ISSN-0103-6963
A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN-0103-6963) é urna publicação anual da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil' de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986 DIRETORIA DA ABRALIC - 1992·1994 Presidente: Benjamin Abdala Júnior (USP); vice-presidente: Leyla Perrone-Moysés (USP); secretário: João Adolfo Hansen (USP); 2º secretário: Luiz Dantas (UNICAMP);tesoureiro: Luiz Roberto Cairo (UNESP); 2º tesoureiro: Maria dos Prazeres Gomes (PUC-SP). CONSELHO DA ABRALIC -1992/1994 Eneida Maria de Souza (UFMG); Marlyse Meyer (USP); Nádia Batella Gotlib (USP); Laura Cavalcante Padilha (UFRJ); Edson Rosa da Silva (UFRJ); Regina Zilberman (PUC-RS); Rita Teresinha Schmidt (UFRGS); Eneida Leal Cunha (UFBa); Wander Melo Miranda (UFMG); Suplentes: Sérgio Prado Bellei (UFSC); Danilo Lobo (UnB) CONSELHO EDITORIAL Benedito Nunes, Boris Schnaiderman, Dirce Côrtes Real, Eneida Maria de Souza, Haroldo de Campos, João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Block de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raúl Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Tânia Franco Carvalhal, Yves Chevrel. Os conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta e exclusiva responsabilidade de seus autores.
REDAÇÃO E ASSINATURAS Abralic - Associação Brasileira de Literatura Comparada Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 - salas 100/101 - c.p. 8.105 05508-900 - São Paulo - SP - Brasil
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Editoração: Benjamin Abdala Junior João Adolfo Hansen Leyla Perrone-Moisés Produção Gráfica: Reinaldo Itow Sidney Itto Composição: Lato Senso - Editora de Textos Impressão: Copy-Service Tiragem: 1000 exemplares
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APRESENTAÇAO
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este momento em que a crítica literária inovadora pauta-se por recortes interdisciplinares, intertextuais e intersemióticos, a Associação Brasileira de Literatura Comparada lança o segundo número de sua revista, reunindo ensaios que permitem entrever constantes atuais dos estudos literários. É em razão da crise geral das disciplinas tradicionais que os novos horizontes da crítica literária, como se depreende nos estudos aqui organizados, abandonam teorias imanentes de estrutura e doutrinas reflexológicas do signo. A focalização desloca-se, então, para o exame das condições da possibilidade de produção, dos modelos culturais de formalização e recepção. Releva-se, ao mesmo tempo, a historicidade dos textos, fato que inclui a consideração da descontinuidade e da diferença, descartando-se perspectivas organicistas ou evolutivas. Como o leitor poderá observar, 9S ensaios foram dispostos sem divisão aparente, ainda que sua ordem delineie grupos temáticos que estabelecem diálogo, por vezes tenso e contraditório, entre posições teóricas e metodológicas. Assim, se uma primeira seção traz. textos de teoria, a seguinte apresenta os de tema histórico, seguindo-se os de análises de obras particulares. É de se ressaltar também a anexação que fazem de outros saberes, como a sociologia, a psicanálise, a filosofia, a antropologia e a história, de modo múltiplo e fecundo. A Comissão Editorial
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SUMARIO
Teorias em Literatura Comparada Tânia Franco Carvalhal
Literatura Comparada. Espaço Nômade do Saber Eneida Maria de Souza
Revisão dos Alguns Fundamentos Teóricos da Literatura Comparada: Crítica e Proposta Philippe Willemart
Nações Literárias Wander Melo Miranda
A Construção da Literatura Comparada na História da Literatura Lúcia Helena
As Vanguardas Portuguesas do Século XX: Uma Visão Neobarroca E. M. de Melo e Casrro
A Fundação da Literatura Brasileira Regina Zilberman
A Crítica da Teoria: Uma Análise Institucional José Luís Jobim
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A História Literária e a Formação de Leitores Márcia de Paula Gregório Razzini
A Biblioteca Lusitana, Tetravô Ilustre da História da Literatura em Língua Portuguesa Marisa Lajolo
Nem Lero, nem Clero: Historicidade e Atualidade em Quarup de Antonio Callado Ligia Chiappini
Viagens Textuais. Um Percurso: América -África -Europa Maria Aparecida Santilli
Um Fenômeno Poliédrico: O Romance-folhetim Francês do Século XIX Marlyse Meyer
Lucíola e Romances Franceses. Leituras e Projeções Sandra Nitrini
Machado de Assis e os Sofistas Roberto de Oliveira Brandão
Jorge Amado e o Bildungsroman Proletário Eduardo de Assis Duarte
The Courtier Abroad: Or, the Uses of Italy Peter Burke
A Comparação Elidida: A Memória de Brodie RaulAntelo
79 87 97 109
123 137 149
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TEORIAS EM LITERATURA COMPARADA
Tânia Franco Carvalhal
A prendemos a reconh~cer o caráter teórico dos estudos litel. Veja-se a introdução a Théorie de la littérature, de Stéphane Santerres-Sarkany, intitulada "La nouvelle culture lettrée", Paris: PUF, 1990.
rários como determinante no século XX ou, mais precisamente, identificamos, na segunda metade deste século, uma aguda "tomada de consciência de estética textual" a todos os níveis da escritura e da leitura.! Além disso, a inclinação a uma fundamentação teórica nos estudos literários provocou mudanças de paradigmas, obrigando não só a revisão de conceitos considerlldos definidos mas também a atuações muitas vezes interdisciplinárias. São aspectos dessa' 'teorização" geral nos estudos literários e em Literatura Comparada, enquanto modalidade desses estudos, que se pretende examinar a seguir.
