REVISTA BRASILEIRA DE
S達o Paulo 2009
Diretoria A B R A L I C 2009-2011
Presidente Marilene Weinhardt (UFPR)
Vice-presidente Luiz Carlos Santos Simon (UEL)
1º Secretário Benito Martinez Rodriguez (UFPR)
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2º Tesoureiro Maurício Mendonça Cardozo (UFPR)
Conselho Fiscal José Luís Jobim (UERJ, UFF) Lívia Reis (UFF) Sandra Margarida Nitrini (USP) Helena Bonito Couto Pereira (Universidade Mackenzie) Arnaldo Franco Junior (UNESP - S. J. do Rio Preto) Carlos Alexandre Baumgarten (FURG) Rogério Lima (UnB) Sueli Cavendish de Moura (UFPE)
Suplentes Adeítalo Manoel Pinto (UEFS)
Zênia de Faria (UFG) Conselho editorial Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Yves Chevrel.
ABRALIC CNPJ 91.343.350/0001-06 Universidade Federal do Paraná Rua General Carneiro, 460, 11.o andar 80.430-050, Curitiba - PR E-mail: revista@abralic.org
REVISTA BRASILEIRA DE
ISSN 0103-6963 Rev. Bras. Liter. Comp. S達o Paulo n.15 p. 1-195 2009
2008 Associação Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.
Editor Luís Bueno Organizador Maurício Mendonça Cardozo
Comissão editorial Luiz Carlos Santos Simon Benito Martinez Rodriguez Silvana Oliveira Luís Bueno Maurício Mendonça Cardozo Preparação/Revisão Patrícia Domingues Ribas Diagramação Rachel Cristina Pavim
Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Rio de Janeiro: Abralic, 1991 v.2, n.15, 2009
ISSN 0103-6963
1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada.
CDD 809.005 CDU 82.091 (05)
Sumário
Apresentação Luís Bueno Mauricio Cardozo
Artigos
Os estudos de língua e literatura brasileiras no contexto dos estudos portugueses e latino-americanos na Alemanha Ligia Chiappini
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A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria Ferenc Pál
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Tempos e contextos da literatura brasileira na Argentina e no exterior Florencia Garramuño
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Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita Abel Barros Baptista
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O ameríndio como personagem do Outro na literatura brasileira contemporânea: Órfãos do Eldorado e Nove noites Rita Olivieri-Godet
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Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate de nosso tempo Idelber Avelar
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O ensino de literatura brasileira por meio do Teatro do Oprimido: uma experiência na Carolina do Norte Érica Rodrigues Fontes 151
As alunas e os contos: a narrativa curta brasileira num curso de escrita criativa nos Estados Unidos Heloisa Pait 173
Pareceristas 190
Normas da revista 191
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Apresentação
Ao propor como tema os “Estudos de literatura brasileira no exterior”, a Revista Brasileira de Literatura Comparada procurou abrir um espaço para a discussão dos diferentes lugares e dinâmicas de estudo da literatura brasileira fora do Brasil, bem como de suas relações com o deslocamento da posição ocupada pelo Brasil no cenário político e econômico mundial nas duas últimas décadas. Respondendo a essa proposta inicial, os artigos que compõem este número da Revista formam três blocos diferentes, organizados a partir da dimensão que privilegiam em sua discussão. No primeiro bloco, o que se destaca é a dimensão por assim dizer institucional dos estudos brasileiros no exterior. O artigo de Lígia Chiapinni é o significativo balanço da experiência fundamental que representou a criação e rápida extinção da única Cátedra de Brasilianística de uma universidade alemã. Ferenc Pál e Florencia Garramuño, por sua vez, traçam amplos panoramas históricos – com um olhar atento ao futuro – dos estudos de literatura brasileira em dois países que se localizam a distâncias (não só geográficas) muito diferentes em relação ao Brasil: Hungria e Argentina. O segundo bloco é constituído por três trabalhos que privilegiam a dimensão da análise literária. Abel Barros Baptista, da Universidade Nova de Lisboa, ao concentrar-se nas questões levantadas pelas leituras brasileira e estrangeira de Machado de Assis, vale-se do conceito de “hospitalidade” para discutir o estatuto do estudioso estrangeiro de literatura brasileira. Rita Cavalieri Godet, da
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Universidade de Rennes 2, ao realizar cuidadosa leitura de obras de Milton Hatoum e Bernardo Carvalho, lança seu olhar para a representação que a ficção brasileira contemporânea faz do ameríndio. Já Idelber Avelar, da Universidade de Tulane, ao tomar partido de sua posição de professor brasileiro que atua nos Estados Unidos, convoca estudiosos tanto brasileiros como estrangeiros para retomar um tema fulcral da crítica: o do estabelecimento do valor. O bloco final nos traz dois relatos que investem na dimensão da experiência de professoras brasileiras nos Estados Unidos. No primeiro deles, Érica Rodrigues Fontes trata de sua proposta de utilização dos fundamentos do Teatro do Oprimido de Augusto Boal como instrumento de aproximação de uma realidade que, em princípio, é estranha ao aluno estrangeiro. No artigo que fecha este número da Revista Brasileira de Literatura Comparada, Heloisa Pait conta como procurou superar as dificuldades de discussão de textos brasileiros em tradução no contexto de uma instituição que, apesar de ter grande tradição, enfrenta as dificuldades das pequenas faculdades americanas. Luís Bueno Mauricio Cardozo
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Os estudos de língua e literatura brasileiras no contexto dos estudos portugueses e latino-americanos na alemanha1 Ligia Chiappini*
Situação atual dos estudos de língua, literatura e cultura brasileiras na Alemanha, descrita a partir da experiência única da cátedra de Brasilianística que a autora ocupou por quase quinze anos na Universidade Livre de Berlim. A interrupção dessa experiência, a partir de 2010, confirmaria uma tradicional contradição na Alemanha entre um grande interesse pelo Brasil e um quase desinteresse por sua literatura. resumo:
palavras-chave:
ensino e pesquisa, literatura brasileira,língua portuguesa, reforma curricular, encerramento cátedra. abstract: The current status of the studies of Brazilian language,
literature and culture in Germany is described by the author who occupied the only Chair in Brasilianistik ever created in Germany for almost fifteen years at the Freie University of of Berlin. The interruption of this experience in October 2010, do confirm a traditional contradiction in Germany between a great interest in Brazil and almost no interest in its literature. keywords: teaching and research, Brazilian literature, Portuguese Em memória de Marlyse Meyer. 1
Professora catedrática de Literatura e Cultura Brasileiras do Instituto Latino-Americano da Universidade Livre de Berlim, entre 1997 e 2010. Atualmente trabalhando na orientação de teses no mesmo Instituto, bem como na pesquisa, junto ao Centro de Pesquisas Brasileiras, do qual é co-fundadora. *
language, curriculum reform, closure chair A literatura proveniente da América Latina tem direito a ser considerada no mesmo nível que outras literaturas, não deveria ser lida somente como veículo de informações sobre o país. Não é preciso acentuar que uma obra literária transmite muitos elementos procedentes de outra cultura na ficção e desperta para outras formas de viver e de pensar. Porém os preconceitos ou, digamos, os clichês, que influenciam o diálogo entre o autor traduzido e o
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seu leitor estrangeiro, são, ao que parece, difíceis de desaparecer na mente das pessoas. (Ray-Güde Martin) Nos meios cultos da Alemanha, a língua portuguesa fica quase tão desconhecida como o pérsico ou o sânscrito. (Johann Jacob von Tschudi)
O objetivo deste texto é resumir um pouco o percurso e a situação atual dos estudos de língua, literatura e cultura brasileiras e de suas diferentes modalidades na Alemanha, principalmente em Berlim, que conheço melhor, propondo para nossa reflexão alguns problemas que pude identificar em quase quinze anos de trabalho na Universidade Livre de Berlim, como a primeira, única e, até segunda ordem, última professora de Brasilianística da Alemanha. Esta ironia se esclarecerá no decorrer deste texto, que atualiza informações já divulgadas em algumas publicações anteriores.2 Brasilianistik, em alemão, significa Literatura Brasileira ou Filologia Brasileira, por analogia a outras áreas desses estudos, tais como a Germanistik, a Hispanistik, a Anglizistik, de mais longa tradição acadêmica. Na Universidade Livre de Berlim, ela se localizou na confluência do Departamento de Romanística com o Instituto de Estudos LatinoAmericanos. E, nesse contexto, adotou o tratamento da literatura como manifestação cultural, abrindo-se a outras linguagens, do cinema, da televisão, da música popular, das artes plásticas, da poesia e narrativa orais. Para além da filologia mas com a filologia, pois esta não deve ser confundida com o estudo meramente formal dos textos em si mesmos, pelo menos na terra de Spitzer, Auerbach, Adorno e Benjamin, para citar apenas alguns dos grandes estudiosos de língua alemã que trataram dos textos em seus contextos e dos contextos nos textos. Mas o que parece simples no enunciado acima é, na verdade, muito complicado, pois a literatura brasileira
Por exemplo, no texto “Literatura e cultura no contexto dos estudos brasileiros na Alemanha: a cátedra de Brasilianística” (Chiappini, 2005) 2
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Critérios e preconceitos que, aliás, tornaram a vigorar, por parte dos que nunca quiseram a cátedra de Brasilianística na Universidade Livre de Berlim e retardaram ao máximo a sua criação, processo que durou de 1988 a 1995, e por parte dos que provocaram, apoiaram ou facilmente aceitaram a sua extinção quinze anos depois. 3
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ainda enfrenta dificuldades para ser reconhecida em sua autonomia (mesmo que relativa, como a de toda literatura), tensionada entre os Estudos de Literatura e Cultura Latino-Americanos – hoje identificados com os Estudos Culturais Norte-Americanos – e a Lusitanística, como parte da Romanística. Entre aqueles e estas, ela perde espaço e visibilidade, mesmo em contextos nos quais se impôs como necessária, depois de uma longa luta pela institucionalização da disciplina, caso do nosso Instituto. Em palestra realizada no primeiro simpósio internacional promovido pela Brasilianística, “Brasil: país do passado?”, que se publicou posteriormente em livro com o mesmo título, Dietrich Briesemeister (2000) faz um balanço dessa luta, do início do século XIX ao final da década de 90 do século XX, que ajuda a entender a situação presente. Começa constatando nesse percurso um permanente desequilíbrio na visão do Brasil pelos estudiosos na Alemanha. Por um lado, seria esse País Tropical um paraíso para geólogos, botânicos, sociólogos, geógrafos, etnólogos, que sempre por ele se interessaram, sobre ele pesquisaram e escreveram. Por outro lado, e paralelamente, haveria um semidesconhecimento cultural e, mesmo, uma ignorância quanto à “participação individual do Brasil na cultura universal”, vigorando “enfoques valorativos eurocêntricos e critérios preconceituosos” (Briesemeister, 2000, p. 349).3 Ainda segundo Briesemeister: Os estudos brasileiros, no caso da literatura, sempre foi um apêndice de Portugal, nos departamentos de Romanística das Universidades, ou dos estudos hispanoamericanos, nos departamentos ou institutos latino-americanos. E aí também a situação piora dia a dia, com o português fazendo parte de uma estrutura que privilegia o espanhol (2000, p. 349).
O desconhecimento e o desinteresse não se manifestariam apenas na ausência ou invisibilidade da literatura, mas também na ignorância da dimensão que a própria língua portuguesa tem no mundo, sendo ela frequentemente
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comparada ao sânscrito e ao romeno, como línguas mais ou menos exóticas e minoritárias: Não obstante o número muito elevado e ainda o aumento da população mundial dos países lusófonos em quatro continentes (...), o ensino torna-se imperdoavelmente reduzido nas universidades alemãs. O português entra em competição com o espanhol como “terceira língua”, ficando atrás em relação ao número de alunos (Briesemeister, 2000, p. 350-351).
Briesemeister reconhece algumas raras exceções a essa tendência ainda no século XIX, como a posição do austríaco Ferdinand Wolf, autor de Le Brésil Littéraire, publicado em 1863. Lamenta que esse exemplo não tenha sido seguido como merecia e acusa mesmo um possível retrocesso: desde aquela obra singular de Wolf, não se fez muito nos países de língua alemã a favor da pesquisa, da valorização e da divulgação da literatura brasileira. Pelo contrário, constata-se até uma tendência regressiva em comparação com o posicionamento avançado do erudito austríaco (Briesemeister, 2000, p. 351).
A regra continuaria sendo o predomínio do interesse econômico, deixando as manifestações culturais sempre em segundo plano, como no contraexemplo do livro de Wilhelm Giese, O Brasil e a Alemanha: 1822-1922, em que a literatura é a grande ausente. Isso revelaria um grande desconhecimento tanto da dimensão quanto da qualidade desta. O mesmo fenômeno nota Briesemeister nos livros sobre literaturas latino-americanas, a maior parte dos quais, até há pouco tempo, deixava de fora o Brasil: (O) Brasil continuou ausente das obras que tratavam da América Latina e, principalmente, de sua literatura, como no livro de Max Leopold Wagner, Die Spanisch-amerikanische Literatur in Ihren Hautströmungen, de 1924 (Briesemeister, 2000, p. 351).
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Ainda nos anos 60 do século XX, falava-se freqüentemente em América Latina, mas quase sempre com referência exclusiva à América espanhola. Por exemplo, o livro de Michi Strausfeld, Materialien zur lateinamerikanischen Literatur (1976), só contém artigos dedicados a autores de língua espanhola (Briesemeister, 2000, p. 351-352).
Defendendo a necessidade dos estudos regionais e, ao mesmo tempo, a diversificação interdisciplinar, o mesmo autor resume “o largo caminho da institucionalização” (Briesemeister, 2000, p. 351) dos estudos portugueses e brasileiros na Alemanha, pontuando, em 1912, a fundação do primeiro Instituto Latino-Americano da Alemanha, em Aachen, pelo cônsul Heirich Schüler. Ainda antes da segunda guerra, a criação de três institutos que continuaram existindo depois dela: o Instituto de Pesquisas sobre Ibero-América da Universidade de Hamburgo, o Instituto Ibero-Americano do Patrimônio Cultural Prussiano, em Berlim, o Instituto Português e Brasileiro da Universidade de Colônia. Destaca também novos centros, como o Instituto de Cultura Brasileira, dos Frades Franciscanos, em Mettingen, o Instituto Geográfico da Universidade de Tübingen, o Centro Latino-Americano de Münster e, finalmente, o Instituto Latino-Americano, da Universidade Livre de Berlim, como primeiro centro de estudos interdisciplinares sobre América Latina numa universidade alemã, que só 25 anos depois de criado, ou seja, a partir de 1995, foi “dotado de uma cátedra (única no país) de literatura e cultura brasileiras.” (Briesemeister, 2000, p. 353) Essa foi realmente uma conquista significativa. Criada em 1989 e somente em 1997, depois de muitos prós e contras, ocupada pela autora deste texto, a cátedra mal completara um ano quando organizamos o simpósio internacional, no qual foi proferida essa conferência de Briesemeister, bem como a de Ray Güde-Mertin, da qual tiramos a epígrafe acima.
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Considerando as lacunas apontadas por esses e outros estudiosos, a Brasilianística no LAI dedicou-se sobretudo ao estudo sistemático e à divulgação dos textos mais significativos da Literatura Brasileira, embora ela tenha trabalhado também com textos não canônicos e com textos que só podem ser considerados literários em sentido amplo, tais como filmes, novelas de televisão, mitos, poesia oral, entre outros.4 Mas isso não significou tratar os textos isoladamente, havendo um esforço permanente para relacioná-los com seus contextos, implicando um diálogo constante da crítica, da teoria e da história literárias com a linguística, a economia, a história e as ciências sociais, numa predisposição e abertura para a inter/pluri/transdisciplinaridade. Por outro lado, a proposta sempre foi trabalhar com o Brasil sem deixar de levar em consideração a sua integração no mundo, a começar por tudo o que o une à América Latina, sem desconhecer suas especificidades linguísticas e históricas; essa foi sempre a direção buscada. A Brasilianística concebeu-se, assim, tanto como parte de uma hipotética Weltliteraturwissenschaft quanto da Romanística, da Lusitanística, da Literatura Comparada, dos estudos de teatro, artes e comunicações, bem como da Latino-americanística e em diálogo estreito com a Caribística, mas tudo isso sem esquecer sua base nos estudos de literatura brasileira, que já constituem mais de dois séculos de um saber acumulado, o qual não podemos esquecer, como quem inventa a roda, a cada nova tendência teórica produzida nos centros universitários hegemônicos da Europa e Estados Unidos da América do Norte. A Brasilianística concebeu-se, ainda, como “Altos e baixos estudos”5 de literatura e cultura e não como Cultural Studies, porque estes muitas vezes tendem a confinar o estudo dos textos e a própria literatura nos países considerados periféricos a um conjunto de informações superficiais e até mesmo estereotipadas das produções culturais, permitindo-se juntar num único seminário, de modo indiscriminado, arbitrário e puramente folclórico,
Para tanto, contou com uma ótima base linguística dos estudantes, que aprenderam português brasileiro com Berthold Zilly e outros excelentes mestres, encarregados de cursos de língua, entre os quais, Zinka Ziebell, hoje também leitora na FU, Carlos Azevedo e Carlos Ladeira, ambos parcialmente financiados com auxílio do governo brasileiro. 4
O termo se deve a Marlyse Meyer, que, já nos anos 1970, valorizava com saudável distanciamento irônico os estudos culturais para além dos cânones literários, dedicandose, entre outros, aos estudos sobre cordel e folhetim, muito antes de os Cultural Studies se terem transformado em moda na América Latina. 5
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Como defendeu um colega norte-americano no jornal da Brazilian Studies Association (Brasa), associação de brasilianistas dos Estados Unidos. O jornal chama-se Fagulha e no número de 1997 estampou esse programa como alternativa aos programas tradicionais de literatura e cultura brasileira.. 6
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aulas sobre descobrimentos, escravidão, Guimarães Rosa, música popular brasileira e jeitinho brasileiro.6 Finalmente, a Brasilianística sempre defendeu o espaço e a possibilidade de os escritores brasileiros escreverem e publicarem literatura, como em qualquer parte do mundo, entendendo que negar essa possibilidade em nome da democracia, como abertura para o não canônico, seria um efeito perverso da atitude libertária, mesmo que bem intencionada. Como já foi dito, com esse cargo de titular para a Brasilianística criou-se a possibilidade de os estudos brasileiros escaparem à situação de apêndice dos estudos portugueses ou hispano-americanos. Para entender a importância disso – sobretudo porque no Brasil poucos percebem a diferença entre as condições de trabalho de um professor e de um assistente ou de um leitor, para não falar dos professores horistas ou encarregados de cursos –, é preciso saber que na Alemanha, onde a hierarquia universitária se mantém de modo muito rígido e conservador, um cargo de professor implica um espaço próprio e possibilidades bem maiores de fazer coisas que, aparentemente, todo docente universitário com doutorado poderia fazer, como permite o sistema brasileiro: desde orientar teses de doutoramento até coordenar projetos, promover eventos, assinar convênios e gerenciálos. Isso tudo, mais o contrato permanente de trabalho, possibilita uma continuidade de produção teórica e prática no ensino e na pesquisa, tão importante na formação das novas gerações. No caso da Brasilianística, permitiu conquistar um espaço autônomo para os estudos de literatura e cultura, impedindo que se dissolvessem conteudística- e redutoramente nas ciências sociais, embora vinculando-se estreitamente a elas, pois a literatura sempre foi estudada aí como parte da cultura e esta, como social e histórica. Por outro lado, o aprofundamento da pesquisa e do ensino específicos da literatura e da cultura brasileiras preservou, e mesmo intensificou, o intercâmbio interdisciplinar com os estudos hispano-americanos de literatura e cultura.
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É importante assinalar que o Instituto Latino-Americano, apesar de suas contradições, ou mesmo por causa delas, parece ser o lugar institucional ideal para uma disciplina desse tipo, pois permite não apenas aprofundar a interdisciplinaridade mas também desenvolver atividades que levem a superar culturalmente o tratado de Tordesilhas, concorrendo para a integração da América Latina. Entretanto, como vimos, a Brasilianística começou a funcionar já num momento extremamente desfavorável, um ano antes do balanço pessimista mas realista de Briesemeister, quando a Universidade começava a ser pressionada para ajustar-se às reformas neoliberais, ajuste esse que o autor antecipou e que logo iríamos começar a viver de modo vertiginoso, com a introdução das reformas curriculares nas universidades alemãs e europeias, no sentido acordado em Bolonha: generalização dos cursos de Bachelor e Master e substituição dos cursos tradicionais de graduação. O experiente professor e pesquisador já pressentia nessa reforma novos entraves para os poucos progressos feitos na institucionalização dos estudos de língua e literatura brasileira, e mesmo portuguesa, na Alemanha, como a então recente criação da Brasilianística. Tais entraves iriam reforçar, segundo ele, aqueles identificados no passado, o que o levava a sugerir um tanto profeticamente que tudo tenderia a piorar: O que impede quase insuperavelmente a independentização dos estudos brasileiros nas condições precárias do momento atual são as estruturas administrativas organizatórias da universidade alemã, tanto na sua tradição, como no âmbito das reformas anunciadas para o futuro próximo (Briesemeister, 2000, p. 354).
E, realmente, piorou. A reforma universitária vinha junto com significativos cortes de orçamento, prevendo a extinção de postos e áreas inteiras. Nas Humanidades, uma das primeiras áreas atingidas foi o português. Apesar das várias realizações da Brasilianística – entre outras, a oferta de quatro a cinco cursos diferentes por semestre, a
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As recentes reformas implicaram o fechamento de departamentos inteiros de português em toda a Alemanha. Em Berlim, a Universidade Humboldt encerrou mais radicalmente esses estudos. A Universidade Livre tem mais condições hoje de manter uma parte deles, mas o máximo que conseguiu foi fazê-los sobreviver como diploma complementar aos Bachalerados da Romanística, com um BA de estudos brasileiros e portugueses (valendo 60 pontos e não 90, como os outros), o que significa menos carga horária, menos disciplinas, menos professores: ou seja, uma formação mais superficial na área. 7
O Master do Instituto prevê um primeiro ano comum, com cinco módulos obrigatórios e alguns opcionais. Os básicos são: Constituição da América Latina; Conceitos e métodos da pesquisa sobre América Latina; América Latina no contexto global; Poder e diferença, além de um módulo para desenvolvimento de projetos. Num segundo ano, os alunos podem optar entre cinco áreas de concentração: Transformação e desenvolvimento; Literaturas nas dinâmicas culturais da América Latina; Antropologia cultural; Brasil no contexto global: literatura, cultura e sociedade; Relações de gênero, formas de vida, transformações. Esse master começou em outubro de 2005, quando os novos bacharelados já haviam começado e hoje já se evidencia em ambos a necessidade urgente de serem repensados e reformulados.. 8
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orientação de mestrados e doutorados, a organização de simpósios, ciclo de palestras e publicações, o estabelecimento e gerenciamento de convênios internacionais com outras instituições dedicadas à cultura e à língua brasileiras no Brasil e na Europa –, planejou-se e, em menos de cinco anos, decretou-se o seu desaparecimento no âmbito mais geral seja da Lusitanística, ao nível do BA,7 seja no âmbito dos Estudos Culturais Latino-Americanos, ao nível do Master.8 Ao nível do Bacharelado, a língua e a literatura brasileiras deslocaram-se para o departamento de Filologia Românica, como parte do BA de Estudos portugueses e brasileiros, enquanto a disciplina de Latino-americanística, da qual fazia parte a Brasilianística como uma subárea, passou para o mesmo departamento, mas estranhamente assimilada ao BA de Filologia Espanhola, o que significa, concretamente, a exclusão do Brasil da América Latina ou, então, a assimilação de uma língua de quase 200.000.000 de falantes, o português brasileiro, ao espanhol da América. Motivos? Ao que parece, mais econômicos que científicos. Não apenas a literatura brasileira se vê ameaçada. Os “dilemas da institucionalização” ameaçam também a variante europeia da língua e os respectivos estudos literários e culturais específicos da lusitanística. Como também previu Briesemeister, “torna-se impossível conciliar as necessidades da diferenciação adequada com os critérios didáticos de aprendizagem e as relações histórico-culturais dos países do mundo lusófono” (2000, p. 350). Ele enunciou, em face disso, uma necessidade que estamos longe de preencher: Sem dúvida, a especialização é absolutamente necessária, inevitável e urgente, não só para garantir, em nível institucional, a qualidade da pesquisa científica, mas também para ajustar a formação profissional dos jovens universitários às exigências de hoje (Briesemeister, 2000).
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A restrição da oferta no ensino de português, na variante europeia e nas demais, entretanto, não foi acompanhada de uma diminuição da demanda, que continua a crescer, mas está sendo canalizada, coerentemente com a tradição de que nos falava Briesemeister, para cursos destinados aos interessados das áreas consideradas mais úteis, ligadas aos negócios ou às chamadas ciências sociais, não aos estudos de literatura e cultura ou aos estudos linguísticos, que eram contemplados normalmente no antigo currículo. No caso do Instituto Latino-Americano da Universidade Livre de Berlim, há um paradoxo. Trata-se, como vimos, do instituto mais importante na Alemanha dedicado aos estudos sobre a América Latina, com uma tradição respeitável de estudos sobre o Brasil e que, recentemente, se propôs a criar um Centro de Pesquisas Brasileiras. Existindo desde meados da década de 1970, só em 1989, como vimos, esse Instituto conseguiu abrir um cargo de titular em literatura e cultura brasileiras, que quase dez anos depois, em 1997, após muitas idas e vindas, com tentativas de fechá-lo antes que começasse a funcionar e tendo funcionado dois anos com professores substitutos, veio a ser, finalmente, ocupado pela primeira colocada no concurso feito em 1990. E justamente agora, quando expressivos resultados do trabalho aí desenvolvido começam a aparecer,9 corta-se a sua continuidade, pela extinção do cargo após a aposentadoria da sua titular. Uma tarefa da Brasilianística, que por si só a justifica, consiste em, indo além do seu próprio gueto, ajudar a superar tanto uma suposta autonomia absoluta dos estudos filológicos quanto o preconceito de muitos brasilianistas das ciências sociais, para os quais a literatura é vista ora como uma joia supérflua, “sorriso da sociedade”, como queria o escritor brasileiro Afrânio Peixoto no início do século XX, ora como seu equivalente ao contrário: puro documento. Essa concepção ainda positivista da literatura e das artes embasa ou, pelo menos, justifica a criação de bacharelados disciplinares em que os estudos portugueses e
Veja-se a lista das publicações, eventos, cursos e projetos de pesquisa em nossa homepage: <http://www.lai.fuberlin.de/studium/disziplinen/ brasilianistik/index.html>. 9
Os estudos de língua e literatura brasileiras no contexto...
A cada ano, a Associação dos Lusitanistas alemães faz um balanço do desmonte dos estudos de língua e literatura em língua portuguesa e constata que ele prossegue, embora uma avaliação menos pessimista não veja isso como desmonte, mas como concentração desses estudos em algumas universidades em detrimento de outras. 10
Nesse conjunto, a partir do semestre de inverno de 2010, a Brasilianística voltou a fazer parte de uma só disciplina, servida por apenas um cargo de titular, que abrange toda a América Latina e o Caribe, como ocorria há quinze anos, o que configura necessariamente uma grande restrição, senão um lamentável retrocesso. 11
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brasileiros têm menos pontos (60, contra 90 nos bacharelados principais)10 e menos tempo ou nos Masters interdisciplinares, em que a literatura e a cultura submergem nos chamados estudos de área, perdendo sua especificidade, o que implica a desconsideração total da questão estética, pelo predomínio da análise conteudística ou a abordagem das condições de produção ou de recepção dos textos, necessárias e esclarecedoras mas externas a eles e, portanto, incapazes de dar conta da sua complexidade como objeto feito de palavras que são ao mesmo tempo coletivas e individuais. Em meio a tantas mudanças, o que tentamos, no nosso espaço cada vez mais restrito, foi resguardar o essencial, que é a capacidade de trabalhar intensivamente, com profundidade, textos que constituem nosso objeto de estudo, pois o que se ensina, neste caso, mais que uma série de informações sobre eles, é uma atitude analítica, um método para que cada um produza seu próprio método. Mais que quantidade de informação, o que importa aqui é a qualidade da formação, e esta não se faz sem um domínio da linguagem em que se expressa cada texto como produção simbólica. No caso da literatura, sem o domínio da língua e dos métodos de leitura desenvolvidos pelas teorias da literatura, pelo menos desde Aristóteles, o que não significa utilizá-los de modo acrítico ou extemporâneo, mas tampouco fazer tabula rasa do capital teórico e analítico aí acumulado. Atualmente, começa-se a rediscutir as bases do nosso Master de Estudos Latino-Americanos que se quer interdisciplinar, mas não se sabe ainda muito bem o que fazer dos estudos da cultura quando esses ultrapassam as leituras meramente conteudísticas e passam a investigar o tratamento dado aos temas, bem como a historicidade das formas. De todo modo, aí se procura articular em torno de certos temas, considerados prioritários, as diferentes disciplinas – Altamerikanistik (Antropologia e Arqueologia do continente americano), Lateinamerikanistik/Brasilianistik (Literatura e Cultura Latinoamericanas),11 História, Socio-
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logia, Ciências Políticas e Economia. No caso da literatura, o que precisava ser compreendido, mas dificilmente o é, nesse diálogo das disciplinas, é que, quando ela aparece na sua complexidade, ao mesmo tempo como criação estética e como documento, pode dizer muito mais sobre a vida, principalmente se tratando do Brasil e da América Latina, onde, como reconheceu há muito Antonio Candido, tudo foi historicamente permeado pela literatura, “desde o formalismo jurídico até o senso humanitário”, chegando à “expressão dos sentimentos no âmbito familiar” (Candido, 1989, p. 180). Parece óbvio – mas nem sempre o óbvio é percebido como tal – que não é possível realizar um trabalho inter ou transdisciplinar sem respeitar os pressupostos epistemológicos e metodológicos próprios de cada disciplina. Quem estuda literatura e cultura num país como o Brasil sabe que não é possível fazê-lo a não ser estabelecendo comparações. A teoria e crítica literárias aí já nasceram comparadas, mesmo que não quisessem sê-lo. E num país onde a literatura se forma sob a pressão e a certeza de que se está gestando com ela também a nação, não é possível estudá-la sem relacioná-la intimamente com a História, com a Sociologia, com a Política, com a Economia, com a Antropologia. Mas é verdade que isso se fez muitas vezes de modo implícito. O desafio, agora, é o de explicitar a comparação imanente, o que implica a busca de padrões e categorias que permitem tratar adequadamente semelhanças e diferenças. Ao mesmo tempo, trata-se de um desafio que é o desafio de todo trabalho interdisciplinar. Como devem ser abordados os objetos literários a partir da perspectiva dos estudos propriamente literários, a fim de que esse diálogo realmente seja um diálogo e não a submissão ou a diluição destes perante uma hegemonia das ciências sociais? Seja como for, é preciso reconhecer que, em Berlim, tivemos até quase o final de 2010 uma situação que se pode considerar de excelência na área dos estudos brasileiros, incluindo a literatura e cultura. Essa excelência deriva de
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que, além de contarmos com uma professora para essa cátedra, contávamos também com um leitor extremamente competente tanto no ensino da língua brasileira quanto na tradução, crítica, teoria e história literárias, sem falar nos encarregados de cursos que ajudaram a ampliar e diversificar a oferta de cursos desde o início. Essa excelência precisa ser defendida e potencializada, o que foi previsto no processo de criação do Centro de Pesquisas Brasileiras acima referido, mas isso parece difícil de ser conseguido, caso não se venha a compensar de forma consistente a perda da Brasilianística. A situação negativa que os estudos de literatura brasileira, no contexto dos estudos de português em geral, vêm enfrentando nos últimos anos, resumida ao longo deste texto, provocou periodicamente balanços extremamente negativos, dentro e fora da Alemanha. Eu mesma, com base no texto citado de Briesemeister, mas também num estudo de Walnice Nogueira Galvão e em informações divulgadas nos encontros bienais da Associação de Lusitanistas Alemães, reforcei esse tom pessimista em outras publicações, o que chegou a ser lido como nostalgia, mas que na verdade era realismo. Hoje em dia a situação começa a mudar, graças à organização da comunidade científica dos Lusitanistas e Brasilianistas, mas também graças à importância reconhecida do Brasil para as relações internacionais da Alemanha. Aqui e acolá há sinais de resistência que nos impedem de desanimar, como foi o caso do movimento iniciado pelos estudantes da Universidade de Jena, sob o mote de “Wir wollen Portugiesisch” (Nós queremos português). Pelo lado brasileiro, se antes havia pouco incentivo, hoje se financiam novos leitorados para compensar algumas perdas ou se estabelecem convênios que permitem preservar sobretudo os cursos de língua que sobreviveram nos novos currículos. Quanto à variante europeia do português, o Instituto Camões, cujo apoio aos leitorados parecia ter-se enfraquecido, volta a se fazer presente, financiando pelo menos parcialmente alguns leitorados, como ocorre atualmente na Universidade
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Livre de Berlim e na Universidade Humboldt. Isso tudo leva a juntar forças, num esforço de cooperar para vencer a tendência a concorrer e dividir. Assim, no Bacharelado de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade Livre de Berlin, em que o português europeu é central, as outras variantes da língua são, desde o início, objeto de estudos comparativos. No que diz respeito à variante brasileira, com ajuda da Embaixada Brasileira, estamos fazendo um trabalho desde 2007 no sentido de conceber cursos de cultura brasileira para além dos tradicionais e panorâmicos cursos de civilização, produzindo e compilando tanto um material básico para iniciantes, que vai de mapas a dados numéricos e históricos, quanto outros mais complexos, tais como textos de e sobre literatura e cultura, entre eles os que tratam das manifestações culturais afro-brasileiras ou dos povos indígenas. Também uma antologia de textos curtos e atuais, de diferentes gêneros, em português brasileiro, vem sendo preparada e sistematicamente atualizada, como instrumento ágil para proporcionar aos estudantes de português, desde o início da sua formação no bacharelado, a experiência da variante brasileira. Assim, a partir dessa base, eles terão oportunidade de desenvolver um conhecimento mais profundo e uma prática linguística mais ativa nos módulos mais avançados, em que se trabalha mais diretamente com o português do Brasil. Uma produção de material didático de caráter contrastivo do português brasileiro com o português de Portugal e de Angola, para ser usado no sistema do e-Learning, é elemento de apoio básico nesse ensino. Dessa forma, os diferentes registros da língua portuguesa e suas variantes regionais e nacionais passam a ser considerados riqueza comum e não instrumentos para reafirmar hierarquias e justificar discriminações. No caso do Master de Estudos Latino-Americanos, também estamos produzindo um material contrastivo, desta vez com o espanhol, já que a maior parte dos estudantes tem conhecimento dessa língua.12 Se pelo lado do ensino da língua esses são o panorama e o desafio atuais, pelo lado da literatura talvez o desafio
Esse trabalho, que foi iniciado e prossegue no âmbito de um convênio com o Brasil, coordenado por Ligia Chiappini e mediado pela Embaixada Brasileira, vem sendo desenvolvido pelas Dras. Zinka Ziebell e Rosa Henckel. 12
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Alusão a um debate realizado no Instituto Iberoamericano de Berlim em parceria com o Instituto Goethe de São Paulo, em março de 2008. 13
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seja maior. Pois se já poucos reconhecem a importância de estudar a língua portuguesa e suas variantes para a comunicação e outros usos meramente instrumentais, menos ainda se valoriza o conhecimento da língua como matéria e forma da e na literatura, porque esta também só interessa, como vimos, como documento ou como mercadoria, no caso do best-seller. A literatura mais exigente, que implica um grau mais alto de elaboração linguística, é simplesmente demonizada ou ignorada, porque julgada elitista, branca, ocidental. Desconsidera-se aí aquilo que Antonio Candido definiu como contraveneno, que a boa literatura carrega junto com as suas dimensões ideológicas conservadoras. No Instituto Latino-Americano tivemos por quase 30 anos um cargo pleno de leitor para Português Brasileiro e, por quase 15 anos, simultânea e pioneiramente, um posto de Professor para Literatura Brasileira, pois a Universidade e pareceristas externos a ela reconheceram a autonomia e a dimensão desta para comportar uma abordagem específica. Mesmo assim, ainda não conseguimos despertar o interesse de colegas e estudantes de outros departamentos da mesma universidade, que trabalham com clássicos da chamada literatura universal. E, do ponto de vista editorial, o quadro tampouco é positivo. Um exemplo disso é o caso de Guimarães Rosa. Considerado muito difícil e tendo suas traduções em alemão esgotadas, dificilmente consegue ser republicado. O ano do seu jubileu, 2008, coincidiu com um debate sobre a literatura brasileira como um mau negócio.13 Constatava-se aí que a literatura de qualidade estaria perdendo terreno para a literatura meramente comercial e para uma espécie de novo exotismo, expresso na representação espetacular do brutalismo nas favelas, que já em 1998 Ray Güde-Martin tematizava no trecho aqui escolhido como epígrafe. Mas, assim como Briesemeister, apesar do balanço negativo, termina seu texto de modo otimista, citando o crescente interesse de um certo público e a presença maior dos escritores cineastas e artistas brasileiros em encontros,
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recitais, colóquios, semanas culturais dedicadas ao Brasil, bem como a atuação de colegas que ensinam, estudam, traduzem e comentam o melhor da literatura brasileira, além das associações que ajudam a manter a vitalidade do setor, podemos ainda, mais de dez anos depois, acreditar, apesar de todas as lacunas e retrocessos, que a indiferença pela Literatura do Brasil e o seu desconhecimento podem ser superados na Alemanha. Infelizmente, muito do diagnóstico de Briesemeister ainda vale para o presente e a maioria dos brasilianistas alemães ainda “leva uma existência profissional acadêmica, em certo modo esquizofrênica, rivalizante e paradoxal.” (Briesemeister, 2000, p. 354), mas continuamos apostando que o trabalho desenvolvido no espaço conquistado para a literatura brasileira no Instituto Latino-Americano da Universidade Livre de Berlim poderá ajudar a superar essa esquizofrenia, pelo reconhecimento das lacunas e a invenção de novos mecanismos que ajudem a preservar e a desenvolver o que já foi realizado.
Referências BRIESEMEISTER, Dietrich. Os estudos brasileiros na Alemanha. In: CHIAPPINI, Ligia; DIMAS, Antonio; ZILLY, Berthold (Orgs.). Brasil, país do passado? São Paulo: Boitempo, 2000. p. 349-357. CANDIDO, Antonio. Literatura de dois gumes. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. CHIAPPINI, Ligia. Literatura e cultura no contexto dos estudos brasileiros na Alemanha: a cátedra de Brasilianística. MartiusStaden-Jahrbuch, São Paulo, n. 52, p. 251-263, 2005.
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A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria Ferenc Pál*
resumo: O presente trabalho estuda as condições da recepção da
literatura brasileira na Hungria. Tendo-se inteirado da existência do Brasil e obtido muitas informações deste país nos séculos XVII a XIX, o público húngaro formou uma imagem do Brasil a que a literatura, traduzida muitas vezes para servir interesses privados ou políticos, não correspondia. palavras-chave:
imagem do Brasil, expectativas, exótico, recepção da literatura. abstract:
This study examines the reception of the Brazilian literature in Hungary. The Hungarian (reading) public has got a lot of information about this country during the XVII-XIXth centuries, so formed an image about Brazil what the literature, translated for serving private or political interests, doesn’t suit to. keywords:
image of Brazil, expectations, exotic, reception of the literature.
