REVISTA BRASILEIRA DE
S達o Paulo 2010
Diretoria A B R A L I C 2009-2011
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Vice-presidente Luiz Carlos Santos Simon (UEL)
1º Secretário Benito Martinez Rodriguez (UFPR)
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Conselho Fiscal José Luís Jobim (UERJ, UFF) Lívia Reis (UFF) Sandra Margarida Nitrini (USP) Helena Bonito Couto Pereira (Universidade Mackenzie) Arnaldo Franco Junior (UNESP - S. J. do Rio Preto) Carlos Alexandre Baumgarten (FURG) Rogério Lima (UnB) Sueli Cavendish de Moura (UFPE)
Suplentes Adeítalo Manoel Pinto (UEFS)
Zênia de Faria (UFG) Conselho editorial Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Yves Chevrel.
ABRALIC CNPJ 91.343.350/0001-06 Universidade Federal do Paraná Rua General Carneiro, 460, 11.o andar 80.430-050, Curitiba - PR E-mail: revista@abralic.org
REVISTA BRASILEIRA DE
ISSN 0103-6963 Rev. Bras. Liter. Comp. S達o Paulo n.16 p. 1-237 2010
2008 Associação Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.
Editor Luís Bueno Organizador Luiz Carlos Santos Simon
Comissão editorial Luiz Carlos Santos Simon Benito Martinez Rodriguez Silvana Oliveira Luís Bueno Maurício Mendonça Cardozo Preparação/Revisão Patrícia Domingues Ribas Diagramação Rachel Cristina Pavim
Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Rio de Janeiro: Abralic, 1991 v.1, n.16, 2010
ISSN 0103-6963
1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada.
CDD 809.005 CDU 82.091 (05)
Sumário
Apresentação Luiz Carlos Santos Simon Luís Bueno
Artigos
A leitura da literatura e os dias Luiz Gonzaga Marchezan
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Leitura e estudos culturais Carlos Magno Gomes
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Entre os fragmentos do espelho: reflexos e reflexões do pensamento teórico sobre a Literatura Márcio Roberto do Prado
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A razão prática da teoria Teresa Cabañas
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Assombração do passado e abismo do futuro: entre o tédio e o espanto Renata Telles
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O poema refém da teoria e da interpretação: exercícios críticos em torno de Paulo Leminski The poem host of the theory and interpretation: critical exercise around Paulo Leminski Wilberth Salgueiro 119 Quem mexeu no meu texto? Observações sobre Literatura e sua adaptação para outros suportes textuais Alvaro Luiz Hattnher
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Literatura e cinema: memórias e histórias Rosana Cássia Kamita 157
Violência e forma em Hegel e adorno Jaime Ginzburg 175
A persistência de questões de ordem ontológica na Literatura Moderna: uma perspectiva para a Crítica Literária Moderna Alessandro Zir 195
Kostas Axelos: o “jogo da errância” des-articulando teorias Rodrigo Guimarães 213
Pareceristas 231
Normas da revista 233
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Apresentação
A Revista Brasileira de Literatura Comparada se propôs a fazer, em seu número 16, um debate que contemplasse a profusão recente de teorias, muito próximas ou nem tanto das especificidades literárias, e sua consequente produção de um campo de instabilidades no cenário das discussões acadêmicas. Pode-se avaliar a grande relevância da questão em decorrência do fato de que esses exercícios de construção teórica têm o caráter permanente de crescimento, isto é, as reflexões e contribuições se acumulam, exigindo de nós, profissionais, o esforço constante de atualização e a habilidade para equilibrar e examinar as nuances de cada formulação teórica que se apresenta. É fundamental, ainda, que se estabeleça um diálogo entre as mais novas proposições e o repertório de ideias veiculadas pela tradição em nosso campo do conhecimento. A Literatura Comparada não pode se abster da participação nesse debate. E seus estudiosos também não devem se esquivar da investigação aprofundada sobre o movimento incessante no cenário teórico e seus pontos de contato com o comparatismo. É esse espírito que move os artigos do presente número. Luiz Gonzaga Marchezan, no ensaio “A leitura da literatura e os dias”, resolve iniciar o percurso de sua reflexão sobre a literatura e a leitura da ficção a partir dos clássicos Platão e Aristóteles, mas estende o exame para momentos mais próximos do presente, a partir do olhar que se volta para os Estudos Culturais, para a retomada de Roland Barthes e para as abordagens feitas por Umberto Eco e Tzvetan Todorov já no século XXI. O contraste de
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perspectivas mais recentes com as concepções platônicas e aristotélicas é assumido como desafio administrado com perspicácia pelo autor. A concentração sobre os Estudos Culturais é a escolha de Carlos Magno Gomes, em seu artigo “Leitura e estudos culturais”. Tomando essas contribuições como ponto de partida, o autor se detém sobre a paródia e a intertextualidade como manifestações significativas para a problematização da leitura de acordo com enfoques contemporâneos. Desta iniciativa resulta uma revisão do conto “A moça tecelã”, de Marina Colasanti, articulada ainda com a contribuição de importantes comparatistas brasileiros, como Eduardo Coutinho e Tânia Carvalhal. Márcio Roberto do Prado dirige sua atenção, em “Entre os fragmentos do espelho: reflexos e reflexões do pensamento teórico sobre a Literatura”, para as possibilidades de interpretar fenômenos recentes como a comunicação e a cibercultura, mantendo o diálogo com diversas fontes da teoria literária. Assim, Platão e Aristóteles são convocados novamente para o debate, acompanhados também de Henry Jenkins e Pierre Lévy, além de outros apreciadores das manifestações culturais do nosso tempo. O artigo de Teresa Cabañas, “A razão prática da teoria”, constitui um exercício metateórico. Trata da cena brasileira, focalizando, entre outras questões, o debate crítico-teórico em torno da poesia marginal, ao revisitar as intervenções de Heloisa Buarque de Hollanda, Carlos Alberto Messeder Pereira, Iumna Simon, Vinicius Dantas e Glauco Mattoso. Sobressai, ainda, uma análise do problema da produtividade e de sua interferência sobre a política de produção de textos acadêmicos no ambiente universitário. As temporalidades tornam a assumir papel central no trabalho de Renata Telles: “Assombração do passado e abismo do futuro: entre o tédio e o espanto”. As atenções dividem-se entre polêmicas e polarizações experimentadas no território da crítica literária brasileira, o destaque conferido à memória como questão vital para os estudos
Apresentação
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contemporâneos e a análise de romances de Bernardo Carvalho publicados nos últimos anos: Nove noites, Mongólia e O filho da mãe. A ideia de privilegiar um determinado autor brasileiro para fazer emergir a discussão teórico-crítica é a origem do procedimento de Wilberth Salgueiro em seu artigo “O poema refém da teoria e da interpretação: exercícios críticos em torno de Paulo Leminski”. As referências caracterizamse pela diversidade: clássicos como Adorno, Barthes, Benjamin e Ezra Pound comparecem. Mas o espaço do debate é preenchido também por Antoine Compagnon e Linda Hutcheon. O foco de Alvaro Hattnher, em seu trabalho “Quem mexeu no meu texto? Observações sobre Literatura e sua adaptação para outros suportes textuais”, é direcionado para as múltiplas relações entre literatura e cinema e para os processos de consolidação de novos suportes para os textos literários. Conceitos como adaptação e questões relativas à narratologia e à transmidialidade são abordados. Assim, o universo da interatividade, dos videogames, das narrativas gráficas e dos RPGs ganha o interesse do autor. “Literatura e cinema: memórias e histórias” é o título do artigo de Rosana Cássia Kamita. O diálogo entre as duas linguagens artísticas, a literária e a cinematográfica, está mais uma vez no centro das reflexões desenvolvidas. O processo de adaptação orienta também os questionamentos do trabalho, aos quais se acrescentam as preocupações com as relações de gênero examinadas no romance Minha vida de menina e no filme Vida de menina. Uma questão que merece ser ressaltada na prática da investigação do quadro da(s) teoria(s) literária(s), de seu caráter de multiplicidade e das possibilidades de conexão com a Literatura Comparada é o papel vigoroso desempenhado pela filosofia como conjunto de fundamentos para os exercícios reflexivos. O ensaio de Jaime Ginzburg, “Violência e forma em Hegel e Adorno”, ilustra tal importância ao eleger o pensamento hegeliano sobre a épica e
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sua revisão na Teoria Estética como tópicos centrais para os estudos literários. Alessandro Zir contribui para o debate com o texto intitulado “A persistência de questões de ordem ontológica na Literatura Moderna: uma perspectiva para a Crítica Literária Moderna”. Ideias platônicas e concepções humanistas são revistas pelo autor em longa trajetória que inclui passagens por pensadores italianos e franceses, Nietzsche e Adorno, romancistas como Proust e Virginia Woolf. O estudo é concluído com uma avaliação das obras de Guimarães Rosa e Clarice Lispector à luz das questões ontológicas. A relevância da filosofia faz-se presente ainda no ensaio de Rodrigo Guimarães, “Kostas Axelos: o ‘jogo da errância’ des-articulando teorias”. O filósofo grego contemporâneo ocupa espaço destacado no texto, entre outros fatores, pela repercussão de suas ideias sobre Deleuze. O impacto de questões como o jogo, a errância e o niilismo é avaliado em confrontos com diversas produções literárias como as de Rimbaud e o inquietante Bartleby, de Herman Melville. Luiz Carlos Santos Simon Luís Bueno
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A leitura da literatura e os dias Luiz Gonzaga Marchezan*
resumo: A filosofia platônica e a poética aristotélica assentaram
os postulados para um pensamento teórico acerca do processo de produção e de leitura da ficção. A especialização das áreas do conhecimento em disciplinas proporcionou múltiplas leituras para o literário. Uma tensão entre teorias literárias e sociais atravessa o horizonte de leitura das realidades literária e imediata e hoje apresenta-se como possibilidade norteadora da produção e da leitura da literatura. palavras-chave:
ficção; realidade; conhecimento; teoria.
abstract:
Plato’s philosophy and the Aristotle’s poetics have settled the postulates for a theoretical thought on the production process and the reading of fiction. The specialization of the knowledge areas into disciplines has provided multiple readings for the literary. A tension among literary and social theories goes through the horizon of reading from the literary and immediate reality, and today presents itself as literature production and reading guiding possibilities. keywords:
Professor Doutor da Unesp - Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara, SP. Brasil. E-mail: lgmarchezan@uol.com.br *
fiction; reality; knowledge; theory.
Os pensamentos de Platão e de Aristóteles, de maneira exemplar, dão início às conceituações acerca do processo ficcional, momento em que encontramos as condições iniciais para uma discussão longa acerca dos predicados da ficção. Platão, com o método interrogativo socrático, procura analisar, na inventiva ficcional, a atitude do ficcionista em simular situações, com posições falsas e sempre ausente dos debates. A arte, para Platão, nos diálogos socráticos, insere-se no contexto da vida do cidadão e
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não se separa da vida, nos seus efeitos morais e políticos; envolve o ser na sua educação moral e política; é análoga às circunstâncias da vida do cidadão. Platão quer a arte para a educação do cidadão. Dessa maneira, a manifestação do artista, para Platão, constitui-se numa atividade de segunda ordem, uma vez que tanto o escrito como o pintado, nos seus simulacros, não adotam, em primeiro lugar, o tom do discurso vivo da oralidade, no vórtice da memória; depois, porque as imagens, no que deixar imaginar, perdem o contato com a verdade, relacionam-se por meio de cópias, algo de segunda ordem. Cabe ao cidadão, segundo o filósofo, ater-se ao memorável, vivificá-lo, de forma presencial, em diálogo, e não apenas recordá-lo num texto escrito, fora de uma situação de debate. Para Platão, como em Fedro, tal inconveniente presente no texto escrito apresenta-se também na pintura: as figuras pintadas, como as escritas, longe de uma situação de diálogo, permanecerão caladas diante do pensamento vivo do seu espectador ou leitor. Tal condição não amplia o conhecimento do cidadão, não o educa para a vida; não lhe responde acerca das suas expectativas e tira, quer da pintura, quer do texto, os propósitos de uma viva troca de ideias. Observamos também, nesses conhecidos assombramentos platônicos, intenções de análise comparativa. Platão, desse modo, distingue o discurso natural, promovido por um orador, do discurso artificial, trabalhado pela arte, escrito ou pintado. O discurso da arte, com sua fantasia, para o filósofo, não define as coisas do mundo; não ensina nem persuade com a força e a eficácia que a palavra adquire no interior de um pensamento objetivado por um orador, por ele gerado no clamor de um debate. Platão pensa por meio de analogias; faz comparações a partir de uma questão filosófica, do aparecer de uma ideia, que o assombra no seu sentido múltiplo, na sua aparência com outras ideias. Suas analogias procuram separar as verdades de suas aparências, procuram materializar um sentido numa dada e efetiva imagem, numa figura, para explorá-la mediante sua ilustrada representação e por
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meio do seu reto raciocínio. O filósofo reflete a partir de imagens plásticas, como, por exemplo, a da caverna, em célebre analogia. Assim, a experiência visual ilustra o conhecimento, faz-se uma metáfora do conhecimento. Temos, dessa maneira, por meio do pensamento platônico, imagens e analogias: as primeiras como instrumentos para pensar as segundas. Aristóteles não deixou de ponderar, filosoficamente, acerca do conhecimento, dado, para ele, conforme sua Poética, por reconhecimento e a partir do senso de representação da arte, patente e patenteado num mito da tradição ou, até, num aforismo. O seu entendimento acerca do conhecimento de uma verdade dá-se por meio de uma hermenêutica do imaginário clássico, nítido, por exemplo, em Rei Édipo, tanto no mito homônimo como no consagrado aforismo do pensamento grego: “Conheça-se a si mesmo”. A análise feita por Aristóteles de Rei Édipo, no interior da Poética, orienta-nos para a leitura da construção do conhecimento que Édipo, o protagonista, realiza de si mesmo, partindo do modo como, sempre aterrorizado, se vê como alguém de origem obscura, para, de repente, reconhecer-se parricida e, ainda por desconhecimento, marido da mãe e pai dos irmãos. Tal comportamento, reconhecido por Édipo, situa-o como alguém que ultrapassa as interdições capitais, marcas da humanização do homem. Ao imolar-se, cegando-se, reconhece, no sacrifício, o que não viu, não observou. A literatura, para Aristóteles, no âmbito, agora claro, da sua atitude comparativa, é mais filosófica que a história; esta prende-se ao singular, verificável; aquela, ao insondável e disperso de maneira generalizada no conjunto de conhecimentos acerca da natureza humana, no interior do processo civilizatório. Tal comparação evidencia-nos como o texto de Sófocles, o seu autor, no anonimato requerido pelos clássicos e diante de um gênero literário seguido, adotou um mito da tradição, ao lado de um aforismo, e valorizou-os num conteúdo conhecido – o das transgressões de Édipo –, encenando-os como transmissores de conhe-
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cimento acerca da tradição da humanidade, reconhecidos pelo seu espectador, conhecedor da sua cultura. Como nos pontua Aristóteles, a função autoral de Sófocles foi a de tramar uma fábula diante de um mito. Caberia, assim, ao espectador da tragédia de Sófocles, por catarse, reconhecer, nas transgressões de Édipo, as balizas invioláveis do humano. O conceito de catarse, na Poética, conserva seu significado de “operar”, oriundo da medicina. Para Aristóteles, em sua análise de Rei Édipo, a catarse opera, extirpa, do espectador, por reconhecimento, quaisquer mostras transgressoras de uma conduta traçada pelos valores humanos. Temos, dessa maneira, esboçado, para a teoria da literatura, com Platão e Aristóteles, um finca-pé: duas maneiras distintas acerca de especulações em torno de análises literárias. De um lado, a partir de Platão, ponderações que não consideram o excesso de sentido dos valores literários, no que eles excedem (e podem, sim, assombrar o leitor); do outro, com Aristóteles, ponderações que se limitam ao que será reconhecido, de um ponto de vista imanente e circunscrito ao texto. Nas duas maneiras, no entanto, observamos atitudes comparativas no modo como os filósofos aproximam o texto da vida, da pintura, da história e da filosofia. Platão preocupou-se filosoficamente com a ordenação da realidade. Aristóteles preocupou-se com a representação da realidade. Platão não soube lidar com os poetas. Aristóteles lidou com a obra dos poetas; não lidou com a pessoa do autor. Platão preocupou-se, filosoficamente, com a transposição de ideias, com o modo de ordenar a realidade por meio das ideias (querendo livrá-las das suas sombras). Aristóteles preocupou-se com a representação da realidade, sua transfiguração, em epopeia, tragédia e comédia, tendo o poeta como um seguidor da tradição. Platão pensa no conceito de imitação com base moral; Aristóteles, com base literária. Platão é analógico; faz uma discussão abrangente, oral, dialética. Aristóteles é literal; procura um método, por meio de um termo, um limite;
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seus raciocínios estabelecem princípios teóricos – passos iniciais para a especulação rigorosa. Para Platão, imitação é um modelo, cópia de algo que desvirtua uma realidade dada. Aristóteles subverte o modelo platônico e conceitua a imitação como simulacro, uma representação. A imitação, para Aristóteles, o seu objeto, está nas ações dos homens; é um termo com aplicação limitada às obras de arte humana. Aristóteles tem outra concepção de imitação, assim como das palavras, do seu valor. Platão, pelo método socrático que coletou, valorizou a oratória, a oralidade, presente, sem dúvida, nos seus diálogos, uma imitação daquela prática. Nela, na sua encenação, o filósofo, no seu reto raciocínio, chega à verdade, no modo como a separa das aparências. O artista, para Platão, imita as circunstâncias da vida sem conhecê-las na sua profundidade; tem delas imagens imprecisas, aparências de verdades. O filósofo detém a verdade; o artista preocupa-se com sinais dela, com seus espectros. Platão e Aristóteles, em suas considerações acerca do ficcional, diferenciaram-no, ao seu modo, da filosofia e da história, pensando-o como o entenderam, a partir de uma prática significante. Para eles, indistintamente, a língua oferece significantes; o discurso, a significação. Platão, centrado na formação do cidadão, temeu o poder da língua no discurso, o seu efeito de ruptura, perigoso, para ele, no seu viés do convencimento. Aristóteles viu, no efeito de ruptura do discurso, a possibilidade da configuração de outros discursos, e, no interior do discurso literário, a configuração dos seus gêneros. A especialização das áreas do conhecimento em disciplinas, como a filosofia, a história, a sociologia, considerou a literatura como um espaço de inter-relações entre o literário e um método disciplinar para a sua leitura, consubstanciando, dessa maneira, lugares de co-ocorrências, de virtualidades, espaços que refletem tensões entre as possibilidades interpretativas dadas pela interdisciplinaridade.
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Desse modo, ao lado dessas possibilidades múltiplas de leitura da literatura, nutriu-se sempre a sensação de que qualquer recorte escolhido, por uma mão pesada, empobreceria o literário, diluiria a complexidade inerente ao texto literário; apontaria como leitura da literatura o que ela não é: um espaço de garantias, com respostas. A interdisciplinaridade subsidia, com seus métodos, por mais rigorosos que sejam, a descrição da obra literária, mas com o objetivo de querer dar conta de um entre tantos sentidos que uma obra literária possa sugerir. O conhecimento de cada um deles fornece elementos que podem servir de argumento para a reflexão da literatura e, a cada abordagem, seja de que ângulo for, um novo sentido incorpora-se a uma rede de outros sentidos. A interdisciplinaridade, no seu horizonte hermenêutico, amplia a possibilidade de interpretação de um texto literário. Uma leitura, dessa maneira, impõe-se como uma prática significante, no sentido de escolha, pelo leitor, do significativo, imerso nos fundamentos do texto literário ditados por outra prática sustentada por múltiplos valores. A interdisciplinaridade, assim, realiza-se por meio de um método de leitura comparativo da literatura, que podemos encontrar no interior de uma análise literária que busque, por meio de um princípio estruturante, fazer comparações, auscultar o diálogo entre textos afins e procure, em face das várias mobilizações enunciativas presentes nas narrativas comparadas, analisar a arte e a sua mediação com o mundo, configurada em seus temas e figuras tramados. Outro modo de leitura da literatura é o do comparatismo, que encontramos num conjunto de postulados de inspiração nas teorias sociais e que, de forma intensa, dirige suas investigações para os estudos literários com a intenção de analisar passagens que tematizam questões de afirmações sociais. No exercício comparativo que fazem, elaboram, para nós, difusos estudos culturais, que perdem de vista o literário. O que estudam os estudos culturais na literatura? Dedicam-se a examinar uma matéria que não é literária;
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leem no texto literário comportamentos de grupos sociais estratificados e a análise resulta na promoção de um julgamento decisivo por atitudes de afirmações sociais para os grupos. Fazem, conforme Acízelo (2005, p. 143), da sua análise um lugar de intervenção cultural. Mostramse, assim, excessivos tanto os juízos acerca do conceito de cultura como os de investigação literária nutridos pelos estudos culturais. A atenção para os textos literários encontra-se voltada às modificações de ambientes e comportamentos em estruturas social, política, econômica e jurídica, que transparecem como referências contextuais. Assim, a descrição dos estudos culturais não avalia os valores literários como uma grandeza estética da obra; toma-os como referentes, na sua grandeza, do interior da realidade imediata. A literatura é um aspecto, uma realização da cultura. A cultura está no interior do conhecimento humano em modelos de consenso – opções, escolhas, construções, manifestações – nacionais e universais; construída e cultivada pela experiência e pelo conhecimento. Assim, conforme Leach (1985, p. 133), “[...] a cultura, entre outras coisas, é uma obra de arte”. Os seus valores cintilam no texto literário e, desse modo, não se encontram, como querem os estudos culturais, na transparência referencial do discurso, na sua argumentação linear; encontram-se narrados, experimentados, expressos, manifestos em seu paradigma. Os estudos culturais leem o literário como um fenômeno objetivo, verificável, com medida. Trata-se de um olhar para o literário sem querer contemplá-lo na arte da sua cultura; sem querer lê-lo na sua concepção literária, mas literal. A literatura cria, pela metalinguagem, de forma pluridimensional, o seu referente, cultivado a partir do seu contexto. Trata-se de uma experiência estética, sensorial, de outra grandeza, que requer, para o entendimento e a análise apropriados da sua matéria, de forma disciplinada, um método para a sua leitura. O método constitui-se numa trajetória com objetivo, o de alcançar um objeto a fim de conceituá-lo, identificá-lo na sua matéria. O método
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é uma escolha de leitura para uma matéria; observa-a, segmenta-a, tira-a da sua continuidade para, assim, ajuizála na sua especificidade. O método expressa a relação que a teoria, em sua aplicação, tem com o objeto. Os estudos culturais, a partir da proposta de valoração que estabelecem para o seu objeto, desprezam um método, uma disciplina para a sua leitura; rejeitam-nos. O fato de os estudos culturais mostrarem-se comprometidos com afirmações sociais, por mudanças sociais, tira-lhes, de início, a postura da neutralidade, requerida para uma investigação que não queira mostrar-se tendenciosa na articulação de um pensamento. Dessa maneira, na forma como leem, não têm dúvidas para o entendimento do que leem; afastam-se, por isso, da necessidade de uma teoria, de conceitos operatórios para a sua análise e optam por um senso mediano de leitura do literário. O texto literário, dessa maneira, passa a ser considerado do ponto de vista do conhecimento empírico, do seu imediatismo. O imediatismo quer refletir acerca de si mesmo; faz-se absoluto, sem receio do engano, e faz do ocasional, contingencial ou, até, substancial. A literatura trabalha com modelos imaginários de verdades, verdades hermenêuticas, conforme Eco (2003, p. 14), e, diante disso, na sua manifestação, a sua mensagem narrativa transcende o lugar do seu discurso. A literatura, desse modo, mostra-se como o resultado de, no mínimo, duas práticas: a de trabalhar com estoques de conhecimento no processo criativo de uma obra e a de comunicá-la, por meio de uma linguagem aferida para uma mensagem narrativa, interativa e pluridiscursiva. O seu significado é sentido produzido; nasce das infinitas superposições entre significantes. O significante tem uma natureza semântica; são interpretantes, dispostos para cooperar na construção, na maximização de um dado sentido para a comunicação. Essa é a marcha para a leitura de um texto: significante conduzindo outro; significações anteriores sendo alteradas por significações posteriores.
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O processo da língua é infinito e ele fundamenta o texto criado pelo discurso. O sentido encontra-se, dessa maneira, codificado e invade os valores que rodeiam nossa existência. A leitura apossa-se, dessa maneira, de um texto. Ler um texto é alcançar o seu sentido; compreendendo-o, em primeiro lugar, para depois interpretá-lo. Compreender um texto, conforme Barthes (1987, p. 193), é acessá-lo pelas suas estruturas, que nos dão o seu sentido. Interpretá-lo é reconhecê-lo nas demarcações da sua estrutura; compreendê-lo para avaliá-lo. Leitura e literatura constituem-se de atos, condutas, procedimentos pautados pelos códigos da língua, convenções. Para Barthes (1987, p. 204), “sem códigos não há comunicação, não há trocas intersubjetivas [...]”. Assim, para o teórico, ler é “abrir entradas na palavra”, decodificá-la (BARTHES, 1987, p. 184). Ainda segundo o estudioso, ler “torna-se então método intelectual destinado a organizar um saber, um texto, e a restituir-lhe todas as vibrações de sentido contidas na sua letra [...]”, uma vez que a leitura não é “a compreensão em bruto dos signos, mas sim o sentido que espera que transmitam” (BARTHES, 1987, p. 186-187). A leitura não pode acompanhar a voracidade do pensamento. Trata-se, conforme Barthes (1987, p. 184), de uma “prática difusa” que precisa fazer-se numa “prática codificada”. Não escapamos de uma leitura estruturada. Ou não leremos o que está escrito. Além do que, a realidade é linguística; o sentido é construído também pela língua. Uma ideia é um recorte do mundo realizado pela língua. As investigações que, ao descreverem o texto literário, afastam-se das especificidades da literatura rompem com pressupostos dos métodos de análises literárias, passam a ler no texto literário acontecimentos da realidade realizada. A teoria sustenta, ajuíza o pensamento crítico, no caso, promove a transposição de uma experiência de leitura do literário. Tal é a contribuição de uma teoria literária bem sustentada; quando ancorada num juízo crítico, afasta-
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se de atitudes aleatórias de análise e busca um método combinatório para a análise literária. Teorizar, no caso, é praticar, exercitar um argumento, com direção e método; construir, no âmbito de uma análise, um juízo crítico que opte por um método hipotético, com a possibilidade de descrever as condições de produção do texto ficcional e seu processo de construção formal, o seu produto, com a possibilidade de estabelecer, com o rigor devido, combinações entre apontamentos, comparações, a fim de construir uma hipótese de leitura. A voracidade de um pensamento traduz a ambição do seu pensador no exercício pleno de sua vontade de pensar; ávido, comprometido com o estudo da experiência humana, envolve-se com um estoque de conhecimentos implicados, no caso, com as ciências humanas. Acontece que, no ímpeto de formular ideias, um pensamento deve buscar o seu domínio na estabilidade de conceitos e com base teórica. Assim, sua força transparecerá dominada por um trabalho intelectual sustentado na operacionalidade e precisão dos conceitos. Os conceitos, por sua vez, precisam saber o que dizem; precisam traduzir percepções, mostrálas no modo como apreendem os objetos projetados para a investigação. O pensamento que pulsa no texto literário é fluido; domina-o uma teoria afeita à sua natureza. A existência é dramática, imersa em situações singulares. Lemos o tempo, de acordo com Barthes (1987, p. 185). Platão e Aristóteles, ao seu modo, envolveram-se com a astúcia da mimese, com as tensões entre o verídico e o verossímil, uma zona de conflito até hoje instalada entre os leitores da literatura. As discussões realizadas pelos dois filósofos deram-se sempre por meio de um contraponto entre situações selecionadas e combinadas, com métodos. Ambos, ao seu modo, inferiram acerca da virtualidade, da ambiguidade da ficção, dispondo-as, nas suas verdades gerais, diante dos fatos particulares da vida cotidiana, contingenciais; mantiveram-se atentos, sempre, como já
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dissemos, para a trama do discurso ficcional, sua especificidade, sua habilidade. Não há, para os dois filósofos, como ignorar a cultura; ela compõe o imaginário humano, dirige suas práticas, comportamentos; impõe-se com seus valores e medidas. Platão, no seu ideário formado pelo método interrogativo socrático, considera que compreendemos um conjunto de interlocuções constitutivas. Aristóteles também faz suas conceituações a partir de valores transcendentes da cultura, estabelecidos, para ele, no caso da ficção, na tragédia perfeita de Sófocles. Nesse momento, percebemos superada a dúvida de Platão; em Rei Édipo, para Aristóteles, as palavras suportam valores, são portadoras de valores; relacionam valores; não são valores em si; são valores apreendidos entre múltiplas diferenças e na relação entre argumentos compostos no interior de uma tragédia perfeita, constituída por uma ação espetacular distribuída em papéis diversos. Uma tragédia, para Aristóteles (1966, p. 102), só “pela leitura, pode revelar todas as suas qualidades”. Tais atributos, portanto, estão no interior do texto distribuídos no que é verossímil. A verdade está fora do texto; nele, ela é visível aos olhos no processo de uma leitura. A tragédia, na sua teatralidade, faz-se num lugar de argumentos, compostos na efabulação do trágico, nas contradições implícitas, presentes na ação de Édipo. Assim, a tragédia argumenta, imita uma ação da vida; seus personagens aspiram a um conhecimento. Em Rei Édipo, os deuses dispõem do destino dos homens. Mesmo assim, lemos que Édipo é prepotente, o que nos demonstram os seus embates com Tirésias e Creonte. Édipo não tem a tolerância de Creonte nem a sabedoria de Tirésias. A tragédia, desse modo, na sua teatralidade, faz-se um lugar de argumentos. A ficção, para Aristóteles, é filosófica: afirma, nega, faz juízos e, com isso, estabelece uma interface com a cultura.
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A faculdade de sentir o figurativo, na contemporaneidade, mudou; o entendimento do figurativo não se mostra representado, latente; faz-se patente, como figura do mundo, apresentado, assim, de forma analógica. O figurativo, desse modo, inclina-se por apresentar-se conforme o hábito, a verdade de uma situação temporal, uma afirmação, e não com a medida do novo. O mundo do inteligível, desse modo, sobrepõe-se ao mundo do sensível; o poder da analogia sobre o poder da metáfora. O texto literário teima em não querer ser mais o lugar que tenciona saberes, lugar de entre saberes, do suprassensível, do desmesurado e a sua leitura perde a alegria e o prazer intelectual das descobertas. Retomando Barthes: [...] a literatura quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real [...] a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso [...] a literatura trabalha nos interstícios da ciência [...] (BARTHES, 1980, p. 18).
Ou, conforme um aluno seu, Todorov (2009, p. 77), “[...] a literatura faz viver as experiências singulares [...]”. A mensagem narrativa, como queremos, transcende o lugar do seu discurso; o seu texto inclui os saberes de todos os outros textos; a ficção é interativa e não se descuida do entorno da existência. O texto ficcional organiza uma realidade textual por meio tanto de situações reais, acontecidas, ditas, como de situações ideais, as idealizadas, intencionais, abertas. E com tais circunstâncias, construídas para uma realidade textual, a ficção trama, momento em que as assimetrias entre texto e leitor, entre a arte e a vida, movimentam situações de interações com o universo de leitura, para a compreensão e a interpretação do texto lido.
A leitura da literatura e os dias
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O texto literário é oblíquo, travesso. A travessura não cabe à leitura do texto literário, ou à sua análise. Uma análise do texto literário precisa chegar ao seu processo criativo. O crítico, para isso, conforme Wellek (1971, p. 49), deve ter noções fortes de teoria e história literárias e exercer uma crítica com bases teóricas, isento de nominalismos, relativismos e absolutismos no momento de situar o texto avaliado no seu contexto, a fim de que o literário não se constitua como uma ilustração de fatores sociopolítico-culturais, na forma de um catálogo de eventos. Cabe juízo à construção de juízos críticos. Há ainda algo de paradoxal no ideário dos estudos culturais: que os clássicos nada tenham a dizer para a cultura e, pior, ignorar que os escritos clássicos contenham algo de inesgotável. O estudioso da literatura lê nos clássicos os traços definidores do literário, suas formas constituintes. Daí, como não admitir que o clássico é definidor da literatura, que ele traz os traços definidores do literário, suas formas constituintes? De acordo com Calvino (2007, p. 11), “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Antonio Candido (2000) presume que a “crítica literária não deve ser bitolada teoricamente, nem uniforme praticamente” e que “além de ter bases técnicas, é preciso que o crítico saiba ajuntar-se à natureza dos textos [...]”. Um texto impõe-se, assim como deve impor-se uma leitura sua, enfrentando-o. Um leitor, para isso, precisa reconhecer a diferente natureza dos textos. A literatura e a história não trabalham a palavra com a mesma força ontológica. O objeto da pesquisa da literatura requer, para a sua análise, mãos leves, dispostas, novamente, como em Calvino (1990, p. 28): “[...] à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório”.
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Leitura e estudos culturais Carlos Magno Gomes*
resumo:
Este artigo propõe reflexões sobre a importância dos estudos culturais para uma leitura crítica. A leitura literária demanda uma formação do leitor tanto esteticamente quanto culturalmente. Dentro dos estudos comparados, exploramos conceitos como recepção crítica e paródia para uma prática de leitura interdisciplinar. Partimos do conceito de intertextualidade para explorar a paródia como roteiro de leitura, pois ela possibilita ao leitor reconhecer as opções estéticas como questionamentos de conflitos sociais. Por ser dual, a paródia traz um diálogo com o passado cultural e seu autoquestionamento, por isso é um gênero textual que exige um movimento de leitura para fora e para dentro do texto. Metodologicamente, usamos o conceito de “leitor estético”, de Umberto Eco, e de paródia, de Linda Hutcheon. Além de debater as contribuições dos estudos culturais, propomos a leitura como um exercício comparativo em que as peculiaridades da literatura são defendidas como fundamentais. palavras-chave:
leitura, paródia, estudos culturais, intertex-
tualidade. abstract: This essay analyses the importance of cultural studies
Prof. Adjunto da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutor em Literatura pela UnB (2004), com pós-doutorado em Letras Vernáculas pela UFRJ (2007). *
for a critical reading. We understand that the literary reading calls for a formation of reader as aesthetically as culturally. Then, we explore concepts such as critical reception and parody as possibilities to an interdisciplinary reading. We take the concept of intertextuality to explore the parody as script reading, because it allows the reader to recognize in the aesthetic elements several questionings of social conflicts. Because the ambiguity that the parody brings, a dialogue with the past and its self-question, it is a textual gender that requires a move of reading out and into the
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text. Methodologically, we use the concept of “aesthetics reader”, by Umberto Eco, and parody, by Linda Hutcheon. Beyond to debate about the contributions of cultural studies, we suggest the reading as a comparative exercise in which the peculiarities of the literature are defended as fundamental. keywords:
reading, parody, cultural studies, intertextuality.
Considerações iniciais sobre a literatura e o leitor O espaço da literatura tem ganho, neste início de século, diferentes reflexões nos meios acadêmicos. Isso porque ele está diminuindo na escola e na vida social pela força das novas mídias entre os jovens. Tentando reverter essa situação, muitos pesquisadores destacam o fortalecimento do ensino de literatura como uma saída para a formação de novos leitores. Todavia, não há um consenso sobre qual o melhor caminho para essa formação: se teórico ou prático. Tzvetan Todorov, na obra A literatura em perigo, argumenta que a capacidade estética deve ser desenvolvida para formar um leitor preocupado em articular o dentro e o fora do texto em oposição às “construções abstratas” da crítica literária (TODOROV, 2009, p. 28). Ele defende o contato do leitor com a obra literária e questiona as aulas baseadas na história da recepção desses clássicos. O debate em torno da recepção crítica tem nos motivado a experimentar diferentes metodologias de ensino de literatura. Partindo dessa constatação, este artigo traz algumas reflexões sobre um método interdisciplinar de ensino de literatura a partir das contribuições da literatura comparada e dos estudos culturais. Da literatura comparada, exploramos o conceito de paródia, de Linda Hutcheon (1989), e leitor-modelo, de Umberto Eco (2003). Dos estudos culturais, exploramos o conceito de identidade, proposto por Stuart Hall (2000), e de recepção feminista, argumentado por Nelly Richard (2002). No primeiro momento, trazemos algumas reflexões teóricas sobre leitor,
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paródia, estudos de gênero para, no segundo, explorarmos tais conceitos na leitura do conto A moça tecelã, de Marina Colasanti. Opondo-se às leituras tradicionais e à concepção de que o texto literário vale apenas por sua expressividade estética, este artigo traz algumas reflexões sobre uma prática interdisciplinar de leitura em que a intertextualidade literária e cultural não pode ficar de lado nas interpretações contemporâneas. Assim, o propósito é mostrar o quanto a leitura literária ganha relevância quando se apropria das duas formas de interpretação: a estética e a cultural. Sem essa afinidade entre forma e conteúdo, como nos ensina a boa tradição de Antonio Candido, os estudos literários correm o risco de se aprisionar em dois campos específicos: de um lado, os literários voltados para a coleção de textos, e, do outro, os culturais que perdem contato com o texto literário para privilegiar os produtos da cultura de massa. Para romper com essa dicotomia, defendemos a leitura interdisciplinar como uma saída. Assim, o como o texto foi feito passa a ser lido como um elemento cultural, como uma crítica ou uma reflexão social, e deixamos as discussões teóricas de lado para nos preocuparmos com o mais caro para nossas pesquisas: criar diferentes formas para explorarmos os sinuosos significados do texto literário. Na perspectiva dos estudos culturais, a leitura se torna eficiente quando acrescenta aos elementos estéticos o debate de uma prática inclusiva e de aceitação da diferença e da diversidade cultural (HALL, 1999). Daí a importância da memória cultural como um elemento fundamental no processo de leitura. O leitor passa a ser um co-autor quando aplica às representações literárias as novas abordagens de pertencimento das identidades como seu caráter fluido e flexível, como defendem Bauman (2005) e Hall (1999). Partindo dos estudos culturais, damos destaque ao papel do leitor, pois pensamos em desenvolver uma discussão em torno da leitura como um processo de formação da cidadania, incluindo as novas abordagens culturais sem perder as especificidades do texto literário. Nesse processo,
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em que leitura e sociedade não podem ser desvinculadas, a literatura assume um papel fundamental, pois, a partir do contato com o texto, o gosto pela leitura pode ser despertado como uma prática de reflexão social. Assim, o convite à reflexão social pode ser uma das saídas para associar leitura, prazer e formação da consciência crítica do leitor. Nesse sentido, as ideias defendidas aqui se vinculam a uma prática de leitura na qual os elementos estéticos sejam lidos como ideológicos. A falta de leitor para o texto literário é uma preocupação mundial. Para alguns, a forma como a literatura está sendo explorada nas escolas está distanciando o leitor em formação do texto literário. Como moderador, o professor tem o papel fundamental de aplicar os aspectos teóricos a uma proposta de ensino interativa e não pode deixar que a teoria sufoque a curiosidade do leitor. Nessa moderação, o professor deve valorizar tanto os elementos estruturais quantos os referenciais para a construção de uma leitura mais complexa. Na proposta interdisciplinar, valoriza-se o sentido do texto literário, sem deixar de fora “fatos da história literária” nem “alguns princípios resultantes da análise estrutural” para se concentrar em um trabalho de conhecimento que priorize “o sentido da obra, que é o seu fim” (TODOROV, 2009, p. 31). No Brasil, a crítica cultural não tem buscado novas formas para fortalecer a exploração do texto literário. Nos últimos anos, temos, de um lado, análises culturalistas que deixam de explorar os aspectos estéticos do texto; do outro, uma tradição que, em vez de valorizar o texto literário, fala da crítica de determinado autor ou da história da recepção de uma obra, como acontece com a expressiva fortuna crítica de Machado de Assis. O jovem de hoje conhece mais os comentários sobre o texto do mestre do que sua literatura. Todorov nos chama a atenção para essa questão. Para ele, o professor bem preparado deve trabalhar o texto literário por meio de diferentes abordagens estéticas e sociais, com o cuidado de “interiorizar o que aprendeu na
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universidade, mas, em vez de ensiná-lo, fazer com que esses conceitos e técnicas se transformem numa ferramenta invisível” (TODOROV, 2009, p. 41). Também, o professor não deve se restringir às receitas já prontas, pois corre o perigo de enrijecer e esvaziar a interpretação da literatura. Rumo a uma pedagogia da provocação, a leitura interdisciplinar leva o aluno a pensar seu espaço social a partir das subjetividades do tecido literário, pois a recepção de um texto pode ser vista como uma produção cultural de diferentes épocas, “podendo significar a possibilidade concreta de acesso ao conhecimento e agudização do poder de crítica por parte do público leitor” (ZILBERMAN e SILVA, 2005, p. 112-113). Esta proposta destaca a importância da agudização crítica na formação do leitor. Isso se torna fundamental, pois o debate em torno da leitura interdisciplinar pede uma postura politizada por parte de professores e alunos. Mas, antes de ser politizado, o leitor deve ser capaz de entender as especificidades do texto literário. Para esse tipo de ensino, prioriza-se a questão de “como” os elementos culturais estão representados na ficção. Assim, estamos falando de um leitor politizado, de um leitor que é consequência de uma pedagogia inclusiva, de uma pedagogia que privilegia a formação cultural do leitor. Para Umberto Eco, o “leitor estético” vai além do que “foi narrado no texto” para valorizar “como foi narrado o texto” (2003, p. 208). Para nós, o leitor estético analisa como os problemas sociais foram representados artisticamente. Nesta proposta, a leitura interdisciplinar é o exercício em que o leitor inclui questões de pertencimento identitário no roteiro de sua interpretação para identificar a camada ideológica explorada pelo autor. Em diálogo com a proposta de Eco, privilegia-se o ato de ler como um exercício de comparações artísticas e culturais. Para uma maior criticidade, acrescentamos a leitura paródica como uma prática provocativa de análise de textos. Nessa proposta, a intertextualidade se mostra um recurso indispensável para a formação do leitor crítico, pois
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o diálogo e a oposição entre os textos e a sociedade devem ser levados em conta. Mesmo sem ser guiado pelo princípio da originalidade, o texto paródico traz uma atualização do tema como uma revisão artística. Para uma leitura paródica, o conhecimento de outros textos estéticos e culturais possibilita o desenvolvimento da habilidade de contrastar do leitor. Tal foco interdisciplinar pode ser explorado pelo reconhecimento de que um texto paródico é plurivocal e apresenta aspectos polifônicos na estrutura e no estilo (HUTCHEON, 1989, p. 93). Por isso, a versão paródica pode ser vista como um exercício de identificação da polifonia do texto analisado. Isso possibilita um alargamento estético do que foi experimentado para a construção do texto. Esse duplo movimento de leitura amplia a capacidade do leitor de desenvolver habilidades de comparação e avaliação estética de um texto literário. Além disso, ao identificar o status paródico de um texto, o leitor estético está possibilitando diversas leituras, como o diálogo com outros textos e contextos históricos e a autocrítica que o texto paródico carrega. Um texto paródico é dual, pois “imitando a arte mais que a vida, a paródia reconhece conscientemente e autocriticamente a sua própria natureza” (HUTCHEON, 1989, p. 40). Outra marca importante do texto paródico é sua concepção opositiva. Ele se opõe a ser uma simples repetição, agindo como um contraestilo, pois “a paródia foge ao jogo de espelhos denunciando o próprio jogo e deslocando as coisas fora do seu lugar ‘certo’” (SANT’ANNA, 2000, p. 29). Além de explorar o estatuto paródico, para o sucesso de uma leitura interdisciplinar, não podemos “desconsiderar as experiências prévias e imagens de leitura e de literatura” que cada leitor carrega (LAJOLO, 2005, p. 96). Assim, a exploração do conceito da paródia proporciona um jogo entre o campo social e o artístico. Em busca de uma atividade de leitura dinâmica, a paródia passa a ser uma leitura menos hermética e menos emotiva para construir uma “prática de instauração de significados” (LAJOLO, 2005, p. 96-97). Com isso, a leitura, vista como uma prática
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social, possibilita a compreensão do próprio conceito de literatura e suas tradições culturais.
Pertencimento identitário e leitura Na perspectiva dos estudos culturais, a leitura se torna eficiente quando passa a ser uma prática inclusiva e de aceitação da diferença e da diversidade nas representações culturais e literárias. Nesta proposta, tanto a memória cultural como a recepção do leitor crítico são abordados como partes do processo de leitura. O leitor passa a ser um co-autor quando aplica às representações literárias as novas abordagens de pertencimento das identidades pós-modernas. O pertencimento é um dos conceitos que perpassam as reflexões sobre identidade e inclusão, pois “a ideia de ‘identidade’ nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o ‘deve’ e o ‘é’ e erguer a realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela ideia – recriar a realidade à semelhança da ideia” (BAUMAN, 2005, p. 26). A leitura literária como uma prática social possibilita uma pedagogia da inclusão em que o estético e o social não são separados. Por isso, a leitura paródica explora de forma mais intensa as interpretações ideológicas em que os espaços vazios do texto também são usados como opções estéticas. Com a inclusão de alguns aspectos culturais, sabemos que a literatura pode se tornar um espaço de reflexão social, pois o leitor precisa fazer diversas inter-relações entre o texto e a sociedade, o presente e o passado, o imaginário individual e o coletivo. O debate em torno dessa prática de leitura pede uma postura politizada por parte do leitor. Mas, antes de ser politizado, o leitor deve ser capaz de entender as especificidades do texto literário. Para esse tipo de leitura, que prioriza a questão de “como” os elementos culturais estão representados, o conceito de “leitor estético” torna-se fundamental, pois o texto necessita de uma leitura que interprete os significados estéticos como
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sociais e relacione o texto lido a suas heranças culturais. Tais heranças são fundamentais para que o leitor explore uma perspectiva comparativa entre o texto lido e o passado cultural, já que “cada obra cultural é a visão de um momento, e devemos justapor essa visão às várias revisões que ela gerou” (SAID, 1995, p. 105). Tal leitor também pode analisar como as identidades estão representadas e que significados elas carregam no jogo ficcional. Assim, estamos falando de um leitor politizado, de um leitor que é consequência de uma pedagogia inclusiva. Se para Eco, o “leitor estético” vai além do que foi narrado para valorizar o como foi narrado, para nós, o “leitor cultural” analisa como a identidade dos personagens foi representada esteticamente no texto selecionado, levando em conta questões de gênero, de classe, de raça ou de orientação sexual. Metodologicamente, o leitor vai incluindo/excluindo posições de pertencimento identitário para chegar a um ponto de referência central do texto. Ele parte da análise do roteiro de opções estéticas para identificar a camada ideológica explorada pelo autor. Em diálogo com a proposta de Eco, vamos privilegiar o ato de ler como um exercício de comparações artísticas e culturais. Assim, além da questão ideológica, a leitura interdisciplinar demanda um leitor atento aos artifícios do jogo narrativo para melhor desfrutar do banquete de citações sociais e culturais que todo texto literário traz. Quando o leitor vai executando sua leitura, o que está sendo lido pode ser interpretado a partir dos códigos culturais e artísticos que foram usados para a construção da narrativa. Dessa forma, a questão da identidade pode ser explorada como um jogo, visto que ela é “construída multiplamente ao longo dos discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas” (HALL, 2000, p. 108). Esta proposta pede atenção aos diversos elementos que fazem parte de uma leitura mais elaborada, visto que não só o leitor tem vez, mas o autor e o próprio texto, já que se trata de um pacto coletivo e social, pois o texto traz
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sempre as heranças de uma coletividade. Nessa dinâmica, “participam, em papéis, e perspectivas diferentes, todos os que, em dados contextos, interagem com o texto literário” (LAJOLO, 2005, p. 92). Dessa forma, o texto literário é, antes de qualquer leitura, um espaço plural, um espaço de confronto de linguagens e de memórias. Partindo dessas reflexões, reconhecemos a “política das identidades” (HALL, 1999) como ponto de partida para o leitor desenvolver sua capacidade de inclusão e de aceitação da diferença. A “política das identidades” prega o reconhecimento dos diferentes pertencimentos do sujeito moderno, seja por questões referentes ao gênero, à classe, à orientação sexual, à raça ou à etnia. Nesse sentido, a leitura interdisciplinar traz para o texto literário problemas culturais atuais, como a questão da alteridade. De quem é a voz que está narrando e que significados as opções estéticas podem ter esteticamente e culturalmente. No campo metodológico, sabemos que o problema não é tão simples, pois a leitura apresenta “articulações” e “contradições” que podem ser exploradas para o aprimoramento da técnica (cf. ZILBERMAN e SILVA, 2005, p. 16). O foco interdisciplinar reconhece a multiplicidade de discursos que o texto literário apresenta. Entender os conflitos desses discursos é o papel do leitor que usa os estudos culturais como base para suas reflexões acerca do pertencimento identitário. Com a aplicação de conceitos referentes ao leitor e à leitura, articulamos um método de leitura que valorize a experiência do leitor como cidadão. O leitor precisa desenvolver uma consciência crítica que reconheça as fronteiras identitárias e passe a produzir o saber de um lugar atual. Ele deve deixar para trás as velhas performances preconceituosas de identificação social para legitimar a diferença como prática de aprendizagem contínua. Assim, o lugar da leitura é um espaço para a formação de cidadãos conscientes da diferença como uma possibilidade cultural de relacionamento.
