudium, assim definida por Barthes: “prazer que a alma experimenta quando considera a posse de um bem presente ou futuro como assegurada; e possuímos tal bem quando ele está de tal forma em nosso poder que podemos usufruir dele quando queremos” (Barthes, 2003, p. 47). As leituras francesas do Graciliano criança, particularmente as de Ponson du Terrail, são elementos importantes para o desenho de um diagrama do trânsito dos livros no circuito Europa/Brasil, na passagem do século XIX para o século XX, diagrama que, se não repercute o gosto literário da época em nosso país – o Rocambole do bulício da Corte já não causa tanto furor no Rio de Janeiro republicano dos marechais –, pelo menos o faz com relação à pacata localidade em que vivia o escritor, aqui plasticamente descrita por Audálio Dantas: “O Morro do Pão-sem-miolo é um dos muitos que rodeiam a cidade de Viçosa, em Alagoas. A cidade sobe por ele, espicha-se em ruas compridas, enrola-se em becos, as casas humildes mal enfileiradas” (Dantas, 2006, p. 17). Cabe então uma pergunta: Por que as aventuras do herói de Ponson du Terrail, Rocambole, deixava os leitores, crianças e adultos nesse estado de sofreguidão? Herdeiras do espírito frenético dos romances barroco e gótico, suas narrativas transformaram-no, segundo Patrice Soler, em um “mito da literatura popular” (Soler, 2001, p. 380). Nos folhetins em que figurava, reinava a pletora de incidentes dramáticos, neles desfilando vampiros, castelos, príncipes, testamentos. Aliás, o tema da herança é praticamente onipresente, dando a Rocambole a oportunidade de exercer ações que empurravam com todo vigor a narração para os caminhos sem fronteiras da inverossimilhança. Reprisando, mais uma vez, a ideia de viagem, flagrase agora o próprio criador como um flanêur, e dessa flanêrie criam-se novas circunvoluções no terreno da arte literária, a viagem que os escritores empreendem a um sítio comum, patrimônio sedimentado no fluxo leitura/impregnação/reescrita. O sentido da viagem encontra assim equivalência


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“tessitura, biblioteca, entrelaçamentos, incorporação ou simplesmente diálogo”. “A literatura se escreve, é verdade, em uma relação com o mundo, mas principalmente em uma relação consigo própria, com sua história, a história de suas produções.” 5

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na noção de intertextualidade, definida por Tiphaine Samoyault como “mémoire de la littérature” (Samoyault, 2001, p. 1). Tendo em vista a super utilização do termo intertextualidade, a autora adverte sobre o atual emprego de expressões menos pontuais para dizer da presença de um texto em outro. Assim é que se reporta a “tissage, bibliothèque, entrelacs, incorporation ou simplesment dialogue”. Chama ainda a atenção para o fato de que “la littérature s’écrit certes dans une relation avec le monde, mais tout autant dans une relation avec elle-même”5 (Samoyault, 2001, p. 5). Como tal, é importante grifar a observação de Soler sobre a presença nos Dramas de Paris, de Ponson du Terrail, de autores franceses como Eugène Sue, Balzac e Victor Hugo, dentre outros. No caso, então, Rocambole teria em suas veias o sangue de “Rodolfo, de Os Mistérios de Paris, de Monte-Cristo, de Dumas, de Valjean e de Vautrin” (Soler, 2001, p. 380). Soler atualiza o personagem fazendoo próximo de uma versão masculina de Zazie, a Zazie de Zazie dans le métro, de Raymond Queneau (1959), que se apresentará em um outra roupagem, no filme de Louis Malle, de 1960. Como se vê, as aproximações entre historiografia e literatura comparada, com a abertura da última rumo ao mundo da leitura, puderam revelar produtividade ao se pensarem questões como a existência ou não de um cânone da literatura infantil no começo do século XX, nas regiões interioranas do Brasil. O fato de Graciliano leitor ter-se iniciado por obras da literatura adulta tem algo a nos inquirir. Outro aspecto importante é sua confessada predileção pela literatura de folhetim, inscrita mais frequentemente no rol da chamada paraliteratura. Graciliano, que em sua atividade de escritor se firmou como um esteta, apresenta essa faceta de descompromisso com um rigor de elaboração textual em seus momentos de formação. O que só vem demonstrar que as respostas para tanto se encontram em aliar-se historiografia e literatura comparada, e ambas, investigando as condições de leitura do escritor, facilmente vão descobrir na soltura


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do folhetim a descompressão psicológica buscada pelo menino alagoano. As notícias biográficas relacionadas a Graciliano Ramos costumam registrar 1952 – o ano anterior à sua morte – como o ano de sua visita à França, convidado para assistir às comemorações do sesquicentenário de Victor Hugo, viagem essa que compôs o roteiro europeu, cujo ponto mais alto seriam os festejos de 1º de maio, em Moscou. Em Mestre Graciliano, confirmação humana de uma obra, Clara Ramos assinala o pouco entusiasmo do pai com relação a deslocamentos, informando que, nessa circunstância, o velho Graça “é outra vez viajado” (Ramos, 1979, p. 232), acrescentando, contudo, que, em Paris, o escritor brasileiro “dá longas caminhadas pelo cais Anatole, ruelas e avenidas, examinando as caixas dos alfarrabistas, ‘como um basbaque, interrogando sem-cerimônia a gente da rua’” (Ramos, 1979, p. 232). Na realidade, pelo que foi visto, Graciliano, de um outro modo, já desfrutara daquelas paisagens, não exatamente as mesmas, porque o progresso, marca registrada da passagem do século XIX para o XX, encarregara-se de atapetar a bela cidade de exuberantes jardins, dotando-a, também, de grandes bulevares, mais apropriados à circulação fervilhante de pessoas e automóveis, pois, como se sabe, a palavra da moda, de há muito, vinha sendo velocidade. Com relação à França, no entanto, o viajante já experimentara outras sensações de espanto, pois o leitor Graciliano antecedeu o escritor na realização de frequentes e estimulantes viagens àquele país, viagens por ele mesmo buscadas, proporcionadas por um outro grande leitor, Jerônimo Barreto, e que tiveram como guia habitual Ponson du Terrail, sob cuja sombra transpareciam Balzac, Dumas, Eugène Sue, Victor Hugo e tantos outros adoráveis mentirosos.


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E se o reverso da história chegasse em dobras: os mutantes em Maria Gabriela Llansol Celina Martins*

RESUMO: O livro das comunidades, de Maria Gabriela Llansol, subverte a narrativa histórica e canónica. Llansol apropria as qualidades e o fluxo da rebelião de místicos e pensadores que transgrediram o pensamento hegemónico. Llansol apoia-se na técnica da sobreimpressão de modo a criar uma ucronia eudemonista a partir da qual São João da Cruz, Ana de Peñalosa, Thomas Münztzer e Nietzsche tornam-se figuras do texto que interagem, segundo o inesperado encontro de energias e de afectos. A metaficção llansoliana cria a cosmogonia do novo, em que o eterno retorno da escrita e da leitura propõe uma geografia espiritual reinventada, dado que fora abolida pela lógica do poder. PALAVRAS-CHAVE:

sobreimpressão, ucronia, mística europeia, eterno retorno da leitura e da escrita. ABSTRACT:

The Book of Communities by Maria Gabriela Llansol is a fragmentary writing which subverts the canonical and historical narrative. Llansol absorbs qualities and the rebellious flow of mystic men and historical thinkers, men who have transgressed the hegemonic thought. She draws upon the technique of overprinting so as to create an eudemonist uchrony in which St John of the Cross, Ana de Peñalosa, Münztzer and Nietzsche become textual figures that interact according to the unexpected encounter of energies and affects. Llansol’s metafiction has the creative potential to offer a new cosmogony where the eternal return of reading and writing puts forth a renewed spiritual geography, which had been erased by the logic of Power. KEYWORDS: overprinting, uchrony, European mysticism, eternal Universidade da Madeira (UMa). *

return of reading and writing.


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O ciclo do Renascimento não está concluído; ainda há tempo, para voltar ao seu começo, e reescrever-lhe um novo sentido. (Maria Gabriela Llansol, 2005) A minha forma de rebeldia foi tão-só a recusa de o viver mutilada. (Maria Gabriela Llansol, 1998) Escrevo movimento puro. (Clarice Lispector, 1999)

Desde a publicação d’O livro das comunidades (1977)1 até Os cantores da leitura (2007), Maria Gabriela Llansol (1931-2008) explorou a textualidade fragmentária, cada vez mais depurada, forjando uma escrita questionante e hermética, que molda a miscigenação genológica, segundo o princípio reactivador da metamorfose. Durante o exílio na Bélgica, de 1965 a 1985, por causa da deserção colonial de Augusto Joaquim, seu cúmplice de “fluição” (2000, p. 268), concentrou-se na feitura de uma escrita que desmantela a verossimilhança realista, assente no psicologismo dos personagens. Nos anos setenta, trabalhou numa escola experimental que acolhia os filhos dos estudantes estrangeiros. A desterritorialização permitiu o distanciamento crítico em face de um Portugal inerte e a reflexão sobre os encontros imprevisíveis entre místicos, filósofos e poetas que poderiam ter gerado outros modos de pensar o homem em relação com o seu lugar, imaginário e todas as formas do vivo: nós dizíamos como a cultura europeia de que a portuguesa faz parte (a um ponto que os portugueses não imaginam), era marcada por encontros de confrontação que não se deram – e poderiam ter sido autênticos recomeços de novos ciclos de pensamento e de formas de viver (Llansol, 1998, p. 105).

Llansol desconstrói o paradigma expansionista dos descobrimentos e a trepadeira do poder porque são regidos

Consultámos a segunda edição, de 1999. No corpo do texto, figurarão doravante a data e a página.

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Itálicos do autor.