I. TEORIAS NO PLURAL No amplo terreno dos "estudos literarios", a teoria, a crítica, a história, o comparativismo coexistem sem perderem suas especificidades Quer dizer, essas disciplinas têm supostamente o mesmo objeto de estudo, a literatura, e, se o configurarmos materialmente, os "textos literários". Contudo, sabemos que cada uma se identifica e se distingue das demais pela forma particular como problematiza o literário, como o indaga e o analisa. Na verdade, sabe-se que um objeto científico é menos algo material do que um conjunto de
10 - Rev. Bras. Li!. Comparada, nº 2 problemas. 2 Isso não impede que essas disciplinas atuem em conjunto e que emprestem, entre si, conceitos operacionais, metodologias ou recursos de investigação. É necessário observar, de início, que todas enfrentam problemas em sua denominação. Teoria literária, teoria da literatura ou das literaturas, ciência da literatura, poética, são alguns dos nomes tradicionalmente empregados para indicar a atividade teórica em si mesma ou a reflexão sobre a atividade literária. A discussão é antiga e permanente. R. Wellek e A. Warren, no clássico Teoria da literatura (1942) usaram a expressão em seu duplo sentido, como uma modalidade dos estudos literários e como sinônimo dessa disciplina. Já o volume Théorie littéraire. Problemes et perspectives (1989), organizado por Eva Kuschner, D. Fokkema, M. Angenot e Jean Bessiere, sem a característica do manual e com uma concepção diferente do livro de Wellek e Warren, adota um subtítulo para assinalar, de pronto, a variedade dos debates e das pesquisas no campo da teoria literária. Por isso, reúne pontos de vista diversos e representativos da pluralidade dos métodos e das teorias. Em ensaio editado no mesmo ano, intitulado' 'Teorías literárias o teorías de la literatura? Qué son y para qué sírven?'',3 Walter D. Mignolo procura resolver a questão terminológica propondo o termo" Literaturología", formado pela combinação do vocábulo que designa o domínio de estudo e o discurso que se exerce sobre tal dominio (1989, 44). A formação do termo, como se vê, é análoga à da designação de antropologia, sociologia ou biologia, nos quais o sufixo "logia" indica que se referem às ciências mesmas enquanto que "antropos", "socius" e "bio" identificam o domínio de conhecimento. Não é distinta a situação com a denominação Literatura Comparada, a que muitos, julgando imprecisa a expressão com que se difundiu, têm tentado dar designações diversas: comparativismo literário, literaturas comparadas, crítica comparada, poética comparada, estudos literários comparados, etc. Evoco as dificuldades terminológicas com que todas as disciplinas que investigam o literário se deparam em sua designação porque interessa acentuar, de um lado, a pluralidade para que apontam essas hesitações e, de outro, a imbricação entre as várias disciplinas que algumas dessas designações estão a indicar e, de outro, que essas disciplinas, como é comum no campo das ciências humanas, redefinem constantemente seus próprios estatutos e modificam freqüentemente seus dispositivos teóricos, como observa Pierre Laurette, em "Universalité et comparabilité" (1989, 52), capítulo do volume Théorie littéraire. Problemes et pe rspectives , já mencionado.
2. Leia-se a respeito HECKHAUSEN, H. "Discipline and interdisciplinarity" in: APOSTEL, L. ct aI. Intcrdiscip/inarity, Paris: OECD, 1972 e Graciela Reyes, na introdução a Teorias /iterarias cn la actualidad, Madrid: Ed. EI Arquero, 1989.
3. MIGNOLO, W. Tcorías /iterarias cn la actualidad, Madrid: Ed. EI Arquero, 1989. Leia-se, ainda, do autor, "What is wrong with the theory of literature? in: The Signo Scmiotics around lhe World. Ann Arbor: Michican Slavic Publications, 1978.
Teorias em Literatura Comparada
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Poder-se-ia, então, argumentar que a dificuldade terminológica na designação é dada à própria natureza do campo de conhecimento, o literário. Essas considerações iniciais servem para justificar a escolha do título: ao dizer "teorias em literatura comparada" quero acentuar, de pronto, a existência de um plural, tanto para as teorias possíveis como para a disciplina em pauta, em suas diversas modulações. Com efeito, ao se pensar em teorias em literatura comparada quer-se integrar componentes teóricos, como formas específicas de observação e de reflexão, a um campo particular de investigação, a literatura comparada, em suas várias formulações. Quer-se, ainda, dar-lhe um estatuto que a eleve à categoria de disciplina reflexiva paralelamente a sua natureza prática. Trata-se, em suma, de "emprestar" das(s) teoria(s) literária(s) conceitos operacionais que possam ser rentáveis nas formas de atuação comparativista bem como as auxiliem em sua própria definição.