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Os estudos culturais nos dão base para o questionamento da identidade e, sobretudo, para incluirmos a alteridade como uma necessidade para o leitor se situar no espaço. Todo pertencimento identitário sugere uma exclusão, pois se trata de uma opção pessoal ou coletiva. O leitor precisa também estar atento ao reconhecimento das outras vozes sociais presentes no texto, tanto as explícitas como as negadas, e seguir a perspectiva de que a identidade está sempre em movimento (BAUMAN, 2005). Tais movimentos, por exemplo, fazem parte do projeto ideológico de identidades coletivas como propostas pelas feministas, pelos gays ou pelos negros, entre tantas outras. Isso quer dizer que as identidades não são fixas, elas se movimentam conforme os interesses desses grupos em diferentes contextos históricos e sociais. No caso da literatura de autoria feminina, a inclusão dos elementos culturais torna a leitura mais rica e atual. Para a sociologia atual, a identidade unificada e coerente passou a ser uma fantasia, já que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam e exigem do sujeito o confronto com a multiplicidade desconcertante de identidades possíveis com as quais pode se identificar, apesar de temporariamente (HALL, 2000, p. 108). Nesse sentido, é indispensável reconhecer que a identidade descentrada é fruto de uma repetição, de uma performance corporal. Ela não é dada, nem brota biologicamente do ser. Pelo contrário, ela é consequência de um longo processo de identificação e de escolha que envolve rejeição e aceitação. Esse processo de “pertencimento” identitário (BAUMAN, 2005) deve ser explorado pelo leitor cultural, que tanto retoma questões ideológicas do contexto original da obra como de sua recepção atual. Assim, cabe ao leitor fazer uma releitura dessas representações a partir da interseção entre o estético e o político, uma vez que a literatura é polissêmica e nunca é simplesmente mimética e transparente. Na esteira de uma leitura interdisciplinar, fugir do binarismo tradicional é reconhecer o fato de que qualquer identidade é uma construção feita
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por meio das diferenças e de significações suplementares (HALL, 2000, p. 108-110). Assim, é importante reconhecer que a identidade é uma construção e um resultado de um ato de naturalização. Da contribuição dos estudos feministas, interessa-nos a postura de questionamento da identidade patriarcal. Daí a importância dos estudos de gênero como uma contribuição para os avanços teóricos em torno das identidades de gênero. Pertencer a uma identidade é tão diversificado quanto à cultura e ao contexto social nos quais os indivíduos circulam. Nesse sentido, a identidade de gênero vai além dos limites dicotômicos, pois “o gênero pode ser entendido somente através de um exame detalhado dos significados de ‘masculino’ e ‘feminino’ e das consequências de ser atribuído a um ou outro gênero dentro de práticas concretas” (FLAX, 1992, p. 230). A crítica feminista pode ser vista como um respaldo para os estudos culturais. A forma como a feminista analisou e criticou o processo de naturalização por trás de uma identidade foi tida como referência para o questionamento de diversas identidades marginalizadas, como as dos negros, gays, latinos, asiáticos e tantas outras na cultura pós-moderna. Ao fazer uma leitura interdisciplinar pelo viés dos estudos de gênero, as opções estéticas podem ser vistas como um lugar de resistência ao patriarcado. Nesse sentido, parte-se da premissa de que as relações de gênero são construções culturais e que “devemos ser capazes de investigar barreiras tanto sociais quanto filosóficas para a compreensão das relações de gênero” (FLAX, 1992, p. 236). Por isso, tanto o estético quanto o social devem ser colocados em tensão na leitura. Como nos afirma Constância Lima Duarte (2007), a literatura de autoria feminina brasileira, a partir da década de 1960, se aproxima das questões políticas como as críticas ao patriarcado e à ditadura militar. Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon são escritoras que, se não optaram por uma estética panfletária, deixaram a resistência feminista como uma marca do romance femini-
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no contemporâneo. Duarte associa as mudanças do texto literário dessas escritoras aos avanços sociais da mulher. Essa abertura da literatura para internalizar problemas culturais dá uma particularidade ao romance pós-moderno feminino, pois forma e conteúdo se renovam na tradição do romance que aborda “o feminino em tensão com o marco da intertextualidade cultural e não como uma dimensão que deve se manter isolada, ausente dos processos de normativização da cultura” (RICHARD, 2002, p. 136).
Um modelo cultural de leitura A narrativa feminina é paródica e pós-moderna quando brinca com o passado cultural. A partir dos anos 1970, a escritora brasileira passa a incorporar aspectos da arte pós-moderna quando passa a privilegiar, entre outros recursos estéticos, a metanarratividade, a polifonia de vozes, a consciência hiperbólica e o caráter paródico (COUTINHO, 2005, p. 171-172). Reconhecendo que o texto da escritora brasileira pode ser mais bem analisado a partir de sua contribuição cultural, vamos explorar, na sequência, uma leitura do conto “A moça tecelã”, de Marina Colasanti, a partir de suas opções estéticas e ideológicas. As opções estéticas dessa narrativa mostram uma “desnaturalização” da família patriarcal, quando se descreve uma mulher encantada que questiona o universo masculino. Dentro da tradição literária, o conto “A moça tecelã” pode ser lido como uma versão paródica dos contos de fadas. Consideramos o texto paródico das representações tradicionais da família quando a escritora desenvolve um ritmo estético de zombaria do sistema patriarcal. No caso de “A moça tecelã”, a leitura interdisciplinar pode ser feita a partir do momento em que as opções estéticas do conto podem ser lidas como femininas. No conto, temos o enfoque em uma tecelã que vive feliz sozinha, mas com a chegada do marido sua vida se torna uma prisão. A protagonista do conto tem poderes especiais para criar tudo a sua volta. Com seu tear, sua arte, ela constrói um mundo
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Doravante, usar-se-á o número da página nas citações de “A moça tecelã”, de Marina Colasanti. 1
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particular repleto de delicadeza e sensibilidade: “bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza” (p. 44)1. A ideia de paródia pode ser identificada na atmosfera da narrativa. Na forma como ela tece o céu, o vento, a chuva, há uma alusão à origem do mundo. Ela vivia sozinha e tudo que a cercava era tecido por ela. Isso determina que seu pertencimento é comandado pela própria tecelã, uma mulher livre. Tecer é controlar e reger seu pertencimento. Para que a leitura crítica seja explorada, o leitor precisa incluir o texto cultural que fará parte do processo de leitura paródica. Nesse caso, exploramos o universo dos contos clássicos, por exemplo, Branca de neve, A bela adormecida ou A gata borralheira, nos quais a felicidade da mulher depende da companhia do príncipe. A estrutura desses contos defende a chegada do príncipe como uma saída para a infelicidade da princesa. No conto de Marina Colasanti, isso é bem diferente, a artista vivia feliz, entretanto sua “dor de cabeça” começa com a chegada desse príncipe. Depois de muitos dias felizes e à frente de tudo, ela passa a se sentir solitária: “ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou seria bom ter um marido ao lado” (p. 44). Com esse jogo, entre ter e não ter um marido, esse texto traz o privilégio de deixar todas as possibilidades de construção da identidade feminina no campo da subjetividade. Para Stuart Hall, as identidades surgem da narrativização do eu e do processo de pertencimento imaginário, que negocia com nossas rotas, raízes, por isso “em parte, construída na fantasia ou, ao menos, no interior de um campo fantasmático” (HALL, 2000, p. 109). No campo fantasístico do conto, a construção da identidade feminina testa os velhos fantasmas que assombram a mulher moderna. A relação entre forma e conteúdo é primorosa em suas opções estéticas. A beleza do conto está no ritmo das frases, no uso das cores claras que nos remetem a um dia iluminado ou no uso das tonalidades que informam a chegada das nuvens, da noite, ou do escurecer. Tais “es-
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pessuras dos signos” (ECO, 2003, p. 205) nos possibilitam um olhar para além do texto artístico, uma vez que esses signos nos remetem a uma cadeia de significados religiosos e sociais. Assim, explorar o sentido social do conto passa pela valorização do lugar de fala da escritora, “que observa e compreende o mundo em que vive antes de encarnar esse conhecimento em histórias, personagens, encenações, imagens, sons” (TODOROV, 2009, p. 91). No conto, da alegria ao sentimento de solidão, o tempo é armado como um sensor emocional da tecelã. Cada detalhe da narrativa denuncia uma preocupação estética com o universo feminino. Para o leitor crítico, essa característica passa a ser lida também como um conteúdo social. A leitura paródica proposta pela intertextualidade dessa narrativa “reflete sobre o que se está contando e talvez convide o leitor a compartilhar de suas reflexões” (Eco, 2003, p. 199). Nessa leitura, exploramos a habilidade da autora de tecer uma desconstrução do universo patriarcal a partir da subjetividade feminina. Justamente a partir dessas associações, a leitura interdisciplinar pode ser mais bem explorada. O que é estético passa a ser visto como social e os recursos paródicos como opções ideológicas. Confrontar e comparar estética e historicamente passa a ser uma função do leitor crítico. Do título do conto à metáfora da tecelã, percebemos uma estrutura literária polifônica e plurivocal. Até o surgimento do marido, as opções da tecelã indicavam que se tratava de uma narrativa tradicional, mas o leitor atento aos detalhes pode notar que não é bem isso que o texto propõe. A forma como o homem assume o comando da casa denuncia um tom irônico da narrativa: “[ela] nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando na sua vida” (p. 45). O detalhe da forma como a porta foi aberta já nos dá resquícios do quanto ele invade o espaço dela. Assim, identificamos uma intertextualidade que prega a repetição de um texto como uma prática não inocente. Isso fica mais visível por se tratar de uma paródia anunciada do
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conto de fada, pois toda repetição está carregada de uma intencionalidade, que tanto pode dar continuidade quanto ser subversiva (CARVALHAL, 2003, p. 54). A subversividade desse conto é apontada quanto o narrador destaca que, em vez de ser companheiro, o homem resolve explorar a capacidade de produção da tecelã: “Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que poderia lhe dar” (p. 45). Esse homem logo se distanciou do padrão que a tecelã idealizou e sua identificação com o tão desejado marido passa a ser oposta a sua posição inicial. A relação entre texto e contexto revela o quanto o conto pode ser visto como um objeto pós-moderno no qual sua autoconsciência, sua condição de arte dentro do arquivo, pode ser lida como um texto que tanto é histórico como literário (HUTCHEON, 1991, p. 165). O leitor nota que o conto sofre uma profunda modificação quando o homem passa a explorar a mulher. Com essa mobilidade, observa-se que o pertencimento identitário da mulher é um dado que o texto recria e transforma, produzindo cortes e intervalos entre corpo, posições de gênero, traços subjetivos e figurações textuais (RICHARD, 2002, p. 161). Tal opção de descrever o companheiro autoritário à frente do comando mostra-nos uma crítica aos valores patriarcais, pois até o momento a mulher estava à frente das ações e era feliz. Por apontar sua consciência paródica, esse conto opõe-se a ser uma simples repetição, agindo como um contraestilo e, por isso, é paródico, pois ele “foge ao jogo de espelhos denunciando o próprio jogo e deslocando as coisas fora do seu lugar ‘certo’” (SANT’ANNA, 2000, p. 29). A norma foi quebrada com o ruído anunciado. Para amarrar as diversas posições de leitura com uma questão de gênero, partimos da ideia de que toda leitura é um espaço de reflexão sobre a identidade de gênero, pois o espaço artístico pode ser analisado como “um locus de reprodução de gênero” (LAURETIS, 1994, p. 225). Ora,
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a própria maneira de a narrativa privilegiar a focalização interna na personagem feminina sugere que questões de gênero foram usadas como estruturantes do texto. Assim, o leitor precisa identificar tais sutilezas da construção textual para produzir sua leitura crítica. O espaço feminino, até então descrito como perfeito, com a chegada do marido, começa a ser descrito sem harmonia para a mulher. Com essa realidade, a mulher passa a rejeitar aquele universo que o marido lhe impõe: “Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços” (p. 45). Ela vai se decepcionando cada vez mais com o marido e “pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo” (p. 45). No processo paródico apontado até aqui, o jogo com a desconstrução do marido é mais agressivo e fica longe da sensibilidade presente nas primeiras linhas do texto: “Desta vez não precisou escolher linha nenhuma” (p. 45). Depois de muito pensar sobre sua condição de oprimida, a mulher resolve eliminar o marido, que “não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas” (p. 45-46). Com esse jogo, o leitor pode perceber o tom de desconstrução que atravessa a narrativa, nem esperou que o homem ficasse de pé, a mulher estava determinada a reconstruir sua vida e tomar a dianteira na escolha de suas opções. Vale destacar que o conto se coloca na contramão de uma cultura hegemônica, pois se apropria de elementos de diversas culturas, já que abusa do intercâmbio cultural e se distancia da “utopia de uma memória mítica de uma identidade coletiva única” (BHABHA, 1998, p. 63). Além dessa complexa rede de textos culturais presentes no conto, destacamos a importância do gênero textual como uma pista para essa leitura, já que o trabalho com o texto deve partir de como o gênero é trabalhado, pois a adequação do leitor depende da “inteligibilidade do material” e da “maturidade e disponibilidade do sujeito” (ZILBERMAN e SILVA, 2005, p. 113). Assim, nesta proposta, o “como” o texto foi feito (ECO, 2003) é tão
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importante quanto a formação cultura e ideológica do leitor para executar a leitura interdisciplinar. A leitura crítica que valoriza esses contextos extraliterários dinamiza a interpretação do texto. Tal forma de colocar diversos contextos históricos e artísticos lado a lado não é fruto de uma simples colagem. Daí a importância da contextualização desses espaços da recepção crítica da autora de uma tradição herdada. A autora se apropria de diversos elementos extraliterários para melhor situar sua versão dos contos de fada. Como nos ensina a literatura comparada, “o ‘diálogo’ entre os textos não é um processo tranquilo nem pacífico, pois, sendo os textos um espaço onde se inserem dialeticamente estruturas textuais e extratextuais, eles são um local de conflito” (CARVALHAL, 2003, p. 53). Com a inclusão da crítica no mundo dos contos de fadas, a autora proporciona uma irreverência estética que passa a ser parte do seu estrato cultural. Observamos que o pertencimento identitário da protagonista não é completo, pois parece que sempre fica faltando algo. Ela está em busca do melhor para si. Esse pertencimento é um processo de articulação e de sobredeterminação do que há demasiado ou do que há muito pouco em sua identidade. Esse parâmetro é importante, pois nunca há um ajuste completo ou uma totalidade de uma identidade (cf. HALL, 2000, p. 106). Quanto às questões de gênero, o conto se coloca como um espaço crítico que reconhece a identidade de “gênero, como representação e como auto-representação”, por isso não pode ser mais vista de forma fixa. Essa identidade “é produto de diferentes tecnologias sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e práticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana” (LAURETIS, 1994, p. 208). A protagonista tem um final que se opõe ao dos contos de fada. A partir dessa prática social da leitura, podemos destacar que o leitor cultural, se seguir a proposta do descentramento de gênero, está se estimulando a tolerar e interpretar a ambivalência e a subjetividade que fazem
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parte das identidades masculinas e femininas, visto que não há força ou realidade fora das relações sociais e atividades que livre o homem ou a mulher de parcialidade e diferenças (FLAX, 1992, p. 249). Com isso, enfatizamos que o leitor crítico deve reconhecer que a liberdade de um termina quando os direitos do outro entram em jogo. Assim, aprender a ouvir a voz do outro é fundamental como exercício de cidadania. Dessa forma, a questão da alteridade passa pelo reconhecer a voz do outro e deve ser um exercício de educação e ética permanente que não pode ficar de fora de uma leitura politizada. Portanto, enfatiza-se o quanto os contos de fada ganham um olhar feminista, já que, na sua releitura, a premissa da dependência da obra original vai por água abaixo, pois a originalidade de sua recriação enfatiza que “se dívida há, é do texto anterior com aquele que provoca sua redescoberta” (CARVALHAL, 2003, p. 65). A opção da mulher de viver sem seu príncipe denuncia a contestação cultural. Além disso, podemos perceber que a personagem feminina se projeta fora do espaço tradicional e aponta a subjetividade da arte como um espaço de questionamento do androcentrismo. Como nos ensinam os críticos culturais, optamos nesta metodologia por “vincular as estruturas de uma narrativa às ideias, conceitos e experiências em que ela se apoia” (SAID, 1995, p. 105). Assim, nossa proposta de leitura interdisciplinar deixa bem mais interessante a leitura a partir do que fica nas margens do texto, pois o texto remete o leitor para fora da estrutura narrativa. Esse convite só se torna interessante se o leitor estiver a fim de investigar “os perfumes de outros textos que precedem aquela tradição” (Eco, 2003, p. 218). No conto, os textos culturais possibilitam essas diversas leituras. Com a inclusão do tema do pertencimento identitário, o leitor cultural vai aos poucos percebendo que o texto literário traz diferentes abordagens dos problemas sociais que devem ser historicamente situados, mas que, principalmente, devem ser comparados e problematizados com a
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situação do leitor atual. Com isso, pensamos em uma leitura que explore as contribuições dos estudos culturais e da recepção crítica para tornar o ato de ler um ato social. Dessa forma, a contribuição teórica dos estudos culturais só pode ser mais bem explorada quando contextualizada a partir das especificidades do texto literário. Além do mais, a literatura nos proporciona novas experiências que nos trazem uma dimensão mais ampla da humanidade, pois “mais densa e mais eloquente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo” (TODOROV, 2009, p. 23). A partir da análise paródica do conto, o leitor pode desfrutar do movimento duplo do texto que olha para o presente questionando o passado cultural. Com esse movimento, no modelo selecionado, identificamos uma representação da mulher feita por meio de um olhar artístico que se opõe a dogmatizar o feminino e as rupturas de forma suplementar (RICHARD, 2002, p. 167).
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Entre os fragmentos do espelho: reflexos e reflexões do pensamento teórico sobre a Literatura Márcio Roberto do Prado*
resumo:
Este artigo pretende apresentar uma breve reflexão sobre o passado e o presente da Teoria da Literatura, considerando conceitos relevantes como “comunicação”, “cibercultura” ou o próprio conceito de “literatura”, e problematizando suas definições e os preconceitos que as cercam. Por fim, ver-se-á surgir uma visão dinâmica da teoria e suas ligações com o desenvolvimento tecnológico. palavras-chave: literatura, teoria da literatura, comunicação,
cibercultura. abstract: This article aims at presentig a brief reflection about
the past and the present of Literary Theory, considering relevant concepts as “comunication”, “cyberculture” or “literature” itself and problematizing their definitions and their prejudices. At last, we will see appears a dynamic vision of Theory and its links with the tecnological development. keywords: literature, literary theory, comunication, cyberculture.
Quando o espelho estava inteiro?
Universidade Estadual de Maringá (UEM). *
A reflexão sobre o fenômeno literário sempre se valeu de uma dinâmica básica de comparação: a dialética de semelhanças e diferenças. Aproximando-se pares passíveis de tal comparação, que apresentassem algum tipo de similaridade discernível e comunicável, era possível buscar elementos que, partindo de uma análise de cunho descritivo e crítico, servissem de base para o pensamento teórico que, quase invertendo o princípio de prioridade
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e origem, lançava mão de uma força discursiva capaz de parecer, a olhares desavisados, estar no momento genesíaco da própria obra de arte. A partir de tal investidura de autoridade, reflexões de semelhante natureza permitiram, trans-historicamente, dois movimentos básicos e de suma importância na esfera das ideias capazes de colocar a literatura em perspectiva de exame crítico e teórico: sua tipologização, a divisão em gêneros e subgêneros que serve de estopim para o esmiuçamento em termos formais, e o processo de canonização, que, partindo da identificação da obra de arte literária com o próprio conceito de “valor”, estabelece um corpus igualmente trans-histórico que, em um simples – mas de modo algum fácil – processo de retroalimentação, impulsiona o desenvolvimento teórico-crítico e reforça ainda mais semelhanças e idiossincrasias. É o que permite a Platão, pensando a literatura em termos comparativos com outras artes e artifícios humanos, colocá-la contra a parede em termos morais, políticos e éticos sob a égide de sua crítica à mímesis, tal como proposta na República (PLATÃO, 1999), tendo por base um modus operandi da criação artística que, ainda que depreendido a posteriori, serviria de elemento-base para toda e qualquer produção posterior. Mesmo Aristóteles, ao revisar tão criativa e eloquentemente o mestre, abre espaço para que se estabeleça o mesmo processo. Ao descrever, na Poética (ARISTÓTELES, 1999), elementos que serviriam para uma distinção dos gêneros que, sobretudo a partir do estagirita, passaram a servir de ponto de partida para a tipologização literária (no caso o lírico, o épico e o dramático), Aristóteles não pôde se furtar à sina, por exemplo, de estar na origem de uma normatização que se verificou em especial a partir das vésperas do Renascimento na retomada classicizante patente no mundo ocidental. Pouco importava, em semelhante contexto, a ausência dessa normatização na obra aristotélica: mesmo aqui, o pensamento teórico-crítico invertia a relação de causa e efeito e, sob a égide de “poéticas” que se apresentavam como uma espécie de “regras do bem escrever”, lançava
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formulações que não apenas descreviam, mas também norteavam as produções subsequentes. Que isso levasse tempo considerável para ser eficientemente confrontado não causa espanto, uma vez que se remetia um princípio universalizante e totalizador que, traduzindo um sujeito uno e completo, permitia que a reflexão sobre esse sujeito e suas artes (inclusive a literatura) fosse semelhante a seu reflexo tal como este se apresentava então: igualmente uno e completo. Foi preciso aguardar até as produções pós-iluministas, em especial aquelas do Romantismo, para que a relação de prioridades entre pensamento teórico-crítico e a literatura como criação original fosse colocada novamente em real perspectiva. E, neste caso, merece destaque o Frühromantik, o Primeiro Romantismo Alemão. Ao se lançar um olhar atento sobre a obra de homens como Novalis (1988) ou Friedrich Schlegel (1994), o que se verifica é uma relativização de qualquer perspectiva estritamente normativa em prol de uma poiésis ativa que se traduzia no culto do gênio original. Diante de tal prisma, é perfeitamente compreensível um afastamento de preceitos que produziram, dentre outros, um Boileau, problematizando, com isso, uma série de pressupostos que embasavam aspectos fundamentais do pensamento sobre a arte. No caso específico da literatura, em nada espanta o fato de o Romantismo ter, com autoridade, apresentado uma visão muito mais dinâmica das reflexões sobre a própria literatura. Na verdade, considerando-se que, nesse contexto específico, tem-se um real nascimento da Teoria da Literatura, é extremamente provocativo que tal nascimento se dê em meio a uma prática textual que força os limites entre os gêneros (tal como se verifica no caso do poema em prosa, da narrativa poética, do fragmento literário, dentre outros). Mas não apenas as fronteiras entre os gêneros, mas também entre domínios, uma vez que, para Schlegel, “poesia só pode ser criticada por poesia” (SCHLEGEL, 1994, p. 91). Não se trata aqui, obviamente, de uma demanda por uma “crítica lírica”, mas a exigência de que a reflexão sobre o fenômeno literário responda à provocação
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poética apresentada pela obra de arte. De qualquer modo, desde seus primórdios, a Teoria – bem como a Crítica – da Literatura teve de se colocar perante o desafio dos limites e das limitações. O decorrer do século XIX, por sinal, encontrou em artistas o que de melhor se pensou em termos teórico-críticos. Saindo do contexto do Primeiro Romantismo Alemão, um Poe, um Baudelaire, um Rimbaud, um Mallarmé sempre aliaram uma produção literária instigante a uma reflexão severa sobre essa mesma arte. Todavia, algo de fundamental deve ser destacado nesse ponto: muito embora a reflexão criativa dos artistas pudesse problematizar (e até mesmo, em alguns casos, reformular) determinados preceitos teórico-críticos, bem como pudesse, pelo mesmo princípio, questionar o cânone, a noção estrita de literatura estava razoavelmente bem assentada. Rimbaud, em sua “Carta do vidente” (RIMBAUD, 1989, p. 140-149), pode preterir um cânone mais acadêmico em privilégio de um Victor Hugo ou um Baudelaire, mas, tanto no caso do academicismo literário quanto no caso das produções visionárias valorizadas pelo jovem poeta de Charleville, ainda temos especificada uma noção de literatura que, em certa medida, se pode representar uma outridade reflexiva para aquele que sobre ela se debruça (nos dois sentidos, vale dizer: do reflexo e da reflexão), ainda oferece uma imagem completa, na qual o afastamento ou a aproximação nascem de um terreno consideravelmente estável. Todavia, a passagem para o século seguinte, com seus desdobramentos no âmbito da literatura, reservava algumas mudanças significativas que terminariam por colocar em xeque vários preceitos que, até então, não tinham sofrido um ataque tão representativo. Justamente quando a Teoria e a Crítica da Literatura começam a sedimentar sua posição no campo das ciências humanas, o Modernismo e as vanguardas, bem como as transformações da arte a partir da evolução tecnológica, iriam abalar essa sedimentação.
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Estilhaçando o espelho: o martelo das vanguardas e a prerrogativa tecnológica A passagem do século XIX para o século XX traz consigo modificações que abalam em demasia o mundo ainda estável da arte. Apenas para se ater à primeira metade do século XX no contexto europeu (que, nesta discussão, é o que ainda se encontra em privilegiado foco até o momento), pode-se pensar no impacto avassalador que as duas Grandes Guerras Mundiais tiveram sobre o espírito humano. Tal cenário, ao qual se somam eventos do porte do advento do armamento atômico e do comunismo russo, modifica a face da Terra como vista até então. Em termos artísticos, podemos perceber como tais acontecimentos ecoam especificamente (como a presença da temática bélica no futurismo italiano) e em termos gerais, uma vez que ocorrem na mesma medida em que as vanguardas encontram seu espaço na Europa. As vanguardas europeias representam uma radicalização do forçar limites que se percebia desde o advento do Romantismo, mas com força e consequência ainda maiores. Por um lado, a “contaminação” da vida pela arte poderia ser perfeitamente ilustrada pela demanda surrealista; por outro, o questionamento do artístico pelo Dadaísmo forçava, por sua vez, outro questionamento derivado sobre a própria permanência da obra de arte, bem como sobre sua validade e valor. A questão não estava restrita à literatura, evidentemente. Do mesmo modo como a obra de um Tzara poderia tornar o conceito de literatura mais fluido, a produção de um Stravinski fazia o mesmo com a música, tal como os trabalhos de um Picasso com relação à pintura. Mas a relação arte e contexto sócio-histórico não se dava apenas em um campo que pudéssemos chamar de inspiracional. O desenvolvimento tecnológico também permitiu que novas formas artísticas (embora esse estatuto fosse periodicamente questionado) surgissem, tornando a reflexão sobre a arte ainda mais desafiadora. Desde o século XIX, a fotografia e, posteriormente, o cinema, ofereceram
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novas possibilidades de produção. Não sem razão, sua condição inicial um tanto quanto ambígua entre a mera técnica e a arte levou a polêmicas. No caso dos estudos literários, uma fotografia colocava em outro patamar os limites da representação e, na mesma medida, a técnica cinematográfica trazia novas possibilidades narrativas que eram aos poucos experimentadas na esfera literária. Contudo, as repercussões eram ainda mais importantes, em especial ao se considerar a dimensão teórica da arte, em geral, e da literatura, em particular, a partir das frentes que se descortinavam então. Em termos de assentamento de pressupostos teóricos, o comparativismo sempre foi de grande relevância, conforme já apontado aqui. Contudo, tal tendência à comparação não se dava apenas no âmbito interno da literatura. A comparação com outras artes também era importante, partindo de poética clássica nos moldes aristotélicos e horacianos, passando pelas poéticas normativas do Renascimento, pelos limites forçados do Romantismo e atingindo todo o momento crucial que passa pelo século XIX e chega ao XX. Não sem razão, música e literatura comungam tanto, em especial na esfera do lírico. A relação musical com o Tempo serve de interpretante para aquela que esse mesmo Tempo estabelece com o poema. E o processo inverso também se verifica, justificando expressões como “frase musical” ou “poema sinfônico”. Todavia, o que não se pode perder de vista é que tais transformações, ao atingirem o âmago da reflexão teórica, alteram de tal modo percepções e conceitos que podem levar à problematização do próprio objeto da reflexão. Nesse sentido, embora por demais conhecido, é sempre interessante lembrar o pensamento desenvolvido por Walter Benjamin em seu clássico estudo sobre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”: A controvérsia travada no século XIX entre a pintura e a fotografia quanto ao valor artístico de suas respectivas produções parece-nos hoje irrelevante e confusa. Mas, longe de reduzir o alcance dessa controvérsia, tal fato serve, ao
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contrário, para sublinhar sua significação. Na realidade, essa polêmica foi a expressão de uma transformação histórica, que como tal não se tornou consciente para nenhum dos antagonistas. Ao se emancipar dos seus fundamentos no culto, na era da reprodutibilidade técnica, a arte perdeu qualquer aparência de autonomia. Porém a época não se deu conta da refuncionalização da arte, decorrente dessa circunstância. […] Ela não foi percebida, durante muito tempo, nem sequer no século XX, quando o cinema se desenvolveu. Muito se escreveu, no passado, de modo tão sutil como estéril, sobre a questão de saber se a fotografia era ou não uma arte, sem que se colocasse sequer a questão prévia de saber se a invenção da fotografia não havia alterado própria natureza da arte (BENJAMIN, 1996, p. 176).
Retomada a posteriori, a pergunta final da passagem parece não apenas óbvia, como também inevitável. Entretanto, é importante recuperar a perspectiva de impacto no momento em que foi proferida para perceber suas implicações. Quando se problematiza a natureza de uma forma artística, seja ela qual for, problematizam-se do mesmo modo, por mera contiguidade comparativa, todas as outras manifestações da arte. Afinal, ao problematizar qualquer esfera da arte, desencadeia-se uma desestabilização em sua totalidade orgânica que, quando intocada, serve de perfeito invólucro para o principal elemento não apenas de aproximação, mas de identificação da obra de arte: o valor. Desestruturando o organismo, abalando o universo que subsiste por leis poderosas (ainda que sejam apenas as suas próprias), o valor claudica e é colocado em questão. O impacto na esfera teórico-crítica é imediato: ela atua partindo de um desvelamento de algo que, durante o ato reflexivo, é. Quando sua natureza é posta sob a égide da dúvida primordial, a existência do objeto da reflexão também é duvidosa. Em suma, como pode, diante de tal quadro, existir e se justificar essa reflexão? O movimento incessante nessa direção continuou, indo e vindo em vários contextos, mas sempre em uma progressão, ainda que desse modo acidentado. Uma expe-
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riência cultural como o surgimento do Pop Art é ilustrativa nesse sentido. Conforme aponta com a habitual lucidez Jean Baudrillard, ao reconhecer em Andy Warhol um “travesti da estética”: […] Andy Warhol é um mutante solitário, precursor de uma mestiçagem perfeita e universal da arte, de uma nova estética segundo as estéticas. [Warhol] é uma personagem perfeitamente artificial, […] inocente e pura, um andrógino da nova geração, espécie de prótese mística e de máquina artificial que nos livra, por sua perfeição, tanto sexo quanto da estética. Quando Warhol diz: “Todas as obras são belas, não preciso escolher, todas as obras contemporâneas e equivalem”; quando diz: “A arte está em toda parte, logo, já não existe, todo o mundo é genial, o mundo tal como é, em sua banalidade, é genial”, ninguém pode acreditar. Mas ele está descrevendo a configuração da estética moderna, que é a de um agnosticismo radical (BAUDRILLARD, 2001, p. 29).
Dois aspectos merecem atenção redobrada na passagem. O primeiro (e mais evidente) diz respeito à demultiplicação valorativa, típica de uma proposta como a de um artista como Warhol (em cuja obra a reprodutibilidade e a repetição estão presentes), que dissolve o próprio valor, anulando, em última instância, o próprio conceito de arte. O segundo (um pouco mais sutil) é a desconstrução da figura do autor, no caso Andy Warhol como figura pública e evidente, no nível da performance social, que também é impregnado pelo valor de sua obra na mesma medida em que a impregna. É curioso notar como a espetacularização da figura pública do artista, somada aos processos crescentes de reprodução e disseminação informacional, proporciona tal quadro. Ambos, autor e obra, colocam-se em xeque e, ao fazê-lo, impedem que a reflexão teórico-crítica produtiva até então seja neles aplicada de modo proficiente. Mesmo a base da memória teórico-crítica da reflexão sobre a arte no Ocidente, o conceito de mímesis, é finalmente colocado
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contra a parede. Ou, citando novamente Baudrillard, ao falar do “transestético”: Através da liberação de formas, linhas, cores e concepções estéticas, através da mixagem de todas as culturas e de todos os estilos, nossa cultura produziu uma estetização geral, uma promoção de todas as formas de cultura, sem esquecer as formas de anticultura, uma assunção de todos os modelos de representação e de anti-representação. Se a arte fosse apenas uma utopia, isto é, algo que escapa a qualquer realização, hoje essa utopia estaria plenamente realizada: através da mídia, da informática, do vídeo, todo o mundo tornou-se potencialmente criativo. Até a antiarte, a mais radical das utopias artísticas, foi realizada, desde que Duchamp instalou seu porta-garrafas e que Andy Warhol quis tornar-se uma máquina. Toda maquinaria industrial do mundo ficou estetizada, toda a insignificância do mundo viu-se transfigurada pelo estético (BAUDRILLARD, 2001, p. 23).
Já foi dito aqui que a arte oferece à reflexão teóricocrítica um espelho no qual pode se mirar e, em função da própria natureza desse exercício intelectual, encontrar sua justificativa. Ao forçar seus próprios limites, arte e artistas forçam os limites dessa própria reflexão que, diante da impossibilidade de conter seu objeto, vê-se igualmente incapaz de se reconhecer em um espelho que, sob o efeito do malho feroz da evolução tecnológica e de suas próprias respostas criativas a essa evolução, espatifa-se e não mais apresenta a totalidade da imagem, mas apenas possibilidades de pontos de vista, faces de um prisma agora partido e que, aparentemente, não apresenta chances concretas de reconstrução, e, após o fragmento literário do Primeiro Romantismo Alemão, uma nova espécie de fragmento se impõe. Contudo, esse ainda não havia sido o último, tampouco o mais violento golpe a ser sentido pela reflexão teórico-crítica perante a prática artística. Entre o fim da década de 80 do século XX e o início da década de 90 do mesmo século, o surgimento da internet
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levaria problemas e buscas de soluções sobre a arte a um patamar jamais visto. Curiosamente, será justamente em um contexto aparentemente sem saída que novas vias de escape seriam conhecidas.
Aprendendo a se olhar nos cacos: comunicação e arte no contexto cibercultural É sempre instrutivo notar como os desdobramentos tanto da Teoria quanto da Crítica da Literatura seguiram uma dinâmica similar à de seu objeto, ainda que com algum atraso compreensível. Em seus primeiros momentos como campo intelectual discernível, Teoria e Crítica encontraram uma configuração que, afastando-se de um modelo impressionista que grassou sobretudo até o século XIX, levou em alta consideração tanto a forma quanto a estrutura. Sob a égide de perspectivas analíticas como as que surgem com Saussure ou os formalistas russos (e, em certa medida, mesmo tendências imanentistas como a proposta pelo New Criticism), a análise da literatura acreditava ainda em seu objeto. Fruto direto da fragmentação, a pulverização teórico-crítica posterior em tendências feministas, multiculturais, neomarxistas e tantas outras mais tentava dar conta da miríade de frentes a serem enfrentadas, de modo que qualquer recorte teórico que se propusesse para abarcar essa projeção retrospectiva, a que ainda se chamava (e ainda se chama) literatura, era ao mesmo tempo pertinente e incompleto. Sob o termo “pós-modernismo”, tentou-se dar conta de um cenário que não mais era cenário, mas oscilações conceituais de um espaço nostálgico no qual antes repousava a reflexão. Somando-se a isso a hiperpotencialização de avatares da cultura de massa como o aspecto mais mercantilizado de açodamento cultural em moldes hollywoodianos de cinema, levando tais práticas a uma condição que estava longe de ser de exceção, a reflexão sobre a literatura teve ainda de se ver diante de um processo que, embora não fosse novo, ganhava nova conotação cultural: o advento dos
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best-sellers que emulam em sua penetrabilidade popular os grandes blockbusters cinematográficos, seus competidores na fruição massificada. Obviamente, livros com grandes vendagens sempre existiram. Mas nada como o que se verificou a partir do último decênio do século XX. Não se tratava mais de dinamizar o que havia sido apresentado por Gutenberg: depois de seu surgimento, na passagem da década de 80 para a década de 90 do século em questão, a internet iria revolucionar a dinâmica midiática e informacional de modo sem precedentes. O surgimento da internet mudou a dinâmica da arte não em grau, mas em natureza. E, como seria de se esperar, a literatura ofereceu um modelo dos mais emblemáticos. Por um lado, houve o impacto da disseminação: nunca na história da humanidade houve tanta disponibilidade de material. Alguns poucos e particulares exemplos podem dar uma ideia da dimensão da transformação. Exemplos como o do Project Gutenberg, cujas origens remontam a um período anterior à própria internet e que disponibilizou textos em quantidade considerável, tendo dentre suas obras algumas de difícil acesso até então. O The William Blake Archive representa um dos principais pontos de disseminação da obra do poeta inglês, com a preciosa possibilidade de compartilhar, via arquivo digital, até seus livros iluminados, restritos, antes do site, geográfica e quantitativamente, a poucos pesquisadores. No contexto brasileiro, a versão digital da biblioteca Brasiliana da USP, com acervo notável e edições fac-similares, constitui um exemplo dessa retomada do sentido etimológico quase perdido da palavra “divulgação” (isso sem nem ao menos entrar na polêmica proposta de digitalização de livros em larga escala por parte do Google, que mereceria artigo à parte). Todavia, outro aspecto, talvez ainda mais importante, está ligado a uma dinâmica que problematiza ainda mais tanto o conceito de literatura quanto o de autor: a possibilidade não apenas de “produzir” obras de arte literárias, mas também de ser potencialmente lido em larga escala. A evolução dos meios de impressão e o barateamento do
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processo decorrente dessa evolução, somados ao surgimento de editoras que produzem livros sob encomenda e com demandas específicas, já possibilitavam que qualquer um, em teoria, tivesse seu nome na lombada de um livro. Entretanto, como disseminar? A internet resolveu esse problema de modo não apenas extremamente eficiente, mas desdobrando a questão em direções inimaginadas. O e-book radicalizou a diminuição de custos dos livros na mesma medida em que os disponibilizou para qualquer parte do planeta com acesso à internet e, em muitas ocasiões, de modo gratuito, e isso é de enorme relevância. Contudo, diante das possibilidades comunicacionais que as ferramentas ofertavam, novas práticas de escrita, muitas delas com impacto direto na conceitualização ou reconceitualização da literatura, vieram à tona. Sites, blogs, fóruns, twitter, dentre tantas opções, levaram a novas perspectivas o ato de criação verbal, propondo não apenas que cada pessoa conectada produzisse, mas, por meio de possibilidades de interação, como uma mera caixa de comentários, produzisse em termos de colaboração e convergência. Essa convergência cultural não é mero ato reflexo de uma convergência tecnológica que, em tempos ciberculturais, impõe-se à ordem do dia. Na verdade, como bem demonstra um dos mais instigantes pensadores da questão, Henry Jenkins, essa convergência sequer é essencialmente mecânico-tecnológica: A convergência não ocorre por meio de aparelhos, por mais sofisticados que venham a ser. A convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com outros. Cada um de nós constrói a própria mitologia pessoal, a partir de pedaços e fragmentos de informações extraídos do fluxo midiático e transformados em recursos através dos quais compreendemos nossa vida cotidiana. Por haver mais informações sobre determinado assunto do que alguém possa guardar na cabeça, há um incentivo extra para que conversemos entre nós sobre a mídia que consumimos. Essas conversas geram um burburinho cada vez mais valorizado pelo mercado das mídias. O
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consumo tornou-se um processo coletivo – e é isso o que [se entende] por inteligência coletiva, expressão cunhada pelo ciberteórico francês Pierre Lévy (JENKINS, 2009, p. 30).
Neste ponto, a menção a Lévy é bastante útil e providencial. Retomando as agruras da Teoria e da Crítica da Literatura nesse contexto, seria de se esperar uma radicalização do processo que já havia sido verificado ainda na primeira metade do século XX. Afinal, o dinamismo e a disseminação vistos no ciberespaço, com sua população de potenciais artistas, tornam ainda mais patente a apocalíptica perspectiva baudrillardiana segundo a qual, diante de uma “epidemia do valor […] em rigor, já não se deveria falar de valor, já que essa espécie de demultiplicação de reação em cadeia torna impossível qualquer avaliação” (BAUDRILLARD, 2001, p. 11-12). Como pode a Teoria pensar o fenômeno literário se essa dissolução valorativa pela hiper-realização a princípio extingue o próprio conceito de arte e, portanto, de literatura? Além disso, como deveria se portar essa mesma Teoria, bem como a Crítica da Literatura, perante uma postagem de blog e seus comentários? Ou, ainda, diante de uma fanfiction que, por sua vez, é derivada de uma obra e de um autor que já encontram reservas em meio a estudiosos e especialistas? As questões são urgentes e importantes, mas as óbvias preocupações latentes nascem, não raro, da incompreensão. De início, é fundamental destacar a natureza da cibercultura. Considerando-se a cibercultura, em termos simplificados, como um desdobramento ou atualização do universo cultural em função de uma forte influência direta das tecnologias digitais e do complexo filosófico, antropológico e social que se apresenta a partir do ciberespaço, pode-se tentar compreender ao menos um pouco de sua dinâmica com relativa facilidade e, ao fazê-lo, questionar alguns pressupostos e preconceitos. Primeiramente, é preciso entender em que termos se dá o processo colaborativo que se traduz em textos na internet. A esse respeito, André Lemos e Pierre Lévy apontam um aspecto importante ao destacarem
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a dupla articulação produtiva no contexto cibercultural a partir dos princípios de “competências” e “comunidades de interesses”. Nesse sentido, afirmam: Na realidade, os dois sistemas continuam a existir com mútua influência, apontando para uma “evolução” do sistema midiático em um modelo mais complexo onde coexistem funções massivas e pós-massivas. Essa nova “ecologia” midiática evolui de um sistema centrado em um polo emissor, sem possibilidade de conexão e configurando massas de usuários, para um sistema onde qualquer um pode, com poucos recursos, produzir informação, cooperar, adicionar e criar processos coletivos e inteligentes. Pode-se assim transformar a “massa” em “produtores” de conhecimento. Embora sistemas como blogs ou wikis tenham efetivamente poucos “produtores” de informação, nada nos impede de pensar que haverá uma evolução para formas cada vez mais participativas, conversacionais com um profundo impacto nas práticas da futura ciberdemocracia (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 77).
Essa inteligência e esse processo coletivos trazem consigo a necessidade de, na mais humilde das hipóteses, uma mudança de paradigmas em termos tanto teóricos quanto críticos ao se deparar com produções oriundas dessa dinâmica comunicacional. Mas, em termos mais ousados, pode ser uma conclamação a que se retome a lição dos primeiros românticos alemães e se busque, novamente, responder criativamente à provocação da arte e da literatura. Mas, para isso, torna-se necessário inserir o discurso teórico-crítico no cerne dessa produção atual, o que pode constituir uma aventura vertiginosa. Tomando como exemplo o princípio comparativo para uma tentativa de determinação conceitual, percebe-se que a dimensão convergencial de um hipertexto, por exemplo, dificulta o exercício nesse sentido. E não que se trate de algo alheio à dimensão humana da arte, mesmo diante da virtualização latente e presente no processo. Pois, como bem recorda Pierre Lévy:
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Um hipertexto é uma matriz de textos potenciais, sendo que alguns deles vão se realizar sob o efeito da interação com um usuário. Nenhuma diferença se introduz entre um texto possível da combinatória e um texto real que será lido na tela. […] O virtual só eclode com a entrada da subjetividade humana no circuito, quando num mesmo movimento surgem a indeterminação do sentido e a propensão do texto a significar, tensão que uma atualização, ou seja, uma interpretação, resolverá na leitura (LÉVY, 2001b, p. 40).
Em suma, é importante destacar que, ao se considerar a dimensão cognitiva da leitura, mantém-se um modus operandi que é, em essência, similar ao que se verificava antes da revolução digital, a despeito de suas óbvias e significativas diferenças de cunho tecnológico. Mas, como seria de se esperar, a face de toda e qualquer arte muda em semelhante painel que, mais do que nunca, assume a natureza multifacetada do espelho partido. Lucia Santaella (2010), falando sobre o pluralismo radical da arte contemporânea e pensando no contexto a partir de 1960 até por volta de 1990, destaca os “cantos dos cisnes” que tentavam recuperar a linearidade da história. No caso da pintura e da escultura, por exemplo, entre 1970 e 1980, chegava-se ao extremo de afirmar seu esgotamento. E Santaella continua: Desde então, os cantos dos cisnes começaram a silenciar devido à avalanche pluralista de tendências estéticas que coincidiu com a entrada da arte no multifacetado território digital, o que só tem contribuído para aumentar a multiplicidade cada vez mais inerente ao campo das artes. Diante disso, muitos ainda se aferram rigidamente à ideia de que artes verdadeiras e legítimas são apenas as tradicionais artes pré-tecnológicas. […] Outros, ao contrário, veementemente reivindicam que a arte nas novas mídias digitais, até mesmo no seu aspecto avançado de interface com a ciência de ponta, bio e mesmo nanotecnológica, e com a robótica e inteligência artificial, é a verdadeira arte do nosso tempo. […] Quaisquer que sejam as posições, a verdade é que quanto mais nos propomos a explorar, sem
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unilateralidades, as tendências das artes que vêm sendo produzidas na atualidade, mais incertos nos tornamos em relação aos limites, aos gêneros, às identidades e às fontes legitimadoras da arte (SANTAELLA, 2010, p. 236).
Sem dúvida, essa indistinção fundamental – melhor seria dizer “indeterminação” – é um convite à vertigem reflexiva, uma vez que tira ou torna movediço qualquer chão no qual essa reflexão busque se firmar. Outro motivo dessa vertigem é a dimensão de interpenetração de diferentes artes que dificultam consideravelmente todo movimento no sentido de aproximá-las comparativamente. Esse é um dos aspectos da convergência que, no caso da convergência artística (sobretudo, aqui, a literária), é, antes de qualquer coisa, convergência comunicacional. Se no contexto de cultura convergencial podem-se esperar discursos que lancem mão de múltiplas linguagens, como esperar que tal procedimento não seja estendido à literatura, que, desse modo, jamais poderia se limitar aprioristicamente à linguagem verbal? Mais ainda, tal painel obriga cada vez mais que se veja a literatura dentro de um contexto maior, seja nos termos comunicacionais já citados, seja em termos informacionais. Em um mundo que caminha para a erudição a um clique do mouse por meio do aprimoramento dos wikis, isso vem mostrar que o valor, no mínimo, está em constante processo de mutação, ou melhor, de atualização. Mas tratase de “ceder” à corrente, pura e simplesmente? A resposta, obviamente, é não. É preciso filtrar criticamente o que se oferta, tendo sempre em mente que essa filtragem não corresponde mais a uma necropsia (isso, se algum dia o ato reflexivo esteve realmente próximo desse significado), mas a um ato intelectual e cognitivo que modifica o objeto sobre o qual se reflete. Contudo, essa aparente “volatilidade” não pode ser a porta de entrada para o preconceito diante de um mundo que não desperte imediata simpatia. E, é importante que se diga, tal atitude é extremamente fácil e convidativa. Tome-se o exemplo de Ricardo Neves, que, longe de ser leigo no contexto
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cibercultural, ao tratar de oportunidades e perigos do mundo digital, reflete sobre o “ciberentretenimento”, com destaque para os RPGs on-line para múltiplos jogadores (MMORPG, na sigla em inglês) e chega a uma formulação no mínimo apocalíptica: O que mais me intriga e o que me parece mais ameaçador é o fato de que tanta gente prefira se ausentar do nosso mundo real justamente onde as sociedades são mais afluentes. Com a TV, a humanidade trocou algumas poucas horas de seu cotidiano por entretenimento frívolo; com o ciberentretenimento, bilhões de seres humanos poderão realizar imersões cada vez mais prolongadas, até que, coletivamente, acabemos por destruir o significado da vida. […] Não podemos subestimar a nossa responsabilidade em encontrar uma forma sábia de lidar com esse desafio. O ciberentretenimento pode ser muito mais destrutivo para nossa espécie do que qualquer outra tecnologia bélica jamais inventada. A massificação irresponsável do cyberhedonismo pode nos levar para bem perto do colapso da civilização (NEVES, 2007, 186-187).
Ora, o universo dos MMORPGs é um dos principais representantes da cultura convergencial e, como qualquer atividade humana, pode apresentar aspectos bons e ruins. Mas o tom alarmista das palavras de Neves parece não levar em conta o quão complexas e enriquecedoras podem ser as trocas e colaborações de participantes de uma mesma comunidade no ciberespaço, mesmo aqueles de um jogo online. As faces são muitas, e, diante da oferta aparentemente infinita de perspectivas, é difícil não ceder a uma nostalgia da totalidade, esse confortável porto seguro posto em perigo pelos bárbaros da rede. Mas esse medo não tem razão de ser. Na verdade, ele, muitas vezes, traduz outro medo, esse sim relevante: o medo da perda da universalidade, parâmetro valorativo inclusive para a arte. Com relação a isso, Pierre Lévy é muito feliz ao afirmar: Longe de ser uma subcultura dos fanáticos pela rede, a cibercultura expressa uma mutação fundamental da própria
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essência da cultura. […] A chave da cultura do futuro é o conceito de universal sem totalidade. Nessa proposição, “o universal” significa a presença virtual da humanidade para si mesma. O universal abriga o aqui e agora da espécie, seu ponto de encontro, um aqui e agora paradoxal, sem lugar nem tempo claramente definíveis. Por exemplo, uma religião universal supostamente dirige-se a todos os homens e os reúne virtualmente em sua revelação, sua escatologia, seus valores. Da mesma forma, a ciência supostamente exprime o (e vale pelo) progresso intelectual do conjunto dos seres humanos, sem exclusões. Os sábios são os delegados da espécie, e os triunfos do conhecimento exato são os da humanidade em seu conjunto. Da mesma forma, o horizonte de um ciberespaço que temos como universalista é o de interconectar todos os bípedes falantes e fazê-los participar da inteligência coletiva da espécie no seio de um meio ubiqüitário. De forma completamente diferente, a ciência, as religiões universais abrem lugares virtuais onde a humanidade encontra-se consigo mesma. Ainda que preencha uma função analógica, o ciberespaço reúne as pessoas de forma muito menos “virtual” do que a ciência ou as grandes religiões. A atividade científica implica cada indivíduo e dirige-se a todos por intermédio de um sujeito transcendental do conhecimento, do qual participa cada um dos membros da espécie. A religião reúne pela transcendência. Em contrapartida, para sua operação de colocação em presença do humano frente a si mesmo, o ciberespaço emprega uma tecnologia real, imanente, palpável. […] O que é, então, a totalidade? Trata-se, em minhas palavras, da unidade estabilizada do sentido de uma diversidade. Que essa unidade ou essa identidade sejam orgânicas, dialéticas ou complexas e não simples ou mecânicas não altera nada: continua sendo uma totalidade, ou seja, um fechamento semântico abrangente. […] Ora, a cibercultura inventa uma outra forma de fazer advir a presença virtual do humano frente a si mesmo que não pela imposição da unidade de sentido. Essa é a principal tese aqui defendida (LÉVY, 2001a, p. 247-248).