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pela voragem da posse e acarretam a imposição de modelos dogmáticos. A aventura marítima dos portugueses é um muro que bloqueia Portugal no “ser histórico em estado de intrínseca fragilidade” (Lourenço, 2005, p. 25),2 sem comunicação com um destinatário real. Contra essa herança marcada por guerras e desavenças, a escritora postula o encontro da cultura portuguesa com visionários europeus, numa escrita que valoriza a liberdade de consciência no sentido de criar uma cosmogonia distinta, que redimensione o humano e derrube as distinções de hierarquia. É desde a perspectiva do pensamento e da palavra diferenciados do rebelde que Llansol revela nós fulcrais que a tradição hegemónica não conseguiu apreender. Llansol perscruta e redimensiona os vestígios desses encontros improváveis, diluídos num “gotejar contínuo de acções inacabadas” (Llansol, 2005, p. 47), soterradas num abismo sem fim. Em lugar de apontar para uma visão definida e estática do passado, sob o signo do historicismo oitocentista, Llansol escava e relê as dobras de uma História subterrânea, em que abala o tempo “homogéneo e vazio, antes formando um tempo pleno de ‘agora’” (Benjamin, 1992, p. 166), privilegiando a coexistência de tempos diferenciados e de espaços heterogéneos. Em Finita, “diário interrogante sobre o processo da escrita associado às leituras marcantes do quotidiano”, a escritora revela a sua visão avessa à História institucionalizada, legada pelo positivismo, assente na origem, causalidade e linearidade cronológica. Contra o discurso totalizante, Llansol cria a escrita da inquietude na medida em que articula um tempo por vir, constituído pela inter-relação de vários passados simultâneos, no sentido de introduzir fendas e dissonâncias, desfazer o imposto e relançar perguntas sobre a exploração dialéctica do passado: […] não suporto a palavra História, e no entanto, há centros de irradiação, tramas sólidas de geografias espirituais, lugares de recorrência, humanos duradouros e perduráveis:


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tudo o que encontrar aqui será imperceptivelmente belo, ou tornar-se-á belo (Llansol, 2005, p. 66).

É a partir da cosmogonia perscrutadora das geografias espirituais da Idade Média até ao século XVII que Llansol reescreve e reinventa a História, particularmente, nas trilogias “A geografia dos rebeldes” e “O litoral do mundo”,3 assim como em Lisboaleipzig 1: o encontro do diverso e Lisboaleipzig 2: o ensaio da música. Num imbricamento intratextual elíptico mas coerente, todos esses tecidos intercomunicantes encenam tensões e convívios inauditos entre protagonistas históricos associados ao misticismo (Eckhart, Hadewijch, São João da Cruz, Ibn Arabi), à emergência da liberdade de consciência (Müntzer, Copérnico, Nietzsche), à revisitação transfigurante da cultura portuguesa (Luís M/Comuns/Camões, D. Sebastião/D. Arbusto, Jorge de Sena/Jorge Anés), à travessia do dom poético (Pessoa/Aossê e Johann Bach) e à demanda da Alegria (Espinosa). Todos são transformados na “irmarginação” (Llansol, 2000, p. 268) da escrita mediante a sobreimpressão, processo visual por meio do qual a escritora sobrepõe tatuagens na pele do texto, que respira a sinergia de linguagens polifónicas. Destituídas do seu passado vivido como silêncio e excomunhão, as figuras4 migram para a comunidade dos mutantes, que não se reduz a uma série preexistente. Próxima da comunidade de Agamben (1993, p. 11-12), os “forade-série” (1999, p. 9) não se cingem a uma essência impositiva. O mutante é um ser do texto que Llansol não cessa de transformar porque é no encontro imprevisto de vibrações e de afectos que todos experenciam o renascer, alimentando-se na criação. Segundo a metáfora do clinamen de Lucrécio – turbilhão de forças que opera uma inclinação ou um desvio sobre um estado unidireccional (Mourão, 2003, p. 18) –, o texto de Llansol cria espaços de atracção e de desvio em que as figuras de mundividências diferenciadas interagem e se interpenetram, impelidas pelo novo.

Esta trilogia é constituída pelos livros O livro das comunidades, A restante vida e Na casa de julho e agosto. A segunda trilogia integra Causa amante, Contos do mal errante e Da sebe ao ser.

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No discurso metaliterário de Llansol, o termo “figura” é um dos “nós construtivos do texto” (Llansol, 1998, p. 130) que abala o continnum espaço-tempo, desencadeando grandes mudanças de energia “que põem em risco o corpo […] e modificam a forma de sentir e de viver” (LLANSOL, 1994, p. 142-143).

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A partir da leitura de alguns fragmentos d’O livro das comunidades, incidiremos na dinâmica do rebelde como “energia vagueante contra-o-mundo, que se desprende, como um odor do místico, que não pôde realizar-se enquanto tal, dada a destruição de toda a geografia eremítica” (Llansol, 1994, p. 110). Ao trazer para a escrita o substrato místico, Llansol coloca-se numa posição de questionamento do literário e dos sistemas unilaterais em que o novo não teve morada. O livro das comunidades é o texto seminal a partir do qual Llansol entrecruza a mística, o erotismo e as rupturas dos rebeldes, traçando a “ucronia eudemonista de intenção apocástica” (Barrento, 2008, p. 198). Como observa o crítico, o texto llansoliano não se inscreve no não lugar, nem no lugar-do-não por modelar figuras que estão por vir: é uma ucronia de cariz eudemonista, dado que, para os Estoicos, o eudemonismo visava à felicidade, à ataraxia do sábio e ao abandono dos bens materiais. A apocatástase designa, por etimologia, a reconstituição, o regresso e a repetição, representando o retorno cíclico de períodos da história e a repetição de acontecimentos desaparecidos (Barrento, 2008, p. 149-150). É por meio da repetição intensiva de encontros improváveis que Llansol transforma o eterno retorno do mesmo no eterno retorno da leitura e da escrita. Foi em Jodoigne que Llansol concebeu O livro das comunidades, descrito como a casa de um só quarto e de uma só janela. É a casa da linguagem indagante em processo de fundação, a casa do desprendimento dos místicos que escreveram e agiram fora das regras do sistema hierarquizante, a morada dos errantes que, pela primeira vez, coincidem, sem as amarras de origem, nação, religião e língua. Ao invés dos capítulos característicos do cânone romanesco, o texto segmenta-se em vinte e seis lugares, que moldam a pedra da tradição histórica para a projectar em direcção à “signografia sobre o mundo” (Llansol, 2003, p. 167), na tentativa de grafar o não dito e escrever em consonância com “o espírito da Restante Vida” (1999, p. 11), o verbo que cria outra tradição e memória, feitas de deslocamentos.


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Llansol busca detectar dobras de sentido ao encenar réstias de distintas insurreições numa geotextualidade imprevisível. São João da Cruz (1542-1591), fundador da ordem dos carmelitas descalços (1568), deu continuidade ao espírito de renovação de Teresa de Ávila (1515-1582). O anabaptista Tomás Müntzer (1488-1525) falhou na sua tentativa de reforma religiosa na batalha de Frankenhausen. Nietzsche (1844-1900) reescreveu o percurso do ermita Zaratustra, revisitado como o mestre da vontade do poder e do eterno retorno. Os três rebeldes foram forças de mutação que se abateram contra os muros da censura e da intolerância. Martirizado no cárcere de Toledo pelos carmelitas que se opunham à instauração da via contemplativa e ao despojamento como objetivos da ordem, o fluxo inovador de São João da Cruz é bloqueado. O pregador Müntzer escreveu o Manifesto de Praga, que visava à purificação da terra e da igreja (1999, p. 51). Morre decapitado pelos príncipes católicos e luteranos reconciliados, de forma a travar o seu projeto. Bloch considera Müntzer como o apóstolo da violência apocalíptica e a voz nuclear da consciência utópica, ao passo que Engels diagnostica no falhanço de Frankenhausen o primeiro anúncio de uma luta de classes (Macherey, 2008). Pensador da teoria do eterno retorno, Nietzsche é o filósofo da morte de Deus. A reescrita de Zaratustra sublinha uma época povoada pelos falsários da verdade e da História. Sem ter sido interpretado de acordo com a inovação radicalizante das suas propostas, Nietzsche desvanece-se na loucura e no suicídio. Os defensores do totalitarismo deturpam as suas ideias sobre o super-homem para propagar o nazismo. São João da Cruz, Müntzer e Nietzsche foram faróis na ilha dos mutantes; a sua luz incidiu na areia da decadência, revelando as marcas da paralisia reflexiva. O seu fulgor, porém, esvaiu-se na “Trama da Existência” (1999, p. 9), tecido que, como Cronos, devora os portadores da seiva múltipla, criadores de mundos de transfiguração dentro de espaços cercados. Em Finita, Llansol conclui que


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Adoptámos a tradução do termo “otredad” de Paz com significados distintos (Paz, 1999). 5

É uma alusão à Escola da Rua Namur, na Bélgica. 6

É a primeira singularidade do texto. Trata-se de uma narradora anónima, determinada a não ter filhos, mas é a amante dos que a visitam na escola, onde transmite o saber místico às crianças. Ela foge às classificações. Tem “uma maneira distante de fazer amor: pelos olhos e pela palavra. E também pelo tempo” (1999, p. 11). 7

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apenas permaneceram nuvens dos fluxos de mudança (Llansol, 2005, p. 47). A escritora captou, contudo, o éter da palavra desses vultos sob a forma de “nuvens sonoras pairando” (Llansol, 2005, p. 98) anunciadoras da tempestade que desassossega os defensores da tradição, todos os que fizeram jejum da liberdade de consciência. É a partir da apropriação da linguagem dos visionários que estes ganham renovadas potencialidades do agir, segundo o conatus de Espinosa (1992, p. 278-280) sobre o qual Llansol se funda como alavanca. São João da Cruz e Ana de Peñalosa são as primeiras figuras a atravessar a luz da ressemantização no valor místico de experire, dado que penetram numa escrita sob signo do medo e da imagética do inaudito, que representa uma viragem profunda das modalidades de escrita no contexto literário português. A partir de uma série de montagens descontínuas entre flashes de passados sobrepostos e instantes plenos de devir, São João da Cruz e Ana de Peñalosa absorvem novas corporalidades e fazem ressoar o sopro da outridade: adquirem a idade e a alteridade do texto, arfando o sopro da eternidade.5 No lugar 1, incipit destruturador de uma voz narrativa estabilizada, as crianças de uma escola6 copiam e recitam os versos da “Subida do Monte Carmelo”, de São João da Cruz. Copiar é uma técnica de sobreimpressão omnipresente em Llansol, pois escrever um texto de outro à mão é entrar em ressonância com a voz e pensamento do autor, captar a energia transformante de cada fonema, é deslocar o texto entranhado e ter “a sua presença acentuada” (Llansol, 2002, p. 143-145). A escola é o primeiro espaço de rebeldia que assenta numa pedagogia diferenciada, visto que crianças de estratos sociais e mundividências culturais diferentes ouvem a recitação da professora-amante7 que dá a conhecer um texto místico numa escola que funciona também como retiro espiritual. Pela mediação da leitura em voz alta, uma forma de orar a leitura, as crianças mergulham na voz de São João da Cruz porque ler tornou-se a vibração transmutante, um exercício de “encan-