Brasil e Hungria: primeiros contatos
Departamento de Português, Instituto de Romanística, FL da ELTE (Faculdade de Letras da Universidade Eötvös Loránd) de Budapeste. *
Os húngaros, se bem que de uma forma e em condições um pouco especiais, inteiraram-se da existência do Brasil no século XVII, quando o autor da epopeia nacional húngara Szigeti Veszedelem (“Desgraça de Szigetvár”), Miklós Zrínyi, escritor, político e eminente militar da época, exclamou num libelo político as seguintes palavras contra a opressão turca: “Tenho notícias de que no Brasil há terras desertas em abundância, peçamos pois ao rei espanhol [sic!] uma província, façamos uma colônia tornando-nos cidadãos
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[daquele país]”(Zrínyi, 1661/2009).1 Podemos supor, sem nos atrevermos a tecer proposições freudianas, que a partir de então o Brasil devia ou podia existir no subconsciente húngaro como um lugar particular, distinto. Nos séculos posteriores houve notícias esporádicas do Brasil, em especial sobre a consequência do trabalho dos jesuítas húngaros, entre eles János Zakariás e Dávid Fáy, que participavam como missionários no levantamento topográfico e na descrição das terras brasileiras.2 Um conhecimento mais intenso, no entanto, começou a difundir-se no século XIX. O Brasil e a Hungria, ou melhor o Império Austríaco, que a Hungria integrava, mantiveram contatos diplomáticos a partir de 1817,3 e nos meados dos Oitocentos já havia um contato regular entre os dois países, primeiramente por causa da emigração, que se iniciou depois da abolição do tráfico de escravos em 1850. Entre os primeiros emigrantes supostamente havia também húngaros cultos, versados na literatura, porque na década de 1850 já temos notícias do Brasil que dizem respeito a atividades de magiares. Em seu número 44, de 30 de outubro de 1859, o semanário de Budapeste Vasárnapi Újság informa, na seção “Tárház” (“Depósito”), que “numa antologia geral, publicada no Rio de Janeiro, acham-se onze poemas húngaros” (Vasárnapi Újság, 1854-1860). Nos jornais e revistas húngaros da segunda metade do século XIX podemos ler muitas informações sobre o Brasil. Quanto à presença do Brasil e das coisas brasileiras no imaginário húngaro da época, as expectativas do público são bem ilustradas pelo mesmo semanário Vasárnapi Újság, cujas páginas trazem, em primeiro lugar, notícias interessantes, algumas vezes abordadas de forma científica, sobre a curiosa flora e fauna brasileiras,4 bem como relatos sobre viagens a esse país e nomeadamente ao Rio de Janeiro,5 informando que a região atrai os visitantes com a beleza da sua vegetação, mas que, na questão do urbanismo, provoca má impressão aos viajantes europeus. Além de seus aspectos exóticos, as notícias também mostram o Brasil como parceiro comercial e cultural da Hungria. Nas notícias po-
“Ugy hallom Braziliában elég puszta ország vagyon; kérjünk spanyor királytul egy tartományt, csináljunk egy coloniát, legyünk polgárrá.” 1
É em parte resultado do seu trabalho o livro Itinerarium peregrini philosophi, Sinis, Japone, Cicincina, Canada et Brasilia definitum, editado em 1720 na Universidade Arquiepiscopal, em Tyrnavae, por Franciscum Szedlar e pela Sociedade de Jesus. 2
Cf. Ramirez, 1968. p. 243244. 3
“Tejfa” (Árvore que dá leite) “ Um relato sobre a fauna do rio Amazonas e do Rio Negro. Vasárnapi Újság, n. 14, 4 jun. 1854. 4
Andersen – Dr. Hegeds. “Utazás a föld körül” (Viagem em torno da Terra). Vasárnapi Újság, n. 29, 17 set. 1854. 5
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria
Vasárnapi Újság, n. 27, 6 set. 1857. 6
Vasárnapi Újság, n. 42, 17 out. 1858. 7
II. Dom Pedro brazíliai császár (D. Pedro II, imperador brasileiro). Vasárnapi Újság, n. 47, 24 nov. 1889. 8
Vasárnapi Újság, n. 17, 29 abr. 1883. 9
“A vizi boa-kigyó” (A jibóia – serpente da água). Hírmondó, n. 23, p. 274, 1969. 10
Uma comunicação da revista literária Nyugat, prestigiosa revista literária de Budapeste da primeira metade do século XX, informa que o imperador tinha em grande estima a obra de Mór Jókai. No número 5 da revista, publicado no ano de 1928, Gyula Szini fornece em “Jókai: Egy élet regénye” (“Jókai: Romance de uma vida”) a seguinte informação sobre a curiosa visita de D. Pedro a Budapeste, no início da década de 1870: “[Mór Jókai] tem amigos soberanos. Dom Pedro, o interessante imperador brasileiro, hospedou-se intencionalmente no Hotel ‘Angol királyn’, e não no apartamento oficial, condigno a um monarca, no Castelo de Buda, a fim de poder ter um contacto mais íntimo e fácil com o seu parente espiritual, o bondoso Mór Jókai.” 11
Vasárnapi Újság, n. 49 a 52, dez. 1857. 12
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demos ler informações sobre o cultivo e comércio do café, sobre o fato de que um comerciante húngaro transportou vinhos de Arad, cidade do sul da Hungria de então, para a capital do Brasil, Rio de Janeiro;6 também se informa que a cantora Lagrange cantou uma ária do compositor húngaro Ferenc Erkel no Teatro da Ópera do Rio de Janeiro, e que um aristocrata húngaro, László Alvinczy, morreu no Brasil.7 No enorme número de revistas e jornais que saíram na Hungria do último terço do século XIX, juntamente com informações de caráter político, como foi, por exemplo, o artigo de 1889 sobre a visita de Dom Pedro II à Hungria nos anos 1870,8 ou informações sobre a proclamação da República no Brasil e outros acontecimentos de política interior, pretendia-se satisfazer a curiosidade do público leitor em relação ao exotismo. Essa demanda pelo estranho, exótico, pitoresco, etc., satisfazem-na tanto os artigos publicados nos jornais como os livros publicados nessa época. Em um artigo no Vasárnapi Újság, “Egy magyar tengerész Brazíliában” (“Um marujo húngaro no Brasil”),9 Rthy Frigyes fala sobre o “povo estranho” que vive no Brasil, referindo-se dessa maneira à população negra, inexistente em território húngaro. Com estranhamento, também se fala na flora e fauna brasileiras. O artigo intitulado “A vizi boa-kígyó” (A jibóia – serpente da água), publicado no Hírmondó,10 descreve alguns animais repulsivos do Brasil. Esta duplicidade da imagem ou dicotomia da recepção do Brasil também se observa na obra de Mór Jókai, romancista romântico de fantasia profícua, aliás escritor favorito do imperador D. Pedro II,11 em cujas obras as aventuras acontecidas no Brasil e certas peripécias econômicas andam de mãos dadas. No conto do escritor intitulado Tíz millió dollár (“Dez milhões de dólares”), os personagens, envolvidos em aventuras rocambolescas, graças a um dono de barco brasileiro passam uma semana no Rio de Janeiro.12 Mas, nos romances posteriores – para além de meras referências a um ou outro fenômeno curioso, como em Az arany ember (O homem de ouro, 1873), em que se
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lê sobre um sapo luminoso que “irradia uma luz fosforescente” e “canta de noite nos interiores, [...] às vezes tão alto que sua voz suplanta a dos cantores e da orquestra na ópera” (Jókai, s/d) –, o romancista fala largamente sobre as relações comerciais entre a Austro-Hungria e o Brasil. No romance Fekete gyémántok (Diamantes pretos, 1870), por exemplo, escreve que “os peruanos e os brasileiros sempre pagam com prata”.13 E mesmo em Az arany ember informa que “A capital do Brasil é o Rio de Janeiro. É de lá que transportam para cá o algodão e o tabaco, lá estão as minas de diamantes mais famosas”.14 Na ficção fantástica A jöv század regénye (O romance do século vindouro, 1872) também se leem divagações de teor econômico: “Até não querermos mais do que a importação do café, do algodão e do petróleo [...] incluindo a China [...] o Japão e o Brasil...”15 Em seu último romance, Ahol a pénz nem isten (Onde o dinheiro não é deus, 1905), aparece a frase: “A farinha era um produto húngaro, foi o paquete Adria que a transportou até o Rio de Janeiro”.16 O Brasil, alvo da emigração húngara, e com um contingente grande de emigrantes na primeira metade do século XX, tornou-se um cenário real, onde as condições de vida e de trabalho eram semelhantes às da Hungria, como afirmavam muitos livros de não ficção dessa época.17 Depois da Segunda Guerra Mundial, quando na Hungria aconteceu um câmbio de paradigma político, o Brasil, na década de 1950, tornou-se terreno de lutas políticas das forças populares contra o imperialismo e pela paz. Ao menos era assim que os órgãos políticos húngaros informavam seus leitores.18 Contudo, a exigência ou a ânsia do exótico continuava a existir por parte do público, no que dizia respeito ao Brasil. Nos anos 1930 e 1940, quando por causa do enorme número de emigrantes húngaros o Brasil entrava no dia a dia húngaro19 como um país “normal”, na ficção húngara de temática brasileira se registram ainda muitos elementos exóticos. Romances que se movem no universo das obras da literatura de cordel, como A brazíliai fenevad
Segunda parte: “[...] a peruiak, brazíliaiak mind csupa ezüsttel fizetnek...” (Jókai, s/d). 13
Primeira parte: “A senki szigete” (“Ilha de ninguém”): “Brazília fvárosa Rio de Janeiro. Onnan hozzák a gyapotot meg a dohányt, ott vannak a leghíresebb gyémántbányák” (Jókai, s/d). 14
Primeira parte: “Amíg nem terjeszkedünk többre, mint kávé, gyapot és kolaj behozatalára [...] Kína [...] Japán és Brazília befoglalásával” (Jókai, s/d). 15
“A liszt magyarországi termény volt, Rio de Janeiroig Adria gzös szállította” (Jókai, s/d). 16
Dezs Migend: A brazíliai aranyhegyek árnyékában (Sob a sombra das montanhas de ouro brasileiras, Békéscsaba, 1926), Béla Bangha: Dél-Keresztje alatt (Sob a cruz do sul, Budapeste, 1934), Zoltán Nyisztor: Felhkarcolók, serdk, hazátlanok (Arranha-céus, selvas, apátridos, Budapeste, 1935) e Lajos Wild: Tizenöt év Brazíliában (Quinze anos no Brasil, Arad, Vasárnap, 1936). 17
Sobre a situação interna do Brasil saíram artigos com títulos: “Brazília vezet személyiségei az atomfegyver betiltásáért” (Principais personalidades do Brasil defendem proibição de armas nucleares, Tartós Békéért, n. 23, p. 4, 11 jun. 1950), “A brazil nép lelkesen támogatja a békeegyezmény megkötését követel felhívást” (O povo brasileiro apoia com entusiasmo o apelo por celebrar o acordo pela paz, Tartós Békéért, n. 23, p. 2, 18
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria
10 jun. 1951); “A brazíliai Kommunista Ifjúsági Szövetség újjászervezése” (A reorganização das Juventudes Comunistas brasileiras, Tartós Békéért, n. 3, p. 11, jan. 1951), etc. Cf. Boglár Lajos, 1997. O autor foi cônsul húngaro no Brasil entre 1928 e 1942. 19
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Budapeste, 1940.
Budapeste: FerencesVilágmisszió kiadása, 1942. 21
Budapeste: Nemzeti Figyel, 1944. 22
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(A fera brasileira), de Tibor Magyar,20 o livro de contos Villanó fények az serd mélyén (Luzes cintilantes no fundo da selva), de Mihály Witte,21 e o Brazíliai nagybácsi (O tio brasileiro),22 de um tal László György, têm muito desse exotismo. Outro Brasil, de aventuras na selva, se desenha nos romances do ex-naturalista Gábor Molnár, que em 1930 viajou à selva amazônica e, depois de perder a vista num acidente, regressou à Hungria e começou a escrever ficção. O primeiro livro dele, intitulado Kalandok a brazíliai serdben (“Aventuras na selva brasileira”), saiu em 1940. Nesse livro e nalguns outros que o seguiram ele não fez senão relatar o que tinha experimentado e visto naqueles dois anos que viveu no Brasil, e o fez num estilo vivo e vigoroso. Mas, com o tempo, essas experiências colhidas da realidade ficavam em segundo plano, e o ambiente brasileiro de pequenas povoações à beira da selva e dentro da selva amazônica passou a ser palco de histórias movimentadas, mescla do relato de experiências pretensamente vividas e de histórias imaginadas.
Cf. Pál, 1996, p. 19-33 e Pál, 2004a, p. 11-37.
Presença da literatura brasileira na Hungria
Fazendo referência à “rivalidade” de Portugal e do Brasil, que sempre nos instiga a fazer cotejamentos, podemos mencionar que tradicionalmente, e em especial no século XIX, o Brasil estava mais representado na imprensa húngara do que Portugal, apesar de que alguns momentos da literatura portuguesa, por meio da obra e figura de Camões e de Pessoa, tenham um maior halo de conotações na Hungria. Cf. Pál, 2004c, p. 161-171.
Podemos deduzir, do panorama histórico acima traçado,23 que o público húngaro havia muito tempo tinha tomado conhecimento do Brasil e que esse país ocupava um lugar privilegiado na consciência húngara.24 Assim, lentamente passava-se a ter condições de formar do Brasil uma imagem diversificada e verídica que correspondesse à realidade do país. Contudo, parece que há determinadas expectativas, preconceitos ou ideias fixas que orientavam e orientam o gosto do público, que prefere relacionar o Brasil com o exótico, o erotismo desenfreado ou requintado, as liberdades do carnaval e das praias do Rio de Janeiro, aventuras entre os índios e na selva... Se dissemos em outra ocasião,25 citando palavras de Simone Beauvoir, para quem “a literatura é a melhor via para se conhecer um país estrangeiro”,26 no caso do
23
24
25
Cf. Pál, 2004b, p. 121.
La force de l’âge. Em húngaro: A kor hatalma. Budapeste: Európa, 1965. 26
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Brasil havemos de acrescentar que, independentemente do valor da obra e das intenções dos editores, só foram aceitas pelo público e tiveram êxito na Hungria as obras brasileiras que satisfizeram as expectativas acima enumeradas. Esse critério talvez seja muito rigoroso e restritivo mas, se queremos ultrapassar uma simples enumeração, à maneira positivista, das obras traduzidas da literatura brasileira, que representam uma matéria morta, existente mas sem influência, temos de estudar a recepção das obras brasileiras e ver quais delas tiveram impacto no meio húngaro, partindo das ideias de Ricoeur, Gadamer ou outros teóricos que supõem alguma identificação conotativa com uma obra para fazê-la sair do âmbito do simples terreno denotativo. As primeiras informações da literatura brasileira chegaram por via dos verbetes das enciclopédias editadas na viragem dos séculos XIX e XX. Em A Pallas Nagy Lexikona (A grande enciclopédia da [Editora] Pallas) ainda não se encontra uma informação sobre a literatura do país no verbete Brazília,27 mas a alguns poetas destacados (como Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias e Tomás António de Gonzaga) a obra já dedica verbetes autônomos. No volume 3, de 1911, da Révai Nagy Lexikona (Grande enciclopédia de Révai) já se encontra um verbete em separado sobre a “literatura brasiliana” rezando que “a literatura brasiliana durante muito tempo foi apenas um ramo da literatura portuguesa e só nos últimos tempos começou a se desenvolver em rumo diferente” (Révai Nagy Lexikona, 1911). Nessa enciclopédia já é maior o número de autores com verbete autônomo (encontramos verbetes sobre os autores mais importantes ou renomados do Romantismo, como Macedo, Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, etc.). Nas enciclopédias posteriores, em especial nas enciclopédias de literatura universal, encontramos informações cada vez mais sofisticadas sobre a literatura brasileira, até que, na iniciativa de grande envergadura da Világirodalmi Lexikon (“Enciclopédia da literatura universal”), publicada
A Pallasz Nagy Lexikona, v. 3. 27
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria
“Az ápoló” (“O enfermeiro”). Világ, ano III, n. 46, p. 1-2, 23 fev. 1912. Na seção de folhetim, sem indicação do nome do tradutor. 28
Világirodalmi Lexikon, v. 1, p. 1090. 29
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entre 1970 e meados de 1990, figuram, além dos verbetes sobre a literatura brasileira e fenômenos literários ligados com o Brasil (como, por exemplo, o Modernismo), verbetes sobre 228 escritores brasileiros. Tratava-se de mera informação sobre as letras brasileiras, que ainda não se fazia acompanhar de traduções de obras para efetivo conhecimento por parte do público húngaro. Assim, com relação ao modo como as letras brasileiras tornam-se de fato conhecidas na Hungria é bastante difícil identificar os fatores determinantes da expansão desse conhecimento: por um lado temos as primeiras notícias informativas; em seguida surgem as primeiras publicações de traduções que, na realidade, não são mais do que informações gerais dessa literatura, e após esse conhecimento geral surgem ou podem surgir as obras com as quais o público leitor tem já um contato mais familiar. Parece-nos mais ou menos evidente que, até a publicação dos primeiros volumes da “Grande Enciclopédia de Révai”, quer dizer, até os anos 1910, não se traduzira obra brasileira alguma para o húngaro, dado que nessa enciclopédia não há referências a obras brasileiras publicadas em húngaro, nem encontramos em nosso trabalho de pesquisa nenhuma outra menção de obras traduzidas desse país. A primeira obra brasileira traduzida para o húngaro, segundo podemos afirmar hoje, foi um conto de Machado de Assis, publicado em 1912 no jornal Világ de Budapeste, com o título Az ápoló.28 Temos outro texto brasileiro traduzido para o húngaro, incerto quanto aos dados bibliográficos: é um conto de Ottavio Brandão, publicado no (suposto) número 1 da revista intitulada Új Hang, de 1931, uma revista político-literária publicada em Moscou. Essa informação aparece na “Enciclopédia da Literatura Universal”.29 Infelizmente, não foi possível consultar, até o momento da redação deste artigo, o número mencionado do periódico, de forma que não temos informação sobre qual dos contos do autor figura na revista. Por outro lado, há informações a respeito de um conto de Monteiro Lobato que saiu na revista ilustrada de lite-
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ratura e artes intitulada Pásztortz (Fogueira de Pastores), editada na Transilvânia.30 O conto Az élcfaragó (Fabricante de piadas) saiu na seção “Narradores Estrangeiros”, e foi acompanhado de uma nota que, além dos dados biográficos, oferecia uma avaliação ponderada do autor: “Monteiro Lobato é o criador da moderna literatura nacional no Brasil. Tem por objetivo fazer um contraponto à literatura francesa, e, ao mesmo tempo, revelar as enfermidades da alma brasileira...” (Pásztortz, 1930, p. 391). A apresentação avaliativa do autor faz-nos supor que é trabalho de uma pessoa conhecedora da literatura brasileira e mostra a seriedade daquela revista, que reunia uma série de escritores da Transilvânia da época. Assim, é num parecer bastante generalizado que um livro de poemas, publicado em 1939, indica o primeiro momento da difusão mais abrangente da literatura brasileira na Hungria. Trata-se da seleção intitulada Brazília üzen (“Mensagem do Brasil”), traduzida por Paulo Rónai.31 Este livrinho, que tem poemas de 25 poetas brasileiros da primeira metade do século XX, acompanhados de uma introdução que esboça o panorama da literatura (ou antes: da poesia) brasileira, é uma publicação que lança os alicerces para um conhecimento ulterior, não obstante passar quase despercebido. Afinal, os critérios da seleção dos textos já contavam, de saída, com um círculo reduzido de leitores. Paulo Rónai, no prefácio do livro, rejeitando satisfazer um gosto pelo exótico ou movido por um interesse folclórico, apresenta a poesia brasileira como manifestação “de um jovem povo com cultura, enérgico e em vias de desenvolvimento, experimentando uma vida intelectual cada vez mais profunda” (Rónai, 1939, p. 8). Nos poemas da antologia prevalece um certo gosto ou “ar” parnasiano. Sobre a poesia de Olavo Bilac, o tradutor afirma: “Nos seus versos muito burilados, um pouco frios, falta o couleur locale, contudo eles contêm uma cintilação tropical indefinida” (Rónai, 1939, p. 8). A seleção deu preferência aos poemas de alto quilate poético, universalizantes, relegando ao segundo plano aqueles que em versos
Az élcfaragó. In: Pásztortz (Kolozsvár/Cluj), ano XVI, n. 17, p. 391-393, 24 ago. 1930. Sem nome completo do tradutor, indicado apenas com a abreviação: Szys. 30
Para os poucos que não conheçam seu nome, informamos que Paulo Rónai (1907-1992) é um literato húngaro que em 1940 trasladou-se para o Brasil como bolsista do governo brasileiro e nesta sua nova pátria desenvolveu variada atividade como tradutor, crítico e historiador de literatura. 31
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria
Notamos, por outro lado, uma falta total de poemas da primeira fase do movimento modernista, que, parece, não correspondiam ao gosto do selecionador. Essa mesma antipatia pela literatura da vanguarda e/ou experimental também se nota, muito mais tarde, na sua colaboração para a Enciclopédia da literatura universal, na qual, por exemplo, não aparecem os representantes da poesia concreta, etc. Não sejamos, contudo, injustos com Paulo Rónai: em seu prefácio, ele fala sobre as dificuldades de obter livros do Brasil: pode ser que simplesmente não tivesse à mão todas as obras necessárias para uma antologia equilibrada. 32
É com estas palavras que o texto termina: “Agora desde escrivaninhas brasileiras, mãos brancas ou negras batem o sinal tranqüilizador, dizendo que estão de guarda; e da Europa maltratada bate-se a resposta: ‘Obrigado!’” (Bálint, 1939a, p. 7) 33
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Bálint, 1939b, p. 31.
Para os leitores mais sagazes, que pensam descobrir uma incongruência de datas, assinalamos que o publicista pôde ler as traduções de Paulo Rónai antes da publicação do livro Mensagem do Brasil, em agosto de 1939, porque o tradutor publicara algumas delas em diferentes revistas, anteriormente. 35
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desiguais e livres apresentavam cores e tons mais ásperos, mais modernos, como, por exemplo, os que Ronald de Carvalho escreveu a respeito do Brasil.32 Assim, dos 33 poemas do livro, reunidos em quatro pequenos ciclos, só oito do ciclo “Descobrimento do Brasil” evocam ambientes tipicamente brasileiros. Julgando-se objetivamente, pode-se dizer que tal princípio de escolha e apresentação dos poemas resultou do gosto intelectual urbano daquele momento. É essa mesma voz universal, e não as peculiaridades exóticas, que se frisa na recensão informativo-crítica do publicista György Bálint, escrita alguns meses depois da publicação do livro de poemas de Paulo Rónai. Os livros de viagens ou os folhetos turísticos mostram só o exotismo, no entanto os poetas informam sobre o essencial. Esse essencial, esse “outro Brasil”, nós o encontramos nesse livro de traduções novo e belo. [...] Todos os poetas são aparentados, afinal; a mesma coisa que causa dor ou alegria aos poetas crioulos, negros, índios e mestiços causaas também aos franceses ou húngaros. Suas vozes são afins e universais... (Bálint, 1939, p. 7)
Nessas palavras do jornalista, escritas na véspera da Segunda Guerra Mundial, percebe-se também uma preocupação com os valores da cultura ameaçados. Assim, suas palavras sobre a poesia brasileira têm uma mensagem política para a atualidade de então.33 Essa mesma posição se reflete num outro texto dele, Brazíliai regény (Romance brasileiro),34 escrito depois da leitura, em francês, do Dom Casmurro de Machado de Assis, que ele apresenta como romance por excelência, quase instituição nacional. O jornalista que, segundo ele mesmo diz, se familiarizara com o Brasil pela leitura das traduções de Paulo Rónai35 chega à conclusão, um pouco precipitada (e, já sabemos, falsa), de que os brasileiros são gente feliz porque têm preferência pela literatura pura, alheia aos trágicos problemas nacionais, ao contrário do que ocorre, por exemplo, com a literatura húngara. Suas palavras novamente refletem
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uma perspectiva universalizante, porque ele sublinha que o maior mérito desse livro é que não é “nada brasileiro”: “Nada tem de exótico, a não ser que os criados sejam negros e um dos amigos do personagem principal sofra de hanseníase.” (Bálint, 1939b, p. 31) É curioso observar, nos intelectuais que formavam o gosto literário daquela época, a falta de sensibilidade diante do exotismo brasileiro, que se manifestava tão intensamente nas obras de ficção de temática brasileira dos escritores húngaros acima mencionados, ou ao menos diante dos problemas específicos do Brasil, aspectos que tanto marcaram, tempos depois, a visão da geração que travou contato amplo e profundo com as letras latino-americanas, incluindo as brasileiras, por meio dos escritores do boom, notadamente Alejo Carpentier, Rómulo Gallegos, Gabriel García Márquez, Juan Rulfo, etc. Assim, em outra resenha crítica a respeito de Brazília üzen (Mensagem do Brasil), publicada na revista literária Nyugat (Ocidente), o autor escreve: “não procuremos um exotismo exterior na poesia”. E justifica-se: “além dos poemas de costume, que deixam entrever uma influência francesa, encontramos, neste livro, alguns poemas de pompa estranha e surpreendentes. O estranho não se diz com respeito ao couleur locale...” (Nagy, 1939). Os poemas caracteristicamente brasileiros passam quase despercebidos para o crítico. Como já mencionamos, essa atitude fundada no eurocentrismo e afastada do gosto geral do público leitor, que continuava interessado pelos momentos exóticos do Brasil, também deformou a visão dos intelectuais (e de seu público) de então, que não podiam ou não queriam observar da literatura brasileira senão aquelas obras que “demonstram que o espírito europeu não conhece fronteiras e num tempo futuro, quando já não existir na Europa, povos mais novos e mais felizes irão retomá-lo na América” (Bálint, 1939, p. 31). Nesses anos aparecem mais duas obras literárias brasileiras: Paulo Rónai publica, em 1940, uma seleção de
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Budapeste: Officina, 1940.
“Egy brazil bérház”. Trad. por Henrik Horváth. In Népszava (Budapeste), desde o n. 233, de 1940, até o n. 20, de 1941. 37
Esta edição de 1944 do romance de Azevedo (Budapeste: Anonymus) teve uma pequena edição fac-similada de 30 exemplares: Azevedo, Aluizio. Hangyaboly. Budapeste: Íbisz, 2002. 38
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poemas de Ribeiro Couto, com o título de Santosi Versek (Poemas de Santos),36 e o jornal Népszava publica em folhetins O cortiço, de Aluísio Azevedo, com o título Egy brazil bérház (Um prédio brasileiro).37 Depois, em 1944, essa tradução é publicada em forma de livro, com o título Hangyaboly (Formigueiro).38 A Segunda Guerra Mundial e o estabelecimento de um novo sistema político na Hungria, a “construção do socialismo”, indicam uma mudança de concepção na recepção e interpretação da literatura em geral e da literatura brasileira em particular. A literatura passa a ser uma arma da luta ideológica. Dessa forma, já não se procuram nela valores universais e eternos, senão uma resposta mais ou menos imediata à realidade circundante. Alteram-se também os horizontes da orientação literária: a literatura do “ocidente culto” (França, Inglaterra, parte ocidental da Alemanha, Estados Unidos, etc.) é considerada arte decadente e o lugar dela, ocupa-o a literatura socialista, em primeiro lugar a da União Soviética, dos países socialistas e a literatura progressista dos países das Américas, África e Ásia. Nesse novo horizonte cultural-literário, cabe ao Brasil um lugar privilegiado. Sendo, em aparência, mais independente em relação aos Estados Unidos do que os outros países latino-americanos, o Brasil torna-se um alvo privilegiado na luta contra o imperialismo ocidental. Por essa razão, os romances do primeiro período de Jorge Amado são publicados na Hungria e o autor, que circula entre Praga e a União Soviética, torna-se um escritor de presença contínua na imprensa. Por isso, o tradutor de Dona Flor e seus dois maridos, János Benyhe, pode escrever com plena razão, em 1970, no posfácio desse livro: “Dez ou quinze anos atrás talvez fosse supérfluo este posfácio. Jorge Amado foi o escritor estrangeiro mais conhecido e mais popular na Hungria” (Benyhe, 1970, p. 499). Entre 1947 e 1976 saíram quinze livros de Jorge Amado (dois no final dos anos 1940, cinco nos anos 1950, seis nos anos 1960 e três nos anos 1970, não contando as inúmeras reedições).39 Sobre esses livros
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foram publicadas 26 recensões críticas.40 Mas o que mais demonstra a difusão da imagem de Amado como escritor politicamente comprometido e como “zoon políticon” é o grande número de escritos sobre a sua pessoa. Entre 1953 e 1975 saíram 16 artigos que diziam respeito a ele, e muitos com títulos altissonantes, como: “Os eminentes soldados da paz: Jorge Amado” ou “Jorge Amado sobre o movimento da paz brasileiro e sobre seu novo romance”.41 Com a profusão com que os romances de Jorge Amado circulavam na Hungria (com tiragens de 40 a 80 mil exemplares), não é de estranhar que até hoje o Brasil apareça-nos tal como o escritor baiano o pintou. Tanto mais porque Jorge Amado foi o escritor brasileiro cujas obras satisfaziam as expectativas do público leitor com o seu latente erotismo, em especial a partir de Dona Flor e seus dois maridos, e a pintura do mundo colorido e exótico da Bahia. Sobre Jorge Amado, um dos primeiros escritos é uma recensão crítica de Terras do sem fim, publicada na revista científico-ideológica do partido comunista, Társadalmi Szemle (Revista Social), que estabelece as forçosamente necessárias linhas de interpretação dessa obra – válidas, indiretamente, para os outros romances do mesmo autor: Jorge Amado, Pablo Neruda e os outros escritores eminentes [...] mostram uma nova cara da América Latina. Não é o exotismo, ou a imagem das selvas sem fim que prevalece em suas obras, mas sim a violenta luta de classes simbolizada pela batalha entre os coroneis do cacau e seus escravos. (-z. -l. 1950, p. 834)
Compreende-se este tom altamente engajado porque se trata de um artigo de teor informativo que saiu numa revista teórica, mas as recensões publicadas nas revistas literárias também incorrem nesse tom politizado em que não há lugar para análises estético-literárias. Na revista literária intitulada Csillag, da Associação Húngara de Escritores, um dos historiadores de literatura daquele
Oferecemos uma lista completa das edições das obras de Jorge Amado em húngaro (entre parênteses indicamos as edições posteriores): Terras do sem fim (Szenvedélyek földje). Trad. Attila Orbók. Budapeste: Káldor, 1947 (uma segunda edição com o título húngaro Végtelen földek. Trad. Emil Hartai. Budapeste: Szikra, 1950); Cacau (Arany gyümölcsök földje). Trad. Emil Hartai. Budapeste: Szikra, 1949 (segunda edição: Európa, 1975); Vida de Luís Carlos Prestes, o cavaleiro da esperança (A reménység lovagja. Életrajzi regény Luis Carlos Prestesrl). Trad. Emil Hartai. Budapeste: Révai, 1950; Seara vermelha (Vörös vetés). Trad. Marcell Benedek. Budapeste: Szépirodalmi, 1951; Jubiabá (Zsubiabá). Trad. János Benyhe. Budapeste: Szépirodalmi, 1952; Mar Morto (Holt tenger). Trad. Sándor Tavaszy. Budapeste: Kossuth, 1960; (segunda edição: idem, 1961, terceira edição: idem, 1973); A morte e a morte de Quincas Berro Dagua (Vízordító három halála). Trad. Lajos Boglár. Budapeste: Európa, 1961; Gabriela, cravo e canela (Gabriela, szegf és fahéj). Trad. Sándor Szalay. Budapeste: Európa, 1961 (segunda edição: idem, 1975); A completa verdade sôbre as discutidas aventuras do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso (A vén tengerész). Trad. Sándor Szalay. Budapeste: Európa, 1963; Os pastôres da noite (Az éjszaka pásztorai). Trad. János Benyhe. Budapeste: Kossuth, 1967; Dona Flor e seus dois 39
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria maridos (Flor asszony két férje). Trad. János Benyhe. Budapeste: Európa, 1970; Capitães da areia (A kiköt rémei). Trad. Sándor Tavaszy. Budapeste: Kozmosz Könyvek, 1971; Tenda dos Milagres (Csodabazár). Trad. András Gulyás. Budapeste: Európa, 1976. Queremos notar como curiosidade que do romance A completa verdade sôbre as discutidas aventuras do Comandante Vasco Moscoso Aragão, Capitão de Longo Curso, intitulado em húngaro A vén tengerész (“O velho marinheiro”), saído em 1963, escreveram-se entre maio e outubro daquele ano seis recensões informativas nos mais diversos órgãos de imprensa. 40
“A béke kiváló harcosai: Amado Jorge”. Népszava (Budapeste), 30 maio 1953. “Jorge Amado a brazil békemozgalomról és új regényérl”. Szabad Nép (Budapeste), 18 dez. 1953. 41
Nagyvilág (Budapeste). Ano IV, n. 8, p. 1173-1174, ago. 1959. 42
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período assim descreveu os fundamentos de “A terra de frutos de ouro”: O romance de Amado é um escrito combativo, comunista. Seus heróis verdadeiros são o povo e o homem de novo quilate, saído do povo e lutando contra os horrores do mundo imperialista: o homem comunista. [...] A apresentação dessa podridão não desce ao naturalismo, é o reflexo verídico desta sociedade que requer amostras fidelíssimas da macabra dança do capitalismo. (Koczkás, 1950, p. 61)
Essa imagem estreita, unilateral, subordinada a fins eminentemente políticos é a que se apresenta quando, a pretexto dos romances de Jorge Amado, fala-se sobre o Brasil. Algumas vezes o discurso ganha tons de hino, como na recensão sobre Seara vermelha, que saiu num semanário de literatura, Irodalmi Újság (“Jornal Literário”), em 1951: “Seara vermelha mostra o Brasil levantando-se”, pois “até aos operários miseráveis chegou a esperança que estimula a viver: a esperança da nova vida, do socialismo” (L. I. 1951) Ao final da década de 1950, essa imagem deformada do Brasil e de sua literatura começa a se matizar com diferentes tons. Além de Jorge Amado, vêm aparecendo outros escritores e, entre eles, alguns cuja obra tem outros valores, não apenas políticos. Assim saíram dois poemas de Jorge de Lima na revista de literatura mundial, Nagyvilág (fundada na época do “abrandamento” do poder totalitário).42 E nas notas de viagens de um literato húngaro que em 1961 publicou as suas Impressões do Brasil, depois de assistir ao congresso do PEN Clube no Rio de Janeiro, já se encontra um tom mais equilibrado. Para ele, a obra de Jorge Amado é uma fonte de informação antes sensorial que exclusivamente politizada sobre “esse peculiar mundo popular, de cuja beleza e intimidade gostei tanto quanto da sua rica fantasia e das suas múltiplas cores decorativas.” (Stér, 1961, p. 729)
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Em suas andanças pelo mundo brasileiro, o guia desse literato húngaro é a monografia intitulada Geografia da fome, de Josué de Castro. Mas Stér tem bastante sensibilidade para ver e descobrir um Brasil excêntrico, multifacetado, de componentes culturais e étnicos múltiplos e amalgamados, entre eles a música popular brasileira e a sua melancólica melodia, ou o carnaval e seu simbolismo popular, que Stér interpreta sob a influência do filme Orfeu negro, do diretor francês Marcel Camus. Finalmente, o viajante atreve-se a dizer aos húngaros que o Brasil não deve ser entrevisto como um mero panorama ou cenário de fundo político, e que aos intelectuais compete a tarefa e a responsabilidade de formar a consciência do grande público. Com essa relativa abertura nos pontos de vista que começava a prevalecer lentamente a partir do início dos anos 1960 na política cultural e literária húngaras, começa a diversificar-se a edição de livros e enriquecer-se a divulgação da literatura brasileira. O autor mais divulgado ainda é Jorge Amado, mas em harmonia com a renovada temática da sua obra aparecem, também em húngaro, os romances mais divertidos dele, que cativam o público. O público requer já cada vez mais abertamente uma recepção cultural mais sofisticada e diversificada. Após os anos da ditadura forte e o total encerramento do país, motivado pela Guerra Fria, surge uma exigência por bens culturais anteriormente vedados, exigência que se vê satisfeita, mesmo que um pouco contraditoriamente. Essa nova forma de recepção do Brasil fora previamente preparada por livros publicados a partir dos últimos anos da década de 1950: As imagens do Rio, de Richard Katz,43 O inferno verde, de Erich Wustmann.44 Sob outro prisma, obras como Trópusi Indiánok között. Brazíliai útijegyzetek (Entre índios do trópico. Notas de viagem do Brasil), do etnólogo húngaro Lajos Boglár, apresentam o Brasil dos trópicos, da selva e dos índios, estimulando, assim, o interesse por outros aspectos desse país, sublinhados aqueles que o distinguem da Europa. Será essa
Riói Képek. Budapeste: Táncsics, 1958. 43
A zöld pokol. Budapeste: Táncsics, 1959. 44
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria
Aki átment a szivárvány alatt. Budapeste: Kossuth, 1964. 45
Emberek és rákok. Budapeste: Kossuth, 1968. 46
Emberfarkas. Budapeste: Európa, 1962. Aszály. Budapeste: Európa, 1967. 47
A többi néma csend. Budapeste: Európa, 1967. 48
Máglyák az serdben. Budapeste: Móra, 1970. 49
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busca do diferente, do exótico que marcará e determinará o interesse pelo Brasil nos anos subsequentes. Entretanto, publicam-se obras de autores comprometidos, como as de Jorge Amado, já mencionadas: Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus,45 O ciclo do caranguejo, de Josué de Castro,46 São Bernardo e Vidas secas, de Graciliano Ramos,47 e ao lado deles saem romances como O resto é silêncio, de Érico Veríssimo48 e O Guarani, de José de Alencar, embora este seja transposto para o húngaro em versão condensada, em uma edição para jovens.49 Por outro lado, e de forma menos manifesta, aparecem obras das mais diversas naturezas, mormente direcionadas aos intelectuais. Essa forma de publicação “velada”, um pouco contrária à política cultural oficial, caracteriza em primeiro lugar a revista de literatura mundial Nagyvilág e algumas antologias de poesia e de prosa. Destinadas a um público seleto, surgem nessas publicações, de forma esporádica, muitos autores de valor da literatura brasileira. Publicações como Dél keresztje (Cruzeiro do Sul, 1957), Kígyóöl ének (Canto de matar cobras, 1973), Hesperidák kertje (Jardim das Hespérides, 1971), Járom és csillag (Jugo e estrela, 1984) divulgam a poesia latino-americana. Os poemas são acompanhados de notas biográficas e bibliográficas; dessa forma, em torno de 40 grandes poetas brasileiros são publicados na Hungria. Essas antologias seguem o princípio da antologia de Paulo Rónai, ou seja, selecionam os poemas apenas pelo seu valor poético e estético e não demonstram o menor interesse em ilustrar o desenvolvimento da história literária brasileira. Fazem falta, por exemplo, poemas que caracterizem os primeiros anos do Modernismo, ou do Concretismo e de outras tendências experimentalistas. Nesse mesmo contexto, publicaram-se contos de Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa e Jorge Amado em antologias de prosa latino-americana: Ördögszakadék (Abismo de diabo, 1966), Dél-amerikai elbeszélk (Narradores latino-americanos, 1970), Az üldöz (O perseguidor, novelas latino-americanas, 1972).
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Um dos grandes méritos da revista de literatura mundial Nagyvilág é a apresentação de autores e obras, de tendências e fenômenos literários, com base em critérios puramente poéticos ou estéticos. Em 1961, a revista traz informações sobre as atividades de Paulo Rónai no Brasil, frisando a importância do seu trabalho no conhecimento mútuo entre o Brasil e a Hungria (Gyergyai, 1961, p. 1566-1567). E é naquelas páginas que, em 1962, aparece um estudo sobre o romance brasileiro contemporâneo (Tavaszy, 1962, p. 1388-1391), assim como, em 1969, um ensaio sobre o desenvolvimento da literatura latinoamericana (Benyhe, 1969, p. 1723-1731). Mencionamos também certas resenhas sobre os livros de Jorge Amado, sobre romances como O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, e Irmão Juazeiro, de Francisco Julião. O texto de recepção mais característico dessa época é o necrológio de Guimarães Rosa que Nagyvilág publicou em 1968. Nele se fala na “síntese dos mágicos elementos primitivos de mundos diferentes”, em “mitos de valor universal de conteúdo filosófico” (Rónai, 1968, p. 338-339) e a linguagem engenhosa e estranha que o escritor compilou para si e que se parece muito com a linguagem de James Joyce. Tal análise da obra de Guimarães Rosa só se tornou possível graças à mudança de tom que marcou a imprensa política, única e oficial na Hungria de então. Assim, na recensão informativa que a revista teórica Társadalmi Szemle publicou sobre Vidas secas, de Graciliano Ramos (Szllsy, 1967, p. 137), já se comenta a “exatidão sociológica” ao lado dos valores estéticos da obra, numa análise mais flexível e sutil do que se fazia nos anos precedentes. A partir de meados dos anos 1970, sob a influência do boom da literatura latino-americana em espanhol, relega-se para o segundo plano a literatura brasileira, e em especial a literatura chamada progressista. Na realidade, diminui o interesse do público pelas obras brasileiras que tratavam de uma forma direta os problemas políticos e sociais. O exotismo dos autores do realismo mágico, a forte carga intelectual dos pós-modernos como Julio Cortázar e Jorge
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Luis Borges, e a urdidura complexa dos romances políticos de autores peruanos ou mexicanos, tudo isso atrai mais o interesse dos leitores húngaros. Só obras de Jorge Amado, tais como Dona Flor e seus dois maridos ou Gabriela cravo e canela, continuam cativando novas e novas gerações de leitores.
Novos aspectos da presença literária brasileira na cena húngara
Szalontai, 1984. Bodor, 1984. Cserti, 1984. 50
Entretanto, surge, enquanto isso, uma nova geração de divulgadores das letras brasileiras, marcados por um gosto literário renovado e pelo objetivo de revelar aos leitores húngaros os traços característicos e essenciais da literatura brasileira. Assim, entre 1983 e 1986, a Rádio Nacional Húngara realizou uma série de emissões, de meia hora cada uma, com o título Latin Amerika Irodalma (Literatura da América Latina). Essa série apresentou uma visão panorâmica das literaturas do século XX naquele continente, com os fenômenos novos e característicos da literatura brasileira: o Pré-modernismo e o Modernismo, a poesia concreta, a moderna prosa experimental e a da grande urbe, fazendo conhecer ao público nomes que nunca haviam sido mencionados antes, como Oswald de Andrade, Haroldo de Campos, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan e Ignácio de Loyola Brandão, que com sua obra despertaram o interesse da elite intelectual. Nessa época, transcorreu uma significativa etapa do processo de divulgação da literatura brasileira na Hungria: a publicação do Macunaíma, de Mário de Andrade. A tradução dessa obra conheceu um verdadeiro êxito editorial, pois em poucos meses esgotou-se uma tiragem de dez mil exemplares. O público, ávido do exotismo – até então condenado –, devorava o livro, que foi apresentado como um grande acontecimento cultural tanto pelos programas culturais de rádio e tevê quanto pelas recensões críticas.50 Nessa perspectiva, em resenha cujo título menciona a cé-
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lebre epopeia finlandesa e que qualifica Macunaíma como “Kalevala artificial da zona tórrida”, o crítico Pál Bodor frisa com entusiasmo a mistura feliz de elementos intelectuais e populares, a força primitiva da obra comentada: Macunaíma é conseqüência da capitalização latino-americana irregular e tormentosa, da americanização que abraça aplastando a versatilidade étnica (lingüística, folclórica e etnográfica) de múltiplas cores e raízes e dos excessos intelectuais amotinados e revoltosos (Bodor, 1984).
A edição de Nove, novena, de Osman Lins,51 revela certa perplexidade provocada por este câmbio de paradigma no gosto dos divulgadores. O autor do posfácio, ilustre estudioso e tradutor, evoca, um tanto indeciso, a obra nordestina de Jorge Amado, a ambientação sulista de Verissimo e as fortes cores mineiras de Guimarães Rosa, lamentando que “os enérgicos elementos linguísticos deste último faltem na obra de Osman Lins” (Benyhe, 1985, p. 211). Aqui aparece novamente, como referência, o elemento exótico, representado, neste caso, por Jorge Amado e Guimarães Rosa. Essas palavras do literato e tradutor János Benyhe novamente aludem às contradições da “oferta e da procura” da literatura brasileira na Hungria. Num debate transmitido pela rádio, um representante da velha estirpe pôs em confronto com a literatura de fortes cores brasileiras uma literatura classicizante, pastoril, que se cultiva nos recantos ocultos do Brasil e que conserva valores eternos, segundo ele. Tal princípio distintivo, que se mantém quase intacto desde a antologia de 1939, Mensagem do Brasil, predomina igualmente numa antologia de 1984,52 a maior antologia húngara da poesia latino-americana publicada até os dias de hoje. O que surpreende é que a lista dos poetas modernos é quase igual à da seleção de meio século atrás (apenas Ascenso Ferreira, Raúl Bopp e Vinícius de Morais são os nomes novos) e assim mesmo há muitas coincidências na escolha dos poemas.
Kilenc és kilenced. Trad. Judit Xantus. Budapest: Európa, 1985. 51
Járom és csillag (Jugo e estrela), seleção, prefácio e notas por János Benyhe. Budapeste: Kozmosz, 1984. Na antologia aparecem poemas de Mário de Andrade, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Olavo Bilac, Raul Bopp, Geir Campos, Ronald de Carvalho, Vicente de Carvalho, Francisco Antônio de Carvalho Júnior, Antônio de Castro Alves, Raimundo Correia, Bernardino da Costa Lopes, João da Cruz e Sousa, Luís Delfino, Teófilo Dias, Carlos Drummond de Andrade, Ascenso Ferreira, Antônio Cândido Gonçalves Crespo, Alphonsus de Guimaraens, Sebastião Cínero dos Guimarãens Passos, Luís José Junqueira Freire, Jorge de Lima, Joaquim Maria Machado de Assis, Gregório de Matos, Cecília Meireles, Vinícius de Morais, Alberto de Oliveira, Rui Ribeiro Couto, Augusto Frederico Schmidt. 52
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria
Boszorkányszombat (Mistério de sábado), sel. e notas de Paulo Rónai. Trad. István Bárczy, Éva Faragó, Ferenc Pál, Paulo Rónai, Eszter S. Tóth, Ervin Székely. Budapeste: Európa, 1986. Na antologia se encontram contos de Machado de Assis: Pai contra mãe; Lima Barreto: O homem que sabia javanês; Monteiro Lobato: O comprador de fazendas; Mário de Andrade: O peru de Natal; Aníbal M. de Machado: O ascensorista; Rui Ribeiro Couto: Mistério de sábado; João Alphonsus de Guimaraens: Eis a noite!; Alcântara Machado: As cinco panelas de oiro; Luís Jardim: Paisagem perdida; Carlos Drummond de Andrade: Beira-rio; Orígenes Lessa: Roteiro de Fortaleza; Marques Rebelo: Caprichoso da Tijuca; João Guimarães Rosa. A terceira margem do rio; Aurélio Buarque de Holanda: O chapéu de meu pai; Rachel de Queirós: A donzela e a moura torta; Lygia Fagundes Telles: Venha ver o pôr do sol; Oto Lara Resende: O retrato na gaveta; Clarice Lispector: Feliz aniversário. 53
Isaura, a rabszolgalány. Trad. István Bárczy. Budapeste: Európa, 1987. 54
Zero. Trad. Ferenc Pál. Budapeste: Európa, 1990. 55
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Outro livro dessa natureza, situando-se entre o passado e o presente, foi a antologia Boszorkányszombat, de 1986, uma coletânea de contos53 que reunia desde Pai contra mãe, de Machado de Assis, até Feliz aniversário, de Clarice Lispector. A seleção criteriosa, acompanhada de notas bibliográficas, foi recebida com entusiasmo da parte dos críticos, talvez porque saísse ao mesmo tempo em que a edição em húngaro de A escrava Isaura,54 quer dizer, no auge do interesse do público pelo Brasil, suscitado pela telenovela feita com base no romance de Bernardo Guimarães. Ao se reler a resenha dessas duas obras, vale a pena meditar sobre a seguinte asserção: “A maioria dos contos mostra gente lutando com seu fado, gente que quase nunca triunfa, num mundo de senzalas e casas grandes, um país de tempo estancado, estagnado em cerimônias.” (Magyar Hírlap, 1987, p. 5). O grifado é nosso, porque novamente se faz referência à imagem de um país exótico, ou seja, a imagem do Brasil tal como vive no (sub)consciente das pessoas na Hungria. Com essa atitude pode-se explicar, talvez, o curioso e célebre episódio em que telespectadores húngaros de A escrava Isaura, anciãos de um pequeno vilarejo do interior do país, reuniram uma importante soma a fim de remir da escravatura aquela bela e talentosa jovem, inventada por Bernardo Guimarães havia mais de um século. A partir do final da década de 1980 mudaram, no entanto, os hábitos de leitura e o gosto do público húngaro, e as séries televisivas ocuparam lentamente o lugar dos livros e da leitura. O grande público, outrora leitor ávido dos romances de Jorge Amado, afastou-se da literatura de valor, e passou a ler obras de Paulo Coelho, que atualmente é o autor brasileiro mais popular (e quase exclusivo) na Hungria. Nestas últimas duas décadas, com a liberalização da edição e do mercado de livro, houve possibilidade de publicar autores mais sofisticados. Dessa forma, saiu em 1990 o Zero, de Ignácio de Loyola Brandão,55 que a crítica recebeu como fonte de informação privilegiada a respeito de um mundo caoticamente moderno (apud Wirth, 1991,
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p. 11). Mais tarde saíram obras de outros escritores que descreviam a vida de grandes centros urbanos, como contos de Dalton Trevisan e de Rubem Fonseca, em revistas literárias. Com a mudança do gosto literário, os foros mais exigentes da literatura, como a revista Nagyvilág, passaram a conceder mais espaço à atual literatura brasileira.56 Nesse sentido, foram traduzidos para um seletíssimo público-leitor poemas de dois representantes da poesia concreta, Haroldo de Campos e Décio Pignatari.57 Esses livros de poemas obtiveram, de um conhecido poeta experimental, Endre Szkárosi, um parecer crítico, no qual ficou consignado o reconhecimento da independência criativa dos autores desse país dos trópicos: A formação da [...] poesia concreta no início dos anos cinqüenta não é o primeiro exemplo de que nas circunjacências da zona cultural euro-americana criam-se uma nova linguagem e uma expressão autêntica que correspondem às demandas intelectuais desta região (Szkárosi, 1999, p. 14).