Essa mutação da totalidade em uma “unidade estabilizada do sentido de uma diversidade”, típica da esfera da
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cibercultura, deve muito ao seu lado “ciber”, mas também à sua face “cultural”. É essa percepção que permite que se olhe a mutabilidade sob o signo não do volátil, mas do constantemente atualizado e atualizável. É essa consciência que confere ao ser pensante a possibilidade de não desaparecer em meio ao ruído das múltiplas vozes, conseguindo, ao contrário, complementar ou mesmo suplementar seu discurso, em consonância com as propostas da colaboração e da convergência. É uma nova pedagogia do olhar, que não vê nos fragmentos do espelho do passado meros cacos originários de uma queda catastrófica: vê, antes, múltiplas possibilidades, múltiplos espelhos do Ser em constante devir, em constante atualização. É com esse olhar promissor que a Teoria e a Crítica da Literatura no século XXI devem fitar seu objeto e a si mesmas, como um eterno convite para o futuro, sem medo da reflexão, nem do reflexo.
À guisa de conclusão: o reflexo projetado e a reflexão em devir Ao fim de tal panorama, apesar de sua brevidade, podem ser tecidas algumas considerações e, a despeito do tom positivo e otimista que norteou este texto, essas considerações devem traduzir certa dose de severidade, sobretudo ao se realizar um balanço da posição e das perspectivas da Teoria e da Crítica da Literatura nos dias atuais. Em primeiro lugar, ao se enxergar nos desafios de hoje um eco das provocações da arte a que os primeiros românticos alemães responderam de modo tão criativo e vigoroso, não se deve ceder à facilitação de um laissez-faire simplista ou de uma bela, mas ingênua, constatação de que Teoria, Crítica e Literatura sejam a mesma coisa em termos estritamente considerados. Nesse sentido, uma das mais exatas reflexões ainda é a de Antoine Compagnon, que, mesmo sem pensar especificamente no contexto cibercultural, afirma com propriedade:
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A atitude dos literatos diante da teoria lembra a doutrina da dupla verdade na teologia católica. Para seus adeptos, a teoria é ao mesmo tempo objeto de fé e uma apostasia: crê-se nela, mas não inteiramente. É certo que o autor está morto, a literatura não tem nada a ver com o mundo, a sinonímia não existe, todas as interpretações são válidas, o cânone é ilegítimo, mas continua-se a ler biografias de escritores, a identificar-se com os heróis dos romances; seguem-se com curiosidade as pegadas de Raskolnikov pelas ruas de São Petersburgo, prefere-se Madame Bovary a Fanny, e Barthes mergulhava deliciosamente em o Conde de Monte Cristo antes de dormir. É por isso que a teoria não pode sair vitoriosa. Ela não é capaz de anular o eu ledor. Há uma verdade da teoria que a torna sedutora, mas ela não é toda a verdade, porque a realidade da literatura não é totalmente teorizável. No melhor dos casos, minha fidelidade teórica só afeta pela metade meu senso comum […]. Assim, a teoria literária parece, em muitos aspectos, uma ficção. Não se crê nela positivamente, mas negativamente, como na ilusão poética […]. De repente, reprovar-me-ão talvez de levá-la excessivamente a sério e de interpretá-la literalmente demais. […] Estaria quase de acordo com todos esses pontos: a teoria é como a ciência-ficção, e é a ficção que nos agrada, mas, pelo menos por um tempo, ela ambicionou tornar-se uma ciência. Gostaria de lê-la como a um romance […]. Entretanto, disposto a ler romances, como não preferir aqueles que não preciso fingir que são romances? A ambição teórica merece mais que essa defesa leviana que cede ao essencial; ela deve ser levada a sério e avaliada segundo seu projeto (COMPAGNON, 2006, p. 258-259).
O apontamento final é perfeito. O que deve ser questionado, agora, é justamente o projeto da Teoria (bem como o da Crítica). A única coisa que se pode censurar da passagem acima é uma certa sugestão de que o projeto da Teoria esteja fechado, determinado. Esse projeto continua em transformação, em constante devir, tal como toda aventura intelectual humana. E, diante desse projeto em devir, a própria Teoria – como a Crítica, como, em sua natureza
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dinâmica, a própria Literatura – mostra-se como processo, como algo vivo que, por sinal, já havia sido preconizado na passagem do século XVIII para o XIX por homens como Novalis e Schlegel. Se o terreno é por demais movediço, que se mantenha o estado de alerta, a afiada faca crítica. Afinal, apenas para olhos desavisados o contexto cibercultural prescinde da reflexão crítica. Mas não se trata de uma crítica a ser realizada de modo leviano, uma vez que o ato crítico se encontra constantemente em frente ao espelho – ou aos espelhos – de maneira que seu modo de agir acarreta consequências para si mesmo. Novamente com Pierre Lévy: A cibercultura é propagada por um movimento social muito amplo que anuncia e acarreta uma evolução profunda da civilização. O papel do pensamento crítico é o de intervir em sua orientação e suas modalidades de desenvolvimento. Em particular, a crítica progressista pode esforçar-se para trazer à tona os aspectos mais positivos e originais das evoluções em andamento. Assim, ajudaria a evitar que a montanha do ciberespaço dê à luz camundongos que seriam a reprodução do midiático em maior escala ou o puro e simples advento do supermercado planetário on-line. No entanto, muitos discursos que se apresentam como críticos são apenas cegos e conservadores. Por conhecerem mal as transformações em andamento, não produzem conceitos originais, adaptados à especificidade da cibercultura. Critica-se a “ideologia (ou a utopia) da comunicação” sem se fazer distinção entre televisão e Internet. Estimula-se o medo da técnica desumanizante, ao passo que as questões dizem respeito às escolhas entre as técnicas e a seus diferentes usos. Deplorase a confusão crescente entre real e virtual sem nada se entender sobre a virtualização, que pode ser tudo menos uma desrealização do mundo – seria antes uma extensão do potencial humano. A ausência de visão de futuro, o abandono das funções de imaginação e de antecipação do pensamento têm como efeito desencorajar os cidadãos a intervir, deixando por fim o campo livre para as propagandas comerciais. É urgente, inclusive para a própria crítica, empreender a crítica de “gênero crítico” desestabilizado pela
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nova ecologia da comunicação. É preciso interrogar hábitos e reflexos mentais cada vez menos adequados às questões contemporâneas (LÉVY, 2001a, p. 229).
O esforço para interagir plenamente com semelhante contexto é imenso, ciclópico. Mas a recompensa é igualmente significativa. Trata-se de uma conquista do presente imediato e constantemente atualizado, que, com isso, estende-se e dura. É também a conquista do futuro, que se traduz no modus operandi desse presente. E mesmo do passado, ainda que surja como memória, como lembrança, uma vez que a lembrança, atrelada ao presente, em tudo se adéqua ao universo virtual, como uma possibilidade de conservação apesar da atualização constante, como uma possibilidade de conservação justamente em função da atualização constante. Enfim, como belamente sintetizou Gilles Deleuze: [Há um] caso em que um atual rodeia-se de outras virtualidades cada vez mais extensas, cada vez mais longínquas e diversas: uma partícula cria efêmeros, uma percepção evoca lembranças. Mas o movimento inverso também se impõe: quando os círculos se estreitam, e o virtual aproxima-se do atual para dele distinguir-se cada vez menos. Atinge-se um circuito interior que reúne tão-somente o objeto atual e sua imagem virtual: uma partícula atual tem seu duplo virtual, que dela se afasta muito pouco; a percepção atual tem sua própria lembrança como uma espécie de duplo imediato, consecutivo ou mesmo simultâneo. Com efeito, como mostrava Bergson, a lembrança não é uma imagem atual que se formaria após o objeto percebido, mas a imagem virtual que coexiste com a percepção atual do objeto. A lembrança é a imagem virtual contemporânea ao objeto atual, seu duplo, sua “imagem no espelho” (DELEUZE, 1996, p. 53).
E assim pode-se entender ainda mais o “projeto em devir”, pois não se trata apenas de um projeto da reflexão, mas do próprio reflexo. O projeto do reflexo torna-se reflexo projetado e articula-se com a lembrança em uma dialética de passado e futuro, construtora do nosso presen-
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te também em devir, do presente em devir da Literatura, da Crítica, da Teoria. E, em uma mordida na cauda que representa o infinito, do já citado presente, em devir, de toda reflexão. Um jogo no qual a porta não é mais um único espelho, mas vários, interconectados, outra metáfora do infinito. E que ousada Alice estaria pronta para embarcar em semelhante aventura?
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A razão prática da teoria Teresa Cabañas*
resumo:
Considerando a teoria uma prática ativa, o texto desenha uma reflexão sobre os problemas do exercício teóricocrítico no contexto dos estudos literários no Brasil, a partir da sua localização nas atuais condições de exigência produtiva. Acredita-se que a pressão pela produtividade esteja gerando uma superprodução de textos acadêmicos, os quais se caracterizam pelo entendimento mecânico de fundamentos teóricos em voga e sua aplicação instrumentalizada à obra literária em análise. Denuncia-se assim este uso técnico da teoria, que está retirando dela seu ânimo reflexivo e neutralizando sua razão prática de ser. palavras - chave :
neutralização da teoria, produtividade,
superprodução. abstract:
Considering theory an active practice, this text develops a reflection about the problems concerning theoretical critical work in the context of literary studies in Brazil, based on their position in relation to contemporary productive demands. It is believed that the pressure for productivity is causing an overproduction of academic texts, which are then characterized by a mechanical understanding of theoretical foundations in vogue and their instrumentalized application to the literary work. Based on that, the technical use of theory is reported as being responsible for retreating its reflexive spirit and neutralizing its practical raison d’etre. keywords: neutralization of theory, productivity, overproduction. Doutora em Teoria Literária (Unicamp). Professora Adjunto da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), RS. (UFSM), RS. *
“Porque não é do lado teórico ou teológico, nem do lado prático ou pedagógico, que a teoria me parece principalmente interessante e autêntica, mas pelo
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combate feroz e vivificante que empreende contra as idéias preconcebidas dos estudos literários, e pela resistência igualmente determinada que as idéias preconcebidas lhe opõem”. Antoine Compagnon
1. Talvez uma forma imediata de visualizar os impasses, evidentes ou mascarados, da prática teórica seja tentar uma aproximação a um tipo de manifestação literária que não raro aquela desconsidera sob a implícita alegação de sua incompatibilidade com os fundamentos do paradigma teórico em vigor. A partir disso, então, me parece oportuno um primeiro esclarecimento para informar que a reflexão que agora segue se origina, por um lado, na minha lida com alguns exemplos “problemáticos” da produção literária contemporânea. Isso porque em relação a eles é comum constatar, da parte da crítica literária acadêmica, um inicial silêncio depreciador, que em termos teóricos, acredito, só denota os limites do paradigma; ou um explícito julgamento negativo, no que creio ver a aceitação passiva de tais limites. Por outro lado, a leitura que se apresenta é também uma tentativa de analisar essa experiência à luz do contexto no qual a prática dos estudos literários se realiza. Dito isso, gostaria de voltar, então, às primeiras linhas do texto para destacar a expressão “em vigor” que aporta uma qualidade de força e também uma marcação de índole temporal. Estabeleço, desse modo, o pressuposto da existência histórica da teoria, que carimba nela sua relação ineludível com a realidade do seu tempo. Assim sendo, pode até parecer uma obviedade afirmar que a teoria literária, como qualquer produção do fazer humano, corre ao sabor das mudanças do tempo histórico que, à medida que a transformam, lhe garantem seu vigor; mas acontece que nem sempre o que se mostra em evidência é tido em consideração. Pois não é incomum deparar-nos com abordagens críticas de cuja leitura se sai com a impressão de
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que aquela se constitui em algo deveras imutável. Daí que, em qualquer sentido, seja impossível tratar da elaboração teórica sem aludir à prática crítica que a antecede, a não ser que se queira ser inocuamente teórico. Das mudanças que o mundo vem enfrentando nos últimos cinquenta anos, e que já foram fartamente rotuladas de crise – uma a mais das que a humanidade sempre viveu –, advém, pelo menos para o universo da produção humanística, uma consequência que acredito positiva. Na medida em que o último colapso dos paradigmas se tornou visível, adquirimos autoridade para nos ocupar de certas expressões sensíveis subalternas, consideradas durante muito tempo de caráter menor e portanto tratadas com desdém pela crítica acadêmica dominante, embora elas sempre tenham estado aí tentando mostrar uma outra faceta da produção estética. É claro que, num primeiro momento, tal estremecimento das bases tradicionais do modo de se pensar a estética desenhou uma espécie de desamparo. Para alguns, o panorama veio a configurar uma espécie de vale-tudo que lhes permitia agir sem maior responsabilidade, entenda-se densidade ética; enquanto, para outros, configurou a imposição de um chão movediço e instável, do qual fugiram se entrincheirando na ortodoxia das bases epistemológicas do padrão culto, para tentar um exorcismo do que entendiam ter sido demonizado; ao passo que outros, os poucos, se esforçaram na construção ajuizada de novos alicerces de compreensão. A partir daqui, poderíamos dizer que tudo se dá na vinha do senhor e que, se a elaboração teórica se areja e ganha em flexibilidade, também em frouxidão e flacidez, sem descontar o acirramento de antigas intolerâncias ilustradas. Isso tudo também volta a mostrar, obviamente, a pertença da teoria à órbita dos acontecimentos sensíveis, isto é, das multifacetadas formas de se pensar e conceber a existência humana. Se essa apertada descrição desenha mais ou menos parte da conjuntura, e acredito que o faz, vê-se como o novo imperativo da realidade, que não é mais do que o entendimento da mudança, passa a ser encurralado por dois
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setores que o iludem, mesmo quando encarnados em duas posturas antagônicas, que, entretanto, coincidem no seu desprezo pela exigência que aparece: uma porque, no seu oportunismo, apenas pensa em aproveitar o momento de transição para pegar o seu quinhão; a outra porque sente ameaçado seu tradicional espaço de poder. É o que faz a empreitada da mudança teórica tão difícil e leva a teoria a mostrar seus impasses. Isso se nota entre nós no tipo de recepção crítica dispensada a manifestações literárias que, por uma razão e outra, se enveredam pelo caminho das iconoclastias, num tempo de supostas rupturas que deveria assegurar-lhes, no mínimo, uma atitude menos assombrada da parte da crítica acadêmica (um parêntese: com este último termo me refiro tanto à materialidade do espaço institucional no qual, em geral, esta prática acontece, como a um fazer preso ao convencionalismo das regras e oposto a sua alteração). Mas dizer ruptura a esta altura pode parecer um déjà vu, desde que o traço é um daqueles aceitos de maneira consensual para caracterizar o espírito da tradição literária da modernidade: a famigerada tradição da ruptura, como Octavio Paz nos fez o favor de definir. Então, o caso não parece ter neste ponto nada de novidade; pelo contrário, ele estaria a apontar um traço marcante da prática crítica, apesar de certos avanços teóricos nestes tempos de agora: a sua arraigada tendência ao conservadorismo que a faz demorar na aceitação e entendimento do novo, que, neste caso, entendo como capacidade de ir contra o estabelecido. No Brasil, contamos com um período dos mais propícios para ensejar a análise dessas questões referidas à elaboração teórica e à prática crítica. Não muito longínquo, ele se remonta aos anos setenta do século que foi, quando surge um modo peculiar de fazer poesia e se conforma quem sabe se não a última atualização literária de características grupais no país. Se para muitos um saco de gatos, a experiência da poesia marginal desses anos explicitou de maneira cruenta não apenas o “desatino da rapaziada” como o descabido caráter conservador e elitista de um
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Vinicius Dantas (1986) utiliza tal definição para caracterizar as consequências nefastas que o surto poético dos anos 1970 teria deixado no panorama da criação literária brasileira. Em artigo anterior, assinado com Iumna Simon (1985), os autores se referem à poesia marginal como sendo mais uma mercadoria homogeneizada pelo consumo. 1
Heloisa Buarque de Hollanda é talvez o nome mais importante nesse sentido, pela prontidão com a qual, já na década de 1970, se posiciona perante a nova poesia por meio de uma reflexão cheia de possibilidades instigantes. Haveria que lembrar também a pesquisa que no campo da antropologia cultural desenvolveu Carlos A. Messeder Pereira (1981), assim como as perspicazes colocações de Glauco Mattoso (1981). 2
Refiro-me ao livro Impressões de viagem (1981), de Heloisa Buarque. 3
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importante e representativo setor da crítica acadêmica, às vezes parapeitado na proteção de uma essencialidade que a própria realidade estava negando, ou substituindo por outra coisa. Assim, logo, logo foi lhe apontando à tal eclosão de escritas uma natureza comprometida com o rebaixamento da “essência poética” e com os imperativos mercadológicos bestificadores de mentes e espíritos. Uma “barbárie poética”, segundo um bem conhecido artigo da década de 19801. Poucos foram, nesse momento, os que atinaram a realizar uma análise dos elementos estranhos ao paradigma de valoração estabelecido presentes nessa avalanche de poemas, publicações e performances do movimento. Com isso, esses poucos conseguiram vislumbrar modos estéticos que denunciavam a existência de formas sensíveis próprias a uma determinada coletividade social, procedente de um lugar cultural considerado de pouco peso e transcendência, posto à margem: o âmbito da vivência juvenil, da existência homossexual, da opacidade do mundo doméstico feminino2. Se estas últimas impressões3 não deram lugar, no seu momento, a elaborações de caráter teórico, as que paradoxalmente se iniciariam na órbita da antropologia cultural, conseguem, todavia, mostrar um procedimento que ainda hoje me parece inspirador em relação ao tema que aqui interessa, porque prova que nenhuma formulação teórica consegue sustentação se não procede de um ânimo aberto à observação e análise da concretude material da manifestação estética abordada. Outra obviedade, que traz a tiracolo mais uma: a disposição para uma análise diferenciada significa, quando menos, a intuição de uma suspeita em relação à funcionalidade do arcabouço teórico em uso; ou seja, a tenaz imbricação dos aspectos teórico e crítico nos deixa a sensação de que tudo se atrela a uma condição prévia, a da procedência da nossa própria forma de pensar. E essa, já sabemos, obedece a múltiplos apelos, tanto àqueles da sua constituição primeira, relativos à nossa formação cultural e procedência social, como àqueles que vão aparecendo no nosso caminho, travestidos na forma de interesses imediatos.
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Talvez por isso hoje, a despeito do nariz torcido de certa agremiação acadêmica, nos deparamos com o surto poético dos setenta entrando, mesmo aos trancos e barrancos, na historiografia literária nacional e até patrocinado por comentários simpáticos de alguns dos que foram seus mais acérrimos detratores4. É que o tempo muda, e com ele as visões e também os interesses particulares do sujeito que exerce a crítica; interesses que podem obedecer a variados fatores dos que não posso tratar aqui, mas que, com certeza, se vinculam ou à variegada gama do oportunismo mais ou menos dissimulado ou ao registro sem nuances da convicção sincera. De qualquer forma, o episódio pode render uma interessante ilustração dos mecanismos de aceitação e rejeição desenvolvidos no interior do aparato crítico e mais a óbvia constatação de que a apreciação teórico-crítica não é neutra senão atravessada por interesses individuais e coletivos, que são, em últimas, escolhas ideológicas. Do ponto de vista dos interesses que defendo, pareceme que a liberalização da teoria advinda da queda dos paradigmas pode ser saudada porque, dentre outras coisas, me dá cobertura para dedicar-me à observação das práticas e modos de circulação de outros transeuntes que não os habituais viandantes da expressão culta. E também porque acredito que a teoria se enriquece quando é forçada pela realidade a se debruçar sobre manifestações diversas que exigem um esforço para o seu entendimento e explicação, momento no qual a teoria consegue se autoanalisar. Contudo, não se acredite que essa maior flexibilidade seja uma concessão dos aristocráticos princípios da visão elevada, outrora soberana no território da teoria. Sucede que situações como a mencionada deixam em evidência plena aquilo que Bourdieu definitivamente descortinou ao indagar o campo da produção de conhecimento e mostrálo como um espaço de ferrenhas disputas, por vezes bem mesquinhas, no qual o poder se dá em espetáculo para sua análise. Afinal, é uma prática humana, feita por seres humanos a partir das suas escolhas ideológicas.
É o caso de Iumna Simon, uma das mais duras críticas do movimento, como se depreende da leitura do referido artigo assinado com Dantas em 1985. Contudo, em 1999, a autora publica um artigo no qual a estética marginal lhe parece agora “um impulso sincero de antagonismo cultural”, ideia muito diferente à da pura “bastardização” da estética que lhe parecera na década de 1980. 4
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Assim, parece-me que um território caracterizado pelas querelas de poder, hoje tão vinculadas à vida acadêmica – pois a teoria não funciona num limbo, ela se produz dentro das paredes do edifício institucional –, permite uma análise que coloque seu objeto na prática viva do existir humano, mais do que deixá-la para a dissecação dos seus conceitos e fundamentos, de seus acertos ou limitações, ou para a averiguação das suas prováveis filiações.
2. “É o Tédio – O olhar esquivo à mínima emoção, Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado. Tu já o viste, leitor, ao monstro delicado”. Baudelaire “Afirmo que há um elo causal entre a demanda corporativa pelo aumento da produtividade e o esvaziamento, em todas as publicações, de qualquer significação que não seja gerar números”. Lindsay Waters
A flexibilização que os eventos conhecidos de todos nós propiciaram no momento áureo desta última transformação dos paradigmas, e que deu lugar a uma profusão de perspectivas teóricas sob o imperativo de entender as especificidades literárias que na hora ganhavam luz (as marcas de gênero, sexualidade, raça, a questão pós-colonial, as novas divisões do eu e seu posicionamento dentro do discurso literário – poético e narrativo –, etc.), trouxe nesse início a esperança de que o nosso conhecimento sobre o outro se ampliasse e, com isso, talvez, as relações culturais entre indivíduos de diversas procedências pudessem se construir em bases mais igualitárias – esta seria uma razão prática da teoria. Diante disso, pode-se pensar que a instabilidade sentida no cenário acadêmico daquele então obedeceu ao reconhecimento, um pouco mais generalizado, da fiação multicolorida que compunha a trama do tecido estético, o que também permitiu suspeitar que, se isso era mais
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evidente nesse tempo, também era visível em outros do passado, daí o despertar de um interesse pela sua releitura. Aconteceu, pois, um verdadeiro momento teórico se lembrarmos, como pensava Kant, que a teoria é aquilo que aparece quando nossos padrões de fazer o mundo esbarram contra o próprio mundo. E as discussões acadêmicas, graças a essa instabilidade, se tingiram de grande vitalidade e agitação; quadro que, a bem da verdade, não durou muito porque ao mesmo tempo começamos a padecer uma situação reativa que na atualidade mostra sem pudor toda a sua nefasta intenção. Uma das formas de entender a instabilidade pode ser a partir de sua acepção de movimento; da instabilidade pode advir a vida, o que pulsa e se transforma, se considerarmos que o movimento é o contrário da estagnação. Por que, então, neste processo, a instabilidade, que projetava a esperança, se compactou em homogeneização, em repetição tediosa por meio de uma prática crítica que faz da teoria um vai-e-vem tautológico que não sai do lugar? A despeito dos exageros de sempre, das sabidas “viagens na maionese” de algumas, até célebres, elucubrações teóricas, por que teorias pujantes murcharam na mão dos seus praticantes? Por que a possibilidade de remexer no heterogêneo, dada pelas novas teorizações, se resolveu no abafamento do diferente que há nele, na escamoteação da sua reverberação, na timidez, que, em vez de mostrar, esconde? Pois é o transe pelo que, na atualidade, acredito passa a vida da teoria no contexto do exercício da crítica literária brasileira. Vejamos um exemplo dentro da temática que exploro. Entre nós, dado o movimento poético dos anos 1970, seria pertinente pensar na presença de um caminho crítico e analítico já traçado para facilitar a promoção de novos percursos teóricos de entendimento para as expressões que mais recentemente surgiram no Brasil também sob o rótulo marginal; refiro-me a essas que no final da década de 1990 apareceram com força no cenário da literatura nacional para, de novo, colocar a prática crítica acadêmi-
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ca na berlinda. Isso talvez porque nessa ocasião o berço social dessas novas dicções remete, de maneira bastante diversa à do fenômeno dos anos 1970, a sujeitos socialmente periféricos, muitos deles isentos de um arcabouço cultural formal, apesar do que se aventuram na confecção de relatos de cruas experiências reais de exclusão social, cujo espectro de resolução se manifesta na recriação de episódios vinculados ao submundo do crime, do tráfico de drogas, enfim, da violência urbana comum (essa que advém da pobreza) nas suas mais diversas formas. Todo o qual escapa de maneira vertiginosa aos consagrados modelos de conceber a literatura. Se nos anos 1970 a experimentação literária focalizou basicamente as formas poéticas, “contaminando-as” de um tom coloquial por vezes radical que levou a suspeitar do seu caráter poético, o que dizer dessa mais recente tentativa, na qual a expressão acontece numa mistura de dicções e veículos textuais, que vão da prosa à poesia, da ficção ao testemunho, das histórias de vida à biografia, para nos deixar diante de um curioso mélange que coloca problemas para a classificação dentro dos gêneros literários reconhecidos. Também, à diferença dos marginais dos anos 1970, que engenharam canais de difusão próprios por causa da impossibilidade de aceder ao mercado editorial constituído no momento, os de agora não são amesquinhados pela indústria do livro, não raro recebendo seu beneplácito, com repercussões na mídia e alguns com êxito de mercado. Deste modo, tanto os aspectos internos à prática dessa escritura, ilustrados no tipo de feição textual que adotam, como os que a conectam à órbita irrecusável do consumo são aspectos que costumam não aceitar calmamente as chaves de leitura dadas por um aparato teórico-crítico convencional, ao qual resta autoridade. Neste ponto, os marginais dos anos 1970 e estes finisseculares se encontram, porque estes últimos repõem em muitos espíritos acadêmicos as incertezas sobre a natureza literária de sua existência, incentivando o seu rechaço, ou as dúvidas sobre as estratégias mais convenientes para a sua decifra-
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ção, promovendo alternativas de abordagens. Como se aprecia, tais reações representam entre si opções opostas, respostas diferentes para o mesmo apelo da realidade em movimento, com o qual mostram a condição ideológica do nosso fazer. De todo modo, configura-se aqui um estimulante problema de caráter teórico-crítico, a oportunidade ímpar para criar novas perspectivas de entendimento, a despeito, como creio que deveria ser, de o estudioso gostar ou não desse tipo de obra, desde que nosso trabalho não é a exposição dos nossos gostos, mas a obrigação de lançar luz sobre os acontecimentos que, nesta área, a cultura contemporânea esta produzindo5. Não obstante, no quadro de ricas possibilidades que se apresentam, só uns pouquinhos dentro da instituição estão preocupados em atender seriamente o assunto6. Talvez isso se deva a pelo menos dois motivos: porque dentro da nossa instituição a prática hegemônica imperante continua incentivando um exercício historicista entretido em mostrar as filiações canônicas escolhidas como modelos; ou porque o objeto do presente implica lidar com essa condição de formalização de novos pressupostos teóricos, tarefa árdua, pouco usual entre nós, que requer um tempo de maturação que não estamos tendo. Daí a razão da abundância entre as publicações de textos que agenciam um arremedo de atualização que só aplica mecanicamente as últimas teorias que nos vêm de fora. Veja-se senão a acanhada curiosidade acadêmica a respeito dos objetos da contemporaneidade, a timidez dos seus pronunciamentos ou o simples desaire que lhe dirige, num momento quando, há muito, “os poetas desceram do Olimpo”7. Encerra-se nisso uma condição perversa que eu referia acima, à qual é necessário “pegar pelos chifres”. Ela é intensamente referida nos corredores por alguns poucos – de novo – e acatada sem comentário pela grande maioria. E aqui começam os verdadeiros problemas para a experiência teórico-crítica entre nós.
Lembro de uma afirmação de Costa Lima: “Formalizamos para conhecer, não para ser conhecidos” (COSTA LIMA, 1975, p. 585). 5
E, quando se interessam, devem pagar o tributo do que ainda não foi aceito. É o caso do colega que apresentou, perante um dos organismos competentes de financiamento, projeto sobre a literatura carcerária para solicitar bolsa de pósdoutorado e lhe foi devolvido parecer dizendo que “o projeto tinha mérito, mas não era prioritário”. 6
É o que diz o antipoeta Nicanor Parra no seu poema “Manifiesto”. 7
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Na verdade, o processo seria anterior, segundo José Arthur Giannotti (1986). Seu corajoso e pioneiro exame da universidade brasileira indica a gênese dos seus problemas, motivo pelo qual, ainda que no seu texto não se refira à contundência dessa superinflação produtiva, a análise que realiza permite pensar na coerência do desfecho a que hoje chegamos. 8
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Todos sabem da tecnocratite que se abateu sobre a produção universitária a partir do ânimo desenvolvimentista – e não me refiro a JK – de um recente governo que esperneou para que nos equiparássemos aos índices exigidos por conhecidas agências internacionais de avaliação8. As exigências de produtividade, agora convertida em produtivite, foram-se tornando, como se sabe, cada vez mais numéricas, com o propósito de engordar índices, que já se converteram, para criaturas como eu, em verdadeiras assombrações. Se isso não é segredo, tampouco é coisa que se ventile com a assiduidade que me parece merecer, porque, fora o fato de aterrorizar alguns, é a causa dos males estruturais que se estão criando à genética da nossa capacidade de pensar (e lembre-se que a reflexão teórica é um dos seus frutos diletos). É, pois, no âmbito introduzido acima que poderemos encontrar os motivos para a inércia crítica que atualmente está apagando o impacto que a boa teoria poderia ter sobre a realidade. Porque discutir sobre a existência da teoria, sua prática dinâmica, suas possibilidades e impasses, não significa embrenhar-se numa discussão teórica, mas política e, fundamentalmente, ética. Se a mencionada situação se caracteriza por mostrar uma clara disjunção entre quantidade e qualidade relativamente ao que se produz, não é de se estranhar que, num momento de enxurrada de produções acadêmicas como o que vivemos, uma importante revista do meio enuncie uma preocupação como a formalizada na sua chamada a discutir os atuais problemas da teoria literária. Observemos os últimos dez anos. Nunca se publicou como até agora, nunca fomos obrigados a produzir como agora. O aspecto dramático disso é que nunca como hoje houve tamanha profusão de veículos para a publicação de tanto texto anêmico, tantas páginas descoradas e sem alento como agora. Uma produção que afastou de si até o disparate – esse ao menos poderia nos escandalizar e levar à reação – para ficar na modorra do bom comportamento padronizado, cujo princípio máximo é não implicar com nada nem ninguém. Essa letargia em dose cavalar me parece ser o dado inédito
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na produção crítica deste período, pois, na magnitude em que aparece, é capaz de converter a especulação teórica mais revoltada e rebelde num instrumento de neutralização de qualquer insurreição. Eis como o que se veicula no papel de tantas e tantas publicações sai dele para agir na realidade, pois temos aqui a demonstração plena de que a prática teórico-crítica cumpre uma função na órbita do real, mesmo se negativa como no momento atual, quando a “ritualização” da teoria, a partir desse aludido exercício monocórdio, está transformando uma prática dinâmica e em essência contestadora num fazer anódino e eminentemente burocrático. E em cifras para o preenchimento de formulários, essa nova insânia que ataca a muitos dos nossos departamentos, ou em meio de obtenção de verbas para continuar reproduzindo a sonolência que deixa o poder instituído no livre-arbítrio para tomar conta de tudo9. Descrevo assim o que me parece uma primeira característica do que estamos fazendo com a teoria no âmbito local. Além de quase nunca produzi-la entre nós, pois parece que a geração do saber teórico está reservada à elite pensante do primeiro mundo, quando ela nos chega, depois, é claro, de sua obrigada canonização na metrópole, a vemos ser mecanicamente instrumentalizada em centenas de trabalhos a modo de uma paráfrase inicial, que pretende ser o “marco” justificador do que virá depois. Não é raro que esse marco seja logo esquecido, pois os conteúdos referidos não serão debatidos nem testados, apenas superficialmente encasquetados, quando não à força, no objeto desculpa do estudo em questão. Ao fim da leitura desse tipo de trabalho não se sabe muito bem qual foi o cerne da questão, porque na realidade esse cerne não existe. Por outro lado, contamos com outra modalidade cada vez mais comum, aquele texto que se mostra tão esperto e conhecedor da teoria dos outros, que a gente fica se perguntando onde está a voz daquele que escreve e cita em abundância. Há uma necessidade quase doentia de mostrar aos pares quanto se está atualizado e informado da última vírgula que, em matéria de elaboração teórica, se colocou na metrópole10.
“No discurso dos financiadores de hoje, a única disputa confiável é o poder. Não se compram cientistas, técnicos e aparelhos para saber a verdade, mas para aumentar o poder” (LYOTARD, 1988, p. 83). 9
Eu mesma já tive trabalho rejeitado por um parecer que alegava falta de citação teórica e criticava o tom ensaístico do texto. Nessa ocasião, a possibilidade de embate de pareceres permitiu que o artigo fosse publicado, o que ainda nos anima a acreditar nas boas publicações. 10
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E se ainda se pode mimetizar o estilo abstruso de alguns famosos, pois melhor, isso será prova de densidade conceptual, de modo que a precariedade comunicativa do texto ainda recai nas costas do pobre leitor – quero dizer, leitor especializado –, que não entendeu bulhufas, mas que, dadas as condições de marasmo, faz de conta que sim e o tédio continua à frente. Não há prática teórica aqui, apenas uma simulação que neutraliza seu possível vigor na generalização que distingue especificidades (Borges e Guimarães já são pósmodernos). Assim, não há prática crítica tampouco, pois se amesquinha a compreensão do sentido e significado profundo do objeto que se pretendeu estudar. Há glosa ou comentário, há reprodução metalinguística dos conteúdos da obra e até “ilustração” do que está fora dela, mas não produção de um conhecimento sobre a obra, que é como dizer um conhecimento sobre a literatura e, mais além, um conhecimento sobre a constituição da condição humana, eis a razão prática da teoria. Volta-se a confundir crítica com apreciação e tal discurso mostra agora a marca do novo tom acadêmico light, competente na repetição, não enfrenta nem afronta, acata. Garante com isso, todavia, seu acesso a uma via de expressão numa das muitas publicações especializadas, já que é por esse meio que sabemos da sua existência e eu posso aqui a eles me referir. Juntando esses primeiros sinais, penso que há a indicação de uma condição de origem e que tais sinais suscitam uma pergunta óbvia: por que isso está acontecendo? A condição de origem poderia ser achacada de imediato ao comodismo, ou a uma espécie de lei universal do mercado, segundo a qual, a mais oferta de publicações menos (a)preço de conteúdo. Mas isso soa um pouco estranho se considerarmos que as referidas publicações estão vinculadas aos departamentos e programas de pós-graduação. É a instituição, então, que permite esse afrouxamento na qualidade? Mas como, se cada vez mais somos cominados a publicar e o volume dos nossos textos publicados é um dos índices para avaliar a nossa competência?
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3. “Quando os livros deixam de ser meios complexos e se tornam, em vez disso, objetos sobre os quais quantificamos, então se segue que todos os outros assuntos que as humanidades estudam perdem seu valor”. Lindsay Waters “Quando uma comunidade não tem prática da discussão, o uso da linguagem crítica sempre lhe parece ameaçador”. Luís Costa Lima
Destaco aqui a epígrafe inicial a modo de um tolo consolo e para insistir na gravidade da problemática, pois ela, creio, não significa apenas uma discussão formal sobre a maneira de conceber e/ou realizar a teoria. A sentença de Waters, editor da Harvard University Press, é motivada pela sua experiência no cargo, que lhe permitiu não só editar livros como refletir sobre a superprodução que também caracteriza a vida do acadêmico norte-americano com o mesmo resultado de deterioração, esmaecimento e irrelevância dos conteúdos que produz. Daí o tonto consolo, pois não só entre nós, terceiro-mundistas, esmorece a boa prática do pensar; e daí o alerta, pois a problemática tem proporções gigantescas. De modo que agora posso redimensionar em coisa pior o comodismo que lá em cima enunciava como uma possível causa do mal da nossa produção intelectual. Não é comodismo, ainda que pareça, mas o resultado de políticas de controle formuladas pelos organismos de financiamento às pesquisas. Ao menos vai nisso o reconhecimento de que a produção de ideias continua sendo considerada perigosa pelo poder estabelecido. Há uma tremenda coincidência entre o descrito por Waters e o que nós experimentamos por aqui. E, em ambos os casos, o que se pode detectar é o mesmo artifício diluente: o aluvião de produções escritas que, para o editor, só contribuem ao desmatamento plane-
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tário. “O problema – dirá – dos artigos ridículos publicados pelos estudiosos das humanidades foi em parte resultado do grande aumento no número de publicações que se espera que eles próprios (e todos os acadêmicos) perpetrem no papel ou despejem uns sobre os outros, na forma de comunicações em congressos” (WATERS, 2006, p. 24). Também é interessante que, tanto lá como aqui, a superprodução seja auspiciada pelas exigências de organismos que se colocam por cima da universidade, à qual só parece restar um pacífico acatamento sob pena de perder subsídios e verbas para o seu desenvolvimento. A armadilha aparece sob a única forma que o neoliberalismo capitalista concebe, o oferecimento de recursos materiais cuja distribuição corre por conta da observância de rendimentos numéricos. A distorção é grande, já que a obrigação do Estado em prover recursos para a formação institucional, e aqui se inclui o desenvolvimento da capacidade de pensar, deriva em dádiva, donativo, para cuja obtenção, no entanto, se pede em troca o silêncio das ideias, ou quase. Ou seja, trata-se de arrecadação numérica, e nenhum de nós poderá se dizer ignorante dessa situação. À medida que se exige um aumento numérico, a possibilidade de se publicar qualquer coisa dispara, e também a de negacear muita outra, essa que destoa do espírito de padronização que já opera. No que vai muito de censura. Com a padronização se silencia a polêmica ou o simples desacordo, que deixa de ser uma prática habitual entre nós, saudosa recordação de um tempo que se foi. De modo que já quase não sabemos discutir, a complacência simpática e cordial do “não julgue para não ser julgado” leva qualquer escorregada a ser entendida como ataque pessoal, e aí, sim, aparece a resposta maldosa fruto da empáfia do “sabe com quem está falando” ou do “quem você acha que é?” Nos meus escassos treze anos de docência universitária, devo reconhecer que meu registro de participação em bancas de avaliação de trabalhos acadêmicos é raquítico, porque fui muito pouco convidada. E devo dizer que, logo após uma ou duas experiências nas que causei, sem pensar,
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constrangimento, vi-me na esdrúxula situação de ter de pedir desculpas pelas alegações críticas que eu levantava e tentava justificar a propósito de alguma discordância com aspecto proposto pelo examinado, ou mesmo por um dos colegas participantes. Sem me esquecer do tolhimento de ter de ser cronometrada na minha intervenção, pois nessas reuniões não há mais tempo para o espraiamento do pensamento, tão só para a rápida formalização de um evento burocrático, com o qual se tem mais um dado curricular. Depois disso, passei a agradecer a falta de convites. O ato de avaliação deve passar por cima de suscetibilidades anímicas e emocionais, pois ele significa um compromisso inviolável com a minha capacidade de formular e defender conteúdos conceituais, que são os que darão densidade ao meu julgamento11. Isso quer dizer: esse julgamento, por sua vez, sempre será passível de questionamento ou superação, pois a possibilidade de discuti-lo é o fator que põe à prova o conceito, permitindo que a elaboração teórica ou crítica progrida. Estamos perdendo a capacidade de julgamento, e, se ela empalidece, damos as costas ao trabalho de definir o que e como as coisas são, ou por que elas são o que são. Entende-se a razão de a capacidade de teorizar esmorecer junto e até mesmo o bom discernimento para dela se apropriar. A teoria, como se vê, é uma prática complexa porque articulada a outros passos dos quais depende (o analítico e o crítico) e sobre os quais, ao mesmo tempo, incide. De modo que ela não é uma técnica a se aplicar, mas o resultado de um radical esforço reflexivo sobre uma das produções que integram o real. Nesse quadro de atonia programada, volta a ser oportuno perguntar como a teoria pode deveras se desenvolver num tal ambiente de aversão à crítica, se é a crítica, com seus fundamentos conceituais, a prática que a antecede. Se defesas de trabalhos universitários, congressos e reuniões do tipo não são mais os espaços públicos para ventilar essas questões, mas cifras para acrescentar à nossa folha curricular, aonde vamos12?
Num texto de 2006, eu tratava da insistência de certas abordagens sobre textos produzidos por sujeitos subalternos em desenvolver um tipo de avaliação reduzida ao ditame do bom ou do ruim, no fundo baseado em razões de simpatia ou antipatia. Nesse momento, eu propunha o deslocamento dessa maneira de avaliar para um compreender que entendia como investimento na criação de recursos teóricos que nos permitissem conhecer e entender os mecanismos imagéticos e sensíveis por meio dos quais sujeitos de culturas diversas constroem sua identidade estética. Na verdade, é uma definição oblíqua do que eu entendo como ato de julgamento (CABAÑAS, 2006). 11
Em 2009, presenciei dois episódios num evento na Universidade de Rosário, na Argentina, os quais, para tranquilidade dos hermanos, não são da sua exclusividade. Num deles, a discussão que, para minha surpresa, se gerou numa das mesas foi abruptamente encerrada por um dos membros da organização, alegando que precisava fechar a sala para ir ao almoço. No outro, com a anuência de quase todos, nem mesmo se permitiu a discussão que um dos integrantes da mesa colocava, pois não havia tempo, além dos vinte minutos reservados a cada um. Posteriormente, a organização disse que aqueles interessados em debater poderiam ir ao café da esquina. Ideias sempre se discutiram nos bares ou cafés e, pelo andar da carruagem, talvez sejam mesmo os melhores lugares para produzir ideias hoje. 12
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4. “O estudioso típico se parece cada vez mais com a figura retratada por Charles Chaplin em seu Tempos modernos, trabalhando louca e insensatamente para produzir”. Lindsay Waters
Publicações e atos comuns da nossa rotina acadêmica nos mostram que tudo está correndo por conta de um desenfreio temporal que já sacrificou (pois quantos já não sucumbiram a sua influência?) uma característica inapagável da nossa atividade: a maturação intelectual que requer um tempo compassado. Daí que se possa dizer quanto o nosso fazer está deturpado e distorcido. O mecanismo de uma linha de montagem, já se sabe, não é mecânico, mas puramente temporal, com ele se conseguiu apressar a produção. Como esta estava originalmente destinada ao mercado, deveu-se manter ainda um controle de qualidade, que existe até hoje, pois potenciais compradores poderiam rejeitar seus objetos caso viessem a apresentar alguma falha. Ou seja, supunha-se algum uso prático para esse objeto. Diferentemente deles, as nossas produções, também padronizadas, rolam faceiras pela linha de produção sem grandes controles de qualidade, esta é mais uma triste coincidência com o relatado por Waters para a vida acadêmica norte-americana. Se a padronização é algo imposto de cima para o pensamento, é claro que sua promoção augura em troca inexistentes engrenagens para testar sua qualidade, pois exigir de um intelectual uma produção apressada e ainda por cima avaliar deveras seu conteúdo sem dúvida teria ocasionado grande rebuliço entre a categoria, que teria, aí sim, se levantado em protestos. A conclusão é que já não podemos confundir intelectual com acadêmico; o intelectual, um libertário disposto até a infernizar sua vida pela defesa das suas ideias, vai deixando espaço ao acadêmico, perito em acatar disposições formulares e burocráticas em troca de uma calma progressão na profissão. Aqui, sim, aparece um comodismo da pior espécie, porque não aquele
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que nasce da vontade de um sujeito qualquer senão que vem como atrativa imposição de cima. Creio que não seja nada difícil perceber como, nessa reacomodação toda, o que se perde é a perspectiva da utilidade do que fazemos. Se essa serventia sempre esteve na corda bamba, dado seu eterno confronto com o estabelecido, era daí que provinha sua razão prática de ser. E essa razão prática de ser é a que está sendo apagada pelos índices de produtividade que nossos programas acadêmicos impõem a seus membros. Embora sempre atentos ao sentido das palavras, afinal, isso é parcela importante do que fazemos, poucos acadêmicos da área parecem notar a curiosa mudança de sentido que se opera quando cada vez menos falamos de produção e mais de produtividade. A eleição do termo não é em absoluto insignificante, pois, como toda palavra, ele revela intenções, mesmo quando a rotina do uso as escamoteie. Enquanto o termo produção nos lembra a ação do fazer e aponta para aquilo que é produzido, a palavra produtividade assinala a faculdade de produzir, ou seja, capacidade, que é também uma dimensão de volume, de medida numérica, como qualquer um pode deduzir consultando a expedita Wikipedia. A capacidade de produzir é o que a palavra produtividade destaca, convertida numa relação entre a quantidade produzida e a quantidade de insumos aplicados à produção, donde surge um determinado índice (numérico) de eficiência produtiva. A palavra indica, então, a necessidade de o sistema continuar se reproduzindo sob uma equação econômica de, por um lado, redução de custos e, por outro, redução de tempo no fazer para fazer mais. É importante notar como nesse processo o objeto produzido, importante para o regime da produção, desliza para as margens, onde não precisa ser focalizado, e seu outrora lugar de privilégio passa a ser ocupado, no regime da produtividade, pela capacidade quantificável de produzir. Ou seja, a ênfase recai na comensurabilidade do quanto se produz e não na qualidade do que se produz. A produtividade implica considerar, principalmente, o tempo da produção, ou seja, quanto menos tempo em
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“No contexto da deslegitimação, as universidades e as instituições de ensino superior são de agora em diante solicitadas a formar competências e não mais ideais [...] Ela fornece os jogadores capazes de assegurar convenientemente seu papel junto aos postos pragmáticos de que necessitam as instituições” (LYOTARD, 1988, p. 89). 13
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produzir objetos, mais produtividade. Aparece nisso a ideia de eficiência como critério a orientar os fazeres com um sentido puramente pragmático. Estamos muito perto da nova forma de legitimação do poder que está em andamento, segundo a descreve Lyotard (1988, p. 83), quando chama a atenção para um tipo de discurso (jogo técnico) cada vez mais assíduo nas universidades e instituições de ensino superior, cuja argumentação judicativa se expõe na relação eficiente/ineficiente13. Quando essa fórmula se aplica às áreas científicas ou tecnológicas, existe a lógica suposição de que aquilo que surge de suas pesquisas é ainda qualitativamente avaliado em função do requisito de utilidade que se espera de suas proposições e/ou invenções para a vida prática da sociedade, por isso conta-se com a eficácia delas. Mas, sobreposto ao trabalho intelectual, que é o que se espera dos estudiosos das humanidades, o resultado da fórmula só pode ser desastroso, a não ser que se aceite com espírito pragmático o tipo de modificação que isso traz para a área.