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tamento” (Santos, 2008, p. 160). Citam-se os comentários do místico sobre o topos da noite, dividida na noite da purgação que suprime todos os apetites e tentações do corpo e a noite da purificação da alma. Llansol é uma esteta e cirurgiã (Compagnon, 1979, p. 31-32), dado que corta, cola e costura um fragmento da obra de São João da Cruz para o transfigurar no corpo da escrita, amalgamado às reacções das crianças. O lugar 1 exibe a fruição da palavra vivida e partilhada. Não se mitifica o santo, porque a professora permite o riso que tudo relativiza. A presença de São João da Cruz adquire o dom da ubiquidade: “com São João da Cruz que encontraria em qualquer parte” (1999, p. 12). O pensamento do místico adentrou-se no corpo da professora como um companheiro de leitura: a sua leitura e cópia oferecem um mais-saber (Llansol, 2000, p. 15)8 à narradora e ao místico. Considerando que O livro das comunidades é uma hipótese de uma cosmogonia ainda por vir, não é de estranhar que o predomínio da isotopia do sonho, marcada pelos matizes do “sonoler” (1999, p. 13), vibre o desejo de outras paisagens. A pregnância do verbo “sonhar” torna as “cenas fulgor”9 uma viagem em estado nascente. Sonhar, em Llansol, é percorrer caminhos diversos num ritmo simultâneo, ser transportado por um fluxo, abrir-se à fragmentação e ser hóspede do Outro. Num estado de disponibilidade para a escrita, a narradora sonha “com grupo de homens e São João da Cruz, carmelita descalço, sentado em frente de um forno, a assar carne de carneiro” (1999, p. 12). À visão do místico canonizado sobrepõe-se um retrato, falsamente, trivial, pois existem diversos níveis de palimpsesto em Llansol. Segundo o triângulo culinário de Lévi-Strauss (1965, p. 396-422), São João da Cruz é o cozinheiro, dado que a cozinha é uma mediação entre a natureza e a cultura. Ele é a figura-ponte dos rebeldes que permite instaurar relações revitalizantes entre os místicos cindidos pela engrenagem da História. Inscrito no cru, pois nada consome do mundo terreno, ele passa pela transmutação do fogo: “a

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Itálicos da autora.

É uma técnica compositiva do discurso llansoliano. O fulgor é uma envolvência que preside à estética de Llansol (2002, p. 21) desdobrando-se na “luz de ler” (Llansol, 2000, p. 195) e no “sexo de ler” em Jogo da liberdade da alma (Llansol, 2003, p. 73).

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testa começava a bronzear, vermelha, entre ondas de cheiro” (1999, p. 13). A transmutação escritural prenuncia a dimensão ucrónica: Llansol con-funde num mesmo lugar etapas distintas da errância do santo que ora tendem a irromper in media res, ora o presentificam num estado de profunda meditação e de êxtase. Sem transição, por meio de um olhar zoom, São João da Cruz atravessa a noite obscura, que alude ao poema escrito, entre 1578 e 1582, onde ecoam influxos do Cântico dos cânticos. O poema situa-se no momento da fuga do místico do convento de Toledo, onde fora submetido a provação, martírio e desolação interior durante nove meses. Numa dinâmica que adopta o léxico do amor profano, sob a influência do sufi Ibn Arabi (López-Baralt, 1995, p. 38), o poema sublinha os diferentes estados de espírito de uma mulher apaixonada que corresponde à Alma. São João da Cruz percorre os diferentes degraus da treva até alcançar a luz da comunhão com o Amado (Deus). Embora existam níveis de articulação diferenciados, Llansol encontra em João da Cruz o agenciamento da metamorfose sob o signo do misticismo nupcial:

Tradução nossa: Oh noite que guiaste!/Oh noite amável mais que a alba!/Oh noite que juntaste/ Amado com Amada/Amada no Amado transformada!

¡Oh noche que guiaste!; ¡Oh noche amable más que el alborada! ¡Oh noche que juntaste Amado con Amada, Amada en el Amado transformada! (San Juan de la Cruz, 2005, p. 484).10

Ana de Peñalosa tem uma fita de veludo ao pescoço que remete para o óleo Olympia de Manet, pintura da transgressão na história da arte que dilui a dicotomia entre a arte clássica e a arte popular ao citar a Vénus de Urbino de Ticiano num contexto de dessacralização: a cortesã nua que cobre o sexo é acompanhada por uma criada negra que serve flores a um suposto cliente.

No Lugar 2, Ana de Peñalosa, a benfeitora dos carmelitas de Granada a quem o místico dedicou “A chama de amor viva”, em 1584, passa por um processo de transformação. Incorpora traços da educadora e cortesã anónima do incipit ao decifrar no baralho de cartas o jogo de fazer amor.11 Ana de Peñalosa é a energia da libido que inaugura, em Llansol, a escrita infinda, a prática de ler como técnica de escrita sobreimpressa: “Leio um texto e vou-o cobrindo com o meu próprio texto que esboço no alto da página mas que projecta a sua sombra escrita sobre toda a mancha do li-

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vro” (1999, p. 57). No lugar 3, São João da Cruz passa do cru ao apodrecido, está em processo de se tornar cinza em Ubeda. Num seguinte corte abrupto, instaura-se a geografia espiritual ibérica numa confluência polifónica: Ana de Peñalosa conta a sua repentina viuvez, São João da Cruz está em ascensão e a voz de Santa Teresa de Ávila fala de um castelo comparado a um diamante, enxerto do primeiro capítulo das Moradas da sua autoria. Além da metáfora da alma vinculada ao castelo, a citação de Santa Teresa tem efeitos de mise en abyme. Nas Moradas, há uma casa principal, tal como n’O livro das comunidades existe a casamatriz onde também “se passam as coisas de grande segredo” (1999, p. 17).12 Para a prática mística em que o crente se questiona como dizer o inefável, São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila são rebeldes que enfrentam o paradoxo de falar de um excedente inexprimível por meio de um discurso simbólico. Nesse sentido, a figura errante encontra sinais indecifráveis e animais miscigenados (Coração de Urso), reabilitando o topos místico do andar à deriva dos séculos XVI e XVII (Lopes, 1988, p. 25). Por meio de espelhamentos, Ana de Peñalosa lê “A chama de amor viva” (1999, p. 20) como se fosse um texto que estivesse a ser reescrito pelas suas mãos, as mãos da professora anónima e a mão direita de São João da Cruz no “agora” do acto da enunciação. O místico perdeu a mão esquerda – sinal simbólico que relembra um possível castigo da censura –, no seu lugar irrompe a página que evoca a sua errância pelo deserto de Peñuela. Em virtude da dinâmica subversiva do sonho, o dia torna-se, de súbito, noite: indício de outro rito de passagem. Absortos na luz da vela, São João da Cruz e Ana de Peñalosa exilam-se da História no momento em que as suas caligrafias se fundem e, em posição fetal, ambos renascem com “a boca suja do leite das palavras” (1999, p. 22). A libido como força impulsiva da ficção sugere que a isotopia do acto sexual é um acto gestatório de novos textos. Quebra-se, por conseguinte, a lógica da origem, a autoridade do escritor no valor de

Em Teoria da des-possessão, Lopes sublinha os elos místicos em Llansol. A palavra “mística”, em grego, provém da raiz verbal myéo, que significa “fechar”. O vocábulo está associado ao mistério, mysterion. O sufixo -terion remete para um lugar fechado, somente acessível aos iniciados dentro da lógica dos ritos esotéricos. A densidade e a progressiva fragmentação do texto incentivam o leitor a reaprender a ler. O leitor é também um mutante. Ler é estar na disponibilidade afectiva de acolher os nós de intensidade que se reiteram de texto em texto.

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Adoptamos o termo “afectos” no valor espinosiano. Espinosa atravessa a obra de Llansol como figura e leitura transfiguradora da sua maneira de pensar, ler e escrever com o corpo e modelar o mundo. Em Lisboaleipzig I, Llansol escreve: “o instrumento de criação são os afectos. Estes serão tanto menos perecíveis, fugazes e acidentais, quanto mais se revelar no humano amado, a figura do amante. Até que o Amor tome figura humana, e o dom poético se manifeste no carisma que a todo o homem foi entregue: o de continuar, com a sua consciência livre, a criação do mundo” (1994, p. 112). 13

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Itálicos da autora.

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voz monológica e o cânone como Medusa que petrifica o literário em ficheiros estanques. “A chama de amor viva” não é somente intertexto, é o texto que está a ser escrito pela fusão de afectos13 entre São João da Cruz e Ana de Peñalosa. O místico transforma-se na figura do “entresser”14 (Llansol, 1985, p. 19), pois transita do seu passado para o devir múltiplo. Entre duas mulheres distintas mas cujas vozes se sobrepõem por serem abrigo de energias, o pensamento do místico é redinamizado pela professora pela via do ensino e continua a ser reelaborado na e pela leitura de Ana de Peñalosa: a mão que o reactualiza e a sua mãe póstuma. São João da Cruz olhou a vela como a perguntar-lhe o que, a seguir, iria a escrever […] e a cera, luzente, na base lembrou-lhe o esperma depositado no ventre da mãe, sua mãe do livro; havia duas velas mais baixas encostadas à vela acesa e o livro aberto apresentadas as páginas ligadas por um sulco. A Viva Chama não foi escrita a frio, diz o Prólogo. Se as palavras têm um sentido: ultrapassa tudo o que se poderia conceber e estilhaça aquilo em que queríamos encerrar […] Ele via sua mãe no auge do êxtase e pensou, sem o escrever, num barco ou num espelho no alto de uma vaga: a página dos olhos ocupava o centro da parede e era cem vezes maior do que o seu corpo. Teve então medo e o lápis pareceulhe a ponta de um seio, que levou à boca. Ana de Peñalosa estava suspensa na página e, ele ao seu colo. Embalava-o, mas amplitude da sua voz era a de um coro e principiou a perceber na sombra as várias fisionomias dos irmãos que cantavam tu procuras-me, mas eu te procuro ainda mais Tudo está por ser dito e o resto do comentário não descreverá um momento da História (1999, p. 26).