UMA ARTICULAÇÃO NECESSÁRIA É natural que a literatura comparada tenha acompanhado a inclinação geral ao teórico que caracterizou, desde os anos 50 e 60, os estudos literários, quando esses sentiram a necessidade de uma fundamentação que lhes assegurasse maior objetividade de atuação e mais precisão em seus resultados de análise. Não poderia, pois, a literatura comparada ficar à margem desse movimento e deixar de valer-se da riqueza de conceitos operacionais que lhe foram postos à disposição pelas diferentes corrente teóricas. O natural, no entanto, não deixa de ser complexo. Isso porque, se levarmos em conta a tradição centenária da literatura comparada enquanto disciplina universitária, veremos que ela não se constituiu sem dificuldades, passando de uma postura eminentemente histórica (Van Tieghem, Carré) para a incorporação progressiva dos avanços no campo da reflexão teórica. Foi justamente graças à evolução dos estudos teóricos sobre a literatura que o comparativismo também evoluiu, modificando seus paradigmas tradicionais. Ao integrar conceitos operacionais com base nas teorias de produtividade textual ou de recepção literária, por exemplo, pôde renovar antigas noções básicas como as de fontes e de influências. Para ficarmos em uma única alusão, sabe-se o quanto a noção de intertextualidade ajudou a reformular aspectos importantes das relações interliterárias. Mesmo na observação dos "estudos literários" em sua totalidade, constataremos que a articulação entre
12 -Rev. Bras. Lit. Comparada, nU 2 teoria e literatura comparada não foi apenas circunstancial mas correspondeu a uma reformulação geral, inevitável e benéfica. A aproximação entre as duas disciplinas, que se traduz pela utilização de conceitos epistemológicos e por empréstimos de metodologias, levando a uma atuação conjunta, está consagrada na obra de vários autores que integraram, num mesmo título de suas publicações, os dois termos. É o caso, por exemplo, das obras de Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, Literatura portuguesa, literatura comparada e teoria da literatura (1981), ou Da literatura comparada à teoria da literatura (1989), na de Adrian Marino, Comparatisme et théorie littéraire (1989), ou ainda, de Dionyz Durisin, Theory of interliterary process (1988) a que antecedera Theory of literary comparatistics, em 1984. Nessas duas últimas, a perspectiva teórica é dominante na busca de um sistema metodológico de concepção formalista. É no contexto dos anos 80 para cá que se afirma a estreita convivência entre teorias e literatura comparada, tendo essa acompanhado as modificações das primeiras, incorporando, seletivamente, o que lhe interessava em particular e fornecendo àquelas o que desde sempre a caracterizou: amplitude de visão e metodologia dos confrontos.
AS APROXIMAÇÕES CORRENTES Não se trata aqui de fazer o balanço exaustivo das contribuições entre as duas disciplinas mas de insistir no fato de que a aproximação entre teorias literárias e literatura comparada está no centro das transformações conceituais motivadas pela reflexão teórica dos últimos anos e que, devido a essa mesma aproximação, o ato da comparação ganhou maior pertinência. É sem dúvida no decênio de oitenta que se vão concentrar as publicações que intentam relacionar os estudos comparativistas com a reflexão teórica sobre o literário. Basta aludirmos a alguns títulos, como se fez, e às datas de seu aparecimento para vermos como esse relacionamento se expressa. Nesse contexto, em 1985, Hans-George Ruprecht, da Carleton University, Ottawa, publica um artigo intitulado "Comparatisme et connaissance: Hypotheses sémiotiques sur la littérature comparée" no qual, além de retraçar a tomada de consciência teórica entre os comparativistas e as decorrentes proposições metodológicas (Geninasca, 1979; Genot, 1980; Marino, 1980; Ruprecht, 1980) e a emergência de um "novo paradigma" (Fokkema, 1982), examina, sem complacência, o que considera ainda um nível de reflexão' 'pré-teó-
Teorias em Literatura Comparada -
4. RUPRECHT, H-G., artigo citado, in: Exigenccs et perspcctives de la sémiotique (PARRET, H. & RUPRECHT, H-G.). Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Co., 1985, pp. 307-323.