5. “A partir do momento em que o saber não tem mais seu fim em si mesmo como realização da idéia ou como emancipação dos homens, sua transmissão escapa à responsabilidade exclusiva dos mestres e dos estudantes”. François Lyotard “No puede ocultarse, sin embargo, que las necesidades de uma “crítica total” implicam um extenso y esforzado proceso y que su realización plena es impensable em términos individuales. Se trata de una empresa múltiple. De verdad colectiva, sistemática, sin duda gradual y lenta. La universidad debería ser el lugar donde este proyecto resulte posible.” Antonio Cornejo Polar
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A produtividade, tal como descrita acima, está retirando da nossa prática o exercício usual do entendimento das coisas e colocando no seu lugar discursos eficientes para a manutenção do tédio (entenda-se a metáfora). Sustentar a ideia de que a universidade (nossos colegas, nossos estudantes) se importa com o que seus membros produzem, pelo menos na área das humanas, é ingenuidade ou hipocrisia14. É raro um colega ter disposição para ler e espontaneamente comentar o trabalho do outro. Se não há interesse pelo debate de ideias, por que fazê-lo? Se o não julgamento é a condição da calma, para que fazê-lo? E se, como se vem dizendo, só glosa e paráfrase preenchem suas páginas, para que fazê-lo? Então, melhor é seguir atualizando-nos na repetição do que vem de fora, que isso pelo menos nos dará “ibope”. Como discutir com entusiasmo verdadeiro sobre teoria literária num tal ambiente? Ou seja, como propor sua discussão acreditando na sua razão prática de ser num ambiente que é o contrário daquilo que ela defende ao se propor o entendimento dos mecanismos que dão vida à literatura nos diferentes tempos históricos? Se a teoria desvenda o modo de a literatura denunciar esses mecanismos na vida social prática, de modo a que possamos entendê-los e enfrentá-los, como discutir teoria quando o conhecimento se burocratiza em neutra padronização interessada em mostrar uma funcionalidade vazia e formal, acadêmica? O respeito à elaboração teórica é o respeito à própria liberdade de pensar. De modo que eu suponho que mesmo um sujeito que não faz teoria dentro da profissão deve estar ciente da função insubstituível que ela desempenha e transmitir para aqueles que forma essa noção. Quero dizer que a consideração da existência da teoria e sua prática é impossível sem atender para o entorno concreto que a cerca e que hoje se formaliza em aspectos diluentes como os que aqui estou expondo. A problemática se alastra porque a pressão para aumentar os índices de produtividade não incide apenas
No seu texto, Giannotti (1986) faz uma análise impiedosa do mero ritual em que se teria convertido a maioria das aulas e das pesquisas na universidade. 14
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Via e-mail circulou há poucos meses a informação de denúncia feita por uma estudante de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências - Bioquímica da UFPR, contra o seu orientador por usurpação de autoria de trabalho científico. Segundo se informa em matéria publicada pela Gazeta do Povo, no dia 15 de novembro de 2009, a justiça teria concedido ganho de causa à estudante. O que cogitar perante o fato? Que se trata de um evento isolado? Ou que prevalece a omissão entre a maioria dos estudantes? A respeito, é proveitosa a leitura do texto do GT-Autoria da ANPUHA (2009). 15
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como exigência para acelerar a frequência de publicação e/ou assistência a congressos e eventos do tipo. Pressionam também sobre o corpo da formação intelectual (ou eu deveria dizer agora apenas acadêmica?) que estamos dando ao grupo que deverá ser a geração de relevo. Sabemos que somos agraciados com boas bolsas de produtividade quando atingimos um número de orientados pré-fixado pelas agências competentes. Isso leva a uma carreira desenfreada por aumentar seu número. Hoje, basta acessar nossos públicos currículos para constatar como professores universitários conseguem, além de dar aulas, estudar, escrever, ser consultores e pareceristas de revistas e organismos, chefes de departamento, coordenadores de pós-graduação, orientar oito, dez até dezessete trabalhos entre dissertações, teses, monografias de fim de curso e trabalhos de iniciação científica. Embora todos saibam que, na maioria dos casos, a efetiva orientação não se dá, ao passo que os alunos se viram como podem, e sempre de maneira submissa, para cumprir os prazos da defesa que fará com que o seu orientador acrescente na sua folha mais um dado de produtividade, e tudo bem. Como acreditar que a teoria possa andar bem se não a ensinamos porque, salvo excepcionais espíritos tocados com o dom da ubiquidade, ninguém tem fôlego nem tempo suficiente para se dedicar a orientações que quando bem levadas nos solicitam um tempo considerável? Na ciranda das orientações se chega ao desvario de uma apropriação indevida do trabalho do aluno orientado da parte de seu orientador, que, sem assomos de pudor, aparece como coautor pelo simples fato de cumprir a tarefa institucional da orientação15. Há o registro de revistas exigindo que o autor, quando é estudante, coloque o nome do orientador no texto para aceder à possibilidade de vê-lo publicado. Fato que fala por si e mostra que o que menos importa é a qualidade do texto (afinal, quem vai ler?), mas a procedência da autoria, ou melhor, de uma hierarquia que assim poderá somar a sua produção mais um crédito. E não esqueçamos do último expediente que veio aumentar nos-
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sos índices de produtividade, fazendo-nos autores de livros pelo simples fato de publicar um artigo entre muitos outros num formato que, se antes era o de uma revista, agora foi transformado em livro, embora quase nunca a reunião desses textos prove efetivamente a coerência temática que o título do volume anuncia e promete. E que interessa, se ninguém vai ler? Em circunstâncias outras, poderia lembrar aqui de De Certeau e ensaiar uma explicação via “tática do fraco” contra o poder instituído, mas acontece que a coisa tem lá fortes traços de ser uma atitude que corre entre o oportunismo e a indiferença: artimanhas que inventamos para responder respeitosamente às pressões do poder. O que ocorre é que estamos permitindo a ação de mecanismos insanos que despojam a atividade teórica de sua razão prática de ser e prova disso é a constatação do já mencionado monocromo da produção crítica que circula no meio universitário, seja na forma de artigos veiculados pelas variadas revistas especializadas ou à maneira de teses, dissertações ou monografias. Não digo que não existam bons trabalhos e publicações honestas ainda lutando pelo exercício do critério, mas digo que são poucos ou que, pelo menos, seu esforço se perde na floresta de tantas páginas inócuas16. Não advogo pela publicação apenas de trabalhos geniais (aí nem eu conseguiria publicar os meus), digo que o que não se poderia admitir com a calma que está sendo aceito é o fato de uma inflação de publicações sem sentido, desde que sem recepção pertinente17, que está dando cobertura a um profundo desequilíbrio de valores. Para o caso das humanidades, tal desequilíbrio significa uma forma certeira de cercear a possibilidade de refletir sobre os problemas que afligem o ser social, seja por meio de análises, críticas ou teorias que descubram sem condescendência os engodos do sistema e de suas supostas verdades inquestionáveis. Essa seria uma razão prática da existência da teoria. Não acho que o enfraquecimento do nosso meio intelectual se deva apenas ao fortalecimento da indústria do livro de entretenimento, ou que a responsabilidade cabe tão só aos administradores, como pensa Waters. A questão
Eu mesma tenho publicados dois livros que nunca vi citados em lugar algum. O problema é que, com essa situação, o crítico fica sem retorno certo para saber sobre a qualidade do seu texto. Mais uma vez quem ganha é a falta de discussão. 16
Conforme diz o editor de Harvard: “O problema é a insistência na produtividade, sem a menor preocupação com a recepção do trabalho. Perdeu-se o equilíbrio entre esses dois elementos – a produção e a recepção” (WATERS, 2006, p. 25). François Lyotard, no texto que escrevera para o Conselho das Universidades de Quebec e que resultou no livro O pós-moderno, afirma algo parecido: “Observar-se-á que esta orientação concerne mais à produção do saber (pesquisa) que à sua transmissão. [...] a solução, para a qual se orientam de fato as instituições do saber em todo o mundo,consiste em dissociar esses dois aspectos da didática” (LYOTARD, 1988, p. 95). 17
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é que nossos administradores somos nós, isto é, indivíduos do meio, da vida institucional. De modo que a situação é obviamente complicada, articulada por fatores que projetam, queiramos ou não, atrativos que seduzem pela calmaria ofertada no consenso do fazer de conta que se faz, e pela garantia de só sair desse estado caso se queira entrar nas águas turbulentas da disputa pelo poder administrativo. A exposição dos antagonismos, uma das tarefas da teoria literária, só vige à luz da dissidência fruto do livre trânsito pelo direito às ideias que permitem formular um julgamento possível, e testá-lo na forma da sua autocrítica e/ou da sua implementação prática, que não é, como pensam alguns, sua conversão em técnica aplicável, mas seu compromisso com fundamentos éticos inegociáveis. A explicitação das questões que aqui abordei pode ser lida como uma tentativa pessoal de me dar o direito de continuar exercendo o livre-arbítrio para pensar dentro da academia, pois ainda acredito que a universidade é lugar para incentivar a dissidência do pensamento. E é claro que o que digo procura interlocutores honestos para o seu julgamento, de modo a corrigi-lo, ampliá-lo e/ ou superá-lo. Se nos centros metropolitanos deste mundo globalizado a teoria literária não está desaparecendo, mas perdendo progressivamente sua razão prática de ser, isso não deveria ser motivo para não tentar desenhar por estas bandas periféricas os motivos locais que estão conduzindo a essa rarefação. Antes do que aportar soluções, a teoria literária é o caminho interminável do contra, que instiga o pensamento e leva sempre à sedição, de maneira que ela nunca poderia instaurar o apagamento dos antagonismos. Se isso está sendo assim, só resta para a teoria cair nas redes da impostura? Deveremos nos conformar, então, com a abolição do novo? Ou podemos ainda acreditar que nela sempre mora um demônio insurreto prestes a sua convocação? É na crença disso último que se motivam estas páginas.
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Refêrencias CABAÑAS, Teresa. Da representação à representatividade: Quem legitima? Provocação ao debate. Revista de Crítica Literária Latinoamericana, Lima-Hannover, n. 63-64, p. 169-186, 2006. COSTA LIMA, Luís. Quem tem medo da teoria? Vozes, Rio de Janeiro, n. 9, p. 581-585, 1975. Disponível em: <http://www. cesarguiste.ddfnet.com.br/ufpe/crt2/hps/lcl/quem.pdf>. DANTAS, Vinicius. A nova poesia brasileira e a poesia. Novos Estudos (Cebrap), São Paulo, n. 16, p. 40-53, 1986. GIANNOTI, José Arthur. A universidade em ritmo de barbárie. São Paulo: Brasiliense, 1986. GT-AUTORIA DA ANPUH. A questão da co-autoria: entre práticas e éticas, Fórum de Coordenadores de Programas de Pós-graduação de História. Disponível em: <http://www.anpuh.org/conteudo/ view?ID_CONTEUDO=69>. Acesso em: 04/01/2010. HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem. São Paulo: Brasiliense, 1981. LYOTARD, Jean François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympo, 1988. MATTOSSO, Glauco. O que é poesia marginal? São Paulo: Brasiliense, 1981. MESSEDER PEREIRA, Antônio Carlos. Retrato de época. Rio de Janeiro: Funarte, 1981. SIMON, Iumna; DANTAS, Vinicius. Poesia ruim, sociedade pior. Novos Estudos (Cebrap), São Paulo, n. 12, p. 48-60, 1985. _____. Considerações sobre a poesia brasileira de fim de século. Novos Estudos (Cebrap), n. 55, p. 27-36, 1999. WATERS, Lindsay. Inimigos da esperança. Publicar, perecer e o eclipse da erudição. São Paulo: Unesp, 2006.
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Assombração do passado e abismo do futuro: entre o tédio e o espanto Renata Telles*
resumo:
Sair do tédio da proliferação de teorias no presente mundializado e buscar o espanto no texto literário significa transitar entre dois, rejeitar a escolha obrigatória e, ao mesmo tempo, instaurar diferenças na homogeneidade. Refletir criticamente sobre o presente sincrônico exige a construção de anacronismos que coloquem em simultaneidade o não simultâneo, na temporalidade da memória que mantém o passado como assombração e o futuro como abismo, tendo a literatura como lugar privilegiado para pensar e fabricar a convivência dos contrários, questões que leio nos romances contemporâneos de Bernardo Carvalho. palavras-chave:
crítica do presente; temporalidade da memória; literatura contemporânea. abstract:
To escape the tediousness proliferation of theories in the mundialized present and to search astonishment in the literary text implies the transit between two, means the rejection of an obligatory choice and, at the same time, the instauration of difference in the homogeneousness. To reflect critically on the synchronous present demands the construction of anachronisms that puts in simultaneity the non simultaneous, as the memory temporality which maintains the past as haunts and the future as abyss, having the literature as a privileged place to think and to fabricate the cohabitation of the opposites, issues that I read in the contemporary novels of Bernardo Carvalho. keywords:
critique of the present; memory temporality; contemporary literature Universidade Federal do Paraná, UFPR. *
Quando Aristóteles formula sua Poética, parte do presente diante de seus olhos (Sófocles, Homero) para, a partir
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de uma análise minuciosa, encontrar categorias gerais, leis de funcionamento, criar uma hierarquia que, ao longo do tempo, se transforma em prescrição e critério de valor, e, ao mesmo tempo, afirmar que a “Poesia encerra mais filosofia e elevação do que a História” (ARISTÓTELES, 2005, p. 28). Muitos séculos depois, quando Victor Hugo escreve “Do grotesco e do sublime” (2002), Shakespeare, lido na França no início do século XIX, o leva a questionar separações e hierarquias estabelecidas por Aristóteles para a antiga Grécia – e ainda vivas, se lembrarmos, por exemplo, da Arte poética de Boileau (1979) –, para ressaltar a convivência dos contrários como a verdade dos tempos modernos. Algumas décadas depois de Hugo, quando Baudelaire publica “O pintor da vida moderna” (1995), os traços rápidos de Constantin Guy chamam sua atenção para a fugacidade do presente, para a constatação de que esse presente não estaciona para ser imitado, de que a arte não retrata aquilo que está dado como tal na natureza, o belo ou o feio, como queria Aristóteles, nem o belo e o feio, como defende Hugo. Pelo contrário, é o trabalho do artista, o artifício, que cria a beleza e detém o instante. Os três exemplos escolhidos entre os milhares produzidos ao longo de milênios mostram que a reflexão sobre a literatura sempre se caracterizou por ter presentes distintos, diferentes objetos, diversas concepções de arte, lidas e utilizadas de maneiras divergentes, convivendo simultaneamente, negadas e retomadas. Mais perto de nós, já no século XX, a defesa de um lugar específico para a literatura, como ciência ou disciplina, polarizou posições e acirrou antagonismos entre o que se convencionou chamar de estruturalismo e de marxismo, acendendo a disputa sobre o primado do texto ou sua relação com o mundo, entre teoria da literatura e teoria, entre literatura e estudos culturais1. Se o século XX conviveu com formalismo russo, new criticism, estruturalismo, pós-estruturalismo, desconstrução, feminismo, psicanálise, marxismo, pós-colonialismo, queer theory e outros mais, se a reflexão sobre a literatura trouxe para si a sociologia, a
Tensões e marcações de lugar que podem ser acompanhadas com detalhes na crítica literária brasileira, particularmente a partir das décadas de 1960 e 1970, nos debates entre Candido e Coutinho, Costa Lima e Carlos Nelson Coutinho, Roberto Schwarz e Silviano Santiago, por exemplo. A bibliografia sobre os debates na crítica brasileira é vasta. Cf. ANTELO, Raul. A teoria e suas ventosas. Boletim de Pesquisa – Nelic, Florianópolis, v. 5, n. 6/7 (Polêmicas), 2003; SOUZA, Eneida Maria de. Os livros de cabeceira da crítica. In: _____. Crítica Cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002; MORICONI, Italo. A teoria na prática é outra. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996; SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2004; SUSSEKIND, Flora. Sobre a crítica. In: _____. Papéis colados. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993. O debate pode também ser acompanhado no acervo da Abralic. Cf. SANTIAGO, Silviano. Democratização no Brasil (1979-1981): cultura versus arte. In: ANTELO, Raul et al. Declínio da arte/ascensão da cultura. Florianópolis: Letras Contemporâneas/ Abralic, 1998; MIRANDA, Wander Melo. Projeções de um debate. SOUZA, Eneida Maria de. A teoria em crise. Revista Brasileira de Literatura Comparada, Florianópolis, 1998. Os ensaios envolvidos diretamente nas polêmicas, veiculados em periódicos como Opinião nos anos 1970 1
Assombração do passado e abismo do futuro: entre o tédio... ou no caderno Mais! nos anos 1990, podem ser consultados diretamente no acervo do Nelic (Núcleo de estudos literários e culturais) – UFSC, disponível para pesquisa em www.nelic.ufsc.br.
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semiologia, a história, a sociologia, a filosofia, a antropologia, a linguística e tantas outras, a questão que se coloca é: qual a diferença, que a proliferação de teorias causa hoje, no século XXI? Como refletir criticamente sobre o presente, sobre a literatura e sobre nós mesmos, em meio à profusão de caminhos? Como produzir espanto e diferença em meio ao tédio do sempre igual?
A diferença do hoje Em busca da compreensão do presente a partir da diferença do hoje, Michel Foucault, em “Qu’est-ce que Les Lumiéres?”, de 1984, se dedica à leitura de um texto, publicado dois séculos antes por Kant, que responde a essa mesma pergunta: “Was ist Aufklärung?”. Uma reflexão sobre o presente como diferença e como tarefa, análise e crítica, que atua no limite e na abertura:
A ontologia crítica de nós mesmos, é preciso considerála, na verdade, não como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula; é preciso considerála como uma atitude, um êthos, uma via filosófica em que a crítica disso que nós somos é, ao mesmo tempo, análise histórica dos limites que nos são colocados e ensaio de seu possível ultrapassamento. 2
L’ontologie critique de nous-mêmes, il fault la considerér non certes comme une théorie, une doctrine, ni même un corps permanent de savoir qui s’accumule; il faut la concevoir comme une attitude, um êthos, une vie philosophique ou la critique de ce que nous sommes est à la fois analyse historique des limites qui nous sont possées et épreuve de leur franchissement possible2 (FOUCAULT, 1994, p. 577).
A teoria não é uma sucessão de saberes que se acumula e se supera, pelo contrário, trata-se de uma construção incessante e inacabada, sempre a exigir uma decisão ética diante de um presente, ao qual é necessário entender e responder. Em uma segunda versão do mesmo texto, publicada logo a seguir, Foucault detalha mais o problema: La question porte sur ce que c’est que ce présent, elle porte d’abord sur la détermination d’um certain élément du présent qu’il s’agit de reconnaître, de distinguer, de déchiffrer parmi tout les autres.Qu’est-ce qui, dans le présent, fait sens actuellement pour une réflexion philosophique?
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Dans la réponse que Kant essaie de donner à cette interrogation, il entreprend de montrer em quoi cet élément se trouve être Le porteur et le signe d’um processus qui concerne la pensée, la connaissance, la philosophie; mais il s’agit de montrer em quoi et comment celui qui parle em tant que penseur, em tant que savant, em tant que philosophe fait partie lui-même de ce processus, et (plus que cela) comment il a un certain role à jouer dans ces processus, où il se trouvera donc à la fois élément et acteur (FOUCAULT, 1994, p. 680)3.
Uma reflexão sobre o presente e sobre o saber, sobre a tarefa do saber no presente, ou ainda, sobre saber qual a tarefa do presente, designa necessariamente uma reflexão sobre o tempo, rupturas e permanências, sobre a permanência como ruptura.
Política da memória Certamente, o nosso mundo é mais plural e mais amplo do que o de Aristóteles. Também é mais veloz e mais próximo do que o de Victor Hugo ou o de Baudelaire, ou, como já havia constatado Phileas Fogg, ao defender a possibilidade de dar a volta ao mundo em 80 dias no romance publicado em 1864: “A terra encolheu, visto que agora nós a percorremos com uma velocidade maior que a de cem anos atrás.” (Verne, 1998, p. 23). Diminuição do espaço e aceleração do tempo sentidos desde as grandes navegações, contemporâneas de Shakespeare. Os primeiros passos na direção da mundialização são acompanhados por uma alteração na reflexão sobre o saber no tempo, com a introdução de uma ruptura entre passado e presente, entendido como renovação e não mais como prolongamento: atitude que opera uma divisão da história, cortes e periodizações, em que o saber do presente pode superar o saber do passado. Uma cronosofia do progresso que, no presente e no futuro de Victor Hugo, Baudelaire, Verne e José de Alencar, se torna visível nas tendências de longa duração, como especifica Pomian:
A questão se dirige a isso que é o que se apresenta, ela se dirige, em primeiro lugar, à determinação de um certo elemento do presente que se trata de reconhecer, de distinguir, de decifrar entre todos os outros. O que, no presente, faz sentido atualmente para uma reflexão filosófica? Na resposta que Kant ensaia para essa interrogação, ele tenta mostrar em que esse elemento é o portador e o signo de um processo que concerne ao pensamento, ao conhecimento, à filosofia; mas se trata de em que e como aquele que fala como pensador, como sábio, como filósofo, faz parte ele mesmo desse processo, e (mais do que isso) como ele tem um papel certo a desempenhar nesse processo, em que ele se descobrirá, portanto, ao mesmo tempo, elemento e ator. 3
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Alfabetização em massa, monetarização cada vez mais acentuada da economia, desenvolvimento da indústria, penetração do tempo quantitativo na vida cotidiana, importância crescente do Estado e suas intervenções no âmbito de todas as actividades que concernem o futuro (POMIAN, 1993, p. 27).
Para entender a diferença que o hoje introduz em relação a esse ontem, ou para refletir sobre o futuro desse passado na entrada do novo milênio, Zygmunt Bauman trabalha com as metáforas do sólido e do líquido e escolhe como índice de leitura cinco elementos: relação espaço/ tempo, emancipação, individualidade, trabalho, comunidade, ressaltando a primeira como “atributo essencial que todas as demais seguem”. A modernidade sólida, ou a cronosofia do progresso caracterizada por Pomian, começa, para Bauman, quando o tempo se separa do espaço e da vida cotidiana, quando o “tempo adquire história, uma vez que a velocidade de movimento através do espaço se torna uma questão do engenho, da imaginação e da capacidade humanas” (BAUMAN, 2001, p. 16). Tempo transformado em arma, velocidade de movimento utilizada como instrumento de poder de uma força invasora e colonizadora. Cronopolítica que situa os nômades como atraso no tempo sólido da nação. A diferença do presente, a modernidade líquida, seria o alcance do limite dessa velocidade de movimento, uma vez atingida a instantaneidade e a fluidez. Segundo Bauman, ao contrário da modernidade sólida, uma elite nômade agora circula em uma velocidade atordoante, no tempo veloz de uma sociedade pós-panóptica e de um poder extraterritorial, que oferece acesso diferencial à instantaneidade. É também na virada do milênio, voltando ao mesmo ponto em que Pomian localiza a invenção do relógio, a afirmação da escrita e da monetarização, em que o tempo passa a ter história e em que a velocidade passa a ser uma questão de engenho, segundo Bauman, que Peter Sloterdijk (2000) encontra a invenção do globo. Uma “potência de
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ilustração” é testemunha de um “novo estado de mundo no qual a matriz do artificial de alto nível será o caso normal”, que resulta na “globalização aguda das intervenções humanas sobre a terra”. Uma monstruosidade do espaço, do tempo e da coisa, “a artificialidade em todas as dimensões essenciais da existência”, que causa um crescente mal-estar no presente sincrônico e global. O homem que, com seu engenho, alimentou a criação dos artifícios por quinhentos anos se vê agora diante de um monstro que ele não consegue sequer descrever. Como se não estivesse presente na cena do crime, como se tivesse álibi, suspeita dos artefatos com um pensamento que não consegue exprimir o lugar do artificial no real. Para ultrapassar esses limites e insuficiências, Sloterdijk busca outra maneira de compreender a modernidade: “um desanimismo em ação e uma nova repartição da subjetividade entre os sujeitos e as coisas”, um caminho para entender o artificial, não como perda de alguma essência, mas como conquista progressiva do nada: Se é pelo pensamento que se corresponde ao Ser, corresponde-se ao nada pelos saltos audaciosos na operação: a vontade, a atividade, a composição são as respostas adequadas à descoberta do fato de que no nada (néant) não há nada (rien) a reconhecer, mas tudo a realizar (SLOTERDIJK, 2010, p. 34)4.
A resposta ao monstro, ensina Sloterdijk, só pode ser ela mesma monstruosa. Para responder ao que foi criado pelo homem, é preciso assumir a posição de criminoso, sem álibi. A construção de artifícios não é a sombra destruidora que paira aterradora sobre a modernidade, mas sua força permanente: “a impossibilidade de esgotar o nada”. A artificialidade do presente monstruoso é também a possibilidade de futuro, de imaginar o impossível, através da criação, do artifício, da montagem. Quando Agamben (1998; 2005), Deleuze (1990) e Benjamin (1985; 2006) desenvolvem uma reflexão sobre o tempo e a imagem artificial do cinema, quando com
Si c’ést par la pensée qu’on correspond à l’Être, on corresponda au néant par des audacieux dans l’opération: la volonté, l’activité, la composition sont des réponses adéquates à la découverte du fait que, dans le néant, il n’y a rien à reconaître, mais tout à accomplir. 4
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essa reflexão buscam uma maneira de ler o presente criticamente, atuando no limite e na abertura, como queria Foucault, todos se detêm na memória. No funcionamento dessa faculdade, particularmente no fenômeno do déjà vu, capaz de dar simultaneidade ao passado e ao presente, ao virtual e ao real, ou ainda, de “transformar o real em possível e o possível em real” (AGAMBEN, 1998, p. 70), os três pensadores encontram uma possibilidade de abertura à historicidade. Ao olhar para o mesmo fenômeno, Paolo Virno descreve-o como um “estado de ânimo estendido e prepotente” que caracteriza as formas de vida contemporâneas. A distinção que se faz necessária, segundo o pensador italiano, mais do que opor contínuo a simultâneo, é a que estabelece a diferença entre lembrança do presente e déjà vu. Enquanto a lembrança retém o presente como virtual, a percepção fixa o presente como real. Para Virno, o déjà vu é o fenômeno da percepção que realiza a operação de conceder ao virtual o aspecto de algo que foi real, trocando a “forma-passado aplicada ao presente pelo conteúdopassado, que o presente repetiria com excessiva fidelidade” (VIRNO, 2003, p. 15), apagando a diferença. Por sua vez, o anacronismo formal da lembrança do presente, que aplica a forma-passado ao presente em curso, é a própria gênese do tempo histórico, pois deixa ver a diferença entre simultâneos, a brecha permanente entre poder-fazer e fato consumado, entre potência e ato, como base da experiência histórica. Ao apagamento do virtual no déjà vu, à “ideologia pós-moderna” do fim da história, corresponde um gênero de narração histórica que Virno, recorrendo a Nietzsche, chama de antiquaria, aquela que preserva tudo de um passado, sem admitir seleção, como um colecionador obsessivo que não sabe esquecer, como poderíamos ler no Funes, de Borges. O fenômeno que dá a um a aparência do outro, que preenche o hiato e, portanto, paralisa a história, caracteriza um “interesse – sentimental, estético, comercial – por objetos e manufaturas pertencentes ao passado próximo”, que leva o colecionador a colecionar a própria
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vida, a assistir-se viver, no presente duplicado do déjà vu, que toma assim a forma do espetáculo. Longe de referir-se somente ao consumo de mercadorias culturais, a noção de espetáculo concerne em primeiro lugar à inclinação pós-histórica de assistir-se viver. Dito de outro modo: o espetáculo é a forma que assume o déjà vu, assim que se torna fenômeno exterior, suprapessoal, público. A sociedade do espetáculo oferece a homens e mulheres a “exposição universal” de seu próprio poder-fazer, poderdizer, poder-ser, reduzidos, no entanto, a feitos realizados, palavras ditas, atos já efetuados (VIRNO, 2003, p. 64).
É no funcionamento de uma metarreflexão, da simultaneidade e da oposição entre faculdade e execução, potência e ato, possibilidade e realização, concomitância e diacronia que se encontra a estrutura portadora e também a condição de possibilidade da historicidade. Um momento de anacronia radical, que dessa vez poderíamos ler no Pierre Menard, de Borges, que estabelece precursores e herdeiros e, ao mesmo tempo, permanece incompleto, como lacuna insaturável, “poder-dizer nunca aplanado pela presença da enunciação”. Se as grandes navegações alteram a concepção de tempo e a percepção do espaço, como nos mostraram Pomian e Sloterdijk, os relatos que forjam essa imagem de mundo, os testemunhos do eu viajante/narrador que legitimam a experiência individual nos tempos modernos, marcam também uma turbulência nos limites discursivos. Revolução nas fronteiras da escrita que podemos ler nos relatos dos primeiros viajantes que se esforçam para separar-se do maravilhoso e atestar aquilo que seus olhos viram, na crença de um mundo imutável ao contato com a linguagem; no intervalo entre o discurso poético e o filosófico, na relatividade dos valores e na autoridade da primeira pessoa que marcam, por exemplo, “Dos canibais”, de Montaigne; no uso maravilhoso que Shakespeare faz da leitura desse ensaio em A tempestade; nos relatos preocupados com a cientificidade da segunda leva de viajantes,
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no século XIX; nas notas históricas entremeadas na ficção de José de Alencar; na mescla de descrição científica e excesso barroco de Euclides da Cunha; na afirmação da paixão e da criação em Baudelaire. Limites entre ciência e poesia, entre história e literatura, que se confundem e se separam gradativamente. O moderno, a poesia moderna – mais exato seria dizer-se da modernidade –, está no que, partindo do eu, já não cabe na expressão de um eu; daí, como diz Lacoue-Labarthe, no que não se conforma com a idéia de representação ou, como retificaríamos, que passa a exigir que se rompa a sinonímia entre representação e expressão da interioridade autoral. Em conseqüência, o primado do ver, o realce do fato, da observação e da descrição perdem o privilégio que tinham tanto no modelo de relato de Humboldt como no romance dominante desde o século XVIII. Esses recursos tinham a propriedade de, sem interferir na autonomia da história em face do romance, assegurar a possibilidade de que a história pretendesse estar, por seu efeito, entre os gêneros literários, e de que o romance, por sua organização linear, obediente ao tempo “real”, se pretendesse legível de acordo com os parâmetros históricos. Assim se assegurava a autonomia de cada um e, ao mesmo tempo, sua consonância. A irrupção do sublime, ao contrário, favorecendo a entrada do grotesco, do monstruoso, do feio do disforme, do violento sem remissão, em suma de formas de expressão incapazes de caber na consonância, lança a literatura em uma deriva não legitimada (LIMA, 1997, p. 232-233).
O tédio e o espanto A vertiginosa circulação dos artifícios criados pelo homem moderno (imprensa, moeda, globo, relógio, fotografia, cinema, internet), a continuidade inexorável do progresso e a busca desenfreada da modernização revelam um esforço de sincronização que culmina no tempo simultâneo do presente. O ator de uma história desenvolvimentista e emancipadora revela-se um anestesiado e impotente es-
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pectador da instantaneidade, do veloz e incessante desfile de imagens e textos sobre o espaço mundializado em que o outro adquire a aparência do mesmo, em que nada parece acontecer, além da crescente artificialidade, ubiquidade e simultaneidade. Diante desse tédio, já em 1968, Vilém Flusser buscava a possibilidade de espanto: Creio que somos uma geração em transição, e que assistimos ao fim de uma época e ao surgir de outra. A Idade Moderna transformou a natureza em parque industrial e tornou-a tediosa. Esse tédio de fin de siècle nos faz perguntar: “por que não me mato?”. Mas sentimos as dores de parto de uma Idade nova. A natureza esvaziada, e os métodos de sua investigação, como ciência e tecnologia, tornaram-se desinteressantes existencialmente, mas surge um fascínio novo, ainda não articulável, mas existencialmente sorvível. O perigo desse novo fascínio reside no seu possível antintelectualismo, e a tarefa da nossa geração é intelectualizá-lo. É uma tarefa nobre, e nela reside, ao meu ver, a resposta à pergunta: “por que não me mato?”. É uma tarefa espantosa. Aristóteles diz: Propter admirationem enim et nunc et primo homines principiabant philosophari (É pelo espanto que os homens começaram a filosofar antigamente e hoje em dia). Enquanto esse espanto da filosofia persistir, não há motivo para matar-se (FLUSSER, 2002, p. 95-96).
Mais de quarenta anos depois, no momento em que a massa da revolução industrial e o povo do estado democrático deixam ver seu resíduo inassimilável na multidão que vagueia entre guerras e conflitos permanentes, em que a imagem e o texto atravessam uma cultura internacionalizada e sem fronteiras, nesse presente em que o espaço parece desaparecer, o tempo se torna um elemento central. Um índice que abre a possibilidade de pensar criticamente o presente, e por meio do qual, a meu ver, ainda é possível buscar e fabricar o espanto, ali onde ele parece não existir. Se a velocidade com que nós e os textos atravessamos o globo, concreta e virtualmente, transforma tudo em tédio,
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diferença em homogeneidade, distância em proximidade, lembrança do presente em déjà vu, é também diante desse cenário de mesmice que a literatura aparece como um lugar para pensar a diferença do hoje, como queria Foucault, para criar artifícios que respondam ao nada, como queria Sloterdijk, para dar visibilidade à simultaneidade do diferente, como queria Virno, para fabricar espanto e intelectualização, como queria Flusser. Um lugar que permite a contradição e o paradoxo, a convivência do diferente, do racional e do irracional, do consciente e do inconsciente, do presente e do passado, da permanência e da ruptura, da memória e da percepção, do real e do artificial. Um lugar privilegiado para pensar, e aqui a proliferação é bem-vinda, o monstruoso, as singularidades paradoxais e contraditórias do nosso tempo. Não se trata, portanto, de um pensamento ou de uma teoria que prescinde do texto literário, mas de um pensamento ou de uma teoria que elege a literatura como lugar privilegiado de reflexão e conhecimento e a teoria como prática desvinculada do imediatismo. Eleger o tempo e a literatura como questões centrais significa também aprender a herdar, a viver com o outro, a dialogar com quem pensou o problema antes de nós e diante de nós, de se abrir a uma “política da memória, da herança e das gerações”, como diria Derrida (1994, p. 33). A herança da teoria sobre o tempo e sobre a literatura, portanto, não deve ser encarada nem como acumulação nem como superação: é preciso, aqui também, lembrar e esquecer, escolher e deixar escapar, repetir e colar, hesitar e decidir. A tarefa do herdeiro consiste em uma operação de montagem de fragmentos inatuais, esquecidos, inoperantes, de promessas não cumpridas, em outro contexto possível, já que nenhuma tradição dura sozinha e toda fragmentação é contrariada pela linearidade de um relato. Um presente que não oferece descanso de modelos ou categorias estabelecidas, mas que nos coloca diante da responsabilidade da decisão política perante o outro. Para sair do tédio da homogeneidade, para responder ao fechamento da história, é necessário permanecer nesse
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campo de instabilidades, nessa zona de turbulência em que os opostos se tocam e tornam a convivência tensa. Um compromisso político que não promete estabilização, mas nos coloca diante de decisões difíceis, que resistam a eleições simplistas entre dois e que não diluam as tensões. Na coabitação dos contrários se relacionam as coisas construídas pelo homem: a arte, a história, a política. O desafio então seria transitar na monstruosa área de contaminação, enfrentar a insuportável convivência, construindo artifícios e encontrando correlações e articulações, religação e reagenciamentos, que mantenham a eterna tensão.
O abismo e a assombração O que faz sentido hoje para uma reflexão? Que resposta a literatura pode dar a essa pergunta? Como falar desse mundo pequeno, homogêneo, sincrônico? Como escrever num processo de “mundialização que não deixa mais um ‘fora’ – e por conseqüência nenhum ‘dentro’ –, nem sobre essa terra, nem fora dela, nem nesse universo, nem fora dele, em relação ao qual um sentido poderia se definir” (NANCY, 1993, p. 17)?5 Como a literatura responde ao presente e ao passado, ao mesmo e ao outro? Qual o compromisso do escritor do presente diante da arte e sua época? As respostas a perguntas tão difíceis poderiam ser buscadas entre possibilidades infinitas de textos, passados, presentes e futuros. Diante de tal profusão, escolho três romances de um mesmo autor brasileiro publicados no ano 2000. Para falar desse mundo alterado, da literatura nesse mundo alterado e da permanência da guerra nesse mundo que parece não se alterar, os romances de Bernardo Carvalho respondem ao tédio e ao espanto viajando no espaço e no tempo, transitando entre múltiplas vozes. “O mundo em volta está mudado - Você ainda segue a lógica de um mundo que acabou”, afirmam duas mães russas em O filho da mãe (CARVALHO, 2009). “A nossa já não é uma época de literatura”, declara o diplomata aposentado em
Une “mondialisation” que ne laisse plus de “dehors” – et par conséquent plus de “dedans” –, ni sur cette terre, ni hors d’elle, ni dans cet univers, ni hors de lui, par rapport à quoi un sens pourrait se déterminer. 5
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Mongólia (CARVALHO, 2003). “Hoje as guerras parecem mais pontuais, quando no fundo são permanentes”, nos diz, por sua vez, o sertanista em Nove noites (CARVALHO, 2009). Em Nove noites, publicado em 2002, um narrador em primeira pessoa escreve, no passado, uma carta para o futuro (em itálico), enquanto o outro narrador em primeira pessoa, no presente, reconstrói o passado a partir de pesquisa em arquivos e memórias pessoais. A narrativa fragmentada, entre a carta-testamento que passa adiante o segredo e a investigação que supõe o mistério, tem como centro Buell Quain, o jovem antropólogo americano que se suicida, em 1939, na selva brasileira entre os índios Krahô, sem explicação. Um humilde e educado sertanejo amigo dos índios escuta o pesquisador norte-americano angustiado e interessado nos mesmos índios, durante nove noites em Carolina, na fronteira do Maranhão com o Tocantins, onde permanece cinco meses. Eu, ele, eles. O sertanejo, o aluno predileto de Franz Boas, os índios brasileiros. América do Norte e América do Sul. Seis anos depois do suicídio de Buell Quain, no final do Estado Novo e da guerra, Manoel Perna, pouco tempo antes da sua morte em 1946, deixa um testamento para um destinatário aguardado desde 1939, desde a véspera da guerra. O passado (a)guardado para o futuro. Sessenta e dois anos depois do suicídio de Buell Quain, pouco antes da eleição de um sindicalista para a presidência, um jornalista fica fascinado com a informação e desencadeia uma investigação nos dois países, Brasil e Estados Unidos, Tocantins e Rio de Janeiro, na véspera de outra guerra. O passado (a)guardado no presente. Seja bem-vindo. Vão lhe dizer que tudo foi muito abrupto e inesperado. Que o suicídio pegou todo mundo de surpresa. Vão lhe dizer muitas coisas. Sei o que espera de mim. E o que deve estar pensando. Mas não me peça o que nunca me deram, o preto no branco, a hora certa. Terá que contar apenas com o imponderável e a precariedade do que agora lhe conto, assim como tive que contar com o relato dos
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índios e a incerteza das traduções do professor Pessoa. As histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de interpretá-las (CARVALHO, 2002, p. 8).
No mesmo ano da publicação de Nove noites, Bernardo Carvalho recebe uma bolsa de criação da Fundação Oriente, de Lisboa, que o leva à Mongólia, viagem que resulta no romance homônimo publicado em 2003. No romance, um narrador em primeira pessoa, um diplomata aposentado que já não tem vontade de sair de casa diante das tragédias e da violência, ao saber da morte num tiroteio no morro do Pavãozinho de um antigo colega, com quem havia trabalhado e se desentendido em função de um incidente inexplicado, em Pequim, lembra das coisas que haviam sido deixadas com ele. Só ao deparar com a morte dele, mais de seis anos depois do incidente, quando de repente me lembrei dos papéis dos papéis que ainda deviam estar comigo, e depois de começar a lê-los, é que me passou pela cabeça que talvez ele não os tivesse esquecido antes de voltar para Xangai, mas que os tivesse deixado de propósito, para mim, como explicação. [...] Virei a noite a ler os papéis, na verdade um diário que ele escreveu na forma de uma longa carta à mulher no Brasil, e que nunca enviou. (CARVALHO, 2003, p. 13-14).
Um diário em que aquele que era chamado de Ocidental pelos mongóis narra (em itálico) no presente a missão que recebeu no passado: sair de Pequim para buscar um brasileiro desparecido, a quem os mongóis chamavam de desajustado. Ao refazer os passos do fotógrafo desaparecido nos desertos e nas estepes dos confins da Mongólia, marcados pelas ruínas dos massacres soviéticos, o Ocidental se depara, por sua vez, com dois diários do desaparecido (entremeados na narrativa com outra fonte), com as informações de dois guias diferentes que acompanharam o rapaz, com as lembranças dos nômades mongóis e cazaques,
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entre os quais a violência parece sempre prestes a explodir. Presente e passado, diferentes pontos de vista, fragmentos de informação, histórias de repressão e violência, culturas diversas que ficam como herança para o futuro. Para minha surpresa, havia dois diários do desaparecido na pasta que encontrei na despensa do meu apartamento, entre tanto papel inútil, depois de ler a notícia da morte do Ocidental. Um dos diários estava completo, e o outro se interrompia no meio. O ocidental os deixara em Pequim ao voltar da Mongólia, junto com outros papéis, provavelmente de propósito, como agora suponho, para que, ao lê-los e compará-los com o que ele mesmo tinha escrito à mulher, eu pudesse por fim montar a imagem do que de fato ocorrera (CARVALHO, 2003, p. 33).
Em 2008, Bernardo Carvalho é convidado a participar de um projeto criado por Rodrigo Teixeira para a Companhia das Letras: a coleção “Amores expressos”, que pretende enviar 17 autores brasileiros para uma estadia de um mês em diferentes países, com o propósito, aparentemente singelo, de escrever uma história de amor e com a obrigação, penosa no caso de Bernardo, de manter um blog durante o período. O resultado da viagem à Rússia, entre Moscou e São Petersburgo, é O filho da mãe, publicado em 2009. Narrado em terceira pessoa, o romance cruza as vozes e os pontos de vista de mães culpadas pela perda, ou ativas na recuperação, de filhos deslocados ou abandonados, de pais ausentes ou tirânicos. Situadas durante a segunda guerra da Tchetchênia e os preparativos para a comemoração dos 300 anos de São Petersburgo, as lembranças levam à primeira guerra da Tchetchênia em 1999, à glasnost de 1983, aos exílios e deportações nas décadas de 1930 e 1940. Nesse romance, em que todos parecem estar fora de lugar, os acontecimentos transitam entre Vladvostok, São Petersburgo, Moscou, Grozni, Mar do Japão e Oiapoque.
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As histórias de amor podem não ter futuro, mas têm sempre passado. É por isso que as pessoas se agarram a tudo o que as remete de volta ao que perderam. Os livros que elas lêem sempre dizem respeito ao passado. Romances históricos, memórias, biografias, tudo tem que ser escrito em retrospectiva, senão não faz sentido. Ninguém quer ler o que está por vir, à beira do abismo (CARVALHO, 2009, p. 186).
Sobre o fundo da guerra constante, desenvolve-se a breve história de amor entre dois jovens: Ruslan, o jovem tchetcheno abandonado logo após o nascimento pela mãe russa, escapa do campo de refugiados para trabalhar na reconstrução de São Petersburgo, onde conhece a mãe depressiva, agora casada com um agente da temível segurança russa e com dois filhos, um deles um skinhead que ataca refugiados, estrangeiros e homossexuais; Andrei, abandonado na adolescência pelo pai que retorna ao Brasil e agora vive do contrabando no Oiapoque depois de longo exílio político na Rússia, sai de casa em Vladvostok, onde morava com a mãe submissa e seu segundo marido, um oficial da marinha cujo navio despeja lixo tóxico na mar do Japão, para servir o exército russo em São Petersburgo, onde consegue auxílio da Associação das Mães de Soldados após a deserção. Uma história de amor sem final feliz, num mundo sem saída, como atesta a carta deixada por Ruslan: Escrevo como o louco que não pode deixar de cantarolar sua ladainha sem sentido, nem que seja para não ouvir o ruído do mundo, falar só, mais alto que o ruído do mundo. Escrevo para o caso de você decidir voltar, para assombrar esta cidade. É a mais artificial de todas as cidades. Em três séculos, tentaram três nomes, em vão. Um nome por século. Construíram trezentas pontes, uma para cada ano, mas nenhuma leva a lugar nenhum. Ninguém nunca vai sair daqui (2009, p. 21-22).
Três romances escritos na primeira década do século XXI, marcados pelas viagens e pela relação com o outro,
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seja na selva brasileira do Xingu e na metrópole de Nova York, nas estepes da Mongólia, nas cidades da China e da Rússia, nas montanhas da Tchetchênia, no violento Rio de Janeiro, na fronteira do Brasil com o Suriname. Narrativas que, além de serem construídas com fragmentos de memória que colocam em convivência tempos diferentes, trazem à nossa memória de leitor uma longa e arraigada tradição: os relatos de viajantes que, deslumbrados com a paisagem e os nativos num momento de alargamento do mundo e de delimitação de fronteiras, introduziram a América Latina no imaginário europeu, como paraíso e como inferno, e que, segundo Flora Süssekind (1990), marcaram profundamente os narradores do nosso romantismo, preocupados com a descrição/documentação da diferença e com a origem da jovem nação que então buscava sua singularidade diante do outro. Escritos que, de diferentes maneiras, num primeiro momento se inserem numa lógica etnocêntrica e hierárquica que, ao enxergar a diferença, busca apagá-las ou igualá-las numa operação narcísica (SANTIAGO, 1982) e que, inseridos numa lógica nacionalista num segundo momento, buscam enfatizá-las. Quinhentos anos depois, um escritor brasileiro faz viagens no sentido contrário, saindo do Brasil. Não um caminho de volta já, que não vai em direção às metrópoles ocidentais, mas em direção ao outro do ocidente, antigos impérios do oriente ou à selva brasileira. Um desconhecido que, poderíamos pensar no início do século XXI, continua sendo o outro para um escritor ocidental e metropolitano de São Paulo, e que continua sendo o mesmo para um autor de um país que se integrou ao sistema mundial como colônia do ocidente. Viagens não mais patrocinadas pela monarquia, pela igreja ou por institutos históricos e geográficos, mas por uma bem-sucedida editora e por uma bolsa de uma fundação cultural da ex-metrópole que tem como objetivo a continuidade e a valorização das relações históricas e culturais entre Portugal e o oriente, como contrapartida imposta pela administração de Macau à concessão de exclusividade da exploração do jogo em
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seu território.6 Viagens não mais num mundo que amplia suas fronteiras e o espaço conhecido, mas num mundo que diminui, como já percebera Jules Verne na segunda metade do século XIX. Relatos não mais preocupados com a diferenciação entre os gêneros, mas com o trânsito que nos leva dos diários às cartas pessoais, dos fragmentos de arquivo e de memória à ficção. Ao mesmo tempo em que trazem para a memória as viagens do início da era moderna e da nossa ideia de mundo, instaurando proximidade e diferença em relação a elas, os três romances de Bernardo Carvalho parecem ainda nos dizer que é impossível escrever hoje sem falar da constante do mundo, sempre diferente: guerra e ruínas. Acontecimentos e experiências de personagens, tempos e espaços diversos se desenrolam entre guerras, guerrilhas, estranhamentos, assaltos, repressão e corrupção. O foco da narrativa, entretanto, não é a descrição dessa paisagem de destruição e o realismo desse contexto bélico, que marca alguns romances contemporâneos preocupados com o realismo da cena, nem a preocupação com a observação e a cientificidade que marcou os primeiros viajantes e naturalistas. Também não é o resgate do passado como conteúdo, como aquilo que aconteceu, como o déjà vu contra o qual Virno nos alerta. A constância da guerra parece ao mesmo tempo natural e terrível, mas o interesse é a maneira como personagens e narradores são afetados por essa violência, como relações são estabelecidas em meio a guerras, como as ruínas fazem parte da experiência e da memória como assombração, como convivências são fabricadas diante do abismo. “Os lugares são as pessoas”, ensina-nos o guia mongol. As guerras, a violência e a polícia marcam o índice do presente e, ao mesmo tempo, a permanência não idêntica do passado, sem explicações, cenas chocantes, banalização, sem moralismo nem pieguice. Mas estão sempre lá, embora sempre diferentes. Diz que gostaria de conhecer o Brasil. Digo que é um país violento. E ele me pergunta: “Mais que a Mongólia?”. Fico
Informações disponíveis em www.foriente.pt. 6
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sem resposta. É a primeira pessoa que me fala abertamente da violência, que está no ar mas é um tabu. Fico com a impressão de que, na paz dessas paisagens despovoadas, a qualquer momento pode explodir a violência mais sangrenta, do atrito entre os indivíduos alterados (CARVALHO, 2003, p. 106-107). É possível que não se dê conta de que terminou por associar o sexo às ruínas e ao risco, à força de tê-lo descoberto em meio a uma guerra, e de buscá-las, as ruínas, sempre que encontra alguém, por ter sido obrigado a reconhecer nelas o cenário reconfortante do lar onde já não há possibilidade de reconforto. Quando não há mais nada, há ainda o sexo e a guerra. O sexo e a guerra são o que todo homem tem em comum, rico ou pobre, educado ou não. O sexo e a guerra não se adquirem. A idéia de uma vulnerabilidade maior que a sua lhe desperta o amor. [...] A guerra os assombra. Como recordação para o ladrão, que precisa fugir do passado, e como ameaça para o recruta, que tenta evitar o futuro. Por um instante, estão juntos no presente (CARVALHO, 2009, p. 139).
O viajante em busca do outro encontra o mesmo. As guerras, a violência e a corrupção que estão sempre lá, no passado e no futuro, também parecem estar em todo lugar, para além das fronteiras e dos estados nacionais, como aquilo que todo homem tem em comum. Uma literatura que poderia ser classificada como cosmopolita, se pensarmos no sentido mais amplo da palavra como aquele viajante interessado em diferentes culturas e no homem para além das fronteiras. Ao mesmo tempo, se recuperarmos a etimologia grega do kosmos e da polis e o sentido estrito de cidadão do mundo, percebemos que, atravessando as três narrativas, grande parte dos personagens está no mundo sem cidadania. Foram lançados no mundo pela guerra, pelas disputas de terra, pela violência dos nacionalismos: deportados, imigrados à força, deslocados, sem estatuto político, sem passaporte – o russo filho de brasileiro recebe o passaporte que lhe permitiria escapar do exército; o refugiado tchetcheno rouba para juntar dinheiro e comprar
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um passaporte; os trabalhadores nordestinos no Suriname têm o passaporte confiscado pelo dono do garimpo; o fotógrafo brasileiro tem o passaporte retido pela polícia da Mongólia; os nômades estão perdidos diante da ameaça de privatização de terras; os índios estão acuados no Xingu, em vias de extinção como os Tsaatan na Mongóllia. O Xingu, em todo caso, ficou guardado na minha memória como a imagem do inferno. Não entendia o que dera na cabeça dos índios para se instalarem lá, o que me parecia de uma burrice incrível, se não um masoquismo e mesmo uma espécie de suicídio. Não pensei mais no assunto até o antropólogo que por fim me levou aos krahô, em agosto de 2001, me esclarecer: “Veja o Xingu. Por que os índios estão lá? Porque foram sendo empurrados, encurralados, foram fugindo até se estabelecerem no lugar mais inóspito e inacessível, o mais terrível para a sua sobrevivência, e ao mesmo tempo a sua única e última condição. O Xingu foi o que lhes restou.” (CARVALHO, 2002, p. 73).
Entre o cidadão do mundo e os sem cidadania no mundo, entre estrangeiro e nacional, entre eu e o outro, as relações vão do etnocentrismo assumido e culpado do jornalista paulista diante dos índios – “Jurei que não me esqueceria deles. E os abandonei, como todos os brancos.” (CARVALHO, 2002, p. 109) –, da hierarquia cultural sem culpa do diplomata brasileiro diante da arte chinesa – “O objetivo é a excelência de uma técnica. Não há a questão da auto-reflexão da arte moderna. Quando ela surge, não passa de um cacoete ou de uma reflexão muito tosca.” (CARVALHO, 2003, p. 30) –, ao ódio racial explícito e violento do adolescente skinhead russo pelo estrangeiro – “Você não se enxerga, seu bunda-preta-filho-da-puta? Que é que você está fazendo na Rússia? Aqui não é seu lugar.” (CARVALHO, 2009, p. 177) –, e à experiência de se sentir no lugar do outro, como o brasileiro que “sente na própria pele os estereótipos” na Mongólia, onde os estrangeiros são vistos como “animais em extinção”.
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Viagens que passam não só pelas experiências das diferenças, mas também pela percepção das semelhanças, que fazem do mundo um lugar sem saída: “Desde que pusera os pés em Pequim, a cidade lhe parecera opressiva e irreal, outra capital do poder, como Brasília ou Washington, que era justamente do que ele vinha tentando escapar.” (CARVALHO, 2003, p. 16); da mesma forma que em São Petersburgo “As avenidas são chamadas de perspectivas. Foram abertas para dar vazão aos desfiles militares e às demonstrações de poder. Não importa se é o czar, o Estado soviético ou a polícia russa quem comanda a marcha. Não há onde se esconder nem para onde fugir. A cidade foi construída para ninguém escapar.” (CARVALHO, 2009, p. 132). Não só as cidades são opressivas, também as religiões: “Autoritária e repressiva, a Igreja budista, como a católica ou qualquer outra, pode ser igualmente moralista e hipócrita em extremo. Por que seriam diferentes do resto dos homens?” (CARVALHO, 2003, p. 58). Diferenças e semelhanças entre o eu e o outro, entre passado e presente, entre ocidente e oriente, num mundo ao mesmo tempo sem saída e excludente construído sobre as ruínas de uma guerra permanente. “A paisagem não se entrega. O que você vê não se fotografa.” (CARVALHO, 2003, p. 41) – “Sonhara que representava o que não podia caber no sonho.” (CARVALHO, 2009, p. 36) – “É preciso adverti-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui.” (CARVALHO, 2002, p. 7). Já não estamos mais no terreno da certeza e do sentido sobre o qual caminhavam os intelectuais até a primeira metade do século XX. Diante da resistência à representação e da ausência de um sentido pressuposto, a literatura de Bernardo Carvalho responde à sua época na simultaneidade de respostas contraditórias, na sobreposição de tempos, memórias e documentos, na alternância de narradores e de narrativas, em que o sentido e a verdade nunca estão dados. É preciso construí-los a cada momento.