A réstia de cera da vela convoca, por metonímia, o esperma, e o lápis torna-se o seio protector da inesperada mãe num gesto de reinvenção do tempo. A metaficção reincorpora ecos do prólogo do poema “A chama de amor


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viva”, em que “o espiritual excede o sentido” e o amor místico arde na sua perene flama (San Juan de la Cruz, 2005, p. 913), impregnando, por empatia e contágio, os vinte e seis fragmentos da “cor falante do fogo” (1999, p. 26). A sinestesia concilia o fogo místico, o fogo da batalha perdida de Frankenhausen e o fogo do Apocalipse. Ao contrário da História oficial, as palavras do texto não se cingem a um sentido unidimensional e concluso, elas prolongam o enigma, tal como ocorre na experiência mística e no texto literário. Durante a cena, imbuída de visões extáticas dos místicos, Ana de Peñalosa interioriza a Alteridade, pois acolhe e sente o Outro dentro de si. Absorve “o coro de vozes” que remete para as homílias e para o canto subversivo dos camponeses de Frankenhausen, suturando as dobras que a História nunca fez. Por isso, nada foi, tudo está por ser reescrito: é crucial que o encontro entre São João da Cruz e Müntzer tenha lugar. Ana de Peñalosa torna-se a Mãe do metatexto e a rebelde que se une à priora de Segóvia, Ana de Jesus, na transfiguração dos perseguidos. Seguindo “o espírito da despossessão” (1999, p. 60), Ana de Peñalosa despoja-se do seu papel secundário, impresso nas linhas da História, para adquirir os atributos da beguina, porque cura São João da Cruz ao desvanecer as marcas do martírio: o santo torna-se João num gesto de refiguração. Ana oferece-lhe um novo rosto mediante a transfusão do escreler:15 “Nascido sem agonia, o rosto de João estava cheio de paz e contentamento, de uma beleza especial que não é a de um cadáver […] é preciso comê-lo realmente” (1999, p. 24). Dois aspectos de relevo merecem comentário. Por um lado, é mediante a energia do júbilo rejuvenescedor de Espinosa que Llansol redimensiona o verso da “Chama de amor viva”: ¡Oh toque delicado!, que a vida eterna sabe y a toda deuda paga matando, muerte en vida la has trocado (San Juan de la Cruz, 2005, p. 914)16

Escreler é uma amálgama propícia para descrever o trabalho de interdependência da escrita e da leitura que nos apropriamos de João Barrento, director do Espaço Llansol.

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Tradução nossa: “Oh toque delicado!/ que a vida eterna sabe/ e toda dívida paga;/ matando, morte em vida transformada.”

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Eckart escreveu: “Le détachement tend vers un pur néant, car il tend vers l’état le plus haut, dans lequel Dieu peut agir en nous entièrement à sa guise […] le détachement […] rapproprie l’âme, purifie la conscience, allume le cœur et éveille l’esprit, il donne de la rapidité au désir, il surpasse toutes les vertus: car il nous fait connaître Dieu, il sépare de ce qui est de la créature et unit l’âme à Dieu. Car un amour partagé est comme l’eau répandu dans le feu, mais un amour unique est comme un rayon plein de miel (1987, p. 28). Tradução nossa: “O desprendimento direccionase para o puro nada, porque movimenta-se para o estado mais surpremo, no qual Deus pode actuar em nós conforme a sua vontade […] o desprendimento […] reapropria a alma, purifica a consciência, ilumina o coração e desperta o espírito, acelera o desejo, ultrapassa todas as virtudes: porque nos faz conhecer Deus, ele separa o que pertence à criatura e une a alma a Deus. Porque um amor partilhado é como a água prolongada no fogo, mas um amor único é como um raio pleno de mel”. 17

Fragmento 91: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”. Tradução nossa. 18

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A morte dos insurrectos é uma passagem transitória, que se transforma em incessante recomeço e renascimento. Por outro lado, “comer” São João da Cruz é uma escolha antropófaga que consiste na devoração e na absorção da Alteridade. Por emulação, Llansol incorpora no texto as qualidades do místico, “o actor da palavra” (1999, p. 19) nos sentidos de poeta, comentador da sua poética e pensador de uma reforma religiosa. Por afinidade electiva, Llansol reconfigura o místico que interiorizou o percurso do desprendimento, seguindo a via especulativa de Eckhart (1987, p. 20).17 O desprendimento é um dos princípios da travessia da noite obcura que supõe o ascetismo e a interiorização progressiva da luz tenebrosa da fé. O topos da noche oscura reveste-se de um simbolismo carregado de conotações iniciáticas, que sobrepõem o nada, a cegueira do espírito, a captação de diferentes penumbras até atingir a luz e aceder ao êxtase com o divino (Sesé, 2009, p. 27-37). Em Llansol, aceder à luz da noite, segundo a retórica oximórica dos místicos, é um rito de passagem, uma vez que todas as figuras transitam pela noite obscura para se transformarem em seres textuantes e propulsores de uma revolução latente vinculada à “apocatástase profana” (Barrento, 2008, p. 150). Graças à peregrinação que pressupõe percorrer “a via do rio, a via dos pinheiros e a iluminação da vela” (1998, p. 27), São João da Cruz é o nómada que atravessa a mutabilidade, na esteira de Heráclito (2005, p. 459),18 passa pelo rio da escrita mas contorna o rio do tempo. Divaga pela natureza como se ela fosse um “texto profético” (Llansol, 2005, p. 59), no intuito de interpretar os seus sinais conducentes ao êxtase. São João da Cruz é o mestre da generosidade (Llansol, 1992, p. 320), de acordo com diversas camadas de leitura. Segundo a Ética de Espinosa, a generosidade “é o desejo pelo qual um indivíduo se esforça por ajudar aos outros homens e por se unir a eles pelo laço da amizade, em virtude apenas do ditame da razão” (1992, p. 329). Como a generosidade é um dom de abertura para o Outro, São João de Cruz é um dos místicos que faculta a Llansol a apreensão do homem como “po-


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bre”, despojado das tentações da posse. Por ser uma leitura de referência, São João da Cruz é o mediador que a leva a ler outros místicos como Eckhart e a repensar o silêncio alienante em torno de Müntzer (Llansol, 1994, p. 89). Em O livro das comunidades, São João da Cruz acolhe os rebeldes na sua diferença, operando “o milagre de esconder o corpo de quem perseguiam” (1999, p. 31). Num processo autorreflexivo com o leitor, o mestre da generosidade foi a clareira que iluminou o caminho da escrita de fulgor d’O livro das comunidades, dado que o título do livro figura como um texto integrante das Obras completas de São João da Cruz numa sobreimpressão infinda de escritas que interagem (1999, p. 49) como folhas de húmus. O texto llansoliano faculta ao pensamento e poesia do místico a possibilidade de ser lido em inter-relação com outros textos místicos e como leitura de redenção. O mestre da generosidade percorre a travessia benéfica do deserto (1999, p. 21), em que examina o seu deserto interior em busca de autognose e da via contemplativa e purificativa. No lugar 8, João da Cruz erra com Müntzer num deserto anelar, que associa a simbólica do Apocalipse de São João ao massacre de Frankenhausen. A derrota dos camponeses é o acontecimento em que a mística se esvai em revolta (Llansol, 1994, p. 110). É, precisamente, sob o modelo escatológico, que São João da Cruz e o combatente Müntzer vivem a morte de trinta mil camponeses, cujas peugadas “ficaram perdidas no deserto” (1999, p. 42). O texto repele o silenciamento da História e será a partir d’O livro das comunidades que Llansol ensaia dar outro desfecho à derrota de Frankauhaussen (Llansol, 1994, p. 93). O Müntzer violentado pelas forças do poder recebe a fecundidade da escrita de Ana de Peñalosa que o regenera como filho. São João da Cruz também revitaliza o irmão ao restituir pela escrita o seu corpo desgarrado: São João da Cruz ergueu o seu outro rosto, […] principiou a bordar palavras com o dedo sobre o corpo incompleto de


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Müntzer. Ana de Peñalosa olhava os seus dois filhos, lia a escrita que cobria as costas do decapitado. Da sua respiração saíam sons rápidos e atónitos, ouvia-se o vento que os acompanhara desde o deserto. Ana de Peñalosa deitou-se para trás, a cabeça de Müntzer nascia das suas pernas, adulta, os olhos dificilmente descerrados (1999, p. 50).

Fragmento 70 “Jogos de crianças, as opiniões humanas”. 19

Consultámos a versão francesa, por isso, propomos a nossa tradução. 20

A sombra de Assim falava Zarastustra perpassa nos primeiros treze lugares d’O livro das comunidades. O facto de São João da Cruz e Müntzer se transformarem em crianças é uma releitura de Nietzsche que retoma o fragmento de Heráclito 70 (2005, p. 76).19 Eis o texto de Nietzsche: “a criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação” (Nietzsche, 2006, p. 65).20 Se os dois rebeldes se tornam crianças é porque eles se projectam no futuro da comunidade, carregam a força de modelar o novo e criar valores de liberdade em consonância com a geografia do litoral do mundo. Os rebeldes como crianças experenciam o lugar como encontro de vibrações liberados do fardo do poder e da tradição monolítica. De modo imprevisível, Nietzsche imbrica-se na poesia portuguesa por meio da carta que Ana de Peñalosa lhe escreve na qual se evidenciam citações do poema “Menino da sua mãe”, de Fernando Pessoa. O trânsito de Pessoa pela escrita llansoliana pressupõe uma possível mutação de duas energias silenciadas que não alcançaram receptividade na sua época. A carta “Texto ao Sol submetido” sobreimprime no eterno retorno do mesmo uma releitura paródica de Assim falava Zarastustra, que, por sua vez, é uma paródia de várias paródias. O Zaratustra de Nietzsche encena um eremita-profeta, esquecido pela sociedade, que não consegue anunciar a teoria do eterno retorno, pois, quando está prestes a formulá-la, adoece (Nietzsche, 2006, p. 244 e p. 272). Segundo Deleuze, Zaratustra cai doente porque é aterradora a ideia cíclica de que tudo volte ao mesmo (2009, p. 36). No plano da