5. MARINO, Adrian. Op. cil. Paris: PUF, 1988.
6. A expressão é de Etiemble. Leia-se, desse autor, Ouvcrturcs(s) sur un comparatismc planétairc. Paris: Bourgois, 1988.
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rico" ou "para-teórico" entre os comparativistas, isto é, uma reflexão que "corre ao lado de" sem, no entanto, enfrentar a fundo e diretamente as questões literárias. Ele identifica, entre os comparativistas, especialmente uma "disposition d'esprit" e não o que consideraria como "démarche théorique avancée". Sua crítica está centrada no fato de que as perspectivas propostas se desenvolviam em dois planos, de ordem "conformacional" e "institucional, e em vez de abordar os fenômenos ditos 'literários', para transformá-los em objetos de conhecimento construídos, a reflexão comparativista os tomava ainda intuitivamente e de acordo com abordagens ditas 'temática', 'morfológicas', etc., baseadas no inefável princípio segundo o qual todas as literaturas, as do passado e do presente, constituiam, em última análise, um objeto de contemplação. 4 A finalidade do estudo de Ruprecht não é apenas de fazer reparos ao pouco aproveitamento por parte dos comparativistas das reflexões teóricas em voga mas tem a intenção de pensar sobre a possibilidade de fundar-se, um dia, uma "comparative science of signs", como aludira Sebeok, em 1970. Em outras palavras tratar-se-ia de "conceber e de fazer avançar, mesmo que fosse pouco, a problemática comparativista à luz de uma concepção teórica da significação' , . Esse comparativismo de orientação semiótica procura dar uma sustentação reflexiva ao ato da comparação e não é difícil de perceber seu interesse em determinados aspectos como o da análise intertextual. Em 1988, temos outra tentativa importante para a aproximação que aqui se examina. Edita-se o livro de Adrian Marino, intitulado Comparatisme et théorie littéraire,5 seguramente o esforço mais denso, até então, para a inter-relação entre as duas disciplinas. Marino vai mais longe do que propor uma simples atuação conjunta: ele preconiza a formulação de uma "teoria da literatura comparada". Melhor dito, deseja que a literatura comparada deixe de ser um simples capítulo da história literária ou da história das relações literárias internacionais para dotá-la de um "objeto preciso, autônomo e de uma metodologia própria". Na verdade, o autor quer elaborar uma teoria da literatura cujos fins e meios sejam especificamente "comparativistas", ou seja, quer construir uma '·teoria comparativista da literatura". Partidário das idéias de Etiemble, relativas à constituição de uma "poética comparada" de dimensões "planetárias" ,6 como o demonstrara em Etiemble ou le comparatisme militant (1982), Maríno adere também aos princípios críticos de R. Wellek. Ao procurar reler em sua totalidade as contribuições teóricas anteriores no domínio comparativista, examinando-as criticamente sob o ângulo de sua proposição, acaba por fornecer amplo material para uma futura história da literatura comparada. Não há dúvida de que o
14 - Rev. Bras. Lit. Comparada, nº 2 esforço por ele realizado foi imenso: trata-se de um levantamento exaustivo da bibliografia sobre o comparativismo e de uma contribuição significativa para o traçado de seu percurso. Contudo, o excesso de informação compromete, por vezes, a clareza e a objetividade da exposição. Sua proposta, que se ampara na existência de invariantes, conforme Etiemble o define, abre a discussão em torno da noção de universais. Ao propor uma teoria que tenha por base os princípios e os andamentos comparativistas, Adrian Marino contibui para uma reflexão renovadora e para a qual seu livro traz muitas sugestões. Mas será sobretudo o ano seguinte, 1989, que concentrará, somente na França, grande número de publicações comparativistas de forte impregnação teórica. O título do volume de Daniel-Henri Pageaux e Álvaro M. Machado, referido antes, já o indica. Observese ainda o surgimento de Précis de littérature comparée de Pierre Brunel e Yves Chevrel,1 paralelamente à publicação de uma nova versão do volume Littérature comparée, da coleção "Que sais-je?", da PUF,8 no qual Yves Chevrel reformula as perspectivas anteriores, da responsabilidade de M-F. Guyard, e a publicação do já referido Théoric littérairc. Problemes ct perspectives,9 de E. Kushner, D. Fokkema, M. Angenot e J. Bessiere além da edição de Dire le littérairc. Points dc vue théoriques, de Jean Bessiere. lO O confronto, mesmo rápido, dos volumes mencionados aponta, pelo menos, para dois dados importantes: 1. há uma nítida integração, nesses livros, de elementos específicos das duas disciplinas e 2. seus autores são, simultaneamente, comparativistas e teóricos por formação. Lembrese que, na França, a teoria literária não constitui um domínio específico de estudo no quadro institucional das universidades, o que não significa que não se desenvolva largamente como campo de indagação. Assim, essas publicações refletem uma realidade que, mesmo não consagrada pela instituição, expressa a associação espontânea e concreta de princípios comparativistas e conceitos operacionais de diversas teorias da literatura. As dimensões deste trabalho impedem que se efetue uma análise contrastiva das publicações surgidas no período,11 no entanto, cabe apontar a complementariedade existente entre elas. Retenho, apenas, um dado: o fato de que o volume Théorie littéraire. Problemcs ct perspectivcs tenha integrado, em seu capítulo 11, a contribuição de Earl Miner, intitulada "Études comparées interculturelles". Seria essa integração uma novidade nos livros de teoria literária? Decerto que não. Basta evocarmos o capítulo quinto do clássico de Wellek e Warren, cujo título é "Literatura geral, literatura comparada e literatura nacional". Também não é de estranhar que um volume,
7. BRUNEL, P. & CHEVREL, Y. op. cil. Paris: PUF,1989. 8. CHEVREL, Y. Op. cil. Paris: PUF, 1989. (Cal. "Que sais-je?") 9. KUSHNER, E. et ai. Op. cil. Paris: PUF, 1989. 10. BESSIERE, J. Op. cil. Paris: Mardaga, 1990.