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O ocidental os deixara em Pequim ao voltar da Mongólia, junto com os outros papéis, provavelmente de propósito, como agora suponho, para que, ao lê-los e compará-los com o que ele mesmo tinha escrito à mulher, eu pudesse por fim montar a imagem do que de fato acontecera (CARVALHO, 2003, p. 33). Fiz algumas viagens, alguns contatos, e aos poucos fui montando um quebra-cabeças e criando a imagem de quem eu procurava. Muita gente me ajudou. Nada dependeu de mim, mas de uma combinação de acasos e esforços [...] (CARVALHO, 2002, p. 14).
Escritos de vida, de si e do outro, que transbordam as fronteiras espaciais e a cronologia temporal para narrar a história de uma modernidade bélica e autoritária, que se alimenta da exclusão do outro, a história de um estado disciplinador e unificador que, para triunfar, deixa de lado o excesso, o múltiplo, o estranho, o indefinido e se depara com a impossível definição do estrangeiro. Como narrar uma guerra permanente? Como desentranhar o outro do mesmo? Como encontrar o mesmo no outro? A cada repetição da pergunta, uma resposta diferente. Um movimento circular sempre incompleto, que pede sempre mais uma volta. A mesma pergunta, sempre igual, e a resposta nunca a mesma, sempre diferente, definem uma maneira de conceber o tempo e narrar a história. O relato de um certo passado é uma certa resposta do presente que se soma a outras respostas que já foram dadas à pergunta que se repete há muito tempo. Desenterrar o passado e torná-lo visível como presente significa buscar mais de uma resposta para a mesma pergunta, transitar numa zona de indiferenciação entre o real e o imaginário, entre o verídico e o verossímil, suportando o insuportável: a ideia de que a verdade nunca é acessível. E amanhã, ao acordar, faça de novo a mesma pergunta. E depois de amanhã, mais uma vez. Sempre a mesma pergunta. E a cada dia receberá uma resposta diferente. A verdade está perdida entre todas as contradições e os disparates. Quando
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vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja pela suposição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade (CARVALHO, 2002, p.7).
Nesse mundo que parece sem sentido, ou no fim do mundo do sentido, em que as relações não estão dadas, é necessário, “mais do que atribuir sentido ao laço pressuposto, fazer do entrelaçamento o próprio sentido” (NANCY, 1993, p. 163). Uma maneira de ler não só os laços inesperados (os refugiados tchetchenos e os garimpeiros do Suriname), mas também as relações entre narrativas distintas (os índios do Xingu e os nômades da Mongólia), trazendo para o texto a memória da literatura (os relatos dos viajantes). Fabricar convivências do que nunca existiu com o que não mais existe, estabelecer relações, construir artifícios que façam a potência do passado tocar o presente, pensar não o que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido, como já sugeriu Aristóteles, ou ainda, perguntar como isso pode acontecer, pode ser um caminho, entre tantos outros, diante da certeza de que não há certeza. A inclusão excludente e o sem saída do presente – “Ninguém nunca vai sair daqui” –, a assombração permanente da guerra que ignora fronteiras espaciais e temporais e o futuro como o abismo em cuja beirada nos equilibramos explicam, segundo o personagem de O filho da mãe, o “interesse pelo passado”, já que “ninguém quer ler o que está por vir”. Ao mesmo tempo, o narrador do romance afirma que os dois jovens namorados querem permanecer no presente, como forma de fugir da assombração do passado e evitar o abismo do futuro. No precário equilíbrio do presente, entre o passado e o presente, a leitura simultânea das três narrativas de Bernardo Carvalho, no entanto, permite a reflexão sobre a forma-passado da modernidade bélica e colonizadora como o espectro que ronda o presente, como a
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herança à qual devemos responder e da qual não podemos escapar, sob o risco de interpretar o passado como conteúdo real que se repete identicamente no presente e sob o risco de assistir-se viver, fugindo do presente, fechando a história e a possibilidade de amarrar laços e construir outros sentidos. Para sair do tédio da repetição idêntica e responder à ameaça de homogeneização e paralisação na profusão de teorias, a solução não é o retorno a um paraíso perdido no passado de escolhas obrigatórias entre opções duais. A identificação das questões que fazem sentido hoje para uma reflexão, como tarefa política do presente, exige que se permaneça nessa zona de turbulência, entre a recordação do passado como assombração e a ameaça do futuro como abismo, fazendo escolhas instáveis e difíceis, transitando entre a profusão de teorias e a infinidade da literatura, mesmo sabendo que a resposta é sempre diferente e nunca a última.
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O poema refém da teoria e da interpretação: exercícios críticos em torno de Paulo Leminski The poem host of the theory and interpretation: critical exercise around Paulo Leminski Wilberth Salgueiro* resumo:
A ideia é analisar e interpretar alguns poemas de Paulo Leminski à luz de perspectivas críticas e teóricas distintas. Para este feito, apresentam-se múltiplas noções de teoria e de interpretação que, antagônicas ou suplementares, evidenciam a convivência conflituosa de tantas perspectivas. O poema, logo, se faz palco para que cada um de nós, nele, se interprete e deixe ver as máscaras teóricas dos atores que somos: híbridos e lacunares. palavras-chave: poesia, teoria literária, Paulo Leminski, cor-
rentes críticas, interpretação. abstract:
The idea is to examine and interpret some poems by Paulo Leminski under the light of distinct critical and theoretical perspectives. To do so, we present multiple notions on theory and interpretation which, antagonistic or supplementary, highlight the difficult companionship of so many perspectives. The poem, thus, becomes the stage where each of us interprets ourselves and exposes the theoretical masks of the actors we all are: hybrid and lacunal. keywords:
poetry, literary theory, Paulo Leminski, critical currents, interpretation.
Sobre teoria, interpretação, valor Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) / CNPq. *
Teorizar é parte integrante e incontornável de qualquer gesto interpretativo de um leitor diante de um
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poema. Ler, aliás, é já interpretar; portanto, teorizar. Acontece que, pelos cursos de Letras e pelo mundo afora, muitos incautos creem que haja a interpretação correta, a teoria justa, a perspectiva crítica adequada, com frequência por conta da célebre atitude, entre “terrorista” e “teorista”, de pessoas que vivem às custas do “você sabe (com) quem está falando?”. Refiro-me aqui à charge na contracapa de Teoria literária: uma introdução, de Jonathan Culler (1999), em que dois personagens atuam: “Você é um terrorista? Graças a Deus. Entendi Meg dizer que você era um teorista”. A arrogância de quem ocupa algum lugar de poder, seja na universidade ou não, contribui para perpetuar este complexo de vira-lata em alunos e leitores que, coitados, são convencidos de que não sabem interpretar direito porque não dispõem de arsenal teórico, ou bagagem intelectual, nem mediação transdisciplinar, muito menos repertório suficiente para a famigerada, complexa, hermética, quase impossível tarefa de analisar, por exemplo, um poema. Essa situação produz uma série de consequências negativas, desde o ressentimento à indiferença pela arte, passando pelo prazer da ignorância e pelo achismo desbragado, às vezes travestido do vale-tudo interpretativo: “o que eu entendi do poema foi que...” ou “a minha interpretação é...” e pronto. O plano deste ensaio é encenar, às escâncaras, um “olhar de superfície” (um olhar de palco) para alguns poemas do curitibano Paulo Leminski, olhar que desvele o sujeito leitor e ator que sou, múltiplo e híbrido, sim, mas pleno de limites e lacunas que se impõem a cada piscadela. A ideia é adotar, sem medo, a categoria da superfície como positiva, à maneira de Gilles Deleuze ao recorrer, na “Segunda série de paradoxos: dos efeitos de superfície”, a trecho do romance Sexta-feira ou os limbos do Pacífico, de Michel Tournier: Estranho preconceito, contudo, que valoriza cegamente a profundidade em detrimento da superfície e que pretende
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que superficial significa não de vasta dimensão, mas de pouca profundidade, enquanto que profundo significa ao contrário de grande profundidade e não de fraca superfície. E, entretanto, um sentimento como o amor mede-se bem melhor, ao que me parece, se é que pode ser medido, pela importância de sua superfície do que pelo grau de profundidade... (DELEUZE, 1974, p. 142).
O plano, repito, é tão somente deixar ir se constituindo, por poemas de Leminski, um modo de pensar e de atuar diante de um texto poético, o modo que ora é possível, e assim deixar ir se explicitando uma espécie de paideuma a um tempo crítico e teórico. Para chegar aos poemas, entretanto, é necessário antes que o meu repertório se faça ver em seus múltiplos impasses e conflitos. Lido, diante de um poema, com uma noção larga de interpretação, que parte de nietzschianas lições de Foucault: [...] é uma relação mais de violência que de elucidação, a que se estabelece na interpretação. De facto, a interpretação não aclara uma matéria que com o fim de ser interpretada se oferece passivamente; ela necessita apoderar-se, e violentamente, de uma interpretação que está já ali, que deve trucidar, resolver e romper a golpes de martelo (FOUCAULT, 1980, p. 17).
Foucault assinala, por um lado, o caráter de violência como um sintoma parasitário (o que não desgruda) do ato interpretativo e, por outro, o papel imperial do intérprete (o quem) nesse processo. O intérprete será, sempre, um sujeito social, comprometido com situações e valores que vão cercar – por plurais que se mostrem – as fronteiras de um olhar ideológico, sem o que simplesmente o gesto da interpretação se esvazia. Interpretar, por isso, será ferir: interferir. Ato plenamente subjetivo e político, interpretar supõe escolha e coragem: destacar e excluir, estender e ignorar, operar com
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a diferença e o híbrido, dar a cara a tapa e estapear, como faz Roberto Corrêa dos Santos: A interpretação não se encaminha nem para o descritivismo “neutro”, nem para a paráfrase lamuriosa. Não visa tampouco a se debruçar sobre um texto com vista à notícia, à informação, à venda. Não se quer como divulgador rancoroso ou paternal. Não é, pois, similar ao que de mais habitual se faz na Universidade, nem ao que de mais habitual se faz na Imprensa. O que pretende, como uma de suas perversões, é entrar no jogo da escritura, quebrando a passividade de uma leitura que tenda a seguir, sem brincar e sem considerar a ação escritural, um fio unitário de estória cujo desenlace se quer conhecer. A interpretação quer escrever sempre, diferente cada vez que tocar um texto. Como quem toca rasga (SANTOS, 1989, p. 20-21).
Umberto Eco, em Interpretação e superinterpretação (1993), propõe uma tipologia para o ato de interpretar: haveria uma tripla intenção (intentio): a do autor (auctoris), a da obra (operis) e a do leitor (lectoris). O autor de O nome da rosa afirma que a intentio auctoris é muito difícil de descobrir e frequentemente irrelevante para a interpretação de um texto, e que a intentio lectoris, isolada, faz significar aquilo, e apenas aquilo, que interessa a seus propósitos ou que pertence ao seu acanhado círculo de conhecimento (e até de invenção). Eco retoma frase de Valéry – il n’y a pas de vrai sens d’un texte – para desvesti-la de seu caráter (assim o considera) hermético. Passa, então, a investigar a terceira possibilidade: a intentio operis. Se, em última instância, uma interpretação paranoica poderia advogar – com base no princípio da sucessão interminável de analogias: a lógica da similaridade – a favor da radical inapreensibilidade do sentido ou, no extremo oposto, qualquer sentido de que se queira prover o signo, contra ela faz-se imperioso o fortalecimento da interpretação sã, cuidadosa quanto ao imediatismo da relação arbitrária
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entre os signos. Eco especula que relações haveria, por exemplo, entre o advérbio “enquanto” e o substantivo “crocodilo”, excluindo-se a evidente aparição dos dois termos na mesma sentença, lá e aqui: O paranóico não é o indivíduo que percebe que “enquanto” e “crocodilo” aparecem curiosamente no mesmo contexto: o paranóico é o indivíduo que começa a se perguntar quais os motivos misteriosos que me levaram a reunir estas duas palavras em particular. O paranóico vê por baixo de meu exemplo um segredo, ao qual estou aludindo (ECO, 1993, p. 57).
À busca de critérios que distingam a interpretação de seu par próximo e exagerado, a superinterpretação, Umberto Eco vai-se definindo por uma insubstituível dialética entre a intentio operis e a intentio lectoris, uma vez que há uma máquina de produção em mão dupla do texto para o leitor e, naturalmente, do leitor para o texto. Um texto, diz Eco, é basicamente um dispositivo concebido para produzir seu leitor-modelo. Previsto, pois, como parte integrante do próprio texto, capacitado a navegar sobre ele, o leitor-modelo – consubstanciado na figura singular, física, do leitor empírico – se vê autorizado a conjeturar sobre a intentio operis. Um desafio da interpretação, que faz muitos desistirem antes de começar qualquer hipótese de leitura, é a constrangedora situação do “decifra-me ou devoro-te”. O leitor sabe que o poema é, não importa se bom ou mau, um código. E que, queira ou não este leitor, lê-lo é já entrar no jogo da interpretação, da decodificação, mesmo se o audaz aventureiro se entrega à fruição, que jamais existirá em estado puro. A propósito, quantos leitores conseguirão ver a palavra código no poema seguinte, de Augusto de Campos, antes de saber o título da obra – “código” – de 1973? Com que rapidez a decodificação do código se dará?
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“código” (1973), de Augusto de Campos (2010)
Um texto, ainda que não cite outro qualquer, não está só no mundo das coisas, tampouco está só no mundo dos textos. Lírico, concreto, épico, de todo jeito o poema dialoga com seu entorno, e esta é sua riqueza maior: pertencer a uma história e nos lançar nela, cada vez que o tocamos. Mas, vimos, tocar um poema não é algo tão inocente quanto querem ou fingem acreditar. Tocar: rasgar. O senso comum intelectual partilha a noção dicionarizada de paródia como canto paralelo a outro – par ode. Linda Hutcheon vai além em Uma teoria da paródia (1989), salientando que todas as formas de arte e, mesmo, todas as práxis discursivas podem ser parodiadas, independentemente do meio ou gênero, resultando disso o caráter ubíquo da paródia que, assim, se adapta a qualquer dimensão física, desde o Ulysses, de Joyce, a mínimas alterações em uma palavra ou até de uma letra. (No caso do poema de Augusto, parodia-se, pode-se dizer, a própria noção de código, considerada acepção de “sistema de transmissão de mensagens”.) Hutcheon aponta a estreita relação entre a paródia e a intertextualidade ou, usando um termo mais simpático e menos usual, transtextualidade. Para ela, fulcral na definição de paródia é o requisito pragmático e formal que estabelece certos códigos comuns entre o codificador e o decodificador: “se o receptor não reconhece que o texto é uma paródia, neutralizará tanto o seu ethos pragmático
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como a sua estrutura dupla” (HUTCHEON, 1989, p. 39). Acrescenta que o caráter de autorreferencialidade da paródia não elimina as implicações ideológicas, ao contrário do que apregoam alguns teóricos que insistem na sua a-historicidade, mesmo porque não existe um conceito trans-histórico de paródia, conforme atesta a contínua metamorfose das definições em espaços e tempos tão diversos. Se a paródia não é reconhecida em suas alusões e citações, automaticamente vai ser naturalizada e incorporada ao contexto da obra no seu todo. Daí resulta a dependência da estratégia e da funcionalidade da paródia: a coincidência entre os atos codificador e decodificador para que se alcance a plenitude do circuito interpretativo (do texto para o leitor e vice-versa). A paródia, decerto, imita mais a arte que a vida, embora ambas sejam estamentos espiralados, confluentes: “a paródia é normativa na sua identificação com o outro, mas é contestatária na sua necessidade edipiana de distinguir-se do outro anterior” (HUTCHEON, 1989, p. 98). No dizer de Linda Hutcheon, reside nesta ambivalência a tensão entre a repetição conservadora e a diferença revolucionária da paródia. O intertexto seria, pois, mais que a relação heterofágica entre um texto e outro, mas o próprio conjunto textual que os textos envolvidos trazem à memória daquele que movimentou o mecanismo intertextual. Por exemplo: quando aciono os dispositivos “teoria”, “interpretação” e “valor”, uma avalanche de lembranças e de associações dispara em mim e me recorda aquilo – máquina e armazém – que já sou. Meio ao léu, tento não me deixar soterrar e desfio o que vem à tona: “Teoria em grego quer dizer o ser em contemplação”, canta Gilberto Gil em Quanta (1997). Teoria é sempre suplementar, em diferença e perspectívica, para recordar termos caros a Jacques Derrida (1995). Ler um poema é também sempre acrescentar sentido(s) ao já-pronto, cada poema tendo uma técnica própria e irrepetível, tanto quanto o é a técnica de interpretá-lo, para falar com Octavio Paz (1982). Se a
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problemática reside nos limites da interpretação, conforme quer Umberto Eco, a solucionática está – digamos assim – no repertório de cada um, repertório do qual não se pode fugir: somos o que somos, somos leões incorporando carneiros, que se subsumem em nosso espectro cultural, como já apontaram as reflexões de Hans Robert Jauss (1994). Daí, decodificar um texto/poema é entrar no jogo de sua construção (enquanto – no mesmo ato – o leitor-ator se reconhece). Para essa decodificação, tal leitor deve considerar, pensando no aumento do prazer estético, o máximo de forças possíveis, desde a história da sua produção (passando por motivações ideológicas, pelos estilemas e mesmo por informações biografizantes), como pratica Barthes em Roland Barthes por Roland Barthes (1977), até a investigação das entranhas dos poemas, seus mecanismos internos de funcionamento, em que se fundem a palavra, a imagem e a sonoridade, para ficar na tríade logofanomelopaica de Ezra Pound (1977). As entranhas, não as entrelinhas, diria e disse a poeta e crítica Ana Cristina Cesar (1993). Para enfrentar o poema, pede-se uma atitude lúdica, como quem tem um pênalti a converter: sem preconceito, medo, pedantismo, arrogância ou ódio. Com “olhos livres” à maneira de Oswald, com alegria, naturalidade, pesquisa, malícia e prazer. Assim, torna-se gostoso e nobre ser não um “terrorista”, mas um “teorista”: curtir o poema, isto é, prepará-lo para o delicioso deleite do sentir pensando: o mel do melhor, na expressão supimpa do baiano Waly Salomão (2001). Não existe uma tábua de valores previamente definida, muito menos consenso entre estudiosos e diletantes, tampouco entre críticos e poetas, e menos ainda entre críticos & críticos e entre poetas & poetas, para mensurar o que é um bom ou um mau poema: o que é o Belo, enfim. Desde Platão e Aristóteles, a pergunta se refaz, porque a história se metamorfoseia sem parar. Para se nortear um pouco, e largar o lugar às vezes cômodo da deriva, o que faz o crítico? Critérios, o crítico cria critérios.
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Quando Stéphane Mallarmé disse ao amigo pintor Edgar Degas que um poema se fazia com palavras e não com ideias, ele estava tocando numa das mais delicadas questões estéticas (e, portanto, poéticas): a questão do valor. Porque ideias todos têm, mas a execução delas é que é o busílis, o problema, o impasse cuja solução é a dor e a delícia de todo escritor. Ninguém aprende a língua lendo, tão somente, gramáticas. De modo similar, ninguém vira poeta lendo teoria literária. Mas os poetas, em geral, não só não leem teoria alguma, como também não leem poesia nenhuma ou muito pouca. Querem escrever – e a glória instantânea. Ora, o parâmetro primeiro da poesia presente é a poesia feita, e refeita, há tempos. (Tradição é valor, sim, que se acumula à moda antropofágica: a gema da comida fica no corpo, a casca se assopra.) Daí a imensa massa de poemas e poetas requentados, distantes de versos requintados. Mais do que mero trocadilho retórico, a “dialética” entre o requentado e o requintado serve também para ilustrar certas atitudes de professores e afins que, no afã de parecerem complexos, são mesmo confusos. Entender o valor de uma coisa é tentar entender a coisa diante de um mundo de medições e de ângulos. Isso vale para um poema e para um ensaio. Criticar, recorde-se a etimologia, é julgar. Mas o que julgamos ao ler um poema? Julgamos tudo: tudo aquilo que podemos, conforme nosso repertório, julgar. Não há uma tabela congelada, fixa, felizmente, em que se basear para a valoração. O valor é uma espécie de paladar a partir do qual sujeito e mundo se relacionam. Uma relação incessantemente instável e errante. O gosto muda. Na análise de cada obra, pode-se privilegiar um aspecto estruturante (sonoro, mórfico, sintático, etc.), sabendo da indissociabilidade deles, e os modos de funcionamento do poema: a linguagem de que se compõe, o corte dos versos, os estilemas, se o poema tem forma fixa e por que razão, seus traços ideológicos, seu lugar no livro e o lugar do livro na obra do autor, e o lugar do autor na literatura de
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seu tempo e de outrora. Há poemas que funcionam bem em certos contextos e em outros não (compare-se um soneto árcade a um poema-piada marginal). Há tribos, panelinhas, peneiras, academias. O valor simbólico da assinatura conta antes mesmo de qualquer suposto valor estético: quantos poetas podem explicar que, “Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou” (DRUMMOND, 1992, p. 33)? A crítica e a teoria literária em geral têm um pouco essa função de desentortar versos e ouvidos, esforçandose para mostrar os mil lados da moeda, do verso torto ao ouvido mouco. Para o exercício prático dessas considerações em torno dos conceitos de teoria, interpretação, valor, paródia e outros próximos, passo à leitura de quatro poemas de Paulo Leminski. O poema é o palco; nós, atores – intérpretes. Para dar ideia da diversidade que caracteriza o olhar crítico-teórico, o jogo proposto é abordar os versos de modo variado, indicando possíveis desdobramentos analíticos, ora por meio das ditas correntes críticas, ora por meio de disciplinas e saberes afins à teoria literária.
Poema 1 de Paulo Leminski (à luz da transdisciplinaridade e de correntes críticas) Então, sem delongas, um primeiro poema de Leminski: isso sim me assombra e deslumbra como é que o som penetra na sombra e a pena sai da penumbra? (LEMINSKI, 1991, p. 77)
De imediato, assoma no poema o esquema rítmico entre as sílabas átonas e tônicas, a alternância entre os ritmos binário e ternário, a tensão entre o claro-escuro, mas sobretudo, no estrato fônico, o fantástico e básico recurso de assonâncias e aliterações – que reiteram e antecipam na sibilância do /s/ o movimento reverberativo da
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palavra “som”. O jogo de ocultar-esconder se radicaliza na sequência “pena”, “penetra”, “penumbra”. Tudo isso, em síntese, funciona como uma aproximação, via estilística, ao poema. Com este auxílio, podemos explicar por que o poema tem como meta falar de si mesmo, intransitivamente, com a “pena” sendo o signo que se desdobra em “dor” e “escrita” – ambas só podendo vir, vindo de um poeta (e não de um burocrata), da “penumbra” que as produz (pois que incorpora a palavra-pena e a dá à luz). Pena, pois, e penumbra se irmanam, como, antes, o som e a sombra. Podemos avançar a pesquisa e, por exemplo, detectar oxímoros e quiasmos barrocodélicos, para recuperar expressão feliz de Haroldo de Campos (1992), em “assombra / deslumbra” (escuro / luz), e em “som / sombra” (barulho / silêncio). Essa imersão no poema, na sua maquinaria interna, supõe um exercício de close reading, termo caro ao New Criticism. Se, mais ousadamente, nos propusermos a estender o sentido do “penetra” para o campo da sexualidade, explorando nesse caso a “pena” como símbolo fálico e “penumbra” como metáfora da genitália feminina, poderemos então enveredar – com o bom senso que, ao cabo, sempre se recomenda – pelas sendas da psicanálise, “escutando” no poema os ecos de uma erótica verbal que faz os vocábulos se friccionarem e, de fato, se penetrarem, mimetizando na linguagem poética o movimento que as línguas e os corpos sexualmente realizam. Aqui, seria de bom-tom lembrar que ressoa pelo poema a forma-ideia de pênis, que, no latim penis, significa “pincel”, tão fálico e símbolo criador quanto a verticalidade da “pena” e de toda etimologia que “penetra” pelas palavras em gozo. Mais um passo e estamos no reino da filosofia, perscrutando se o que há de racional e lógico na mistura de elementos díspares não é senão a própria inauguralidade da linguagem (HEIDEGGER, 1997; WITTGENSTEIN, 1994). Aí, lembraríamos, quiçá, o que já disse o formalismo russo ao mostrar que arte é estranhamento, desautomati-
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zação: ruptura com os padrões estéticos e com a previsibilidade do senso comum (CHKLOVSKI, 1976). Com o amparo agora da biografia, poderíamos informar que o terceto em pauta foi publicado em livro póstumo, chamado La vie en close, de 1991, cujos poemas foram, pouco antes, selecionados pelo poeta com a companhia de Alice Ruiz, que diz na orelha: “Esses poemas, mais que quaisquer outros, estão cheios de noites e madrugadas adentro. Cheios de uma dor tão elegante que é capaz de nos fazer rir, apesar de tudo. Cheios de dias na vida de uma luz”. Doente, radical, desmedido, cirrótico, o poeta – quem sabe – tentava extrair do espanto da morte próxima fachos de luz e força na pulsão de criar. Tudo isso – estilística, new criticism, psicanálise, filosofia, formalismo russo, biografia – vai para o cadinho destemperado da teoria e da crítica literárias. Mas como provas apenas de uma salada: porções que se ligam para, em conjunto, satisfazer mais plenamente os sentidos.
Poema 2 de Paulo Leminski (à luz do foco histórico) Um outro poema se apresenta: ameixas ame-as ou deixe-as (LEMINSKI, 1983, p. 91)
Publicado em 1981 (Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase), o poema pede, em primeira instância, um despojar-se da grandiloquência, ao colocar chistosamente num pedestal algo tão sem importância vital – ameixas. Para provocar o tal estranhamento formalista, o chiste bastaria, com seus efeitos de condensação e deslocamento (FREUD, 1977). Um leitor aventureiro – “Quando me ponho a fantasiar a imagem de um leitor perfeito, sempre ela se configura como um prodígio de coragem e de curio-
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sidade, e, além disso, de agilidade astuciosa, um prudente aventureiro e descobridor nato.” (NIETZSCHE, 1984, p. 78) – desconfiaria de tão referencial mensagem, e iria à cata de outras funções ali fervilhando, decerto as funções poética e metalinguística (JAKOBSON, 1975). O leitor curioso, mais velho ou bem-informado, acabaria se lembrando ou descobrindo tratar-se o poema de uma bem-humorada paródia sobre os negros anos da ditadura, quando o governo militar divulgou por todos os rincões o slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”, que nutriu de ilusão e má-fé toda uma geração. Reduzido, por analogia, a uma ameixa, o país se perde na plenipotência da arrogância e da propaganda enganosa, ao produzir retoricamente um discurso midiático de acusação, chamando os exilados (e, por extensão, os presos e assassinados pelo regime) de “traidores” e “subversivos”. Basicamente, pois, depreende-se que o poema de Leminski se sustenta numa rearticulação fonomorfossintática da linguagem que surpreende ao resgatar, parodicamente, uma memória imposta pela oficialidade militar de um regime violento e opressor. Na aparente despretensão da sátira, o verbo poético corrói, com graça e via alegoria, a soberba de um poder armado, poder sem alegria. Destronam-se os nossos obscurantistas déspotas, substituídos pela figura “inferior”, cômica e algo absurda, da ameixa – fruta não autóctone e, cúmulo da paródia que reescreve a história, também, na gíria policialesca, bala de arma de fogo. Ganha, nessa acepção bélica, sentido totalmente diferente: “ameixas / ame-as / ou deixe-as”: o poema parece dizer, sob a capa chistosa, de uma história dividida entre os que querem a guerra (e aqui se obnubila a diferença esquerda / direita) e os que não. É o tipo de poema que nos incita a rever a memória pátria, sem ufanismos tolos ou xenofobias tacanhas (SALGUEIRO, 2007b). Assim, sob os auspícios da lírica que fratura o conformismo social, podemos revisitar décadas passadas sob o olhar da história, da sociologia, da economia, das ciências sociais, da antropologia e áreas
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afins, sob a orientação, por exemplo, da teoria crítica de Walter Benjamin (1987) e de Adorno (2003), de um lado, resgatando o olhar dos vencidos e questionando os valores pasteurizantes da indústria cultural, e de Alfredo Bosi (1990) e de Antonio Candido (1995), de outro, pensando numa sociedade em que a poesia é resistência, e a literatura, um direito de todos.
Poema 3 de Paulo Leminski (à luz da perspectiva testemunhal) Leminski, um dia, disse: lua à vista brilhavas assim sobre auschwitz? (LEMINSKI, 1987, p. 129)
Com sete palavras e uma interrogação, num formato semelhante a um haicai, o poeta relembra, via verso, a assombrosa catástrofe que foi a Segunda Guerra Mundial, sobretudo, mas não só, quanto ao genocídio dos judeus promovido por Hitler e sua comparsaria, com fúria na década de 40 do século XX, embora os campos de concentração existissem desde os anos 1930. A perspectiva do texto com teor testemunhal é, por excelência, a da vítima – aquele que sofreu diretamente a ação nefasta de alguma ordem. Já de saída percebemos o estranhamento que nos provoca o haicai: o sujeito que o assina não esteve em Auschwitz, esse símbolo-mor da selvageria sublunar. Isso – não ser uma testemunha original, mas um terceiro – tiraria sua legitimidade ética? (A legitimidade poética, evidentemente, está resguardada, posto que esta se alimenta da imaginação coerentemente construída em suporte verbal, não da experiência que se intenta mimetizar.) Não teríamos, com o poema de Leminski, um curioso caso de “trauma secundário”, ou seja, a incorporação afetiva de um sentimento produzido a partir da traumática história de
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outros, com os quais, de algum modo, nos identificamos? (SALGUEIRO, 2007b). Também para os que viemos depois da guerra, a sensação de sobreviventes se estende, como se pertencêssemos a uma comunidade real de sobreviventes do morticínio. Talvez a relação que o poeta queira travar com o trauma seja no sentido de enfraquecê-lo, diluí-lo aos poucos, fazendo da existência concreta do tal trauma o mote para a construção de instituições, comportamentos, forças que prezem pela justiça. Considero a pequena pílula de Leminski uma espécie sui generis de literatura de testemunho: basta para tanto a imagem central e contundente do poema, que – ao perguntar à Lua se seu brilho é o mesmo sempre, independentemente das situações e dos valores que, de longe, ilumina – abala qualquer pretensa neutralidade do artefato poético. A universalidade do horror parece impregnar a aparentemente leve estrutura do poema de apenas onze sílabas e sem título. Mesmo décadas depois, tendo nascido apenas um ano antes do término da guerra, em 1944; mesmo num país, distante da Alemanha e da Europa, encravado noutro continente e com agruras próprias; mesmo sem nunca ter colocado os pés na Polônia, região onde se encontra Auschwitz e de onde, com orgulho, gostava de dizer, provinham suas origens, o poeta dispõe o que tem para perquirir a história: palavras arranjadas. Entendemos que, aqui, a Lua – além de sua literalidade fanopeica: satélite a brilhar – ocupa, metonimicamente, o próprio papel da poesia. (Por extensão, poder-se-ia dizer que, representando a poesia, a Lua representaria igualmente o poeta, cidadão que, como todos, envolve-se nos redemoinhos da vida.) Desse impasse – a irredutibilidade de a poesia “acontecer” sem compromisso com mais nada a não ser consigo mesma versus a imperiosidade de exercer função social relevante no sentido de atuar em direção à justiça no mundo; em síntese, o caráter autotélico da poesia diante da urgência da ação ética –, desse impasse, dizíamos, deriva a célebre afirmação de Adorno: “Escrever um poema após Auschwitz é um ato de barbárie, e isso corrói
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até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas” (1998, p. 26). Pode parecer estranho, à primeira vista, mas a Lua é, a seu modo, um mito. Por um processo algo esdrúxulo de personificação, a Lua atravessa séculos e séculos no nosso imaginário ocidental como um modelo bastante heroicizado: bela, misteriosa, inatingível, inspiradora, poderosa, em muito semelhante a um cavaleiro homérico ou bretão. A Lua cheia, em especial, suposto “personagem” do poema leminskiano, multiplica para si esses atributos mitificadores. Até, praticamente, o século XX, com a plena desromantização – no discurso poético – de certos clichês, a Lua rivalizou com flores, mar, nuvens, pássaros, ondas, olhos, coração, etc., entre os signos que mais encharcaram o estro dos poetas. Sem temor, pode-se mesmo afirmar que, ainda hoje, a Lua cheia paira, monstruosa, imperial, sobre a imaginação massiva do senso comum. Há, hoje, farto material sobre Auschwitz: “do ponto de vista do historiador, o que está em questão com o Holocausto, com Auschwitz, não é a morte individual, que pode ser contada pela memória individual, mas o genocídio de um povo executado por um Estado moderno no coração da Europa em pleno século XX” (CYTRYNOWICZ, 2003, p. 133). Avançar, especificamente, nos porquês de tamanha catástrofe não nos cabe aqui. Mas vale indagar as motivações pessoais que levaram Leminski a inquirir a Lua, fazendo oscilar seu embolorado lugar de modelo poético, e a selecionar esse evento-limite como exemplo de injustiça e desumanidade. A escolha de “auschwitz” atende, para este intérprete, a pelo menos três demandas distintas: a) ética, porque evoca – para que não se esqueça – a sombria lembrança do genocídio, do Holocausto, da Shoah; b) autobiográfica, porque evoca um lugar próximo a Narájow, na Polônia, supostamente onde nasceu o avô paterno do poeta; c) estética, porque é palavra que se encaixa, clara e enigmática, no corpo do poema: exatamente porque estranha e estrangeira, de imediato provoca o leitor que não domine
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o alemão: será “Áux/vitz”?, “Áux/uitz”?, será “aux/Vitz”?, “aux/Uitz”? Entrando no traiçoeiro terreno do “se”, perguntamonos: e “se” em vez de “auschwitz” tivéssemos, por exemplo, “lua à vista / brilhavas assim / sobre hiroshima?” – ou, ainda, “lua à vista / brilhavas assim / sobre os incas?” –, isso mudaria alguma coisa? Sim, mudaria, mas não paremos para analisar um poema inexistente. Se, em vez de “Auschwitz”, tivéssemos “Hiroshima” ou “Incas”, a especificidade histórica da denúncia ganharia novo foco: a bomba com que os americanos mataram milhares de japoneses instantaneamente e ainda anos e décadas depois, ou a carnificina que, há séculos, os espanhóis impuseram, sem piedade, à civilização inca, matando milhões (!) de índios. Para uma versão que se voltasse para a colonização portuguesa, teríamos: “lua à vista / brilhavas assim / sobre os tupis?” (e, rimas à parte, sobre tupinambás, aimorés, goitacazes, tabajaras...).
Poema 4 de Paulo Leminski (à luz da crítica literária tout court) Um quarto e último poema de Leminski vem para fechar este exercício de leituras, em que o que se pretende, repito, é explicitar o papel de palco para o poema e de intérprete para o leitor. Óbvia que seja a constatação, no entanto o que comumente se vê é certa insistência no caráter normativo, propedêutico, unívoco e hierárquico do gesto teórico de interpretar. Poemas e palcos, intérpretes e leitores mudam, redemoinham, incessantemente. Se os reinos da Verdade, do Centro e da Origem foram postos na berlinda (NASCIMENTO, 1999), o fato é que, na prática cotidiana, certos professores se querem os donos intransitivos do discurso, colocando incautos alunos num aterrorizante fogo cruzado e querendo impor hierarquias onde há pluralidade. A ideia de elaborar leituras – acerca de poemas do mesmo poeta – que têm como suporte teórico distintas perspectivas é para evidenciar o trivial: o leitor
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é um intérprete e, como tal, dispõe de técnicas e recursos que vai alterando ao bel-prazer e arbítrio. O poema é uma invenção reinventada pelo leitor – mutatis mutandis, a teoria e as teorias (literárias ou não) são reinventadas pelos teóricos de toda espécie. Eis o derradeiro poema:
um dia a gente ia ser homero a obra nada menos que uma ilíada
depois a barra pesando dava pra ser aí um rimbaud um ungaretti um fernando pessoa qualquer um lorca um éluard um ginsberg
por fim acabamos o pequeno poeta de província que sempre fomos por trás de tantas máscaras que o tempo tratou como a flores (LEMINSKI, 1983, p. 50)
Falecido de cirrose em 1989, aos 44 anos, em plena força poética, após uma vida turbulenta em que contam o suicídio do irmão e a morte do filho pequeno, a fama de beberrão e polemista, poliglota e intempestivo, mundano e seminarista, mulherengo e multiescritor, o poeta curitibano angariou lugar de destaque na revisão que o crítico Alfredo Bosi realizou de seu monumental História concisa da literatura brasileira: “Leminski tentou criar não só uma escrita, mas uma antropologia poética pela qual a aposta no acaso e nas técnicas ultramodernas de comunicação não inibisse o apelo a uma utopia comunitária” (BOSI, 1994, p. 487). O poema acima, sem título, é um poema sobre o tempo, é uma poética e é um modo de encarar a vida (SALGUEIRO, 2007b). Vindo a público em 1980 no livro Polonaises, traz indeléveis marcas da poesia marginal: versos
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brancos e livres; ausência de simetrias evidentes; nomes próprios grafados com letra minúscula (homero, ilíada, rimbaud); linguagem coloquial e oralizante (“a gente”, “a barra pesando”, “dava pra ser aí”); aparente espontaneidade; subjetividade plena exposta ao mundo; junção de arte e vida que caracterizou o período; etc. Pelos versos aparentemente relaxados, o poema de Leminski perfaz um caprichado jogo de associações sonoras. Por extensão, esses sons sutilmente disseminados chamam a atenção para os sentidos que se cruzam. O famigerado aleatório do marginal dá lugar ao arbitrado do artífice. Desnudando, a posteriori, a composição de seu monumental “O corvo”, Edgar Allan Poe diz que a brevidade deve estar na razão direta da intensidade do efeito pretendido, e isto com uma condição, a de que certo grau de duração é exigido, absolutamente, para a produção de qualquer efeito. [...] Encarando, então, a Beleza como a minha província, minha seguinte questão se referia ao tom de sua mais alta manifestação, e todas as experiências têm demonstrado que esse tom é o da tristeza. A beleza de qualquer espécie, em seu desenvolvimento supremo, invariavelmente provoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons poéticos (POE, 1967, p. 597).
Contrariando o próprio tom com que se tornou conhecido, Leminski, nesse poema, abandona o humor em que é mestre – e tipifica a geração marginal – e adentra o espaço poético buscando a beleza da melancolia, por meio de efeitos de curta e contínua duração. Esses efeitos se produzem por uma série de artimanhas, de que o engenho sonoro constitui apenas um exemplo. Ao lado e além, portanto, da trama sonora (que, contudo, também constitui e antecipa sentidos), o poema se estrutura em torno de alguns paralelismos, dos quais fixaremos três: a marcação temporal, o jogo das máscaras, o totem poético. À maneira do enigma da esfinge, o poema parece parodiar as fases da vida: a criança, com suas quatro patas a
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engatinhar e querer o impossível (a “ilíada”, na 1ª estrofe); o adulto bípede, vacilando ainda diante de opções efetivas e afetivas (2ª estrofe); o velho, maltratado pelo tempo, com o apoio da bengala, já sem a ilusão do viço temporário das flores (3ª estrofe). O poema funciona como uma espécie de autodecifração, em que o poeta é a própria esfinge. Ao começar cada segmento pelas expressões adverbiais “um dia /// depois /// por fim”, todas dissílabas (o que colabora para a intenção paralelística), pode o poema também apontar a própria passagem da representação literária, supostamente inaugurada pelo grego Homero, época de mitos e de heróis (estrofe 1), chegando à modernidade histórica de Rimbaud, Ungaretti, Pessoa, Lorca, Éluard, Ginsberg – época de aventuras radicalmente solitárias (estrofe 2), até desaguar na província da experiência particular, finita, sem aura, chapada, do mundo pós-moderno (última estrofe). Ressalta no poema o que chamo jogo de máscaras. Em busca de uma personalidade que o diferencie, o poeta efebo e ousado elege modelos altos e canônicos para se mirar: nada menos que Homero (BLOOM, 1991). Como faces que se superpõem em palimpsesto, mais maduro, o poeta parte para experimentar linguagens novas e descobre a multiplicidade delas. Como num retrato a Dorian Gray, o poeta descobre, ao fim, que seu tempo e seu rosto são um só. Suas rugas incluem as rugas alheias. E, a despeito de tudo, “por trás de tantas máscaras”, estava ali o seu corpo – a fenecer, como todos os outros. O poema de Leminski (lírico, sim!), no entanto, não fala literalmente a partir de um “eu” singular, mas de um “eu” que se inclui em “a gente ia” (3ª p. sg.) e em “acabamos /// fomos” (1ª p. pl.), indicando, quiçá, mais que a particularidade do problema, a sua universalidade iniludível. Acompanhando todo esse movimento, a cada momento um objeto simboliza o estar-aí do sujeito: ora a quimera da Grande Obra, a Ilíada; ora a multifacetação vigorosa do “qualquer”; ora as “flores”, imagem a lembrar o passado próximo e o presente que se despetala em ruína.
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Esses totens poéticos figuram desejos que, com o tempo, se transmutam. O “fim” se une circularmente ao “dia”, como a província vem da pólis grega, numa roda algo trágica que o poema gira aos nossos olhos. Um paradoxo se instala: ao celebrar a finitude e o efêmero, em tom menor, a obra exatamente não se lhes escapa? Basta apenas um toque para que se dê a trapaça final no tempo. E esse toque somos nós, os leitores, tão transitórios e lacunares quanto o poeta. O paradoxo, então, é que a própria existência do poema é a prova contrária do que afirma, pois o poema – qualquer poema – perdura para além de si mesmo, no gesto vivificante de quem o toca. O poema se escreve para resistir, e por amar a vida. O leitor, flor que não cessa, realiza-se (repetindo o poema) único e inconfundível. Porque, em suma, nenhum leitor é igual a outro, também o poema jamais será um mesmo.
Concluindo com um minimanifesto Reiteramos que nosso propósito não é fugir ao desafio (teórico) da valoração. Como diz Compagnon, o “valor literário não pode ser fundamentado teoricamente: é um limite da teoria, não da literatura” (2001, p. 229). O Belo, como a vida, não tem fórmula nem autoevidências apriorísticas. No entanto, estamos a todo tempo atribuindo e inventando valores para tudo: textos, coisas, pessoas, sentimentos, etc. Se nós mesmos, leitores intérpretes, a cada vez que nos dedicamos a um poema agimos de modo diferente, acionando saberes e teorias díspares, muitas vezes lado a lado, como conter a exuberância da diversidade teórica de infinitos leitores, distantes no tempo e no espaço, nos costumes, na cultura, no repertório? Se é natural que a diferença e a assimetria sejam hegemônicas, por que alguns insistem tanto em se tornar os porta-vozes da verdade, terroristas da teoria? Sim, por vezes, há forças nem tão ocultas e interesses demasiadamente vis, que escapam, contudo, ao alcance deste ensaio, que defende e pratica
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uma teoria das teorias: interpretar um texto é deixar que ele afete e movimente a maquinaria que me compõe e que vai recompô-lo, sem culpa nem complexo. Na lida com o objeto estético (em particular, aqui, com o poema), um crítico deve estar atento, em síntese, ao pensar uma obra, a cada um dos itens seguintes – e a todos eles simultaneamente: a) quanto à língua: adequação formal e entre tom e tema; b) quanto ao lugar da criação: conhecimento da tradição e do contexto literário e poético em que se insere; c) quanto à criação especificamente: utilização dos recursos sonoros, imagéticos, visuais, verbais, presença ou ausência de estereótipos (de ordem linguística, ideológica, filosófica), noção de eu lírico, imprevisibilidade e complexidade da construção poemática. Naturalmente, um item ou outro apenas não será suficiente para a circunscrição do valor de uma obra, mesmo porque há graus de adequação, de conhecimento, de perícia, de imprevisibilidade, etc. Cada obra, a despeito de sua avaliação positiva ou negativa por parte do leitor, tem uma técnica única, cabendo à crítica o esforço de resgatar a construção por que tal obra passou. Assim, pensando no debate que se trava em torno da multiplicidade e dos impasses da teoria literária contemporânea, em especial no que tange às noções de valor e de interpretação, lanço um minimanifesto com dez princípios em prol de uma crítica criadora: 1. Uma crítica criadora será sempre metateórica, posto que deverá ter a consciência do espaço de onde fala (mesmo que, e por isso, não explicite tal consciência). 2. Sendo metateórica, deverá ser menos contemplativa e mais operacional, no sentido de interferir naquilo que toca. 3. Esse toque, no entanto, terá a marca do afeto, que, em suas máscaras, pode se declarar erótico, alegre, hedônico. 4. A sintaxe há de variar entre a calma e a velocidade – um tempo em que não se tagarela. 5. A crítica criadora luta, ainda que em vão, contra o estereótipo. O estereótipo é o nosso monstro, que gruda em tudo, com suas garras totalitárias. 6. Como estratégia, a crítica criadora dramatiza a escrita. Com afeto, se disse, mas sem
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afetação (sem demasiada afetação). 7. Com natural firmeza, deve detectar os tentáculos ilusionistas da verdade, do uno, da presunção, da condescendência – para ignorá-los. 8. A criação crítica entrega-se, por intrincada que seja, ao leitor, porque dele vive, sanguinária. 9. Sob o risco da incompreensão pública, a crítica criadora opta pela superficialidade. 10. Esta crítica prescinde do tradicional início-meio-fim, travestido às vezes de introdução-desenvolvimentoconclusão. Mais se mostra como fluxo, jorro. Esses são princípios que, se posso, exerço, nos ensaios que faço.
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Quem mexeu no meu texto? Observações sobre Literatura e sua adaptação para outros suportes textuais Alvaro Luiz Hattnher*
resumo: O conceito de “adaptação” tem sido moeda corrente na
circulação teórica associada a textos não canônicos, em especial ao binômio literatura/cinema. Este trabalho pretende rediscutir alguns aspectos relativos à relevância e operacionalidade desse conceito para os estudos comparados de estruturas narrativas em diversos suportes, tais como textos literários em suporte convencional, narrativas gráficas, narrativas cinematográficas e narrativas lúdicas interativas. palavras-chave: adaptação, cinema, narratologia, narrativas
não canônicas, transmidialidade; abstract: The development in recent years of different media
Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de Cultura Norte-Americana e Literatura Norte-Americana no Departamento de Letras Modernas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de São José do Rio Preto. *
formats has boosted the consumption of narratives, generating a ‘narrative hunger’. Audiences have increasingly looked forward to absorb new and old narratives, and ‘adaptation’ has become a key operational concept to describe processes involved in the transformation of texts. Thus, our discussion will be centered around a few theoretical propositions on adaptation and appropriation in various textual architectures. Although relevant to the debate, literary canonical texts will not be the primary focus. Non-canonical texts will be used to re-visit concepts such as narrativization, intertextuality and transmediality and also to elaborate some ideas on interactivity and multimedia crossover. adaptation, cinema, transmedial narratology, noncanonic narratives. keywords:
Nos últimos quarenta anos, as fronteiras da Literatura Comparada foram completamente remodeladas, em um sentido que aponta de forma constante para uma ampliação
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das possibilidades de estudos que adotam o comparatismo como método. Nesse sentido, uma das proposições contidas no célebre “Relatório Bernheimer”, de 1993, apresentava a importante ideia de que os fenômenos literários não seriam mais o enfoque exclusivo da disciplina. Na prática, essa proposição representa a necessidade de redefinição e remapeamento da área, processo no qual é abordada, de maneira crítica, a própria noção de interdisciplinaridade, na medida em que as disciplinas são historicamente projetadas a fim de dividir o campo de conhecimento em territórios controláveis de habilidade profissional. Os comparatistas, conhecidos por sua propensão a passar de uma disciplina para outra, agora possuem maiores oportunidades para teorizar a natureza das fronteiras a serem cruzadas e para participar de seu remapeamento (BERNHEIMER, 1995, p. 42-43).