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História hegemónica, os sábios e rebeldes foram bloqueados. Zaratustra é, por um lado, a figura que aponta para a leitura crítica do declínio do ermita como sábio, visto por Llansol como um corte histórico pouco analisado (Llansol, 1994, p. 120). Por outro lado, é também necessário que o texto de Llansol atravesse Assim falava Zarastustra, porque marca a ruptura da historicidade pela recorrência do eterno retorno no valor de transgressão. O olhar de Nietzsche é uma força intempestiva. Zaratustra confia nos homens superiores porque são aqueles que sabem o significado da morte de Deus. Por isso, o eremita imagina-os como possíveis discípulos. Embora empenhados em substituir os valores divinos por valores humanos, eles revelam a sua fraqueza quando fogem em face do signo do leão, indicador da destruição de todos os valores instituídos (Deleuze, 2009, p. 45). Os homens superiores são incapazes de rir e de brincar. Durante a festa do burro, um terrível ressurgimento de dogmas se prenuncia. O riso do homem mais feio desmente, contudo, o risco de dogmatização (Nietzsche, 2006, p. 372-376). O riso abre a senda do desaprender, oferece leveza e dilui a gravidade dos conceitos fossilizados. Como observa Deleuze, Zaratustra compreende que o Eterno Retorno é a repetição selectiva, “a Repetição que salva” (2009, p. 37). É contra “ o reumatismo dos conceitos” (Llansol, 2000, p. 227) que Llansol também se inscreve como escritora rebelde que adopta o riso transgressor: “Vou cruzar o canónico com o apócrifo” (Llansol, 2003, p. 67). A figura de Nietzsche atravessa o rebaixamento medieval (Bakhtine, 1970, p. 29). É necessário que morra o Nietzsche canonizado para que renasça Friedrich N, segundo os desígnios de Ana de Peñalosa. A metamorfose do filósofo é um processo ambivalente de despojamento e de violência. Nu e calvo, Ana de Peñalosa cobre-o com uma túnica como se lhe oferecesse, por metonímia, a força de um místico. Convertido num animal pérfido e imóvel, com o sexo arrancado, Nietzsche agoniza. É devorado pelo porco Eckhart. O


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“Si je prends un fragment du temps, il n’est aujourd’hui ni hier. Mais si je prends « maintenant », il contient en soi tout le temps” (Eckhart, 1987, p. 110-111). 21

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niilismo de Nietzsche é transformado pelo espírito religioso do místico. Llansol reactiva as metamorfoses de Zaratustra. Em vez de o espírito se tornar camelo, o camelo em leão e o leão em criança, que correspondem aos diferentes estádios de destruição e renovação dos sistemas impostos, o espírito de Nietzsche atravessa a Alteridade de Eckhart por ser o místico que meditou sobre o instante pleno (aion). Llansol recupera a vibração do sermão 10 “Stella matutina”, de Eckhart.21 O excerto do sermão surge sob a forma gráfica de um versículo: se eu me concentrar num fragmento do tempo não é hoje, nem amanhã mas se eu me concentrar num fragmento do tempo, agora, esse fragmento revelará todo o tempo (1999, p. 67).

Todo o Livro das comunidades é a indagação do instante epifánico que fractura o continnuum da história no intuito de devolver a cada rebelde o seu instante de singularidade e de entrecruzamento de energias. Após o rito de transformação, Ana de Peñalosa e Nietzsche copiam um texto inconcluso, alusão sub-reptícia ao Livro das comunidades. Concordamos com Eiras (2005, p. 21) quando comenta que a figura de Nietzsche é uma “possibilidade de devir de São João da Cuz” não só porque ele devolve ao livro a fluidez da escrita, como também por se exilar dos seus textos e adoptar a faculdade contemplativa. Ana de Peñalosa e Nietzsche concebem um novo ser, um híbrido, feito de traços de monstro e de texto (1999, p. 75). O monstro-texto é o próprio livro que lemos, que provoca o medo, segundo o prólogo (1999, p. 10). Se relembrarmos ainda que o monstro se associa à etimologia do verbo mostrare no sentido de “prescrever a via a seguir” (Gil, 2006, p. 73), o monstro-texto anuncia o lugar da anulação em que todas as formas vivas têm a sua palavra a dizer e o seu devir. Ana de Peñalosa estabelece uma relação entre o peixe Suso e o porco Eckhart, que forja uma geografia espiritual


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esquecida entre o discípulo e o seu mestre. É pela mediação do peixe Suso que Ana de Peñalosa borda e escreve os sermões de Eckhart que “penetram a água gota a gota” (1999, p. 61). Tudo se restitui pela faculdade do eterno retorno da cópia, da metamorfose das figuras e do eterno retorno da leitura e da escrita sobreimpressa. Ler e escrever equivalem-se: “Com um livro escreve-se outro livro. Como um livro é vegetal (1999, p. 58).” A metáfora do vegetal sugere que o texto é uma forma do vivo que contém o germe do recomeço e da regeneração. De acordo com o sentido etimológico de ler, Llansol recolheu rastos de vários rebeldes para refundar nas entranhas da textualidade a comunidade de visionários ligados por “uma coerência, e não por uma identidade” (1999, p. 92). Cabe à Mãe do metatexto ser a dinamizadora do eterno retorno da leitura e da escrita que realiza o percurso renovado do ermita: “a solidão não é mais que a salvaguarda da escrita quando o desejo se apresenta” (1999, p. 61). Ela está na disponibilidade receptiva de aprofundar o saber transmitido. A rebelde penetrou nas vísceras da sobreimpressão e será “um feixe de seres” (Llansol, 1996, p. 37) em incessante errância. N’O livro das comunidades, os rebeldes históricos não são alegorias. Todos tornam-se receptáculos de energias abertos à mobilidade atraídos por um envolvimento libidinal. O livro é o locus dos semelhantes na diferença em que os “seres têm um sentimento final de que há um lugar onde chegarão à sua coincidência” (Llansol, 1998, p. 129). O texto produz-se nas margens do institucionalizado para indagar a comunidade no sentido de “epifanias do mistério” (Llansol, 1994, p. 85). O texto é um dispositivo de questionamentos a partir dos cortes dissonantes das figuras dos rebeldes: Como repensar a História sem aprofundar, em termos de um estudo comparatista, os movimentos anunciadores da liberdade de consciência? Como destravar a vertigem galopante do Poder sem ler os textos dos místicos europeus que têm ne-


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Llansol leu os místicos sufis. Uma mística comparada é um tema ainda negligenciado no universo llansoliano. 22

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xos com os mestres do Budismo, dada a força do desprendimento em Eckhart e São João da Cruz? Se ponderarmos que, desde o século XVI até os nossos dias, as utopias desembocaram na decepção, se pensarmos que o massacre de Frankenhausen teve desdobramentos em Auschwitz, Hiroshima e Tiananmen (em proporções menores), se reflectirmos sobre os conflitos étnicos, políticos e religiosos que continuam a dilacerar o homem em guetos de violência e de intolerância, a leitura do texto llansoliano é uma indagação espiritual do novo. É a ucronia com lampejos de esperança que anuncia a comunidade dos mutantes, que constroem a escrita da meditação e do encontro, geradora do interdiálogo entre os místicos europeus e os místicos do Oriente.22 E se o reverso da História chegasse em dobras? O livro das comunidades desfaz a parábola do Anjo da História, baseada no quadro Angelus novus, de Klee (Benjamin, 1992, p. 162), que contempla, impotente, o acumular das ruínas do passado, sem poder intervir sobre a paisagem devastada diante dos seus olhos atónitos, empurrado para o futuro por uma tempestade. O primeiro texto de fulgor de Llansol é a dobra reduplicada infinitamente em que não se acredita numa utopia, mas se reescreve um lugar compósito e belo que possibilita o convívio dos rebeldes na sua diversidade e devir. É a dobra dos viandantes da noite obscura “que se dispõem a virar do avesso as próprias estrelas que orientam as suas vidas” (Llansol, 1994, p. 136).

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Porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro: memory and narrative in Antonio Lobo Antunes Aino Rinhaug*

RESUMO: O presente artigo procura explorar a relação entre memória e história tal como aparecem na literatura. Com referência ao romance Ontem não te vi em Babilónia, de António Lobo Antunes, a análise centra-se na questão de representação e de autentificação das vozes narrativas dentro do domínio literário. O foco principal é dado à literatura e narração literária como lugar de memória e, consequentemente, à possibilidade de tal lugar poder tornar acessível o passado. PALAVRAS-CHAVE:

António Lobo Antunes, memória, representação, ficcionalidade, voz

ABSTRACT:

The present article seeks to explore the relation between memory and history as it emerges in literature. With reference to the novel Ontem não te vi em Babilónia by António Lobo Antunes, the analysis questions the representation and authentication of voices of narration in the literary domain. The main focus is on literature and literary narration as a site of memory and, consequently, on the possibility of such a site to render the past accessible. KEYWORDS:

Antonio Lobo Antunes, memory, representation, fictionality, voice

Post-Doctoral Research Fellow – Department of Literature, Area Studies and European Languages, University of Oslo, Norway. *

In light of how chaos increasingly came to define life experiences, Samuel Beckett believed the task of the contemporary artist was “to find a form that accommodates the mess”, which, as James Olney writes, would be to obey the modernist injunction of “making it new” (Olney, 2000, p. 12). And the idea of making experiences new in a context of historiography and literature seems to invite to a reflection on the literary relation between remembered past and lived present. Indeed, there is an urgency to


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reconsider what form memories of lived experience may take as narrated past, which, in turn forms the question of whether the past as such may at all be seen as accessible. As Beckett further notes: What I am saying does not mean that there will henceforth be no form in art. It only means that there will be new form, and that this form will be of such a type that it admits the chaos and does not try to say that the chaos is really something else. The form and the chaos remain separate. The latter is not reduced to the former. That is why the form itself becomes a preoccupation, because it exists as a problem separate from the material it accommodates […] (Driver, 1961, p. 23).

On the basis of these initial observations, the present essay seeks to examine how contemporary literature reflects these concerns with narrative form and lived experience. The main focus will take as its point of departure the questions “to what extent is the past accessible” and “how is it knowledgeable”? In other words, as a direct response to Beckett’s observations, points will be made as to how memory relates to history in terms of formal (literary) depiction. It is obvious that such considerations will affect our ideas of authenticity and representation and in order to illustrate how this may be done, references will be made to the work of Portuguese author António Lobo Antunes. His recent novels seem to be the mediating force between the two instances past and present, history and literature.

Awakening The novel Ontem não te vi em Babilónia (2006) could be said to illustrate the difficulty of separating, but also of merging lived experience and narrative form without obliterating or barring access to both; indeed, it seems as if the narration occurs in a moment caught in between past and present: in the course of five hours – from midnight to 5 am – a web of interweaving nocturnal voices emerges,


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whose fragmented life stories intersect with observations of the present nightly hour. The narrative as representation takes on a form similar to a patchwork of past and present events in which the narrating voices negotiate their narration, signification and subjectivity. As they traverse across two temporal modalities, the act of remembering also becomes a matter of forgetting, and the narrative is the result of this interchange of information. By bringing the past into the present, a mirror is held up to each of the narrators, whose monologues become a dialogue between self and other, between what was and what is. For example, the fundamental difference between the past and present is made evident right at the beginning of the novel, which renders an impression of a kind of awakening, not to the clarity of the day, but to the all-embracing, distorting darkness of the night. The first voice “speaks” thus: estou aqui, quantas vezes ao acordar me surpreendia que os móveis fossem os mesmos da véspera e recebia-os com desconfiança, não acreditava neles, por ter dormido era outra e no entanto os móveis obrigavam-me às recordações de um corpo a que não queria voltar, que desilusão esta camilha, esta cadeira, eu, cochichar à madrinha da aluna cega o que me cochichava a mim, pedir desculpa sem que me liguem e a porta e as janelas abertas, a professora nas escadas, as primeiras crianças, pais […] (Antunes, 2006, p. 14).