11. A análise contrastiva dessas publicações e de outras surgidas no mesmo período nos Estados Unidos, Canadá, outros locais da Europa e no Brasil é objeto de estudo mais amplo que desenvolvo sob o título de "Comparar os comparativismos: leitura de práticas, teorias e manuais".
Teorias em Literatura Comparada
12. MINER, E. Op. cil. Paris: PUF,1989.
13. Leia-se o já mencionado capítulo de Miner em contraponto com a introdução a seu livro, Compara tive poeticsAn intcreultural cssay on thcorics Df litcraturc. New Jersey: Princeton University Press, 1990.
14. Op. cil., p. 8.
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cujo projeto de organização surgiu no interior da AILC e cuja realização esteja sob a responsabilidade de quatro de seus membros bem conhecidos e atuantes, acolha a contribuição de um comparativista da estatura intelectual de E. Miner, ex-presidente daquela Associação. Mais interessante do que isso é o tema tratado nesse estudo, pois o próprio E. Miner, em seu texto, observa que' 'há 20 anos um livro como este não teria comportado um capítulo sobre os estudos comparados intercuIturais",J2 aludindo ao fato de que nossa tradição é ainda a dos estudos "intracuIturais". Não é outro o pensamento que E. Miner desenvolve em publicação do ano seguinte, Comparative poetics - An intercultural essay on theories of literature (1990), quando tornará a preconizar que as discussões em nível teórico são mais apropriadas aos estudos comparativos de tradições críticas não aparentadas, como a Chinesa e a OcidentalP Por isso, bem mais do que as ligações pessoais entre autores e as origens da própria iniciativa, interessa enfatizar aqui sua peculiaridade, isto é, o que torna o volume enriquece dor pela Yariedade de perspectivas de análise e diferentes posturas críticas. Além disso, na "Introdução", os autores comentam o espaço dado na obra à literatura comparada, "que parece assim coextensiva ao conjunto dos estudos literários". Eles dizem encontrar duas razões para isso: uma, de ordem contextual, pois na América do Norte e na Europa é sobretudo em literatura comparada (por oposição aos departamentos ou secções de literaturas nacionais) que se organizam os debates universitários e que se efetua, cada vez mais dominantemente, a pesquisa em matéria de teoria. A outra razão lhes parece ser de ordem mais intrínseca: "por serem interlingüísticos, internacionais e interculturais, os estudos de literaturas comparadas parecem ser mais aptos que os estudos das literaturas nacionais a alimentar uma reflexão universalizadora" .14 A essas considerações, caberia acrescentar mais uma, ou seja, de que a reflexão teórica sobre o literário e a literatura comparada, enquanto disciplinas e formas de investigação, parecem ter uma vocação comum: ambas pedem largos contextos, ambas contrastam metódica e sistematicamente, ambas tendem à generalização dos fenômenos que investigam.
IH. TEORIAS E NOVAS ORIENTAÇÕES COMPARATIVISTAS As publicações que examinamos até aqui são representativas não só da inter-relação entre as teorias literárias e a literatura comparada como ainda, no caso da obra de Adrian Marino, de uma tentativa de constituir-se uma teoria de base comparativista. Esses exemplos
16 - Rev. Bras. Lit. Comparada, nU 2 ilustram fartamente o que se aludiu de início, quer dizer, que, se este século pode ser considerado como teórico ou teorizante, a literatura comparada não se omitiu a essa inclinação e, por isso, renovou-se. Se as diferentes teorias literárias, com fundamentação epistemológica diversa e origens em campos do conhecimento também distintos (p. ex., a teoria de R. Jakobson é de fundamentação lingüística, a de R. Ingarden ou a dos teóricos da Escola de Constanza é filosófica, etc.) repercutiram diversamente em literatura comparada, todas contribuiram para o afinamento de noções, para a eficiência do instrumental analítico e para que a literatura comparada permanentemente se indagasse sobre sua própria definição. Na era do teórico, parece ter sido esse o grande desafio. No entanto, para pensarmos nas relações entre as diversas teorias literárias existentes, (aquelas que sobreviveram à contraposição de novas perspectivas) e a literatura comparada, temos de levar em conta as orientações, tambem novas, que tem tomado essa disciplina atualmente. Em dois estudos recentes, Yves Chevrel aponta as perspectivas mais freqüentes no compara ti vis mo de expressão francesa como sendo uma tendência geral a substituição dos estudos binários (entre dois autores, duas obras ou mesmo duas literaturas) por questões de estética ou confrontos com literaturas estrangeiras pouco divulgadas, em especial com as do Extremo-Oriente. Sublinha, também, a ênfase nos estudos de recepção literária, as pesquisas sobre "fronteiras do literário", que envolvem literatura e outras artes, o papel da "paraliteratura", os estudos sobre os gêneros e sobre as repercussões das literaturas em tradução nas nacionais. 15 Se devemos levar em conta as orientações mais correntes e atuais, há também que se considerar a formação de novas comunidades inter-literárias pelo desmembramento de outras, antes definidas política e ideológicamente, que já haviam motivado estudos como o de Dionyz Durisin sobre Les communautés interlittéraires spécifiques (1991). Se o mapa da Europa tem, hoje, uma nova configuração, diferentes questões se propõem, obrigando a retomada de temas como o dos nacionalismos, regionalismos e suas relações com o universal. Do mesmo modo, as conformações político-econômicas que se constróem na América do Sul e na do Norte estão a sugerir problemas de inter-relação cultural e literária, de análise de diferenças, de representação da alteridade e de expressão de identidade que interessam diretamente à literatura comparada. Será, pois, no exame dessas questões substantivamente comparativistas que buscar-se-á a formulação de teorias em literatura comparada que amparem o andamento das investigações e que sejam específicas aos problemas com que ela se ocupa. 16
15. Leia-se, de Yves Chevrel, "Une décennie (1981-1990) de travaux comparatistes d'expression française: interrogations sur un bilan" in: Europa Provincia Mundi Essays offered to Hugo Dyserinck (1993) e, do mesmo autor, "Douze ans de travaux français en littérature générale et comparée (1981-1992) esquisse d'un bilan" in: Do· cumentation générale - Information littéraire, 1992.