Para além do material poético, a importância dessas duas antologias reside na demonstração de que a literatura brasileira tornou-se independente, e se pode dizer que seus motivos regionalistas já se manifestam sob forma universalizante. No presente momento, uma antologia bilíngue, publicada por iniciativa da Embaixada do Brasil e com o apoio do Ministério das Relações Exteriores, representa na Hungria a literatura brasileira. A modern brazil elbeszélés – Antologia do moderno conto brasileiro, selecionada pelo embaixador José A. Lindgren Alves, com introdução e apresentações dos autores pelo diplomata, é um bom manual para conhecer a prosa brasileira do século XX, segundo afirma um dos críticos do livro (Urfi, 2008). Na antologia figuram contos de dezessete autores,58 dos quais as resenhas destacam Autran Dourado, Rubem Fonseca, e muito especialmente Guimarães Rosa, com o conto Duelo, pois
Esta revista publicou, no seu número de abril de 1991 (ano XXXVI, n. 4), o conto “Bolívar”, de Victor Giudice. No número de agosto de 1992 (ano XXXVII, n. 8), publicaram-se dois contos de Dalton Trevisan. 56
Haroldo de Campos: Konkrét versek (Poemas concretos). Trad. András Petcz e Ferenc Pál. Seleção, prefácio e notas de Ferenc Pál. Budapeste: Íbisz, 1997. Décio Pignatari: Vers-gyakorlatok (Exercícios de poesia). Trad. András Petcz e Ferenc Pál. Seleção, prefácio e notas de Ferenc Pál. Budapeste: Íbisz, 1997. 57
De Antônio de Alcântara Machado, Rachel de Queiroz, Guimarães Rosa, Antônio Fraga, Clarice Lispector, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Autran Dourado, Ligia Fagundes Telles, Ingácio de Loyola Brandão, Márcio Souza, Rubem Fonseca, Adélia Prado, Raduan Nassar, Moacyr Scliar, Dalton Trevisan, Márcia Denser. 58
A imagem do Brasil e a literatura brasileira na Hungria
Budapeste. Trad. Ferenc Pál. Budapeste: Atheneum, 2000, 2005. 59
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este é o único conto em que aparece o elemento exótico (apud Galamb, 2008). Isso distingue o conto de Rosa dos demais textos, que correspondem aos cânones universais, tanto nos temas elaborados como nos recursos artísticos de que lançam mão. Havemos de mencionar, além de Paulo Coelho, cujas obras inundam as livrarias, o nome de Chico Buarque de Holanda, que, com o romance Budapeste,59 também está disponível nas estantes. Contudo, neste caso o fato de o escritor/cantor ter escrito um romance cuja ação decorre em parte em Budapeste é muito mais importante para os leitores húngaros do que os valores estéticos do livro. Resumindo, podemos dizer que neste momento a literatura brasileira está relativamente bem representada na Hungria, existem enciclopédias, antologias de poesia e de contos que informam detalhadamente sobre autores, tendências literárias, e assim podem informar e orientar os interessados. Contudo, falta um vivo contato com as letras brasileiras – as primeiras obras literárias apareceram relativamente tarde e só raras vezes corresponderam às expectativas do público, que formou uma imagem do Brasil a partir das informações obtidas dos livros de viagens, da imprensa e da mídia, e tacitamente sempre esperou que a literatura correspondesse a esses estereótipos decorrentes de “preconceitos” devidos a circunstâncias históricas diversas. Esse fato explica o êxito das obras de Jorge Amado e o êxito isolado de Macunaíma, de Mário de Andrade, e de certa forma a dificuldade da divulgação de autores modernos cuja obra se afasta de uma imagem tradicional do Brasil.
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Tempos e contextos da literatura brasileira na Argentina e no exterior Florencia Garramuño*
resumo:
O artigo discute diferentes momentos da difusão da literatura brasileira na Argentina, analisando os diferentes contextos históricos e culturais como condições para a promoção da literatura brasileira no modo de se pensar hoje – na era da regionalização das culturas –, o modo como essa difusão, alicerçada numa perspectiva de literatura comparada, poderia ajudar na construção de novas comunidades culturais. palavras-chave: literatura brasileira, literatura latino-ameri-
cana, regionalização, literatura comparada. abstract:
The article discusses particular moments in the diffusion of Brazilian Literature in Argentina, analyzing different historical and cultural contexts as conditions for the promotion of Brazilian Literature in Latin America. It seeks to think how today – in the era of the regionalization of cultures – a comparative literature perspective for the diffusion of Brazilian literature can help in the construction of new cultural communities. Universidad de San Andrés/ Conicet. *
Uma primeira versão deste texto foi apresentada nesse evento, que marcou o lançamento da base de dados Conexões, cujo objetivo é mapear e reunir um amplo e inédito número de profissionais estrangeiros que estudam ou pesquisam temas e autores da literatura brasileira. Agradeço a Claudiney Ferreira, Felipe Lindoso e João Cezar de Castro Rocha o convite para participar do encontro.
keywords:
Brazilian literature, Latin American literature, regionalization, comparative literature.
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Em dezembro de 2009, o Instituto Itaú Cultural realizou o I Encontro Internacional Conexões Itaú Cultural – Mapeamento da Literatura Brasileira no Exterior, em São Paulo.1 O evento estava destinado a mapear os brasilianistas que trabalham pelo mundo fora, com o alvo de construir novos laços e conexões entre aqueles que trabalham sobre e com a literatura brasileira em universidades e diversas instituições estrangeiras e fazê-los refletir em conjunto sobre o estado atual da literatura brasileira no exterior. Quais seriam os problemas e os impasses com
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que os pesquisadores do Brasil se confrontam ao se encontrarem distantes do Brasil, dos livros, dos arquivos, dos documentos, assim como da própria cultura brasileira? O encontro não só congregou professores e pesquisadores de universidades de diferentes países (Argentina, Inglaterra, Estados Unidos, França, Espanha, Alemanha e Japão, entre outros), mas também convocou tradutores e editores de literatura brasileira no exterior, que abriram um diálogo fecundo sobre os dilemas da difusão da literatura brasileira em extrema coincidência com os debates que preocupam os pesquisadores, tanto que muitas vezes duas, e até três das identidades profissionais (pesquisador, tradutor, editor) reunidas no encontro encontravam-se numa mesma pessoa. O encontro foi frutífero não só em termos profissionais e de contato – pelo fato de fazer se conhecerem pessoas que trabalham com problemas afins –, mas também em termos de difusão da literatura brasileira, já que a partir dele se iniciaram muitos trabalhos em conjunto entre diversos pesquisadores, tradutores e editores. Do ponto de vista da pesquisa sobre a literatura brasileira, talvez o mais produtivo do encontro tenha sido a grande quantidade de perguntas teóricas que desabotoaram das discussões e debates, a partir das quais é possível vislumbrar uma transformação em andamento de um conceito de literatura e de cultura brasileira que leva em conta sua colocação na paisagem transformada de um mundo contemporâneo no qual fronteiras e limites são redesenhados cotidianamente, rearranjando regiões, comunidades e preocupações que não teriam como não influir numa disciplina tão sensível à sociedade e à cultura como o é a dos estudos literários – ou de quaisquer dos diversos ramos da arte. Uma dessas questões – e a que me parece mais premente, já que condiz com muitas das características da literatura mais contemporânea com as quais a minha própria pesquisa vem lidando há algum tempo – é a da situação complexa da difusão de uma literatura brasileira contemporânea que já não parece poder ser contida nos
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parâmetros que definiram a instituição literária no passado. Um grande número de textos brasileiros – assim como também de textos de outros países e regiões – põe em cena um extravasamento espantoso dos limites e fronteiras que tinham definido o literário como um tipo de discurso ancorado numa certa especificidade institucional. Entre esses parâmetros hoje extrapolados, a própria noção de literatura como instituição nacional fortemente ligada a certos padrões de constituição de uma identidade nacional é talvez um dos limites mais evidentemente ultrapassados, embora não seja o único. O filho da mãe, de Bernardo Carvalho (Carvalho, 2009), aparece como o exemplo mais extremo desse afastamento da problemática do nacional na literatura brasileira contemporânea que, no entanto, habita um número cada vez maior de romances contemporâneos – brasileiros, vale a pena ressaltar, ou não. Até que ponto esse extravasamento de problemáticas nacionais – “especificamente brasileiras” – deveria modificar também a forma de encarar as próprias ferramentas e conceitos para se pesquisar e ensinar a literatura brasileira no exterior? Se a literatura contemporânea já não se arrosta exclusivamente à discussão de uma identidade nacional e se, pelo contrário, parece se propor cada vez mais fortemente como imaginação de comunidades e coletividades que desconhecem a ferrenha ligação entre território, língua e nação –como proporia Giorgio Agambem (2001) –, parece evidente que, para a difusão e promoção dessa literatura brasileira no estrangeiro, fomentar e alicerçar uma discussão dessas novas “comunidades imaginadas” – para usar em um sentido mais complexo o conceito de Benedict Anderson (1983) – seriam estratégias mais sensíveis ao que essa nova literatura pareceria estar discutindo. E é nesse sentido também – uma vez que a literatura brasileira no exterior está sempre se relacionando com as formas da literatura dos países nos quais essa literatura está sendo difundida, traduzida, pesquisada e, no contato com essa cultura diferente, novos problemas surgem – que a ideia mesma da difusão e promoção da literatura brasileira
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no exterior compartilha muitos dos problemas que têm se associado nos últimos anos à discussão da literatura comparada, principalmente a partir de discussões como as elaboradas por Emily Apter em The translation zone ou Gayatri Spivak em Death of a discipline sobre os modos de se pensar a literatura comparada – a disciplina, os seus problemas, e as suas ferramentas – na era da regionalização da economia global e, com ela, também das culturas. Na proposta de Apter, a noção de tradução –linguística, mas também cultural – tem um papel fundamental no programa de uma “nova literatura comparada”. Segundo ela, “in naming a transnational process constitutive of its disciplinary nomination comparative literature breaks the isomorphic fit between the name of a nation and the name of a language” (Apter, 2003, p. 243). Também Spivak tem elaborado algumas noções interessantes – e bem complexas – sobre o problema da literatura comparada na contemporaneidade, propondo uma colaboração entre os estudos de área (“area studies”) e a literatura comparada que poderia tentar “to figure themselves – imagine themselves – as planetary rather than continental, global or wordly” (Spivak, 2003, p. 72). Outra das questões tem a ver com a possibilidade de se pensar a difusão – e, com ela, os “difusores” – da literatura brasileira no exterior noutros termos que já não só do ponto de vista de uma transmissão, divulgação ou propagação de uma literatura ou de um saber que existiria feito e pronto no Brasil e que os pesquisadores só transmitiríamos, deslocando-o em outros contextos. Seria uma forma de produzir um saber novo, diferente do já conhecido, que se aproveitaria dessa mesma migração e deslocamento como uma forma de produzir saberes “outros” que despontariam ao se confrontar a literatura brasileira com um contexto estrangeiro ao que essa literatura interpelaria de uma forma diferente.2 E aí a pergunta que surgiu é a de se uma instituição como o Itaú poderia, e como, não só atender à difusão da literatura brasileira, mas também intervir na produção
A apresentação de Victor Mendes, professor de University of Massachusetts Darthmouth, apontou, no encontro Conexões, para esta possibilidade. 2
O livro de Sorá estuda quatro períodos importantes: o primeiro estende-se desde o século XIX até os anos 1930, quando se cristaliza, da mão das políticas culturais do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), a ideia de uma “auténtica cultura nacional brasileña” que inicia o segundo período. Na primeira etapa veem-se os vínculos estreitos entre diplomacia e tradução e resulta 3
Tempos e contextos da literatura brasileira na Argentina... surpreendente pela espantosa atualidade das traduções: Esaú e Jacob, de Machado de Assis, por exemplo, cuja primeira edição no Brasil é de 1904, foi traduzido para o espanhol só um ano depois, em 1905. Essa sincronia é, por sua vez, evidência de um intenso diálogo entre a literatura argentina e brasileira no período, principalmente durante os anos do Romantismo. É no segundo período, no entanto, quando a tradução mostra seus vínculos com as políticas estatais e com as a alianças políticas e ideológicas de esquerda que nasceram do exílio na Argentina de Luiz Carlos Prestes e Jorge Amado. Um terceiro período, que Sorá denomina mercantil, vai de 1945 a 1985 e exibe a hegemonia do mercado na seleção e produção da tradução. Caberia ressaltar a importância que nos anos sessenta adquirem questões ideológicas e o tipo de problemas para os quais os estudos sociais brasileiros vão ser tomados como modelos a observar, como se pode concluir da relevância que os temas do desenvolvimento econômico e social adquiririam nesse momento. Por último, um quarto período, que Sorá denomina de internacionalização, inicia-se em 1985, quando as relações entre a cultura argentina e brasileira resultam em grande parte da mediação de intercâmbios internacionais nas feiras de Frankfurt, Barcelona, e dos circuitos construtores do mercado editorial internacional.
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de esse “saber outro” que, no caso, estava se produzindo gerado precisamente por aquele encontro. Algumas dessas questões dizem respeito a um mapeamento qualitativo da literatura brasileira no exterior que seria bem interessante fazer, além do mapeamento quantitativo. A identificação dessas questões e a elaboração de respostas para elas, assim como a criação de redes de pesquisadores e de contatos e fluxos de saberes é, sem dúvida, um dos grandes ganhos de encontros daquela natureza em termos teóricos, além do fato pragmático – também importante – de facilitação dessa rede e desses contatos. Fica claro que, ao se falar da difusão da literatura brasileira no exterior, é importante analisar os tempos e contextos dessa difusão, levando em conta as diferentes condições de possibilidade que esses tempos e contextos têm oferecido para o conhecimento da literatura brasileira em países estrangeiros. O antropólogo Gustavo Sorá começou a pensar algumas dessas questões para o contexto da Argentina durante o século XX no seu importante livro Traducir el Brasil (2003). Partindo de uma pesquisa empírica sobre as traduções de escritores brasileiros para o espanhol realizadas na Argentina, Sorá demonstrou que a tradução de autores brasileiros tem sido muito mais importante e constante na Argentina – segundo algumas variáveis históricas – do que na maioria dos outros paises.3 Mas a pesquisa demonstrou também outra consequência mais relevante – e lamentável – ainda para a história cultural da Argentina e do Brasil: a de que a efetiva tradução de autores brasileiros na Argentina não tem sempre ajudado a reduzir o mútuo desconhecimento entre os dois países. A pouca reedição e circulação desses livros é um dado incontestável: dos canônicos e importantíssimos livros brasileiros traduzidos pela Biblioteca La Nación – uma importante editora universalista – nas primeiras décadas do século XX, por exemplo (autores como os já na época afamados Machado de Assis, José de Alencar ou Aluísio Azevedo), nenhum deles teve reedição alguma, muito
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embora muitos dos títulos dessa mesma editora que provinham de diferentes tradições literárias europeias tenham sido reeditados ano após ano. A debilidade institucional da Argentina em termos de bibliotecas, arquivos e instituições dedicadas ao desenvolvimento do conhecimento sobre o Brasil não contribuiu, por outro lado, para “atualizar” e manter vivo o conhecimento do Brasil que esses livros traduzidos poderiam – e deveriam – ter acarretado. Fica claro a partir da leitura do importante livro de Gustavo Sorá, portanto, que o significado dos livros traduzidos em suas dimensões históricas depende das formas nas quais esses livros são recebidos e apropriados por seus leitores, assim como das posições no campo intelectual dos agentes tradutores e dos pesquisadores, e que os problemas da tradução não dizem respeito só a duas culturas nacionais específicas, mas respondem a uma configuração internacional de redes de relações linguísticas, demonstrando, como diz Sorá, que “las fuerzas de internacionalización de los mercados desde fines de los años ochenta remataron el distanciamiento entre dos ‘culturas nacionales’ cuya vigencia editorial es regulada en aduanas muy lejanas” (Sorá, 2003, p. 221). Era claro – a pesquisa demonstrava – que houve condições para uma tradução bem rica naquele momento, mas que na verdade ela não acarretou consequências de peso para o efetivo conhecimento da literatura brasileira na Argentina ou nos países de fala espanhola nos quais esses livros brasileiros poderiam passar, desde esse momento, a ser lidos. Se pensarmos na relação entre os escritores argentinos da época e a literatura brasileira, ou entre os críticos argentinos e a literatura brasileira, fica evidente que essas traduções não fizeram com que a literatura argentina se alimentasse da brasileira nem que a brasileira se alimentasse da argentina, nem, tampouco, que a literatura brasileira ficasse conhecida na Argentina fora do interesse de algumas pessoas específicas. Um momento mais bem-sucedido dessa difusão foram – sem dúvida – os anos 60 e 70 do século XX, quando a
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literatura brasileira pegou carona no boom da literatura latino-americana – que, lembremos, foi construído particularmente por uma editora de origem espanhola, a Seix Barral – e compartilhou com ela o seu momento de fama internacional. É claro que, na época, o contexto político da América Latina, com a Revolução Cubana e as instituições que iriam se criar, fez com que a difusão da literatura brasileira tivesse um impacto mais forte nas literaturas de língua espanhola. É por esses anos que o que tinha sido conhecido até então como “Concurso literário hispano-americano” foi se denominar, com a entrada dos autores brasileiros, como “Concurso literário latino-americano” e, logo em seguida, tomou o nome de “Premio Casa de las Américas”, que premiou autores brasileiros e contou no júri com escritores e intelectuais brasileiros da talha de Antonio Candido, Chico Buarque ou Davi Arrigucci Jr. Em depoimento em Havana, Antonio Candido disse sobre o prêmio: Para nós, brasileiros, geralmente tão separados dos irmãos de fala espanhola, Cuba tem sido a grande mediadora, ao criar a possibilidade de entendimento que se forma aqui e se desenvolve fora, e ao tecer uma rede fraternal que abraça o continente com suas possibilidades de compreensão e intercâmbio (apud Cabañas e Fornet, 1999, p. 181).
Quando a Editorial Siglo XXI publica América latina en su literatura, em 1972, a presença da literatura brasileira no volume é incontestável, tendo ele artigos como os de Antonio Candido, José Guilherme Merquior, Antonio Houaiss, Haroldo de Campos, ou Emir Rodríguez Monegal e outros críticos latino-americanos que fazem referência à literatura brasileira, ou de tantos outros que, sem falar exclusivamente da literatura brasileira, colocam em relação a literatura hispano-americana e a brasileira referindo-se a autores como Alencar, Machado, Casimiro de Abreu, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e tantos outros escritores brasileiros citados e analisados nesses textos (Moreno, 1972).
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Para aqueles que, no fim da década de 1980, estudávamos literatura na universidade argentina, esse livro foi a descoberta de que a literatura brasileira existia numa sintonia de problemas com a literatura latino-americana e que ela própria podia se converter em um campo de estudo e pesquisa para nós, os latino-americanos que queríamos e pretendíamos construir uma América Latina grande, que víamos representada na canção de Gilberto Gil com letra de Capinam, Soy loco por ti América, que dançávamos e cantávamos com fervor nas festas da época. E essa América Latina grande não se preocuparia tanto com a questão da identidade nacional ou regional, mas se assemelharia com a corrupção das unidades homogêneas que Caetano Veloso comemorava em Língua – canção que também dançávamos e cantávamos ainda com mais fervor, se possível. Basta lembrar o refrão de Língua para ouvir uma alusão leve a essa América Latina, que Caetano repetia gozoso: Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó O que quer? O que pode esta língua? Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas E o falso inglês relax dos surfistas Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas! (....) A língua é minha pátria E eu não tenho pátria, tenho mátria E quero frátria. 4
O leque que uma história da difusão da literatura brasileira no exterior abre é bem complexo e não seria possível esgotar, em um único artigo, as discussões que um problema como esse abre. Uma questão que, no entanto, é importante ressaltar é até que ponto essas condições, na época, colaboraram ou não para uma difusão efetiva, intensa, perdurável, da literatura brasileira na América Latina. Segundo Pablo Rocca, “ningún crítico hispanoamericano coetáneo de la nacionalidad que fuere se encargó, como Monegal o como Rama, con tanto interés y persistencia de
“Soy loco por ti América” foi composta sob o efeito da morte do Che Guevara e gravada em Tropicália, em 1967. “Língua”, composta por Caetano Veloso, aparece em Velô, em 1984. Na canção, Caetano retoma uma frase famosa de Fernando Pessoa em “A minha pátria é a minha língua”, do Livro do desassossego, de Bernardo Soares (Pessoa, 1982). 4
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Um trabalho mais abrangente sobre as relações entre Emir Rodríguez Monegal e Angel Rama com o Brasil pode se encontrar no livro de Rocca, Ángel Rama, Emir Rodríguez Monegal y el Brasil. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 20 5
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la literatura brasileña” (Rocca, 2006a, p. 56), o que é bem pouco para um campo de crítica latino-americana que tem sido bastante rico e produtivo.5 Eu acrescentaria que tanto o trabalho de Rama como o de Rodríguez Monegal sobre a literatura brasileira talvez não tenham comparação, no campo intelectual latino-americano, sobretudo o de Rama, com a contribuição deles para a literatura latino-americana em espanhol. O que também é evidente é que o diálogo entre críticos de fala espanhola e portuguesa também tem sido, apesar do diálogo entre Rama e Candido e outras poucas honrosas exceções, bastante pouco produtivo. Se esses tempos e contextos hoje são bem diferentes, como se deveria pensar a difusão da literatura brasileira na era da globalização e das culturas pós-nacionais ou transnacionais? Como as diversas instituições de pesquisa e ensino da literatura brasileira poderiam contribuir para uma discussão dessas questões que, levando em conta as condições atuais da globalização, possa se inserir no contexto contemporâneo para tirar desse processo as boas qualidades, aprofundá-las, e interromper aquelas outras propriedades que levam ao apagamento das diferenças e à imposição de lógicas homogeneizantes? Queremos continuar defendendo uma identidade da literatura brasileira ou pretendemos abrir esse conceito? Como poderíamos pensar e contribuir para a difusão da literatura brasileira no exterior partindo da inspiração do título da coletânea Nenhum Brasil existe (Rocha, 2003), tomado de empréstimo de um verso de Drummond? Qual seria a literatura brasileira desse Brasil nenhum que quereríamos difundir, e como deveríamos fazer essa difusão? Hoje, quando a palavra de ordem é a redução dos orçamentos no contexto da crise global, há evidência importante sobre a multiplicação dos estudos comparativos entre as literaturas e as culturas do Brasil e da Argentina, e, em um sentido mais geral, sobre as literaturas latinoamericanas, que, tendo abandonado a preocupação pela identidade latino-americana, incorporam nesse estudo as
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culturas do Brasil sem os empecilhos do purismo linguístico ou historiográfico do passado. Hoje existe uma série dentro de uma editora argentina (a Corregidor) especialmente dedicada à publicação e tradução de literatura brasileira que vem, há quase dez anos ininterruptos, publicando clássicos como Oswald de Andrade ou Graciliano Ramos e literatura mais contemporânea, como Ana Cristina Cesar ou Leminski. Mas não só. Também grande parte das maiores editoras argentinas e multinacionais vem publicando em Buenos Aires, com muito mais frequência, autores brasileiros contemporâneos e clássicos: a nova edição que o Fondo de Cultura Econômica fez de um livro que era inencontrável nas livrarias argentinas, Os sertões, de Euclides da Cunha, junto com livros como A descoberta do mundo, de Clarice Lispector, ou os vários romances de João Gilberto Noll e Adriana Hidalgo, ou Um amor anarquista e os vários textos que Beatriz Viterbo vem publicando, assim como outros muitos, tanto de ensaios, como o Balanço da bossa, de Augusto de Campos, ou Literatura e vida literária, de Flora Sussekind, demonstram uma presença cada vez maior da literatura brasileira no catálogo de editoras argentinas. Mais importante do que o número de volumes publicados, no entanto, é o fato de esses livros estarem hoje influenciando uma escrita literária argentina que tem se nutrido deles e que, por sua vez, também está nutrindo os escritores brasileiros. E existe também, hoje, um diálogo muito mais intenso entre a crítica argentina e a crítica brasileira. O caso da poesia contemporânea é muito significativo. A revista Tsé Tsé vem publicando uma série de livros e de poemas, traduzidos e não traduzidos, e lançando dentro de sua editora livros completos de alguns poetas brasileiros contemporâneos, como o caso do Sublunar, de Carlito Azevedo, ou No se dice, de Marcos Siscar. Tanto esses livros como o contato fluido dos poetas argentinos e brasileiros em festivais diversos, realizados tanto na Argentina como no Brasil, evidenciam-se numa escrita poética que se nutre desses contatos. Basta ler alguns poemas de Carlito
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Azevedo ou Marília Garcia para ver que essas influências têm andado nas duas direções. Os livros da coleção Vereda Brasil têm instalado um conhecimento importante dos autores publicados, já que, além de publicar o livro traduzido, cada volume traz estudos preliminares e bibliografias que ajudam os livros traduzidos a se instalarem no mercado e, mais importante ainda, na cabeça dos leitores. As verbas para projetos de cooperação internacional e para trabalhos comparativos têm aumentado exponencialmente na Argentina, sobretudo na Secretaria de Ciência e Técnica do Ministério de Educação da Argentina, que, em parceria com a Capes do Brasil, tem financiado e continua financiando pesquisas desenvolvidas por universidades argentinas e brasileiras em conjunto. É importante, nesse contexto, lembrar que difusão não implica um trajeto de uma só via, mas que é uma viagem de ida e volta, e em várias direções, que desenham uma encruzilhada de fertilização cruzada, e que essa difusão acontece num contexto global de poder e conhecimento que influencia crucialmente a paisagem intelectual. Pensar a difusão da literatura brasileira de uma perspectiva de literatura comparada transformada, que já não esteja procurando as identidades de uma literatura como referentes de uma identidade nacional, mas que, pelo contrário, se fundamente na relação dessa literatura brasileira com as outras literaturas, talvez seja hoje uma estratégia para transformarmos, na medida de nossas fracas possibilidades, o papel da literatura brasileira, e com ela o papel da literatura em geral – nesse novo mundo a cuja transformação estamos assistindo.
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Ideia de Literatura Brasileira com propósito cosmopolita Abel Barros Baptista*
Resumo: O ensaio procura rever o problema da relação da literatura brasileira com a noção de literatura e a literatura mundial. Partindo de uma noção que valoriza a literatura sobre a língua, elemento de exclusão, regressa ao caso de Machado de Assis para intervir no debate sobre o conflito entre local e universal na sua obra e a respectiva recepção fora do Brasil. Palavras-chave: literatura brasileira, literatura mundial, nacionalismo literário, cosmopolitismo, Machado de Assis. Abstract: The essay aims at a revision of the problem of the relation between a national literature, as it seems to be the Brazilian case, and the very idea of Literature, as a notion without nation. Arguing for an idea of literature superseding the language, as a way of exclusion, reviews the case of Machado de Assis in order to step into de debate on universal versus local and on the problem of the international reception of his work. Keywords: Brazilian literature, world literature, literary nationalism, cosmopolitism, Machado de Assis. Outside of a dog, a book is a man’s best friend; inside of a dog, it’s too dark to read. Groucho Marx
1.
* Universidade Nova de Lisboa
Pedir a um português que escreva sobre os estudos de literatura brasileira em Portugal, e ademais como parte dos “estudos de literatura brasileira no exterior”, não deixa de envolver particularidades curiosas. A mais imediata será o sublinhado duma diferença dentro da língua: no português europeu, não ocorre essa acepção de “exterior”
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como conjunto de países constituído por todos os que não são o nosso. Usamos “o estrangeiro”, e diríamos “estudos de literatura portuguesa no estrangeiro”. Mas talvez disséssemos “estudos de literatura brasileira no estrangeiro” mais depressa do que estudos de literatura brasileira “fora do Brasil” ou “no exterior do Brasil”; a mesma construção valendo, aliás, para outras literaturas, seja a inglesa, a alemã ou a italiana: como se houvesse uma substantivação de “o estrangeiro” que o “exterior” já não alcançou. Digamos que há sempre o “estrangeiro”, e sempre se sabe o que é: o “exterior”, por seu lado, requer determinação. Convenhamos que não há enorme diferença entre as duas palavras, estrangeiro é exterior e, até pela etimologia, significa o que é de fora ou vem de fora. Mas exterior excede estrangeiro e, enfim, pode nem ser estrangeiro. Daí que a modalidade portuguesa, no confronto com a brasileira, permita, até estimule jogos de palavras fáceis: a formulação “nem todos os que vivem no estrangeiro são estrangeiros” resultaria em disparate se transposta mecanicamente para “nem todos os que vivem no exterior são exteriores”.1 Isto, falando de cidadãos; já tratando-se de difusão de uma literatura nacional ou de estudos de uma literatura nacional, o jogo de palavras, como todos, ao suspender a familiaridade, atrai a atenção para a definição do exterior como estrangeiro, a determinação do interior como nacional, a orientação do interior para o exterior, a orientação do estrangeiro para o doméstico, a interferência do exterior no interior, no nacional, no que é nosso, etc. Se dissermos que “nem todos os estudos de literatura portuguesa conduzidos no estrangeiro são estrangeiros”, a frase talvez não pareça logo o absurdo que é: o que serão, propriamente falando, estudos “estrangeiros”? Já a formulação “nem todos os estudos conduzidos no exterior são por isso exteriores” faz figura mais de problemática do que disparatada. Ademais, suspensa de uma referência que destrince exterior de interior, promete alguma coisa pertinente. Com efeito, tratando-se de estudos, parece mais pertinente delimitar “exteriores” do que “estrangeiros”,
Também se usa em Portugal a locução “lá fora”, mas o advérbio indica registo coloquial e em regra requer um “fora” de referência para o nosso primitivismo pôr os olhos. E é curioso que um dicionário on line de português para brasileiros (Prata, 1993) tenha necessidade de esclarecer que a locução “deitar fora” não significa “dormir fora de casa” mas “jogar fora”, sem se aperceber de que “jogar fora”, por outro lado, é também locução portuguesa, do domínio do futebol, e que significa precisamente “jogar fora de casa” por ser o oposto de “jogar em casa”. O verbete completo diz isto: “Não significa, absolutamente, que a pessoa vá dormir fora ou, pelo menos, dar uma deitadinha na casa de um amigo ou amiga. Nada disto. Deitar fora é jogar fora. Você verá várias placas em Portugal, dizendo: Por favor, deite no lixo! Não leve ao pé da letra.” Disponível em: <http://www. marioprataonline.com.br/obra/ literatura/adulto/dicionario/ framegranda_a.htm>. 1
Claro que estão disponíveis várias descrições alternativas, mormente as cínicas ou as que derivam do sublinhado de traços de degradação do ideal cosmopolita. Por exemplo, sugerindo que académicos medíocres procuram longe escritores obscuros para fazerem carreira sem controlo nem concorrência. Ou a versão da pilhagem que Roberto Schwarz ofereceu no ensaio a que mais adiante me referirei, “Leituras em competição”: uma “guarda 2
Ideia de literatura brasileira com propósito cosmopolita avançada” do “centro” pilha as obras da “periferia” para as incluir em repertórios internacionais, vai a “terras distantes” à procura do que a faz menos provinciana e por isso não se importa de ignorar a história e o contexto, desde que obtenha proventos fáceis (cf. Schwarz, 2006, p. 66). Certa tradição académica chama “portugueses” justamente àqueles estudos de língua, literatura ou cultura portuguesa que no estrangeiro são conduzidos por não portugueses; mas estes, como cidadãos, evidentemente não se tornam portugueses. O mesmo se passa de resto com os brasileiros: um brasilianista é alguém que se dedica aos “estudos brasileiros”, e as universidades em princípio não confundem brasilianistas com brasileiros. Isto, que vale para as pessoas, não parece valer para as organizações nem para os estudos. Um “Instituto de Estudos Brasileiros”, cheio de brasilianistas ou cheio de brasileiros, tanto pode estar sediado em Roma como em S. Paulo. Talvez se possa inferir do exemplo que os estudos, porque de algum modo se dedicam ao Brasil, são brasileiros sem serem brasileiros e que se chamam brasileiros precisamente na medida em que estão no exterior do Brasil e num interior que não se chama Brasil. 3
Colho esta expressão na tradução para português da conferência proferida por Michael Wood num colóquio sobre Machado de Assis na Universidade de Princeton, em janeiro de 2009 (Wood, 2009, p. 187). 4
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talvez porque, kantianamente guiados pelo ponto de vista filantrópico universal, não acreditamos que os estudos possam ser domésticos ou nacionais sem ao menos aspirarem à condição universal. Pode, aliás, residir nessa aspiração a razão última por que muitos académicos se dedicam a estudar a literatura de países onde não nasceram, onde não viveram, aonde nunca foram, ou que só visitaram justamente porque se interessaram pela respectiva literatura – talvez alguma convicção de que a literatura, tendo país, no sentido em que pertence a este ou àquele aglomerado nacional, em rigor não tem país, e ainda querendo tê-lo muito fortemente, é sempre pouco para quem vive neste ou naquele aglomerado nacional.2 Então, esses académicos, que viajam por causa da literatura que não se fez na sua terra, ilustram este princípio estranho: as pessoas têm necessidade de viajar porque as ideias e os estudos, não se prendendo a nenhum espaço delimitado por fronteiras, não podem nem precisam de viajar. Nesse sentido, aqueles que, literal ou figuradamente, vão de um país a outro por causa da literatura, nunca serão estrangeiros, mas hóspedes, e em princípio hóspedes de honra, quase cidadãos honorários.3 Note-se que, sem eles, é provável que hoje pagássemos a Berlusconi para ler a Divina comédia, modalidade decerto muito inconveniente de prestar tributo ao princípio de nacionalidade em literatura. Dir-se-á, por outro lado, que estes que viajam, filantropos embora, se deslocam sempre para o território que outros, por sua vez, chamam interior, casa, espaço doméstico, e que provincianismo é ver o exterior só como exterior, não como “o lar de outras pessoas”.4 Sem dúvida. Estamos sempre em algum lugar – em algum local. A imediata consequência a extrair seria que o universal não existe, pela simples razão de que ninguém o pode habitar. A segunda consequência é que, sem universal em que se apoie, o cosmopolita pode estar condenado à errância eterna, o maior risco, sendo o menor, mas mais quotidiano, o de se ver obrigado a esbarrar em regras que lhe são adversas ou a tolerar convicções que lhe repugnam.
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Eis o dilema: aquele académico que viaja para outro lado por causa da literatura, e no propósito do estudo dela, deve pretender tornar-se interior apesar de estrangeiro ou, antes, esforçar-se por se manter exterior porque estrangeiro? Qualquer estudo implica legitimidade e reconhecimento, que ou provêm do interior da instituição em que se trabalha ou do exterior dela, ou até de ambos: o reconhecimento decisivo do brasilianista, da importância do seu estudo e da relevância da sua pesquisa, há-de vir do exterior ou de algum interior do Brasil? Ou o factor decisivo estará antes nesse outro interior que é a instituição exterior, não brasileira, que ao brasilianista lhe paga essas viagens e esses estudos? E em nome de quê, de que padrões ou critérios, essa instituição o avalia? Acaso da capacidade de se tornar estrangeiro para não ser estrangeiro no país da literatura que estuda? Outra pertinência da distinção entre “exterior” e “estrangeiro” residiria então em que o “exterior” tem aptidão superior à de “estrangeiro” para referir situações que envolvem instituições, disciplinas ou paradigmas. Trabalhar no exterior de um paradigma pode ser mais perturbador do que trabalhar no exterior de uma disciplina ou de uma instituição; trabalhar no interior de um paradigma pode ser condição necessária para trabalhar no interior de uma disciplina e de uma instituição. Em todo caso, o interior tornou-se demasiado escuro para que se consiga ler nele com nitidez. A impossibilidade do interior bem circunscrito decorre da dissolução da autonomia numa rede de instâncias por definição exteriores, fundações, agências governamentais, outras universidades, editoras, centros de pesquisa, numa rede tendencialmente tão diversificada no mapa como similar nos padrões e critérios de avaliação. Exterior deixou de significar estrangeiro: no mundo universitário, desde logo, o interior não é nacional senão depreciativamente, e o reconhecimento do pesquisador ultrapassa já não apenas a nação, mas as próprias disciplinas. Eis outra forma de dizer que o universal não existe: porque o local se tornou impossível.
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O presente ensaio conclui um percurso de estudos machadianos inaugurado há mais de vinte anos com uma análise de “instinto de nacionalidade”, que o leitor interessado pode encontrar no meu livro A formação do nome. Duas interrogações sobre Machado de Assis (Baptista, 2003, p. 21-111; edição portuguesa de 1991). O artigo de Roberto Schwarz atrás citado, e a que voltarei mais adiante, sendo uma reacção à fortuna crítica de Machado fora do Brasil e ao que ele chama “leitura internacional”, supostamente em competição com a “leitura nacional”, é suficiente para mostrar que se mantêm a actualidade crítica e a energia polémica da análise que propus do ensaio de Machado. 5
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Ora, uma literatura, como a brasileira, que se representa hegemonicamente como construção que circunscreve o interior para que coincida com o nacional, não podia senão ser muitíssimo sensível à diferença entre exterior e estrangeiro. E há-de ser particularmente sensível à presença do estrangeiro no seu interior – e sobretudo à projecção desse interior no exterior indeterminado do “estrangeiro”. O que se deve então legitimamente exigir ao brasilianista? Que estude e divulgue o Brasil de que a literatura brasileira fala ou, antes, estude e divulgue a razão de a literatura falar do Brasil? Que se interesse pela realidade nacional brasileira ou, antes, pelo interesse da literatura brasileira pela realidade nacional brasileira? Que se torne porta-voz de uma literatura entendida como representação do Brasil, no sentido mimético e no diplomático, ou, antes, analise o processo por meio do qual no Brasil se procurou construir uma literatura entendida como representação do Brasil? Proponho designar cosmopolita a perspectiva que estabelece essas distinções e argumenta em favor do segundo termo da alternativa, que preserva a relação com a literatura, enquanto o primeiro a subordina a uma qualquer relação com o Brasil. O propósito cosmopolita leva em conta o desejo de criação de uma literatura a que os brasileiros possam chamar sua, mas postula que tal desejo não se confunde com o que eles ou todos nós chamamos literatura brasileira – nem é o único guia, muito menos o melhor, para a conhecer. O propósito cosmopolita não consiste, portanto, em negar a nacionalidade da literatura brasileira em nome de uma natureza intemporal e transcultural da literatura; tampouco em afirmá-la ou sequer reconhecê-la: consiste, sim, em reconhecer o desejo de nacionalidade, delimitálo historicamente, desnaturalizá-lo e, enfim, identificá-lo como uma das forças da literatura moderna em acção no Brasil, como, aliás, noutras nações. Filiando-se, enfim, na linhagem que o primeiro grande espírito cosmopolita do Brasil, Machado de Assis, inaugurou com o célebre “instinto de nacionalidade”.5
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2. Auerbach perguntava num dos seus últimos ensaios, “Filologia e Weltliteratur” (1952), se é possível algum sentido para Weltliteratur mantendo o termo na visão de Goethe, isto é, relacionando-o tanto com o passado quanto com o futuro e considerando o próprio estado do mundo: O nosso planeta, o domínio da Weltliteratur, está a diminuir e a perder diversidade. No entanto, a Weltliteratur não se refere apenas ao que é genericamente comum e humano: antes considera que a humanidade é o produto das relações frutuosas entre os seus membros. A pressuposição da Weltliteratur é uma felix culpa: a divisão da espécie humana em muitas culturas (Auerbach, 1969, p. 2)
A dificuldade é manter a tarefa da filologia diante do processo de estandardização da vida humana à escala global, que Auerbach detecta e cujo termo pleno, sublinha, seria de um só golpe a realização e a supressão da própria noção de Weltliteratur. Não cabendo aqui sequer tentar resumir o argumento que ocupa a parte central do ensaio, o meu propósito, ao convocá-lo, é citar o desfecho dele, o modo como, sem nenhum paradoxo, acaba a declarar que “a nossa casa filológica é o planeta, já não pode ser a nação” (Auerbach, 1969, p. 17), e mais do que isso, a formular certo programa de urgência: “devemos regressar, em circunstâncias notoriamente diversas, àquilo que a cultura medieval pré-nacional já possuía: a noção de que o espírito não é nacional” (Auerbach, 1969, p. 17). Espírito? Humanidade? O vocabulário não é seguramente de hoje: ou parece hoje muito pouco cosmopolita. O colorido kantiano do meu título, num modo que sequer é propriamente paródico, pode também desnortear, ou causar estranheza pelo desuso: o melhor bem? o bem comum? o bem supremo? E, no entanto, há por aí qualquer coisa de urgentemente actual, que apresento nesta formulação decerto precária, como se se tratasse de um programa político: o propósito cosmopolita consiste em reafirmar, na noção
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moderna de literatura, a concepção visionária daquela felix culpa como abertura dum espaço de hospitalidade incondicional. Não um espaço superior e restrito, para onde alguns poucos afortunados são cooptados, pela Unesco ou pelo sucesso comercial, formando alguma espécie de cânone supranacional ou literatura internacional; não um espaço homogéneo, universal, sem fronteiras nem conflitos, onde o espírito vagueia livre; não um espaço essencial de onde derivem e se deduzam todos os espaços, mais restritos e nada essenciais – mas o espaço que se abstém de limitar e impor condições à entrada e estada do estrangeiro, aquele que não pode deixar de ser reconhecido e não pode deixar de se reconhecer como estrangeiro, e designadamente dele espera a responsabilidade de circunscrever ele próprio a sua incompreensão e a sua ignorância. Nos estudos literários, o propósito cosmopolita define o princípio teórico e político que nos orienta a aproximação a qualquer texto com a ideia de que o que há de nobre e de emancipador na noção de literatura é o que nos anima a pressupor que cada texto foi escrito na previsão do estrangeiro que um dia o virá a ler e estará à altura de o ler precisamente na medida em que for capaz de circunscrever os limites da própria incompreensão sem perder de vista o privilégio de habitar a mesma casa, que é a mesma não porque seja desde sempre e essencialmente a mesma, antes porque a caracteriza a hospitalidade incondicional. O fundamento da hospitalidade não é a natureza humana nem alguma ideia genérica de humanidade, mas uma ideia de literatura definida precisamente pelo propósito cosmopolita: digamos que o ensaio de propósito cosmopolita é o que se aproxima da literatura presumindo que o que a constitui é o propósito cosmopolita! Ou, em termos menos circulares, o que se aproxima da literatura animado da convicção de que o propósito cosmopolita é inerente à noção de literatura – um propósito constitutivo da literatura moderna. Essa concepção da literatura poderia receber outro nome – tradução –, não fosse o traço decisivo do carácter incondicional da hospitalidade. Decerto é quase de tra-
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dução que se trata, mas passando entre os polos extremos que a definem: a tradução visa necessariamente à inteligibilidade sem restos – e por isso a hospitalidade é possível –, mas nunca opera o transporte unívoco de um conteúdo prévio – e por isso a hospitalidade é incondicional. A ideia da literatura como hospitalidade incondicional recusa tanto o universalismo como morada última que apaga todas as línguas, quanto o nacionalismo da língua cioso do núcleo essencial insusceptível de tradução. A literatura é uma linha que passa entre esses dois polos, força que cria unidades além deles e tensões por causa deles: unidades apesar das tensões, tensões não obstante as unidades. E não há razão para que essa ideia não seja válida no quadro da mesma língua, ou do que com tanta facilidade se chama “a mesma língua”. A língua, eis justamente o que separa: porque é a língua que permite reconhecer o estrangeiro como estrangeiro e sobretudo quando fala a mesma língua, ou quando fala a nossa língua. O sonho emancipador aqui seria, então, que a literatura unisse o que a língua separa, que a literatura se constituísse morada de encontro, de cruzamento, de estada e exercício da hospitalidade sem condições. O espírito é o espírito da hospitalidade, o bem comum é o da literatura e da partilha da literatura, e nesse sentido, como se compreende, somos sempre estrangeiros diante de qualquer obra de literatura. A definição de literatura podia, aliás, ser esta: faz de quem dela se aproxima um estrangeiro e pelo mesmo gesto oferece-lhe todas as condições para que se instale à vontade. Como se o esperasse – e a melhor descrição de literatura é essa, em que ela espera e depende do estrangeiro para se constituir –, desde sempre destinando-se ao mundo.