Here, from the point of view of the nocturnal voice, we get an acute sensation of alienation in regards to the other diurnal self. The impression of being transported to a different realm is emphasised by the fact that simple objects, like furniture, is regarded with suspicion; objects have the capacity to force upon the narrator memories of a body to which she – explicitly – refuses to return. The overall sensation of nocturnal awakening is one of attraction and repulsion, similar to a state of sleepwalking, which allows for a form of communication that is different from the exchanges of gestures taking place during daytime. When meaningless gestures are laid to rest, there is, however,


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room for another kind of communication to appear, which occurs as the exploration of self and other in an apparently inactive position; indeed, this form of nocturnal communication originates from a position in which the self wakes up to otherness and incomprehension. As another narrating insomniac of Antunes’ novel writes: deve ser meia-noite porque os cachorros desistem, imóveis nos tufos dos canteiros e nos legumes mortos de tal modo que se confundem com pedras, são pedras, estou acordado entre pedras, se calhar uma pedra eu também, uma pedra minha mulher, uma pedra a que me espera em Lisboa […] (o que se passa comigo?) (Antunes, 2006, p. 32)

If it is possible to tell conventional time according to the sounds or silences of puppies, it would seem as if silence can be measured according to another kind of “clockwork”: a waking narration is all there is in this Antunian night and the narrating bodies have all turned into objects, as if they were pieces being moved in a game. Moreover, what could be signalled in the opening pages of Antunes’ novel is not far from what guided Paul Valéry’s writing in his Cahiers. Spanning more than fifty years and 28 000 pages, Valéry relentlessly pursued an expression of his self by way of what he called “exercises” in awakening, or “daily scales” in the music of awakening, (Gifford; Stimpson, 1998, p. 41): Without object, that is, save perhaps the greatest: the analytical unfolding to conscious understanding of everything that is implied in “mind” – that is, in the human psyche as such, with its inevitable axes and unfailing Valéryan correlatives of body and world […] (Gifford; Stimpson, 1998, p. 41).

As for this kind of game, or exercise, awakening is also the beginning of a process of exhausting and regenerating the self in language and in play. One may assume that the act of consuming the self through narration may


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equally be productive of a restoration of the past, and as Valéry remarks to the significance of memory, “[memory] is the gift of the return to the same, or of the same. Its great affair is not the past, but the re-present. This is why it returns from the ‘past’ and never climbs back up to it” (Heller-Roazen, 2007, p. 76). Most importantly for the following examination of historiography and literature, the Antunian awakening happens in or as literature both as a domain, or lieu, suggestive of a particular mode of being, in which, to speak in a game terminology, the game can last both five hours as well as a lifetime.

Sites of memory as relational space Lobo Antunes’ recent writing has a fascinating capacity to conjure up a sensation of how narrative voices interact while being enclosed in a claustrophobic domain. When, as a recurrent topic, communication between family members is dead, we have the impression that the remains of it is taken up as fuel for inner monologues, where each voice insists on the unbridgeable abyss between self and the other. Furthermore, the power that this site has on its inhabitants can be connected to its double nature: whilst it demonstrates an infinite emptiness, it also communicates an overwhelming fullness and richness, originating from the incessant activity of narration. It is, in short, a question of changing our spatial awareness according to how the domain of narration is being constructed as the narration unfolds. As such, it becomes a domain of memory; or, more specifically, a realm in which the past is communicated in the present, or, where the past takes place: With regards to the pertinence of these domains, or sites of memory, Pierre Nora writes: Our interest in lieux de mémoire where memory crystallizes and secretes itself has occurred at a particular historical moment, a turning point where consciousness of a break with the past is bound up with the sense that


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memory has been torn – but torn in such a way as to pose the problem of the embodiment of memory in certain sites where a sense of historical continuity persists. There are lieux de mémoire, sites of memory, because there are no longer milieux de mémoire, real environments of memory (Nora, 1989, p. 7). For Nora, the emergence of a site of memory is a consequence of a particular loss, namely of what he calls “real environments” of memory: communities of collective memory are now replaced by new and “hopelessly forgetful modern societies” (Nora, 1989, p. 8) as carriers of meaning in a globalised world (Nora, 1989, p. 7). Furthermore, this loss of memory in archaic form, illustrates a split or fundamental difference between history and memory, a difference, which, as will be shown below, is decisive for our structure and organisation of narration of the past.

Forms of memory According to Nora, the emergence of site in place of milieu of memory is intimately related to the conflict between different ways in which temporality is viewed and organised. On the one hand, he observes, there is “real memory,” defined as “social and unviolated, exemplified in but also retained as the secret of so-called primitive or archaic societies” (Nora, 1989, p. 8). This is the case of an integrated, dictatorial memory – unself-conscious, commanding, all-powerful, spontaneously actualizing, a memory without a past that ceaselessly reinvents tradition, linking the history of its ancestors to the undifferentiated time of heroes, origins, and myth.

On the other hand, there is history, or what he calls “our memory, nothing more in fact than sifted and sorted historical traces” (Nora, 1989, p. 8). From the way in which history has eradicated memory in the course of time, there is now a situation of imbalance, or a breach of the


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previous idea of an equation of memory and history. We no longer live within memory, but in history, which is a mere representation of the past (Nora, 1989, p. 8). The latter, it must be added, is equated with a fragmented sense of historic reality and perception. Lieux de mémoire become visible, thus, in the moment of realisation that memory disappears “surviving only as a reconstituted object beneath the gaze of critical history” (Nora, 1989, p. 12). These sites – which for Nora are exemplified by archives, dictionaries, museums, but also by monuments, such as the Pantheon and the Arc de Triomphe – appear in a society that is “deeply absorbed in its own transformation and renewal” and where there is no room for spontaneous memory (Nora, 1989, p. 12). Most importantly, in view of history and its relation to literary form, Nora writes: We buttress our identities upon such bastions, but if what they defended were not threatened, there would be no need to build them. Conversely, if the memories that they enclosed were to be set free they would be useless; if history did not besiege memory, deforming and transforming it, penetrating and petrifying it, there would be no lieux de mémoire. Indeed, it is this very push and pull that produces lieux de mémoire – moments of history torn away from the movement of history, then returned; no longer quite life, not yet death, like shells on the shore when the sea of living memory has receded (Nora, 1989, p. 12).

Several points need to be made here: first, there is an intimate relation between the creation of identity and the fact that certain sites embody the material that constitutes such an identity formation. Hence, there is the need to “see,” protect and “name” these sites. Secondly, although these lieux emerge in order to return a sense of history, the fact is, as Nora points out, that what is being returned is of a very different matter – something “no longer quite life, not yet death,” in other words, no longer true, not yet a lie. Thirdly, it must be noted that the relation between identity, sites, naming and matter is based on one funda-


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mental factor, namely that our encounter with these sites of memory reveals how time operates on two levels, or as two modalities simultaneously. As a consequence, we could say that when sites of memory return the lived past to the present in the form of narration (in a broad sense) what is, in fact, being given (hence named) is essentially of an ambiguous nature. This makes it possible to assume that the “real” past is only accessible through narration as play and playing.

Return as play: destruction of the calendar and a different site of memory In “Reflections on History and Play,” with reference to Collodi’s novel about Pinocchio (1883), Giorgio Agamben, observes what happens when life is invaded by play, the result of which is a “paralysis and destruction of the calendar” (Agamben, 2007, p. 76). In the same way as Nora would regard lieux de mémoire as marking the rituals of a society without ritual (Agamben, 2007, p. 12), Agamben refers to how certain ceremonies (here, New Year celebration) in “cold societies, or societies where history is frozen” have a double function: they regenerate time and ensure the fixity of the calendar (Agamben, 2007, p. 76). Now, in relation to play and rituals in these societies, the first changes and destroys the calendar, whilst the latter fixes and structures it (Agamben, 2007, p. 77). In regards to Nora’s rituals without ritual meaning, play would, therefore, seem to occur without a real idea of its purpose or sense (Agamben, 2007, p. 79). Also, in so far as sites and signification are concerned, Agamben notes that play “preserves and profane objects and behaviour that have ceased to exist. Everything which is old, independent of its sacred origins, is liable to become a toy” (Agamben, 2007, p. 79). Toys, he writes, as objects have a very different function as carriers and communicators of the past than, say, archive documents, monuments, etc:


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What the toy preserves of its sacred or economic model, what survives after its dismemberment or miniaturization, is nothing other than the human temporality that was contained therein: its pure historical essence. The toy is a materialization of the historicity contained in objects, extracting it by means of a particular manipulation. While the value and meaning of the antique object and the document are functions of their age – that is, of their making present and rendering tangible a relatively remote past – the toy, dismembering and distorting the past or miniaturizing the present – playing as much on diachrony as on synchrony – makes present and renders tangible human temporality in itself, the pure differential margin between the “once” and the “no longer” (Agamben, 2007, p. 80).

Here it is necessary to point out that no monument or site is simply “functions of their time.” In studies of heritage it is becoming more and more evident that it is precisely the intangible qualities of the site that gives it its value. Sites are, thus, identified by cultural processes and social events, which give them meaning (Smith, 2006, p. 3). 1

Cf. Agamben, “toys as signifiers of diachrony, featuring in that immutable world of synchrony” (Agamben, 2007, p. 90). 2

According to these observations, it seems as if the difference between Agamben’s toy and Nora’s sites of memory resides in their relation, or rather, in how they relate to time. Furthermore, by differing in their relation to time, they also return a different kind of signification. Whilst for Nora’s monuments, it was case of returning a distorted, changed, inauthentic matter; for Agamben’s toy as site of memory, there still seems to be something “real” emanating from the object, a sense of its (and our) own authenticity. Paradoxically, the latter is based on our ludic mode or practice of encountering and naming the object. If monuments or archives are, arguably, “functions of their age,” the toy, however, could seem to emerge as a site in which there is a negotiation between the tangible and intangible.1 The toy is timeless, yet constituted by time only and by being a representation, or materialisation of “pure historical essence,” it derives its signification from the relation between “essence” and “representation” (miniaturization), in short, from the question of the making of authenticity.2 The toy is, thus, invested with meaning by its actualisation or participation in a game, or play, which occurs in between two temporal modes as well as between two instances of players. Within the ludic domain, in our


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encounter with it, we merge with the site in a form of communication, which could be said to relate between history and memory. This can best be illustrated by looking at how narration and in particular literature “connects” past and present and, secondly, at how subjectivities, or voices within the literary realm are being created and remain in a process of authentication.