De fato, esse remapeamento tem sido, em grande medida, motivado pela ampliação dos estudos sobre intermedialidades e das pesquisas específicas em teorias da adaptação. A multiplicidade de formas e suportes em que o “literário” tem se apresentado e a velocidade de sua disseminação entre o público receptor/consumidor têm gerado uma instabilidade de conceitos e abordagens extremamente produtiva para as investigações baseadas em comparatismo. O termo “adaptação” vem sendo usado genericamente em diversas áreas para descrever operações de transformação de textos, entendidos, por um prisma pós-moderno, não só como materiais escritos, mas também como qualquer tentativa de representação em qualquer tipo de suporte. Assim, falamos em adaptação de um romance para um filme, de um romance para uma peça teatral, de um romance para uma narrativa gráfica, e assim por diante. A repetição da palavra “romance” nessa enumeração de possibilidades que acabei de fazer não é fortuita: ela se refere a uma concepção de adaptação em que o vetor
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do processo de transformação se dá, necessariamente, de um texto literário para qualquer outro suporte. Não é por acaso que uma das primeiras obras teóricas a tratar do assunto chamava-se Novels into film, de George Bluestone, publicada em 1957. Nessa obra, até hoje relevante para qualquer estudioso do tema, Bluestone analisa alguns romances, como Wuthering heights, The grapes of wrath, Pride and prejudice e Madame Bovary, e suas transformações em filme, interessado principalmente nas alterações do texto “original”, quando comparado tanto ao roteiro do filme quanto ao próprio filme-adaptação. Bluestone é apenas um nome entre diversos autores que estudam as questões de adaptação com o vetor texto literário filme. Em certa medida, esse direcionamento preferencial nos estudos de adaptação parece expressar uma convicção de superioridade de um suporte sobre o outro. Segundo Robert Stam (2000), a suposição da superioridade da arte literária em relação ao filme deriva de diversos preconceitos superpostos: primazia, a suposição de que as artes mais antigas são necessariamente melhores; iconofobia, as artes visuais são necessariamente inferiores às artes verbais (noção que remontaria às proibições judaico-islâmico-protestantes associadas às “imagens gravadas”); logofilia, a valorização da “palavra sagrada”. Assim, toda passagem de um texto literário (especialmente os ditos canônicos) para um outro suporte só poderia se concretizar de maneira inócua por meio da manutenção de “fidelidade” no processo de adaptação. Dessa forma, a valoração das adaptações há muito tem sido feita pela escala de “mais fiel - menos fiel”, na qual, obviamente, a maior fidelidade de um filme à sua obra original implicaria um reconhecimento positivo por parte do analista e, sem dúvida, pelo próprio público leitor. O grande público, em particular, parece ser a principal instância na qual se elaboram avaliações que primam pelo desejo de fidelidade. Os leitores de um determinado romance não gostam que mexam em seu texto, e, se isso tem de acontecer, o processo deve implicar um número mínimo
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de alterações, para que não haja uma “desfiguração” ou “deturpação” do texto original que lhes é tão precioso e tão sagrado. Às vezes, as alterações são toleradas quando existe a adoção daquilo que Kamilla Elliott (2004, p. 222) chama de “conceito mediúnico de adaptação”, ou seja, o processo de adaptação de um texto literário a um filme, por exemplo, deveria se pautar por uma incorporação do “espírito do texto original” no texto “derivado”. E, por melhor que fosse tal “incorporação”, por mais “fiel” que fosse a adaptação, ainda assim a obra resultante seria sempre uma obra “derivada”, “subalterna”, ou mesmo “inferior”. Não me parece difícil demolir a noção de fidelidade como parâmetro para estudos de adaptação. O próprio fato de estarmos falando de dois meios com características diferentes (ainda que apresentando relevantes denominadores comuns, como narratividade, por exemplo) mostra-nos a impossibilidade de fidelidade no processo de adaptação. É, no mínimo, curiosa a frase “tal filme é razoavelmente fiel ao livro”. Ora, “fidelidade” é um conceito totalizante (e totalitário): não se pode falar em texto “razoavelmente fiel” da mesma maneira que não podemos dizer que uma mulher encontra-se “razoavelmente grávida”. No entanto, podemos ir mais além e pensar na inexistência daquele “espírito do texto original”, uma vez que sua existência representaria a concepção de que a obra literária tem um significado fechado, imutável. Não seria exagero dizer que o próprio processo de leitura, hoje, constitui a elaboração de uma “adaptação”, a constituição imagética daquilo que apreendemos na interação com o texto literário. Assim, um filme “adaptado” de um romance, por exemplo, é sempre a expressão de uma das múltiplas leituras possíveis para esse romance. À primeira vista, isso pode soar como grande obviedade. No entanto, essa perspectiva ainda não parece estar suficientemente disseminada entre o grande público. Os casos da série Harry Potter e de O senhor dos anéis são alguns dos muitos exemplos disso. Linda Hutcheon (2006, p. 123), comentando o fato
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de Christopher Columbus, diretor de Harry Potter and the philosopher’s stone (2001), ter declarado que as pessoas o “crucificariam” se ele não tivesse sido “fiel” aos livros de J. K. Rowling, afirma: “Quanto mais radicais são os fãs, maior o potencial para ficarem desapontados.” No decorrer das duas últimas décadas, vários autores têm se dedicado a apontar outros caminhos para o estudo da adaptação que se afastem do conceito de fidelidade. O já citado Stam é um deles. No entanto, e curiosamente, Stam (2000, p. 62) propõe o uso do termo “tradução” para dar conta do processo. “O tropo da adaptação como tradução sugere um esforço regrado de transposição intersemiótica, com as inevitáveis perdas e ganhos típicos de qualquer tradução” (p. 62, grifos meus). No entanto, Stam parece se esquecer de que traduções também são julgadas pela régua da “fidelidade”. Isso se confirma no comentário que Stam faz sobre o filme de Godard, Les mepris. Eis o que diz sobre a personagem Francesca, uma intérprete: “As traduções apressadas feitas por Francesca das citações poéticas de Fritz Lang provam que, na arte assim como na linguagem, ‘traduire, c’est trahir’.” Ou seja, temos aí a manutenção da velha noção de tradução como traição (e, implicitamente, como ruptura da fidelidade). Em outro momento, temendo excluir a apreciação crítica de suas proposições, Stam (2006, p. 42-43) afirma que ainda podemos falar em adaptações bem feitas ou mal feitas, mas, desta vez, orientados [...] pela atenção à “transferência de energia criativa”, ou às respostas dialógicas específicas, a “leituras” e “críticas” e “interpretações” e “re-elaboração” do romance original, em análises que sempre levam em consideração a lacuna entre meios e materiais de expressão bem diferentes.
Na verdade, Stam perde de vista que todos esses fatores que deveriam orientar a “avaliação” das adaptações estão baseados em uma concepção, se não pessoal e ultrassubjetiva do analista, na suposição de existência de um
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“final” para a atividade do narrar, seja no suporte livro seja em outros suportes. Posso não gostar de uma adaptação, porque quero ver a minha adaptação na tela. No entanto, o processo, em si, não pode ser visto de forma a inferiorizar, por extensão, todos os produtos dessa natureza. Apesar de haver uma enorme diferença entre autores como Stam, Dudley Andrew (1984) e James Naremore (2000) e aqueles que pregam a fidelidade como critério, ainda se pode notar certo conservadorismo na maneira de tratar a questão das adaptações, no mínimo, demonstrado na escolha “canônica” dos objetos de análise. Acredito que os estudos sobre adaptação podem se ampliar de maneira significativa com a adoção de perspectivas que: 1. tenham por foco uma ampliação das obras a serem comparadas, para inclusão de obras da chamada “cultura popular”; 2. privilegiem estudos de narratologia comparada, com especial enfoque para questões de intertextualidade. A primeira perspectiva está associada a uma necessidade de mudança de um quadro geral marcado por um desconhecimento/rejeição em relação a uma série de objetos culturais que não só poderiam ser alçados à condição aurática de “obras de arte”, tão cara ao modernismo, como também ultrapassam essa condição, destruindo-a e reconstruindo-a. Nesse sentido, uma das principais manifestações ou características das práticas pós-modernas é a possibilidade de se lançar foco sobre práticas culturais até há pouco tempo consideradas marginais, “baixa cultura” e, principalmente, não dignas de estudo na academia. Essa perspectiva abre-nos as possibilidades de estudo comparativo de suportes não estritamente “literários” ou “canônicos”, tais como as narrativas gráficas, os videogames, as narrativas cinematográficas “não canônicas”, os fanfics e outros suportes. O caso dos fanfics, textos escritos por fãs de uma obra original que dão continuidade ou ampliam essa obra, merece estudo aprofundado, no mínimo pelo fato de sua existência (re)colocar em discussão conceitos fundamentais como autor(ia), propriedade intelectual,
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liberdade de criação, suporte convencional vs. suportes virtuais, interatividade, etc. A segunda perspectiva diz respeito à necessidade não só do estabelecimento de paralelos analíticos acerca das estruturas narratológicas associadas a suportes textuais diferentes, mas também da tentativa de elaboração de uma metalinguagem que possa dar conta das características e processos típicos das novas arquiteturas textuais. Nesse sentido, é importante pensar como o conceito de intertextualidade ganha novas matizes quando situado em uma ecologia textual que incorpora textos em diversos meios. De fato, se mantivermos o termo “adaptação”, parece-me possível defini-lo em função de um amplo processo de transformação de intertextos, em especial em suas possíveis formas particulares, como a citação e a alusão. Dessa forma, cada novo texto – seja ele filme, narrativa gráfica, videogame (em suas diversas plataformas), livro (em especial quando o vetor é invertido, no caso das novelizações: filme livro; videogame livro, etc.), RPGs (coletivos e individuais); fanfics – representa um dos lugares de uma recombinação infinita de (inter)textos. Essa multiplicidade de possibilidades resulta, a meu ver, de uma “fome insaciável de narrativas”: já não me basta a narrativa “primordial” que um texto “original” estabelece (chamado por Genette (1997) de hipotexto). Quero as continuações, os desdobramentos, as reformulações, amplificações, enfim, todas as novas e outras possibilidades de contar e recontar, de mostrar e mostrar novamente, de participar da narrativa, como leitor ou como um avatar que gera diversas possibilidades de percursos narrativos. As múltiplas possibilidades expressas pelo contínuo diálogo transmidiático apontam de maneira evidente para a necessidade de uma reavaliação da própria noção do “literário” e, consequentemente, de tudo aquilo que até agora deu forma e substância ao termo, especialmente o que o senso comum acadêmico chama de “cânone”. Na verdade, só podemos perceber as importantes transformações que colocaram diante de nossos olhos uma multipli-
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cidade de arquiteturas textuais à medida que rompermos radicalmente com a ideia da primazia canônica associada a nossos objetos de estudo. Isso pode ser feito tendo-se como ponto de partida obras literárias que apresentem marcas de transmidialidade em sua composição, tais como The raw shark texts (2007), de Steven Hall, e Level 26: dark origins (2009), de Anthony E. Zuiker e Duane Swierczynski. Ao indicar esses autores e obras, estou apontando diretamente para casos nos quais é explícita a ocorrência de uma transmidialidade que nos incentiva a buscar novas lentes que reorientem a interpretação e a constituição da metalinguagem que usamos para entender essas criações. Em Hall, a presença recorrente de formas de criptografia e de jogos tipográficos atualiza não só as formas de inserção da palavra na página, mas também o papel do leitor, que compulsoriamente vê seu exercício de interação com o texto ampliado para níveis que vão além do desvendar intertextual básico, em uma forma de participação que se assemelha à interatividade das narrativas lúdicas. O mesmo ocorre, de maneira ampliada, em Level 26, considerado um romance digital interativo. Nele, o processo de leitura é constantemente mediado pela indicação de endereços na web que contêm diversos tipos de informações e vídeos que complementam a narrativa. Veja-se este exemplo, em citação retirada da edição brasileira1: Sqweegel reenrolou o filme e assistiu de novo. Sabia que iria repetir dezenas de vezes até a madrugada. Estivera vendo tantos filmes sobre segurança nos dias anteriores que precisava de uma pequena diversão – uma espécie de limpeza mental. Um lembrete de quem era e do que era capaz de fazer em nome do Senhor. A contagem regressiva do filme surgiu na tela: 10, 9, 8 ... Para assistir ao filme, acesse http://grau26.com.br e digite o código: assassinato
O acesso ao site e a inserção da senha liberam a exibição do filme e transformam o texto narrativo “convencional”,
ZUICKER, A. E.; SWIERCZYNSKI, D. Grau 26: A origem. Trad. S. Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2009. 1
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cuja estrutura remonta aos romances policiais, em uma experiência de colaboração de suportes que demanda um tipo radicalmente diferente de “disposição de leitura”. Um autor que se enquadra perfeitamente na perspectiva intermedial e que merece mais estudos é Valêncio Xavier. Em sua obra, o texto literário atua como mediação da fotografia ou da ilustração, transformando esses meios em lugares de produção de significados. Sua inclusão representa a incorporação do real no construto ficcional e sua consequente ficcionalização. Há um circuito de significação estabelecido pela indicação/descrição verbal e pela presença das imagens, de qualquer gênero (fotografia, histórias em quadrinhos, etc.). A presença de uma técnica “mista” em obras como O mez da grippe e outros livros (1998), Minha mãe morrendo e o menino mentido (2001) e Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros (2006) propicia a percepção de uma relação de complementaridade entre imagem e texto semelhante àquela encontrada nas narrativas gráficas contemporâneas. Curiosamente, no verso da página de rosto de Rremembranças, há uma nota afirmando tratar-se esse livro de uma coletânea de “romances gráficos”, locução que soa como uma tradução literal de graphic novel, termo popularizado por Will Eisner em sua obra A contract with God and other tenement stories (1978), um dos marcos na importante evolução formal das expressões de arte sequencial. Ao pautar minha abordagem por aquelas duas perspectivas que apresentei, a indignação implícita na pergunta “quem mexeu no meu texto?” evolui para a constatação de que o texto, “mexido”, transformou-se em outros, não melhores nem piores, diferentes, ampliando assim a visão que dele tenho. Deixo de ter um texto e passo a ter muitos textos. Essa pluralidade é fundamental para pensarmos em uma evolução das reflexões sobre adaptação em direção ao que Marie-Laure Ryan chama de “narratologia transmidiática” (2004). Nesse sentido, os estudos deveriam se voltar para questões relacionadas a suportes que recriam
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técnicas de outros (por exemplo, o voice-over no cinema), a absorção de técnicas de um novo suporte por um mais antigo (e vice-versa), a inserção de um suporte em outro (a obra de Valêncio Xavier é o perfeito exemplo aqui, mas podemos também pensar em técnicas cinematográficas em narrativas lúdicas, fotografia em narrativas gráficas, etc.), e, por fim, as transposições de um meio para outro. Em relação a esta última possibilidade, gostaria de sugerir que um campo que merece mais atenção é o da passagem de textos literários para música. Interessa pensar em que medida obras conceituais como Shadow of the raven (2007), do grupo norte-americano Nox Arcana, ou as releituras de Lou Reed (no álbum The raven, 2003), conservam, transformam e atualizam a obra de E. A. Poe. Mas este é apenas um exemplo das inúmeras possibilidades e desafios que nos aguardam neste século em que as convergências midiáticas deverão ser incentivo mais que suficiente para uma transformação de nossos sentidos e de nossas formas de apreciação de todas as expressões culturais.
Referências ANDREW, D. Adaptation. In: _____. Concepts in film theory. Oxford: Oxford University, 1984. p. * BERNHEIMER, C. (Ed.). Comparative literature in the age of multiculturalism. Baltimore: Johns Hopkins University, 1995. BLUESTONE, G. Novels into film: the metamorphosis of fiction into cinema. Baltimore: Johns Hopkins University, 1957. ELLIOTT, K. Literary film adaption and the form/content dilemma. In: RYAN, Marie-Laure (Ed.). Narrative across media: the languages of storytelling. Lincoln: University of Nebraska, 2004. p. 220-243. GENETTE, G. Palimpsests: literature in the second degreee. Lincoln: University of Nebraska, 1997. HALL, S. The raw shark texts. New York: Canongate, 2008. HUTCHEON, L. A theory of adaptation. New York: Routledge, 2006.
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NAREMORE, J. Film adaptation. Chapel Hill, NC: Rutgers University, 2000. RYAN, Marie-Laure (Ed.). Narrative across media: the languages of storytelling. Lincoln: University of Nebraska, 2004. STAM, Robert. Beyond fidelity: the dialogics of adaptation. In: NAREMORE, James (Ed.). Film adaptation. New Jersey: Rutgers University, 2000. p. 54-76. _____. Teoria ����������������������������������������������������������� e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. Ilha do Desterro, v. 51, p. 19-53, 2006. ZUICKER, A. E.; SWIERCZYNSKI, D. Grau 26: a origem. Trad. S. Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2009.
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Literatura e cinema: memórias e histórias Rosana Cássia Kamita*
No texto a seguir será apresentado um estudo comparativo entre o romance “Minha vida de menina”, de Helena Morley, e o filme “Vida de menina”, de Helena Solberg. O objetivo é estabelecer um diálogo entre as duas linguagens, com o fundamento crítico e teórico das relações de gênero e o que significa para as mulheres o fato de se expressarem por meio da literatura e do cinema como escritoras e cineastas. resumo:
palavras-chave:
literatura, cinema, relações de gênero, autoria, representação. abstract: The following text will present a comparative study
between the novel Minha Vida de Menina, by Helena Morley and the movie Vida de Menina, by Helena Solberg. The purpose is to establish a dialogue between the two languages, with the critical and theoretical foundation of gender relations and what it means for women the fact to express themselves through literature and cinema while filmmakers and writers. keywords: Literature, Cinema, Gender Relations, Authorship,
Representation
Professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). *
Helena Morley foi o pseudônimo utilizado por Alice Dayrell Caldeira Brant em Minha vida de menina, diário que compreende o período de 1893 a 1895, enquanto cursava a Escola Normal. A autora nasceu em Diamantina, Minas Gerais, a 28 de agosto de 1880, e faleceu no Rio de Janeiro, em 20 de junho de 1970. Era filha de Felisberto Moyrell Dayrell e de Alexandrina Brandão Dayrell. Pelo lado materno, pertencia a uma família mineira tradicional, cujo avô se tornou rico ao descobrir um caldeirão de diamantes. Seu
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pai era de origem inglesa, segundo informações de Nelly Novaes Coelho; ela era neta de John Dayrell, um médico inglês que veio ao Brasil para trabalhar na Cia. Aurífera do Morro Velho, em Diamantina1 (COELHO, 2002, p. 248). Essa “composição quase diária”, nas palavras da escritora, foi redigida entre seus treze e quinze anos, mas foi publicada pela primeira vez em 1942: Esses escritos, que enchem muitos cadernos e folhas avulsas, andaram anos e anos guardados, esquecidos. Ultimamente pus-me a revê-los e ordená-los para os meus, principalmente para minhas netas. Nasceu daí a idéia, com que me conformei, de um livro que mostrasse às meninas de hoje a diferença entre a vida atual e a existência simples que levávamos naquela época2 (MORLEY, 1979, “Nota à 1ª Edição”).
A autora esclarece os motivos que a fizeram tornar públicos os registros de suas impressões durante esses anos, nos quais ela relata acontecimentos simples de seu cotidiano, outros pitorescos, além de impressões sobre a sociedade da época. Tudo permeado por um olhar agudo: Não sei se poderá interessar ao leitor de hoje a vida corrente de uma cidade do interior, no fim do século passado, através das impressões de uma menina, de uma vida sem luz elétrica, água canalizada, telefone, nem mesmo padaria, quando se vivia contente com pouco, sem as preocupações de hoje. E como a vida era boa naquele tempo! Quanto desabafo, quantas queixas, quantos casos sobre os tios, as primas, os professores, as colegas e as amigas, coisas de que não poderia mais me lembrar, depois de tantos anos, encontrei agora nos meus cadernos antigos! (MORLEY, 1979, p. 4)
Ainda segundo a autora, nenhuma modificação relevante foi feita, apenas a alteração de alguns nomes. No entanto, por causa da distância temporal que separa a escrita do diário e sua publicação, houve o questionamento relativo à real idade da autora ao escrever suas memórias.
COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico de escritoras brasileiras: (1711-2001). São Paulo: Escrituras, 2002. p. 248. 1
MORLEY, Helena. Minha vida de menina. Cadernos de uma menina provinciana nos fins do século XIX. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 4. [Nota à 1ª edição]. 2
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A esse respeito, Alexandre Eulálio tece algumas considerações:
EULÁLIO, Alexandre. Livro que nasceu clássico [Introdução]. In: MORLEY, Helena. Minha vida de menina. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 8. 3
ANDRADE, Carlos Drummond de. Orelha. In: MORLEY, Helena. Minha vida de menina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. 4
Imaginemos, entretanto, que o livro se tratasse de uma impostura literária, e tivesse sido escrito, digamos, pela autora adulta – hipótese que qualquer leitor tem o direito de fazer, pago o preço de capa. Neste caso, dizia em conversa um grande escritor brasileiro, Guimarães Rosa – estaríamos diante de um “caso” ainda mais extraordinário, pois, que soubesse, não existia em nenhuma outra literatura mais pujante exemplo de tão literal reconstrução da infância3 (EULÁLIO, 1998, “Introdução”).
São ponderações possíveis de se fazer, mas que efetivamente não são passíveis de se responder. Ainda que ela realmente tenha escrito seu diário no final do século XIX, o filtro temporal, moral e social deve tê-la influenciado de alguma forma décadas depois, quando, já na maturidade, decidiu publicá-lo. São questões que enredam e nos distanciam do texto, e interessa-nos, ao contrário, a aproximação a ele e a oportunidade que enseja conhecêlo e, assim, conhecer também um pouco a vida de Alice Dayrell Caldeira Brant para, a partir de seus relatos, inferir sobre as condições da mulher no final do século XIX, sob a ótica de uma adolescente e seu olhar perspicaz. O universo retratado por Helena Morley refere-se ao cotidiano e parte do seu núcleo familiar, estendendose à sociedade da região, enfocando questões relativas à educação, religiosidade, festas, convivência entre os mais abastados e os menos favorecidos. Tudo isso ela relata com um estilo muito próprio, conforme destaca Carlos Drummond de Andrade: Ela nos redescobre a infância, faz rir e comove, observadora sagaz e moleque de um panorama familial que se alarga até abranger a vida em movimento da cidade e da região, com seus veios de diamantes quase esgotados, seus tipos populares, suas fazendas, festas religiosas e profanas, suas comidas, seu jeito inconfundível de ser, e sua humanidade4 (ANDRADE, 1979, “Orelha”).
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O ponto de vista privilegiado de Helena permite fazer conhecer seu universo e, a partir dele, transcender o significado da sociedade da época, assim como a condição feminina, a partir de seus registros sobre a educação dedicada às mulheres, a preocupação com o matrimônio e a maternidade. É uma representação geográfica e temporal específica, mas nem por isso restrita, ao contrário, a riqueza que transparece de seus relatos oferece oportunidade de análise de forma mais abrangente, ainda que pesem características próprias. A autora descreve um panorama de época e, como o escreve da perspectiva de uma adolescente, revela aspectos que uma escritora, adotando o ponto de vista adulto, evitaria fazer. Assim, há constantes desabafos, explosões de riso e de raiva e pedidos de perdão a Deus. Alexandre Eulálio discorre sobre o universo representado no diário de Helena Morley: O círculo em que vive é limitado; dentro dessa fronteira dispõe a sua rara liberdade. Os pais, os irmãos, a avó (talvez a única a perceber e a amar a riqueza interior da neta insofrida), as tias da Chácara, os primos do centro da cidade, as colegas da Escola Normal, o Palácio de Senhor Bispo, a Igreja do Rosário, a Palha e a Boa Vista, além da curiosíssima fauna humana da cidade – ex-escravos, vizinhos pobres, tipos de rua, soldados, mendigos, lavadeiras e lenheiras, garimpeiros e tropeiros – povoam os dias simples de menina sem posses, moradora da periferia da cidadezinha (EULÁLIO, 1998, p. 8).
Nesse sentido, Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil destacam: Pela qualidade literária, o livro constitui um relato primoroso sobre o cotidiano brasileiro, sobretudo sobre a vida das mulheres. Por suas considerações extremamente sensíveis sobre o casamento e a maternidade, representa também uma preciosa fonte documental sobre a condição feminina no final do século XIX5 (SCHUMAHER; BRAZIL, 2000, p. 259-260).
SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico Vital (Orgs.). Dicionário Mulheres do Brasil – de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 259-260. 5
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Helena registra em seu diário a maneira diferente pela qual encarava a vida: O dia pior para mim é o dia seguinte a qualquer festa. Mamãe é que tem pena de mim porque diz que eu não vou ser feliz com este gênio de querer aproveitar tudo; que a vida é de sofrimentos. Mas eu é que não serei tola de fazer de uma vida tão boa uma vida de sofrimentos (MORLEY, 1988, p. 52).
Sua rebeldia transparece por meio das ideias que expressa sobre a educação recebida, o que seria considerado o ideal, ao mesmo tempo em que reconhece não ser capaz, ela mesma, de suportar as amarras dessas convenções de comportamento: “Eu e minha irmã nem parecemos filhas dos mesmos pais. Eu sou impaciente, rebelde, respondona, passeadeira, incapaz de obedecer e tudo o que quiserem que eu seja. Luisinha é um anjo de bondade.” (MORLEY, 1988, p. 78). Os casamentos “arranjados”, à revelia das mulheres, surgem no livro a partir do exemplo do avô: “Meu avô aceitava para as filhas o marido que lhe agradasse e as casava sem consultá-las. Ele tinha dez filhas. Os pretendentes pediam às vezes uma das filhas e ele respondia: ‘Esta não; está muito moça. Vá aquela que é mais velha’.” (MORLEY, 1988, p. 294). Em outras páginas, refere-se novamente à questão: “Minhas tias contam a história do casamento delas. As únicas que se casaram por seu gosto, conhecendo os maridos, foram mamãe e tia Aurélia, porque casaram depois da morte de vovô.” (MORLEY, 1988, p. 331). Sobre o comportamento das esposas da época, ela demonstra um misto de surpresa e indignação pela abnegação que demonstravam em relação à família e a submissão aos maridos: “Todas as minhas tias só se ocupam dos maridos e dos filhos. A pessoa delas não vale nada. Nunca vi mamãe ou qualquer de minhas tias comer uma coisa antes dos maridos e dos filhos. Se alguma coisa na mesa é pouca, elas nem sabem o gosto.” (MORLEY, 1988, p. 225). A figura feminina de maior apego por parte de
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Helena era a avó e a sua morte desencadeou um desabafo em que transparecem críticas, tristeza e consideração: Por que a senhora queria tanto a mim que sou a mais ardilosa das netas, a mais barulhenta e a que mais trabalho lhe dava? Lembro-me agora com remorso do esforço que a senhora fazia todas as noites para me tirar do brinquedo e me pôr de joelhos, à hora do terço. Mas agora, lhe confesso, aqui em segredo, que era uma hora de sacrifício que a senhora me obrigava a passar. Até raiva eu sentia quando, depois de rezar o terço com todos os mistérios contemplados, ficavam minhas tias e a hipócrita da Chiquinha a lembrar todos os parentes mortos, para rezarmos um padre-nosso ou ave-maria por alma de cada um. Eu ficava pensando que minha reza era capaz de levar as almas para o Inferno, pois rezava sempre contrariada. Ninguém mais conseguirá de mim este sacrifício (MORLEY, 1988, p. 288).
Em seu estudo sobre Helena Morley, publicado no livro Escritoras Brasileiras do Século XIX,6 Tânia Ramos destaca a vida de Alice Dayrell em sua maturidade, a partir do relato de Vera Brant, cuja mãe era prima de Alice e que privou da companhia da escritora e de sua família a partir de 1956: A família Caldeira Brant nesta época morava em uma bela casa na Lagoa Rodrigo de Freitas, onde, todos os domingos, acontecia uma reunião, com aproximadamente quinze pessoas. Nessas ocasiões, Alice sentava na cabeceira da mesa “com seu porte elegante” e “sua personalidade fortíssima” e comandava um bando de “malucos inteligentíssimos”. Chamava atenção das pessoas que conviviam com ela a sua memória fantástica, especialmente em relação fatos vividos na infância em Diamantina. Gostava de falar sobre o diálogo que sempre teve com os pais, concordando, discordando, opinando, e de contar do namoro com Augusto Mário Brant, seu primo e sua única paixão, na época, estudante de Direito em São Paulo, depois, advogado de profissão, jornalista, político, economista, escritor e, na década de 50, presidente do Banco do Brasil. Ressaltava que com ele
RAMOS, Tânia Regina Oliveira. Helena Morley. In: MUZART, Zahidé L. (Org.). Escritoras Brasileiras do Século XIX. Antologia. Florianópolis: Mulheres, 2004. v. 2, p. 950. 6
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viveu durante muitos anos e teve cinco filhos [...] (RAMOS, 2004, p. 950).
JOSEF, Bella. A máscara e o enigma. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2006. p. 369370. 7
O livro foi traduzido para outras línguas, para o inglês por Elizabeth Bishop, para o francês por Marlyse Meyer, para o italiano por Giuseppe e Giovanni Visentin. A obra foi bem aceita e permanece editada até hoje. Voltou a se tornar alvo de atenção em virtude de sua adaptação para o cinema, com o filme Vida de menina, de 2004, dirigido por Helena Solberg. O objetivo deste texto é estabelecer um diálogo entre as duas linguagens, com o viés crítico das relações de gênero e o significado para as mulheres da expressão por meio da literatura e do cinema como realizadoras. A aproximação entre literatura e cinema pode ocorrer de diferentes formas, sendo a adaptação uma das mais comuns. Bella Jozef destaca: “A autonomia em relação ao texto original pode ir de um mínimo a um máximo, de uma aproximação congenial na substância que o autor cinematográfico consegue traduzir com meios expressivos autônomos e apropriados, a uma interpretação crítica que força qualquer elemento fundamental, até uma plena independência.”7 (JOSEF, 2006, p. 369-370) No entanto, muitos espectadores projetam a expectativa de que o filme será “fiel” ao livro, reproduzindo-o integralmente. Contudo, são duas linguagens diferentes e, ainda que se tangenciem, mantêm suas especificidades. No caso de Vida de menina, temos as três Helenas – Helena Morley, autora do diário, Elena Soarez, roteirista e Helena Solberg, roteirista e cineasta – e cada qual expõe sua sensibilidade estética, são mulheres que se expressam por meio de sua arte. Aí reside a riqueza da aproximação entre literatura e cinema e não em buscar a identificação entre capítulos e cenas. Para Helena Morley, escrever seu diário foi uma maneira que encontrou de extravasar seus sentimentos e externá-los de alguma forma. Um longo tempo depois, outras mulheres recorreram à sua fonte de registro da vida interiorana no final do século XIX para
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reavaliá-la, tentar compreendê-la e também se expressar por meio do cinema, um espaço ainda tão eminentemente masculino. Maria Helena Collett Solberg iniciou sua trajetória como cineasta nos anos 1960, em especial com documentários. Reconhecendo uma lamentável similaridade com a literatura – o fato de as mulheres representarem uma minoria muitas vezes relegada ao esquecimento –, destaca, em relação ao panorama atual: “O número de mulheres produtoras e diretoras de longa-metragem, por exemplo, é um fenômeno inusitado e maravilhoso. Sou uma pessoa otimista e me sinto privilegiada por estar testemunhando isso e poder participar também.”8 (NAGIB, 2002, p. 462) No filme, Helena Solberg optou por suprimir o pronome “minha”. Assim, o título do livro é Minha vida de menina e o do filme, Vida de menina. Em 2004, ano do lançamento, em entrevistas, a cineasta falou sobre os motivos que a impulsionaram a realizar o filme. Dentre as questões abordadas, ela se refere ao processo de adaptação: “Foi complicado fazer o roteiro, preservar esse aspecto episódico, de diário na estrutura. Ao mesmo tempo não é uma adaptação porque é o meu olhar em cima do dela [...].”9 (SOLBERG, Entrevista). Em outra entrevista, a diretora complementa: “Fizemos cerca de doze versões do roteiro. Evitei as complicações de um enredo e apostei mais na complexidade dos dilemas interiores dos personagens. Procurei manter o olhar, o ponto de vista da menina”10 (SOLBERG, Entrevista). O filme retrata alguns dos vários episódios narrados por Helena Morley e apresenta uma releitura de outros, mantendo, em princípio, a essência dos relatos da adolescente mineira. As figuras femininas se realçam no decorrer da narrativa cinematográfica: além da autora, recebem atenção a mãe e a avó. Destaca-se, portanto, a atuação feminina pela autoria do diário e a realização do filme e a representação dessas gerações de mulheres e suas diferentes posturas.
NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: 34, 2002. p. 462. 8
SOLBERG, Helena. Entrevista. Disponível em: <www. mulheresdocinemabrasileiro. com/entrevistaHelenaSolberg. htm>. Acesso em: 08/2007. 9
SOLBERG, Helena. Entrevista. Revista Trópico. Disponível em: <http://pphp. uol.com.br/tropico/html/ textos/2666,1.shl>. Acesso em: 08/2007. 10
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HUTCHEON, Linda. A theory of adaptation. New York: Routledge, 2006. 11
BAZIN, André. O cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991. 12
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Como aponta Linda Hutcheon em seu livro A theory of adaptation11, cada pessoa desenvolve a própria teoria da adaptação. Ou seja, a adaptação realizada é uma das muitas possíveis e as expectativas em relação ao filme são diversas. O que para uns é considerado imprescindível, para outros se torna dispensável. Constata-se que, apesar das críticas e questionamentos em relação à adaptação, a popularidade desse procedimento é inegável. Todavia, as relações entre cinema e literatura guardam alguns preconceitos relativos a uma pretensa hierarquização, motivo de reflexão por parte de André Bazin em “Por um cinema impuro – defesa da adaptação”. Em um jogo de ambiguidades no qual, ao referir-se à adaptação, o autor utiliza termos como “defesa” e “cinema impuro”12, Bazin já se mostra preocupado com a ameaça que poderia representar para a jovem arte – o cinema – a aproximação com a literatura e seus séculos de tradição. Essa preocupação se manteve ao longo do tempo por parte de outras pessoas, sendo a adaptação considerada por muitos como “menor” ou “secundária”. É interessante destacar que uma adaptação deve ser tratada como adaptação. Parece óbvio, mas persiste a ideia de que o filme deva reproduzir o texto literário. No entanto, no processo de adaptação, há, como anteriormente referido, no mínimo, três instâncias criativas, representadas pela figura do escritor, do roteirista e do diretor. Ou seja, todos querem expressar sua arte e contribuir esteticamente. Não deveria haver, portanto, uma relação servil que justificasse uma “fidelidade” à fonte original. Cumpre destacar que fidelidade versus infidelidade é um tema fértil e ao mesmo tempo estéril para tratar do assunto. Fértil porque se mostra estimulante para muitos estudiosos que partem desse paralelo para discutir a questão. Estéril porque se torna um fim em si mesmo, provocando uma sensação de desapontamento ao se constatar que, dentre tantos aspectos possíveis de se analisar, a reflexão se resume, no mais das vezes, a verificar a fidelidade ou infidelidade da proposta de adaptação.
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Para o leitor ou espectador, no entanto, a adaptação somente será recebida como tal se houver um prévio conhecimento da obra literária. Muitas vezes, livros menos conhecidos são levados às telas e boa parte do público desconhece tratar-se de uma adaptação. Para a audiência, as adaptações podem chegar a vários níveis, aberta ou veladamente relacionadas a outras obras. Esse diálogo entre cinema e literatura é parte dessa identidade formal, no sentido de se registrar explicitamente que um determinado filme é “adaptado da obra tal”, ou “baseado em”, “livremente inspirado em”. Além disso, existe o contato inicial do roteirista com o original e a hermenêutica estabelecida. Aquele que adapta é o leitor da obra e a adaptará a partir de sua interpretação dela, além de intenções outras que possam estar envolvidas nesse processo, de ordem econômica ou social, para citar alguns exemplos, ou mesmo a tentativa de “agradar o público”, realizando uma adaptação de acordo com o que se supõe esperar do trabalho do roteirista. Com tantas nuanças interligando cinema e literatura, torna-se improdutivo discutir uma adaptação somente a partir de critérios como fidelidade ou infidelidade ao texto literário. Outros fatores são preponderantes, como o contexto em que uma adaptação é realizada. A maneira como determinado fato histórico foi abordado em um romance é passível de sofrer alterações em virtude de um novo momento pelo qual determinada sociedade esteja passando; um “herói” pode acabar por ser tornar um “vilão”. O distanciamento temporal e geográfico dos fatos pode modificar a visão que temos deles, sem contar que, ao ser adaptada, há a possibilidade de a obra literária ser interpretada por um viés ideológico, por exemplo. Ao se proceder à análise de uma adaptação, podemos partir do pressuposto de um valor prévio que a obra literária tem, além de enveredar pela descrição de diferenças em relação ao texto original. Geralmente, ressente-se de uma análise mais densa, que se encaminhe no sentido de pensar sobre essas eventuais modificações
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e suas implicações dramatúrgicas, quais os procedimentos adotados e prováveis objetivos postulados e se foram ou não atingidos. O fato de o texto literário ter valor canônico também pode se refletir no processo de adaptação. Caso se acredite que seguir de perto o texto literário, adotando uma postura protetora e de reverência, garantirá o “sucesso” obtido pelo livro, essa recíproca nem sempre é verdadeira. Assim como adotar uma postura iconoclasta também não garante que a subversão total será sinônima de críticas positivas. Os caminhos que afiançam um diálogo profícuo entre cinema e literatura estão além de fórmulas facilmente verificáveis. Obras consideradas de grande valor literário podem resultar em filmes apenas medianos, assim como outras, menos (re)conhecidas, podem colaborar para um filme expressivo. Contudo, temos um aspecto a ser destacado, que se refere ao estudo de escritoras e cineastas brasileiras. Em relação às escritoras, muito tem sido feito no sentido de se reparar as lacunas na historiografia literária; cumpre-se, agora, manter esse trabalho. Entretanto, em cinema, ressente-se mais a falta de pesquisas nesse setor. A literatura e o cinema têm apresentado a mulher como sujeito e objeto, repetindo códigos ou instaurando novas perspectivas de abordagem, a partir de sua inserção em um sistema simbólico de autoria e representação. A representação feminina nos discursos culturais alterna presença e ausência, na maior parte das vezes está presente como objeto a partir de um olhar masculino e como imagem esmaecida, quando se trata de responsável pela criação de sentido. Muitos livros e filmes reproduzem uma ideologia que autoriza um discurso oficial como sendo o masculino, enquanto ignora ou desautoriza manifestações insurgentes. Assim, a representação da mulher, quando está de acordo com o convencionalmente aceito em um dado momento histórico, é amplamente divulgada, já a representação que não se insere nos moldes tradicionais ou na ótica de uma
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escritora ou cineasta com posicionamento crítico não terá a mesma visibilidade. Manifestações culturais em geral, e a literatura e o cinema em particular, inscrevem de maneira nem sempre sutil as marcas ideológicas da construção da identidade. O processo cultural que transforma a diferença sexual a partir de uma constatação biológica e transcende esse dado físico a um modelo de atitudes e comportamentos é o que determina a representação dos papéis masculinos e femininos a serem desempenhados na sociedade. Essa representação social e culturalmente construída se impõe aos diversos setores da sociedade e encontra-se impressa, ditando posturas a serem adotadas. O que nos interessa é procurar estabelecer um percurso histórico da presença da mulher na literatura e no cinema e alicerçar fundamentos que encaminham diferentes possibilidades de interpretação de livros e filmes. Instituir uma nova visão sobre as linguagens literária e cinematográfica é uma forma de subverter as bases nas quais se sustentam historicamente a literatura e o cinema. Quando a mulher se posiciona como escritora ou atrás das câmeras, muitas vezes sua intenção é a de imprimir uma nova ótica da representação de homens e mulheres que não se restrinja aos parâmetros ainda próximos à tradição patriarcal. O que muitas se propõem é instituir a construção de um olhar em bases diversas, originadas de uma forma diferente de pensar as relações de gênero. No Brasil, podemos citar o exemplo da cineasta Ana Carolina, que, com sua trilogia composta pelos filmes Mar de rosas (1977), Das tripas coração (1982) e Sonho de valsa (1987), deu voz às mulheres e utilizou sua arte para repensar a postura feminina a partir da própria contribuição como cineasta e pela criação de várias personagens que representam as mulheres, suas perspectivas e questionamentos. A teoria feminista do cinema tem como um dos principais objetivos estabelecer um percurso histórico da presença da mulher no cinema e desconstruir os fundamentos que encaminham diferentes possibilidades de interpretação
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In: XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal; Embrafilmes, 2003. p. 439-440. 13
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dos filmes. Estabelecer uma nova visão sobre a linguagem cinematográfica é uma forma de subverter as bases nas quais se sustenta historicamente o cinema. No entanto, mesmo que haja cineastas dispostas a criar novas abordagens cinematográficas, resta questionar o papel dos espectadores diante dessa epistemologia divergente. A teoria feminista do cinema, além de refletir sobre a mulher nos dois lados da câmera, ocupa-se também com a recepção dos filmes. O cinema é uma área importante para que se estabeleçam discussões sobre gênero; o discurso cinematográfico pode se constituir em um campo no qual se inserem alternativas à cultura patriarcal. A relação cinema/gênero encaminha a busca para uma nova produção de sentido e questionamentos do senso comum em relação às atribuições masculina e feminina na sociedade. Assim, a posição das cineastas pode ser a de se encaminharem como vozes consoantes ou dissonantes, aderir às ideias preconcebidas ou surgir como alternativa ao discurso hegemônico. Nesse sentido, a autoria feminina não garante, por si só, uma reação ao tradicional, depende de uma consciência de reprodução ou reação ao tradicionalmente estabelecido. A linguagem cinematográfica é complexa e polissêmica, podendo veicular tanto a ideologia dominante e a sujeição às normas vigentes quanto uma postura dissidente. Laura Mulvey escreveu um texto que se tornou referência, “Prazer visual e cinema narrativo”13. Nesse ensaio, a autora parte de uma retrospectiva histórica da forma como o cinema operou no passado, o encantamento inicial, a novidade que representou nos primeiros tempos. No entanto, teria chegado o momento de propor uma teoria e prática que desafiassem antigos pressupostos e a psicanálise nortearia suas reflexões. A apropriação da teoria psicanalítica funcionou como instrumento político e, por meio dela, seria possível compreender melhor os padrões que regiam a sociedade e a maneira como o cinema se estruturava nesse contexto.
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A ordem simbólica estabelecida entre homens e mulheres baseava-se em uma hierarquia a qual já havia sido apontada por Simone de Beauvoir em O segundo sexo14. Ao homem corresponde o Um, o sujeito, e à mulher corresponde o Outro. Essa hierarquia transpõe-se para as telas, como a autora observa: Não importa o quanto irônico e autoconsciente seja o cinema de Hollywood, pois sempre se restringirá a um mise en scène formal que reflete uma concepção ideológica dominante do cinema. O cinema alternativo por outro lado, cria um espaço para o aparecimento de um outro cinema, radical, tanto num sentido político quanto estético e que desafia os preceitos básicos do cinema dominante. Não escrevo isto no sentido de uma rejeição moralista desse cinema, e sim para chamar a atenção para o modo como as preocupações formais desse cinema refletem as obsessões psíquicas da sociedade que o produziu, e, mais além, para ressaltar o fato de que o cinema alternativo deve começar especificamente pela reação contra essas obsessões e premissas. Um cinema de vanguarda estética e política é agora possível, mas ele só pode existir enquanto contraponto (XAVIER, 2003, p. 439-440).
Para Mulvey, interessava aprender com o passado para terminar por modificá-lo, e assim novas construções se tornariam possíveis. Era o momento de romper com o cinema normativo e trabalhar com perspectivas diversas, estabelecendo uma experiência cinematográfica original. Para isso, seria necessária a rejeição aos modelos antigos, ousadia para transgredi-los e criatividade para conceber o filme sob esse prisma. Os códigos cinematográficos reproduzem estruturas sociais com papéis definidos e hierarquizados, os quais precisam ser refletidos criticamente e, a partir dessa reflexão, podem-se sugerir propostas que viabilizem uma oposição ao cinema dominante. Um filme que se distancie do processo tradicional de narrativa fílmica visa a dar maior liberdade aos olhares específicos do cinema, ainda que, para isso, sacrifique o prazer
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. 1. Fatos e mitos. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 14
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do espectador de ser o “convidado invisível” e direcione o olhar da plateia a uma postura dialética, de confronto em relação às convenções. Alguns filmes produzidos nos últimos anos apresentam o que Robert Stam chama de “intenção feminista-teórica”, ou seja, refletem de maneira imanente sobre o fazer cinematográfico. O piano (1993), de Jane Campion, mostra um olhar complexo sobre a figura da mulher, adotando um ponto de vista feminino. No século XIX, uma mulher e sua filha chegam à Nova Zelândia, onde a protagonista deverá se casar. No entanto, envolve-se com um rude morador do local. O filme é o relato de um exílio pessoal. A pianista, muda, não se adapta socialmente e busca a evasão por meio da arte, recurso a que muitas mulheres lançaram mão, em especial em séculos passados. Ao desafiar a moral dominante, recebe um castigo cruel: a perda de um dedo. No entanto, espera-se o castigo maior, a morte, uma vez que a protagonista “pecou” excessivamente. Mas Jane Campion opta por um final sem essa punição. Em Um casamento à indiana (2001), Mira Nair apresenta duas histórias de romance que correm paralelas: a de um casamento arranjado entre famílias mais ricas e uma aproximação mais espontânea entre dois jovens de origem humilde. Além desse contraponto, surge outra dicotomia: Adita, a noiva, apresentada como indecisa, insegura, e se dispondo a uma união por conveniência, e a prima, Ria, chamada de “solteirona”, que pretende continuar estudando no exterior e tornar-se escritora. Várias cenas mostram o antagonismo entre os comportamentos das duas personagens, mas uma em particular chama a atenção. As primas estão lado a lado dormindo e, displicentemente próximas a elas, duas leituras provavelmente feitas antes de adormecerem. Adita lia Cosmopolitan e próximo a Ria estava o livro do escritor indiano Rabindranath Tagore. A referência é sutil; no entanto, oferece oportunidade para reflexão. A teoria feminista do cinema permite que se lance um novo olhar em direção à participação da mulher no cinema, abrangendo questões como as nuanças da representação
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feminina e a postura adotada pelas cineastas ao levar às telas a imagem da mulher. No entanto, alterar o sistema que gera expectativas em relação aos papéis que cada um tem a cumprir na sociedade não é tarefa fácil. Muitas mulheres encaminham seus trabalhos nesse sentido, construindo novas imagens da mulher e da feminilidade, em contraposição aos discursos hegemônicos. Outras mantêm uma postura conservadora, na qual o sujeito da narrativa na maior parte das vezes identifica-se com o universo masculino, enquanto a dimensão feminina constitui-se objeto passivo. A articulação entre literatura e cinema oferece uma possibilidade no sentido de se perceber de que maneira a contribuição feminina pode ser considerada. Ao se encaminhar estudos que compreendam as narrativas literária e cinematográfica a partir das relações de gênero, pretende-se estabelecer um olhar diverso do que comumente é aplicado a essas duas artes. Tanto a literatura canônica quanto o cinema narrativo tradicional costumam ignorar as contribuições que se afastam dos paradigmas estabelecidos. Algumas até conseguem certa notoriedade no contexto histórico-cultural de sua divulgação, mas o tempo (isso é um eufemismo) trata de fazer com que se tornem desconhecidas. É o caso de muitas escritoras do passado, cujo trabalho de resgate foi empreendido nos últimos anos com resultados que se fazem sentir, por meio das várias publicações a respeito, pesquisas e análise crítica do legado da obra. Para evitar que as omissões se repitam, é necessário manter a postura adotada, para que no futuro não tenhamos de “resgatar” escritoras do século XX. Em relação ao cinema, não tivemos ainda um trabalho similar. Há apenas indicações nesse sentido, como algumas publicações de Heloísa Buarque de Hollanda, na Série Quase Catálogo. O cinema é um espaço ainda eminentemente masculino, em especial no Brasil. O livro O cinema da retomada, de Lúcia Nagib, traz depoimentos de noventa cineastas dos anos 1990, época que marcou o “renascimento” do cinema depois de sua quase extinção
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no governo Collor. Deste número apresentado, são citadas apenas dezessete mulheres cujos nomes figuram como realizadoras de filmes. Isso em um passado recente. Se estendermos o olhar para décadas anteriores, com certeza encontraremos defasagem ainda maior. Solberg, uma das que figuram no livro de Lúcia Nagib, opta por mostrar uma Helena Morley transgressora, desde suas atitudes e pensamentos até a publicação de seu diário. É a voz da adolescente do século XIX ecoando no século XXI, registrada pelas lentes da cineasta que expõe seu trabalho e busca espaço em uma sociedade ainda excludente e não muito receptiva às contribuições femininas nas artes. Assim, a partir dos olhares de escritora e cineasta, torna-se possível discorrer sobre a participação feminina nos campos da literatura e do cinema por meio das obras de ambas e repensar de que maneira essa participação se efetiva ao longo do tempo, em especial no Brasil. Há outras várias manifestações literárias e cinematográficas relevantes realizadas por mulheres, e a seleção das Helenas foi apenas uma maneira de destacar esse aspecto em nosso meio cultural. Compreender as bases da participação feminina de maneira crítica torna-se referencial no sentido de que o objetivo neste texto foi o de justamente fazer a leitura do livro e do filme pela ótica das relações de gênero.
Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Orelha. In: MORLEY, Helena. Minha vida de menina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. BAZIN, André. O cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. 1. Fatos e mitos. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico de escritoras brasileiras: (1711-2001). São Paulo: Escrituras, 2002. EULÁLIO, Alexandre. Livro que nasceu clássico [Introdução]. In: MORLEY, Helena. Minha vida de menina. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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HUTCHEON, Linda. A theory of adaptation. New York: Routledge, 2006. JOSEF, Bella. A máscara e o enigma. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2006. MORLEY, Helena. Minha vida de menina. Cadernos de uma menina provinciana nos fins do século XIX. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: 34, 2002. RAMOS, Tânia Regina Oliveira. Helena Morley. In: MUZART, Zahidé L. (Org.). Escritoras brasileiras do século XIX. Antologia. Florianópolis: Mulheres, 2004. v. 2. SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico Vital (Orgs.). Dicionário mulheres do Brasil – de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal; Embrafilmes, 2003.
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Violência e forma em Hegel e adorno Jaime Ginzburg*
resumo:
O presente ensaio examina elementos da Estética de Hegel e da Teoria Estética de Theodor Adorno. Com base na comparação, propõe que a leitura crítica de Hegel permite apontar a presença, em suas ideias sobre literatura, de um pensamento nacionalista favorável à violência. Considerando o princípio conceitual da necessidade, examinamos as ideias de Hegel a respeito da épica. Comparamos a ideia hegeliana de totalidade com a concepção adorniana de fragmentação da forma. palavras-chave:
Hegel, Adorno, épica, violência.
abstract:
The present essay examines Hegel`s Aesthetics and Theodor Adorno`s Aesthetic Theory. As a contemporary perspective, we believe it is necessary to develop a critical approach to Hegelian thought on literature, since it is attached to a nationalist defense of violence. Considering the conceptual principle of necessity, we examine Hegelian ideas on epic. We compare the Hegelian idea of totality and the adornian idea of fragment. keywords:
Hegel, Adorno, epic, violence.
O presente artigo apresenta uma reflexão sobre um trecho da Estética de Hegel, livro resultante de lições ministradas pelo filósofo na década de 1820 (HEGEL, 1993), e um fragmento da Teoria Estética de Theodor Adorno (ADORNO, 1998), livro póstumo, editado em 1970. Adorno era um estudioso dedicado da obra de Hegel. Na articulação entre esses dois autores, encontramos um caso, com rara contundência, no âmbito das teorizações sobre formas artísticas, de abertura de possibilidades de Universidade de São Paulo
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pensar diferenças de perspectiva importantes em termos de entendimento do papel histórico da violência. Hegel construiu uma conceituação específica sobre os gêneros literários, cujas heranças chegam ao ensino de Teoria da Literatura na atualidade. Dentro do seu sistema, é fundamental a sua concepção de épica, em que ele desenvolve o princípio da necessidade, segundo o qual tudo o que acontece, acontece porque deve acontecer. Esse princípio é fundamental para assegurar a unidade da forma. A proposta de ler Hegel em articulação com Adorno é dar visibilidade a um aspecto específico de sua concepção de épica, a função que atribui à crueldade do herói épico. Adorno reúne as características de ser um grande conhecedor de Hegel e um crítico indignado da violência no contexto pós-guerra. Suas observações sobre a forma da obra de arte são incompatíveis com as de seu antecessor. Interessado em autores como Kafka e Beckett, Adorno elabora reflexões que contrariam não apenas a aceitação do princípio da necessidade, mas também a concepção de unidade da forma.