16. Argumenta-se aqui a favor de uma busca de critérios próprios a um comparativismo que dê conta dos problemas específicos das novas configurações culturais.
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17. Leia-se, nesse sentido, o já mencionado Theorie de la littéraIJJre, de St~phane Santerres-Sarkany, que fornece uma visão renovada das perspectivas teóricas diante de seus recentes objetos ou KNAPP, S. & MICHAELS, w. B.Against Theory.Literary studies and the New Pragmatism, Chicago: The University of Chicago Press, 1982. AI~m disso, veja-se a recente referência, no ICLA BUUETIN, Vol. XIII, No.l, 1993, sobre o artigo de Thomas O. Beeba, "The Iiterature of theory", apresentado na ACLA Annual Conference 1993, em Bloomington, Indiana.
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Mas falar de "teorias em literatura comparada" não é apenas aludir às várias propostas como as que até aqui foram examinadas. Quer-se ainda pensar prospectivamente, ou seja, nas modificações por que passam as próprias teorias em sua relação com a literatura. Publicações recentes,!? alertam para um certo "esgotamento" do teórico, observando que depois de um período no qual a teoria tornou-se um elemento essencial para muitas disciplinas humanísticas (entre 1965 e 1985), os estudiosos estão agora se afastando de uma reflexão abstrata e voltando-se para a questão de "como a teoria pode ser usada na atual tarefa de ler obras literárias". Uma forma de reestabelecer a ligação entre teoria e literatura é a de examinar como os textos literários produzem conceitos teóricos. Há, pois, que repensar a situação geral do teórico com relação ao literário e, dentro dessa reflexão, novas articulações serão propostas para a literatura comparada, melhor dito, outras teorias surgirão em literatura comparada, auxiliando a definir-se melhor e, sobretudo, tornando essa modalidade de estudo do literário cada vez mais rentável, pois que o discurso comparativista tem necessidade do teórico para se validar.
LITERATURA COMPARADA O ESPAÇO NÔMADE DO SABER*
Eneida Maria de Souza
O convite a mim feito para discorrer sobre teorias, métodos e conceitos da Literatura Comparada e a maneira particular pela qual a disciplina é praticada na Faculdade de Letras da UFMG, coloca-me em posição de grande responsabilidade e risco. Todo relato de experiência acadêmica - embora ultrapasse a esfera individual e vise a institucional- tende a estabelecer recortes que privilegiam dados em detrimento de outros. Recursos que, de forma consciente ou inconsciente, falseiam a imagem, corrompem modelos, retocam perfis. Na tentativa de se pensar a Literatura Comparada hoje, um primeiro ponto a ser destacado refere-se à experiência humanista e interdisciplinar de nossas Faculdades de Filosofia e Letras, cujo saber, no seu início, se concentrava literalmente no mesmo prédio, onde se respirava o mesmo ar nos corredores e se folheavam livros nas bibliotecas comuns. Por essa razão é que torna-se compreensível a afirmativa de Antonio Candido, pronunciada no I!! Congresso da Abralic, em Porto Alegre: * Este texto foi apresentado na Mesa-redonda "Literatura Comparada: teorias, métodos e conceitos", no Seminário interno de Pós-Graduação na VERJ, em abril de 1993. Participaram, ainda, da Mesa-redonda, os Profs. João Alexandre Barbosa e Luiz Costa Lima.