Subjectivities and voices: materialisation of historicity To return to the novel by Lobo Antunes, it is clear that the narration, or confessions function as a relational force between past and the present, memory and history as if in a game. As such it displays a structure, or form, which accommodates the inherent temporal conflict “in a new way.” If this form of temporal accommodation could be named “literature,” then the novel is a site of memory, consisting exclusively of language, which can weave its historic pattern playfully across past, present and future. The question of what returns from as well as of what is invested in this particular site, becomes a matter of deciding its authenticity and essence. This is, obviously, an intriguing issue, given the temporal flexibility and signifying function of fiction as essentially artificial: when the “past” is returned to the present within the literary realm and as literature, there is a play taking place that accommodates the relentless production and consumption of history by memory and visa versa.3

Return of the ghost In light of the above, the novel by Lobo Antunes may come across as an archive composed of intersecting lineages of past experiences. Simultaneously, in terms of form, it is a striking documentation of what happens when life is invaded by play, or rather, when play performs and distorts life

Cf. Nora’s remark that “[h]istory has become…a realistic novel in a period in which there are no real novels. Memory has been promoted to the center of history: such is the spectacular bereavement of literature” (Nora, 1998, p. 24).

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through narration and articulation. The stirring into the realm of the night is also an awakening to the fact that narration is an interaction between the past and the present, whose result is an ambiguity of temporality and of voice. Who are these voices, and where do they come from? The confessional activity seems to be one way of finding out, which is exemplified by how the voices repeatedly question their own narration as well as state of being: Não era nada do que escrevi até agora o que queria dizer ou seja a que me espera em Lisboa, a que dorme lá dentro, os cachorros, tudo isso, os meus colegas no quintal pela banda do pomar etc, não eram histórias do passado nem da minha vida hoje em dia nem histórias de pessoas, não dou importância às histórias, às pessoas, eram coisas minhas, secretas, que mal se notam, ninguém nota, a ninguém interessam e no entanto as únicas que sou realmente mas tão leves, tão ínfimas […] (Antunes, 2006, p. 315).

Despite emerging as “things” or “secrets” belonging neither to the past nor to the present, what is being written and what has been written is “all I am” and, as such, the novel is a document, or an archive of voices, which demonstrates an ongoing process of making its autonomy, hence, authenticity qua play. The voices, or subjectivities, which constitute the literary site of memory, are, as mentioned earlier, the embodiment of the archive (past) in dialogue with their own present ludic constitution. Illustrative of the “communicative” situation is the fact that the event which launches us into the story, or stirs us up to the “wake,” is the death of a fifteen year old girl: her suicide initiates the narration of her mother and of the whole book: “já lá vamos à minha filha, antes da minha filha e pela última vez repito que o mar da Póvoa de Varzim tão sereno em agosto com uma paz de nuvens em cima e por falar na minha filha uma paz de nuvens em cima também, estiradas ou redondas…” (Antunes, 2006, p. 24). If the transitory function of the toy is that it plays as much on


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diachrony as on synchrony (Agamben, 2007, p. 80) by being, or taking place at the moment in between life and death, then the death of the young girl exemplifies her transition from being a subject (“filha”) to an object of memory, or a toy (“boneca”). The mother’s confessional account of how she found her daughter dead can be both informative and neutrally descriptive: de início não vi a corda nem me passou pela cabeça que uma corda, para quê uma corda, vi a borboleta, a boneca no chão e o banco, a boneca por sinal não deitada, sentada, de braços afastados e cabelo preso na fita usando o vestidinho que lhe fiz, a boneca a quem eu – Desaparece (Antunes, 2006, p. 24).

While later, it becomes evident that the death of the girl has distorted the mother’s idea of how the past can be contained or narrated in a meaningful way. The distortion of temporal continuity and sequences are exemplified in her narrative, which is similar to a vision or a dream, where the daughter and the doll figure and are interchangeable, and where the memories of her own childhood mingle with scenes with her daughter at the table. She writes: não no Pragal, no meu sono ou na Póvoa de Varzim em agosto, no que respeita ao horizonte tornava-se difícil distinguir o céu do mar, não um risco como de costume, o risco ausente de forma que impossível saber o sítio em que o céu se dobrava e começava a onda, em que a espuma a franzir-se, percebia-se a boneca, não a minha filha, na ponta da corda ou do fio de estendal que ia girando devagar, não de braços afastados, pegados ao corpo numa attitude de entrega, uma boneca de que as borboletas (dúzias de borboletas) de que dúzias de borboletas me impediam de notas as feições, notar a minha filha em casa a começar a comer empurrando para a borda do prato com a delicadeza do garfo (não é por ser minha filha mas sempre teve modos distintos)


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os legumes de que não gostava, a minha filha a começar a comer, acho que fui clara e peço que me não contrariem neste ponto, a minha filha a começar a comer desculpando-se – Como nunca mais vinha fui começando a comer a minha filha a começar a comer, a minha filha viva e de uma vez por todas se não me levam a mal (espero que não me levam a mal) não se fala mais nisso (Antunes, 2006, p. 28-29).

In these two accounts “play” is everything, indeed, the narration contains the interplay between the vision and voice of the mother (past and present), the dead girl (past) and the doll (present). First, there is a temporal interplay and the narration is a relational force between diachrony and synchrony, memory and history; the mother’s account of her daughter’s death is repeatedly interrupted by memories belonging to her own childhood, which indicates a necessity to re-establish a sense of self after the loss of the girl (the sea at Póvoa do Mar; of someone calling her name: “Ana Emília”). Secondly, there is a case of an ongoing substitution between the doll (pure temporality) and the daughter (lost temporality) as signifiers, where the doll, as the representational “ghost” of the daughter, to speak with Agamben, “facilitates a bridge between the world of the living and that of the dead, ensuring the passage from the one to the other without, however, confusing the two” (Agamben, 2007, p. 91). Death, as it were, is “overcome” due to the function of the toy as site of signification from where it can relate to life, to history and to memory and, in fact, would provide the narrative of a form of signification, which accommodates and, hence, returns a sense of authenticity. As such, the return of the past by way of the significance invested in the doll as site of memory, demonstrates how narration as play “feeds into” a process where memory relates to history through exhaustion or consumption of the past in order to produce its signification in the present (which, in turn, as we shall see, devours


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it).4 More precisely, in Lobo Antunes’ work, within fiction as a site of memory and in the course of the night as play a rather paradoxical situation is conjured up in which the present (history) consumes the past (memory) in order to produce subjectivities, hence authenticity and a sense of purity returning from the site of memory.

Procedures of authentication: consumption and production Based on the interplay between consumption and production of signification and identity in the novel, we can now try to discern a literary practice of authentication of voices and of language (as pure temporality). Again, it is a matter of how language weaves its pattern between different temporalities and as such, oscillates between history and memory and between play and life. On the one hand, we have the insistence of naming and determining the age of each narrator, hence fixating, personifying and identifying the voice and moment, and, on the other hand, the explicit negation of the name (and time) as signification. For example, in the names of Alice, Lurdes and António we read as follows: francamente não sei o que se passa comigo ajudem-me, cinquenta e seis anos, quase cinquenta e sete, eu uma senhora, uma enfermeira, contem-me o que reclama o meu corpo, não o meu corpo, este corpo diferente do meu, o que reclama este corpo oiço os campos, o vento, a azinheira junto à casa da minha avó a cantar […] – Alice (Antunes, 2006, p. 50-51) […] tenho quarenta e quatro anos e o que significam quarenta e quatro anos contem-me, que relação entre quarenta e quatro e eu, entre Lurdes e eu, entre o meu corpo e eu, casas, cheiros, silêncio e eu no centro […] (Antunes, 2006, p. 138) […]

Agamben observes that “children and ghosts, as unstable signifiers, represent the discontinuity and difference between the two worlds” (Agamben, 2007, p. 92-93).

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ficava a pensar no meu nome a equilibrar-me no tornozelo direito primeiro e no esquerdo depois, sentindo o peso das letras, não o do corpo, nas pernas, a pena quebrada foi-se embora de sapatos miúdos triturando as pedras depressa a esmagar o meu nome, desembaraçada de mim e eu livre, não me chamo Lurdes, chamo-me Eu, os meus pais recuaram insignificantes […] (Antunes, 2006, p. 150)

And finally, towards dawn: O seu livro quase no fim visto que dia…você não imaginando que a morte uma pessoa real, sem mistério a defender-se do frio, o seu nome – António Não consegue ouvir nada a não ser o seu nome – António (Antunes, 2006, p. 395-96)

Here, there is a split in language as there is one of voices (I – body – name) and time, and the narration is what belongs both to the game of the night (framed by five hours), and to the produced, “returned” self as remembered, or authenticated through the modality of fiction.

Language and death: naming and authenticity The final point to be made in connection with memory, history and literature as a site of memory is concerned with the split in language between the act of naming and what is being named. Again, we turn to the voice as language – narration and narrator – in the novel, and see that without the split in language and in temporality, there would not be a site of producing subjectivities. Agamben observes in another essay on the topic of “language and death” that a silent and unspeakable voice “permits thought to experience the taking place of language and to ground, with it, the dimension of being in its difference with respect to the entity” (Agamben, 1991, p. 86). Moreover, if we return to the function of the toy as an object of both synchrony


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and diachrony, whose silent voice guarantees the “taking place” of memory in literature as a site we see that it articulates a continuity as well as discontinuity. Furthermore, what becomes visible is the double structure of the narrative play and voice, whereby the playing voices are intimately related to “death” in order to perform life. As Agamben notes, To experience death as death signifies, in fact, to experience the removal of the voice and the appearance, in its place, of another Voice […] which constitutes the originary negative foundation of the human word. To experience Voice signifies, on the other hand, to become capable of another death – no longer simply a deceasing, but a person’s ownmost and insuperable possibility of his freedom (Agamben, 2007, p. 86).