3. Nas relações ou nos primórdios das relações entre a literatura portuguesa e a brasileira, há um exemplo de
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Trata-se de “Futuro literário de Portugal e do Brasil”, originalmente publicado na Revista Universal Lisbonense, em 1947, e retomado nos Opúsculos (Herculano, 1986, p. 199-204). 6
Permito-me remeter o leitor interessado para o comentário deste ensaio de Herculano que apresento em O livro agreste (Baptista, 2005, p. 25 et seq.). 7
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propósito cosmopolita pouco conhecido, o de Alexandre Herculano. Herculano escreveu uma longa carta a D. Pedro II sobre A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães. Datada de 6 de dezembro de 1856, permaneceu inédita, a pedido do próprio Herculano, e surgiria apenas em 1947, pela mão de Alcindo Sodré, no Anuário do Museu Imperial. Hoje pode ler-se no volume da edição crítica dos Opúsculos dedicado aos assuntos de literatura (v. Herculano, 1986, p. 212-221). Anos antes, Herculano publicara um ensaio a propósito dos Primeiros cantos de Gonçalves Dias, que viria a ser incluído, a servir de prólogo, na 2.ª edição dos Cantos.6 Este texto, porém, trata das consequências para a literatura portuguesa do aparecimento da brasileira, mais do que da poesia de Gonçalves Dias: é um ensaio centrado na metáfora do jovem, o Brasil, que se ergue para criar o novo, embaraçando o velho decrépito, Portugal, atolado no passado. Um ensaio escrito por um português – e que o assume expressamente.7 Ora, o primeiro traço que distingue a carta é que Herculano, para dar a opinião sobre o poema que D. Pedro II lhe pedira, define com outra palavra a sua condição relativa à nação brasileira, invocando-a até como fundamento da incredulidade que fere a capacidade crítica: estrangeiro. Escreve Herculano: V. I. M. estranhará talvez que eu comece por uma declaração de incredulidade que prejudica a crítica especial do poema ou pelo menos a subordina a considerações superiores, tornando-se por isso relativa em vez de absoluta. Duvido, e muito, de que nesta nossa época o poema épico seja possível na Europa, e mais ainda que o seja na América. Duvido também de que um estrangeiro possa avaliar sob todos os aspectos uma composição de semelhante natureza (Herculano, 1986, p. 213).
Não é imediatamente perceptível o que faz o “estrangeiro” na análise de Herculano, e a carta merece um estudo demorado que, tanto quanto sei, ainda não teve.
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Limito-me aqui a observações rápidas que me conduzem ao meu ponto. Desde logo, o “estrangeiro” não está onde se esperava. Herculano reputa impossível a epopeia – e sublinha que nenhum dos “sumos poetas contemporâneos” a tentou – em virtude das próprias exigências do género, que se sobrepõem às condições actuais em que o poeta eventualmente o tenta. Claro que o argumento envolve um juízo sobre essas condições que não se confunde com a noção das exigências do género: “a nossa geração não é épica”, razão fundamental por que “a poesia é hoje quase exclusivamente lírica e dramática”. E o Brasil, entretanto, apresenta certa especificidade que Herculano também não negligencia: diz ele que as eras heroicas e as gerações épicas do Brasil seriam as do primitivo Portugal, “se uma raça outrora única, não constituísse hoje duas nacionalidades distintas” (Herculano, 1986, p. 215). Por outro lado, a nacionalidade brasileira não pode encontrar nos índios um substituto para os primitivos portugueses: aqueles [chefes índios] que se conservaram fiéis às tradições da pátria americana não têm identidade nem unidade nacional com os brasileiros de hoje, e os que traíram os interesses da sua gente e a religião dos seus antepassados para se aliarem com os conquistadores, são, poeticamente considerados, uma completa negação da generosidade e do heroísmo da epopeia (Herculano, 1986, p. 215).
Em suma, o que seria adequado à epopeia não é nacional, e o que se tornou nacional é indigno da epopeia. Esta dificuldade, considera-a Herculano insuperável: Duvido que o génio pudesse vencer estas repugnâncias, porque as reputo insuperáveis. O que, porém, sei de certo é que ele não poderia vencer a desarmonia do espírito público. O Brasil é um império novo; mas os brasileiros são apenas europeus na América. Não é, sob todos os aspectos, a sua civilização o mesmo que a nossa? Não se confunde a classe média do Brasil com a classe média da Europa, a um tempo
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ardente nas suas paixões e céptica e fria nas suas opiniões e ideias? Como estabelecer aí uma harmonia entre o poeta épico e o público, que seria impossível aqui? (Herculano, 1986, p. 215)
Sublinhe-se que o “aqui” é a Europa, não apenas Portugal. E sublinhe-se, acima de tudo, que o juízo de Herculano sobre a epopeia não depende de ele ignorar ou recusar a originalidade brasileira, mas justamente de a considerar e estar convicto de que a pode descrever com exactidão no que à epopeia diz respeito. O aspecto decisivo é que, ainda que Herculano defendesse que a epopeia seria possível no Brasil, por causa disto ou daquilo, o próprio exercício do juízo havia de mantê-lo na mesma casa daqueles que escreveriam essa epopeia, ou havia de trazer estes para a casa em que ele os avaliasse – ou seja, nesse juízo, a consideração da originalidade do Brasil não faria de Herculano um estrangeiro. Isto não é o mesmo que dizer que a originalidade do Brasil está de antemão subordinada pela consideração das exigências do género épico: é, antes, o mesmo que dizer que desta não decorre nenhuma barreira que relativize ou desqualifique o juízo como juízo de estrangeiro. Onde se constitui, então, a barreira que define o estrangeiro? Aí deparamos com a surpresa: a barreira é a própria língua. Desde logo na diferença de estilos. Escreve Herculano: Pelo que respeita às formas externas do poema, recai aí a outra dúvida de que no princípio falei a V. I. M. Pode sempre o estrangeiro avaliar bem a frase, as comparações; a verdade descritiva de um poema? Creio que não. Embora a língua seja idêntica entre dois povos; há locuções que num país se tornaram plebeias, antipoéticas, e que noutro são elevadas ou pelo menos toleráveis (Herculano, 1986, p. 218).
Seguem-se exemplos de frases que a um ouvinte português pareceriam “baixas e triviais”, podendo não o ser para um brasileiro: exemplos de como Herculano, nesse
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particular, considera o seu juízo “portanto, incompetente”. Outro aspecto, as comparações: “Das comparações tiradas de entidades privativas da América ainda a crítica da Europa está menos habilitada para ajuizar” (Herculano, 1986, p. 218). A incompetência, porém, é decorrente da estipulação de uma unidade prioritária: “Há, todavia, coisas em que a crítica da Europa e a da América tem de concordar. É acerca dos prosaísmos, das imperfeições de metro, das incorrecções gramaticais” (Herculano, 1986, p. 219). Numa palavra, a avaliação da epopeia defronta-se com a barreira da língua, que, apesar de transnacional, se torna nacional. A língua deixa o estrangeiro à porta: sendo a mesma, é também o que separa e o que pode separar sem deixar marca, quando é a mesma ou quando se presume a mesma. Contudo, Herculano não postula sequer a unidade poética da língua – como não postula nenhum princípio de relativização poética em função da diferença linguística. Justamente a unidade poética do género circunscreve a área de incompetência ao mesmo tempo que a subordina: nem defesa da unidade intemporal e transnacional da língua para efeitos de epopeia, nem condução do reconhecimento da diferença à renúncia a um princípio de avaliação inerente ao próprio género e portanto independente das particularidades locais. É isto, creio, o paradigma do propósito cosmopolita na avaliação literária. Delimitar a barreira, circunscrever a área de incompetência e ponderar o conjunto: a própria definição da crítica podia ser dada nesta tríade, que forma o propósito cosmopolita. Herculano não precisa proceder a uma expedição etnográfica para responder à solicitação de Pedro II: chega-lhe o conhecimento da possibilidade de a mesma palavra não ser a mesma palavra. E não precisa rever a noção de epopeia, já de antemão aberta à possibilidade da diferença local. O que cabe no seu propósito é não deixar que o juízo se torne absoluto quando tem áreas de incompetência, nem fazer alastrar a incompetência à negação do juízo inteiro.
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O propósito cosmopolita é a voluntária subordinação a alguma noção de literatura pela comunidade dos que se reclamam dela: é a aceitação da impossibilidade de nacionalização plena das formas literárias, antigas ou modernas, é o reconhecimento da estabilidade e da transportabilidade das formas diante das modalidades de apropriação, de enraizamento, de particularização. O reconhecimento da diferença local é inerente, por isso, ao propósito cosmopolita, e aliás nem haveria necessidade de propósito cosmopolita sem reconhecimento da diferença. Mais radicalmente, não há literatura moderna sem incompetência declarada do estrangeiro: é nela que se decide a possibilidade de a literatura se erguer acima das condições particulares em que surge. É na incompetência reconhecida mas circunscrita do estrangeiro que a literatura finalmente se cumpre como literatura. E isto é válido ainda quando a literatura se define sobretudo como assunto nacional. O caso particular da Confederação dos Tamoios atesta-o bem. Alexandre Herculano não foi apenas certeiro nas apreciações contidas na carta, mas deixou eloquente exemplo de crítica literária em que o propósito cosmopolita nem sequer é incompatível com a instigação à “nacionalização” da poesia do Brasil, já enfaticamente presente no ensaio sobre Gonçalves Dias. A própria dependência da noção de literatura nacional em que Herculano escreve as suas apreciações do poema de Gonçalves Magalhães comprova que o propósito cosmopolita se caracteriza pela dependência de uma noção de literatura capaz de tornar globalmente partilhável a própria ideia de enraizamento no local nacional. Ferdinand Denis, no seu Resumé, deve ter sido o primeiro a expor uma ideia de literatura brasileira do ponto de vista cosmopolita, quer dizer, subordinada a uma ideia de literatura. Já a repetição de Denis pelo grupo da Niterói inaugurou a ideia de literatura brasileira do ponto de vista brasileiro, quer dizer, subordinada a uma ideia de Brasil. Repegando a antinomia de início, Gonçalves de Magalhães interiorizou Denis, não no sentido superficial de ter
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assimilado a lição do estrangeiro, mas no mais decisivo de ter tornado doméstico o que era cosmopolita, isto é, de ter tornado dependente de uma pátria o que em si mesmo não tinha pátria – uma ideia de literatura. E pôde fazê-lo precisamente porque essa ideia era cosmopolita e se oferecia com a generosidade de quem trabalha para o bem comum, para o ideal partilhável de uma literatura moderna formada pela livre agremiação das particularidades expressas em literaturas nacionais. Num trabalho recente, Paulo Franchetti mostrou como o programa literário de Magalhães depende da ideia de que o Brasil estaria num segundo momento da sua história, aquele em que “tomava consciência da sua especificidade e se constituía plenamente como nação”. Daí que a oposição antilusitana e anticlássica, que definem o romantismo de Magalhães, coincidissem num “gesto de afirmação nacional e política da nova nação” (Franchetti, 2006, p. 115). Apesar da adopção da França como matriz cultural, em nome das ideias de liberdade e de universalidade, os dois postulados básicos de Magalhães, que Franchetti identifica, estruturam claramente uma posição anticosmopolita: o primeiro é o do “instinto oculto”, a força com que a natureza da terra guiaria a transformação completa da literatura em literatura plenamente brasileira; o segundo diz que “os temas, as formas e as técnicas da literatura europeia se não obstruem, ao menos dificultam a expressão do caráter nacional na produção letrada do país”. Franchetti mostra de forma convincente como a articulação desses postulados determinou decisivamente a historiografia e a crítica literária posterior (Franchetti, 2006, p. 121 et seq.). E de facto, desde aí, estruturou-se um dispositivo anticosmopolita de equívocos, a saber: a) a confusão que dissolve toda e qualquer diferenciação literária em “carácter nacional” e a redução de todos os factores de diferenciação a um único, a influência da realidade local; b) a crença em que a representação da realidade local, sendo por virtude dessa influência uma inevitabilidade, determina a literatura consciente ou inconscientemente e de modo distintivo;
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c) a confusão do local com o nacional, que já Machado denunciou, mostrando que querer ostentar certa cor local e querer tornar nacional uma literatura não são projectos necessariamente coincidentes; d) a confusão do projecto de construção de uma literatura nacional, projecto de afirmação política e de natureza prescritiva, quaisquer que sejam as formas com que historicamente se reedita, com a própria nacionalidade da literatura; f) enfim, a crença num processo contínuo e irreversível – “instinto oculto”, “tradição afortunada” ou “formação”, consoante os vocabulários –, em direcção a uma etapa final de nacionalização definida pela harmonia entre literatura e terra, cultura e nação, literatura e sociedade, modernidade artística e modernidade social, etc. O sintoma desse dispositivo de equívocos é a persistente oposição entre o local e o universal, cuja fortuna brasileira decorre do obscurecimento da diferença entre a noção de literatura como projecção subordinada a um ideal cosmopolita de literatura e a noção de literatura como projecto subordinado a um ideal nacional de país construindo-se dotado de literatura “própria”. Nesse preciso ponto, facilita outra confusão, a do propósito cosmopolita com o pendor para o universal. Mas a oposição do local ao universal é sobretudo um instrumento do projecto de circunscrição nacional da literatura. A estipulação do local por oposição ao universal representa sempre o privilégio do local, do que está antes da literatura e que logo transforma o universal em mero repertório de temas e formas: é uma figura da oposição da realidade à literatura e da subordinação da literatura pelas representações naturalizadas da realidade. Daí o efeito decisivo da sua persistência: local e universal, na narrativa da “formação”, tornam-se polos em tensão de um mesmo processo da literatura em direcção ao nacional, o processo pelo qual a nação se revela a si mesma pela sua literatura. Nesse sentido, a oposição do local ao universal sobrevive por meio da oposição do consciente ao inconsciente e do voluntário ao involuntário: aqueles escritores que se distanciam do projecto de nacionalização da lite-
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ratura brasileira ou lhe permanecem indiferentes acabam, tarde ou cedo, por nele ser harmoniosamente integrados, ou como nacionalistas involuntários ou como cultores de nacionalismo literário “mais profundo”. Eis como a oposição entre local e universal se revela instrumento de poder, de domínio de uma doxa interpretativa inimiga da diferença cosmopolita: confundindo o cosmopolita com o universal, dissolve-o num processo que não admite exterior, onde não há efectiva alternativa para o nacional, o mesmo é dizer, onde não há lugar para o estrangeiro.
4. É impossível ignorar que o ideal de entendimento universal inerente ao sonho emancipador da literatura moderna ruiu há muito. Mas como ler Machado sem levar em conta esse ideal, esquecendo-o ou desprezando-o? Também não é possível, não apenas porque a obra machadiana se estruturou e destinou no âmbito definido por esse ideal, projectando-se para um horizonte indeterminado no tempo e no espaço, mas ainda porque é a esse mesmo ideal que a grandeza de Machado remete o leitor cosmopolita, exigindo, porém, a sua reformulação. Daí que Machado de Assis seja o óbvio, quer dizer, o incontornável ponto de crise do paradigma hegemónico de autorrepresentação da literatura brasileira. Desde logo, a ausência conspícua de empenhamento no local desafia a imaginação e acaba por torná-lo prisioneiro inevitável da ideia do “nacional mais profundo” ou do “nacional inconsciente”, ambas destinadas a bloquear a possibilidade de leitura cosmopolita da obra machadiana. Acresce que qualquer dessas ideias acaba por tornar manifesto que o propósito final de uma e outra é subordinar a inteligibilidade e avaliação da obra machadiana à possibilidade de certa comunidade que se designa como brasileira a declarar “inteiramente brasileira”. Mas, de um modo ou de outro, há sempre uma linha de fuga por meio da qual Machado se torna escritor sem pátria.
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Veja-se o exemplo de Antonio Candido. Quando, na Formação da literatura brasileira, escreve que Machado “se embebeu meticulosamente da obra dos predecessores”; que a “sua linha evolutiva mostra o escritor altamente consciente, que compreendeu o que havia de certo, de definitivo, na orientação de Macedo para a descrição de costumes, no realismo sadio e colorido de Manuel Antônio de Almeida, na vocação analítica de José de Alencar”; e quando precisa, logo a seguir, que Machado “pressupõe a existência dos predecessores, e esta é uma das razões da sua grandeza” e “o segredo da sua independência em relação aos contemporâneos europeus, do seu alheamento das modas literárias de Portugal e França” (Candido, 1981, v. 2, p. 117-118), Antonio Candido não está apenas a situar Machado no quadro nacional, limitando-o ao processo da “formação da literatura brasileira”: está a recusar o ponto de vista cosmopolita, precisamente porque estipula que a inteligibilidade e a originalidade de Machado decorrem do modo como ele próprio, “altamente consciente”, se inseriu nesse processo. Nessa descrição, a “formação” de Machado como escritor decorre essencialmente em ambiente doméstico e o estrangeiro não é mencionado senão para sublinhar o alheamento e recusa que o excluem do processo. Já quando fala de Machado nas Universidades da Flórida e do Wisconsin, quase 10 anos depois da Formação, dir-se-ia que o mesmo Antonio Candido se muda para o lado adverso, isto é, o cosmopolita. Depois de dizer que “o que primeiro chama a atenção do crítico na ficção de Machado de Assis é a despreocupação com as modas dominantes e o aparente arcaísmo da técnica”, notando que o escritor “cultivou livremente o elíptico, o incompleto, o fragmentário”, acaba explicando que se tratava de uma forma de manter na segunda metade do século XIX “o tom caprichoso” de Sterne e de criar algum eco do “conte philosophique à maneira de Voltaire” (Candido, 1995, p. 26). Já não se estranhará, depois disso, que as descrições comparativas da página seguinte, em vez dos nomes de
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Alencar ou Macedo, convoquem Kafka, Dostoiévski, Gide, Proust ou Faulkner. O segundo Candido é melhor ou pior do que o primeiro? Dir-se-á que se complementam, que o primeiro valoriza o local, o segundo, o universal, polos necessários de qualquer descrição rigorosa da obra machadiana, etc. A verdade, porém, é que o segundo Candido não tem lugar para o primeiro, e este não admite o outro. Decerto Antonio Candido, crítico inteligente e informado, não teria duvidado de que o seu auditório na Flórida ou no Wisconsin havia de permanecer razoavelmente indiferente se ele insistisse em explicar-lhes que a grandeza de Machado decorre de ter estudado Macedo e superado Alencar: não porque os desconhecesse, mas porque o protagonista dessa explicação não seria nenhum deles, nem sequer Machado, seria a narrativa da “formação da literatura brasileira” – a narrativa que precisamente os constitui estrangeiros diante de Machado. Em vez disso, o que Candido faz não é diluir a originalidade de Machado de Assis tornando-o aceitável ou tolerável pelo estrangeiro ignorante das coisas brasileiras, nem valorizar o universal em detrimento estratégico do local: generosamente, deveríamos interpretar a diferença do segundo ensaio à luz de um princípio de filantropia literária, digamos assim, que consiste em procurar tornar inteligível e apreciável um escritor a quem quer que se interesse por escritores e literatura, ou seja, em fazer que o estrangeiro, diante da sua obra, não depare com nenhuma barreira que torne absoluta a sua condição de estrangeiro. Como quer que seja, no “Esquema”, Candido não apela a nomes familiares, seja Sterne ou Voltaire, mas a uma tradição comum, a do romance europeu e da noção de literatura que representa. É aí que o propósito cosmopolita pode actuar, e por isso é aí que a incompatibilidade entre as duas perspectivas salta inexorável. Para o mesmo fenómeno – a distância de Machado das “modas literárias” do seu tempo –, Candido oferece duas descrições incompatíveis, a da Formação, que o dá consciente dos predecessores e a querer superá-lo, e a do “Esquema”, que o dá a recu-
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perar uma linha do romance europeu que essas “modas” interromperam: a primeira desenha uma linha contínua, a segunda refere uma linha quebrada; a primeira postula uma evolução irreversível, a segunda acredita no resgate do anacrónico; a primeira está claramente circunscrita ao espaço nacional, como se essa linha contínua e irreversível se desenrolasse num compartimento estanque, ao passo que a segunda requer um espaço difuso de trocas e influências, não determinado nacionalmente. E, em cima de tudo, a primeira requer o conhecimento do processo da “formação” como condição da inteligibilidade de Machado, a segunda não só o dispensa como torna Machado um romancista muito mais relevante porque capaz de actuar criticamente sobre a tradição e a actualidade da situação literária europeia. A diferença em nada depende da oposição entre local e universal: em nenhum dos casos Machado é descrito pelo penchant para o universal ou para o local, é antes a mesma característica – o alheamento das “modas literárias” europeias – que num caso se define dotada de conteúdo nacional e no outro desprovida dele. A diferença entre os dois Machados é gerada pela diferença entre duas atitudes diante da situação e da tradição literária europeia, e na verdade expressão eloquente da diferença entre dois Candidos: o Antonio Candido da Formação é o crítico comprometido com a nação, empenhado em entregar aos brasileiros um Machado que os represente, por numerosos e sofisticados que sejam os mediadores dessa representação, enquanto o Antonio Candido do “Esquema” é o crítico comprometido com a literatura, na busca de um Machado que o estrangeiro possa chamar seu sem que o brasileiro se sinta espoliado.
5. Que o primeiro Candido não pode desenvolver-se sem erradicar o segundo, e que o segundo apenas emerge na condição de destruir pressupostos básicos do paradigma crí-
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tico do primeiro – eis o que curiosamente se comprova com a peça final do edifício machadiano de Roberto Schwarz, o ensaio “Leituras em competição”: os dois géneros que Schwarz delimita, a “leitura nacional” e a “leitura internacional”, encontram afinal no próprio Antonio Candido exemplar praticante, senão mesmo o primeiro. De facto, para Schwarz, a “crítica internacional” define-se por ler Machado sem considerar a relação com a nação brasileira, mais propriamente, “crítica internacional” é toda a que se não ocupa de esclarecer a relação entre o carácter inconfundível da ficção machadiana e o carácter inconfundível da nação brasileira. Em contrapartida, “crítica nacional” não é a que se faz no Brasil, ainda menos a que é feita por brasileiros, mas a que tem nessa relação com a nação o centro de gravidade dos seus esforços, e que aliás Schwarz descreve ainda segundo o modelo da linha contínua, em progresso irreversível na direcção de uma meta, que se presume tenha sido atingida pelo desenhador da linha, seu principal praticante e intérprete, o mesmo Schwarz. Nenhuma surpresa, aliás. Isso basta para perceber por que motivo a “leitura nacional” é sempre referida no singular, ao passo que se sugere que a internacional poderia receber a designação alternativa de “várias não-nacionais” (Schwarz, 2006, p. 64). O ensaio é, na verdade, uma reacção a certa resenha publicada em Nova York e que, sem agressividade mas com assinalável contundência, danifica o sentido global do trabalho de Schwarz. Trata-se de “Master among the ruins”, de Michael Wood, professor de Princeton, que a New York Review of Books publicou por ocasião da publicação de novas traduções de Machado para inglês. Schwarz refere-se expressamente ao artigo, classifica-o de “resenha abrangente e consagradora do romance machadiano”, sublinha que apresenta questões difíceis e incontornáveis que definem a cena do debate entre a “leitura nacional” e a “leitura internacional”, e refere, numa proposição intercalada, quase despercebida, que Michael Wood “leva em conta a crítica brasileira”. Ora, sendo certo que a
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V. Wood, 2002. As novas traduções, publicadas pela Oxford University Press, incluem Memórias póstumas de Brás Cubas (1997) e Quincas Borba (1998), ambos por Gregory Rabassa, Dom Casmurro (1997), por John Gledson, e Esaú e Jacó (2000), por Elizabeth Powe. Outro livro incluído no rol dos resenhados é Machado de Assis: reflections on a Brazilian master writer (1999), organizado por Richard Graham, e que inclui contribuições de, entre outros, John Gledson e João Adolfo Hansen. Mas o ensaio efectivamente avaliado pela resenha é o de Schwarz. 8
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resenha dedica boa parte do seu espaço ao conjunto dos romances machadianos da segunda fase, não deixa de ser também uma resenha crítica da tradução inglesa do livro de Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo: e é essa a forma, porque não se encontra outra, de “levar em conta a crítica brasileira”.8 Para dizer logo tudo, aquilo que Schwarz apresenta sob a égide da distinção entre “leitura nacional” e “leitura internacional” são elaborações em resposta a observações críticas que Michael Wood coloca ao trabalho crítico de Roberto Schwarz, mais precisamente uma restrição fundamental, como já veremos. Por que então graduá-las em interpelação crítica da “leitura nacional”? Claro, já o deixei dito atrás, Schwarz considera-se o terminus ad quem de uma linha de leitura que, lenta mas progressivamente, devolveu o verdadeiro Machado ao Brasil, resgatando-o de décadas de fortuna crítica irrelevante. Mas há mais em jogo: na exacta medida em que a restrição de Wood não é periférica, nem acessória, mas fundamental, Schwarz não pode reparar o dano causado senão radicalizando a noção de “leitura nacional” ao ponto de fazer dela uma barreira preservativa contra o estrangeiro. Aí se confirma, então, e em pleno, como a ideia cosmopolita, indo além da oposição entre universal e local, é a única à altura da exigência de liberdade e de inteligência que a obra de Machado coloca aos leitores. Para o compreender, retenhamos a passagem em que Schwarz se refere à resenha: A certa altura do seu ensaio, Wood, que leva em conta a crítica brasileira, propõe uma dissociação sutil. As relações com a vida local podem existir, tais como apontadas, sem entretanto esclarecer a ‘maestria e modernidade’ do escritor. Ou, noutro passo: seria preciso interessar-se pela realidade brasileira para apreciar a qualidade da ficção machadiana? Ou ainda, a peculiaridade de uma relação de classe, mesmo que fascinante para o historiador, não será ‘um tópico demasiado monótono para dar conta de uma obra-prima?’ (Schwarz, 2006, p. 64).
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Não é uma paráfrase inteiramente falsa; mas também não é inteiramente fiel à resenha. Com efeito, essas observações e perguntas encontram-se no texto de Wood, mas são formuladas na dependência dessa consideração crítica, que Schwarz oblitera: “What Schwarz´s book doesn’t tell us is why the novel [Memórias póstumas de Brás Cubas] is so funny as well as so bleak.” A observação, de resto inteiramente certeira, completa-se com esta outra, logo a seguir: “Schwarz himself is clearly alert to the fun, and writes repeatedly of the work’s comical and farcical effects. But his thesis is a little grim and unrelieved, even when the subject is not slavery” (Wood, 2002). E é depois disso que Michael Wood formula as interrogações que Schwarz cita e parafraseia. O que se perde na paráfrase? Decerto a noção de que Wood pressente um crítico severo e carrancudo, que toca o cómico para o dissolver numa tese monótona. Seria interessante, mas ainda assim pouco relevante. Perde-se sobretudo a direcção do comentário de Wood, o conteúdo dela e a especificidade da pergunta implícita na observação crítica, e que seria, já agora parafraseando Brás Cubas: por que cómico, se sombrio, por que sombrio, se cómico? Ora, não se trata esta de uma pergunta qualquer, e é a sua colocação diante da obra de Machado e diante do ensaio de Schwarz, ou melhor, no contexto da resenha de confronto do ensaio de Schwarz com a obra de Machado, que lhe dá a importância decisiva que obrigou à reacção de Roberto Schwarz. Em primeiro lugar, ecoa nessa pergunta a questão de Brás Cubas perante o próprio livro: é a questão das rabugens de pessimismo e da possibilidade de a partir delas se distinguir a forma livre tal como praticada pelo autor defunto. Além disso, ecoa as palavras de Machado no prólogo da 4.ª edição, quando, respondendo a Capristano de Abreu e Macedo Soares, reitera Brás Cubas: “O que faz do meu Brás Cubas um autor particular é o que ele chama ‘rabugens de pessimismo’. Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir dos seus modelos.” O passo é muito conhe-
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Permito-me remeter o leitor interessado para a análise deste prólogo que levo a cabo em Autobibliografias (Baptista, 2003, p. 331-337). 9
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cido e, aliás, crucial para entender a relação de Machado com a figura de Brás Cubas,9 mas é, sobretudo, para o que agora nos interessa, o lugar primordial, digamos assim, onde se decide a originalidade das Memórias póstumas de Brás Cubas: e justamente na ligação, inusitada, entre a forma livre e a filosofia. Hoje, pode dizer-se que não há leitor competente que não saia da leitura colocando essa pergunta, e a colocação provavelmente decide a competência de qualquer leitor: por que cómico, se sombrio, por que sombrio, se cómico? Em segundo lugar, não se trata apenas de uma questão importante a que o livro de Schwarz não responde: é uma questão que o livro de Schwarz não consegue impedir que ressurja. Dir-se-ia que Brás Cubas e Machado, cansados de tanta apropriação historicista e sociologizante, galgaram o século e foram impelir um espírito americano desocupado a reformular a pergunta de sempre: como que a usá-lo para nos trazer a todos de volta ao decisivo. Se levarmos a sério a narrativa de Schwarz da “leitura nacional”, desde a recusa do “clássico nacional anódino” à deslocação do centro para “o processamento literário da realidade imediata”; se considerarmos que a meta intermédia desse processo em curso é descrita como etapa em que “a composição, a cadência, e a textura do romance machadiano foram vistas como formalização artística de aspectos peculiares à ex-colônia”; se, enfim, retivermos a conclusão de que “passo a passo, o romancista foi transformado de fenómeno solitário e inexplicável em continuador crítico e coroamento da tradição literária local”, em “idealizador de formas sob medida, capazes de dar figura inteligente aos descompassos históricos da sociedade brasileira” – então, a reiteração da questão do cómico só pode significar que, ao menos para o crítico americano, todo esse processo é inteiramente irrelevante: não lhe resolve o problema da originalidade tal como o recebe da leitura do romance e tampouco o substitui por outro. A resenha, de resto, no tom de generosidade intelectual e até de concordância complacente que assume, redunda em dizer: “Sim, sim, a escravidão, as elites, pois, muito in-
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teressante, mas afinal, diga-me, porque cómico se sombrio, porque sombrio se cómico?” Ora, essa narrativa da evolução da crítica a que Schwarz procede não tinha ainda alcançado essa forma sintética e expressiva de narrativa teleológica. Dava-se dispersa, aqui e ali, em passagens particulares, entrevistas ou resenhas, sobretudo sem a intenção delineadora de um processo, contínuo, homogéneo e irreversível que Schwarz agora definitivamente lhe imprimiu. Não era, pois, a essa narrativa que Wood colocava restrições; dir-se-ia, até, lendo-o, que nem tem ideia de que tal coisa pudesse ser inventada. Mas a consequência não podia deixar de ser precisamente essa para quem, como Schwarz, trabalha dentro de um paradigma que se define a partir dessa narrativa: ser declarado desnecessário, irrelevante, além de deprimente e monótono, a bem dizer despiciendo. Por outras palavras, o procedimento de Schwarz consiste em formar e radicalizar a narrativa que percebe posta em causa por uma resenha que apenas implicava um livro... Por quê? A razão é óbvia: para armar a defesa. Produzir a verdadeira e exacta história da crítica machadiana, também chamada “leitura nacional”, é o principal meio de defesa contra a crítica que a põe em causa: é o meio de mostrar ao elemento hostil a dimensão e a força daquilo em que está a tocar. Não há nenhuma inocência na precisão com que Schwarz sublinha que Wood não é “especialista em Machado, nem brasilianista, mas um crítico e comparatista às voltas com a latitude do presente”: é o mesmo que dizer que esse crítico é alguém de fora e que está por fora, estrangeiro que permanece duplamente no exterior: tocando num livro, fazendo o reparo de que não responde à questão do cómico sombrio, o crítico estranho toca numa tradição, num processo intelectual demorado – num país. Talvez sem se aperceber disso, e então o crítico severo e carrancudo sai do recolhimento e explica, e brandamente repreendendo-o, assim se defende. Mas a defesa tem a ambiguidade própria dos gestos em pleno desastre. Justamente a necessidade de a armar
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Veja-se o modo complacente e um tanto defensivo como Michael Wood reagiu no artigo “Entre Paris e Itaguaí” (Wood, 2009), propondo uma espécie de solução de compromisso em que o “leitor internacional” pudesse tornar-se o mais nacional possível e depois “proveitosamente voltar para casa e comparar”, e o “leitor nacional” tivesse um “toque de comparação extranacional” (Wood, 2009, p. 83). Esse compromisso redunda em “coexistência pacífica”, no sentido diplomático do termo: cada um no seu território, ocupando-o e governando-o legitimamente, sem prejuízo de aprenderem ou receberem alguma coisa um do outro. Essa perspectiva, ao cabo, recusa declarar que a posição de Roberto Schwarz é coerentemente incompatível com qualquer “leitura internacional” de Machado. 10
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revela a vulnerabilidade da arma. Na medida em que se trata de impor uma barreira que deixa o estrangeiro à porta, porque incapaz de entender tudo o que está em causa, há alguma eficácia argumentativa10 e até política: sempre se deu mais um passo para delimitar o “nosso” por oposição ao alheio, para barrar o acesso do estrangeiro ao “nosso”. Mas precariamente, porque a própria condição em que a defesa é armada e usada decorre já num cenário exterior ao nacional e em que o nacional como valor próprio não tem sentido. Daí a relevância de o estrangeiro não ser qualquer, mas americano, e americano de Princeton. Não apenas a contundência da restrição que formula é inexorável, criando por si só um estado de crise em todo o edifício da “leitura nacional”: esse estrangeiro representa um poder que suplanta as narrativas teleológicas para consumo doméstico. Machado foi mais uma vez traduzido para inglês, a sua fortuna no mundo de língua inglesa pode aumentar – o que implica inevitavelmente a desgraça da “leitura nacional”, se a “leitura nacional” se definir, como Schwarz a define, pela restrição das possibilidades da “internacional”. A defesa aberta da superioridade da “leitura nacional” é o melhor testemunho da incompatibilidade das interpretações centradas no problema nacional com a noção moderna de literatura e, em particular, com a dimensão emancipadora e a liberdade intelectual que lhe são inerentes. A precisão de que o “nacional” não tem de coincidir com o estrangeiro, porque “a cor do passaporte e o local de residência dos críticos não são determinantes”, denuncia o carácter profundamente anticosmopolita e discriminatório da distinção: o estrangeiro que se integra no nacional é tão-só o que se sujeita às regras que definem o nacional. Não há lugar, nessa distinção, para o estrangeiro que se interessa por Machado mas não se interessa pelo Brasil. Essa condição é inconcebível para Schwarz. O estrangeiro que se integrou na “leitura nacional” representa o êxito do paradigma nacional, a força e capacidade de atrair os outros ao espaço doméstico e principalmente representa
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uma promessa de viabilidade de domínio sobre todos os que se interessam e venham a interessar-se por Machado. A “leitura nacional” não é hospitaleira, ou é hospitaleira com muitíssimas condições: afinal, apenas aceita aqueles que derem garantias sólidas de não perturbarem a segurança interna. O estranho estrangeiro, o inassimilável, do exterior ou do interior, representa a total impossibilidade de governar os interesses, as paixões, os procedimentos e as razões daqueles que se dedicam à leitura, ao ensino e à divulgação da obra machadiana: não tanto aqueles que ameaçam a nacionalidade de Machado, mas aqueles que exemplificam que essa ameaça é não só inerente à obra machadiana como é por ela procurada desde o início. Daí que o propósito cosmopolita seja aquele que, não obstante, não abdica desse governo, ou da ideia de certo governo: mas presume-o no texto mesmo de Machado. Pressupõe o governo do texto como promessa de inteligibilidade e prazer que o texto dirige à inteligência e à paixão do estrangeiro. A questão do cómico sombrio, como a questão da epopeia para Herculano, são exemplos disso. De um modo ou de outro, há um século ou hoje, no Rio ou em Nova York, alguma força requer dos leitores a formulação da mesma pergunta, a que ecoa o espaço primordial da originalidade das Memórias póstumas: por que cómico, se sombrio, por que sombrio, se cómico? Sem ignorar o espaço da sua incompetência, a competência do leitor cosmopolita reside na capacidade de perceber a relevância e a urgência dessa pergunta e fazer apelo à hospitalidade incondicional.
Referências AUERBACH, Eric. Philology and Weltliteratur. The Centennial Review, East Lensing, v. 13, n. 1, winter 1969. Transl. by Mary and Edward Said. BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias. Campinas: Unicamp, 2003. _____. O livro agreste. Campinas: Unicamp, 2005.
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CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. _____. Esquema de Machado de Assis. In: _____. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995. FRANCHETTI, Paulo. Gonçalves de Magalhães e o Romantismo no Brasil. Revista de Letras, São José do Rio Preto, v. 46, n. 2, dez. 2006. HERCULANO, Alexandre Herculano, Opúsculos. V. Lisboa: Editorial Presença, 1986. Edição crítica. Organização, introdução e notas de Jorge Custódio e José Manuel Garcia. PRATA, Mário. Schifaizfavoire – Dicionário de português. São Paulo: Globo, 1993. Disponível em: <http://www.marioprataonline.com. br/obra/literatura/adulto/dicionario/framegranda_a.htm>. SCHWARZ, Roberto. Leituras em competição. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 75, jul. 2006. WOOD, Michael. Master among the ruins. The New York Review of Books, New York, 18/07/2002. _____. Entre Paris e Itaguaí. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 83, mar. 2009.
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O ameríndio como personagem do outro na literatura brasileira contemporânea: órfãos do eldorado e nove noites Rita Olivieri-Godet* resumo: Este trabalho propõe-se a examinar a representação do
ameríndio e a relação entre identidade e alteridade que lhe é consubstancial a partir da leitura de dois romances contemporâneos brasileiros: Orfãos do Eldorado (2008), de como instância de alteridade, em relação a um grupo de referência que se inscreve no modelo da sociedade ocidental, questionando o lugar que ele ocupa no espaço nacional. A análise desses textos romanescos visa a discutir os elementos que fundamentam a figuração atual do ameríndio na literatura brasileira. palavras-chave:
alteridade, ameríndio, literatura brasileira
contemporânea. abstract:
This work aims at the exploration of such representation, analyzing the relation between identity and alterity which is built-in, in two contemporary brazilian novels: Orfãos do Eldorado (2008) written by Milton Hatoum and Nove Noites (2001) by Bernardo Carvalho. These two stories choose the Amerindian as a subject of alterity, in relation with a reference group which belongs to the occidental society model, scrutinizing the position that it occupies in the national space. The analysis of these novels will discuss some elements which form the basis of contemporary figurations of the Amerindian in the Brazilian literature. keywords:
alterity, amerindian, contemporary Brazilian lit-
terature. Je crois que l’imaginaire a autant de réalité que le matériel Georges Duby et Guy Landreau, Dialogues Université Rennes 2, França. *
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L’Autre n’est pas un objet vide et indéterminé, prêt à s’assujettir au regard et au traitement scientifique de l’observateur. Il s’articule sur ses propres déterminations et s’accompagne toujours de ce qu’on pourrait appeler ses attributs. Francis Affergan, Critiques anthropologiques
A produção literária contemporânea, gerada num contexto multiétnico, plurilinguístico e multicultural de nossas sociedades urbanas atuais, inaugura novas linhas de força temáticas e formais. Meus trabalhos mais recentes refletem sobre uma “poética da alteridade” como uma das modalidades da ficção contemporânea brasileira, ainda que esta vertente não se constitua numa exclusividade nacional (Godet, 2007). Utilizo o termo “poética” no sentido que lhe atribui Linda Hutcheon: uma estrutura teórica aberta, em mutação, que nos ajuda a organizar nosso pensamento crítico (Hutcheon, 1991, p. 32). Não se trata de procurar um invariante abstrato, uma regra ou uma lei, mas antes de refletir sobre signos formais, temáticos e estéticos, comuns a um conjunto de textos que participam da prática literária contemporânea e que tendem a exacerbar a confrontação com a alteridade. Os mecanismos especiais que eles acionam para dizer nosso tempo induzem a uma espécie de arqueologia das culturas e da linguagem, abrindo-se a uma prática metadiscursiva que lhes permite fazer interagir criação, crítica literária e teoria da cultura. Assim, as narrativas que se inserem nessa poética da alteridade procuram alargar o imaginário nacional para além de suas fronteiras, explorando uma geografia imaginária da diferença cultural. E, quando se restringem ao espaço nacional, o fazem para questionar o lugar que nele ocupa o “estrangeiro de dentro”, como é o caso da representação do índio como instância de alteridade.1 Na dialética do “selvagem” e do “civilizado” que atravessa o processo de construção das identidades plurais e problemáticas das Américas, a representação do ameríndio
A esse respeito, ver a obra de Janet M. Paterson (Paterson, 2004). 1
O ameríndio como personagem do Outro na literatura...
Sobre o assunto, ver a excelente introdução de Jean Morency à sua obra Le mythe américain dans les fictions d’Amérique (Morency, 1994). 2
Num artigo ainda inédito, “La poétique de l’altérité et la représentation de l’Amérindien dans la fiction des Amériques”, examino a questão numa perspectiva comparatista que inclui romances quebequenses e argentinos. 3
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ocupa um lugar central. Este trabalho pretende explorar essa representação e a relação entre identidade e alteridade que lhe é consubstancial a partir da leitura de dois romances contemporâneos brasileiros: Órfãos do Eldorado (2008), de Milton Hatoum, e Nove noites (2001), de Bernardo Carvalho. A representação das relações identidade/alteridade a partir da escolha do ameríndio como personagem do Outro tem a ver com a experiência do espaço e a temática da errância. Esses elementos constitutivos dos textos fundadores das literaturas americanas, que a produção contemporânea não cessa de revisitar, autorizam certos críticos a postular a existência de um cenário mítico americano, baseado no mito da renovação, que se articula sobre valores antitéticos entre espírito europeu e mundo selvagem americano.2 O questionamento da figuração do ameríndio como “estranho estrangeiro de dentro” ajuda-nos a compreender o lugar que as sociedades urbanas modernas reservam a esses povos, no contexto atual de nossas sociedades, no qual imaginários “arcaicos” coexistem com imaginários planetários. Essas questões atravessam a produção literária recente no Brasil e nas Américas.3
Orfãos do Eldorado: a alteridade ameríndia entre mito e história A obra de Milton Hatoum interroga as formas de interagir com o outro que conduzem a processos de hibridismo, cruzando experiência vivida e memória, sem, no entanto, escamotear seus aspectos traumáticos. Seus narradores investigam as construções identitárias do sujeito e da comunidade a partir do lugar fronteiriço que ocupam entre familiaridade e estranhamento, atravessados por imaginários culturais diversos. No entanto, seria redutor se ater às questões de fronteiras culturais que os romances de Hatoum levantam sem considerar a relação com a experiência íntima da alteridade que elas implicam,
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praticando a passagem da etnicidade ao estranhamento, permitindo assim o alargamento a uma perspectiva subjetiva. Essa estratégia confere uma dimensão universal à obra do autor amazonense e possibilita explorar as várias facetas de uma região emblemática, sem cair na armadilha de um regionalismo redutor. “Em Manaus ainda hoje se encontram, de uma forma muito mais ostensiva, os restos da sociedade nativa entre ‘as roupagens civilizadoras’”, escreve Hatoum, comentando cartas de Euclides da Cunha nas quais se refere a essa cidade (Hatoum, 2000). Cidade compósita, híbrida, construída a partir de múltiplas interações culturais entre as quais se destacam elementos da problemática coabitação entre a cultura tapuia e a modernidade transplantada, tematizada no quarto romance do autor, recentemente publicado. Em Orfãos do Eldorado (2008), Milton Hatoum continua a explorar as relações interculturais, dando destaque para a figura do ameríndio como instância da alteridade. Desde o início de sua produção, o imaginário ameríndio sempre fez parte do universo romanesco do escritor. Presença constante, mas discreta, sobretudo nos seus dois primeiros romances, Relato de um certo Oriente (1989) e Dois irmãos (2000), que colocam em cena o diálogo entre o mundo amazônico e a imigração libanesa, sondando principalmente o lugar fronteiriço dos narradores, situado entre dois mundos: a memória do passado herdado da família, marcado por referentes culturais libaneses, e o presente do país natal. A partir de Cinzas do norte (2005), os personagens pobres e explorados dos ameríndios se tornam mais visíveis, circulando entre os espaços da cidade e da floresta, e terminam por ocupar um lugar cada vez mais central no universo fictício do autor. Com a publicação de Orfãos do Eldorado, o autor aproxima o mito amazônico da Cidade Encantada do mito do Eldorado para interrogar o diálogo entre as culturas ameríndia e ocidental, examinando os efeitos de um projeto de modernidade, sustentado pelas elites, no seio da sociedade amazonense. A narrativa segue a trilha das
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anteriores, ao escolher se dedicar às complexas interações culturais pelo viés do drama íntimo de um narrador, Arminto Cordovil, que entrelaça memória pessoal e coletiva, história e mito, na busca de si mesmo e do sentido da sua trajetória existencial. Assim, o relato de sua paixão por Dinaura e a reconstrução do passado de sua família têm como pano de fundo a história local (a guerra dos Cabanos) e mundial (as duas Grandes Guerras), cruzando história do indivíduo e da coletividade. Em Órfãos do Eldorado, o processo de construção identitária do narrador-personagem se realiza por meio do confronto com a alteridade paterna e da atração pela alteridade ameríndia. Entre alteridade rejeitada e alteridade desejada, a narrativa constrói as complexas relações de Arminto com o espaço, seja ele familiar, urbano ou natural. Revisitando o percurso da infância à idade adulta, durante o qual Arminto transita por um território cultural ambivalente, a narrativa encena uma construção identitária sofrida, uma busca inútil de um lugar habitável (Harel, 2005) por um sujeito atravessado por imaginários diversos. O lugar fronteiriço ocupado por Arminto permite explorar as relações de resistência ou de abertura ao Outro, examinando o sentimento de pertença de um sujeito desestabilizado. Orfãos do Eldorado questiona o lugar da cultura ameríndia no seio da sociedade brasileira a partir da experiência amazonense: fenômenos de imbricação mas também de depauperação culturais; impregnação, trocas, mas do mesmo modo estiolamento, aculturação. Figuração que interroga as relações interculturais, levando em consideração tanto os processos de aculturação resultantes de políticas colonialistas quanto os cruzamentos culturais que possibilitam o renascimento de tradições em outros contextos. Da mesma forma que o romance se afasta de uma representação idealizada do processo de mestiçagem cultural, sublinhando a complexidade das trocas entre culturas diferentes e evocando a história violenta de seus ganhos e perdas, ele recusa-se a idealizar a relação com a alteridade ameríndia.