A violência legitimada Dentro da Estética de Hegel, há um trecho intitulado A ação épica individual. Ele integra, dentro do campo das reflexões sobre a poesia, as elaborações sobre a constituição do gênero épico. Embora inclua diversificada exemplificação, é em Homero, sem dúvida, que encontra suas referências principais. A ação épica individual elabora uma argumentação favorável à presença de violência na literatura, por meio das condições determinadas em que propõe a legibilidade do gênero épico. O texto associa a epopeia a um componente nacionalista. Em forte interação com o debate político oitocentista, faz uma leitura dos clássicos muito apegada a questões de seu próprio tempo. O desenrolar de um poema épico se daria com “conflitos entre nações inteiras” (HEGEL, 1993,
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p. 582). Com isso, o impacto das ações do herói épico seria interpretado fundamentalmente como exercício de soberania política. O herói épico, para Hegel, reúne propriedades “humanas e nacionais” (HEGEL, 1993, p. 584). Sua exemplaridade funciona como indicadora de qualidades nacionais. Se o herói se destaca em suas ações, e contrasta com seus inimigos em força ou habilidades, essa diferenciação estaria em acordo com distinções qualitativas entre os grupos em confronto. A superioridade de um herói configuraria, em termos conotativos, a superioridade de uma nação. Hegel desenvolve também, em sua argumentação, a exigência de unidade de uma obra épica (HEGEL, 1993, p. 584). Havendo uma diversidade de aspectos na obra, desenvolvidos ao longo de sua extensão, essa diversidade se integra em uma “totalidade” (HEGEL, 1993, p. 585). Assim como deve haver um senso de totalidade no conjunto da obra, o mesmo deve ocorrer na configuração do herói. Hegel define os heróis épicos como [...] indivíduos totais que em si mesmos realizam uma síntese brilhante dos traços dispersos e dissociados do caráter nacional, o que faz deles caracteres essencialmente livres, humanamente belos, confere a esses nobres personagens o direito de figurar num plano superior e impõe-nos o dever de unir o principal acontecimento à sua individualidade (HEGEL, 1993, p. 585).
Articulada com essas duas categorias, o nacionalismo e a unidade, Hegel integra à descrição do herói épico a disposição para o comportamento cruel. Isso significa, no contexto em discussão, a capacidade de agir com violência. A vingança pessoal, e também uma certa crueldade, fazem parte desta energia das épocas heróicas. Ainda sob este aspecto, Aquiles, como caráter épico, está acima das censuras que lhe poderiam infligir em nome da moral (HEGEL, 1993, p. 585).
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A “energia das épocas heroicas” se refere ao campo de tensão dos confrontos históricos. A referência às “censuras que lhe poderiam infligir” consiste em um desafio para a interpretação. Hegel deixa aqui aberta a possibilidade de que atos cruéis, em sua opinião, em alguns contextos, possam ser reprováveis. No entanto, como indica pelo exemplo de sua avaliação de Aquiles, determina que, no caso das ações épicas, as ações cruéis têm um valor afirmativo seguro. Essas afirmações, levando em conta a análise que Hegel faz da cólera de Aquiles, permitem a formulação, por articulação dos elementos, de algumas observações. • Hegel considera um personagem cruel “humanamente belo” e não vê nisso nenhuma contradição lógica; • O pensador considera a crueldade parte de um “plano superior” a ser admirado como elevado; • Sendo o herói épico o indivíduo total que resguarda os elementos fundamentais da nação, e sendo ele cruel, a nação deve também ser cruel, com orgulho desse fato; • A crueldade é incorporada à unidade da épica e absorvida em sua síntese, com impacto final positivo para o conjunto. Na Ilíada, especifica ainda Hegel, “a cólera de Aquiles [...] constitui o principal tema da narração” (HEGEL, 1993, p. 586). Nesse sentido, podemos inferir que a violência assume uma posição constitutiva e estrutural no gênero épico, em razão da prioridade atribuída à cólera. Se o texto de Hegel encerrasse aqui, poderíamos ser levados à conclusão de que o pensador está argumentando em favor de que o herói épico agiria como força instabilizadora ou maligna. No entanto, em seu desdobramento argumentativo, o pensador elabora a caracterização da ação épica de modo a evitar justamente esse encaminhamento conclusivo. Tudo depende, para a determinação da unidade da épica, da legitimidade das ações:
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Os acontecimentos que se realizam parecem depender absolutamente do seu caráter e dos fins pretendidos, e o que nos interessa antes de tudo, é a legitimidade ou ilegitimidade da ação no quadro das situações dadas e dos conflitos que delas resultam (HEGEL, 1993, p. 586).
Portanto, de acordo com as formulações hegelianas, não há na violência em si mesma um problema moral. O que está em questão na avaliação das ações é sua “legitimidade”, isto é, se elas estão de acordo com o campo de parâmetros de adequação considerados aceitáveis. O pensador então formula, de modo inteiramente consistente com a argumentação anterior, o problema da delimitação de condições para essa avaliação. Seria problemático julgar o herói épico se estivéssemos diante de um ser dotado de vontade autônoma agindo de acordo com convicções pessoais. Na poesia épica, para Hegel, no entanto, o que condiciona as ações é o “Destino”. Portanto, forças externas ao herói estabelecem os parâmetros para o que ele deve desenvolver. [...] os acontecimentos e a ação são, em geral, regidos pela necessidade. [...] o destino do herói épico [...] cria-se fora dele, e este poder das circunstâncias que imprimem à ação a sua forma individual, que determinam o resultado da sua atividade, e decidem assim a sua sorte, não é senão o poder do fatum. O que acontece devia acontecer, em virtude de uma necessidade inelutável [...] O destino determina o que deve suceder e sucede; êxitos ou frustrações, vida ou morte (HEGEL, 1993, p. 586).
Com o argumento da necessidade, Hegel propõe que o herói épico, enquanto realiza suas ações, cumpre um destino. A narrativa da epopeia é, portanto, a configuração de um dever-ser, em que determinações externas firmam as condições da atividade humana. Articulando esse elemento com os pontos anteriores, podemos compreender que a disposição do herói épico para
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a cólera e a violência não consiste em um problema, ou em um dilema moral, e ela corresponde à determinação de um destino. Não faria nenhum sentido, nessa perspectiva, questionar moralmente a crueldade de Aquiles se as suas ações estão conduzidas de acordo com forças de uma necessidade que ultrapassa o próprio Aquiles e que diz respeito, em última instância, à ordem do universo. Se o herói épico exerce violência, ela corresponde a uma necessidade inelutável; se inimigos são mortos, isso faz parte do processo; se há destruição e combate, isso é incorporado ao processo, em favor da síntese do conjunto. A necessidade age, como explica Hegel adiante no mesmo texto, como “razão imanente” (HEGEL, 1993, p. 587). Ela consiste em uma lógica de sustentação, segundo a qual os acontecimentos podem ser dotados de sentido, mesmo sendo situações marcadas por crueldade e destruição. As relações entre deuses e homens na epopeia recebem consideração positiva por parte de Hegel, que observa inclusive haver nos poemas de Homero mérito pela “humanização e aclimação dos próprios deuses” (HEGEL, 1993, p. 588). Isso contribui para a consolidação da dinâmica da narrativa épica, organizada de modo que todas as ações do herói épico façam sentido dentro do conjunto. Cabe articular as categorias utilizadas por Hegel de modo a reforçar a importância do fundamento político de sua concepção de herói épico. A narrativa épica é constituída de acordo com um princípio de necessidade. O herói age de acordo com o que deveria acontecer. O poema épico homenageia, na acepção hegeliana, a nação a que pertence o herói, por meio de um destino – o destino nacional soberano afirmativo. O dever-ser da narrativa corresponde à trajetória vitoriosa da nação a que o herói corresponde. Como fica, então, a crueldade? Como fica a violência? O herói épico está associado a uma imagem afirmativa da nação a que pertence. Em seu confronto com inimigos,
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na perspectiva de Hegel, o herói reforça características nacionais em contraste com fragilidades inimigas. Há legitimidade na violência. Ela está incluída nesse destino. O herói épico não deveria ser culpabilizado moralmente por agredir ou matar, em épocas heroicas, pois, de acordo com Hegel, isso faz parte. A afirmação nacional se vale da crueldade, como, na Ilíada, é necessária a cólera de Aquiles. Isso significa que há necessidade de violência na épica. Ela está legitimada como elemento constitutivo do gênero. Não incidentalmente: como componente decisivo para que o herói épico se defina, portanto, como componente constitutivo.
A violência catastrófica A Teoria Estética de Theodor Adorno elabora um diálogo crítico importante com a Estética de Hegel. Suas reflexões sobre a arte articulam a discussão das condições de produção e recepção das artes no século XX com uma erudita interpretação da tradição filosófica de debates de categorias utilizadas para discutir as diversas formas de arte, inclusive, e em destaque, categorias hegelianas. Para os fins deste trabalho, cabe concentrar a atenção especificamente a um trecho da Teoria Estética, em razão de sua concentração de ideias fundamentais para o debate aqui. Como o livro não é organizado em capítulos bem delimitados, temos de fazer alusão à edição aqui utilizada, da Editora Martins Fontes, conforme a referência bibliográfica ao final, sendo priorizado o trecho que está impresso entre as páginas 160 e 170. Entre a Estética de Hegel e a Teoria Estética de Adorno, termos de diferenciação devem ser sinalizados. • Em Hegel, há uma expectativa de organização da totalidade da produção artística em períodos – arte simbólica, arte clássica, arte romântica. Além disso, os capítulos também se dividem de acordo com modalidades de produção artística – arquitetura, música, escultura,
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pintura, poesia. As classificações em períodos e gêneros servem a um princípio dialético de sistematização, em que as partes e o todo se esclarecem reciprocamente, em favor de um conceito sintético de arte. Em Adorno, contrariamente, há um movimento de dissolução de diversas classificações tradicionais, tanto em termos de periodização como de gêneros. A convicção de que a arte só pode ser compreendida em sua concretização histórica impede que haja um conceito essencialista e, com isso, afasta uma síntese generalizadora. • Hegel elabora uma reflexão em que ideias estéticas são interpenetradas fortemente com concepções religiosas – imagens de divindades, elementos de diferentes tradições mitológicas, códigos cristãos. A superioridade da chamada arte romântica com relação à simbólica e à clássica se deve, fundamentalmente, pela maturação no modo de as manifestações artísticas entenderem Deus, com relação aos períodos anteriores, que respectivamente atribuíam traços divinos a imagens da natureza e imagens antropocêntricas. Em Adorno, o horizonte de reflexão é inteiramente diferente. O vocabulário conceitual tem, entre suas fundamentações, o marxismo (há constantes referências à arte como mercadoria), a psicanálise (alguns dos principais raciocínios do livro são elaborações do conceito de inconsciente) e uma filosofia da história contrária ao positivismo, pautada pela empatia com o impacto do horror das catástrofes do século XX. • A Estética aponta para um valor afirmativo da arte. Nos termos de Hegel, “a obra de arte tem de ser a expressão dos interesses mais altos do espírito” (p. 159). Essa elevação condiciona a interpretação das obras, no sentido de que, se há dentro dos textos a presença de elementos negativos, eles são integrados em favor de sínteses afirmativas. Em Adorno, não apenas a arte, mas nem a própria existência tem condições de receber uma síntese positiva. “Já antes de Auschwitz era uma mentira afirmativa, relativamente às experiências his-
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tóricas, o atribuir um sentido positivo à existência. Isto tem conseqüência na forma das obras de arte.” (p. 175). Essa negatividade adorniana define a diferença, a meu ver incontornável, entre as categorias interpretativas e os critérios de juízos de valor adotados por críticos orientados pela tradição idealista hegeliana e críticos interessados pela escola de Frankfurt. O trecho da Teoria Estética aqui escolhido para comentário inicia com uma alusão à relação entre as obras de arte, a “violência e a dominação da realidade empírica” (ADORNO, 1988, p. 160). As páginas seguintes desenvolvem uma reflexão carregada de tensões conceituais sobre como essa relação pode ser pensada. Em Adorno, não há lugar para determinismo nem superficialidade documental nem ingenuidade crítica. A formulação da questão abre, nessas páginas, uma reflexão sobre um dos conceitos cruciais do livro e também da disciplina, o conceito de forma. Não há nisso nada de casual: Adorno reconhece que, no contexto pós-guerra, o pensamento exige reavaliação. Séculos de civilização, ou daquilo que poderia ser considerado “civilização” em perspectiva eurocêntrica, não impediram catástrofes. Vida intelectual não impede a explosão de movimentos destrutivos. Termos que poderiam ser interpretados como autoevidentes, como a palavra “forma”, são tomados em dimensão renovada, a partir de uma perspectiva que deles exige uma dupla articulação: uma leitura que leve em conta a tradição de estudos da disciplina e também os desafios postos pelo momento presente, diante do autor, quando escreve. Trata-se de reinterpretar historicamente conceitos, sob a perspectiva da violência recente. Em linha que se distingue dos que opõem forma e conteúdo de modo estanque e esquemático, Adorno propõe uma interdependência dos elementos, observando inclusive que, do ponto de vista crítico, é comum ocorrer uma dificuldade de isolar a forma (ADORNO, 1988, p. 162), bem como entender que a hermenêutica consista em uma transposição de elementos formais em conteúdos (ADOR-
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NO, 1988, p. 161). Com esses pressupostos, o pensador elabora uma reflexão sobre os empregos do conceito. A primeira ideia que gostaria de aqui enfatizar é a seguinte: “Na sua relação com o seu outro, cuja estranheza atenua, e no entanto, mantém, ela é o elemento anti-bárbaro da arte; através da forma, a arte participa na civilização, que ela critica mediante a sua existência. [...] Forma e crítica convergem.” (ADORNO, 1988, p. 165) A ambiguidade constitutiva que Adorno atribui à forma me parece central. Criticar a civilização e, necessariamente, fazer parte dela, uma condição antagônica da obra de arte. Essa generalização nasce de leituras de Kafka e Paul Celan, e ganha abrangência em razão de uma proposição política, sobre como deveria ser composta a história literária. A afirmação “Forma e crítica convergem” remete diretamente ao ensaio “Crítica cultural e sociedade”, em que Adorno expõe a situação do crítico dentro de aporia similar. Ao apontar problemas e contradições da sociedade, não é possível se colocar em um lugar externo a ela. O crítico o faz de dentro da sociedade, de modo que está inscrito nas contradições, e não imune a elas. Na convergência indicada pelo autor poderia estar a impossibilidade – tanto no caso da forma artística, como no caso do trabalho crítico – de estar fora da história, fora da sociedade, fora das contradições dos processos concretos da existência coletiva. A obra apontaria o que há de terrível em um contexto, e estaria ciente de que constituiria sua existência estética dentro desse mesmo contexto. A forma precisa manejar as condições de visibilidade da experiência, de modo que ela possa ser compreendida, mas não a ponto que ela perca seu impacto. Seu “elemento antibárbaro” corresponde à sua relação com sua capacidade crítica da civilização. É de fundamental importância na argumentação de Adorno o ponto em que ele propõe a ideia de que a forma é uma mediação:
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A forma é mediação enquanto relação das partes entre si e com o todo e enquanto plena elaboração dos pormenores. [...] A forma procura fazer falar o pormenor através do todo. Tal é, porém, a melancolia da forma [...] Isto confirma o trabalho artístico do formar que incessantemente seleciona, amputa e renuncia: nenhuma forma sem recusa (ADORNO, 1988, p. 166).
Essa concepção, que envolve um componente de complementaridade e um componente metonímico, elabora a ideia de unidade interna da obra de arte de um modo tenso: as partes se relacionam entre si, e se relacionam com o todo, e a cada movimento constitutivo há uma seleção, uma renúncia, isto é, as relações estabelecidas não são sintéticas, elas são parciais, limitadas. Trata-se de uma concepção fragmentária da obra de arte, em que o movimento de constituição de significado é também um movimento de exclusão de parte de uma possibilidade do significado, uma recusa e, portanto, uma perda – definindo, assim, uma condição melancólica. Este é um momento da reflexão de Adorno muito afinado com o pensamento de Walter Benjamin. Logo depois, Adorno se dedica a uma reflexão sobre Hegel, e avalia a importância que nele assume a concepção de conteúdo. A incorporação de Hegel à reflexão ocorre de modo duplo – Adorno aponta uma afinidade com seu antecessor para, em seguida, tomar imensa distância de seu posicionamento. É depois de passar por observações sobre música que Adorno chegará a um ponto exigente desta reflexão: A arte de elevada pretensão tende a ultrapassar a forma como totalidade, e desemboca no fragmentário. [...] Uma vez desembaraçada da convenção, nenhuma obra de arte pode já manifestamente concluir de modo convincente, enquanto que os desenlaces tradicionais apenas procedem como se os momentos singulares se associassem com o ponto final para constituir a totalidade da forma. Em numerosas obras da modernidade que, entretanto, foram objeto de
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ampla recepção, a forma manteve-se habilmente aberta, porque queriam provar que a unidade da forma já não lhes era garantida. A má infinitude, o não-poder-concluir, torna-se princípio livremente escolhido de procedimento e expressão. Nas suas peças, ao repetir literalmente um excerto em vez de o interromper, Beckett reage a tal fenômeno; há quase cinqüenta anos, Schönberg procedeu de modo semelhante na marcha da serenata: após a supressão da repetição, retorno desta por desespero. O que Lukács chamou outrora a “descarga do sentido” designava a força que permitia à obra de arte – ao ter de confirmar a sua definição imanente – terminar segundo o modelo daquele que morre de velhice e de saturação vital. Que isso seja recusado às obras de arte, que também não possam morrer como o caçador Gracchus, é por elas imediatamente integrado como expressão de horror. A unidade das obras de arte não pode ser o que ela deve ser, a unidade da variedade: ao sintetizar, ela viola o sintetizado e prejudica nele a síntese (ADORNO, 1988, p. 169).
A diferença entre uma obra configurada como totalidade fechada e uma obra constituída de modo aberto e fragmentário envolve distinção de valor na modernidade, estando os parâmetros estéticos libertos das convenções da tradição. A inclinação à fragmentação pode encaminhar a forma para um senso de inconclusão, configurado como má infinitude, em que a atribuição de sentido para a experiência pode ser sempre precária e incerta. É a melancolia da forma: os elementos podem se relacionar de múltiplas maneiras entre si e com o todo, mas não há uma definitiva maneira, nem uma última conclusiva. Isso coloca a obra no campo oposto à configuração da épica caracterizada por Hegel, em que uma necessidade ditava o sentido das ações, não sobrando espaço para nada gratuito ou casual. O destino lá era responsável pela determinação dos parâmetros de entendimento do vivido. Adorno fala aqui também de uma recusa à morte de “velhice e de saturação vital”, isto é, em condições esperadas pela passagem linear do tempo, como elemento
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sinalizador do fim de uma obra. Os exemplos de Beckett e Schönberg, assim como a referência a Kafka, apontam para uma contrariedade à concepção ordinária de tempo linear. Diferentemente, Adorno pede uma “expressão de horror” e apresenta uma aporia conceitual. Cabe lembrar que Hegel, ao elaborar sua concepção de épica, expõe que o gênero efetiva uma síntese de traços nacionais, na composição do herói e por meio dos episódios apresentados. Adorno, interessado prioritariamente na arte das décadas mais recentes, entende a obra de arte em uma constituição antagônica. A atribuição de síntese totalizante contraria essa percepção, criando uma falsa imagem de equilíbrio. A aporia final do trecho, aforismo provocador e perturbador, propõe que a unidade da obra de arte, ao compor uma totalidade, “viola o sintetizado”, isto é, contraria a própria matéria da qual a forma se constitui, e impede que essa matéria processe a sua condensação em uma unidade. A aporia, portanto, descreve uma negatividade constitutiva da obra de arte, uma unidade que, em seu processo, nunca se conclui, sob o risco de contrariar os fundamentos de sua própria constituição. A forma permanece fragmentária, aberta, em tensões internas, em construções de sentido parciais e, com isso, o movimento de sua constituição não deixa de ocorrer. Retomando um ponto anterior, cabe articular essa concepção da arte como incompletude, da forma como crítica por meio da estranheza e da fragmentação, com a ideia inicial de uma “violência e a dominação da realidade empírica”. Creio que há uma ligação indissociável entre a percepção do contexto e a concepção estética. Na base de problemas elaborados por Adorno, tanto na Teoria Estética como em outros trabalhos, está o impacto da violência histórica recente. A Segunda Guerra Mundial, os campos de extermínio, as dificuldades de elaborar uma perspectiva histórica renovada. O ensaio Educação após Auschwitz formula de modo explícito um princípio geral que está em muitos de seus
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trabalhos – a ideia de que os campos de extermínio não devem se repetir, e que a pedagogia e os conhecimentos devem servir a esse propósito. Nesse sentido, Adorno defende a procura de políticas de não repetição da violência histórica. No caso de um contexto histórico sob intenso impacto da violência recente, o pensador propõe uma renovação de parâmetros, para que Auschwitz não se repita, quer dizer, a catástrofe não seja continuidade nem regra. Parte do pensamento de Adorno (em Dialética Negativa, por exemplo) consiste em desenvolver uma filosofia da história que reconheça a presença da violência, mas a recuse, criticamente. E que, diferentemente do darwinismo social e de outras correntes, não a justifique nem a legitime. Se a violência entra no campo estético, e a arte se submete a uma síntese totalizante, e nesta tudo se unifica, para a perspectiva adorniana, isso seria abrir mão do “elemento antibárbaro da arte”, seria configurar a violência sem “melancolia da forma”. Desse modo, as condições de possibilidade de a arte cumprir um papel favorável ao reforço acrítico de presença da violência estariam dadas. Isso é inaceitável para sua posição política antiautoritária.
Teorizações comparadas Estabelecendo critérios de comparação, podemos distinguir as orientações de Hegel e Adorno, de modo a avaliar as diferenças entre suas proposições. A categoria do nacionalismo é fundamental para o primeiro. Adorno trabalha em um contexto posterior à Segunda Guerra, em que a crítica às consequências nefastas do excesso de apelo ideológico nacionalista na Alemanha é crucial, e as mistificações nacionalistas são incompatíveis com suas proposições estéticas. Em Hegel, é fundamental também o conceito de totalidade. A unidade da obra é articulada como síntese totalizante dos elementos que a constituem. Adorno, por sua vez, com sua concepção de uma melancolia da forma,
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aponta para uma má infinitude. A produção de sentido da obra se constitui nas relações entre seus fragmentos, sem se atingir uma totalidade conclusiva. Para sustentar esses elementos, o nacionalismo e a totalidade, Hegel se vale do princípio da necessidade interna, segundo o qual não há acasos e tudo acontece de acordo com determinações, de modo que no conjunto todos os elementos se integram. Diferentemente, em Adorno, prevalece a ausência de síntese. O objeto de estudo, em sua delimitação contextual, merece atenção. O trecho da Estética aqui escolhido consiste em uma caracterização da epopeia que valoriza particularmente Homero; o trecho da Teoria Estética aqui escolhido consiste em uma reflexão sobre a forma na arte recente, com referências a Beckett, Kafka e Schönberg. De acordo com Michael J. MacDonald (2005), o interesse de Hegel por Homero não se restringe ao campo do estudo da épica. Haveria uma analogia, estudada amplamente por seus comentadores, entre a narrativa de Homero e a estrutura da Fenomenologia do Espírito, livro dedicado à concepção de conhecimento do pensador. A reflexão de MacDonald aponta para a ideia de que Hegel teria encontrado em Homero um modelo de sonho de totalização adequado à expectativa de um conhecimento sintético, e que, nesse sentido, uma ligação epistemológica seria estabelecida entre o processo narrativo e a produção de conhecimento. No entanto, a partir de uma discussão de ética contemporânea, MacDonald questiona a viabilidade dessa totalização. Susan Buck-Mors, em artigo de 2000, fez uma leitura perturbadora de Fenomenologia do Espírito, a partir de uma dupla chave – recuperando o seu contexto de condições de produção, e discutindo suas condições de leitura atuais. Centrada nas categorias do senhor e do escravo, a autora coloca em questão a viabilidade de aceitar a argumentação hegeliana para a interpretação dos processos históricos. Ambos os artigos estão ligados a perspectivas conceituais contrárias tanto a ideologias nacionalistas como ao
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colonialismo, e estão inscritos em pautas éticas recentes. A argumentação que ambos elaboram com relação à Fenomenologia do Espírito poderia ser estendida à Estética. A ampla influência da teoria dos gêneros de Hegel nos estudos literários poderia ser reavaliada, tendo em vista os fundamentos políticos da Estética e a possibilidade contemporânea de sua crítica. Duas objeções poderiam ser feitas a essa atitude: a preservação do discurso de base hegeliana está associada à valorização respeitosa de fundamentos de nossa civilização, sendo a epopeia clássica e medieval um dos principais entre esses fundamentos; a crítica ao discurso hegeliano sobre a épica poderia ser considerada uma crítica inócua, uma vez que a produção de epopeias se tornou um fenômeno atípico e muito pouco presente na modernidade, dando lugar ao romance e a outros modos de elaboração da prosa. Sobre a primeira objeção, que expressa um discurso político conservador canônico, seria necessário chamar a atenção, com Adorno e Freud, para o componente negativo da assim chamada “civilização”, o que há nela de regressivo, de barbárie, enumerar os genocídios, os massacres coloniais, e com isso retomar o tema da violência de modo incisivo. A segunda objeção desconsidera a incorporação de componentes da epopeia por uma ampla diversidade de produções culturais, incluindo a chamada literatura best-seller. O cinema de Hollywood mantém uma linha continuada de produção de filmes de apelo comercial em que nacionalismo, totalização e crueldade fazem parte de um modelo com décadas de existência. Distorções, reelaborações mistificadoras e espetáculos que exploram heranças da épica estão à volta. A comparação entre os dois trechos aqui escolhidos tem uma vantagem para a visibilidade do problema. Ela ajuda a entender por que tradicionalmente, de modo geral, a historiografia e a crítica, na tradição eurocêntrica, elogiam a épica, e não consideram a presença de cenas de violência um fenômeno especificamente perturbador, ao passo que, na contemporaneidade, em diversos países,
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têm surgido algumas linhas de pesquisa voltadas para as relações entre cultura e violência, e um componente de perplexidade se integra ao processo de avaliação estética das obras. De fato, um aspecto central do problema está na necessidade interna da ação violenta no conjunto do enredo, para os fins de homenagem da nação – e aqui temos claro que estamos falando da compreensão criada por Hegel da epopeia, e não necessariamente da epopeia como fenômeno da Antiguidade e da Idade Média. O herói épico, ao agir com crueldade, age em favor do que é necessário, determinado. Como mencionado anteriormente, “Aquiles, como caráter épico, está acima das censuras que lhe poderiam infligir em nome da moral” (HEGEL, 1993, p. 585), o que remete, em termos de uma avaliação do comportamento violento, a uma legitimação, que exclui a condenação. Caberia relacionar a este problema categorias como culpa, inocência, violação dos princípios de uma consciência, que são categorias elaboradas por Hegel na Fenomenologia do Espírito, em uma passagem dedicada à reflexão sobre o agir. Nessa passagem, é explicitado o papel da guerra como “o-que-mantém o todo” (HEGEL, 1993, p. 31). Discutindo as relações entre ética e ação, Hegel propõe a negatividade como elemento a ser incorporado ao processo na totalização. A perspectiva a partir da qual escreve Adorno supõe um contexto marcado pelo impacto da Segunda Guerra Mundial, em que as referências à violência de guerra são caracterizadas pela indignação e pela atitude crítica, sendo o ensaio Educação após Auschwitz (ADORNO, 1986) a expressão exata da convicção de Adorno de propor uma série de transformações pedagógicas para que a escala de violência não se repita. Ocorre que, em Adorno, ações violentas são necessariamente examinadas em perspectiva ética, e a prerrogativa admitida por Hegel para a cólera de Aquiles está ausente. O modo como Hegel emprega a noção de necessidade foi problematizado por Adorno em seu livro de estudos
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sobre o filósofo. A necessidade externa seria, na filosofia hegeliana, um fator de condicionamento da liberdade humana, de modo que o ser humano estaria implicado duplamente, em suas relações com a coletividade, em uma ilusão de liberdade individual, e em uma insignificância diante das obrigações com relação ao conjunto do qual faria parte (ADORNO, 1993, p. 46). Na Dialética Negativa, Adorno fará uma proposição enfática de contrariedade à filosofia hegeliana, ao rejeitar o princípio da totalização do processo histórico, a grande síntese da Fenomenologia do Espírito, que encontra similar no efeito de conjunto na grande narrativa épica da tradição que tanto admira. Diz Adorno que o princípio do absoluto total é contraditório em si mesmo. Uma vez supostamente constituído, ele suspende as condições lógicas e temporais que são necessárias para a sua constituição (ADORNO, 1999, p. 318). Seguindo o raciocínio de Adorno, podemos observar na imagem que Hegel propõe da epopeia uma espécie de hipérbole da unidade nacional, um universo em que a configuração nacional é soberana e não se submete à falha nem à fragilização. A função política dessa hipérbole é afirmativa, servindo à consolidação mistificadora da unidade nacional, nos termos definidos por Raoul Girardet (GIRARDET, 1987), falseando conflitos existentes em favor de uma imagem de conjunto harmoniosa. Cabe perguntar o que acontece, nesse sentido, no mundo de Beckett e Kafka, quando um personagem se dispõe à cólera e à crueldade. Manter a perspectiva ditada pelo vocabulário conceitual da Estética de Hegel poderia, dentro de uma visada anacrônica, exigir a dissociação entre violência e moralidade. Ou ainda, entre violência e ética. No entanto, uma perspectiva ditada pela Teoria Estética de Adorno, diferentemente, apontaria para a convergência entre forma e crítica. A presença, em uma obra, de cenas de violência não poderia ser lida fora de um contexto histórico. Ao longo da Teoria Estética, são examinados casos como o de Paul Celan, poeta que abordou a Segunda Guerra Mundial,
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em que a violência assume um papel complexo. Ao mesmo tempo em que não cabe representá-la de modo superficial e direto, para não trivializá-la nem reduzi-la, é necessário reinventar a linguagem para elaborar condições de lidar com o que foi vivido. Situações extremas, limítrofes como essa, em que a literatura se constitui em uma condição em que quase cede à própria impossibilidade de se sustentar, correspondem à concepção de melancolia da forma. Haveria, portanto, na epopeia tal como Hegel a descreve, uma empolgação com o conflito, justificado e legitimado, e na violência pós-guerra tal como Adorno a caracteriza, uma tensão incontornável, incompatível com qualquer justificação. A comparação entre os dois referenciais teóricos aponta para a impossibilidade de dissociar, no debate conceitual, os campos estético, ético e político.
Referências ADORNO, Theodor. Crítica cultural e sociedade. In: _____. Prismas. São Paulo: Ática, 1998. _____. Educação após Auschwitz. In: _____. Sociologia. São Paulo: Ática, 1986. _____. Hegel: three studies. London: The MIT Press, 1993. _____. Negative dialectics. New York: The Continuum Publishing Company, 1999. _____. Teoria estética. Lisboa: Martins Fontes, 1988. BUCK-MORSS, Susan. Hegel and Haiti. Critical Inquiry, Chicago, v. 26, n. 4, p. 821-865, 2000. GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologías políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. HEGEL. Estética. Lisboa: Guimarães, 1993. _____. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1993. v. 2. MAC DONALD, Michael J. Hegel, Lévinas, and the limits of narrative. Narrative, Ohio, v. 13, n. 2, p. 182-194, 2005. Agradeço a João Camillo Penna e Ricardo Amaral, pela leitura atenta do esboço deste trabalho.
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A persistência de questões de ordem ontológica na Literatura Moderna: uma perspectiva para a Crítica Literária Moderna Alessandro Zir*
resumo: Em termos mais gerais, o presente artigo trata de como Jornalista e filósofo com publicações no Brasil, Chile e Portugal, incluindo capítulos de livros, artigos, traduções e ficção. Membro do Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das Ciências (GIFHC) e do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS (ILEA). Tem apresentado trabalhos em simpósios internacionais em instituições como o Max-Planck-Institut für Wissenschaftsgeschichte (Berlim, Alemanha), a Biblioteca Municipal de Evora (Portugal) e a Universidade Católica Portuguesa (Braga, Portugal). É bolsista da Capes, tendo realizado seu doutorado integralmente no Interdisciplinary PhD Program da Dalhousie University (Halifax, Canadá), em julho de 2009. Endereço: Rua Mostardeiro 1035, apto 501. Bairro Moinhos de Vento. Cep. 90430-001. Porto Alegre, RS, Brasil. Fones: (51) 30192281; (51) 92505687; E-mail: azir@ dal.ca *
questões de ordem ontológica determinam a especificidade e excelência da literatura em relação a outras áreas da cultura. Esse ponto é particularmente evidente nas teorias de crítica literária típicas do Renascimento, que herdam muitas das concepções clássicas sobre a atividade poética, a partir de tradições neoplatônicas. Mais especificamente, defende-se neste artigo a tese de que questões de ordem ontológica permanecem determinantes para a literatura moderna. No final do artigo, tal tese é ilustrada com referência a obras de dois autores-chave da literatura moderna brasileira, Clarice Lispector e João Guimarães Rosa. palavras-chave:
ontologia, excesso, literatura, ficção
abstract:
Generally speaking, this paper addresses the question of how ontological issues determine the specificity and excellence of literature in relation to other cultural fields. This point is particularly patent in the theories of literary criticism that are typical of Renaissance, inheriting as they do, from neo-Platonic traditions, many of the classical conceptions of poetical activity. More specifically, it is defended in this paper the thesis that ontological issues remain determinant to Modern literature. Towards the end of the paper, this thesis is illustrated with reference to works of two key authors of Brazilian Modern literature, Clarice Lispector and João Guimarães Rosa. keywords:
ontology, excess, literature, fiction
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1. A base ontológica de certas concepções humanistas (de origem neoplatônica) sobre poesia e ficção Conforme afirma Boccaccio, o poeta é aquele que “esconde da forma mais engenhosa” (quanto artificiousius potest abscondit) “sob o véu da ficção, as coisas que ele concebe imaginando” (quod meditando concepit sub velamento fictionis) (BOCCACCIO, 1965, p. 1016). Tal ideia não parece, em princípio, original, exceto quando se atenta para o fato de que o tipo de atividade ficcional aqui referida não é entendido por Boccaccio como sendo da ordem da mentira. Antes do que distorcer, a poesia tentaria capturar “o que a natureza faz com seus poderes” (conari quod agit natura potential) (BOCCACCIO, 1965, p. 1018)1. Seria possível dizer, das duas citações de Boccaccio tomadas em conjunto, o que François Warin e Philippe Cardinale um dia dirão sobre Nietzsche: “tous les partage classiques entre dehors et dedans, entre vérité et illusion, sont comme brouillés et il faut, sans jamais trouver le repos, tourner et retourner d’un point de vue à l’autre, ‘comme à l’hippodrome’, en risquant donc l’auto-référentialité” (NIETZSCHE, 1999, p. 52-53). Entretanto, o que serviu de modelo a Boccaccio, claro, não foi Nietzsche, mas Platão. Platão, usualmente tomado como o mais conservador e tradicional dos filósofos, é reativado por Boccaccio e os humanistas italianos da forma mais iconoclasta. E o próprio Nietzsche não se surpreenderia, quem sabe, com isso. Numa passagem dos seus cadernos, escrita em janeiro de 1871, o filósofo alemão elogia Platão, em itálico, como sendo uma “natureza artística” (Künstlernatur), responsável pelo estabelecimento da crença de que “o mundo das representações é mais real do que o mundo existente” (daß die Welt der Vorstellungen realer ist als die Wirklichkeit) (NIETZSCHE, 1978, p. 114)2. De fato, a ideia defendida por Boccaccio de que a atividade poética, ao mesmo tempo em que fictícia, captura a natureza como “processo formativo” – para utilizar um termo empregado por Umberto Eco em suas análises da
A passagem completa está em Genealogia Deorum Gentilium: “Phylosophus – ut satis patet – silogizando reprobate quod minus verum existimat, et eodem modo approbat quod intendit, et hoc apertissime prout potest; poeta quod meditando concepit sub velamento fictionis, silogismis omnino amotis, quanto artificiousius potest abscondit.” 1
Platão e Nietzsche têm sido tomados como representantes de perspectivas filosóficas completamente antitéticas. No entanto, o próprio autor que propôs uma leitura da filosofia de Nietzsche em termos de uma subversão do platonismo (Umdrehung des Platonismus) questionou o quão longe tal subversão poderia mesmo ir, e até que ponto ela supera Platão. De qualquer forma, não se trata de simples oposição ou inversão (HEIDEGGER, 1961, p. 242). 2
A persistência de questões de ordem ontológica...
É preciso atentar aqui também para o fato de que tal tradição, a que se pode chamar neoplatônica, está longe de ser estritamente platônica. Sabese que autores como Plotinus e Proclus, que dela fazem parte, em verdade fundem elementos comuns tanto à filosofia de Platão como à de Aristóteles (GILSON, 1947, p. 585; cf. KLIBANSKY, 1981, p. 40; SAFFREY, 1990, p. 131-140). Tais autores foram também altamente influenciados por inúmeras ideias esotéricas e mágicas que proliferam nos tratados gnósticos e herméticos típicos dos séculos II e III d.C. Para neoplatônicos como Iamblicus, Syrianus e Proclus, a teurgia, em verdade, se torna mais importante do que a filosofia (SAFFREY, 1990, p. 33; cf. FESTUGIERE, 1950, p. 3-14). Mais tarde, neoplatônicos cristãos como o pseudo-Dionísio cooptarão para o Cristianismo os inúmeros agentes espirituais pagãos – deuses, arcanjos, anjos, demônios, heróis, almas – cultuados pelos neoplatônicos do período helênico (WALKER, 2000, p. 47; cf. DENYS, 1970, p. lviilxxi; cf. KLIBANSKY, 1981, p. 19). 3
“...il conducere a la contemplazione de le cose divine e il destare in questa guisa con l’imagini, come fà il teologo mistico e il poeta, è molto più nobile operazione che l’ammaestrar con le demonstrazioni comè officio del teologo scolastico...”
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estética medieval (ECO, 1989, p. 41-42; cf. ECO, 1988, p. 165) – ganha inteligibilidade diante de uma tradição que remonta a Platão e vai pelo menos até o humanismo italiano3. Em primeiro lugar, temos a concepção da atividade poética como inspirada por um divino furor (manias gignomenês apo theôn), que aparece em passagens do Fedro e do Íon (PLATO, 1966, p. 245a-b; cf. PLATO, 1962, p. 533C-534a). Essa concepção foi altamente valorizada pelos humanistas italianos tais como Cristoforo Landino, Antonio Maria de’ Conti, Ammirato, Bernardo Tasso, Agnolo Segni e Torquato Tasso, a ponto de que tais autores frequentemente ignoraram, sem nenhum constrangimento, as advertências feitas também pelo próprio Platão contra a poesia na República (WEINBERG, 1963, p. 79-80; 267268; 278-279; 282-283; 300-301; 340; cf. PLATO, 1969, p. 378c-e; 380a-c; 391e; 392b). Dentro dessa tradição, as ficções produzidas pelos poetas são relacionadas a parábolas e outros textos místicos de ordem teológica, que buscam expressar aquilo que é divino, e, nesse sentido, são tidas como superiores a descrições filosófico-escolásticas (WEINBERG, 1963, p. 279; 340). Tasso, por exemplo, numa passagem cujo significado repete Boccaccio, diz o seguinte: “o conduzir à contemplação de coisas divinas, e tal provocação por via de imagens, como é feita pelo teólogo místico e o poeta, é muito mais nobre do que o ensinar pela demonstração, como é tarefa do filósofo escolástico” (TASSO, 1959, p. 529)4. Ideias muito semelhantes podem ser encontradas também em teorias francesas (mais ou menos do mesmo período) sobre poesia (PATTERSON, 1966, p. 318-319; 441; 444-445; 499-504; 621; 623; 761-762; 837-838; 936-938).
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1.1 Eide e excesso (ontológico) A aclamação, que vemos em todos esses autores, da superioridade e excelência da poesia no que diz respeito a um acesso ao divino tem base também na ideia de que o divino é algo excessivo, que não pode ser entendido em termos de categorias discursivas ordinárias. Tal ideia
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encontramos igualmente explicitada em Platão, em diálogos como o Parmênides, que tem uma longa tradição de comentários entre os neoplatônicos e neoplatônicos cristãos. Esse diálogo trata das chamadas “formas” ou “ideias” platônicas (eide), sobre o que pode ser dito delas e da participação (metalambanô) das coisas nelas (PLATO, 2002, p. 131e; 133b; 134bc; 135a). Uma caracterização da experiência que temos do mundo em sua pluralidade demanda a consideração da participação das coisas em determinados protótipos: assim, dizemos que uma folha é verde, não porque tal folha seja idêntica ao que entendemos por verde, mas porque ela participa da ideia de verde (assim como ela participa da ideia de folha). Mas o que seriam as ideias elas próprias? Ideias, aqui, estão longe de significar uma projeção daquilo que ocorre na mente. Trata-se, muito antes, do contrário: tudo que ocorre na mente de uma pessoa ou na sua realidade externa é uma emanação participativa de uma realidade de tipo ontológico mais fundamental. A tal realidade, por sua vez, não se tem acesso direto. Nenhuma das ideias, em si mesma, é conhecida (gignôsketai) por nós, pois não temos conhecimento absoluto (autês epistêmes), quer dizer, temos conhecimento apenas daquilo que participa de tais ideias (PLATO, 2002, p. 134b). Em seu comentário ao Parmênides, Proclus chama atenção para a “hesitação” (oknos) com que o diálogo se inicia (quando Antífon está para recontar o encontro entre Sócrates e Parmênides). Ela seria, por si mesma, uma “imagem (eikôn) da força oculta e inefável (apokruphon kai arrêton dunameôs) das causas divinas” (PROCLUS, 1962, p. 119; cf. PROCLI, 2007, p. 680.10-20). Pseudo-Dionísio é o autor que, diretamente influenciado por Proclus, e se apresentando como discípulo direto de São Paulo, efetivamente cristianiza tais noções, dando origem ao que se chama de teologia negativa (WALKER, 2000, p. 47; cf. DENYS, 1970, p. xi; lvii-lxxi; cf. KLIBANSKY, 1981, p. 19; cf. LYTTKENS, 1953, p. 106-107; cf. SAFFREY, 1990, p. 75; cf. CHENU, 1957, p. 133).
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Deus é um princípio divinizante (thearchia), situado “além” (huper) de toda “essência e de toda vida” (ousian kai zôen) (DENYS, 1970, p. 140C-D; cf. 66-67). As coisas, o tempo todo, emanam e tentam retornar a Deus, mas isso se dá em níveis ontológicos (entre seres encarnados, serafins, querubins, tronos, dominações, virtudes, poderes, arcanjos, anjos). Entre tais níveis, aqueles que são superiores têm características que excedem os inferiores (DENYS, 1970, p. 121A; cf. 164D-168A; cf. 177C). Esse ponto será repetido por São Tomás de Aquino (Summa Theologiae, Pars I, quaest. 108, article 5; AQUINAS, 1941, p. 647b10). A maioria dessas ideias sobrevive pelo menos até o Renascimento, e pode ser encontrada em autores como Marsílio Ficino e Pico della Mirandola (TURNBULL, 1998, p. 189-190; cf. ALLEN, 1982a, p. 176-177; cf. ALLEN, 1982b, p. 27; cf. CRAVEN, 1981, p. 129). Em sua Teologia Platônica, Ficino mantém que espíritos encarnados têm de superar a si mesmos de forma a poder conceber o que é a ideia (em sentido platônico) de algo (supra seipsum ascendere ad ideam) (FICIN, 1964, v.2, p. 150; cf. 154). Há uma maior distância entre as formas divinas e naturais do que entre as formas naturais elas mesmas (FICIN, 1964, v. 2, p. 254). Pico della Mirandola vai falar de uma união eterna e indivisível entre espécies inteligíveis e mentes angélicas, ao contrário do que ocorre no intelecto humano, em que tal união é vaga e de tipo ordinário: “[…] species angelicae menti individual copula, non ut numano intellectui accidit vaga et translatitia, perpetuis nexibus uniuntur” (MIRANDOLA, 1969, p. 25). Esse pano de fundo ontológico, do divino como algo excessivo, é o que dá força e significado à noção de que a atividade poética – como não-literal, produtora de ficções, alegorias, parábolas (e inspirada por um furor divino) – é superior à filosofia de tipo escolástico, por ser capaz de expressar o divino. Autores que têm estudado o período que vai da alta Idade Média à Renascença tardia referem-se constantemente à ideia de um excesso (ontológico) original que transborda (déborde) as coisas, instituindo uma deman-
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da inesgotável de interpretações e discursos figurativos5. Seria possível falar de uma função metonímica originária, em nível ontológico, visto que todas as coisas decorreriam de uma fonte superabundante da qual elas participam apenas de forma parcial, e à qual só podem se referir por meio de uma infinidade de processos linguísticos insuficientes e não literais (cf. ZIR, 2009, p. 80).
2. A permanência de questões de ordem ontológica na literatura moderna (incluindo a brasileira) Autores como Michel Foucault e Umberto Eco têm apontado para o fato de como a literatura, a partir dos simbolistas franceses, reata com tradições místico-literárias proeminentes em períodos como o Renascimento, as quais dão ênfase à linguagem na sua dimensão analógica e interpretativa, de fundo ontológico mais do que representacional. De acordo com Foucault, para muitos autores do século XVI: [...] la signification des signes n’existait pas, car elle était résorbée dans la souveraineté du Semblable; mais où leur être énigmatique, monotone, obstiné, primitif, scintillait dans une disperions à l’infini... On peut dire en un sens que la ‘littérature’, telle qu’elle s’est constituée et s’est désignée comme telle au seuil de l’âge moderne, manifeste la réapparition, là où on ne l’attendait pas, de l’être vif du langage... de Hölderlin à Mallarmé, à Antonin Artaud –, la littérature n’a existé dans son autonomie, elle ne s’est détachée de tout autre langage par une coupure profonde qu’en formant une sorte de ‘contre-discours’, et en remontant ainsi de la fonction représentative ou signifiante du langage à cet être brut oublié depois le xvie siècle (FOUCAULT, 1966, p. 58-59).
Seguindo um insight similar, na direção cronológica inversa, ao analisar como a teoria dos quatro sentidos das Escrituras foi empregada por autores como Scotus Eriugena para dar conta do mundo como livro simbólico escrito por
Por exemplo, Michel Foucault diz o seguinte sobre certas práticas discursivas do século XVI: “Le propre du savoir n’est ni de voir ni de démontrer, mais d’interpréter” (FOUCAULT, 1966, p. 55). “La tâche du commentaire, par définirion, ne peut jamais être achavée... il fait naître audessous du discours existant, un autre discours, plus fondamental e comme ‘plus premier’ qu’il se donne pour tâche de restituer... On parle sur fond d’une écriture qui fait corps avec le monde; on parle à l’infini sur elle, et chacun de ses signes devient à son tour écriture pour de nouveaux discours” (FOUCAULT, 1966, p. 56). O cerne ontológico da questão é mais precisamente enfocado por M.-D. Chenu, em suas célebres análises da cultura europeia do século XII: “Écolâtres et mystiques, exegetes et naturalists, profanes et religieux, écrivains et artistes, les hommes du XIIe siècle, entre tous les médiévaux, ont en commun, imposée par leur milieu et réglant leur jugement dans une table innée des catégories et des valeurs, la conviction que toute réalité naturelle ou historique, a une signification qui déborde son contenu brut, et que révèle à notre esprit une certaine densité symbolique. Rendre raison des choses, ce n’est pas seulement l’expliquer par ses causes internes, c’est découvrir cette mysterieuse densité” (CHENU, 1957, p. 161; cf. 174-175 ; 180-181). 5
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Deus, Henry de Lubac faz alusão a uma frase de Charles Baudelaire: “l’inépuisable fonds de l’universelle analogie” (conforme citado em LUBAC, 1959, p. 124). Umberto Eco discute ideias semelhantes, sem referência explícita a Foucault (ECO, 1994, p. 154-157). Essa retomada de questões de ordem ontológica no cerne de práticas discursivas, especialmente a literatura, acaba por ser assumida quase que como “projeto” por Jacques Derrida, quando ele dá as boas-vindas a ideias como a de uma “hipérbole demoníaca” (daimonias huperbolês), que ele tira da boca de Glaucon da República de Platão, e correlaciona com “l’audace hyperbolique du Cogito cartésien” (DERRIDA, 1967, p. 87). Por meio de um engajamento com certas práticas de ordem estético-literárias, incorporadas e generalizadas em sua filosofia (MENKE, 1998, p. 167; 242), Derrida busca dar evidência àquilo que excede “la totalité du monde”, que “déborde… la totalité de l’étantité”, que extravasa “la totalité de ce que l’on peut penser”, ao mesmo tempo que institui “le monde comme tel en l’excédant” (DERRIDA, 1967, p. 87; para a expressão de Glaucon, ver PLATO, 1970, p. 509c). Trata-se do contato com aquilo que Derrida também denomina de “négativité” (DERRIDA, 1967, p. 66) e “différance” (DERRIDA, 1967, p. 96). É reconhecida a influência de Georges Bataille sobre várias dessas ideias de excesso (MENKE, 1998, p. 164), que ele conecta explicitamente com a experiência literária (BATAILLE, 1967, p. 58). Maurice Blanchot, cuja afinidade intelectual com Derrida e Bataille é também reconhecida (BIDENT, 1998, p. 40; 62; 126; 171; n. 1), num famoso ensaio sobre Les Chants de Maldoror, fala da imaginação de Isidore Lucien Ducasse como parecendo não passar por livros senão para “rejoindre les grandes constellations dont les oeuvres gardent l’influence, faisceaux d’imagination impersonnelle que nul volume d’auteur ne peut immobiliser ni confisquer à son profit. [...] les rêves vagues des religions et des mythologies sans mémoire” (BLANCHOT, 1963, p. 261). Também em sua defesa da solidão como elemento essencial da literatura, Blanchot enfatiza que aquilo a que ele se refere é, antes
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do que um estado psicológico, um estado de abertura ao ser como aparência dissimulada, que paradoxalmente é a forma com que ele mais se “revela”. O poeta é aquele que escuta a palavra silenciosa, aquela que não fala, que não se pode interromper, do ser (BLANCHOT, 1955, p. 337-340; 35-36). Estávamos até agora referindo autores exclusivamente de língua francesa (com exceção de Umberto Eco), mas também Theodor W. Adorno chamou atenção para a existência de uma dinâmica no âmago da arte e da literatura moderna, conectando-as a concepções místico-literárias do Renascimento e da Idade Média, e levando a uma desconstrução da linguagem como instrumento meramente representacional. Ao discutir a importância do conceito de beleza natural para a arte moderna, Adorno afirma o seguinte: “Je mehr Kunst als Objekt des Subjekts durchgebildet ist und dessen bloßen Intentionen entäußert wird, desto artikulierter spricht sie nach dem Modell einer nicht begrifflichen, nicht dingfest signifikativen Sprache; es wäre die gleiche, die in dem verzeichnet ist, was dem sentimentalischen Zeitalter mit einer verschlissenen und schönen Metapher Buch der Natur hieß.” (ADORNO, 1973, p. 105). Quer dizer, quanto mais a arte e a literatura (racionalmente) trabalham no sentido de uma desconstrução da linguagem como sistema meramente representacional (no limite, inclusive, do desaparecimento do próprio sujeito que as produz) – quanto mais elas se tornam modernas –, mais elas retomam sua antiga aliança com formas de pensamento que enfatizam a linguagem naquilo que ela tem de não conceitual e não mediado, não representacional, como a magia. Não que, para Adorno, a arte devesse colapsar em magia. Isso significaria mais que uma regressão, seria sua destruição. Por outro lado, a arte moderna, no entendimento de Adorno, quanto mais racional, mais estaria fadada a um confronto com (e retomada de) noções com um fundo não-conceitual e não mediado, como é o caso daquela de “beleza natural”: “Unter seinem Aspekt ist Kunst, anstatt Nachahmung der Natur, Nachahmung des Natruschönen.