Há mais de quarenta anos eu disse que "estudar literatura brasileira é estudar literatura comparada", porque a nossa produção foi sempre tão vinculada aos exemplos externos, que insensivelmente os estudiosos efetuavam as suas análises ou elaboravam os seus juízos tomando-os como critérios de validade. Daí ter havido uma espécie de comparatismo difuso
20 - Rev. Bras. Lit. Comparada, nº 2 e espontâneo na filigrana do trabalho crítico desde o tempo do romantismo, quando os brasileiros afirmavam que a sua literatura era diferente da de Portuga1.!
o ensaísta reforça, assim, a existência de uma vocação comparatista espontânea e informal, coextensiva à atividade crítica no Brasil, levando-se em conta a necessidade de se pensar nacionalmente a literatura pelo viés - e apesar - do olhar estrangeiro. A situação atual desse estudo alcançou, como sabemos, avanços que ultrapassam as primeiras tentativas, sem contudo deixar de lado o valor das reflexões iniciais. Amplio, dessa forma, a relação entre literaturas nacionais e estrangeiras, para entendimento do comércio interdisciplinar igualmente espontâneo e informal que orientava as pesquisas realizadas no interior das Ciências Humanas. Hoje, com o apoio de instrumental teórico mais sistematizado e pelo exemplo da situação vivida durante todo esse tempo - a separação das áreas, a divisão de domínios e a criação de fronteiras e portas disciplinares - estamos, pouco a pouco, retomando a tradição da interdisciplinaridade. Por meio da prática exercida em congressos, associações, cursos de pós-graduação e seminários integrados de pesquisa, pretende-se diminuir a fratura e abrir novos caminhos. A criação do Doutorado em Literatura Comparada na Faculdade de Letras da UFMG veio igualmente responder a essa demanda interdisciplinar e sobretudo interdepartamental. Iniciada em 1982 e levada a termo em 1985, com a abertura oficial do Curso, essa empresa contou com a deliberação de um grupo de docentes recémtitulados no exterior - Europa e Estados Unidos - e no próprio país, pelas universidades do Rio e de São Paulo. A esse grupo se juntaram alguns dos mais atuantes professores da primeira geração da Faculdade de Letras, o que facilitou o andamento e consolidação do projeto. A criação do Doutorado, embora visasse a coerência interna de seu perfil, caracterizou-se, também, pela diversidade de formação pós-graduada do ~orpo docente, a par dos interesses comuns trazidos pelo convívio interdepartamental. Se, no início dos Cursos de PósGraduação na FALE (1974) o trânsito interdisciplinar realizava-se de forma eficiente, com o Doutorado o casamento tornou-se inevitável. Ressalte-se, ainda, que o número reduzido de docentes titulados contribuiu, na época, para a desejada efetivação desse convívio. Nos dias atuais, ainda que a nossa situação tenha se modificado em termos de titulação, persiste o interesse pela atualização de projetos integrados de pesquisa e pela abertura de diálogo com outras disciplinas.
1. CANDIDO, Antonio. "Li· teratura Comparada". In: Re· cortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 211.
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Como se pode deduzir, o espírito mineiro atua de forma latente nesse tipo de estratégia institucional, se considerarmos que a lição aprendida lá fora serviu, inegavelmente, para desconstruir o "lar da tradição" , com a influência dos ares de outros espaços. A "Minas do lar/Minas sem mar" - evocada ironicamente nos versos de Silviano Santiago ("O que Minas?") - sugere outra leitura do espírito mineiro, dividido agora entre o apego à tradição e a busca incessante do novo, do outro lado da montanha, ou, se quiserem, da condensação da imagem do mar com a montanha. Abandonar esse lar e aventurarse pelo desconhecido, pelo outro lado de lá configuram a natureza nômade e inquieta desse saber sempre em processo. A natureza descentrada desse espírito, por se manter permanentemente em trânsito, possibilita a convivência salutar com diversas vertentes teóricas e metodológicas, reveladoras de uma formação que escapa da endogenia e assume uma perspectiva pluralista, aberta às diferenças. Quanto aos efeitos que os estudos de Literatura Comparada provocam nas disciplinas teóricas e na diferente abordagem metodológica dos objetos literários, vale citar, aqui, alguns exemplos. Embora nossa formação tenha sido sempre pautada por inclinações mais teóricas e reflexivas, a perspectiva comparativista tem o mérito de ampliar essa visão. Ao trazer, para o palco acadêmico, a discussão de seu próprio lugar na tradição da cultura nacional minada, desde os seus primórdios, de teorias estrangeiras - a Literatura Comparada procura se nutrir da composição desse heteróc1ito tecido cultural. O estatuto das teorias que aqui se instalam passa a ser interpretado com base nos diversos graus de recepção no país, visando detectar os fatores ideológicos que possibilitaram a entrada dessas idéias nos portos acadêmicos: o contrabando (saudável ou não) de objetos teóricos, o valor da mercadoria, e assim por diante. O espaço ocupado pela divulgação desses objetos importados no sistema institucional - pelo livre trânsito e pela quase diluição com os objetos nativos - torna-se, por essa razão, mais transparente. Consegue-se, portanto, mais facilmente entender o porquê da diferente aceitação de correntes teóricas verificada nas inúmeras instituições de Letras no país. O nosso caminho teórico pretende conjugar a tradição de culturas nacionais com as estrangeiras - abstraindo-se da concepção estreita de lugares regionalmente marcados - e produzir objetos teóricos que revelem o efeito desconstrutor das relações interculturais. Valendo-se ainda dessa perspectiva analítica, o texto ficcional - ou artístico - assume funções próximas àquelas do texto teórico, podendo ser interpretado como imagem em movimento na qual a rede