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A narrativa de Hatoum inspira-se no mito ameríndio da Cidade Encantada para tecer os fios entre mito, história e memória, questionando o processo de transmissão da tradição e da autodeterminação a partir de dois planos: o individual (que diz respeito à vida do narrador e da relação com seu pai) e o coletivo (que trata das marcas da presença da comunidade ameríndia e de sua relação com a sociedade amazonense). Memória de uma vida, a do narrador-personagem Arminto Cordovil. Este conta sua história a um interlocutor cuja identidade só é revelada no final, num posfácio no qual a voz autoral dá a conhecer sua fonte: o que lemos é uma história que lhe foi contada pelo seu avô. Mais uma vez, trata-se de uma questão de herança, desta feita, a que diz respeito à própria narrativa. Lugar de troca por excelência, convite à viagem, o discurso literário reinventa mito, história e memória. A intriga romanesca está centrada na crônica da vida do narrador-personagem, Arminto Cordovil, que não conheceu sua mãe, morta ao dá-lo à luz. Arminto tem a impressão de que seu pai o culpabiliza por essa morte. As relações entre pai e filho são frias. O menino cresce rejeitando todo tipo de identificação com o universo do pai, rico proprietário de cargueiros que transportavam mercadorias no rio Amazonas, entre os quais o Eldorado. Amamentado por uma índia tapuia, ele foi criado por uma outra índia, Florita, empregada que faz todo tipo de serviço, à qual ele é muito ligado e que o iniciará à cultura ameríndia e à vida sexual. Florita é uma tradutora, no sentido amplo do termo. Desempenha um papel de mediadora, criando pontes entre a floresta e a cidade. Ela introduz Arminto no universo ameríndio, aproxima-o das crianças indígenas da aldeia situada nas cercanias da cidade, traduz para ele os mitos e as lendas contadas pelos índios. Florita interpreta seus sonhos e desejos, abrindo-lhe as portas à sensibilidade ameríndia. Mas é por Dinaura que ele se apaixona loucamente, uma das moças pobres acolhidas pelo orfanato da cidade, de origem e destino misteriosos: índia ou mestiça,
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Apresentação do romance pela editora (orelha do livro). Ver também p. 99. 4
“Mitos que fazem parte da cultura indo-européia, mas também da ameríndia e de muitas outras. Porque mitos, assim como culturas, viajam e estão entrelaçados. Pertencem à História e à memória coletiva” (HATOUM, 2008, p. 106). 5
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ela pode ser sua madrasta ou sua irmã, o leitor não o saberá jamais. Dinaura, leitora de romances e igualmente sensível ao mito indígena da Cidade Encantada, desaparece pouco tempo depois da morte de Amando, pai de Arminto. Este último, obcecado pelo desejo por essa “mulher encantada”, que depois do seu desaparecimento se transformou em lenda para os habitantes da cidade, não cessa de ter visões e sonhar com ela. Arminto sonha com a mulher da mesma forma que a população pobre da cidade sonha com a Cidade Encantada, “uma cidade que brilhava de tanto ouro e luz” (Hatoum, 2008, p. 64). O Eldorado naufraga, Arminto gasta a fortuna herdada do pai e vende todas as suas propriedades: a casa de Manaus, a mansão branca de Vila Bela, a fazenda Boa Vida, que teve as plantações de cacau destruídas pelas pragas (Hatoum, 2008, p. 67). A crônica da decrepitude moral de Arminto e da decadência de uma família é também a da Amazônia, região que alterna períodos de fausto e de declínio. Mas o mito indígena da Cidade Encantada é atemporal e persiste, confundindo-se com o mito do Eldorado: “Houve tempo em que Manaus, ou Manoa, era sinônimo de Eldorado, a cidade prodigiosa que atiçava os sonhos febris dos navegantes e conquistadores europeus ao mesmo tempo que se furtava a todo esforço de localização”.4 Mitos e culturas viajam e se entrecruzam.5 Contrastando com a miséria que assola a cidade real, a utopia de um lugar ideal persiste no imaginário amazônico: A Cidade Encantada era uma lenda antiga, a mesma que eu tinha escutado na infância. Surgia na mente de quase todo mundo, como se a felicidade e a justiça estivessem escondidas num lugar encantado. Ulisses Tupi queria que eu conversasse com um pajé: o espírito dele podia ir até o fundo das águas para quebrar o encanto e trazer Dinaura para o nosso mundo. Sugeriu que eu fosse atrás de dom Antelmo, o grande curandeiro xamã de Maués. Ele conhecia os segredos do fundo do rio e podia conversar com Uiara, chefes de todos os encantados que viviam na cidade submersa (Hatoum, 2008, p. 64).
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Uiara, mãe-d’água, sereia, relatos e versões de mitos errantes que se misturam e que constituem o imbricado tecido narrativo do romance, num intenso trabalho intertextual que traz à tona a memória literária. Se o romance glosa, alimentando-se assim de fontes populares que fazem parte da memória coletiva, ele dialoga igualmente com a tradição literária que recria esses mitos (Mário de Andrade, José de Alencar, Homero). Escrito em palimpsesto, o romance projeta a errância de mitos e de textos, do poema homérico aos de Konstantinos Kaváfis (além de “A cidade”, citado na epígrafe, existe um diálogo implícito com “Itaca” que, em oposição ao anterior, é um convite à viagem, à deambulação), passando pela figura descentrada de um certo cavaleiro que percorre as estradas da Mancha em busca de sua Dulcineia. Figurações da errância física e mental que o romance acolhe, criando analogias com o próprio percurso do narrador-personagem. Um exemplo marcante da escrita em palimpsesto do romance é o reaproveitamento do poema de Konstantinos Kaváfis “A cidade” (1910), que lhe serve de epígrafe. Retomado pelo texto como “o poema grego” que Estiliano está traduzindo, este poema desencantado está em consonância com a atmosfera desoladora que o romance instaura. Poema que recusa todo tipo de promessa de um outro lugar possível, que é a negação mesmo de uma certa ideia da literatura como espaço liberador e de refúgio: “Não encontrarás novas terras, nem outros mares”. Não há portanto, do ponto de vista do texto poético que paira sobre o romance, nenhuma possibilidade de viagem, nenhum “ailleurs”, nenhuma esperança: “Sempre chegarás a esta cidade. Não esperes ir a outro lugar,/ Não há barco nem caminho para ti” (Kaváfis apud Hatoum, 2008, p. 7). Por meio da combinação de elementos heteróclitos na sua composição, que se alimenta tanto de fontes populares quanto da tradição literária, a narrativa romanesca gera uma tensão entre a voz individual e a voz coletiva: discurso da utopia e contradiscurso, sonho e pesadelo, versões
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“O escritor puxava conversa com todo mundo: índios, caboclos, artesãos e compositores de toadas. E não se cansava de anotar o nome de plantas e bichos. Comia tudo, até piranha frita” (Hatoum, 2008, p. 86). 6
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de mitos, traduções “traidoras”, articulação de diferentes práticas discursivas, de diferentes visões de mundo. Na trilha de Mário de Andrade, autor que o romance homenageia fazendo alusão à célebre viagem do modernista à Amazônia,6 Hatoum fagocita e transforma elementos diversos, fazendo-os coexistir no espaço do texto, espaço de representações memoriais. No entanto, o narrador conduz o fio do discurso e é por meio do seu olhar desencantado que o leitor descobre o universo amazônico. Sua narrativa fala de um desejo que não pode ser satisfeito, narrativa de busca e de perda, narrativa de uma impossível construção de plenitude identitária. Arminto é um dos numerosos órfãos do Eldorado aos quais o título do romance faz alusão. Ele recusa a identificação à sua família, que representa o projeto de modernização do país baseado numa política de colonização (massacre e aculturação dos índios), seguindo o modelo do capitalismo ocidental. O naufrágio do navio Eldorado constitui-se num dos símbolos eloquentes do fracasso dessa política. Arminto encontra-se impossibilitado de restabelecer os laços com o passado que povoou o imaginário de sua infância; por outro lado, sente dificuldade em encontrar seu lugar num mundo que está desaparecendo, no qual a realidade não cessa de desmentir as promessas de felicidade. Quando passamos do mito à história, da miragem à matéria do real, a visão de um território faustuoso e cheio de promessas de felicidade transforma-se em ruínas, em processo de plena degenerescência, marcado pelo desregramento econômico e moral, pela violência, pelas doenças. O tempo presente é o do sonho que se transforma rapidamente em pesadelo, no qual a história destrói o mito, tempo que deixa transparecer os sinais de enfraquecimento da cultura ameríndia: A sala parecia um museu pobre e improvisado. No chão, peças de cerâmica, máscaras de rituais e cacos de urnas funerárias de tribos indígenas que já não existiam (Hatoum, 2008, p. 39).
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Desse modo, em Orfãos do Eldorado, a caracterização dos personagens e a representação do espaço constroem uma visão violenta, tirânica e mórbida da sociedade e do território amazônico. A decadência do povo ameríndio está principalmente representada pelas personagens femininas, órfãs na sua maioria, vítimas da miséria e da doença, moças sequestradas, violentadas, vendidas ou trocadas por mercadorias para servir aos comerciantes de Manaus ou aos homens políticos (Hatoum, 2008, p. 42). Assim como na obra de Márcio Souza, outro grande escritor amazonense, o romance denuncia a exploração sexual das mulheres e meninas ameríndias. Outras formas de opressão, mascaradas sob a aparência de proteção, são encenadas pela narrativa, como as que sofrem as moças, como Florita, acolhidas pelas famílias da cidade para servir de empregada doméstica, num regime de semiescravidão. Há ainda as ameríndias do orfanato que as freiras protegem do tráfico sexual, mas que sofrem, no entanto, um processo de aculturação que começa pela proibição de falar sua própria língua. A violência é um dado consubstancial a essa realidade. Mesmo dissimulada, ela termina sempre por mostrar sua face. A cena inaugural do romance é representativa das relações que estabelece entre o mito, suas possíveis interpretações e a realidade. Nela assiste-se ao suicídio por afogamento de uma jovem índia. Florita, para poupar o menino Arminto, deturpa suas últimas palavras, traduzindo-as por um relato perfeitamente integrado ao universo cultural e mítico ameríndio: a mulher, atraída por um ser encantado, teria escolhido ir viver junto com ele no fundo do rio. Na verdade, a mulher se suicida por ter perdido seu marido e seus filhos vítimas da miséria e da doença. O momento dessa revelação, no final do romance, próximo da morte de Florita, que a liberará de sua vida de miséria material e afetiva, é também o da confissão de sua imensa solidão. A representação do espaço constrói um cenário mórbido por onde circulam personagens como Denísio cão, o barqueiro, em alusão ao barqueiro infernal, que vem
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Título de um subcapítulo de um artigo de Milton Hatoum dedicado aos romances A selva, de Ferreira de Castro, e Mad Maria, de Márcio Souza (Hatoum, 1993). A leitura desse texto ajuda a esclarecer a percepção e a representação do espaço em Órfãos do Eldorado. 7
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reforçar a onipresença da morte nesse território. Aqui, como no célebre romance A selva (1930), do escritor português Ferreira de Castro (1898-1974), a beleza grandiosa e luxuriante da floresta esconde o regime de escravidão ao qual os seringueiros são submetidos. A podridão está dissimulada sob sua beleza luxuriante. “Inferno e barbárie”7 são a outra face da floresta: O paraíso estava aqui, no Amazonas, era o que se dizia. O que existiu, e eu não esqueci nunca, foi o barco Paraíso. Atracou aí embaixo, na beira do barranco. Trouxe dos seringais do Madeira mais de cem homens, quase todos cegos pela defumação do látex. Lá onde ficava a Aldeia, o prefeito mandou derrubar a floresta para construir barracos. E um novo bairro surgiu: Cegos do Paraíso (Hatoum, 2008, p. 95).
“Cegos do Paraíso”. A imagem fala por ela mesma. As novas vítimas da “modernidade na floresta” (Hardman, 1988), os imigrantes e migrantes nordestinos, ocupam o lugar dos ameríndios, expulsos, mais uma vez, do território que eles ocupavam nas proximidades da cidade. A memória do texto de Ferreira de Castro se faz presente igualmente pela alusão a um incêndio num seringal, que nos remete ao incêndio do seringal Paraíso, episódio que fecha o romance do escritor português. Paraíso era também o nome do seringal situado às margens do rio Madeira, onde Ferreira de Castro, que emigrou para o Brasil quando tinha doze anos, trabalhou como seringueiro durante quatro anos, experiência que se encontra recriada no romance A selva. Misturando referentes reais e ficcionais, a narrativa romanesca expõe a oposição gritante entre os sentidos sugeridos pelos topônimos (Vila Bela, Boa Vida, Ilha do Eldorado) e a realidade. Imagens de um paraíso perdido, de “uma sociedade que está morrendo”, para utilizar as palavras de Euclides da Cunha ao comentar a obra Inferno verde, do seu amigo Alberto Rangel (Cunha, 2000, p. 343-351). Mil e uma histórias que sobrevivem e se metamorfoseiam nos relatos literários.
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A última viagem de Arminto (navegador de “viagens supérfluas” entre Manaus e Vila Bela) pelo rio Amazonas ganha um outro sentido. Personagem decadente da história e do mito, Arminto parte na terceira classe de um navio velho e sujo em busca da ilha do Eldorado, onde, doente, Dinaura teria se refugiado. A ilha do Eldorado seria uma das ilhas do Arquipélago das Anavilhanas, referente geográfico real, situado a 100 quilômetros de Manaus, um dos lugares célébres do ecoturismo da Amazônia. A narrativa evoca a beleza grandiosa da paisagem, recorrendo a uma descrição lírica da maravilhosa visão do lago do Eldorado, paisagem de beleza ímpar (Hatoum, 2008, p. 102). No entanto, não há possibilidade de fusão harmoniosa com a natureza, pois, desde o início, o texto não para de semear, aqui e ali, sinais do mal-estar que Arminto manifesta, remetendo a uma relação disfórica que ele entretém com um espaço onde impera uma ordem social injusta, representada pela voz autoritária do pai: Eu me sentia mal na Boa Vida. Lugar lindo, com guarásvermelhos e jaçanãs no céu e nas árvores. [...] Não era o lugar que me perturbava: era a lembrança do lugar. Os filhos dos empregados se aproximavam da varanda e paravam para observar a casa; Crianças caladas, filhos de homens calados. Voz mesmo só a de Armando: voz para ser obedecida (Hatoum, 2008, p. 67-68).
Durante a viagem de Arminto em busca do seu Eldorado, a alternância entre as descrições líricas e os sinais que maculam essa beleza da paisagem reforça a perspectiva antagonista da representação do espaço adotada pelo romance. Trata-se de construir a visão de uma natureza que abriga um mundo doente, repulsivo, nauseabundo, face que se revela desde o momento em que fazemos a experiência de penetrar nesse espaço: Um volume escuro tremia num canto. Fui até lá, me agachei e vi um ninho de baratas-cascudas. Senti um abafamento; o cheiro e o asco dos insetos me deram um suadouro. Lá
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fora, a imensidão do lago e da floresta. E silêncio. Aquele lugar tão bonito, o Eldorado, era habitado pela solidão (Hatoum, 2008, p. 102).
Podridão, doença, solidão, morte, múltiplos signos disfóricos para evocar esse encontro fracassado entre o mito e a história. O que se esconde sob as aparências da visão do paraíso? A distância entre o sonho e a realidade que essas imagens de um mundo em degeneração nos devolvem como um espelho invertido. Essas imagens revelam um ponto de vista pessimista sobre o processo histórico marcado pelas injustiças, pelas escolhas políticas autoritárias, assinalando o impasse do parâmetro do progresso como fundamento da civilização. “Não há barco nem caminho para ti”, anuncia o poema de Kaváfis, em consonância com o que escreve o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, ao afirmar que “O futuro prometido pela modernidade não tem futuro” (Santos, 2000, p. 322). A herança comum que o ameríndio compartilha com o homem ocidental é a de serem órfãos da civilização, prisioneiros de um mundo de cinzas, condenados a fazer viagens imaginárias que não tranquilizam mais ninguém. Essas cinzas do Norte dizem muito do estado de deriva dos mitos e dos relatos que resultam do esforço contínuo do sujeito na sua busca de imprimir um sentido à trajetória humana. A obra de Hatoum não produz sombras consoladoras, ao contrário, coloca o leitor perante a problemática condição humana, erigindo a literatura como um dos lugares possíveis de resistência, mesmo que seja para dizer a impossibilidade da viagem. O lugar inaugurado pela criação literária está longe de corresponder ao de um refúgio protetor. Hatoum pertence à linhagem de escritores que produzem livros do desassossego: “é preciso aceitar que a literatura complica o mundo”, sublinha Simon Harel (2007, p. 12).
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Alteridade invisível: o índio em Nove noites, de Bernardo Carvalho No romance de Milton Hatoum, a experiência da alteridade ameríndia gera uma espécie de fascinação pelo Outro no único sujeito da enunciação, o personagemnarrador Arminto Cordovil. Em Nove noites, de Bernardo Carvalho, a representação do ameríndio é submetida a diferentes pontos de vista assumidos por múltiplos sujeitos do discurso. Nos dois romances, trata-se de abolir uma representação realista do mundo. Para essas narrativas, só existem visões do real. Mas, enquanto em Orfãos do Eldorado a ambiguidade da narrativa decorre das interrelações entre mito e história e da complexa viagem ao passado por meio da memória do narrador, em Nove noites é a multiplicidade de vozes narrativas e a focalização que tornam a percepção do real problemática. Misturando fatos históricos, experiência vivida e ficção, a narrativa de Nove noites ultrapassa as fronteiras de gênero e situa-se a meio caminho entre autobiografia ficcional e documentário jornalístico romanceado, instaurando o processo de mise en abyme do ato da escrita. Nove noites tece sua trama em torno de um enigma: as razões que conduziram o antropólogo norte-americano Buell Quain, da Universidade de Columbia, ex-aluno de Franz Boas, a se suicidar no Brasil, em 1939, aos 27 anos, quando da sua estadia no Xingu com os índios krahô. Assim como em Mongólia (2002),8 que se constrói em torno do desaparecimento de um fotógrafo nos Montes Altai, a intriga de Nove noites cruza várias versões e inscreve no seio da narrativa o personagem do escritor que procura de forma obsessiva preencher a precariedade do sentido, encontrar a solução do enigma. O interesse do personagem-escritor, narrador do romance, por Buell Quain data de 2001, quando ele fica sabendo, por acaso, de sua existência, ao ler no jornal um artigo do antropólogo que se suicidou em plena floresta. Desde então, procura compreender o gesto brutal do an-
Sobre Mongólia, ver Godet, 2007. 8
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tropólogo, que esfaqueou e mutilou seu corpo antes de se enforcar. A razão da busca obstinada que leva o narrador a se interrogar sobre a morte do antropólogo só será revelada no final do romance: ela está relacionada com a infância, com a imagem do seu pai, com sua relação como cidadão brasileiro branco e urbano com o índio. Menino de seis anos, o narrador frequentou com seu pai a região do Xingu, onde este último tinha comprado uma fazenda. Mais de trinta anos depois, ele será levado, por causa de sua investigação, a refazer a viagem nessa região e permanecerá na mesma tribo de Buell Quain. Pouco a pouco, os elementos da investigação sobre Quain se imbricam com lembranças antigas do contato com os índios em companhia de seu pai. Numa entrevista, Bernardo Carvalho afirma que seu romance é uma interrogação sobre a paternidade: “Todo mundo está à procura de um pai. Os índios querem um pai, pois de uma certa maneira são órfãos da civilização. Quain tinha relações complicadas com seu pai e ao mesmo tempo, ele representa o papel de pai com os índios. O narrador, igualmente, justapõe a história do antropólogo à de seu próprio pai” (Moura). O romance alterna a narrativa da investigação conduzida pelo narrador com o testemunho fictício deixado por Manoel Perna, engenheiro responsável pelo Serviço de Proteção dos Índios, amigo de Buell Quain, a quem ele teria feito confissões desesperadas durante nove noites passadas na cidade de Carolina, a mais próxima da aldeia indígena. A alternância de vozes narrativas é assinalada por caracteres tipográficos. Às vozes desses dois narradores acrescenta-se a voz de Quain, por meio de cartas que ele deixa após sua morte, assim como testemunhos de diversas pessoas que conviveram com ele. Todos esses elementos trazem indícios da angústia e do desespero do antropólogo, sem no entanto esclarecer o mistério. As diferentes versões e visões acentuam o caráter polifônico do romance, destacando as armadilhas de uma atividade interpretativa da subjetividade do outro, cujo mistério permanece velado. É a natureza inacessível do ser humano que é colocada em
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evidência. Mais uma vez, Bernardo Carvalho elabora uma narrativa labiríntica que desconfia do poder da linguagem para elucidar o enigma do real. Nove noites é, antes de tudo, um romance sobre as relações de alteridade a partir de uma reflexão sobre o procedimento antropológico, que em princípio se dedica a compreender e a fazer compreender o Outro. A narrativa nos fala dos laços indissolúveis entre a interrogação sobre a estranheza do outro e o rastro subjetivo do sujeito investigador: qualquer que seja o objeto da investigação, a imersão no mundo do outro é sempre uma incursão íntima. O trabalho de escrita que visa a constituir o outro só pode se fazer pelo imaginário “par ce va-et-vient entre soi et l’Autre [...] qui conditionne le sens, la compréhension, et l’interprétation” (Affergan, 1991, p. 171). A figura do ameríndio em Nove noites está inscrita na temporalidade do século XX. Três momentos precisos são evocados: o final dos anos 30, período no qual evolui o personagem Buell Quain no meio dos índios brasileiros; o final dos anos 60, que coloca em cena as lembranças da infância do narrador com seu pai, explorando as terras da Amazônia; e o início do novo milênio, quando encontramos o narrador adulto em visita aos índios Krahô, seguindo a pista de Quain. Apesar dos diferentes períodos históricos aos quais o texto faz alusão, a representação do índio permanece a mesma. O que predomina é uma percepção negativa das marcas mais significativas da alteridade dos índios, seus ritos, sua comida, seus laços de parentesco; a recusa de ir em direção ao outro, em direção de suas singularidades radicais; a imagem, enfim, de um povo decadente, em processo de desaparecimento. Em Nove noites, o índio é, antes de tudo, um objeto de estudo. O texto tomanesco lembra os inúmeros antropólogos estrangeiros que se dedicaram ao estudo dos povos indígenas do Brasil, como o grupo de Franz Boas, do departamento de antropologia de Columbia ao qual pertencia Buell Quain, os europeus célebres como Lévi-Strauss e o suíço Alfred Métraux. Nove noites chama a atenção sobre
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essa espécie de instrumentalização do outro, alertando também para o fato de que os textos construídos pelas ciências humanas estão longe de serem neutros, denunciando, dessa maneira, a instrumentalização intelectual, política e financeira. O romance revela o comportamento de certos antropólogos, como o norte-americano William Lipkind, que não somente teria vendido objetos que ele subtraía às tribos indígenas, como teria transmitido relatórios políticos ao governo americano. O Brasil dos anos 1930 e 1940 tornou-se um país-fetiche dos antropólogos e sociólogos: o índio e o negro, objetos de culto da curiosidade científica deles. Não se trata de desprezar as contribuições de grandes pesquisadores à compreensão desses sistemas culturais, liberando-os das ideias pré-concebidas da época, contribuindo para que elas gozassem de um reconhecimento pleno. Mas não se trata tampouco de deixar passar em silêncio um certo olhar dirigido a esse território e a seus habitantes que não são brancos, reduzidos à categoria de objeto de estudo. Mikhail Bakhtin lembra-nos que o objeto das ciências humanas é um sujeito e o método delas, a interpretação. A questão levantada pelo texto de Nove noites tem sentido: até que ponto esses sujeitos realmente existiram como tais para todos esses cientistas? Até onde o diálogo pôde se realizar? A obra contempla uma preocupação que se faz presente na reflexão antropológica da atualidade. O outro, como assinala Francis Affergan, não é um objeto vazio e indeterminado, disposto a se submeter ao olhar e ao tratamento científico do observador. Ele se articula sobre suas próprias determinações e traz consigo o que poderíamos chamar de seus atributos (Affergan, 1991). Antes de viver com os krahô, o personagem antropólogo do romance, Buell Quain, interessou-se primeiramente pelos trumai, que habitavam um dos territórios mais inacessíveis da Amazônia. Ele encontrou aí um povo marcado pelo processo de autodestruição, obcecado pela morte. Foi expulso da tribo pelo Serviço de Proteção aos Índios, sem que se conheça a razão dessa expulsão. O romance alude a
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uma provável homossexualidade de Quain. Uma das pistas sutilmente levantadas pelo texto romanesco faz alusão a problemas de ordem sexual, ao lembrar as orientações do Serviço de Proteção aos Índios, que proibia as relações sexuais com os índios (serviço que, aliás, foi criado em 1910, pelo bisavô de Bernardo Carvalho, o célebre sertanista Cândido Rondon). O fato é que o antropólogo parecia muito afetado pela sua estadia na tribo dos trumai. É a imagem de um homem aterrorizado, instável, desesperado que o testemunho de Manoel Perna, o sertanista amigo de Buell Quain, vai elaborar: com os trumai, ele teria encontrado um povo cuja cultura refletia seu próprio desespero, sua íntima decadência. A convivência com os krahô também não o libera da solidão; o outro é sempre, para ele, uma barreira intransponível. Quain não compreende os índios, rejeita seus costumes, sua nudez, a maneira como eles cortam o cabelo, enfim, ele os considera idiotas: “Encontrei um grupo de índios krahô e eles parecem pavorosamente obtusos. Têm cortes de cabelo engraçados, furam as orelhas e continuam sem usar roupas nas cidades.” (Carvalho, 2001, p. 30). O antropólogo americano confessa sua dificuldade em trabalhar sobre os índios brasileiros e rejeita parcialmente as marcas (consideradas desagradáveis) que as culturas indígenas imprimiram à cultura brasileira. Para Quain, o paraíso estaria em outro lugar, nas ilhas Fiji. O território brasileiro nada mais é para ele do que o inferno. A construção desse personagem antropólogo questiona seu olhar etnocêntrico e sua atitude egocêntrica, denunciando a utilização que se faz do Outro para fins que não lhe dizem diretamente respeito (Carvalho, 2001, p. 163). Para o narrador, o Xingu também é a imagem do inferno: “O Xingu ficou guardado na minha memória como a imagem do inferno” (Carvalho, 2001, p. 72). Suas lembranças da infância, quando fez a primeira viagem a essa região, evocam um espetáculo deprimente, os índios representando seu próprio papel para um público de brancos. Além do mais, existe o medo que a criança sente desse povo exótico e desse espaço selvagem: a casa solitária no meio
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de lugar nenhum, no fim do mundo; a floresta agredida e transformada pela violência de um desmatamento caótico imposto pela nova ordem civilizacional. Para amainar a decepção do seu primeiro contato com os índios, seu pai lhe oferece um brinquedo, um Forte Apache de plástico, símbolo estereotipado do índio selvagem, antítese da civilização, mito deslocado significando o encontro abortado entre o brasileiro urbano e os povos autóctones do Brasil. Adulto, o narrador retorna à região seguindo os rastros de Quain. É sempre o mesmo medo que o acompanha diante dos ritos que ele não consegue compreender. Medo, mas também recusa da alteridade linguística, comportamental, recusa de compartilhar a comida deles, as brincadeiras, os rituais. Ao mesmo tempo, o narrador sublinha o processo de aculturação em marcha, índios que comem macarrão e arroz com feijão, vestidos de short e calçando sandálias japonesas, e relembra o massacre que os índios krahô sofreram um ano após a morte de Buell Quain, quando os fazendeiros mataram 26 deles. A narrativa coloca em evidência o sofrimento de um povo empobrecido pela política governamental, vítima de doenças e de comportamentos viciosos transmitidos pelo contato com os ocidentais. Um povo órfão, abandonado, marcado por um sentimento de trágica impotência, um povo que não quer ser esquecido pelos brancos. O olhar do narrador recusa o paternalismo: se ele é sensível ao sofrimento dos índios, ele não hesita, no entanto, em expor seus preconceitos, mostrando o abismo existente entre seu universo de intelectual urbano e o dos povos autóctones. Uma só passagem no romance evoca a possibilidade de um encontro, um só momento em que o narrador se mostra atraído pelo outro, ao qual ele se refere como “um dos espetáculos mais deslumbrantes da minha vida” (Carvalho, 2001, p. 100): a cena na qual um velho krahô entoa um canto em torno de uma fogueira numa noite de lua. A harmonia dessa cena remete a uma imagem arcaica, perdida no tempo, imagem ancestral comum a todo ser humano, imagem depurada da história que o homem
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construiu. Tão bela quanto frágil e efêmera. O raiar do dia expulsará a poesia e restabelecerá a incompreensão e o medo. O narrador de Nove noites não compreende o papel que os índios lhe atribuem nos seus rituais, nem o olhar que eles lhe dirigem, percebido como indecifrável e ameaçador. No romance de Bernardo Carvalho, a figuração do ameríndio como personagem do outro explora a distância com o grupo de referência ao qual pertence o personagem do escritor. O que sobressai do efeito do outro sobre o sujeito do discurso é sua incapacidade de ir ao encontro do ameríndio, sua recusa em construir laços, sua tendência a se fechar sobre suas próprias referências, como se a possibilidade de um diálogo entre o Brasil ocidental e urbano e o Brasil dos povos autóctones estivesse para sempre perdida. O outro que o atrai não é o ameríndio, mas o antropólogo norte-americano; este é o sujeito da alteridade produtora de sentido que o aproxima de seu pai, de sua infância e que o conduz a refazer a experiência na tribo indígena. Para o narrador, o ameríndio é um tema enviesado; para o antropólogo, um objeto de estudo, submisso a uma consciência que o constrói. A figuração do ameríndio em Nove noites privilegia as diferenças como enfrentamento estéril. Constatação de um encontro e de um diálogo frustrados, o caminho escolhido pelo escritor coloca em evidência uma representação do lugar marginal que a sociedade brasileira reserva ao índio, o não-valor de sua cultura, a recusa em considerá-lo como sujeito autônomo. O índio surge, então, como o estrangeiro de dentro, distanciando-se de uma tradição literária que tende a idealizar a figura do índio. Qual o futuro para as relações interculturais entre uma civilização que tem seu declínio anunciado e uma outra que tem a expansão de sua dominação assinalada? O narrador refere-se ao ponto de vista de Lévi-Strauss, que defende uma comunicação “suficiente” mas não “excessiva” com as culturas ameaçadas de extinção, para melhor as proteger (Carvalho, 2001, p. 52). As teorias pós-modernas sobre as relações interculturais se afastam dessa perspectiva e
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insistem nos aspectos positivos do inevitável processo de hibridação (Canclini, 2004) ou de creolização (Glissant, 1996) que caracteriza a contemporaneidade: “Vivre la totalité-monde à partir du lieu qui est le sien, c’est établir relation et non pas consacrer exclusion,” afirma Edouard Glissant (1996, p. 67). O texto de Nove noites não se inscreve em nenhuma dessas perspectivas. Em relação à dialética do “selvagem” e do “civilizado”, ele recusa qualquer possibilidade de contatos e trocas equilibrados e frutuosos e elabora uma visão trágica de uma civilização em via de extinção, reproduzindo a imagem de um índio aculturado, decadente, reduzido a um objeto exótico ou a um objeto de estudo. A cena que fecha o romance é particularmente expressiva. Trata-se da viagem de volta do narrador, depois de uma estadia nos Estados Unidos, país que visitou em 2001 na esperança de encontrar a família de Buell Quain. Sentado no avião ao lado de um jovem estudante americano, eles iniciam uma conversa no momento em que o avião está sobrevoando a região amazônica próximo ao local onde Quain se matou. Ao ser abordado pelo narrador, que lhe pergunta se ele vai ao Brasil para fazer turismo, o jovem responde: “Eu vou estudar os índios do Brasil”.
Em Nove noites, a adoção do ponto de vista do brasileiro urbano, branco e letrado projeta a imagem do ameríndio como uma alteridade invisível e em via de desaparecimento, aliando-se a uma perspectiva comum a outros romances da produção literária das Américas. Visão trágica que lhe retira a perdurabilidade. Talvez porque nas nossas sociedades cada vez mais compósitas, na imprevisibilidade do mundo-caos, o romancista possa apenas registrar essa invisibilidade do “estrangeiro de dentro”. Mas, ao fazê-lo, confere-lhe, contraditoriamente, uma visibilidade. Milton Hatoum se inspira em uma realidade na qual a presença ameríndia é marcante, participando de um espaço urbano híbrido. O ponto de vista adotado é o do brasileiro que bebeu na fonte da cultura ameríndia e que é fascinado
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por ela. Mesmo reconhecendo o processo de mestiçagem cultural, Hatoum não o idealiza. O autor não se deixa levar por uma ideologia da mestiçagem como elemento consubstancial à nação brasileira. Adota outro ponto de vista, preferindo destacar a construção dramática desse espaço ambivalente, onde os conflitos herdados do colonialismo se fazem presentes, denunciando assim o papel marginal que a sociedade reserva ao índio. Figurado como mediador do espaço e dos mitos entre a floresta e a cidade, como elemento que se abre à relação com o Outro, nem por isso o ameríndio escapa à condição subalterna e à visão trágica que o condena ao desaparecimento. Adotando uma perspectiva complexa do processo de inter-relação de culturas e de imaginários, abrindo-se para a subjetivação da experiência da alteridade, o escritor se distancia de um discurso banal que se contenta em louvar as trocas culturais, desconsiderando os aspectos da necessária reconstrução de um “lugar habitável” para o sujeito. Hatoum recusa uma visão reconciliadora do processo de mestiçagem, expondo suas fraturas, transformando a escritura numa “zona de tensões” (Harel, 2007, p. 108). Dessa forma, deixa transparecer a ideia de que esse processo não é capaz de assegurar, isoladamente, a existência de uma sociedade mais justa e solidária nem para os ameríndios nem para os pobres brasileiros inseridos na sociedade urbana, herdeiros de visões do paraíso, abandonados à miséria e à orfandade.
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GLISSANT, Edouard. Introduction à une poétique du divers. Paris: Gallimard, 1996. GODET, Rita Olivieri. Estranhos estrangeiros: poética da alteridade na narrativa contemporânea brasileira. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 29, p. 233-252, jan.-jun. 2007. _____. La poétique de l’altérité et la représentation de l’Amérindien dans la fiction des Amériques. Texto inédito. HAREL, Simon. Les passages obligés de l’écriture migrante. Montréal: XYZ, 2005. _____. L’espace en perdition. Les lieux de la précarité de la vie quotidienne. Québec: Les Presses de l’Université Laval, 2007. HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma, a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. HATOUM, Milton. Orfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. _____. A natureza como ficção (Leitura do espaço nos romances A selva, de Ferreira de Castro, e Mad Maria, de Márcio Souza). In: _____ et al. O espaço geográfico no romance brasileiro. Salvador: Fundação Casa Jorge Amado, 1993. p. 101-117. _____. A dois passos do deserto: visões urbanas de Euclides na Amazônia. Teresa: revista de literatura brasileira, FFLCH-USP, São Paulo, ed. 34, n. 1, p. 185-194, 2000. HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991. MORENCY, Jean. Le mythe américain dans les fictions d’Amérique. Québec: Nuit Blanche, 1994. MOURA, Flávio. A trama traiçoeira de Nove noites, entrevista de Bernardo Carvalho. Disponível em: <http://www.portrasdasletras. com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/novenoites>. PATERSON, Janet M. Figures de l’Autre dans le roman québécois. Québec: Éditions Nota Bene, 2004. SANTOS, Boaventura de Souza. A utopia e os conflitos paradigmáticos. In: _____. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2000.
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Cânone Literário e Valor Estético: notas sobre um debate de nosso tempo Idelber Avelar*
resumo: Este ensaio se insere no debate contemporâneo acerca
do valor estético, argumentando que culturalistas, revisores do cânone, e esteticistas, defensores da primazia do cânone ocidental, compartilham uma série de pressupostos. A partir de uma compreensão do caráter contingente do valor estético e da impossibilidade de fundamentá-lo de maneira imanente à obra, sugerem-se algumas pautas para o debate, baseadas na descontinuidade, frequentemente ignorada, entre os conceitos de valor, de estética e de cânone. palavras-chave:
valor; cânone; estética; contingência.
abstract:
This article is part of a contemporary debate on aesthetic value. I argue that canon-revising culturalists as well as aestheticists who defend the primacy of the Western canon share a number of premises. Understanding the contingent nature of aesthetic value and the impossibility of grounding it immanently, I suggest a few possible routes for the debate, based on the often ignored discontinuity among the concepts of value, aesthetics, and canon. keywords:
value; canon, aesthetics, contingency.
Cânone e crítica formal
Tulane University.
*
Este ensaio parte da premissa de que não há crítica ou teoria literária, por mais descritiva, na qual não esteja implícita uma posição sobre o valor. Como veremos, essa premissa é simultaneamente negada e aceita pelos dois polos de um debate que, com frequência, é apresentado como uma polêmica entre defensores de um firme cânone
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ocidental e culturalistas favoráveis a uma relativização ou abolição desse cânone. Além de tomar algumas posições que não se alinham com nenhum dos dois polos, este ensaio tenta demonstrar que a própria formulação do debate é problemática, e que o valor estético e o cânone literário podem e devem ser repensados em outros termos. Há correntes críticas do século XX, sabemos, que rejeitariam o pressuposto da inevitabilidade valorativa. O estruturalismo, com seu afã científico e universalizante, elaborou pouco sobre a questão do valor, optando por um projeto que tinha um caráter mais descritivo que valorativo, embora seus principais teóricos, como Roland Barthes e Julia Kristeva, jamais tivessem escondido suas preferências literárias, mesmo nos momentos de maior formalização do método. Os textos de Roland Barthes em que a preocupação com o valor se torna explícita são aqueles escritos a partir do final dos anos 1960, depois da progressiva ruptura com a formalização do estruturalismo, já numa fase de seu pensamento em que são visíveis as inspirações nietzscheana e lacaniana, discursos com fortes componentes axiológicos. Hegemônico durante décadas na crítica estadunidense, o New Criticism focalizou a valoração na diferença entre a literatura e a cultura de massas, mas não em distinções efetuadas no interior da série literária. Nas suas origens, nos anos 1930, os new critics – John Crowe Ransom, Allen Tate, R. P. Blackmur, Robert Penn Warren, Cleanth Brooks – se diferenciavam dos filólogos então dominantes ao conferir um papel edificante para a literatura, que fizesse desta o antídoto contra a vulgaridade massiva associada à racionalidade técnica moderna e à “dissociação da sensibilidade”, conceito que herdaram de T. S. Eliot. A insistência dos new critics no caráter desinteressado da literatura acabou sendo um gesto no qual se albergava um nítido interesse, visível na batalha que eles livraram contra o establishment da filologia. O New Criticism surgiu, portanto, como intervenção numa polêmica culturalista – entendendo-se “cultura” não no sentido antropológico, mas no sentido classista
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e aristocrático do termo. Como apontaram Gerald Graff (1987, p. 145 et seq.) e John Guillory (1993, p. 155-175), o momento de triunfo do New Criticism na universidade e de consolidação da poesia modernista no currículo coincidiu com o arrefecimento dessa veia polêmica. Os new critics se moveriam em direção à análise de estruturas internas dos textos, nas quais invariavelmente encontrariam a ironia, a ambiguidade e o paradoxo que eles antes reservavam aos modernos e aos poetas metafísicos ingleses do século XVII. A consolidação do método como leitura hegemônica acabou acarretando a universalização dos traços que eles antes só viam nos autores do seu paideuma particular. No momento em que Northrop Frye publicou o hoje clássico Anatomia da crítica (1957), no qual ele se distanciava tanto do New Criticism como da Escola de Chicago, que era seu principal antagonista, uma apresentação explícita do problema da valoração já era inevitável. Embora não fizesse ali nenhuma referência ao trabalho da antropologia estrutural que, na França, já se desenvolvia havia uma década com Lévi-Strauss, Frye chegou a considerar “Poética estrutural” como um possível subtítulo para o livro, e alguns dos eixos da obra revelavam nítido parentesco com o trabalho que o estruturalismo literário francês realizaria nos anos seguintes: as metáforas espaciais, o caráter sistematizador, o jogo de antinomias, a centralidade do conceito de mito, a insistência no imanentismo e no caráter autossuficiente da crítica literária. Uma das diferenças importantes é que Frye se dedicou longamente ao problema do valor literário, ainda que fosse para negar sua pertinência para a prática crítica. Tomo Frye como ponto de partida de uma demonstração do que considero o caráter aporético da discussão sobre o valor literário: Na história do gosto, onde não há fatos, e onde todas as verdades já foram, de maneira hegeliana, quebradas em meias-verdades …, sentimos talvez que o estudo da literatura é relativo e subjetivo demais para ter sentido consistente. Mas como a história do gosto não tem vínculo
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orgânico com a crítica, ela pode ser facilmente separada (Frye, 1957, p. 18).1
Um pouco antes, ele afirmara que “a história do gosto não é parte da estrutura da crítica, assim como o debate Huxley-Wilberforce não é parte da estrutura da ciência biológica” (p. 18). O curioso da analogia de Frye, por certo, é que está bem longe de ser uma verdade evidente que a polêmica Huxley-Wilberforce não seja parte da “estrutura da biologia” (seja lá o que for isso), assim como não é óbvio que a polêmica Marx-Ricardo não seja parte da “estrutura” da economia política. À medida que o leitor percorre as páginas de Anatomia da crítica, vai se impondo uma conclusão: sempre que Frye diz que a crítica é “facilmente separável” do gosto e do juízo valorativo, pode-se estar razoavelmente convicto de que tal separação é a coisa menos fácil que há. O leitor o percebe quando chega o espinhoso momento em que Frye tem de justificar suas escolhas. Para isso, ele lança mão de uma curiosa tese, a de que é preferível que os valores que subjazem às escolhas estéticas da crítica fiquem escondidos, pois explicitá-los terminaria fundamentando a crítica na história do gosto e, portanto, dinamitando a separação que se havia proposto entre elas: As estimativas comparativas de valor são realmente inferências da prática crítica, mais válidas quando silenciosas, e não princípios expressos que guiam sua prática. O crítico verá logo, e constantemente, que Milton é um poeta mais sugestivo e recompensador que Blackmore. Mas quanto mais óbvio se torne isso, menos tempo ele desejará desperdiçar insistindo na questão. Porque insistir nela é tudo o que ele pode fazer: qualquer crítica motivada por um desejo de estabelecê-lo ou prová-lo será meramente mais um documento na história do gosto (Frye, 1957, p. 25).