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Blake se refere diretamente em sua poesia a autores místicos do início do período moderno, como Jacob Böhme e Paracelsus (BLAKE, 1988, p. 43). 6
O poeta também teria o dever de sonhar e fornecer “a place, a verbal habitat, for the goddesses, the dryads, the naiads, the Elfin, and thereby to conduct the reader to a realm of Beauty… For Poe, this was, one might say, a religion: he felt that there is a realm of being beyond the worldly domain in which we prosaically live; and that poetry is the means by which we can momentarily reach it” (SCOTT, 2002, p. xiii). 7
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Es wächst an mit der allegorischen Intention, di es bekundet, ohne sie zu entschlüsseln; mit Bedeutungen, die nicht, wie in der meinenden Sprache, sich vergegenstandlichen.” (ADORNO, 1973, p. 111). É possível conceder a ideias especulativas como essas, defendidas por autores franceses e alemães de orientação mais filosófica, inclusive um suporte historiográfico. Existe, de fato, uma considerável evidência do interesse de autores relacionados ao simbolismo francês, tais como Baudelaire, Stephanie Mallarmé e Arthur Rimbaud, por trabalhos e figuras do ressurgimento do esoterismo na Europa de finais do século XIX, o que os conectaria a tradições místicas do Renascimento e início do período moderno (MERCIER, 1969, p. 26; 29-30; 123-145; 156-172; SURETTE, 1993, p. 79; PETITFILS, 1982, p. 114-119). É com base em tais evidências que o historiador Alain ���������������������������� Mercier se sente autorizado a concluir o seguinte das Illuminations de Rimbaud: “le principe d’analogie y est appliqué par une imagination libérée jusqu’à romper les cadres habituels du langage… l’écriture des Illuminations rappelle, par-là, celle du Zohar — L’univers des correspondances entrevu par Baudelaire est conçu ici de manière radicale et absolue” (MERCIER, 1969, p. 172). Na literatura inglesa de cerca do mesmo período, os dois escritores mais emblemáticos nesse sentido, que em verdade ultrapassam os simbolistas franceses em seu engajamento com tradições místicas e esotéricas, são William Blake e o irlandês William Butler Yeats (MERCIER, 1969, p. 20)6. Da mesma forma, em um autor como Edgar Allan Poe, que foi, na verdade, uma influência tanto para Baudelaire como para Malarmé (SCOTT, 2002, p. iv; SURETTE, 1993, p. 79), encontra-se uma concepção de poesia que tem uma dimensão transcendental explícita (DELFEL, 1951, p. 23-24). De acordo com o crítico Wilbur S. Scott, para Poe, um bom poema lança “a spell, and through the artist’s manipulation of echo and rhythm, becomes an incantation which will transport the reader to an ideal realm” (SCOTT, 2002, p. vii)7. Esse ponto é ainda mais interessante quando se lembra que Poe, no famoso ensaio “The philosophy of
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composition”, ridiculariza de forma polêmica a ideia de que é por meio da intuição, em um estado de loucura (frenzy), que bons poemas são produzidos (POE, 1981, p. 151). Tal ensaio, em verdade, mostra a vitalidade de tal ideia, que lembra passagens do Fedro e do Íon. Ela devia estar ainda bem viva nos círculos literários do período, a ponto de Poe se dar ao trabalho de fazer dela uma crítica cujo teor é patentemente exagerado, conforme observado por alguns dos seus admiradores posteriores (por exemplo, Baudelaire e T. S. Eliot)8. Outra figura-chave da literatura inglesa moderna a expressar uma concepção de beleza quase transcendental é James Joyce. Tanto em A portrait of the artist as a young man como em suas notas sobre estética, Joyce afirma que sentimentos despertados por trabalhos de arte genuínos são “static”, eles nos sustentam “in rest, as it were, by fascination” (JOYCE, 2000b, p. 102). “[…] this rest is necessary for the apprehension of the beautiful” (JOYCE, 2000b, p. 103). A fonte de Joyce aqui é São Tomás, a quem ele diretamente se refere a fim de defender a ideia de que “[both] the true and the beautiful are spiritually possessed” (JOYCE, 2000b, p. 105; cf. JOYCE, 2000ª, p. 222-233). Ulysses retém muitas das práticas discursivas de autores visionários como Blake e os simbolistas franceses, embora acredite-se que Joyce justifique tais práticas mais em termos de um relativismo perspectivista do que “on the esoteric grounds of ineffability” (SURETTE, 1993, p. 81). O chamado “mythical method” de Joyce seria, assim, “an adaptation and secularization of the mystical symbolism” dos simbolistas franceses (SURETTE, 1993, p. 217). Marcel Proust teve também a sua A la recherche du temps perdu caracterizada em termos de um relativismo perspectivista, mas de uma origem quase metafísica. Como disse Samuel Beckett, a obra-prima de Proust expõe como a realidade se estabiliza para diferentes indivíduos num processo constante de “decantation, decantation from the vessel containing the fluid of future time, sluggish, pale and monochrome, to the vessel containing the fluid of past time,
Cabe, nesse sentido, lembrar que, na conferência que escreveu pouco antes de morrer, “The Poetic Principle”, Poe defende abertamente a ideia de uma inspiração pela “Beauty from above”, pela “supernatural Beauty”, em termos de uma “ecstatic prescience” (POLONSKY, 2002, p. 43-46; cf. POE, 1981, p. 235-237). Em todas essas análises, Poe está certamente confrontando ideias que ele herda do romantismo inglês, e tais textos fazem referência tanto a Samuel Taylor Coleridge quanto a Percy Bysshe Shelley. Sabe-se que estes últimos autores foram, eles mesmos, influenciados por humanistas do renascimento italiano, como Boccaccio, Ficino e Tasso, que eles liam e estudavam (ZUCCATO, 1996, p. 5-6; 20; 98-100; 118-119; WEINBERG, 1991, p. 167168). 8
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A influência em Proust de teóricos da iconografia cristã tais como Emile Mâle e John Ruskin é bem documentada (JACKSON, 1991, p. 298300). Como um exemplo concreto do uso que Proust faz de tais conhecimentos, podese citar a seguinte divagação do narrador em A l’ombre des jeunes filles en fleurs: “Je regardais les tables rondes, dont l’assemblée innombrable emplissait le restaurant, comme autant de planètes, telles que celles-ci sont figurées dans les tableaux allégoriques d’autrefois... Assises derrière un massif de fleurs, deux horribles caissières, occupées à des calculs sans fins sembalient deux magiciennes occupées à prévoir par des calculs astrologiques les bouleversements qui pouvaient parfois se produire dans cette voûte céleste conçue selon la science du moyen âge./ Et je plaignais un peu tous les dîneurs parce que je sentais que pour eux les tables rondes n’étaient pas des planètes et qu’ils n’avaient pas pratiqué dans les choses un sectionnement qui nous débarasse de leur apparence coutumière et nous permet d’appercevoir des analogies” (PROUST, 1919, v. 3, p. 6566). Proust faz também uso de livros como os Hinos Órficos em passagens importantes de seu romance, tais como o parágrafo de Sodome et Gomorrhe que caracteriza os desejos do narrador em termos de perfumes (PROUST, 1989, p. 233-234). 9
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agitated and multicoloured by the phenomena of its hours” (BECKETT, 2006, p. 513-514). Durante tal processo, os indivíduos acabariam por perder contato com uma dimensão mais essencial das coisas, que terminaria ocultada pela forma mecânica em que a experiência ordinária é estruturada pelo hábito (BECKETT, 2006, p. 517). Uma saída desse tormento seria garantida pela memória involuntária, disparada a partir de associações inesperadas, em que a literatura de Proust se foca (BECKETT, 2006, p. 522-523; 543-545)9. Numa perspectiva similar, Virgínia Woolf fala da necessidade do escritor de se expor a “sudden shocks”, “blows”, os quais “will become a revelation of some order; it is a token of some real thing behind appearances”. A autora acreditaria na existência de um “hidden pattern” escondido por trás do “cotton wool” da vida diária, que caberia à literatura revelar (WOOLF, 1976, p. 72). O célebre Orlando é frequentemente comparado a Ulysses (WOOLF, 2006a, p. xxxv), mas o livro que leva as inovações literárias de Woolf ao limite é The waves, cujas implicações místicas têm sido reconhecidas (WOOLF, 2006a: xvi; Woolf, 2006b: xii, xvi). O romance está igualmente imbricado em questões ontológicas das mais ousadas. Reunidos ao redor de um mítico Percival, xará de uma figura central dos romances de cavalaria, os cinco personagens principais caracterizam-se, antes de mais nada, por uma permanente fluidez e incompletude essencial que desafia qualquer concepção usual de identidade (WOOLF, 2006b, p. 88-110; 230 n.7). 2.1 Dois casos na literatura brasileira A literatura do século XX em língua portuguesa, produzida tanto no Brasil como em Portugal, tem entre suas figuras principais autores que também fazem jus às questões de ordem ontológica aqui enfocadas. Segundo Andrés Ordoñez, na literatura de Fernando Pessoa, a realidade existiria por meio da literatura, e o ato de fingir daria acesso a algo que está além de experiências meramente empíricas (ORDOÑEZ, 1994, p. 25; 87). Ordoñez também
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fala do uso de oximoros na poesia de Pessoa em relação à teologia negativa medieval (ORDOÑEZ, 1994, p. 43; 6568). No Brasil, Clarice Lispector e João Guimarães Rosa são os escritores cujo radicalismo os colocaria lado a lado com escritores como Joyce, Woolf e Proust (VINCENT, 1978, p. 64). Muitas das inovações introduzidas por esses dois autores em suas obras tocam no cerne de questões de ordem ontológica. Em seu romance A cidade sitiada, Lispector cria, entre Lucrécia Neves (o personagem principal) e sua cidade, um mundo que não é um mundo, ao mesmo tempo apresentado e desconstruído, revelado e escondido. Distinções ordinárias, como as entre sujeito e objeto, são ousadamente borradas, numa escrita que revela o momento singular em que pessoas e coisas são reciprocamente constituídas, independentemente de seu próprio entendimento: “A praça estava nua. Tão irreconhecível ao luar que a moça não se reconhecia” (LISPECTOR, 1949, p. 9); “Essa era a noite de São Geraldo, os flancos de um cavalo percorridos por rápida contração” (p. 24); “E sem sentir a moça tomou a forma que o homem percebera nela” (p. 46); “Lucrécia Neves olhou-a e fez com o rosto, imperceptivelmente, a expressão da cadeira” (p. 102). Um tempo infinito explode os limites do espaço: “Nos primeiros silêncios, uma égua esgazeava o olho como se estivesse rodeada pela eternidade” (p. 24). Estados animados e inanimados colapsam no que seria uma ante-sala da vida: “[...] a mocinha estremecia de medo de estar viva...”, quer dizer, ela ainda não está viva, mas já treme de medo. Certas coisas podem assumir, subitamente, um aspecto terrível, que desafia qualquer categorização e mesmo a imaginação: “[...] coisas terríveis e delicadas jaziam no chão. O parafuso perfeito” (p. 52); “Tinha medo de ver num mesmo olhar um trem e um passarinho” (p. 61); “[...] a seu lado, o menino de porcelana tocando flauta. Uma coisa sóbria, morta, como felizmente jamais se poderia imaginar” (p. 68). Até as palavras com que o livro é escrito, em sua própria materialidade, independentemente do seu significado, podem inesperadamente pular
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nos olhos do leitor, como feitiçaria: “Então o rapaz disse aquilo que era lustroso como um escaravelho: – Os seres pelágicos se reproduzem com extraordinária profusão...” (p. 30); “[...] e de repente: lá estavam os bibelôs. Quase a palavra: bibelôs” (p. 101). Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, é famoso pela complexidade e riqueza do processo de nomear. Tem-se o caso famoso da referência ao diabo por vinte e cinco nomes diferentes, agrupados num único parágrafo, tais como “o Tal”, “o Indivíduo”, “o Pé-de-Pato”, “o CoisaRuim”, “o Pé-Preto”, “o Não-sei-que-diga”, “o Outro”, etc. (ROSA, 1988, p. 29-30). Na leitura do livro, é impossível saber que palavras seriam expressões de um regionalismo genuíno e quais seriam inventadas. O mesmo vale para as inversões sintáticas e deformações morfológicas baseadas numa extrapolação analógica das inflexões do português. Como se sabe, a fala de Riobaldo não corresponde à fala de nenhum brasileiro real. Ela tem, entretanto, uma coerência, e emerge como linguagem autônoma, exatamente em sua aparente falta de lógica e irrealidade de dicção (VINCENT, 1978, p. 67-70). Os próprios objetos expressos em tal linguagem, as aventuras de Riobaldo, o mundo em que ele vive – em suma, o sertão – são coisas que permanentemente oscilam. Conforme o passado é recuperado pelo presente, Riobaldo está sempre questionando não apenas o seu significado, mas sua real ocorrência, e mesmo sua possibilidade. Oximoros são aqui determinantes, como quando Riobaldo pergunta: “O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias” (ROSA, 1988, p. 3). Em outra passagem, depois de fornecer ao seu interlocutor o nome da encruzilhada Veredas Tortas: “Eu disse, o senhor não ouviu. Nem torne a falar nesse nome, não. É o que ao senhor lhe peço. Lugar não onde” (ROSA, 1988, p. 81). Mais para o final da narrativa, há as seguintes reflexões: “Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, é sem nenhum comprador” (ROSA, 1988, p. 428); “Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me engoliu, depois me
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cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha narração?” (ROSA, 1988, p. 518).
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Kostas Axelos: o “jogo da errância” des-articulando teorias Rodrigo Guimarães*
resumo: Este ensaio busca rastrear algumas formulações sobre o
“jogo” e a “errância” nas reflexões de Kostas Axelos. Para tanto, foram analisados, especialmente, os livros Héraclite et la philosophie, Vers la pensée planétaire, Le jeu du monde e Métamorphoses, nos quais o filósofo grego desdobra esses “conceitos”. palavras-chave:
Teoria literária; jogo; errância; Kostas Axelos
abstract: This essay focuses on the formulations of “game” and
“go astray” under the perspective of Kostas Axelos’s thoughts. With this purpose were analyzed specifically his books Héraclite et la philosophie, Vers la pensée planétaire, Le jeu du monde and Métamorphoses where the greek philosopher explores deeply these “concepts”. keywords:
Literary theory; game; go astray; Kostas Axelos
A vida só possui um verdadeiro fascínio: o do jogo. Mas, e se nos é indiferente ganhar ou perder? Baudelaire Jogadores jogados / lançam de novo os dados Emily Dickinson
Professor da Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes. *
Dois pequenos ensaios de Gilles Deleuze, publicados em 1964 e 1970, demonstram bem o impacto que os livros de Kostas Axelos lhe causaram. Para Deleuze, o filósofo grego contemporâneo desenvolve um pensamento que vai além de sua formação marxista e heideggeriana, com força suficiente para criticar seus mestres “por não haverem rompido suficientemente com a metafísica, [...] por
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serem ainda prisioneiros das perspectivas que eles mesmos denunciavam” (DELEUZE, 2006, p. 104)1. Em vez das regras comprometidas com a metafísica, desperta a atenção de Deleuze um tipo de espaço público atravessado por linguagens no qual o “jogo do mundo” compreende todas as regras possíveis, justamente porque ele é capaz de tudo afirmar (inclusive o acaso, o não senso, o não Deus) e, a um só tempo, tudo negar (incluindo Deus, a natureza e o homem). Não que ele afirme o acaso, capturando-o com ardil de caçador nas redes da causalidade, ou negue a Deus (isso a “antimetafísica” já fez metafisicamente); mas ele cria uma nova logicidade, pela qual, nele, tudo se constrói e se destrói, e cada sentido participa dos outros, sem se reduzir à medida comum. Por exemplo, as expressões “pensamento planetário” ou “era planetária”, constantemente utilizadas por Axelos, reúnem em si sentidos que nem sempre se avizinham. Essa extrema mobilidade de cada um dos sentidos é destacada por Deleuze. O “planetário” quer dizer aquilo que é o errante, o migratório, o sem lugar ou fórmula, o sem sentido de viagem e de direção; indica também a era da planificação, da organização banalizante. Toda essa gama de sentidos (em errância) somente é possível, segundo Deleuze, no diálogo irredutível do fragmento com o todo (mas não no sentido da relação metafísica do relativo e do absoluto). Nessa interlocução, o “Uno só pode se dizer do múltiplo e deve se dizer do múltiplo; o Ser se diz apenas do devir e do tempo, a Necessidade, somente do acaso; e o Todo, dos fragmentos” (DELEUZE, 2006, p. 105). O que Deleuze enfatiza em seu ensaio “Falha e fogos locais” é o fato de que Axelos não privilegia, em relação ao espaço público, o aspecto da errância em detrimento do planificado, pois a errância encontra-se distante tanto do erro quanto da verdade. É por isso que, frequentemente, Axelos se vale de aforismos, de fragmentos que não pressupõem uma totalidade prévia e ordenadora sobre o caos (da qual o “pedaço” derivaria). Portanto, o aforismo não é reminiscência ou arcaísmo, afirma Deleuze, e constitui
Os ensaios acima referidos são: “Ao criar a patafísica, Jarry abriu caminho para a fenomenologia”; e “Falha e fogos locais”, publicados em A ilha deserta: e outros textos (2006). 1
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uma forma eficaz para a exploração das lacunas do mundo atual. Consequentemente, o pensamento planetário, de feição “fragmentária e fragmentada”, não é unificador e apresenta uma lógica probabilista que remete a casos e não a propriedades ou classes (DELEUZE, 2006, p. 205). O Todo concebido por Kostas Axelos não tem nada que ver com a totalização da platitude burocrática que fez com que a Terra voltasse a ser plana mediante o processo de tecnicização. Esse Todo que não totaliza nem unifica, assim como Axelos o formaliza, é caracterizado por sua condição de abertura irredutível. Instado a renovar os modos expressivos, “lógicos” e conceituais, Kostas Axelos cria um bloco semântico que parece não se equilibrar: “o ser em devir da totalidade fragmentária e fragmentada do mundo multidimensional e aberto”. Essa estranha sequencialidade de vocábulos, em que um desmesura o outro de forma não sistematizável, confere ao pensamento do “jogo do mundo” uma dimensão de “filosofia-ficção”, em que não se utiliza como ponto de partida nem o mundo (ontológico, coisa, natureza) nem o homem (antropológico, ideia, psiquê), sequer a relação psicologizada de dois ou três termos (projeção, introjeção, regramento exterior). Percebe-se, aí, que o jogo proposto por Axelos não diz respeito ao jogo “no” mundo, em sua forma tradicional e circunscrita às atividades humanas e aos seus protagonistas, bem como ao jogo infantil, com seu impulso criador e destrutivo ou sua espontaneidade, fantasia, gravidade e sentido de questionamento. O jogo não se opõe às coisas sérias, ao real, ao trabalho e ao útil. Ainda que sua multivalência semântica seja colocada em cena e a simulação, as intrigas e as máscaras sejam consideradas como seus componentes intrínsecos, essas são apenas formas grosseiras do jogo “do verdadeiro e do falso” ou do simples desejo de risco, de contornar o perigo da perda e do fracasso que muitas vezes se sobrepõe à volúpia de ganhar. Todo esse mundo do jogo, para Axelos, não passa de um prelúdio ao jogo do mundo e seu horizonte fugidio, que não se deixa encolher em ideias particulares ou uni-
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versais. Em outras palavras, o “jogo planetário” promove um “acordo discordante” na relação homem-mundo. A expressão “jogo do mundo” não é um termo abstratizante e sem vinculação universal-histórica. Nas principais obras de Axelos, o “mundo” é sempre atravessado pelas “forças elementares”: a linguagem e o pensamento, o trabalho e a luta, o amor e a morte, o jogo. Cada um desses elementos engloba e penetra os outros. Conjuntamente, as “forças elementares” mantêm em movimento as “grandes potências” (a magia, os mitos, as religiões, a poesia, a arte, a filosofia, a política, a ciência e a técnica) que nelas se apoiam, ao mesmo tempo em que as organizam e as canalizam, fixando as regras do jogo (AXELOS, 1970, p. 16). Mesmo que Axelos chegue a afirmar que a modernidade marcha sobre duas bengalas – a grega e a cristã –, as grandes potências são apreendidas apenas como totalidades em curso, sem centro, origem, motor, fonte ou fundamento que limitem suas “estruturas”. Se elas estão inextrincavelmente mescladas, isso não quer dizer que não haja diferenciação. Não se deve perder de vista que o pensamento planetário, sem referência a um absoluto, coloca tudo (até ele mesmo) em jogo, por meio de sua dimensionalidade especulativa e experienciada. Daí a afirmação de Axelos: Heráclito não contempla imperturbavelmente o rio, ele entra no rio (AXELOS, 1970, p. 88). Este é um dos imperativos do jogo no espaço público (que não é representado “como algo que é”): ele deve ser pensado e jogado multiplamente na “errância” da presença-ausência. Nesse sentido, o pensamento planetário não se torna “visão de mundo”, assim como a errância não é o perder-se, a incorreção, o falso. Se Axelos sentiu a necessidade de ir na direção dos présocráticos, estudando-os com assiduidade, em particular os fragmentos de Heráclito, é justamente porque o fluxo textual do pensador de Éfeso é questionador e enigmático, fragmentário e poético, sem fixar o Ser ou separá-lo do devir fechando-o na Totalidade.
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Como se sabe, chegaram até nós apenas pedaços dos textos de Heráclito, e a ordem desses fragmentos é móvel: uns esclarecem os outros sem uma sequência definitiva. Axelos identifica nos textos heraclitianos uma potência poética e especulativa, indo além dos enquadramentos espaço-temporais colocados por esse pensamento capaz de transformar e deformar a si mesmo. Heráclito surpreendeu a Hegel particularmente por conceber a “verdade” como devir e não como “ser”, e por apresentar uma dialética não conceitual, em que uma estranha unidade dos contrários sustenta um momento de negatividade imanente (não se situando externamente ao sistema). Para Axelos, o logos, em Heráclito, é pensamento e linguagem, a um só tempo que constitui e exprime a ordem e o curso do mundo mediante um movimento unificante (sem identidade ou síntese). Diferentemente da lógica formal que diferencia as oposições conceituais em “contrárias” (branco-negro) e “contraditórias” (branconão branco), a dialética heraclitiana não é a da identidade ou a da confusão e sim a de um pensamento englobante e não excludente. Heráclito é citado frequentemente, inclusive por Aristóteles, por sua máxima que diz que não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Na realidade, esquecem-se de mencionar outro trecho de Heráclito que desafia, de maneira mais aguda, a lógica formal: “Nós entramos e não entramos nos mesmos rios, nós somos e não somos” (AXELOS, 1962, p. 50). Kostas Axelos destaca, nessa passagem, a não supremacia do sensível (o rio) ou do abstrato (o princípio). Eles se imbricam como o próprio pensador, que pensa o rio e vive sua transformação. Se, em Heráclito, tempo e pensamento não estão separados (tampouco o universal do concreto), o logos humano não tem interesse em conhecer o rio de forma cognitiva, assim como o sujeito moderno busca se apropriar do objeto ou do próprio logos (do qual ele não é fundador). Essa estranha dialética de ritmo bipolar (nem dual nem ternária, do tipo tese, antítese e síntese ou
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posição, negação, negação da negação) provocou grande impacto no pensamento de Axelos, que parece deixar sempre em aberto e sem desfecho definitivo o movimento inultrapassável da contradição que, para ele, não é nem otimista nem pessimista, mas “trágica” (mantendo a união da vida com a morte, da parte com o todo em sua afirmação múltipla). Diz Axelos: “nós devemos lutar, talvez, com a morte na alma contra a morte da alma” (AXELOS, 1962, p. 191). Portanto, a oposição racionalista e rígida, de tipo parmenídica, não é colocada por Heráclito, pois este não separa corpo e espírito de forma analítica nem os unifica à maneira do pensamento sintético. Rigorosamente falando, no horizonte de inteligibilidade de seus fragmentos, o corpo ou qualquer outro elemento cósmico não existe “em si”, pois tudo está em relação com tudo; portanto, não há a ideia de um “eu” (que se concebe como um si mesmo) que questiona o universo. Em Heráclito, a tecedura dos lugares “nasce” rasgando a pele dos seres, das coisas e dos absolutos, ao contrário da certeza de um eu cauterizado que não se coloca ao abrigo das indeterminações, como se vê em Kierkgaard: “Morte e inferno, posso abstrair de tudo, mas não de mim mesmo; não posso me esquecer de mim nem quando estou dormindo” (FARARGO, 2006, p. 36). Já em Heráclito, os vocábulos têm malhas muito abertas, o sentido de cada palavra liga-se ao seu contrassentido, a afirmação traz em si uma contradição. Dessa perspectiva, as palavras são adequadas e inadequadas às coisas, e o logos exprime a harmonia e a oposição dos contrários na unidade-multiplicidade que se conjuga vivamente e também mortalmente no devir-tempo que nunca deságua num nivelamento. Portanto, não se encaixa nessa dialética a concepção de verdade que estabelece como pressuposto a conformidade entre o pensamento e as coisas, o pensamento e ele mesmo ou, ainda, o alinhamento entre o dizer, o fazer e o ser. Após Heráclito e a sua poeticidade pensante, afirma Kostas Axelos, a filosofia será metafísica, passando a
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separar o inteligível do sensível, o corporal do psíquico e do espiritual. Em Le jeu du monde, Axelos recolhe, em muitos de seus aforismos, o “jogo” heraclitiano da unidade-multiplicidade para construir uma espécie de lógica capaz de colocar em suspeição a totalidade (que não é total) e o fragmentário (que não é fragmento), bem aí onde o “ser” se furta sem que o nada se torne ponto de apoio. É a partir da leitura de sua obra Heráclito e a filosofia que se evidencia ainda mais o caráter não paradoxal de muitas expressões e aforismos utilizados frequentemente por Axelos, tais como “acordo discordante”; “adversários aliados”; “vida e pensamento: cada um perpetua e mata o outro”; e tantos outros aforismos que só se tornam paradoxais quando apreendidos de uma visada, a posteriori, comprometida com a lógica formal e não do ponto de vista da dialética heraclitiana que constitui uma “totalidade” aberta, nem unitária nem dual, e sim um espaço de jogo do “duplo-único” na vidamorte do ser-nada. Essa forma de jogo sublinhada por Axelos, que “não faz dois sem propriamente fazer um”, impede o pensador de naufragar nas dimensões isoladas do jogo “no” mundo e de seu espaço público, como se vê no “logicismo, teologismo, cosmologismo, psicologismo, sociologismo, esteticismo” (AXELOS, 1983, p. 36). Ainda que os pensamentos frequentemente sucumbam à tirania do “Um”, não há nem abertura nem fechamento absolutos, afirma Axelos, o que equivale a dizer que nenhuma “força elementar, grande potência” ou sistema unitário, binário, trinário ou quaternário jogue sozinho (com ou sem tarifas promocionais). No entanto, o que diferencia Axelos de outros pensadores, reunidos em escolas e sistemas de pensamento como o marxista, o psicanalítico, o fenomenológico, o existencialista, é que ele não utiliza apenas a abordagem do duplo-único, mas utiliza-se também das relações dos vários planos já consolidados, sem tentar estabelecer uma teoria de conjunto. Assim, o uno-múltiplo vale-se do “um” (uni-
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dade, identidade, indivisibilidade, tautologia, uroboros...), do “dois” (dualidade, duplicidade, dobramento, binaridade, alteridade, oposição, contradição...), do “três” (trindade, triangulação, dialética ternária, tridimensionalidade...), do “quatro” (quaternário, quadrado, quadriculação...), do “múltiplo” (pluralidade, diversidade, variedade, fragmentário, partes, perspectivas...), e dos diversos movimentos retilíneos, pendulares, espiralados, circulares, sempre jogando com ou sem fundo da errância. Se o pensamento planetário, em seu mais alto ponto, é poético e pensante, “sistematicamente” aberto e fragmentário, como salienta Axelos, é graças ao jogo da errância (nem rumo a, nem fuga de). Se a luz que clareia a errância vem de outra errância, é justamente porque ela, assim como o jogo, é sem fundo. Ainda que verdades, princípios e sentidos possam ser destacados da errância, nela, nada é justificado ou negado, pois é por meio dela que as verdades e os erros aparecem e desaparecem nos desdobramentos do jogo. Portanto, o movimento da errância (com sua “ironia e humor”) não pode ser tomado como outro tipo de verdade, assim como o erro e a mentira não correspondem ao desvelamento da errância. Daí o risco de se interrogar a verdade errante da mentira, da dissimulação, da má-fé, da falsa consciência, do inconsciente, pois “nós somos tomados pela rede de caça com a qual nós esperamos capturar o verdadeiro erro” (AXELOS, 1969, p. 126). Por isso Axelos, em Le jeu du monde, ao desenvolver um mapa circular com movimentos centrífugos, centrípetos e giratórios para apresentar a interação das “forças elementares”, das “grandes potências” e das correntes fundamentais de pensamento, nomeia insolitamente essa tábua de esferas concêntricas de “esquema não esquemático e círculo problematicamente circular do jogo da errância...” (AXELOS, 1969, p. 215). Tudo que se destaca nesse mapa (Deus, homem, natureza, história, logos, o ser em devir do mundo) deve ser colocado na perspectiva da dialética heraclitiana, transformado pelas tintas do pensamento de Axelos, que pode ser parcialmente exemplificado na
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assertiva que se segue: “ser e nada são e não são idênticos e/ou diferentes. Cada um é a visão e a máscara do outro” (AXELOS, 1969, p. 415). A dificuldade de se apreender esse tipo de construção de pensamento, em que cada termo é fissurado pelo seu “outro”, ocorre precisamente porque não existe uma concepção de elemento, aspecto ou característica que exista “em si”; em outras palavras, a errância, que coloca tudo em movimento, não é calcada sobre o princípio formal da negação, e sim de “ultrapassagem”. Nesse sentido, o “eu voluntário” ou qualquer outro conceito do sujeito cognoscente que busca organizar o campo do saber não oferece mais um solo firme para as ações mundializantes e desmundializadas. Ainda que o homem e o mundo não sejam mais vistos como espelhos (pois estes não refletem os conflitos) e que a característica do espelho seja atrair as rachaduras e poder ser rachado, como afirma Axelos, as concepções especulares e as circularidades representativas (da presença e da ausência) não deixam de atuar. Esse movimento de ultrapassagem das regras do jogo não implica necessariamente gestos de esquivas, de fugas ou de abolição de seus regramentos. A dissidência estridente e a ruptura são apenas uma forma de jogo “no” mundo e não o “jogo do mundo”. O pensamento planetário que conserva e suprime só integra na condição de ultrapassar o que recolheu, agregando, assim, os aportes do formalismo lógico, do marxismo, da psicanálise e, simultaneamente, criticando-os veementemente, bem como o objetivismo e o subjetivismo, sem, contudo, aniquilá-los. Sobre o jogo que se encontra mofado há mais de mil anos (Rimbaud), ainda crescem flores, acrescenta Axelos, embora talvez não estejamos prontos para acolhê-las. Essa forma de pensar por saltos, de recolher “os momentos e os lugares” de onde se saltou, exige plasticidade e flexibilidade extremas, pois assim o pensamento pode ser habitado de forma ainda mais intensa por suas ausências e faltas, por seus excessos que “ultrapassam” o pensador. Dessa forma, os “primatas do
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visual” não convergem toda “presença” em representação e, ao atravessarem o espelho, necessariamente o quebram, sacudindo a estrutura sintática, lógica e dialética da linguagem do pensamento, abrindo-o ao impensado, magistralmente exposto no aforismo de Axelos: “Mots et morts nous accompagnent”2. Essa tentativa de pensar que se desenvolve por lacunas, de modo fragmentário, e que não se dirige às ideias, aos livros, às pessoas ou aos fatos, mas ao pensamento que a solicita (apreendido entre isso que não é mais e isso que não é ainda), parece ser a aventura de Axelos, que certamente muito tem a contribuir para se pensar as diversas teorias literárias. Ao “ultrapassar” Heidegger e sua ousadia de colocar a história do ser que se consuma como esquecimento do ser (vulgarmente compreendido como ideia, energia, substância, sujeito), o filósofo grego evoca a “abertura do mundo”, em que o pensado e o impensado se esclarecem mutuamente e a “consciência morre a sua morte” decorrente da “abertura” advinda de respostas questionantes: “Não simples abertura pela abertura, nem fascinação do vazio, nem culto ao nada [...] No momento nós só somos pelo buraco da abertura; aprenderemos nós a suprimir as falsas janelas e as falsas vias de saída dos ismos exaustos?” (AXELOS, 1970, p. 187). Dessa forma, o pensamento errante é jogado por motsmorts (palavras-mortes), sem paraíso perdido, escatologia nem redenção, sem enigmas que se valem do curto-circuito do pensamento ou de respostas que ostentam outro conteúdo em relação à questão (ou mesmo respostas que sequer são desejadas), sem ser “superficial por profundidade” (hermenêutica). Ainda assim, com e apesar de todos esses jogos, a metafísica, tanto na visão de Jacques Derrida quanto na de Kostas Axelos, ainda governa lá onde se pensa ultrapassá-la, embora já estejamos “um pouco fora dela”. O pensamento por vir se instalou, mas Deus, homem e natureza são destinados a perdurar na tradição (transmissão e esquecimento de origens), na exemplaridade de um fim que não termina de finalizar-se.
“Palavras e mortes nos acompanham”. Perde-se, na tradução, o jogo de concreção de linguagem no sentido da proximidade icônica dos vocábulos mots (palavras) e morts (mortes), que muito se assemelham, no francês, em sua imagem gráfica, sugerindo também uma reciprocidade semântica. 2
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Cf AXELOS, 1969, p. 403. Gorgias, ainda que não tenha apresentado um pensamento rigorosamente niilista, legou aos contemporâneos de Platão alguns aforismos bem desconcertantes para a sua época: “Nada não é, mesmo se ele é, ele é incompreensível para o homem; [...] e mesmo se ele é compreensível, ele é portanto incomunicável e inexplicável a nós próximos” (AXELOS, 1969, p. 404-405). Em Crítica da razão pura, de maneira estritamente formal, Kant elabora um esquema de definições sobre o nada: “1) O nada é um ‘conceito vazio sem objeto’ que não se refere à experiência; 2) O nada é um ‘objeto vazio de um conceito’, ele manifesta a falta de um objeto, como a sombra, o frio; 3) O nada é uma ‘intuição vazia sem objeto’, como, por exemplo, o espaço puro e o tempo puro, que são qualquer coisa, de formas, mas não de objetos; 4) O nada é um ‘objeto vazio sem conceito’; o objeto de um conceito que se contradiz, ele mesmo não é nada porque o conceito não é nada... ele contradiz a possibilidade” (AXELOS, 1969, p. 407). 3
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A errância do pensamento poético de Rimbaud (“mestre em fantasmagorias”), em sua deambulação contínua e refletida sobre os “desregramentos de todos os sentidos”, é frequentemente evocado por Kostas Axelos como não antropológico nem psicológico, nem literário nem estético, embora vincado no curso do mundo, “um poeta de seu tempo, mas seu tempo ainda não veio” (AXELOS, 1970, p. 170). Axelos nos incita não apenas à superação da metafísica, à suplantação do fundamento e do sentido, mas também a considerar como uma das grandes linhas de força do mundo planetário aquilo que é mais intolerável do que o disfarce, o fingimento e a trapaça no jogo, qual seja, quebrar as suas regras. Mas que força é essa capaz de promover o desmonte do jogo (jogando um “outro” jogo)? O niilismo, já entrevisto por Rimbaud, Dostoïevski e Nietzsche, que colocou em marcha a suspeita interpretativa sobre a “verdadeira” via que nos abandonou “sem jamais ter existido”. Para Axelos, a ideologia lançou-se sobre os textos desses autores como hienas sobre cadáveres, pretendendo ser porta-voz da imensa profundidade que comporta a manifestação do nada sobre o qual se “fundam” todas as coisas. Ao se colocar o “tudo ou nada” como palavra de ordem totalitária e ingênua, abstratamente manuseada, faz-se do niilismo mais um dos berços do totalitarismo (esquecendo que ele é também o túmulo de muitos regimes de codificação rígida), desconsiderando-se que “o niilismo só existe em relação ao que ele niiliza”3. Sob a perspectiva de Kostas Axelos, o niilismo adquire novos equacionamentos, deixando de ser um simples desconector de realidades, um estado pessimista ou patológico de desvalorização de todos os valores para matizar-se, ainda que ambiguamente, na nadificação de todo sentido suprassensível (metafísico, idealista, transcendental ou espiritual). Operado pela “vontade de potência” nietzscheana, em nome dos “valores superiores” (a afirmação, ao invés da negação reativa e parasitária), o niilismo “ativo” pode
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afirmar a “vontade de nada” sobre o “nada de vontade” (o não querer, o tédio vital, o extinguir-se passivamente), ainda que essas duas instâncias possam se combinar em uma insólita coextensividade. Inúmeras são as passagens na escritura de Clarice Lispector que aludem, de forma bastante crítica, a esse niilismo passivo que faz do sofrimento medida de vida, arrastando-a como se fossem chinelos e vivendo-se “do que se desiste”. Ou, de maneira ainda mais enfática, o conhecido romance de Herman Melville intitulado Bartleby, o escriturário4. Nessa obra de Melville, o protagonista é mais uma fórmula niilista à queima-roupa, que paga somente os juros de sua dívida com o “sentido”, do que um personagem que coloca suas peças no tabuleiro da subjetividade e nos convida a jogar. O fragmento de fala de Bartleby (“Eu preferiria não”), cuja potenciação final parece entrar em colisão como o movimento da linguagem, deixa em suspenso não o objeto do desejo, mas o próprio desejo (que aparece apenas em negativo, quando solicitado pelo “outro”). O que Bartleby “prefere não fazer” é uma fórmula em sua função-limite de indiscernibilidade, portanto, tal “preferir” não é nem uma aceitação nem uma recusa, interpretada por Deleuze como “Eu preferiria nada a algo” (grifo meu). Diferentemente do verso de Hölderlin, que lacra a urna do ser beneficiando o deslizamento do desejo (“Não somos nada: tudo é o que procuramos”), a fórmula de Bartleby constitui mais uma nulificação do sujeito do que uma “negação” de referências, coisas e ações. Quando o copista para de “copiar”, não mais reproduzindo os códigos elementares de sociabilidade e de linguagem, ele se transforma “no homem sem referências, sem poses, sem propriedades, sem qualidades: é liso demais para que nele se possa pendurar uma particularidade qualquer” (DELEUZE, 1997, p. 86). Ora, Bartleby, como sujeito, não existe mais ou ainda não; sua fala, reduzida a uma fórmula, só emerge em decorrência do “outro” que o indaga. Em suma, ela não abriga
É bem conhecido o personagem desse romance, o copista Bartleby, que trabalha no escritório de um advogado e, sem que se saiba o motivo, começa a responder às solicitações de seu chefe com a enigmática frase: I would prefer not to (“Eu preferiria não”). Na repetição insistente dessa fórmula devastadora, em diferentes contextos, inclusive quando é demitido, evidenciase a “insanidade” de Bartleby e o “vazio” de seus enunciados. A esse respeito, confira o belo ensaio de Gilles Deleuze, em Crítica e clínica: “Bartleby, ou a fórmula”. 4
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o “ser”, seus atributos e qualidades, o que nos remete, guardando as devidas diferenças, ao “predicado incorpóreo do sujeito da proposição” dos estoicos, que se serve de um esquema triunitário (sujeito-verbo-complemento) em que o predicado não diz respeito a uma atribuição, mas inserese como relação e acontecimento, estabelecendo-se como “verbo” (“não a árvore ‘é’ verde, mas ‘a árvore verdeja...’ [...] eles substituíam o verbo ser por ‘resultar’, e a essência pela maneira”) (DELEUZE, 1991, p. 84). No entanto, a fórmula niilizada de Bartleby cria uma outra lógica do acontecimento, ainda mais incisiva do que a estoica, no sentido de secundar o estatuto equívoco do “ser”, pois a instância de enunciação, aquela que diz Eu (preferiria não), parece viver a vida e a morte do sujeito: a vida na força de sua recusa das relações sociais militarizadas; a morte no sentido de recuo em relação ao seu próprio desejo e à sua particularidade, propiciando a erosão de si (o “eu” que sustenta a fórmula passa a ser inerente ao “outro”, extensivo às suas demandas). Difícil dizer se a fórmula niilista de Bartleby é inteiramente passiva, como pode parecer à primeira vista, pois ela quebra as regras do jogo, possibilitando apenas um resíduo de comunicabilidade em traços que se atualizam mediante a fala daquele que o interroga, ao mesmo tempo em que reduplica as incertezas, ativa os tensores ao colocar as pressuposições de verdade (em relação à apropriação do outro) em estado de completa indigência. “Eu preferiria não” estabelece, portanto, um lugar para o pensamento além dos limites habituais; avessa à dialética resolutiva de tipo hegeliana, essa fórmula denuncia a inexistência das “peças faltantes” de um quebra-cabeça (montado como o suposto saber sobre o “outro”) e evidencia ainda mais a extenuação do logos entendido como o tecido homogêneo do logicismo formal. Nada menos certo, porém, que, não se vestindo de nenhum caráter oficial e categórico, a fórmula de Melville possa se enquadrar no que Nietzsche chamou de niilismo reativo.
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Para Nietzsche, o riso afirma a vida; a dança, o devir; o jogo, o acaso, enquanto o niilismo, muitas vezes, diz respeito à maneira pela qual a vida é acusada, julgada, condenada e mutilada, sobretudo por certos sistemas religiosos, como o cristianismo. A destruição ativa que ele defende, por meio de um excedente de vida afirmativo (que não se confunde com a função do ser, com a veracidade do verdadeiro ou a positividade do real), propicia a transmutação de todos os valores, a “transvaloração”, que, segundo Deleuze, não é simplesmente uma transformação de valores, “mas uma mudança no elemento do qual deriva o valor dos valores. A apreciação no lugar da depreciação, a afirmação como vontade de poder, a vontade como vontade afirmativa” (DELEUZE, 1976, p. 143)5. Para Axelos, o niilismo vem de uma longínqua sobrevivência (não da maneira como o conhecemos hoje, “produtivo e fatigado”, advindo do idealismo e do romantismo alemão dos séculos XVIII e XIX), que faz parte da história humana, presente em algumas formas de hinduísmo, budismo, taoísmo, bem como no idealismo grego, no judaísmo e no cristianismo, ainda que os modos de niilismo de feição oriental sejam desirmanados de certos processos autoimunizantes vincados no ocidente e que atuam segundo outras forças. Os processos niilistas, como esgotamento do sentido, movimento de deriva em relação às questões do “por que...?”, da metafísica e da religião, fazem da falta e das máscaras um dos desdobramentos de seus horizontes que podem ressoar no interior das casas vazias (com “ninguém e alguém dentro”). No entanto, o nihil (que não significa o não-ser, e sim um valor de “nada”) continua ainda para ser experienciado não na forma especulativa, à maneira de Leibniz (“Por que existe sobretudo qualquer coisa que nada?”), tampouco segundo as diretrizes de implicação heideggeriana (“O nada não ‘é’ mas também não é nada”) ou, ainda, da dialética historial de Marx (“Não sofremos apenas dos vivos. Sofremos também dos mortos”), ao que se poderia acrescentar o impasse da especulação feno-
Em outra passagem de Nietzsche e a filosofia, Deleuze escreve: “Afirmar não é tomar a cargo, assumir o que é, mas liberar, descarregar aquilo que vive. Afirmar é tornar leve: não é carregar a vida sob o peso dos valores superiores, mas criar valores novos que sejam os da vida, que façam a vida leve e ativa” (DELEUZE, 1976, p. 154). 5
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menológica de Sartre (“Uma escolha que fosse escolha a partir de nada ou contra nada seria escolha de nada e se nadificaria como escolha”). Diferentemente da negação rasteira que busca entremear-se ao inexistente ou fundar o Nada, o niilismo, ao desmembrar o ser e o nada, ao desmistificar um dos termos (vida ou morte) em nome do outro, incapaz de jogar com a vida-morte, acaba por niilizar a si mesmo, como a fome que se alimenta da fome, aquela que tem dentes para sua própria carne (de maneira sempre parcial, inacabada). Nesse sentido, Axelos se afasta de Heráclito, cuja dialética de negatividade imanente, como foi visto, resolutamente não deixa espaço para o niilismo ao desmobilizar qualquer possibilidade de negação externa ou de um recuo nadificador em relação ao dado, como tão bem salientou Sartre em O ser e o nada. O “jogo do mundo” no espaço público (que não é uma metáfora, um significado empírico ou ontológico) “ultrapassa” o niilismo infirmando-o produtivamente no ser-nada, atravessando-o com a palavra pensante e poética. “Mesmo no deserto, falar é preferível a pregar”. (AXELOS, Le jeu du monde, p. 111) No entanto, trata-se de palavras que não expressam o vivido, mas o fazem falar, e somente por elas certa visibilidade é possível. Ainda que o poético passe como um meteoro transfigurando tudo, nada nos impede de batizá-lo, mesmo que a palavra (ou a escrita) se construa contra a linguagem, como diria Marguerite Duras. É dessa perspectiva que Axelos nomeia a poeticidade do mundo como um dos produtos mais nobres da história, sem deixar de reconhecer que a arte é atraída por sua autodestruição e pelos gestos do silêncio. Tanto a poesia quanto a arte, para ele, situam-se no “rasgamento e no abismo”, ao mesmo tempo em que atingem o vazio, o nada. Por certo que a arte também tem seus efeitos de representação e criação, de reflexão e julgamento, de prazer e gozo. Indubitável que a poesia, desde Homero, tem participado do jogo “no” mundo como presença e ausência do divino e do sagrado,
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e que somente em raros momentos chegou a construir o espaço do poema que, sob o olhar de Paul Celan, faz-se de limiar em limiar e na passagem de um limiar a outro. No espaço público onde se desdobra o “jogo do mundo”, a linguagem tende a autonomizar-se em relação ao homem e ao mundo, a “diferença” se lança a fazer problema, o “para-além” inclui o que se ultrapassa (transcendendo e implicando), a “poeticidade” (e não as formalizações estéticas) se desdobra ao jogar multiplamente as aberturas, e a “errância”, sem fazer pacto com o vazio da definição, surge em retirada. “Ainda assim, malgrado e com o niilismo, o jogo continua” (AXELOS, 1991, p. 164). Mas quem o joga? O homem? As “forças elementares”, as “grandes potências” e as diversas teorias literárias (ou não)? Ou o jogo é sem “jogador” e recusa toda nominação, modelo ou esquema intramundano? Como o homem se apoia sobre o acidente do corpo ou sobre a “errância” que nunca está assegurada na insuficiência daquilo que morre? As interpretações (metamorfoses) sustentam o lado do “jogo” com que se cortam? Pensar é jogar os dados? O homem espera no e sobre o fundo de esquecimento? Como retirar as apostas ou haurir na memória a tecelagem que reconstitui o avesso de Eros e que parece ressoar, aqui e ali, tal como a sentença decisiva da Divina comédia: “deixai toda a esperança, ó vós que entrais” (ALIGHIERI, 1998, p. 3)? O jogo é “injogável”, contudo, isso joga, sem a medida da representação e fora do domínio e alcance de sua perda, sem atribuir sentido ao que não o tem ou sem fazer do absurdo as bordas do negativo que confere peso às margens. Importa notar que “o ser em devir da totalidade fragmentária e fragmentada do mundo multidimensional e aberto” amplifica-se entre coisas e nomes, como se o agora também fosse esquecimento e as matérias dúcteis da memória (máquina registradora e amante da errância) nos implicassem e nos escondessem de maneira desigual
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em seu declive rumo aos territórios de escrita e aos outros modos de pensabilidade.
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Pareceristas
Adalberto Muller AdeĂtalo Pinho Alcir PĂŠcora Ana Luiza Camarani Antonio Donizeti Pires Eduardo F. Coutinho Fernando Sousa Rocha Isabel Jasinski Ivete Walty Marcos Siscar Tania Pellegrini Tania Regina de Oliveira Ramos Volnei Edson dos Santos
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Alguns exemplos de citações • Citação direta com três linhas ou menos
[...] conforme Octavio Paz, “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” (PAZ, 1982, p. 37)
• Citação indireta
[...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as conseqüências de certas linhas da poética drummoniana.
• Citação de vários autores
Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, 1991; Borges, 1998; Campos, 1969)
• Citação de várias obras do mesmo autor
As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confronto entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens
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em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidoscópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992) • Citação de citação e citação com mais de três linhas
Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire: Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...] (FREIRE, 1759, p. 87 apud TEIXEIRA, 1999, p. 148)
Alguns exemplos de Referências • Livro PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. Paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. • Capítulo de livro BERND, Zilá. Perspectivas comparadas trans-americanas. In: JOBIM, José Luís et al. (Org.). Lugares dos discursos literários e culturais – o local, o regional, o nacional, o internacional, o planetário. Niterói: EdUFF, 2006. p.122-33. • Dissertação e tese PARMAGNANI, Claudia Pastore. O erotismo na produção poética de Paula Tavares e Olga Savary. São Paulo, 2004. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. • Artigo de periódico GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: uma breve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 37- 57, 2004.
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• Artigo de jornal TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4. • Trabalho publicado em anais CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Maria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte. p. 85-95. • Publicação on-line – Internet FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e geografia) literária na Itália contemporânea. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S1517106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acesso em: 6 fev. 2009. Observação Final: A desconsideração das normas implica a não aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).