If, according to these observations, the voice of the silent doll is equated with the taking place of the voice of the daughter in the novel, we see that she speaks from a site of infinity, both in terms of temporality and signification, which, in turn, means that it is a site of in-significance, where language, is and is contained in, yet has ceased to signify and to name. As a subject, therefore, she – this Voice – has removed herself from the other voices and thereby disclosed herself as pure “taking place of language.” (Agamben, 2007, p. 86) She has exhausted herself, thus, in order to produce others, that is, to on the one hand return as narrative and memory in the voices of others, and on the other hand, allow them to return to her.5

Escrevo em nome da minha filha Towards the end of the novel, we learn that the Voice of the doll, or silence of the dead girl, narrates through the voice of her mother: “Escrevo o fim deste livro em nome da minha filha que não pode escrever” (Antunes, 2006, p. 459). Here we have an example of how silence is given Voice and articulation by our returning to it, which, in

Interestingly, Agamben notes that only “not being born, not having a nature (phusis) can overcome language and permit man to free himself from the guilt that is built up in the link of destiny between phusis and logos, between life and language” (Agamben, 1991, p. 90). We could add to this that the same topic is illustrated in the novel by Lobo Antunes, by the fact that the points of reference of Ana Emília and Alice as narrators are the dead daughter and the unborn son, who both indicate how they – as logos, or history – relate to phusis, life, or “real” memory.

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turn provides memory with historical signification and, consequently, a sense of authenticity. Also, from the point of view of the daughter, as Voice, it is the status of the mother (“Ana Emília”) which is being questioned and played with – (Você um boneco mãe?) (Antunes, 2006, p. 462) – as she is aligned with the invention of other family members: tive um irmão que inventei e dormia comigo, guardava-o em segredo entre os livros de estudo, a minha mãe – Para quem é essa cadeira à mesa? sem notar o meu irmão ao lado, não na cadeira do meu pai, na outra com menos vincos dado que a não usávamos e o meu irmão levezinho, eu para a minha mãe – Não vê? (Antunes, 2006, p. 464-465)

From this ludic double point of view, in which the perspective, or voice of the mother as well as of the daughter merge, the narration is both blind and lucid to its own unfolding. Neither the story nor the voices are entirely true, or completely false, but can, by emerging from the play between history and memory, be invented and authenticated by way of their own process of constituting their narration as site of memory. The instance of authorisation of the text, thus, is playfully, alluded to in brackets, where the narrating Voice reveals, “(chamo-me António Lobo Antunes, nasci em São Sebastião da Pedreira e ando a escrever um livro)” (Antunes, 2006, p. 465), before returning to and merging with the narrated sequences again. Here, towards the very end of the novel, she, as voice – as memory – is fixated in an image, a photo in a book, “que não é um livro, é a vida” (Antunes, 2006, p. 473): “e na película eu, as minhas tranças e o vestido de ramagens feito de um vestido da minha mãe demasiado largo para mim e de que nunca gostei […]”(Antunes, 2006, p. 473). As image, as word different to language, the daughter accommodates herself (and the others) as memory and as such, the memory can be returned to history in the course


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of the play. The memory has, to speak with Agamben, crossed over time and “the scission that reveals itself in the place of language.” The voice can thereby return to itself and to “where it was in the beginning; that is, in the Voice.” (Agamben, 1999, p. 93) Significantly, therefore, the very end of the novel can also be said to mark the return to the beginning, a return of the mother to the daughter as pure language. The voice of the mother no longer writes in the name of her daughter, but writes and narrates as her daughter, who has, to speak figuratively, devoured her, here by describing a desire to continue to play: e por um instante […] vontade que me prendesse os braços e girássemos ambas durante horas sem fim no recreio da escola, eu com medo e contente, insegura e feliz – Continue que girássemos conforme giro sozinha, o que me apetece […] o que eu gostava, o que eu queria, o que teria desejado se fosse capaz de desejar e não sou, era que a palma me continuasse na cara durante tanto tempo que eu cega, era que a minha palma continuasse na vossa cara durante tanto tempo que cegos […] e não fazia mal, não tem importância, não se preocupem com o livro (não estou a girar sozinha é com a minha mãe que eu giro) porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro (Antunes, 2006, p. 478-479).

Here, the Voice utters the wish or hypothetical will to cease to narrate and to become pure language, no narration. As only language she obliterates history, or rather, the split between memory and history, in order to become only pure memory, non-identifiable, yet pure self. Could it be that the only form of accommodation possible for our authentic


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experience of time and history is a narrative which desires to merge with the other (language) in blindness, in pure movement?

Conclusion: authentication of history as play Is it possible to wake up to anything but to the past? The examination of Lobo Antunes’ novel has sought to demonstrate that the intricate relation between historicity and literature is maintained in literature by way of how narration and language merge in a practice or process of authentication of historical experience. First, we have seen that if life is invaded by play, it can facilitate an examination of the past from the present point of view; secondly, through the interplay of temporality and voices emerges the logic of the night and of the insomniac will and desire to remember, to recover and to lose its self out of sight in the depth, or infinity of the silence. “[O] que é a memória santo Deus,” (Antunes, 2006, p. 477) asks the Voice at the end of the novel, and chances are that the answer is only given by the removal of voices, or by end of the book, in which its beginning takes place. Its final signifying moment of authentication lies – as it well knows – outside its own written scope, hence in blindness.

References AGAMBEN, Giorgio. Infancy and history. The destruction of experience. London: Verso, 2007. . Language and death. The place of negativity. London, Minneapolis: University of Minnesota, 1999. ANTUNES, António Lobo. Ontem não te vi em Babilónia. Lisbon: Dom Quixote, 2006. DRIVER, Tom F. Beckett by the Madeleine. Columbia University Forum Summer, 1961. GIFFORD, Paul; STIMPSON, B. Reading Paul Valéry. Cambridge: Cambridge University, 1998.


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HELLER-ROAZEN, Daniel. The inner touch: archaeology of sensation. New York: Zone, 2007. NORA, Pierre. Between memory and history: les lieux de mĂŠmoire. Representations, n. 26, p. 7-24, 1989. OLNEY, James. Memory and narrative: The weave of life-writing. London: The University of Chicago, 2000. SMITH, Laurajane. Uses of heritage. London: Routledge, 2006.


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Pareceristas

Antonio Dimas Antonio Roberto Esteves Benito Martinez Rodrigues Edgar Cesar Nolasco Fábio Akcelrud Durão Gilberto Pinheiro Passos Helena Bonito Couto Pereira Ivete Walty João Roberto Faria Lúcia Granja Luís Bueno Luiz Carlos Simon Luiz Gonzaga Marchezan Márcia Abreu Maria Célia de Moraes Leonel Maria Elisa Cevasco Maria Eunice Moreira Maria Lídia Maretti Marilene Weinhardt Mauricio Mendonça Cardozo Pedro Brum Rosana Zanelatto dos Santos Salete de Almeida Cara Silvana Oliveira


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Tânia Ramos Vera Bastazin Vera Teixeira de Aguiar Zênia de Faria


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Normas da revista

Normas para apresentação de artigos • Só serão aceitos trabalhos enviados pela internet para o endereço: revista@abralic.org.br • Os artigos podem ser apresentados em português ou em outro idioma. Devem ser produzidos em MSWord 2007 (ou versão superior), com uma folha de rosto onde constem os dados de identificação do autor: nome, instituição, endereço para correspondência (com o CEP), email, telefone (com prefixo), título e temática escolhida. A extensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas e, no máximo, 20, espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar também Abstract e Keywords. • O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de não doutor, desde que a convite da comissão editorial – casos de colaborações de escritores, por exemplo. • Após a folha de identificação, o trabalho deve obedecer à seguinte sequência: - Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem grifos); - Nome(s) do(s) autor(es) – à direita da página (sem negrito nem grifo), duas linhas abaixo do título, com maiúscula só para as letras iniciais. Usar asterisco para nota de rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a). O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da sigla;


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- Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito, itálico e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado em itálico, corpo 10, com recuo de dois centímetros de margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10; - Palavras-chave – dar um espaço em branco após o resumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto 10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito, itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos. Máximo: 5 palavras-chave; - Abstract – mesmas observações sobre o Resumo; - Keywords – mesmas observações sobre as palavraschave; - Texto – e m Times New Roman, corpo 12. Espaçamento simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas, quando houver; - Parágrafos – usar adentramento 1 (um); - Subtítulos – sem adentramento, em negrito, só com a primeira letra em maiúscula, sem numeração; - Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos etc.) – devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo autor; - Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10. - Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras em língua estrangeira – itálico. - Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico), seguidas das seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte 11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobrenome do autor (só a primeira le-


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tra em maiúscula), ano de publicação e página(s).As citações em língua estrangeira devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé. - Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando constituírem textos já publicados, devem incluir referência completa, bem como permissão dos editores para publicação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas quando absolutamente necessários. - Referências – devem ser apenas aquelas referentes aos textos citados no trabalho. A palavra REFERÊNCIAS deve estar em maiúsculas, negrito, sem adentramento, duas linhas antes da primeira entrada.

ALGUNS EXEMPLOS DE CITAÇÕES • Citação direta com três linhas ou menos [...] conforme Octavio Paz, “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” (PAZ, 1982, p. 37) • Citação indireta [...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as conseqüências de certas linhas da poética drummoniana. • Citação de vários autores Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, 1991; Borges, 1998; Campos, 1969) • Citação de várias obras do mesmo autor As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confronto entre o sagrado e o profano; o


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enfoque das personagens em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidoscópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992) • Citação de citação e citação com mais de três linhas Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire: Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...] (FREIRE, 1759, p. 87 apud TEIXEIRA, 1999, p. 148)

ALGUNS EXEMPLOS DE REFERÊNCIAS • Livro PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. Paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. • Capítulo de livro BERND, Zilá. Perspectivas comparadas transamericanas. In: JOBIM, José Luís et al. (Org.). Lugares dos discursos literários e culturais – o local, o regional, o nacional, o internacional, o planetário. Niterói: EdUFF, 2006. p.122-33. • Dissertação e tese PARMAGNANI, Claudia Pastore. O erotismo na produção poética de Paula Tavares e Olga Savary. São Paulo, 2004. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. • Artigo de periódico GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: uma breve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 3757, 2004.


Normas da revista

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• Artigo de jornal TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4. • Trabalho publicado em anais CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Maria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte. p. 85-95. • Publicação on-line – Internet FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e geografia) literária na Itália contemporânea. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S1517-106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acesso em: 6 fev. 2009. OBSERVAÇÃO FINAL: A desconsideração das normas implica a não aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).


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