Anatomia da crítica sugere, simultaneamente, que 1) a crítica é uma esfera separada da história do gosto; 2) é “óbvio” que alguns poetas são melhores que outros; 3)
São minhas as traduções de todas as citações de fontes em línguas estrangeiras. 1
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Para o estruturalismo, ver o notável trabalho de história intelectual já feito por François Dosse (1991-92). 2
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qualquer tentativa de explicar essa obviedade está fadada a ser parte da história do gosto, não da crítica. Preso num discurso que postula a separabilidade da crítica ante a história do gosto, mas tropeça na constante interferência desta sobre aquela, Frye não pode senão sugerir que os fundamentos das escolhas valorativas permaneçam sem discussão. Anatomia da crítica, um dos livros de crítica literária mais influentes do século XX, se sustenta sobre um tripé de premissas de visível precariedade: 1) a crítica e o gosto não se misturam; 2) não se faz crítica sem uma escolha valorativa; 3) já que a valoração é definida como parte de uma história do gosto externa à crítica, mesmo que reconheçamos que a atividade crítica depende de escolhas valorativas, teremos de esconder debaixo do tapete os critérios que subjazem a elas, sob o risco de que todo o edifício desmorone. Seria possível demonstrar que a aporia detectada em Frye se repete nos métodos interpretativos que tentaram fazer da crítica literária uma operação descritiva na qual não teria lugar o debate acerca das opções valorativas. Numa futura história dos métodos formais no século XX,2 haveria que se dedicar especial atenção às maneiras como o desejo de cientificidade entrou em choque com a inevitabilidade valorativa. No caso do formalismo russo, esses dois eixos coexistiram com certa tensão. O projeto de descrever cientificamente a linguagem poética os levou a estabelecer a noção de estranhamento (ostraneniye) como o mais próprio da literatura. Shklóvski definiu o conceito como o processo por meio do qual a novidade das operações poéticas sobre a linguagem prolongaria a percepção, aumentando-lhe a dificuldade. O estranhamento possibilitaria uma renovação de uma experiência do mundo caracterizada por uma percepção já automatizada, fruto da repetição constante. No momento mais frutífero do desenvolvimento das pesquisas dos formalistas, a consolidação do poder político nas mãos de Stálin os forçou ao exílio ou ao silêncio, não antes que Yuri Tinianov formulasse algumas pistas acerca do que poderia ter sido uma concepção formalista da
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história literária. Para Tinianov, a literatura evoluiria por meio da paródia, pelo estranhamento imposto a formas literárias automatizadas pelo uso excessivo. Sempre que um procedimento passasse a ser parte do repertório de práticas já esperadas, uma operação paródica tenderia a surgir, tornando visível a automatização anterior. Um exemplo clássico é o que Dom Quixote fez aos romances de cavalaria, expondo a artificialidade de suas convenções. A sofisticação do aparato teórico dos formalistas os levou do imanentismo textualista a uma incipiente teoria da história literária, interrompida pela consolidação do poder burocrático na União Soviética. Apesar de que as observações feitas acima sobre Frye não se aplicam aos formalistas, eles tampouco se dedicaram a tematizar explicitamente o problema do valor. A insistência na função descritiva da teoria literária, combinada à condenação ao impressionismo dos simbolistas, ajuda a explicar a relação multifacetada que os formalistas mantiveram com o tema do valor. A partir das premissas de que o estranhamento é mais próprio à literatura e de que a história literária evolui pela operação paródica sobre formas anteriores congeladas, parece inescapável a conclusão de que o valor está acoplado à realização desse programa: quanto mais estranhamento e mais ruptura paródica com as formas anteriores, mais valor. O edifício teórico dos formalistas nos leva à conclusão ineludível de que Dom Quixote tem um valor que Amadis de Gaula não apresenta, de que as vanguardas realizam a vocação da literatura de uma maneira que os parnasianos não fazem, e assim por diante. As conhecidas afinidades entre o formalismo e o futurismo russos emprestam credibilidade a essa tese. Não há nada de condenável nessa axiologia, é claro. Mas reconhecer sua existência – mesmo que implícita – é indício adicional de que até nas empreitadas mais cientificistas da crítica literária impõe-se a inevitabilidade valorativa. Muito ainda poderia ser dito aqui, mas passemos ao extremo oposto, ou seja, às correntes críticas que explicitamente reivindicam a valoração como elemento constitutivo da ati-
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vidade crítico-literária. Posição de destaque nessa vertente cabe aos críticos que se ocupam das relações entre ética e literatura, um debate cujas origens podem ser remetidas aos Livros III e X da República de Platão.
Crítica ética e falácia igualitária Wayne Booth, com seu The company we keep, ocupa um lugar central no chamado ressurgimento da crítica ética nos EUA. Na tentativa de esclarecer os valores que subjazem às análises estéticas, Booth abraça o projeto humanista de ilustração por meio das letras, que ele define como uma “Conversa celebrando as muitas maneiras em que as narrativas podem ser boas para você – com vislumbres de como evitar seus poderes para o mal” (p. ix). Booth tenta resgatar essa função humanista sem reduzi-la a um conjunto de normas. Consciente de que as condenações moralizantes de uma tradição que vai de Platão a Leavis deram à crítica ética uma má fama, Booth coloca a pergunta: “Poderemos esperar encontrar uma crítica que respeite a variedade e ofereça um saber acerca de por que algumas ficções valem [are worth] mais que outras?” (1988, p. 36). Como se verá, a tarefa não é fácil. Qualquer tentativa de sustentar este último postulado – de que algumas ficções realmente valem mais que outras – só poderia “respeitar a variedade” interrogandose sobre os processos históricos por meio dos quais certos valores foram conferidos àquelas ficções. Se não, ou seja, ao continuar tomando esses valores como intrínsecos, a conclusão lógica, necessária, seria a defesa daqueles valores sobre outros, que valeriam “menos”. O desafio que Booth se coloca é manter algumas das premissas da teoria contemporânea (acerca da variabilidade histórica do sentido ou da impossibilidade de uma medida transcendental de valor), ao mesmo tempo em que continua se agarrando a um conceito de literatura como fonte singular de um “mergulho em outras mentes” (p. 142), que provocaria uma “série de efeitos no ‘caráter’”, a saber, o Bem ou o Mal
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aos quais o prefácio alude. Booth quer aceitar o pluralismo hermenêutico da teoria literária contemporânea sem abrir mão do absolutismo da filosofia moral. Company é, então, uma minuciosa tentativa de aceitar a variabilidade de interpretações sem deslocar a discussão do terreno do valor intrínseco ao campo da valoração social. Booth “realiza” essa tarefa por meio de uma série de exercícios de reductio ad absurdum, como o contraste entre King Lear, de Shakespeare, e um exemplar da revista pornográfica Hustler, ou entre um poema de Yeats e uma brincadeira improvisada em verso. Depois de superar essas caricaturas, a grande literatura emerge intacta, com sua insubstituível função moral reassegurada. A reductio ad absurdum será uma das estratégias retóricas favoritas dos que mantêm a referência ao valor estético como propriedade intrínseca e resistem ao argumento de que o valor só pode ser entendido por meio da remissão ao seu solo social. A necessidade de caminhar sobre a corda bamba que separa o reconhecimento das contingências históricas do compromisso humanista leva Booth a fazer uma série de gestos na direção do relativismo: o que é bom cá não é bom lá, pode ser bom para você mas não para mim, qualquer virtude levada ao extremo pode destruir as outras, uma dose excessiva de qualquer valor (seja a ironia, a abertura formal ou qualquer outro) pode ser prejudicial em vez de positiva, etc. Daí sua busca do meio do caminho, aquela área cinza que permitiria ao crítico evitar qualquer “silogismo universal” (esta obra é boa porque apresenta X, portanto todas as obras que apresentem X...) sem renunciar à premissa de um valor ético intrínseco à literatura e a algumas obras literárias mais que a outras. O objetivo é evitar os “riscos” de “fechamento” ou “abertura” excessiva. Os tropeços da crítica ética seriam explicáveis por sua tentação especial de “sobre-generalizar”. A solução moderada busca um pluralismo que mantenha a referência a um valor intrínseco o qual, por mais variável que se conceda que ele seja, termina sempre transcendendo os conflitos da valoração social. No momento em que a teoria não consegue
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fundamentar essa transcendência, compare-se a Divina comédia com um exemplar da Revista Veja, constate-se a óbvia diferença entre os valores intrínsecos e o problema está “resolvido”. Sempre que se remete um problema à “tentação de sobre-generalizar”, o terreno está preparado para que o liberal sensível procure a conciliação razoável. Essa mitologia da ponderação não deixa de operar na teoria. Ao contrário do que argumenta Booth, seu pluralismo não é radical, e sim liberal. Ao se referir à crítica contemporânea, Booth afirma que “a ênfase na variedade de interpretações nos diz pouco sobre o valor real das obras” (p. 84). Essa afirmação repousa sobre a premissa de que o valor é uma espécie de propriedade inerente ou essência eterna, ou seja, ela pressupõe uma recusa a considerar o argumento de que todo valor é produto do choque de valorações contingentes e historicamente variáveis, posição que Booth descarta como “subjetivista” (p. 73). Os ataques ao “subjetivismo” do ponto de vista de uma ética humanista são bem conhecidos e Booth os repete em seu livro: “pressupõe-se claramente uma completa equivalência na competência de todos os intérpretes no argumento de que as obras não possuem ou exercem valor inerente, mas que somente são valoradas” (p. 85). Mas Booth parece ter entendido mal a teoria da contingência. Afirmar que a valoração é socialmente contingente não significa dizer que todos os agentes valoradores são igualmente competentes. Significa que “competência” não é um significante com sentido unívoco e eterno, e que seu próprio conteúdo só pode ser compreendido com referência ao contexto particular em que algumas habilidades contam como competência e outras, não. A equação imaginária entre a contingência social do valor e uma suposta igualdade entre os agentes valoradores é o que Barbara Herrnstein Smith denominou a falácia igualitária, ou seja, “a recorrente ansiedade / acusação / reclamação de que a menos que se possa demonstrar que um juízo é mais ‘válido’ que outro, todos os juízos devem
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ser ‘iguais’ ou ‘igualmente válidos’” (Smith, 1988, p. 98). A falácia igualitária se sustenta no que Marx chamava de “robinsonada”, uma espécie de grau zero da axiologia que replica a ilha de Daniel Defoe. Note-se um exemplo em Booth: “me parece difícil acreditar que se uma pessoa de nossa cultura que é completamente inexperiente em literatura não vê absolutamente nenhum valor, digamos, nos romances de Faulkner, suas opiniões sejam tão pertinentes a nosso discurso sobre Faulkner como as opiniões de leitores experientes” (p. 85). A falácia é que, obviamente, uma pessoa inexperiente em literatura não poderia pertencer à mesma cultura e suas opiniões, por definição, não teriam a mesma pertinência para o “nosso” discurso. Como a desconstrução e o marxismo nos ensinaram de diferentes formas, sempre há que se perguntar qual sujeito da enunciação se esconde por trás de um pronome de primeira pessoa do plural. Na verdade, é precisamente porque os juízos não são igualmente válidos que os valores nunca são intrínsecos, idênticos a si mesmos, e sim articulados por meio de conflitos sociais. É exatamente por causa do fato de que as valorações não são nem válidas da mesma forma nem identicamente posicionadas nas relações sociais que elas jamais são intercambiáveis. Eis aí a falácia da ansiedade essencialista que preconiza que, se a compreensão do conceito de valor se deslocou de uma imanência dormente a uma rede de relações sociais, os valores ficaram, de alguma forma, idênticos uns aos outros. A falácia igualitária confunde uma posição social construtivista com uma posição moral e estética relativista. Se os imanentismos formais não escapam da axiologia, por mais que se queiram descritivos, a crítica humanista, que não esconde seu compromisso com a noção de que a literatura deve defender valores éticos, padece da impossibilidade de fundamentá-los mais além da tautologia. Com efeito, diferentes vertentes da crítica prescritiva arrolaram fundamentos transcendentais a partir dos quais a literatura deveria ser julgada: formação do caráter, mergulho na alma humana, renovação da linguagem, progresso do espírito,
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defesa do legado ocidental, emancipação do proletariado. Mas nenhum desses fundamentos se sustenta como base de uma estética sem remissão a outro valor que o justificaria. A pergunta: “por que deve ser este o valor a partir do qual julgar a literatura?” não pode ser respondida imanentemente. Ela dispara, é inevitável, um processo de regressão infinita. A fundamentação do valor na estética teria, assim, uma estrutura abismal. Vários “defensores do cânone ocidental” reagem nervosamente à demonstração da impossibilidade de autofundamentação imanente do valor estético. Para quem experimenta uma contingência como se esta fosse uma não-contingência, uma alteração da ordem vigente provocará a sensação de que qualquer ordem está se tornando impossível. É o que vemos nas críticas estéticas de Harold Bloom, em seu O cânone ocidental e, no Brasil, de Leyla Perrone-Moisés, em seu Altas literaturas.
Crítica estética e pânico ocidentalista Para Harold Bloom, feministas, marxistas, desconstrucionistas, lacanianos, neo-historicistas e afrocêntricos seriam os agentes contemporâneos de uma “Escola do Ressentimento” que “nega a Shakespeare sua palpável supremacia estética” (1994, p. 20) e proclama “a abertura do Cânone” (termo que Bloom insiste em grafar com maiúscula) para a incorporação de obras que “não devem e não podem ser relidas, porque sua contribuição ao progresso social é a generosidade de se oferecer para rápida ingestão e descarte” (p. 30). Ironicamente, em alguém que responsabiliza a Escola do Ressentimento pelo fato de viver “no que considero a pior de todas as épocas para a crítica literária” (p. 22), podemos censurar qualquer coisa, exceto não ter tornado bem visível o seu próprio ressentimento. Diante de certas frases de Bloom, como “o radicalismo acadêmico chega ao ponto de sugerir que as obras se incorporam ao Cânone por causa de propagandas [advertising] bem-sucedidas e campanhas de doutrinação [propaganda]” (p. 20), a única resposta possível é: quem ja-
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mais disse isso? Qual feminista ou “afrocêntrico” de relevo disse algum dia que a incorporação de uma obra ao cânone se deve ao advertising e à propaganda? Desconhece-se, e o livro de Bloom não ajuda, pois nas centenas de páginas de queixas ressentidas contra a tal Escola de Ressentimento, ele não nomeia seus supostos integrantes. Nas obras que se dedicaram a revisar o cânone a partir de uma perspectiva feminista, como The madwoman in the attic, de Sandra Gilbert e Susan Gubar, ou de um ponto de vista afro, como The signifying monkey, de Henry Louis Gates, certamente não encontramos nenhuma equação entre a construção do cânone e a propaganda. Se é correto afirmar que parte da crítica contemporânea se dedica a questionar o processo de emergência dos cânones, seria difícil encontrar um estudo sério defendendo algo que vagamente lembrasse a caricatura apresentada por Bloom. Mais que atacar Bloom, trata-se aqui de assinalar um paradoxo bem curioso que veremos reiterado no lamento contra os estudos culturais. Se Bloom insiste com tanta ênfase em afirmar que “Shakespeare inventou a todos nós” (p. 40) – e é ubíqua sua afirmativa de que Shakespeare é o pai de todos –, é impossível não se perguntar que pai é esse que, mesmo perfeito, produz filhos tão bárbaros como os desprezíveis afrocêntricos e feministas. Da leitura de Bloom, retiremos mais um axioma: quanto mais ameaçados se sintam os guardiães da suposta universalidade de um determinado valor, quando mais socialmente precário seja seu fundamento, menor será sua capacidade de entrar em genuíno debate com a força emergente que aponta o caráter contingente desse valor. O mais surpreendente é que essa posição – defendida nos EUA por Harold Bloom, um crítico associado à direita mais conservadora – passou, há uma década e meia, a ser representada no Brasil por Leyla Perrone-Moisés, ensaísta que não tem nenhum histórico de associação com o conservadorismo político, que talvez seja a mais ilustre barthesiana da América Latina e cujos primeiros livros foram escritos na mais absoluta alegria e afirmação. É verdade
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Minha primeira reação, ao ler que Barbara Herrnstein Smith “considera que o juízo de valor é indesejável” (Perrone-Moisés, 1998, p. 230), foi achar que se tratava de um erro tipográfico, posto que todo o livro de Smith é uma análise do porquê dos juízos de valor serem inevitáveis. 3
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que a ensaísta brasileira se diferencia de Bloom, mas o diagnóstico do que teria acontecido a partir da chegada dos estudos culturais é fundamentalmente o mesmo, acrescido do altamente antiantropofágico medo de que o Brasil se contamine pela influência norte-americana: “o lamentável de tudo isso é que muitos universitários brasileiros estejam recebendo essas tendências norte-americanas sem o menor espírito crítico” (Perrone-Moisés 1998, p. 195). Reencontramos em Altas literaturas o mesmo procedimento de Bloom: o ataque a um adversário cujos representantes não são nomeados e ao quais não se concede a generosidade da citação. Observe-se, no capítulo 5 de Altas literaturas, dedicado ao diagnóstico do presente, a abundância de vozes passivas (“o cânone ocidental ... foi posto sob suspeita”, “a formação desse cânone foi examinada do ângulo ideológico”, p. 196), de sujeitos ocultos e de sintagmas como “alguns grupos”, “as feministas norte-americanas”, “os particularistas”, “os anti-canônicos”. Jamais sabemos quem são eles. Parecem não ter obra. Nos momentos em que Leyla Perrone nomeia duas figuras envolvidas com o debate sobre o cânone nos EUA – John Guillory e Barbara Herrnstein Smith –, ela lhes atribui posições diametralmente opostas às que defendem em seus livros, gerando a dúvida sobre se ela realmente os terá lido.3 Tomemos o diagnóstico da ensaísta brasileira sobre as raízes da perda de relevância social da literatura e da daninha influência norte-americana: Um curso de humanidades baseado na leitura de ‘grandes obras’ do Ocidente, como aquele que foi ministrado em 1936 na Universidade Columbia por Lionel Trilling e outros, seria hoje impensável nos Estados Unidos. Na Universidade de Stanford, por pressão dos grupos particularistas, a palavra ocidental foi suprimida na denominação dos cursos sobre cultura (Perrone-Moisés, 1998, p. 192). O turco Homi K. Bhabha, introdutor dos estudos “póscoloniais”, colheu suas referências principais em Derrida, Foucault, Kristeva, Lefort etc. Também é bastante irônico
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que os “pós-coloniais” se insurjam contra o que chamam genericamente de “ideologia ocidental”, munidos de argumentos iluministas historicamente tão ocidentais quanto o repudiado imperialismo (p. 194-195). [...] há um contra-senso histórico no desejo de modificar o cânone passado, para nele incluir os então excluídos [...]. Excluir do cânone um Dante, para colocar em seu lugar alguma mulher medieval que porventura tenha conseguido escrever alguns versos não seria ato de justiça; seria, no máximo, uma vingança extemporânea [...]. As exclusões ideológicas têm tido um efeito imediato e lamentável nos currículos norte-americanos: Mark Twain e Faulkner, porque eram escravagistas; Hemingway, porque era caçador e machista; Melville, porque antiecológico etc. (p. 198-199).
Fica difícil realizar um debate a partir de tantos erros factuais. Corrijamos alguns: 1) Homi Bhabha não é “turco”, e sim indiano. 2) Bhabha não é o “introdutor” dos estudos pós-coloniais, campo de estudos cujas genealogias unanimemente (Desai e Nair, 2005) apontam como momento inaugural a publicação de Orientalismo (1978), de Edward Said, palestino-americano de formação, aliás, bem europeia e humanista. 3) Não se sabe quais seriam esses teóricos pós-coloniais que se insurgem contra “o que chamam genericamente de ‘ideologia ocidental’”, já que Leyla Perrone os caracteriza genericamente, sem citações, mas é sabido que a noção de ideologia tem pouca circulação nos teóricos pós-coloniais, que herdam de Foucault a suspeita ante o conceito. 4) Desconhece-se universidade estadunidense que tenha excluído Mark Twain, Faulkner, Melville e Hemingway do currículo, seja na pós-graduação em literatura, seja na licenciatura em inglês; uma rápida busca nos sistemas das cento e três instituições catalogadas pela Carnegie Mellon como Research universities demonstra que esses quatro autores continuam abundantemente presentes em cursos, exames e teses. 5) Para qualquer conhecedor do sistema universitário norte-americano, causa estupefação a afirmativa de que é hoje “impensável” um “curso de huma-
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A lista de leituras está disponível em: <http://honors. tulane.edu/web/default. asp?id=Courses>. 4
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nidades baseado na leitura das grandes obras do Ocidente”. O curso que costuma atender pelo nome de Great Books é um dos mais comuns em qualquer grade curricular de qualquer boa universidade estadunidense. Como exemplo, cito o que está sendo ministrado na minha própria, Tulane, no primeiro semestre de 2010: a lista de leituras consiste em Maquiavel, Cervantes, Hobbes, Rousseau, Stendhal, Marx, Nietzsche, Dostoiévski, Freud, Virginia Woolf, Primo Levi, Fanon e Coetzee.4 Não é exatamente uma seleção escalada por uma afrofeminista radical. O curso do segundo semestre cobre da Antiguidade até a Idade Média, inclui Dante, e nele não há sombra de “alguma mulher medieval que porventura tenha conseguido escrever alguns versos”. 6) A incrível afirmação de que em Stanford “a palavra ocidental foi suprimida na denominação dos cursos sobre cultura” merece parágrafos à parte. É lamentável que uma ensaísta que dedica páginas a criticar as simplificações da cultura de massas e da mídia reproduza a distorção veiculada por Time, Newsweek e Wall Street Journal acerca da polêmica em Stanford que desatou as chamadas “guerras culturais” nos EUA. Uma breve consulta à bibliografia séria acerca do incidente (Pratt, 2001; Casement, 1996; Graff, 1993) teria sido suficiente para evitar o erro. Como sabem quase todos, os currículos universitários norte-americanos incluem um curso de obras-primas ocidentais que percorre, em geral, um trajeto que vai de Homero (ou Platão) a Nietzsche, embora esses autores também sejam lidos numa série de cursos que, em Stanford, são parte de oito grades dentro das quais o aluno pode cumprir os requisitos de humanas. Em março de 1988, o Senado de Stanford decidiu aprovar uma proposta de substituição de um desses cursos de “cultura ocidental”, em uma das grades, por um curso intitulado “Culturas e valores”, de cunho comparativo, onde se incluíam textos “não-ocidentais” como os de Frantz Fanon e Rigoberta Menchú. Dentro de Stanford, a implantação do novo currículo foi absolutamente tranquila, num debate já informado por
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anos de reflexão sobre a necessidade de oferecer outras versões sobre a modernidade. A votação no Senado foi normal. A defesa do projeto foi ligeiramente politizada por grupos de estudantes, mas tudo correu dentro da normalidade que se espera de uma revisão curricular como qualquer outra, exceto por um detalhe: as principais fundações da direita norte-americana, grupos religiosos e o Partido Republicano acompanhavam o debate de perto. A grande imprensa passou a dedicar blocos de seus programas à “eliminação da cultura ocidental no currículo das universidades americanas”, ao “assassinato de Shakespeare e Platão” e à “intimidação de ativistas estudantis”. Estavam lançadas as sementes do que se conheceria depois como “as guerras culturais”. Desde Watergate, a queda de Nixon e a consequente desmoralização da direita americana, as forças conservadoras do país passaram a dedicar intenso esforço à vitória na luta cultural. Investiram-se milhões de dólares na construção de think tanks como a Heritage Foundation. Os neoconservadores sabiam que era no terreno da cultura que se jogaria a cartada decisiva.5 Em 1988, a direita republicana concluía oito anos de controle sobre a Casa Branca, acabava de estrangular a revolução centro-americana, estava pronta para presenciar a queda do comunismo e identificava na cultura a nova guerra que deveria vencer. William Bennett (ex-secretário de educação no governo Reagan), Herbert London (fundador do Hudson Institute, um think tank de direita), Allan Bloom, autor de The closing of the American mind, e Dinesh D’Souza, autor do best-seller Illiberal education, passariam a acusar Stanford de jogar no lixo a cultura ocidental, entre outras generalizações provocadoras de pânico. O livro de D’Souza atacava especialmente a incorporação ao currículo do testemunho de Rigoberta Menchú, ativista guatemalteca de etnia maiaquiché. Menchú, que aprendeu espanhol já adulta, narrou verbalmente sua história de vida à antropóloga Elizabeth Burgos. O relato é indissociável das atrocidades cometidas na guerra civil da Guatemala nos anos 1970 e 1980, de
Sobre o caráter ubíquo que tem adquirido a cultura como terreno onde se jogam os antagonismos políticos, ver o belo livro de Yúdice, 2004. 5
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responsabilidade de uma ditadura financiada pelos EUA. O que enfurecia no testemunho de Menchú era que, ao ser incluído num currículo universitário de culturas ocidentais, ele dava uma resposta implícita aos que idealizam o Ocidente ou “os valores ocidentais” como cavalos de batalha morais. O livro dizia: O Ocidente é isto aqui também, é atrocidade também. É incoerente citar o axioma benjaminiano acerca da inseparabilidade entre documento de cultura e documento de barbárie (Perrone-Moisés, 1998, p. 202) e reagir com pânico no momento em que se extrai uma mínima consequência prática da profunda e radical verdade desse axioma. A estas alturas, creio ser desnecessário confirmar que a presença do termo “ocidental”, em incontáveis cursos de Stanford ou de qualquer outra boa universidade norte-americana, jamais esteve em perigo.
Valor literário e apocalipse Daí não se conclua que tudo vai bem com o ensino de literatura nos EUA, ou que não exista nada a se criticar nos estudos culturais e nas plataformas feministas ou étnicas de revisão do cânone – simplesmente é melhor fazer os balanços disciplinares com base em fatos e bibliografia, não em projeções fantasmáticas. Os exemplos citados acima ilustram algo que é frequentemente esquecido por ambos os lados no debate sobre o valor. Apesar das aparências, os cânones brasileiro, latino-americano e ocidental têm se transformado de maneira lenta e modesta, bem menos dramática do que seria de se imaginar por intervenções apocalípticas (“estão assassinando Platão e Shakespeare”) ou triunfantes (“estamos conquistando espaço para os excluídos”). Proponho desenvolver aqui uma ideia que parecerá estranha aos que acompanham as discussões sobre o valor, especialmente aquelas marcadas por ansiedades quanto aos estudos culturais: a rentabilidade do debate sobre o valor estético costuma ser inversamente proporcional à sua acoplagem ao problema do cânone. Dito de outra forma: o conceito de valor abre um horizonte riquíssimo
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para a crítica literária, que só é obscurecido se o reduzimos ao problema de quais autores farão parte do panteão de leituras obrigatórias. Essa redução une esteticistas e culturalistas, “ocidentalistas” e “particularistas”. Perdido nesse debate fica o fato óbvio, mas pouco analisado, de que o conceito de valor não se reduz a suas consequências para o cânone. Aqui, continuo tomando Altas literaturas como interlocutor privilegiado, pela estatura intelectual inegável de sua autora, por sua importância no debate crítico brasileiro, pelo papel que cumpriu a beleza cintilante de livros como Texto, crítica, escritura e Falência da crítica em minha própria entrada na profissão e, acima de tudo, pelo fato de que a obra não esconde os seus pressupostos axiológicos. Pode-se criticar qualquer coisa na defesa que faz Leyla Perrone do cânone moderno, menos a falta de explicitação dos valores que a orientam. Aqui, sim, há uma diferença nítida com Bloom, que defende seu cânone com base numa naturalização muito menos reflexiva. Essa extrema honestidade intelectual me fascina em Altas literaturas, que teria sido mais um magnífico livro de Leyla Perrone caso ela o tivesse interrompido na página 173. A paixão e a erudição com que a autora escreve os capítulos sobre Eliot, Pound, Paz, Borges, Calvino, Butor, Haroldo de Campos e Sollers contrastam nitidamente com a desinformação do capítulo final, sobre a suposta barbárie que ela vê nos tempos atuais. O contraste me fez recordar a observação de uma saudosa professora, que insistia que os críticos literários deveriam escrever sempre sobre aquilo de que gostam. Depois de mapear os paideumas dos escritores-críticos modernos, Leyla Perrone encontra alguns valores que seriam comuns a todos. São eles: maestria técnica, concisão, exatidão, visualidade e sonoridade, intensidade, completude e fragmentação, intransitividade, utilidade, impessoalidade, universalidade e novidade. Dificilmente encontraremos uma síntese tão exata dos valores que balizam a prática literária moderna. Leyla Perrone está, inclusive, atenta ao fato de que esses valores podem estar
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em contradição uns com os outros: afinal, não seria a utilidade o oposto da intransitividade? Como conciliar fragmentação e completude? Tecendo uma série de refinadas distinções, ela mostra que os modernos coincidem na “independência do objeto estético” (p. 164) – ou seja, a intransitividade –, mas que isso não impede Eliot de ver a utilidade da literatura na “preservação do idioma” ou Sollers de associar “transgressão poética e subversão política” (p. 165). O mesmo se aplica à aparente contradição entre fragmentação e completude. Esta última, entendida como coerência interna, não é contraditória com o ideal da obra aberta (p. 160-163). No entanto, a lista de características privilegiadas por oito escritores-críticos que produziram o fundamental de suas obras num brevíssimo intervalo de tempo (pouco mais de meio século) pode balizar a compreensão do que a modernidade literária pós-romântica privilegiou na sua prática, mas ainda não diz nada sobre o valor estético como tal. Supondo-se que esses traços são distintivos da modernidade crítica, ainda restaria a pergunta acerca do que fundamenta o valor estético encontrado por todos eles em obras que não pertencem à modernidade e que foram escritas de acordo com outras pautas. Seria a Divina comédia um poema “fragmentado”? Teria a Odisseia o dom da “concisão”? Como explicar o fato de que, para os modernos, permaneça inconteste o valor estético de obras escritas a partir de pautas diferentes e muitas vezes contraditórias com aquelas privilegiadas em suas próprias práticas? Em outras palavras, como fundamentar um conceito transhistórico de valor estético? Leyla Perrone não se furta a encarar o problema. Em resposta à pergunta “para que serve a literatura?” – ou seja, já não a poesia, a ficção e o ensaísmo da modernidade crítica pós-romântica, mas a literatura como tal –, a ensaísta brasileira afirma: Se nós acreditamos que a literatura tem a alta utilidade de esclarecer, alargar e valorizar nossa experiência do mundo,
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admitiremos que a história do conjunto de suas realizações maximiza o proveito que podemos tirar do contato com cada realização particular. E se a fruição da literatura, no seu mais alto sentido de conhecimento e valorização da experiência humana, é o nosso objetivo, seremos levados a defender um certo tipo de história literária: aquela que otimiza a fruição das obras (p. 21-22).
Algum aluno impertinente poderia encontrar uma contradição entre essa definição de literatura e o cânone defendido pelo livro. Partindo-se do pressuposto de que a literatura, como tal, serve para valorizar a experiência humana, seria difícil não escolher, digamos, Jorge Amado sobre, digamos, Kafka. Afinal de contas, a “experiência humana” que retrata a obra deste último é uma repetição infinita de uma alienante brutalidade incognoscível para o sujeito. Muito pouco se “esclarece” ali. No limite, não seria absurdo dizer que a impossibilidade de “esclarecer, alargar e valorizar nossa experiência do mundo” é o tema mesmo da obra kafkiana. No entanto, Kafka é pilar central do cânone estético defendido por Altas literaturas, e a afirmação de que Jorge Amado lhe é superior, perfeitamente plausível para alguém que trabalhe com uma definição historicizada e agnóstica de valor literário, certamente seria rejeitada em termos categóricos pela autora. O objetivo aqui não é caçar contradições no discurso alheio, mas exemplificar um postulado teórico que se desprende da leitura de uma de nossas mais sofisticadas ensaístas: qualquer definição trans-histórica de literatura, qualquer resposta essencialista à pergunta sobre sua natureza, qualquer tentativa de defini-la em termos puramente imanentes fracassará no teste da falsificabilidade. Atendonos à definição que oferece Leyla Perrone para o que “serve” a literatura, poderíamos perguntar: Quem é o “nós” sujeito do verbo “acreditar” nesse trecho? Estamos todos os consumidores de literatura incluídos nele? Será mesmo tão impossível imaginar uma comunidade de leitores para os quais a “utilidade” da literatura seria justamente a oposta,
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não “esclarecer”, mas embaçar a experiência do mundo, não valorizá-la, mas desvelar-lhe a miséria? “Para que serve” a literatura é uma pergunta para a qual não há resposta de antemão, em abstrato, sem referência aos conflitos e pactos sociais que presidem a circulação dos artefatos verbais que, num momento muito recente – o século XVIII –, passaram a ser designados como “literatura”. Não há respostas imanentes às perguntas acerca de qual é o valor desses artefatos e quais, entre eles, exibem esse valor em medida superior aos demais. A universalização, como essência do texto literário, de um conjunto de postulados próprios a uma região e um momento histórico só pode levar à incapacidade de ler o presente a não ser como queda: “a literatura [...] recolheu-se a um canto” (Perrone-Moisés, 1998, p. 178), “os novos escritores [...] publicam livros light” (p. 178), “o desafeto progressivo pela leitura é um fenômeno internacionalmente reconhecido” (p. 178), “os livros de ficção se tornaram mais curtos e mais leves” (p. 178), “a literatura [...] está muito ameaçada” (p. 179). Aqui, prefiro ficar com Walter Benjamin, que, no Passagen-Werk, apontava que a crença nos períodos de declínio é coextensiva à crença entorpecida no progresso. “Não há períodos de declínio” (Benjamin, 1991, p. 571). O apocalíptico e o otimista progressivo representam duas faces da mesma moeda. Nos últimos anos, a literatura latino-americana ofereceu abundantes contraexemplos à percepção de que a ficção se encaminhava necessariamente na direção do mais breve e light. El pasado (2003), de Alan Pauls – segundo muitos, o grande romance argentino da década e, segundo o Le Monde, o grande romance de amor do novo século –, desenvolve em mais de 500 páginas recheadas de um vasto saber psicanalítico e cinematográfico uma história de amor marcada por uma essencial e deliciosa assimetria: Rímini, apaixonado por Sofia; Sofia, apaixonada por seu amor por Rímini. A extrema erudição e extensão do romance não o impediram de tornar-se um bem-sucedido filme em mãos de Héctor Babenco. 2666, o romance póstumo do
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chileno Roberto Bolaño, oferece, em mais de 800 páginas, um relato que conjuga os horrores dos assassinatos de mulheres na fronteira mexicano-americana com um estudo da frivolidade cúmplice que Bolaño via como característica das cliques acadêmicas e literárias. Um defeito de cor (2006), da mineira Ana Maria Gonçalves, apresenta, em mais de 900 páginas, uma saga narrada por uma escrava, Luisa Mahin ou Kehinde – possivelmente a mãe do poeta Luiz Gama –, que compra sua liberdade e percorre oito décadas de história brasileira e africana no século XIX, numa narrativa que mescla testemunho, historiografia e ficção sem nenhuma concessão ao naturalismo fácil. Os leitores das obras de Ana Maria Gonçalves, Alan Pauls e Roberto Bolaño são bem mais numerosos que nos fariam crer os apocalípticos, especialmente no caso deste último, cujo refinamento não impediu que ele se transformasse em fenômeno editorial. Esses leitores com frequência testemunham que a sofisticação dos textos não é contraditória com o interesse gerado pela peripécia. Em meu trabalho sobre música popular, interessou-me em certo momento a origem do discurso sobre a decadência do samba: “Já não se faz mais samba como antigamente”. Desde quando se diz isso? Minha hipótese inicial, a de que o discurso coincidia com o início da apropriação bossanovista do samba de morro nos anos 1960, foi contradita por inúmeras ocorrências anteriores dessa retórica, ainda no contexto da Rádio Nacional, nos anos 1950. Voltando ainda mais, encontrei outras instâncias na época do sambaexaltação e da sobreorquestração do gênero no molde das big bands norte-americanas. A hipótese de que a percepção de uma decadência no samba datava dos anos 1940 foi, por sua vez, contradita pela sua aparição durante a compra dos sambas dos compositores negros do morro por intérpretes brancos de classe média, como Francisco Alves, nos anos 1930. Estupefato, descobri que a afirmação de que já não se faz samba como antes aparece no primeiro livro escrito sobre o samba, pelo jornalista Vagalume, em 1933. O discurso de que o samba corre risco de morte tem a exata
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idade do samba. Da mesma forma, o fato de que em 1964 o poeta mexicano Octavio Paz tenha reunido uma lista de sinais de decadência da literatura não quer dizer que “a situação em que hoje vivemos foi claramente prevista” por ele (Perrone-Moisés, 1998, p. 179). Significa que a existência de profetas da queda do valor literário é tão antiga como a literatura mesma.
Axiologia, relativismo e contingência O axioma da filósofa Barbara Herrnstein Smith é um achado mais complexo e frutífero do que parece à primeira vista: o valor é sempre e necessariamente contingente (Smith, 1988, p. 30-53). Antes que a patrulha antirrelativista afie suas garras, é bom esclarecer que “contingente” não quer dizer “subjetivo” nem “relativo” nem “arbitrário”. Um determinado valor ou sistema de valores pode perfeitamente ser objetivo (na medida em que ele independe da subjetividade particular de qualquer membro da comunidade interpretativa), absoluto (posto que não relativizável dentro de tal comunidade) e motivado (no sentido de que sua origem não é produto de uma eleição puramente arbitrária). Nada disso mudaria seu caráter contingente. A expressão-chave aqui, claro, é “dentro da comunidade”. No espaço circunscrito da comunidade interpretativa em questão, um valor pode ser absoluto, objetivo e motivado, e continuaria sendo contingente. A coincidência de contingências que conferem inteligibilidade a um valor pode ser, inclusive, um dos elementos constitutivos da comunidade mesma, um dos fundamentos que presidem a emergência da própria comunidade. Um valor é sempre o resultado de uma luta mas, uma vez consolidado, esse valor contingente tenderá a aparecer aos membros da comunidade interpretativa como uma não-contingência. Bastaria pensar no considerável poder de tração de valores como o mester de clerecía (a técnica aprendida na tradição) na literatura tardo-medieval hispânica, a adequação aos modelos da Antiguidade na literatura
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neoclássica do século XVIII, especialmente na França, ou a inovação e a ruptura nas vanguardas de princípios do século XX. Em cada um desses casos, a justificativa de um valor contingente fez uso de um vocabulário da nãocontingência, ou seja, realizou uma transcendentalização de um processo que era imanente à comunidade valorativa em questão. Os juízos que se adéquam ao pacto valorativo dominante tenderão a ser lidos como confirmação da obviedade e naturalidade dos valores implícitos no pacto. Os juízos discordantes tenderão a ser lidos como deficiência ou falta de cultura do sujeito valorador. A transcendentalização dos resultados de um pacto particular é uma estratégia comum e recorrente nas querelas entre escolas e estilos literários, mas ela não é uma teoria da literatura e do valor estético como tais, a não ser como sinédoque cega a suas próprias condições de produção. O grau de estabilidade de um determinado sistema de valores em sua respectiva comunidade não diz nada sobre sua suposta obviedade, nem sobre as propriedades intrínsecas do objeto valorado, mas expressa a naturalização do pacto valorativo. Tomemos um exemplo latino-americano: é amplamente hegemônica a percepção de que, seja qual for a crítica que se possa ter à estética do realismo mágico, sua versão original, com Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, desfruta de um valor ausente em, digamos, A casa dos espíritos, de Isabel Allende. É claro que é possível questionar essa valoração (e já encontrei vários leitores, particularmente leitoras, que afirmavam que o melodrama de Allende lhes falava à experiência de uma forma que a saga de García Márquez não fazia). Esse questionamento, no entanto, não pode ocorrer sem que o sujeito se instale em posição exterior a um consenso crítico que preside as comunidades interpretativas nas quais circulam esses textos. Um exemplo análogo, no Brasil, seria o hipotético leitor que adentrasse as comunidades interpretativas dentro das quais circula o romance dos anos 1930 para propor a tese de que Jorge Amado é superior a Graciliano Ramos. A afirmação não está na esfera do indizível, mas ela não
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pode ser acomodada nos pactos valorativos dentro dos quais circulam os romances desses dois autores. A única possibilidade que restaria a esse hipotético leitor seria desvendar a natureza contingente da aparente naturalidade da valoração anterior, ou seja, questionar a totalidade do pacto valorativo. Os defensores da naturalidade do pacto valorativo em geral replicarão com a falácia desenvolvimentista: o argumento de que a percepção minoritária é produto de uma deficiência do sujeito valorador e que, uma vez que os leitores sejam educados direitinho, todos reconhecerão que não há como negar a superioridade estética de García Márquez sobre Allende. A posição que apresento aqui é, com frequência, confundida com o bicho-papão do relativismo, que afirmaria que todos os valores seriam igualmente válidos ou, para usar a fórmula popular, que “daria tudo na mesma” (um dos expoentes dessa desleitura, no Brasil, é o filósofo e poeta Antonio Cicero, que insiste em igualar desconstrução e relativismo). A acusação de relativismo tenderá a se repetir quando, no interior de uma comunidade interpretativa, for exposta a contingência que sustenta um valor supostamente absoluto. Ao questionar a obviedade de valores como “bondade”, “piedade” e “humildade”, Nietzsche ensinou algo acerca de como funcionam as operações de naturalização. Nietzsche não foi, de forma alguma, um relativista. Ele afirmou taxativamente que os valores socrático-cristãos são piores, mais baixos, valores de escravo, daninhos à afirmação da vida. Mas, não por acaso, o neokantismo de princípios do século XX leu como “relativistas” afirmações do tipo “falar de justiça e injustiça em si carece de todo sentido” (Nietzsche, 1967-77, p. 312). Com esse axioma, Nietzsche sugeria, claro, que não há “justiça” até o momento em que o mais forte estabeleça sua lei. Nessas polêmicas, vale sempre a regrinha: ao ver alguém ser acusado de relativista, dê uma olhada no absolutismo de quem acusa. No caso do valor estético, a acusação de relativismo invariavelmente remete a uma suposta tendência dos estudos culturais – ou das demonizadas feministas e afrocêntricos
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– de não aceitar a “óbvia” diferença de “qualidade” entre os grandes monumentos da modernidade e as formas estéticas mais populares ou massivas. Aceitar essa diferença seria um pré-requisito para qualquer discriminação de valor. Ou seja, a acusação de relativismo costuma pressupor que, se essa distinção de valor não é aceita, nenhuma distinção de valor é possível. Recorro à etnomusicologia, na qual me parece que o conceito de valor está colocado em terreno mais sólido. Está demonstrado, com pesquisa formal e etnográfica (Frith, 1996), que as distinções valorativas realizadas pelos fãs de música popular não são, absolutamente, menos complexas, rigorosas, multifacetadas ou especializadas que aquelas feitas pelos ouvintes do heterogêneo corpus de peças europeias modernas que, a partir do século XX, passou a ser agrupado sob o rótulo de “música clássica”. Qualquer consumidor de música popular que acompanhe, por exemplo, o heavy metal, poderá testemunhar acerca da miríade de distinções de subgêneros baseadas em andamento, instrumentação, vocalização, grau de distorção, volume, temática das letras, performance, timbre ou padrão rítmico – distinções incompreensíveis e ilegíveis para aqueles situados fora do pacto valorativo que preside o consumo do gênero. Carece de qualquer fundamentação filosófica a ideia de que a viabilidade do conceito de valor estético dependa da aceitação de uma diferença essencial, imanente entre o valor das obras agrupadas sob a rubrica da arte erudita e o valor daquelas que convencionamos chamar de populares ou massivas. Para seguir com a analogia musical: durante décadas, os estudos de música brasileira trabalharam com a noção de síncope como “irregularidade” essencialmente africana. O próprio Mário de Andrade faz referência a ela como característica “tida em geral como provinda da Africa” (1987, p. 409). Ora, tal “irregularidade” provinha do fato de que a teoria ocidental prevê compassos simples (binários: 2/4, 3/4, 4/4) e compostos (ternários: 6/8, 9/8), mas não prevê compassos que misturem de forma sistemática agrupamentos dos dois tipos, exatamente a mistura que
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é uma das marcas da música da África subsaariana. O resultado é que “ritmos desse tipo apareceram nas partituras como deslocados, anormais, irregulares (exigindo, para sua correta execução, o recurso gráfico da ligadura e o recurso analítico da contagem) – em uma palavra, como síncopes” (Sandroni, 2001, p. 26). O valor rítmico contramétrico era ilegível numa notação construída para descrever e privilegiar a harmonia. A chamada “irregularidade africana” não era senão a impossibilidade de que a partitura ocidental descrevesse apropriadamente o novo objeto. Os pactos valorativos na estética se tornarão visíveis em proporção direta à exposição do caráter contingente dos fundamentos que os sustentam. Dois exemplos, incluindose um que ilustra minhas críticas às revisões feministas, étnicas e pós-coloniais do cânone, ajudarão a encaminhar a conclusão teórica. Na Argentina, nos últimos trinta anos, nota-se uma acentuadíssima queda no capital cultural de um escritor que chegou a ser considerado um dos maiores do continente. Julio Cortázar, que inspirou uma geração de neovanguardistas estéticos e revolucionários políticos, é hoje invariavelmente visto como “escritor para adolescentes” (Aira, 2001) que, “depois de Todos los fuegos el fuego já não escreveu mais, dedicando-se exclusivamente a repetir seus velhos clichês e a responder às exigências estereotipadas de seu público” (Piglia, 1993, p. 85). Incontáveis são juízos contemporâneos que veem O jogo de amarelinha como romance que “sofreu enormemente a passagem do tempo” (Sarlo, 2008) e “está escrito para candidatos de agência de turismo cultural”, uma “perfumaria free tax de aeroporto” (Abraham, 2006, p. 39). Na Argentina, a avaliação mais recorrente de Cortázar é que se trata de um escritor em cuja obra talvez se salvem os primeiros contos, de Bestiario, mas não muita coisa mais. Uma determinada conjunção de fatores estéticos e políticos criou as condições para uma leitura celebratória de Cortázar nos anos 1960. A obra não parece ter renovado sua legibilidade depois daquele contexto (o que não quer dizer, evidentemente, que não possa vir a fazê-lo num momento futuro). O fato é que hoje
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seria bastante difícil encontrar um estudioso de literatura na Argentina que colocasse Cortázar no mesmo patamar de, por exemplo, Juan José Saer. As comparações com Jorge Luis Borges, comuns nos anos 1960, hoje soariam risíveis aos ouvidos dos que circulamos no interior dos pactos valorativos que presidem a circulação desses textos. Uma tese que se propusesse a comparar “o fantástico em Borges e Cortázar” é imaginável no Brasil, na Espanha e talvez nos EUA, como demonstra uma pesquisa nos bancos de dados da disciplina. Mas na Argentina ela seria recebida como uma junção de termos incomensuráveis.6 Com o exemplo de Cortázar, não quero me limitar a ilustrar o óbvio, que o valor dos escritores na Bolsa Literária (segundo a feliz expressão de Leyla Perrone-Moisés) muda no tempo e no espaço. Há uma lição menos óbvia a se extrair daí, sobre a qual as revisões feminista, étnica e pós-colonial do cânone ainda não refletiram o suficiente: a incontornável descontinuidade entre valor estético e resultado político, mesmo no caso das obras mais politizadas, como a de Cortázar. Um outro episódio de valoração, também latino-americano, oferece algo a ser pensado pelos dois polos do atual debate: a entrada do testemunho ao cânone literário. Em 1983, publicou-se o testemunho de Rigoberta Menchú, resultado de 25 horas de gravações realizadas pela antropóloga franco-venezuelana Elisabeth Burgos. Era o auge dos movimentos de solidariedade à revolução centro-americana, e a história de Menchú, formada na luta contra os horrores do regime guatemalteco, comoveu uma série de críticos de esquerda que buscavam alternativas a uma política literária herdada do boom. O testemunho havia recebido um primeiro reconhecimento em 1967, quando Casa de las Américas criou uma categoria especial para o gênero em seu prestigioso prêmio. A publicação de Biografía de un cimarrón, de Miguel Barnet, gerou comentários acerca de uma suposta transparência da voz testemunhal, uma vantagem do gênero em relação à literatura na representação dos excluídos. Seguindo-se à
Agradeço a Mariano Siskind pela interlocução sobre a perda de capital cultural de Julio Cortázar na Argentina e também pela citação de Beatriz Sarlo. 6
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publicação do testemunho de Menchú, George Yúdice opôs a literatura como “portadora privilegiada da identidade nacional” (1991, p. 20) ao testemunho como “expressão de uma consciência liberada de tal elitismo” (p. 26). A euforia levava a declarações como a de John Beverley, de que enquanto a literatura na América Latina “tem sido (principalmente) um veículo para engendrar um sujeito adulto, branco, masculino, patriarcal e ‘letrado’, o testemunho permite a emergência – mesmo que mediada – de identidades femininas, homossexuais, indígenas e proletárias” (1993, p. 98). Entretanto, no interior dos estudos sobre o testemunho, a ênfase nas mediações por meio das quais a voz testemunhal se registra na escrita e a análise da descontinuidade entre a posição do depoente (um subalterno, em geral indígena, camponês ou imigrante) e a posição do mediador (um intelectual, em geral um antropólogo) levou a própria crítica a matizar a euforia do primeiro momento. Estudos fundamentados no problema da mediação (Sklodowska, 1992), na aura de autenticidade da voz do subalterno (Moreiras, 2001) ou no papel do testemunho como recuperação imaginária de uma vocação política perdida na literatura (Avelar, 2003, p. 51-104) relativizaram a “revolução” testemunhal que parte da esquerda anunciara nos anos 1980. O saldo do episódio da canonização do testemunho foi que o texto de Rigoberta Menchú produziu um impacto importante, mas limitado, logo absorvido pelo pacto valorativo que preside a leitura do corpus latino-americano. A incorporação de depoimentos dos subalternos ao cânone não representou nem um assassinato de Cervantes e Borges pela barbárie iletrada, como chegaram a lamentar Roberto González Echevarría e outros expoentes da direita crítica latino-americana, nem um golpe ao poder “elitista” da literatura, como chegaram a celebrar John Beverley e George Yúdice. Tanto esteticistas como culturalistas sobrestimam as consequências da revisão de uma lista de leituras. Para os primeiros, ela funciona como explicação simples para o complexo quadro de perda de capital cultural da literatura.
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Para os segundos, funciona como mecanismo compensatório que permite a apresentação de novas listas de leitura, mais inclusivas, como se estas representassem uma vitória política real contra o racismo, o sexismo, o etnocentrismo e a opressão de classe. Ambos trabalham com o cânone, o valor e a estética de forma a não permitir nenhuma descontinuidade entre os três termos. A grande tarefa da teoria não seria, então, salvar a literatura ou democratizar o cânone, mas introduzir algum espaço de respiração na interseção entre esses três conceitos.
Para uma genealogia do conceito de valor estético Os conceitos de valor e de estética terminaram, então, sendo vistos como contíguos entre si por esteticistas e culturalistas, como se toda estética pressupusesse a noção de valor, ou como se valorar obras de arte sempre implicasse que o juízo em questão fosse estético. Para concluir, sugiro rotas de dissociação entre esses conceitos, com observações acerca do que denomino uma concepção agnóstica de valor literário. Recorde-se que, na Crítica do juízo kantiana, o conceito de valor [Wert] não aparece no contexto do estabelecimento da estética. Este é um fato filológico tão banal quanto regularmente esquecido: na origem da estética, não há conceito de valor. Kant faz, sim, referências ao valor de um ato (§91), ao valor da existência humana (§4) e à necessidade do postulado da existência de seres racionais para que o mundo seja dotado de valor (§87). Ou seja, todas essas ocorrências se referem a uma esfera extraestética. A única menção ao valor num contexto estético ocorre em §53, dedicado à comparação entre as várias belas artes (segundo Kant, a mais alta seria a poesia). Mas não há, na Crítica do juízo, nenhuma hierarquia do belo, nenhuma atribuição de valor à beleza, no sentido mensurável, quantitativo que é próprio do conceito. Como se sabe, para Kant, a estética seria a esfera da experiência
Que Antonio Cicero decrete que “quando digo que um texto é [...] um poema bom, não estou dizendo meramente que gosto dele, mas que todo mundo que o 7
Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate... considere desinteressadamente deve reconhecer” esse suposto fato e que, por outro lado, “se digo ‘eu gosto de abacate’, não pretendo o mesmo” (2009a), não torna essa distinção verdadeira. No mundo real, incontáveis leitores dizem que “No meio do caminho” é um bom poema e outros incontáveis leitores dizem o contrário, exatamente como ocorre com o gosto do abacate. Decretar que estes últimos são maus leitores não resolve o problema teórico. Quando Cicero afirma que Barbara Herrnstein Smith, ao propor a tese da contingência do valor, “nem sequer se dá conta de que, ao dizer tais coisas, incorre em paradoxos que solapam suas próprias teses” (2009b, p. 8), ele parece não ter se dado conta de que há um capítulo inteiro de Contingencies of value dedicado a refutar a objeção de que supostamente não se poderia afirmar que o valor é sempre contingente sem cair em contradição. Quem afirma a contingência do valor não está conferindo ao objeto valorado um atributo que permaneceria no tempo. Os enunciados falsificáveis evidentemente não se submetem às mesmas regras de verificabilidade dos não falsificáveis. Ou seja, é pueril argumentar que não podemos afirmar que “o sentido não é eterno e unívoco” pelo fato de que essa frase supostamente teria um sentido eterno e unívoco. A frase não confere um atributo ao sentido; ela se limita a apresentar uma negativa. Em bom português: no debate entre agnósticos e crentes, o ônus da prova cabe a estes.
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desinteressada do belo, apresentada como apreço que necessariamente demanda universalização, concordância de todos. Deixemos de lado o caráter escorregadio dessa premissa, já amplamente criticada pela tradição (a começar pelo próprio Hegel). Basta ler a analítica do belo (§6 a §22) para constatar que Kant o entende como objeto de um juízo de tipo, jamais de grau. Caso se apresente a objeção de que a impossibilidade de submeter o belo a fórmulas comparativas contraria todo o senso comum que desenvolvemos como consumidores de arte, não custa lembrar que o próprio pilar da analítica kantiana do belo – a demanda de concordância universal sobre o juízo – também embute um patente contrassenso.7 Por isso, não há que se repreender Barbara Herrnstein Smith por remeter o valor estético ao terreno da economia (Perrone-Moisés, 1998, p. 230). Na verdade, não há outro vocabulário que não o da economia. Todas as definições não econômicas de valor estético que tenham pretensões trans-históricas incorrem em versões mais ou menos sofisticadas de uma tautologia: define-se o valor como a presença de certos traços formais (sejam quais forem) ou a capacidade de produzir certas sensações. Esses traços ou potencialidades passarão a ser apresentados como característicos da experiência estética, sendo sua maior ou menor presença em cada obra o critério para sua valoração. Ao enfrentar-se com a pergunta acerca de como se chegou a delimitar o terreno propriamente estético, remete-se o interlocutor à existência de obras que exibem... aqueles traços inicialmente definidos como característicos do estético! Não é à toa que os alunos não aceitam isso facilmente. Ao propor que não há conceito não tautológico de valor estético fora da economia, não sugiro, evidentemente, que o valor estético de Grande sertão: veredas possa ser deduzido do preço da mercadoria comercializada pela Editora Nova Fronteira. Sugiro, sim, que esse valor se deduz num contexto eminentemente relacional, econômico, no qual atos de valoração socialmente situados entram em conflito, em negociação e em articulação, mediados por
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instituições como a escola, a imprensa e a crítica, num processo que conforma um equilíbrio nunca completamente estável – o que venho chamando aqui de pacto valorativo. Para compreender sua dinâmica, vale a pena refletir sobre como a economia política entendeu o valor. Já está presente em Aristóteles a compreensão de uma diferença clara entre o valor de uso e o valor de troca: “todas as coisas que são trocadas devem ser de alguma forma comparáveis. É para esse fim que se introduziu o dinheiro” (1133a). O conceito da comparabilidade universal precede, portanto, a economia política em mais de dois milênios. É o próprio Marx que, no primeiro capítulo de Capital, dedicado à mercadoria, dá o crédito a Aristóteles como o “primeiro pesquisador a ter analisado a formavalor” (1952, p. 71). As genealogias da economia política em geral conferem a Riqueza das nações, de Adam Smith, o mérito da ruptura com a natureza circular do debate anterior, entre fisiocratas e utilitaristas. Smith escapa da circularidade da equivalência universal das mercadorias ao dotar um conceito de um papel transcendental, que serve de fundamento a todas as outras trocas: “o trabalho é a real medida do valor intercambiável de todas as mercadorias” (Smith, 1999, p. 581). É o trabalho que lhes confere valor e explica a possibilidade de equivalência entre duas mercadorias distintas. A consolidação da teoria do valortrabalho, com Ricardo, ocorre não a partir do fato de que o “trabalho seja um valor fixo, constante e permutável sob todos os céus e todos os tempos, mas sim porque todo valor, qualquer que seja, extrai sua origem do trabalho” (Foucault, 1992, p. 269). O conceito de valor, pelo menos na economia política, na qual ele sempre teve sua morada mais sólida, pressupõe um transcendental, o trabalho, que delimita uma região na qual a representação “não tem mais domínio” (Foucault, 1992, p. 270). O objetivo aqui não é traçar uma analogia entre o valor estético e o valor econômico, mas justamente notar que há uma operação analógica silenciosa, de rentabilidade limitada, nas teorias imanentistas do valor estético. A economia
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política sempre enfatizou, claro, que a lei do valor-trabalho se aplica a objetos reprodutíveis, e que o cálculo do valor da mercadoria como quantidade de trabalho socialmente necessário para a sua produção não se aplica a objetos estéticos. Atesta-o a célebre observação de Marx na introdução aos Grundrisse, de que o mistério não era explicar que a arte grega emergiu como produto de circunstâncias históricas particulares próprias à sociedade helênica, mas entender como e por que os poemas homéricos, produtos do que ele chamou de “infância da humanidade”, ainda nos fascinam e mantêm sua legibilidade. A manutenção do valor de uma mercadoria ao longo do tempo se explica pelo fato de que ali se aninha uma quantidade determinada de trabalho que mantém alguma tradutibilidade (com as naturais oscilações que serão fruto das próprias variações no valor do tipo de trabalho que se encontra ali congelado). Na economia, a teoria do valor depende de um transcendental, o trabalho. Na ausência desse transcendental, a teoria do valor estético só pode definir o valor imanentemente a partir das operações circulares descritas acima, não muito diferentes das equivalências universais tautológicas dos economistas anteriores a Adam Smith. O trabalho que produz a obra de arte não é traduzível, e portanto sua permanência no tempo não se explica imanentemente: A permanência de um autor clássico como Homero se deve não ao valor supostamente transcultural ou universal de suas obras mas, pelo contrário, à continuidade de sua circulação numa cultura particular. Repetidamente citada e recitada, traduzida, lecionada e imitada, e completamente inserida numa rede de intertextualidade que continuamente constitui a alta cultura [...], essa altamente variável entidade à qual nos referimos como “Homero” recorrentemente entra na nossa experiência em relação com uma grande variedade de nossos interesses, e pode assim realizar várias funções para nós (Smith, 1998, p. 52-53).
Evidentemente, essa observação não é o fim, mas o prolegômeno da pesquisa. Haveria que se estudar o que,
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em cada situação e contexto, permitiu que cada obra realizasse as funções que os vários leitores, instituições, escolas, academias e intertextos lhe atribuíram ao longo dos anos. No caso do debate sobre o valor que tem se desenvolvido nos estudos de literatura brasileira e latino-americana, ganharíamos terreno se o dissociássemos da polêmica entre o culturalismo e os defensores do “cânone ocidental” e o remetêssemos a todo o vasto material que pode informar uma futura história da construção do valor literário no Brasil: o erudito mapa traçado por Raúl Antelo do ideário da transgressão na modernidade (Antelo, 2001), a valiosa sequência de pesquisas feitas por Marisa Lajolo e Regina Zilberman sobre a história da leitura e do livro (Lajolo e Zilberman, 1991; 1996; 2001), o estudo de Roberto Ventura sobre as polêmicas literárias, essas verdadeiras máquinas de produção e destruição de valor (Ventura, 1991), as pesquisas de Flora Süssekind sobre as relações da literatura com outros discursos, como os relatos de viagem (Süssekind, 1990) ou as tecnologias da reprodução (1987), a recuperação de facetas pouco exploradas dos escritores mais canônicos, como a recente antologia de escritos de Machado de Assis sobre a afrodescendência realizada por Eduardo de Assis Duarte (2007), para não mencionar mais que alguns exemplos. Acredito que ainda sabemos pouco sobre o papel das antologias, de Manuel Bandeira (1963) a Italo Moriconi (2000; 2001), na conformação do sistema de valores literários brasileiros. A história da profissionalização do escritor e das suas relações com a imprensa e com o mercado ainda nos oferece vastas zonas de pesquisa não realizada. Para além do lamento de que a internet é responsável por uma queda na qualidade e na frequência da leitura das novas gerações – queixa jamais fundamentada com pesquisa empírica e agora patentemente desmentida (Castells, 2009) –, uma série de novos escritores faz uso das tecnologias de publicação online para circular seus textos e manufaturar concepções emergentes de valor literário. O postulado da contingência essencial do valor só abre um espaço de relevância ainda maior para essas pesquisas.
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Estabelecer com a valoração uma relação menos essencialista e mais agnóstica não implica que o crítico deixará, em situações e contextos específicos, de exercitar os juízos de valor que são uma inevitabilidade da própria prática crítica. Significa que não se confundirão esses juízos com uma teoria geral do valor. No horizonte imenso aberto por esta última, as querelas sobre o cânone ocidental talvez não passem de uma nota ao pé de página.
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O ensino de literatura brasileira por meio do Teatro do Oprimido: uma experiência na Carolina do Norte Érica Rodrigues Fontes* resumo: Este trabalho analisa experiências no ensino de litera-
tura brasileira realizadas com alunos estadunidenses da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill (UNC-CH). Ao utilizarmos um método teatral baseado no Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, pretendemos criar uma relação ideológica entre os alunos americanos e não só a literatura brasileira, mas o contexto brasileiro, de forma a lidar mais eficientemente com algumas questões apresentadas em nossa literatura e que concernem diretamente textos de autoria feminina, em especial textos escritos na segunda metade do século passado. Aqui se propõe uma avaliação de exercícios a partir da leitura de I love my husband, de Nélida Piñon, Menina de vermelho a caminho da lua, de Marina Colasanti, e A hora da estrela, de Clarice Lispector. palavras-chave:
literatura brasileira, Teatro do Oprimido,
educação. abstract: This paper analyzes experiences with the teaching of
Professora adjunta de língua inglesa (Graduação) e de literatura (Mestrado em Letras) da Universidade Federal do Piauí (UFPI). ∗
Brazilian literature. These experiences were done with American Students from the University of North Carolina at Chapel Hill (UNC-CH). By using a theater method based on the Augusto Boal’s Theater of the Oppressed, we intended to create an ideological relationship between the American students who took the course and not only the Brazilian literature but also the Brazilian context, as a means of dealing more efficiently with some issues presented by our literature and which directly concern texts by women authors, especially texts written during the second half of the last century. Here I propose an evaluation of the exercises done based on the reading of Nélida Piñon I love my husband, Marina Colasanti’s Little Girl in Red on her Way to the Moon and Clarice Lispector’s The Hour of the Star.
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.15, 2009
Brazilian literature, Theater of the Oppressed,
education.
Introdução Ensinar literatura brasileira no exterior (e para estrangeiros) está obrigatoriamente atrelado a uma experiência cultural, a uma exposição sobre a história e política brasileiras. Nos Estados Unidos, tal ligação se torna indispensável, pois, embora neste país da América do Norte exista muita exposição à cultura de outros países, não há de fato acesso à perspectiva ideológica de outras nações. Assim, torna-se um compromisso do professor de literatura brasileira, no contexto estadunidense, criar para os alunos possibilidades de interação com a mentalidade brasileira, com a interpretação brasileira de mundo. Muito mais do que o ensino de movimentos literários, métrica ou outros assuntos de interesse da literatura, é em sua temática que nossa literatura parece ser mais enriquecedora quando pertencente a um currículo estrangeiro. Depois de ensinar em cinco turmas de graduação a matéria Literatura Lusófona na Carolina do Norte, e por ater-me principalmente ao ensino das obras escritas no Brasil, percebi dois pontos de interesse comum das culturas e literaturas estadunidense e brasileira: as minorias políticas e as questões identitárias. Portanto, ao selecionar textos para leitura e debate em sala, procurei priorizar esses dois temas. Como afirma Leonard Davis: “Novels do not depict life, they depict life as it is represented by ideology”1 (Davis, 1987, p. 24). De ���������������������������������������������� fato, os textos escolhidos foram considerados representativos da ideologia brasileira contemporânea com atenção para os temas supracitados, pois, como afirma Linda Hutcheon (1999), a ideologia é a própria representação da cultura. Houve, portanto, uma preocupação com a criação de uma estratégia de relacionamento entre a nossa realidade e a realidade do país onde a nossa está
Romances não mostram a vida. Eles mostram a vida como representada pela ideologia. Minha tradução. 1
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sob estudo, pois, embora muitas vezes essa ideologia esteja clara para um nacional da literatura lida, para o estrangeiro ela precisa ser apontada. Como exemplo, cito um momento de debate sobre a personagem Macabéa do romance A hora da estrela, de Clarice Lispector. Para os alunos do curso, em sua maioria nascidos em um contexto rural como o da Carolina do Norte, era quase impossível entender a condição tragicômica dessa personagem, pois ela está inserida em um contexto urbano, onde mora longe de seu estado de origem, com pessoas desconhecidas. Os fatos engraçados que acontecem na vida de Macabéa são gerados pela sua estranheza, pela sua falta de adaptação à sociedade, sua marginalidade. Se nos EUA a principal razão para os jovens saírem de sua terra natal é estudar em uma boa instituição, no Brasil o principal motivo para o êxodo jovem tem razões muito diferentes: a fuga da fome, da miséria e da pobreza. Para os alunos norte-americanos, portanto, entender o comportamento de Macabéa tornava-se difícil. Eles consideravam-na simplesmente um ser humano desprovido de inteligência e, então, digno de risadas e deboche. Foi preciso comparar a situação dessa personagem com uma vítima da pobreza, fome e desastres naturais no estado do Mississippi (o mais pobre dos Estados Unidos) para que os alunos entendessem a tragicomicidade da obra. Muito provavelmente pela dificuldade de localizar pontos de interseção entre as duas culturas é que outros instrutores do curso supracitado haviam detectado que a participação dos alunos nas discussões era bastante inferior às suas expectativas e que as atividades, em muitos casos, eram desinteressantes para os discentes. Foi principalmente por causa do aparente desinteresse dos alunos pela disciplina que resolvi implementar em minha aula de literatura exercícios de teatro para posterior montagem teatral e um segundo momento de discussão. A metodologia escolhida foi a do Teatro do Oprimido, objeto de minha pesquisa de doutorado.
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O projeto relatado neste artigo teve por objetivo a melhor absorção de conteúdos literários pelos alunos de literatura de graduação de diversos cursos da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill (UNC-CH). Realizado de agosto de 2004 a julho de 2006, ele revela experiências ocorridas nas turmas de Português 40 (Introdução à Literatura Lusófona), das quais fui instrutora, enquanto aluna de mestrado e doutorado na UNC-CH. Neste artigo, analiso exercícios teatrais desenvolvidos a partir de três textos brasileiros de autoria feminina: I love my husband, de Nélida Piñon, Menina de vermelho a caminho da lua, de Marina Colasanti, e A hora da estrela, de Clarice Lispector. Os textos foram analisados e encenados a partir de traduções inglesas das obras, nos moldes do Teatro do Oprimido e principalmente do Teatro Fórum (técnica de Boal para discussão de problemas sociais no palco, a ser explicada a seguir, juntamente com sua adaptação para a aula de literatura). Por meio dessas técnicas e de sua adaptação para as aulas, os alunos se colocam no lugar de personagens brasileiros, discutem a resolução do seu problema e depois trazem algumas situações para o contexto estadunidense, ao debater ou analisar problemas equivalentes nas duas Américas ou, mais especificamente, nos dois países. Há pelo menos dois fatores que favorecem a utilização do método teatral de Boal nessa aula de literatura: a ideologia sob a qual os textos tratados foram escritos (condição subalterna da mulher e a sua necessidade de liberação) e o fato de o Teatro do Oprimido ser um tipo de teatro que tem como proposta final a discussão de problemas sociais. Esses textos traduzem opressões contemporâneas vivenciadas no Brasil e que têm equivalentes na sociedade norteamericana, ainda que estes não sejam divulgados. Assim, descreveremos como foi proporcionada essa ligação entre a identidade norte-americana e a identidade brasileira para o ensino de literatura brasileira, visando exclusivamente a um melhor aproveitamento literário e cultural dos alunos,
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originado por uma maior convivência com as obras, por meio do envolvimento teatro-lúdico. Neste artigo me concentrarei no resultado concernente ao trabalho desenvolvido com os textos supracitados. As duas últimas obras foram estudadas no final do semestre, indicando um envolvimento mais profundo dos alunos com a metodologia.
Walter Benjamin explica que, no teatro épico de Brecht, priorizam-se a crítica social e a interrupção da ação dramática (os momentos narrativos são exemplo dessa interrupção) para reflexão sobre a crítica encenada. O público, porém, não participa do espetáculo ativamente. No teatro de Boal, diferentemente, o público pode interferir diretamente na ação, encenando suas sugestões, ainda que sob a supervisão e orientação de um diretor, o Curinga. 2
As observações descritas a seguir foram feitas a partir das experiências de sala de aula e baseadas nas ideias retiradas do livro Técnicas latino-americanas de teatro popular, de Augusto Boal. Os seus métodos teatrais, mais divulgados com a publicação do livro Teatro do Oprimido, ocorrida no início dos anos 1970, ficaram conhecidos em todo o mundo e priorizam uma participação mais ativa do espectador, que vai além do modelo observador e consciente apresentado pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht.2
É no Teatro Fórum, uma das técnicas do Teatro do Oprimido, em que há o incentivo à discussão de problemas sociais, que a participação da plateia pode ser mais claramente notada. Neste modelo de teatro, a primeira parte de uma peça é tradicional (com a separação entre público e atores), se dá em aproximadamente 30 minutos e apresenta pelo menos um problema ou erro em cada cena. Por erro entende-se uma situação social de opressão, sendo o erro, portanto, cometido pelo opressor e também por uma falta de postura mais libertária do oprimido. Na segunda parte da peça, que é introduzida por um Curinga, espécie de diretor teatral, perito na metodologia de Boal, o objetivo do público é, então, tentar consertar ou remediar o erro. O Curinga indica para a plateia que as cenas poderão ser modificadas por meio da substituição do oprimido (de acordo com a ideologia do Teatro do Oprimido, somente o oprimido pode ser substituído), com quem a plateia é levada a se identificar. Muitas vezes ela (plateia) até tem uma história que já auxilia esse processo, visto que muitas das peças são apresentadas em edifícios públicos, tais
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como escolas, hospitais e prisões, e retratam os contextos socialmente carentes do espectador. As exceções com relação à substituição ocorrem somente no caso de o opressor tornar-se ainda mais cruel em sua opressão, postura justificada pelo fato de que o Teatro do Oprimido é do oprimido, feito por ele e mostrado para ele, com protagonistas que querem mudar a sua história de vida. Quando o opressor é modificado, não há muito que o oprimido possa fazer a respeito, já que a plateia é inicialmente incentivada a identificar-se com o oprimido. Ou seja, ao substituir o opressor, a plateia tenta modificar uma postura sobre a qual não tem nenhuma influência no dia a dia, pois não é esse o papel que faz e, consequentemente, não é a substituição do opressor que modificará ou ensaiará uma modificação social. Além disso, o sistema social não testemunha uma frequente mudança na atitude de pessoas que fazem o papel de opressores, pois estes, de acordo com o Teatro do Oprimido, tendem a permanecer iguais. A atitude daquele que é vítima de opressão, porém, deve mudar para que, então, lentamente, o sistema mude a seu favor.
O Teatro do Oprimido em I love my husband Nas aulas mencionadas, usei a ideia geral do Teatro do Oprimido, que divide a sociedade no binário oprimidoopressor (equivalentes ao protagonista e antagonista, respectivamente) para estudar as relações presentes nos textos e, a partir de então, sugerir uma interpretação mais profunda destes. Passemos então a um breve relato das experiências que, por si só, serão perfeitas ilustrações de como a leitura de um conto ou outro tipo de texto literário pode ser enriquecida com este método. Comecemos com I love my husband. Nesse conto, temos o retrato de uma mulher que é praticamente escrava de seu marido: faz para ele café todos os dias, prepara tortas de chocolate, evita falar de amor com ele porque há, na concepção deste, muitos outros
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problemas que merecem mais atenção, como, por exemplo, a situação econômica do país. Esta mulher, completamente submissa a seu marido, segue mecanicamente as ações que são esperadas dela como uma boa esposa: está feliz quando ele chega em casa às sete da noite e tenta reclamar cada vez menos do seu serviço de casa. No final do conto, relembra os votos de seu casamento e conclui que, sim, ama seu marido, embora o que ela relata seja digno do sentimento oposto. Após a leitura desta obra, houve um debate sobre a literatura de autoria feminina nos anos 1980 como reacionária à predominância de textos de autores masculinos até pouco tempo antes dessa década. Depois de traçarmos um breve painel sobre a liberação da mulher e sua repercussão na literatura, comentamos o conto propriamente dito. Com relação a esse texto, pedi aos alunos que fizessem um exercício anterior à identificação do opressor e oprimido da obra, normalmente o primeiro passo para aplicação da metodologia de Boal. A turma foi dividida em duplas e pedi a elas que escolhessem o momento que demonstrasse uma intensa emoção e que exagerassem essa emoção em uma cena teatral. Por termos pouco tempo para apresentar esse exercício, apenas três cenas foram mostradas para toda a turma, após um curto período de prática, e merecem atenção particular. Na primeira cena, uma aluna se comportou como uma guerreira, gritando e portando-se ferozmente. Revelou-se então sensual e bela durante a ausência de seu marido. Essa cena levou-nos a debater sobre o caráter frustrante do cárcere privado da esposa do conto, combatido em sua vida onírica. A segunda cena mostrou um marido mais agressivo do que o descrito no conto, o que exigiria uma postura mais firme de sua mulher para que esta pudesse ter uma vida mais digna. A última cena mostrou a esposa literalmente como uma escrava, absolutamente dominada pelo marido e impossibilitada de mover-se por si só. Depois desses exercícios, discutimos a natureza da opressão nesse conto e chegamos à conclusão de que ela
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é proveniente do machismo e da condição subalterna da mulher, muitas vezes aceita por ela mesma passivamente. No texto, a liberação dessa dona de casa acontece somente em um mundo fantasioso, quando ela se mostra uma amante selvagem, cercada por javalis e pelo Clark Gable. Posteriormente, as duplas definiram o opressor e o oprimido, encenando suas adaptações de I love my husband. Uma das duplas mudou o final do texto, sendo o marido vítima de homicídio. Nessa adaptação, a mulher se mostrou falsamente mais solícita e amável do que no conto, o marido se mostrou mais agressivo e inconformado com a mulher e o homicídio aparece como resolução óbvia, embora não seja esse o objetivo do Teatro do Oprimido, que quer fornecer para o público, por meio do teatro, os meios para que o problema seja examinado, e não sua resolução.
O Teatro do Oprimido em Menina de vermelho a caminho da lua O segundo texto em questão, Menina de vermelho a caminho da lua, trata do universo infantil pervertido pela desigualdade social. O título alude à cor da roupa de uma menina de aproximadamente dez anos de idade que intenciona brincar em um parque de diversões, mesmo não tendo dinheiro para isso. A história inicia-se com a mãe de duas meninas contratando um narrador a partir de um anúncio de jornal para relatar o episódio do pseudoencontro entre ela e a menina de vermelho. Embora a mãe prefira uma mulher para narrar a história, tem de aceitar um homem, única pessoa que responde ao anúncio, requerendo que ele use roupa de mulher para ver se, de alguma forma, terá uma atitude mais feminina. Assim, o homem escreve todo o tempo vestindo uma saia rosa e um lenço na cabeça, e com pouquíssima autonomia, pois a mulher se declara detentora dos fatos, fazendo com que sejam narrados segundo a preferência dela.
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O conto narra a ida dessa mãe com suas duas filhas a um parque de diversões em um sábado e, principalmente, seu encontro com a realidade de uma menina de rua de dez anos de idade que, por não ter dinheiro para andar na mesma atração que suas filhas (uma bolha, espécie de pulapula), insinua-se sexualmente para o homem responsável pelo brinquedo para poder brincar de graça. O estilo do texto descreve o erotismo e a sexualidade precoces de uma pré-adolescente que usa seu corpo como meio de adquirir aquilo que ela não pode com dinheiro. Verbos que aludem à experiência sexual (“penetrar” e “perfurar”, por exemplo) são uma constante em todo o texto, usados mesmo quando não descrevem momentos sexuais. Quando acaba o sábado e essa menina descalça vai embora, sendo observada pela mãe das duas meninas, sua figura juvenil mancha o ar de vermelho (referência à cor de sua roupa), indicando, muito provavelmente, a perda da inocência e o ingresso em um mundo cruel para os desprovidos de bens materiais. Na discussão inicial, vários foram os pontos levantados a respeito desse conto. Nele, há uma menina que precisa utilizar-se de táticas sensuais e até sexuais para conseguir o que a falta de dinheiro não lhe proporciona, um homem sem voz e submisso a uma mulher (na figura do narrador) para quem trabalha e a discrepância social entre as filhas da mulher que contrata o narrador e a menina de vermelho no parque. Não podemos deixar de falar também da omissão dessa mulher em relação à situação da menina de vermelho e da literatura como canal de reação social, pois é ela o meio que a mulher usa para tornar a sua história pública e passível de crítica. Os alunos mostraram-se surpresos principalmente em relação à prostituição infantil que, nos EUA, não é tão visível ou noticiada quanto na América Latina. Como lemos uma tradução para o inglês intitulada Little girl in red on her way to the moon, o fato de a menina usar de artifícios sexuais se torna ainda mais desconcertante, porque ela não é apenas uma menina. Na tradução inglesa, ela é uma menininha, o que acentua ainda mais a pouca idade
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de um ser humano já iniciando na prostituição. Em alguns momentos, os alunos questionaram a sensualidade precoce da cultura latino-americana, mas foi necessário indicar para eles a drástica diferença entre sensualidade e prostituição como meio de sobrevivência, o que independe da idade, comumente atingindo as crianças de rua, que muitas vezes assumem uma vida com hábitos adultos antes mesmo de chegarem à adolescência. Por conta da alusão da história à prostituição infantil, os alunos foram motivados a buscar informações a respeito do tópico e descobrir a situação desse crime em vários países. O resultado dessa pesquisa foi apresentado individualmente na aula imediatamente posterior. Esse resultado confirmou a incidência da prostituição infantil nos países em desenvolvimento, onde há crianças de rua em maior quantidade. Para a surpresa de muitos, no entanto, também existe prostituição infantil em grande quantidade nos EUA, principalmente nas regiões menos desenvolvidas. Após a discussão da obra literária e apresentação de sua crítica social, chegou o momento de aplicar a metodologia de Boal ao texto. A turma foi dividida em seis grupos, de aproximadamente cinco componentes cada. O primeiro passo para o trabalho em grupo foi definir onde havia a opressão no texto ou quem era o oprimido e estava lutando pelo seu lugar na sociedade. Nesse ponto, normalmente temos acesso a diversas interpretações de uma mesma obra. Embora tenhamos a menina de vermelho como protagonista e possivelmente a única apontada como oprimida na leitura inicial, existem outras opressões: a opressão pela qual passa a mãe das duas meninas, que contrata um narrador para a sua história, exatamente para desabafar e se eximir da culpa de não ter feito nada para ajudar uma menina da idade de suas duas filhas. Há a opressão do homem contratado para narrar a história travestido de mulher e sem a possibilidade de expressar a sua voz, pois esta é da mãe das meninas (uma inversão da opressão à qual normalmente as mulheres são submetidas).
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Assim, os seis grupos mostraram diferentes facetas da opressão em Menina de vermelho a caminho da lua. Um dos grupos acentuou a opressão à qual foi submetido o narrador, salientando o fato de que são oprimidos todos os que agem sem ter autonomia sobre suas ações. Outro grupo chamou atenção para a angústia da mãe ao narrar a história por meio desse homem, pois também nisso via-se uma falta de liberdade para que essa mulher expusesse seu ponto de vista livremente, talvez aludindo ao que historicamente acompanhou (e muitas vezes ainda acompanha) a trajetória da mulher no Brasil. Outros dois grupos preferiram falar da menina de vermelho e da precocidade de suas ações por conta de sua situação social. E os últimos dois resolveram falar do homem como vítima da prostituição infantil, pois, como vimos, a opressão a ele não passou despercebida no conto. Assim, uma situação encenada na aula (uma adaptação do texto original) por um desses dois últimos grupos demonstrou as agruras de um menino que fora expulso de um orfanato e começou a se prostituir como resultado do preconceito social, porque ao sair do orfanato ninguém lhe deu emprego. Ao lidarmos com a metodologia de Boal, os objetivos são claros: identificar a opressão e criar meios para que o oprimido tenha voz para lutar contra ela. As diversas interpretações da opressão mostradas no conto motivaram debates sobre a origem da opressão sexual e sobre o que favorece a sua proliferação dentro do sistema no qual vivemos. Houve, surpreendentemente, uma discussão sobre quem sustenta a prostituição em países desenvolvidos e em cidades universitárias americanas, como é o caso de Chapel Hill, onde esta discussão específica ocorreu. Nessa cidade universitária de uma área abastada dos Estados Unidos, há um local que está aberto 24 horas por dia: o University Massage, onde sempre se deve utilizar a porta traseira (conforme aviso fixado na porta). Esta é provavelmente uma das poucas casas comerciais que nunca fechou as portas nesta cidade. Depois de uma longa discussão a respeito da prostituição local, vimos que, muitas vezes, o sistema social
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sustenta a prostituição, sendo esta mantida por pessoas instruídas e ricas. A partir daí refletimos sobre o que pode ser feito para minimizar esse poder opressor.
O Teatro do Oprimido e A hora da estrela O próximo texto em discussão foi o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector. Embora ele tenha sido escrito e publicado antes de Menina de vermelho a caminho da lua, sua extensão e diversidade temática explicam a preferência por estudá-lo no final do curso. Juntamente com Um sopro de vida, esse romance pretende entender a própria existência, coincidindo com o final da vida de Lispector, em 1977, que é aludida quando a autora utiliza-se de questões de autoria no romance. Em vários momentos, Lispector divaga sobre o poder do autor ao dar vida e matar, poder concedido por ela a Rodrigo S. M. para dar início e fim a sua protagonista. Em A hora da estrela, Clarice Lispector não mantém o foco em suas protagonistas donas de casa dominadas por um sistema que subjuga a mulher, à semelhança de outros de seus contos e romances, colocando-as quase como um objeto em suas próprias residências. Nessa obra, a autora deixa o universo da alta classe média para penetrar no mundo marginal e excluído do nordestino que se muda para o sudeste em busca de uma vida melhor. Embora sua protagonista seja novamente uma mulher com o nome estranho de Macabéa, nome que remete aos revoltosos macabeus, seu namorado, Olímpico, também é tão excluído quanto ela. Isso se torna óbvio quando lemos a respeito do primeiro encontro dos dois, onde se veem quase como em um espelho, pois reconhecem um no outro sua origem e trajetória de vida. Mas o foco é mesmo a moça virgem que bebe coca-cola e tem um nome estranho, uma vida estranha, um namorado estranho. A personagem de Clarice em seu romance final é quase subumana, mas nem um pouco irreal para aqueles que conhecem a população brasileira. Talvez por isso a história de Macabéa seja mais trágica para
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os que a leem no Brasil e mais engraçada para os que a leem fora do Brasil, mas para os dois grupos a história sempre mantém seu quê de tragédia e comédia. O título e seus vários subtítulos (A culpa é minha, O direito de protestar e Uma saída discreta pela porta dos fundos, entre outros) indicam que a protagonista é uma vítima social. Sua hora de brilhar só acontece mesmo no momento da morte. Seu namorado a trata mal do início ao fim do relacionamento. Até quando ela pede que ele compre um café para ela, recebe uma resposta grosseira. E, ao pedir por açúcar, Olímpico afirma que ela pagará a diferença de preço, se for o caso. O mais interessante no relacionamento dos dois são os diálogos, pois Olímpico se julga inteligente e vencedor, mas nunca sabe as respostas para as perguntas de Macabéa. Na verdade, ele nunca assume sua ignorância em relação às respostas. Diz que Macabéa só faz perguntas tolas e, sobre alguns questionamentos da moça, afirma que as respostas não são apropriadas para uma moça virgem como ela. A difícil convivência dos dois, muito mais por parte de Olímpico do que de Macabéa, pois esta sempre se desculpa por erros que ainda nem cometeu, decreta o fim do relacionamento. Olímpico a troca por Glória, colega de trabalho de Macabéa, mulher mais encorpada do que a colega nordestina e também mais provocante e sensual. Logo depois, a própria Glória sugere a Macabéa que vá à casa de Madame Carlota, ex-prostituta e agora cartomante, para ver o que a aguarda no futuro. E é Carlota que prevê um futuro brilhante para Macabéa, o que não ocorre em vida, pois a protagonista morre em seguida. Após uma breve exposição sobre o romance e a discussão inicial a respeito da obra com as turmas, há um interesse maior nos tópicos relacionados à mulher. Isso porque, da protagonista às coadjuvantes, as mulheres estão todas em uma situação de opressão social. O tratamento ao qual é submetida Macabéa pelo chefe, namorado, colegas de quarto e de trabalho demonstra que ela é vista quase como um animal, desprovido de qualquer capacidade in-
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telectual, situação explicável pelo seu contexto, pois quase não frequentou a escola, pratica um trabalho mecânico (datilografia), que nem executa muito bem. No entanto, embora muitas vezes a capacidade intelectual da personagem não motive nenhuma pena ou simpatia, o fato de que Macabéa gostaria de conhecer mais o mundo não pode ser negado, pois sempre indaga sobre aquilo que quer saber, ouve ópera e escuta a informativa Rádio Relógio. Glória, a colega estenógrafa de Macabéa, é um objeto sexual. Sua sensualidade cultivada tem o único objetivo de fazer com que ela sempre seja admirada e amparada por um homem, que nunca fique só. Glória é o que é por causa do outro. E, por causa de sua preocupação com a aparência, agride Macabéa, chamando-a de feia. Madame Carlota, outra mulher de destaque na obra, sugere a Macabéa que se envolva com uma mulher, pois os homens são agressivos e ela não está preparada para isso. Ao passarmos para a leitura da obra sob a perspectiva do Teatro do Oprimido, houve preferência para uma encenação do relacionamento entre Macabéa e Olímpico, muito provavelmente pela clareza da opressão. Como a turma fora dividida em dez grupos de três componentes cada, procederei ao relato das experiências de apenas quatro grupos. A minha escolha se dá ao fato de que esses quatro grupos trataram de situações e de personagens diversos. O primeiro grupo focou os diálogos de Olímpico e Macabéa, embora exagerando a agressão verbal à protagonista. Esse exagero é muitas vezes necessário para que a opressão se torne visível, como apontado por Peggy Phelan (1993). Mas os personagens mantiveram a sua essência: enquanto Macabéa se achava a principal culpada pela impaciência de Olímpico e de tudo de errado que acontecia, ele se manteve como o político do futuro que venceria todo e qualquer obstáculo. O segundo grupo mostrou Olímpico e Macabéa como pessoas quase semelhantes. Os dois atores usaram maquiagem e figurino similares e os diálogos chamaram atenção
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para os pontos em comum que já aparecem no romance: origem, estilo de vida, expectativas (se ele quer ser político, ela quer ser estrela de cinema) e a exclusão social na qual vivem, pois são nordestinos morando na zona mais nobre do Rio de Janeiro. O próximo grupo salientou a esdrúxula competição de Glória com Macabéa porque, embora na história Glória seja mais desejada pelos homens do que sua colega nordestina, ela está muito longe de atingir o padrão de beleza da mídia: a cor de seu cabelo é falsa, suas roupas são bregas e seus namorados são todos do naipe de Olímpico. O último grupo do qual falaremos ateve-se à relação de Madame Carlota e Macabéa, sendo as duas consideradas oprimidas socialmente, embora vítimas de opressões de naturezas diferentes. Enquanto Madame Carlota teve de se prostituir para sobreviver quando jovem, Macabéa tem de aguentar os desaforos de seu chefe, pois, além de não ser uma boa datilógrafa, dificilmente conseguirá outro emprego que sustente as suas já tão básicas necessidades. Mesmo que uma personagem não oprima a outra, na encenação Madame Carlota foi mostrada como a voz social que indica a pouca esperança para jovens como Macabéa. É ela quem faz soar a voz que exclui os feios, pobres e marginalizados. Os debates que se seguiram focalizaram principalmente na mulher como objeto sexual, no preconceito regional e no machismo da sociedade. Vimos que, embora esses problemas não sejam exclusivos do Brasil, há na América Latina uma tendência cultural ao subjugo do feminino pelo masculino e o machismo é muitas vezes também percebido em mulheres como Glória, que necessitam trabalhar sua sensualidade de acordo com o que é esperado pelos homens para se sentirem incluídas na sociedade. Para todas as obras descritas acima, os passos seguidos foram escrever e encenar trechos das obras literárias sem, no entanto, apresentar uma solução ao adaptá-las. Semelhantemente às peças do Teatro Fórum, o objetivo das encenações na sala de aula era o clímax do conflito,
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que convida à intervenção e discussão de assuntos interessantes dos materiais lidos. De fato, a crise nunca deve ser totalmente resolvida, pois o Teatro do Oprimido só coopera com os meios para que isso ocorra socialmente, trazendo à tona o que gera a opressão e propiciando uma discussão cênica do problema. Assim, nunca nos preocupamos com a resolução do conflito, mesmo que encenado. De fato, nesse ponto do curso não houve interesse em favorecer a substituição dos personagens, mas em responder a perguntas tais como: 1- O que você faria se estivesse no lugar de tal personagem? 2- O que motiva tal personagem a agir desse jeito? 3- Tal personagem é o oprimido? 4- Como tal personagem deve agir para se libertar desse contexto opressor?
O texto aberto O processo pelo qual passam as obras literárias acima descritas é definido por Umberto Eco (1979) em sua teoria “A poética da obra aberta” do livro O papel do leitor. Eco afirma que, sempre que um trabalho de arte é recebido por um leitor ou espectador, há, além da recepção, uma re-performance deste. Nessa re-performance, uma nova percepção do trabalho acontece. Isso pode ser percebido em cada uma das adaptações demonstradas pelos grupos. Inclusive como já visto acima, a percepção de quem oprime e de quem é o oprimido pode mudar dependendo de quem lê a obra ou assiste à sua encenação. Para que essa re-performance seja útil para a discussão de uma obra, sua visualização se torna primordial. Por isso, no Teatro do Oprimido tal fato é quase uma exigência: após a divisão das relações de opressão do texto, é necessário que haja uma teatralização delas. Normalmente, as várias percepções interpretativas ocorrem exatamente nesta terceira parte. Antes desse estágio, muitas vezes é difícil para o aluno entender os textos de literatura brasileira.
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Várias vezes eles julgam os textos de nossa literatura como negativos ou deprimentes. Em I love my husband, muitas vezes os alunos não conseguem compreender a postura irônica da protagonista ao descrever sua rotina submissa e afirmar que ama o homem que mais faz com que ela trabalhe sem parar, sem dar a ela o carinho e a afeição esperados. Acham que o fato de ela repetir que o ama indica que está conformada com a situação. Até mesmo no final, quando a protagonista relembra o início da união, ela parece conformar-se com toda a sua vida em comum com esse homem. É necessário conviverem com essa personagem para entenderem que essa repetição da frase “Amo meu marido” é muito mais para resultar em algo positivo do que para retratar algo positivo. Em A hora da estrela, muitas vezes os alunos não conseguem entender Macabéa e suas motivações. Acham-na ridícula, exagerada e seus problemas parecem não ter fundamento. No entanto, quando citamos a semelhança do seu universo com o de personagens de regiões mais pobres dos Estados Unidos, os alunos passam a entender a tragédia na vida dessa personagem. Como em todas as outras obras, a opressão está numa esfera invisível, social e politicamente apresentada. A partir dessa conclusão, o mundo que cerca Macabéa passa a ser o que a oprime e ela passa a ser a vítima. O mundo opressor pode, no entanto, ser personificado em personagens como Olímpico, tão nordestino quanto Macabéa, mas que a recrimina e detesta quase como se esta fosse um ser de outro mundo. Essa interpretação inicial inesperada também ocorre quando da leitura de Menina de vermelho a caminho da lua. Em um primeiro momento, nenhum estadunidense entende o que leva essa jovem menina a se prostituir. Acham que não há nada que justifique a prostituição de uma criança. Mas, quando procedemos à análise do contexto social e econômico latino-americano, o caso muda de figura. Quando fazemos, além disso, uma comparação entre a realidade da América do Sul e as semelhanças entre essa região e as regiões economicamente menos favorecidas dos Estados
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Unidos, percebemos que as diferenças são ínfimas. Se a vida da menina que protagoniza a história é resultado de um descaso histórico com a situação da população pertencente à classe baixa e os meninos e meninas de rua, essa opressão é traduzida de duas maneiras pela mãe que detém a história: ao se omitir com relação à menina e ao subjugar o homem que narra a história. E é importante vermos que, ao escrever sobre a história, o que a mãe realmente deseja é pôr um fim na dor que sentiu ao compartilhar a situação da menina e esperar que a história não se repita. Todas as histórias narradas almejam, portanto, o fim do subjugo das suas protagonistas, pois, retratando um universo afeiçoado à opressão, pretendem fazê-lo visível, para que possa ser mais facilmente combatido. Os três textos têm, portanto, uma natureza muito mais positiva do que negativa, ao implicitamente indicar o desejo de mudança com relação à situação das vítimas de opressão sexual, econômica e social.
Conclusão Embora exista campo para divergência quanto à natureza da opressão de uma história, o opressor mais forte só será achado depois que a cena (simples diálogo que precisa inicialmente detectar a situação-crise do oprimido, situação esta da qual ele quer sair) for montada e que outros (membros da plateia) puderem cooperar para o desenvolvimento da resolução da crise do protagonista. Muitas vezes, só depois que diferentes cenas sobre diferentes questões foram montadas e algumas pseudossubstituições ocorreram, a turma chegou à conclusão de que a opressão não era o que tinha sido inicialmente pensado. Os temas de A hora de estrela e Menina de vermelho a caminho da lua são bastante similares, se pensamos na natureza opressora dos dois. As histórias narram as adversidades na vida de duas jovens que são vítimas da pobreza, não vivem com suas famílias e estão à margem da sociedade. Nas duas obras, por exemplo, a pobreza apresenta a maior
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fonte de depressão das personagens, pois sua força está além de um extermínio imediato. Combatê-la está fora do alcance dos protagonistas e do nosso próprio, como plateia participativa. Mas a essa conclusão só chegamos depois de experimentar possibilidades com o texto e ver quem ou o que oprimia mais certo personagem. Talvez Macabéa e a esposa de I love my husband tenham sido as personagens mais difíceis de encenar segundo as técnicas do Teatro do Oprimido, pois são personagens cabisbaixas que se comportam de forma oposta ao que nos leva a pensar, respectivamente, um nome de guerreira e uma vida fantasiosa de guerreira. Macabéa não reage nem se irrita nunca. A esposa também não, pelo menos aparentemente. Macabéa se desculpa até mesmo pelos erros alheios. Quando Olímpico a ofende e termina o namoro com ela, ela prefere calar-se a ofendê-lo também. Talvez por isso ela seja completamente desassistida pela sociedade na qual está inserida e inicialmente indigna de compaixão na sociedade norte-americana, que não louva as vítimas ou os indivíduos que não sabem lutar pelos seus direitos. A utilização do método do Teatro do Oprimido fez-me perceber, desde o primeiro dia de aula, que muitas dessas questões jamais seriam tratadas se não dessa forma. Se houvéssemos apenas feito uma discussão, com perguntas direcionadas, possivelmente teríamos chegado apenas aos dois primeiros níveis de interpretação supracitados. Foi o sucesso dessas primeiras experiências que me motivou a prosseguir com a aplicação dos exercícios do Teatro do Oprimido em outros textos. Para Boal, o teatro só pode ser do oprimido se ele participar do seu processo. Da mesma forma, pelas experiências vistas até a presente data, percebo que a literatura só se torna objeto de intensa discussão se o aluno puder entrar no contexto do livro, participando da vida dos personagens como se fosse a sua própria, o que é exemplificado com o exercício aplicado em I love my husband, Menina de vermelho a caminho da lua e A hora da estrela. A discussão também é motivada pela transferência do contexto da obra para o
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contexto do leitor ou espectador, aplicando uma realidade literária a uma realidade social, tal como visto nas análises acima. Somente a partir de um profundo envolvimento com a obra literária, pela sua imaginação, o aluno contribuirá com um avanço no campo interpretativo da obra, relacionando-a com suas próprias questões e fazendo-a parte da sua vida.
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As alunas e os contos: a narrativa curta brasileira num curso de escrita criativa nos Estados Unidos Heloisa Pait*
resumo: Este artigo relata uma experiência de ensino num curso
de pós-graduação lato sensu em escrita criativa nos Estados Unidos, no qual se buscou apresentar os principais autores brasileiros do conto e da crônica. São examinados os principais desafios para o ensino de literatura brasileira em tradução para o inglês, tais como a falta de informação inicial sobre o Brasil e o contexto institucional. Também é relatado no artigo o crescente interesse dos alunos pela literatura brasileira e pelos gêneros apresentados. Conclui-se que a riqueza do conto e da crônica brasileiras de fato serviu de ponte para o diálogo intercultural almejado. palavras-chave: literatura brasileira, contos, crônicas, ensino,
Estados Unidos. abstract:
This article narrates a teaching experience in a graduate program in creative writing in the United States which introduced the main Brazilian short story and chronicle authors. The main challenges involved in the teaching of Brazilian literature in translation are examined, such as the lack of basic information about Brazil and the institutional context. Students’ increasing interest in Brazilian literature and in the genres presented is also examined. The article sustains that the richness of the Brazilian short narrative made possible the desired intercultural dialogue. keywords:
Brazilian literature, short stories, chronicles, teaching, United States.
*
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp - Araraquara).
Quando cheguei lá, estranhei o vazio do campus, até liguei para meu irmão. “Ninguém veio falar comigo, o que será?”, perguntei. “É normal, os professores ainda não voltaram do verão”, ele disse, sem se preocupar. Mas veio o outono, uma estação linda nos Estados Unidos, o céu azul,
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o ar fresco. Só não veio aquele diálogo intelectual que eu esperava. É que eu conhecia a universidade americana por meio da muito particular New School for Social Research, universidade visitada por Habermas e Derrida, Rorty e Melucci, que já tinha tido no corpo docente Hannah Arendt e outros. O nosso cotidiano de estudantes de pósgraduação, discutindo sobre a política, a linguagem e a vida em Nova York, primordialmente entre os alunos europeus e latino-americanos e com os professores novaiorquinos, era de uma riqueza intelectual inesgotável. Eu costumava dizer: isso aqui é divertido como voltar ao Pequeno Príncipe na Rua Avaré. Também conhecia as Faculdades de Artes Liberais. Minha cunhada estudou no intelectual Swarthmore College. Eu havia dado uma palestra no hippie Hampshire College, e lecionado no questionador Lang College. Então, vejo agora, conhecia uma fatia do ensino superior americano muito estreita, a das instituições progressistas e disputadas. Críticas e rigorosas. E pulei no que as pessoas se referem como “Real America” – não numa América Real qualquer, que poderia ser bem interessante, com seus valores sólidos, e sua self-reliance, mas num lugar muito particular que refletia os problemas das pequenas faculdades americanas, como a evasão e a busca permanente de alunos para cobrir custos relativamente fixos. Pois, para manter o impecável imenso jardim e os prédios centenários e amortizar a recente construção do ginásio, era mesmo preciso um bom dinheiro. Tive, no primeiro semestre, além da solidão e de uma grande confusão quanto aos objetivos da instituição, alguns bons alunos num curso introdutório sobre o Brasil. Corrijo-me: tive algumas boas alunas. A instituição era uma das poucas faculdades americanas que ainda se dedicavam exclusivamente ao ensino de mulheres. Ao longo do século XIX, muitas delas foram criadas na costa leste, complementando as faculdades para homens, e no oeste as novas faculdades já eram criadas para os dois grupos, desta forma dando acesso ao ensino superior a um grande nú-
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mero de mulheres. A maioria dessas instituições tornou-se mista ao longo do século XX, tais como Radcliffe College, que se juntou a Harvard College, mas outras continuam admitindo apenas mulheres, como Smith College, uma das mais concorridas faculdade americanas. Na segunda metade do século XX, a justificativa para continuar mantendo o ensino separado era que as mulheres teriam melhores condições de ensino caso não tivessem de disputar a atenção dos professores com os homens em sala de aula. Era um argumento de peso decrescente, mas, de qualquer modo, eu estava dando aulas numa instituição que havia escolhido manter a tradição. Mas o modo como a instituição conseguia financiar a tradição era abrindo uma série de cursos de pós-graduação lato sensu em áreas mais aplicadas, abertos aos homens. Ainda assim, talvez pela natureza dos cursos ou pela tradição, a maioria dos alunos eram mulheres. Como disse, no outono tive algumas alunas muito boas, que escolheram escrever sobre aspectos muito interessantes da cultura brasileira, como as tentativas de reforma do ensino médio ou sobre a participação de jovens artistas plásticos em comunidades na internet. O trabalho que mais me chamou a atenção foi sobre um assunto que eu mesma desconhecia: a existência de um cinema mudo brasileiro muito ligado com tendências europeias da época, mas pouco conhecido tanto no Brasil como nas pesquisas no exterior. Mas as alunas capazes de produzir trabalhos autônomos eram poucas; grande parte tinha dificuldades com a leitura e a escrita e, diferentemente de nossos alunos, uma certa apatia na sala de aula e desinteresse sobre o mundo. Não eram as únicas; entre os professores detectei também uma falta de curiosidade sobre o Brasil, obviamente com exceções. Afinal, eu estaria ali para isso, para trazer um pouco do Brasil para o campus. A instituição tinha um programa já antigo, no qual a cada ano um país determinado era escolhido; um professor visitante era chamado e, além disso, havia palestras e eventos sobre o país e a região. Aquele era o ano do Brasil. Eu, particularmente, acho o
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Brasil bem interessante, e acho que nisso tenho vasta companhia além das fronteiras nacionais. Então, não entendia bem a falta de interesse sobre o meu país. Eu assuntava: por que escolheram o Brasil? Como esse programa de estudos internacionais se coaduna com os objetivos educacionais dirigidos a esse corpo discente? Não tinham respostas, e como já virou clichê falar de experiência kafkiana, vou evitá-lo, mas a verdade é que eu estava bem perdida. A cidade onde a faculdade se localizava era parte do que os americanos chamam de Rust Belt, o Cinturão da Ferrugem, região americana do meio-oeste que sofreu com o colapso da indústria pesada ocorrido na segunda metade do século XX. A desindustrialização trouxe para a região problemas sociais enormes. Em Detroit, por exemplo, esse processo econômico, aliado a tensões raciais e erros crassos de planejamento urbano, ainda se reflete no cotidiano difícil de populações inteiras. Mas há também o problema simbólico: como construir uma identidade urbana a partir de uma não identidade? “A cidade que não é do automóvel”, ou “a cidade que não é do aço” são títulos difíceis de se portar. Todos temos um pouco disso, os paulistanos com sua cidade que não é da garoa ou os cariocas com sua cidade que não é capital. Mas redefinir a identidade de uma cidade é importante; em certa medida eu vivi essa indefinição como deslocamento, eu não sabia exatamente onde estava. E só conseguia me localizar novamente quando viajava pelo país e encontrava pontos de referência antigos ou explorava novos. Foi nessa situação de deslocamento urbano e isolamento intelectual que o semestre da primavera começou; eu daria aulas apenas para alunos do programa de escrita criativa, em nível de pós-graduação. Algumas alunas iriam, ao fim do semestre, no verão do hemisfério norte, passar duas semanas no Brasil, numa viagem patrocinada pela escola e organizada por uma instituição brasileira reconhecida, especializada nesse turismo acadêmico. Os programas de intercâmbio são marca registrada das universidades americanas. Alguns são bem rigorosos, têm a duração de um
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semestre e são precedidos por estudos de línguas e cursos preparatórios e envolvem cursos regulares ou estágios em países estrangeiros. Outros são apenas passeios pelo Caribe. Esse me pareceu ser um turismo cultural inteligente para alunos com interesse em expandir seus horizontes mas sem o tempo de preparo anterior na língua e história do país. Sobre os cursos de escrita criativa, são também comuns nos Estados Unidos, tanto na graduação como na pós. São cursos para quem quer escrever ficção ou não-ficção, que incluem literatura mas que têm um sentido mais prático que analítico. Os alunos podem aí se especializar em literatura infantil, literatura de viagens, e assim por diante. Pela turma que peguei, não pude descobrir exatamente o objetivo profissional do curso; a maior parte dos alunos estava em momentos de transição e buscou o mestrado como forma de se rearticular. Propus um curso sobre contos e crônicas; escrevo contos eu mesma, e sou fascinada pela narrativa curta que fica em nossas mentes muito depois de terminada a história. Além disso, a narrativa curta brasileira tem um lugar muito especial para nós leitores brasileiros, que temos acesso a elas nos jornais e revistas. Ela se alimenta e faz parte de nosso cotidiano. Ao longo de minha estada nos Estados Unidos, eu quis obviamente mostrar um Brasil verdadeiro, com contribuições à cultura mundial, que fosse além dos estereótipos tropicais. Então, nada melhor, pensei, do que uma área da cultura na qual nós temos uma certa “vantagem comparativa”, como é o caso da narrativa curta brasileira. Tive de negociar o conteúdo do curso a cada aula, pois dividia o curso com outra professora, que queria dar uma visão mais abrangente da cultura brasileira, incluindo o cinema, a política, a história e a literatura. Eu queria falar dos contos. Queria mostrar por meio deles alguma coisa do que somos. Não que houvesse estereótipos nas salas de aula. A dificuldade na graduação foi, na verdade, sua ausência. Todos nós conhecemos os estereótipos antigos, Zé Carioca e Carmen Miranda. Depois há os novos, Brasil do desma-
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tamento e dos meninos de rua. Reais todos, talvez, mas parciais, incompletos, mal-entendidos. Entre as esquerdas, há também a construção mítica do presidente socialista que se contrapôs à ordem neoliberal. Mas lá naquela faculdade eu vi a ausência de informações sobre o Brasil. O que impressionava era que o Brasil fosse tão grande, diziam, maior que a Venezuela. Tudo o que eu falasse era novidade, pois o Brasil praticamente não existia no imaginário de muitos alunos, que língua mesmo falavam ali? No curso de pós, entretanto, havia informações dispersas prévias. Havia o Paulo Coelho, havia a Clarice Lispector. Havia a presença de uma comunidade negra importante. Enfim, havia referências poucas mas queridas que fizeram aqueles alunos se inscreverem em meu curso. Na primeira aula, notei que quase nenhum aluno tinha interesse específico sobre o conto ou a crônica. Nosso elo, então, era o interesse difuso naquele país latino-americano desconhecido e uma vaga curiosidade sobre o conto e a crônica. Montei o curso de modo muito tradicional, apresentando cronologicamente os principais autores da narrativa curta brasileira, que estão, em sua maioria, traduzidos. Um bom apanhado dos contos está numa antologia da Oxford University Press (Jackson, 2006). Estão ali Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Hilda Hilst, Moacyr Scliar, Milton Hatoum e tantos outros. Senti falta de Márcia Denser apenas, que encontrei em outras traduções (Sadlier, 1992). Já nas crônicas é diferente; não há antologias de crônicas que reúnam vários autores. As crônicas de “Life as it is”, de Nelson Rodrigues (2008), recentemente publicadas, são espetaculares nos dois sentidos; diferem muito, por exemplo, das crônicas de Ignácio de Loyola Brandão que lemos às quintas no Estadão. Há também crônicas de Clarice Lispector em “Foreign legion” (Lispector, 1992), que reúne contos de “A legião estrangeira” e crônicas de “Para não esquecer”. As crônicas são maravilhosas, mas, assim como no caso anterior, não são representativas do gênero. Então, para falar das crônicas havia um obstáculo muito concreto.
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A respeito dos contos, a dificuldade era de natureza distinta. Os principais autores estavam presentes na antologia da Oxford e também em inúmeras outras traduções. Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Moacyr Scliar estão bem traduzidos, nos romances e também nos contos. Mas, por razões práticas, eu dava preferência aos contos da antologia; a biblioteca tinha poucos recursos e era preciso fazer escolhas. E os contos ali tinham, em geral, um tom sério e pesado que não trazia a leveza da prosa brasileira. Parecia que os textos mais densos, mais “profundos”, se qualificavam melhor para a tradução que o cômico e o banal. Então, de Mário de Andrade, lemos o triste “Piá não sofre? Sofre”, por exemplo. E nós brasileiros não fazemos desse banal a nossa melhor poesia? A uma certa altura, uma aluna perguntou se era tudo assim pesado na literatura brasileira. Tínhamos acabado de ver o filme “Vidas secas”, por sugestão da outra professora. Eu disse que não, de jeito nenhum, mas isso me motivou a continuar tentando. Tentando o quê? Tentando, acredito, forjar alguma comunicação real que havia me escapado nos meses anteriores. Lembro que numa das primeiras semanas na cidade fiz uma feijoada para algumas pessoas, que vieram polidamente, comeram, conversaram sobre a faculdade e foram embora sem me deixar com a sensação de plenitude que tenho depois de cozinhar para amigos e conhecidos no Brasil ou no exterior. Já adianto ao leitor, pois não sou muito de suspenses, que a última feijoada, que fiz por ocasião de meu aniversário, ao final de minha estada, foi bem diferente. Avisei que o horário era o brasileiro, ou seja, pedia que chegassem a partir da 1 da tarde, e não pontualmente nesse horário. E para cada um eu pedi que trouxesse uma coisa: o arroz, os pratos, cadeiras extras, etc. Fiz a couve e a feijoada, em três panelas distintas: uma para os vegetarianos, uma sem carne suína, pois um dos meus melhores amigos na faculdade era muçulmano, e outra com joelho de porco e costelas. Uma colega me disse, depois das caipirinhas, em volta dos convidados aboletados no apartamento pequeno,
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que nunca havia se sentido tão à vontade. Notei ali o tanto de esforço que há em nossa descontração. Ficou espremido, eu deveria ter dado destaque, o maravilhoso “Memórias de um sargento de milícias” (Almeida, 2000). Não são contos nem crônicas, é na verdade um romance escrito em capítulos publicados em série, mas quem é que vai dizer que não são boas crônicas imaginadas? E havia tradução. Era no começo do semestre, e eu ainda me adaptava ao curso a quatro mãos. Mas acho que o texto de Manuel Antônio de Almeida fez tanto sentido aos alunos como a primeira feijoada que ofereci aos colegas. Pareceu à classe que o autor ria de algo que não deveria ser piada, as tantas violências domésticas que pipocam no tempo do Rei. A outra professora notou a ausência dos negros e pobres na narrativa. Eu fiquei lavando os pratos de uma feijoada sem festa. Machado os surpreendeu, pela literatura e também pela modernidade de um Brasil antigo, com leis, advogados, mulheres reflexivas. Discutimos um pouco a natureza do conto, sobre seus recursos, desafios e desfechos, a partir de Bosi (1994) e Piglia (2000). Mas, nessas alturas, pensar o conto era uma viagem minha, que acredito pouco interessava aos alunos, ainda se familiarizando com a narrativa, ou com a professora, interessada nas relações entre a realidade social e o caráter político da arte brasileira. Pedi aos alunos que escrevessem um conto; deveria conter um encontro entre um brasileiro e um morador local, num dia importante para a cidade. O encontro deveria ter algo de erótico e de conflituoso, e poderia estar no fim ou no início da narrativa. Queria que eles se sentissem confortáveis no gênero, e também que por meio do conto começassem a pensar sobre as diferenças entre as culturas americana e brasileira. O resultado foi maravilhoso: imigrantes brasileiros discriminados que falavam palavrão, americanos que de repente se lembravam das comidas e cheiros brasileiros, encontros, choques. Claro, eu também queria ver no papel as minhas próprias emoções. Buscava um elo. E encontrei um primeiro elo.
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Clarice foi fácil. Todos adoraram. As traduções eram boas, cobriam muita coisa. Isso queria dizer que eu podia escolher meus contos favoritos, e apresentá-los com paixão (Lispector, 1984). Assim como com Machado, a surpresa de uma escrita sofisticada, que falava à alma. Duas alunas em particular usaram o texto de Clarice para uma jornada de descoberta que encantou a todos, explorando o olhar perscrutador de Clarice e o modo sutil como ela define os ambientes externos e a vida interior dos personagens. O perigo de Clarice é cairmos numa deferência exagerada à poesia e virtuosidade da autora. Então, depois, ao final de uma das aulas sobre a autora, pedi que formassem pequenos grupos, escolhessem um pequeno trecho de um dos contos discutidos e elaborassem uma pequena cena. Eles toparam. E rimos com a cena final de “Amor”, com o marido atordoado sem compreender a fuga da esposa etérea, interpretada por uma aluna em quem eu via algo da própria autora. Rimos com outras cenas também, quebrando a solenidade do texto, apropriando-nos da humanidade daqueles personagens intensos da autora. Achei Guimarães Rosa difícil de apresentar. Algo se perde na tradução do autor, não só pelo uso particular que faz da linguagem, mas também pela musicalidade do texto (Pessôa, 2006). Recortei alguns trechos de “Grande sertão: veredas” (Rosa, 1963) que tinham jeito de conto, e contei para eles “A hora e a vez de Augusto Matraga”, que não achei traduzido. Sim, contei. Pois o conto não traz, junto a sua modernidade, um diálogo com a tradição oral? Então por que não simplesmente contar as histórias de que eu gostava mais? Por que me prender a traduções selecionadas? Quando havia coisas que eu queria dar, mas não havia tradução, eu contava. A biblioteca da universidade estadual local, por exemplo, tinha uma coletânea de contos regionais maravilhosa, organizada por Graciliano Ramos (1966). Uma delícia. Então, passei tardes lendo as histórias e escolhi algumas para recontar. Fiquei animada. Tensa também, era um desafio. Eu conseguiria trazer o
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texto para a sala de aula? Recontar em inglês uma história querida? Com alguns, consegui; com outros, não. Mas tudo é questão de treino. Para as crônicas, além das de Clarice e de Nelson Rodrigues, também escolhi algumas da coletânea “Cem melhores crônicas brasileiras do século” (Santos, 2005). E recontei. Muitas tristes, algumas cômicas, fiz rir, emocionei. Aquele elo que eu buscava, aquele diálogo em qualquer forma que fosse, eu o via sendo construído, talvez por mim. Talvez por uma turma aberta e interessada. Mas a partir do conto e da crônica brasileira. E isso me tocava profundamente; é impossível descrever o valor que passamos a dar à comunicação humana, expressa por meio de atos cotidianos às vezes até singelos, quando dela somos privados. Naquela classe – fazendo rir e chorar com histórias –, eu voltava à minha humanidade normal de quem fala e escuta. No fim do curso agradeci aos alunos, claro, mas agradeço agora a Clarice e Rosa; a Scliar e Machado; a Denser e Ângelo. Agradeço aos tradutores e editores também, sem dúvida conscientes de serem pontes precárias nesse importante diálogo entre as gentes. Estavam todos eles ali presentes nas aulas, todos eles lá. Sem eles, éramos estranhos, com eles nos conhecemos; sem eles, éramos sem graça; com eles, viramos personagens fascinantes de um teatro próprio. Sem eles, eu, ao menos, não era gente, quanto mais professora. Com eles, virei professora de novo, falando para uma audiência interessada de um lugar que eu já havia visitado. Então, agradeço. O risco que eu havia corrido era de ter virado naquela sala de aula uma simples nativa que conhecia os hábitos vigentes, o que havia acontecido em outros ambientes da faculdade anteriormente. Era um pouco ofensivo, mas acima de tudo frustrante; numa reunião de preparação para a viagem ao Brasil, por exemplo, me chamaram para conversar com os alunos, alguns dos quais estavam matriculados em meu curso. Falei sobre a história política recente, sugeri a leitura de alguns livros para quem quisesse se aprofundar e, como sempre quando falo do Brasil, me entusiasmei. Mas as perguntas foram sobre aspectos corriqueiros da
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cultura nacional: “No Brasil, as pessoas jantam tarde?” Respondi que jantávamos no horário normal; “aqui é que jantam um pouco cedo,” eu disse... Quanto ao meu curso, os alunos se matricularam num curso de uma brasileira; entenderam que ali havia um diferencial. Mas, quando a outra professora se juntou ao curso – bem, uma dinâmica em que eu fosse a nativa e ela a antropóloga podia ter se instaurado. E desse lugar de nativa, inconscientemente familiar a minha própria cultura, eu não teria podido falar dessa literatura de que eu gosto e que é minha. Algo que me encanta na literatura brasileira é o texto macio, o texto sem asperezas. Mesmo Márcia Denser, irônica, crítica de tudo, tem aquele amor ao detalhe, a uma certa delicadeza textual. A palavra que eu usava em aula é essa: nossa cultura é soft, lembrem disso. Pode ser violenta, pode ser mordaz, mas tem uma maciez que você não encontra na literatura americana. Uma literatura que anda de chinelo, e não de salto alto, fazendo barulho, pretensiosa. Mesmo o texto filosófico de Clarice reforça o lado banal das grandes questões humanas. Mas isso pode se perder na tradução. É algo intangível, e daí talvez as escolhas, pelos editores, pelos textos que não se calquem apenas nessa leveza, que tragam o drama pesado ou político. Então eu sentia que era eu que devia tentar explicar isso, da melhor forma possível. Quando dei as aulas sobre as crônicas, um pouco disso ficou evidente. Os alunos se encantaram com uma literatura sobre e também disponível no cotidiano dos leitores de jornais. Com a capacidade de olhar o cotidiano de um jeito rico – ou com a riqueza de nosso cotidiano, não sei mais. Mas eu também trouxe, numa aula, uma seleção de chorinhos que, eu esperava, trouxessem a musicalidade de nossa língua e de nosso texto que a tradução nunca poderia trazer. Quando, na metade do semestre, os alunos apresentaram os projetos de seus trabalhos, me vi num dilema. Sou naturalmente uma professora crítica, e nesse caso em particular eu via muitos problemas nos trabalhos, que me pareciam mais leituras neutras comentadas que exercícios
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de interpretação que trouxessem novos aspectos dos textos e autores lidos. Mas será que eu tinha autoridade para criticar os trabalhos, nessa classe dada em colaboração? E será que os alunos me escutariam, ou me viam apenas, como disse anteriormente, como a nativa de plantão? Esse receio, paradoxalmente, foi muito produtivo. Pois meu espírito crítico teve de ser controlado, e isso não é mau... Comecei a aula perguntando se eles gostariam de ter minhas críticas. Eles assentiram. E lasquei uma boa aula sobre a noção de interpretação de Peirce. Sobre a produção de sentido no jogo simbólico. Não falei dos trabalhos, dos projetos. Falei, indiretamente, que queria saber mais sobre as leituras dos alunos sobre os textos, sobre interpretações corajosas, sobre o que os contos e crônicas realmente haviam falado para eles, pois cada texto diz uma coisa para cada leitor. Quem era aquela Clarice ali, que estava sendo produzida naquela sala de aula daquela faculdade daquela cidade do Cinturão Enferrujado americano? Que esquecessem a Clarice que eles achavam que os professores achariam a correta. Na aula seguinte, quando comentamos os projetos propriamente ditos, os alunos mesmos – eu tinha na verdade um aluno e o restante da pequena classe formado por alunas – trouxeram tudo o que tinham pensado em escrever mas não consideraram acadêmico o suficiente. Uma coisa que me surpreendeu na classe foi a curiosidade sobre a filosofia da linguagem e as teorias sociais. Haviam me dito, antes do curso, que os alunos de pós tinham dificuldades de leitura e escrita comparáveis às dos de graduação. Sou sempre otimista quanto aos alunos, mas minha experiência no semestre anterior tinha me revelado uma falta de familiaridade com a investigação intelectual que eu não associava com o ambiente universitário. Então me surpreendi. Ali estava uma turma que queria usar os textos de Clarice para compreender o existencialismo, e de Machado para entender a relação entre a racionalidade e as crenças populares no Brasil do século XIX. Alguns tinham já familiaridade com estudos culturais e feminismo, mas para outros alunos aquele curso abriu as
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portas para Merleau-Ponty, Simmel e outros pensadores bastante sofisticados. A ponte, novamente, foram aqueles nossos autores brasileiros, cotidianos e complexos, banais e sofisticados: falar da existência humana a partir de um ovo que se quebra dentro da rede. Resolvi dar uma aula sobre a literatura judaica no Brasil (Waldman, 2003), mas fazendo pontes com as literaturas de outros países também, mostrando o caráter diaspórico da literatura brasileira, na qual também víamos escritores de origem árabe, japonesa e, obviamente, africana. Discutimos como no Brasil e nos Estados Unidos as identidades nacional e étnica aparecem na literatura de modos distintos, mas não opostos, pois nos dois países as identidades se enriquecem, mesmo quando em tensão. Foi uma aula já ao final do curso, e isso foi bom: saímos então do lugar chamado Brasil para situarmos o Brasil no mundo, recebendo influências mil, e com pontes indo também a lugares mil. Os alunos ficaram encantados com aquelas influências literárias antigas que entraram no Brasil mas também na literatura europeia e americana; era tudo novidade. Também ao final do curso, examinamos a literatura escrita por mulheres negras, e aí o processo foi inverso. Havia apenas uma coletânea disponível (Alvares e Lima, 2004), mas o tema geral da situação da mulher negra nas Américas era de conhecimento de todos. Então, mesmo com pouco material, a discussão foi rica e acalorada. A faculdade havia convidado, no semestre anterior, como parte dos eventos do Ano do Brasil, a poeta amazonense Astrid Cabral, cuja palestra algumas alunas haviam visto. E isso serviu de ponte para falar de Milton Hatoum e de sua Manaus misturada, indígena, árabe, brasileira. Enfim, ao final do curso não havia mais tempo para se aprofundar nos autores, mas sim para introduzi-los e esperar que aquele se constituísse num primeiro contato com essa nossa literatura. Funcionou? No todo, penso que sim. Ao final do curso, os alunos apresentaram os trabalhos para a classe, trabalhos que de um modo ou outro já conhecíamos a partir de lei-
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turas e discussões anteriores. Todo o material apresentado era colocado no ambiente educacional virtual Moodle, o que permitia essa troca de modo fácil e intuitivo. Não consigo terminar este artigo antes de falar brevemente dos trabalhos. Um aluno fez uma análise filosófica de “O ovo e a galinha”, de Lispector. Duas alunas escreveram também sobre a autora. Uma escreveu sobre uma experiência de infância que se assemelhava ao olhar de estranhamento de Ana, no conto “Amor”, que a leitura de Clarice evocou. A outra, a partir de conversas com leitores de seu círculo de amizades, procurou investigar que tipo de reflexão os textos de Clarice evocavam. Um trabalho que debatemos muito em aula foi escrito por uma aluna caribenha, que procurou refletir sobre sua própria cultura repleta de misticismos a partir do conto de Machado “A cartomante”. Uma excelente aluna de graduação que se matriculou no curso escreveu sobre os dilemas de gênero que apareciam em Machado e também em Nelson Rodrigues. Foram aulas de troca intensa, pois a essa altura todos se sentiam um pouco autores uns dos trabalhos dos outros. O que ficou dessa experiência? Que ensinar literatura brasileira no exterior é um trabalho coletivo. Eu tinha a sensação de uma profunda solidão, é certo. Mas estavam lá comigo não apenas os autores que fizeram a nossa literatura, como também seus editores e tradutores na língua inglesa. Tinham certamente um olhar distinto do meu; viam valor em textos que não me chamavam a atenção, e às vezes deixavam de lado algumas gemas. Mas estavam lá na sala de aula, me ajudando a construir essa ponte que é um dos motores da literatura, o compartilhar de experiências. Também aprendi que o contexto no qual esse ensino se dá é importantíssimo. Sem alguma referência inicial, mesmo que inconsistente, é difícil tocar adiante o projeto educacional. Na classe em que havia ideias iniciais sobre o Brasil, como foi o caso desse curso de literatura, é possível ir adiante, elaborar, avançar. Em outras, é possível o aprendizado individual, mas talvez não o coletivo. Além disso, há
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também as ideias iniciais da instituição e dos colegas sobre o Brasil; o que esperavam de mim? Como imaginavam um professor brasileiro? Lembro-me que, em uma conversa sobre a crise econômica, uma colega fez um aposto para explicar quem era Keynes. Fiquei me perguntando qual era o Brasil que ela imaginava, onde professores universitários da área de ciências humanas não conheciam Keynes. Ou qual era o mundo. Essas expectativas todas entram na sala de aula, e acredito que bater de frente com elas não seja a melhor alternativa, mas sim ir sutilmente as aceitando e subvertendo. Pois por que não às vezes ser um pouco a brasileira palhaça, estereotipada? Num belo dia resolvi traduzir o poema “E agora, José?”, de Drummond. Fiz um primeiro esboço, mostrei a um poeta novaiorquino com quem tenho um ótimo diálogo literário e pessoal, dei umas mexidas e pronto. Coloquei o poema em nosso site na internet, mas numa aula também coloquei o próprio Drummond declamando o poema, obviamente em português. Depois li o poema em inglês, para que eles compreendessem o significado. E aí começou a brincadeira: li o poema em português, para que eles se familiarizassem com a língua. Alguns alunos faziam um curso bem introdutório, de conversação, com uma brasileira que morava na cidade e, além de dar aulas de línguas, também cantava na ópera e lecionava voz. Mas a maioria não conhecia nada da língua. Depois, li o poema imitando o sotaque baiano, claro que explicando que era apenas uma imitação de paulista, nada mais. Os alunos riram. Uma até confessou que agora se dava conta que seu professor de capoeira falava mesmo daquele jeito, não estava tirando sarro dela nas aulas com aquela entonação vagarosa, musicada. E até tentei uma imitação de carioca, que não funcionou tão bem. A professora com quem dividi o curso queria apresentar um panorama geral sobre a cultura brasileira, e eu queria examinar o conto, a produção literária brasileira, pois acredito que a partir de nossas realizações é que podemos nos reconhecer como iguais, fugir do exame desigual
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de um povo sobre o outro. Mas de certo modo eu também apresentei esse panorama geral, trazendo a música, o sotaque, os meus próprios contos, as minhas histórias pessoais e a minha vivência. De certo modo, eu fui um pouco a nativa... Uma nativa de óculos, digamos. Consegui dar um curso sobre o conto como forma literária? Isso fica em aberto. Muitos alunos disseram se surpreender com a forma sintética e evocativa que nós dominamos tão bem. Mas não sei se afirmo que realmente investigamos a forma. Acho que ela serviu de elo entre nós, de um modo que outra forma talvez não o fizesse. O romance sempre seria comparado ao que os alunos já conheciam da literatura inglesa e americana. O conto disse para eles que há outras formas de pensar, de sentir, de viver. O conto brasileiro talvez tenha sido porta de entrada para uma sensibilidade distinta – e para uma sociabilidade distinta também. Vieram em maio ao Brasil. O que viram? Com quem conversaram? Como se sentiram? Não sei. Sei que, para os alunos que fizeram esse curso, as vozes de nossos escritores estavam com eles, onde quer que tenham ido.
Referências Almeida, Manuel Antonio de. Memoirs of a militia sergeant. Oxford University, 2000. Alvares, Miriam; Lima, Maria Helena. Women righting: afroBrazilian women’s short fiction. Mango Publishing, 2004. Bosi, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1994. Jackson, K. David. Oxford anthology of the Brazilian short story. Oxford: Oxford University, 2006. Lispector, Clarice. Family ties. Austin: University of Texas, 1984. _____. Foreign legion: stories and chronicles. ������������������ New Directions Publishing Corporation, 1992. PESSÔA, André Vinicius. Uma poética da musicalidade na obra de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado)
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– Universidade Federal do Rio de Janeiro. Piglia, Ricardo. Formas breves. Barcelona: Anagrama, 2000. Ramos, Graciliano. Seleção de contos brasileiros. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1966. Rodrigues, Nelson. Life as it is. Host Publications, 2008. Rosa, João Guimarães. The devil to pay in the Backlands. Knopf, 1963. Sadlier, Darlene J. One hundred years after tomorrow: Brazilian women’s fiction in the 20th century. Indiana University, 1992. Santos, Joaquim Ferreira dos. As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. Waldman, Berta. Entre passos e rastros. São Paulo: Perspectiva, 2003.
Pareceristas
Arnaldo Franco Junior Benito Martines Rodriguez Clarissa Jordão Eurídice Figueiredo Isabel Jasinski Luís Bueno Luiz Carlos Simon Mauricio Mendonça Cardozo Marilene Weinhardt Paulo Soethe Renata Telles Silvana Oliveira Susana Scramin
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Normas da revista
Normas para apresentação de artigos • Só serão aceitos trabalhos enviados pela internet para o endereço: revista@abralic.org.br • Os artigos podem ser apresentados em português ou em outro idioma. Devem ser produzidos em MSWord 2007 (ou versão superior), com uma folha de rosto onde constem os dados de identificação do autor: nome, instituição, endereço para correspondência (com o CEP), e-mail, telefone (com prefixo), título e temática escolhida. A extensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas e, no máximo, 20, espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar também Abstract e Keywords. • O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de não doutor, desde que a convite da comissão editorial – casos de colaborações de escritores, por exemplo. • Após a folha de identificação, o trabalho deve obedecer à seguinte sequência:
- Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem grifos);
- Nome(s) do(s) autor(es) – à direita da página (sem negrito nem grifo), duas linhas abaixo do título, com maiúscula só para as letras iniciais. Usar asterisco para nota de rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a). O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da sigla;
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- Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito, itálico e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado em itálico, corpo 10, com recuo de dois centímetros de margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10;
- Palavras-chave – dar um espaço em branco após o resumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto 10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito, itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos. Máximo: 5 palavras-chave;
- Abstract – mesmas observações sobre o Resumo;
- Keywords – mesmas observações sobre as palavraschave;
- Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas, quando houver;
- Parágrafos – usar adentramento 1 (um);
- Subtítulos – sem adentramento, em negrito, só com a primeira letra em maiúscula, sem numeração;
- Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos etc.) – devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo autor;
- Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10.
- Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras em língua estrangeira – itálico.
- Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico), seguidas das seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte 11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobre-
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nome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s).As citações em língua estrangeira devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé.
- Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando constituírem textos já publicados, devem incluir referência completa, bem como permissão dos editores para publicação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas quando absolutamente necessários.
- Referências – devem ser apenas aquelas referentes aos textos citados no trabalho. A palavra REFERÊNCIAS deve estar em maiúsculas, negrito, sem adentramento, duas linhas antes da primeira entrada.
Alguns exemplos de citações • Citação direta com três linhas ou menos
[...] conforme Octavio Paz, “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” (PAZ, 1982, p. 37)
• Citação indireta
[...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as conseqüências de certas linhas da poética drummoniana.
• Citação de vários autores
Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, 1991; Borges, 1998; Campos, 1969)
• Citação de várias obras do mesmo autor
As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confronto entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens
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em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidoscópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992) • Citação de citação e citação com mais de três linhas
Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire: Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...] (FREIRE, 1759, p. 87 apud TEIXEIRA, 1999, p. 148)
Alguns exemplos de Referências • Livro PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. Paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. • Capítulo de livro BERND, Zilá. Perspectivas comparadas trans-americanas. In: JOBIM, José Luís et al. (Org.). Lugares dos discursos literários e culturais – o local, o regional, o nacional, o internacional, o planetário. Niterói: EdUFF, 2006. p.122-33. • Dissertação e tese PARMAGNANI, Claudia Pastore. O erotismo na produção poética de Paula Tavares e Olga Savary. São Paulo, 2004. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. • Artigo de periódico GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: uma breve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 37- 57, 2004.
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• Artigo de jornal TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4. • Trabalho publicado em anais CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Maria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte. p. 85-95. • Publicação on-line – Internet FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e geografia) literária na Itália contemporânea. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S1517106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acesso em: 6 fev. 2009. Observação Final: A desconsideração das normas implica a não aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).