22 - Rev. Bras. Lit. Comparada, nº 2 metafórica é produtora de redes conceituais. Procura-se, ainda, repensar a própria tradição cultural produzida no Brasil, de forma a colocá-la em posição particularizada frente à tradição estrangeira: nem narcísica, nem edipiana. O olhar unívoco em direção a uma determinada tradição carece de malícia; a visão excludente de tradições teóricas revitaliza a gasta polêmica das "idéias fora do lugar". Na ausência deliberada de um porto seguro para essas idéias, o importante é enfatizar o descentramento de lugares de origem, supostamente produtores de saber. Curiosamente, o verbo comparar vai sofrendo, ao longo do tempo, modificações que desconstroem posições universalistas e limitações de ordem nacionalista. Quanto ao aspecto metodológico, nossa formação sempre se pautou pelos estudos de ordem textual, pela valorização do caráter intrínseco e imanente da obra literária, graças às experiências com a estilística, a fenomenologia, o estruturalismo e a semiologia. Essa prática, voltada para o exame particular do texto, para os detalhes de construção e as minúcias de efeitos de linguagem, continua a ser um de nossos maiores trunfos. Com a retomada das pesquisas inseridas num projeto mais abrangente e em perspectiva - em que se diminui o valor da profundidade e se focaliza o olhar em superfície - ampliam-se os horizontes da leitura textual, atingindo..;se dimensões de natureza cultural. A abordagem intercultural revitalizada pela pesquisa comparativista encontra na prática tradutória uma das formas mais abertas para o redimensionamento dessas relações. A tradição das literaturas nacionais se enriquece diante da possibilidade de trair modelos e repensar origens. Cresce, igualmente, o interesse pelo lar nacional, pela discussão de conceitos ligados à história e à literatura, à memória cultural, à preservação e conservação do patrimônio, de nossas coisas, que pelo fato de, por princípio, nos pertencer, permanecem sintomaticamente menos conhecidas. Não foi, portanto, gratuita, a decisão de se criar o Centro de Estudos Literários na FALEIUFMG, com o objetivo de preservar e tornar acessível ao público acervos de escritores mineiros. Encontram-se, no momento, em estágio de catalogação e organização, os acervos de Henriqueta Lisboa, Murilo Rubião e Oswaldo França Júnior. Necessário, ainda, ressaltar, que a posição metodológica assumida diante do material a ser pesquisado nesses acervos - o estudo de fontes primárias - além de observar os requisitos básicos a esse tipo de pesquisa, pretende imprimir novo olhar sobre a recuperação do texto da memória. O sentimento de respeito à biblioteca pessoal dos escritores e ao armazenamento de seu arquivo se mescla a uma
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2. PIGLIA, Ricardo. "Memoria y ficción". CONGRESSO ABRALIC,2, Belo Horizonte, 1990. 1n: Anais ... Belo Horizonte: UFMG, 1991. p. 61.
atitude rebelde do pesquisador, pelo fato de ter a liberdade de embaralhar a ordem imposta pelos arquivistas_ Babeliza-se a biblioteca, sem desvirtuá-la, com a ajuda da arte do esquecimento, da leitura distraída, para que se consiga ler, com certo distanciamento, o objeto que metaforicamente é de nossa propriedade_ Nascem, desse exercício infinito do saber, pesquisas valiosas para o estudo comparativista: biografias literárias, história do pensamento crítico brasileiro de determinada época, realização de edições críticas, publicações de inéditos e esparsos, organização de antologias, além da reconstituição de um conhecimento não monumental. A natureza enciclopédica dessa biblioteca deverá prioritariamente ser lida como estratégia desconstrutora de verdades e de propriedades autorais_ Pautada por essas reflexões, tento esboçar o espaço ocupado pela Faculdade de Letras da UFMG no interior das pesquisas em Literatura Comparada no Brasil. Aproprio-me, assim, da expressão de Ricardo Piglia, ao se referir à situação da literatura argentina diante da estrangeira, qual seja, "la mirada estrabica". Segundo ele, essa metáfora traduz o caráter ambivalente e seminal das culturas representativas do chamado terceiro mundo: um olho dirigido para a inteligência européia e o outro para as entranhas da pátria" .2 Nessa rede de influências, desdobro a posição de Minas diante dos estudos de Literatura Comparada, tomando como eixo de relação tanto a produção teórica estrangeira quanto a nacional, realizada no Rio e em São Paulo. Teórica e metodologicamente procuramos estabelecer a ponte entre as manifestações externas e internas, com o objetivo de desconstruir o pólo de oposições que gira em torno das categorias exterior/interior. Pelo fato de mantermos uma posição aglutinadora entre a voz do mesmo e do outro, esse outro não mais se impõe no seu estatuto de alteridade radical e de exterioridade excludente. A alteridade, entendida enquanto componente da subjetividade individual e cultural de todo e qualquer grupo, anula a face homogênea e endógena que certos guetos ousam conservar. Corpos e instituições, longe de se apresentarem através de um só rosto ou um único olhar, revestem-se de máscaras e de papéis distintos. Acreditar no descentramento cultural prefigura, de forma evidente, a desejada invenção e releitura de modelos hegemônicos, além de aquecer o diálogo acadêmico entre nós. A conjunção heteróclita de vários olhares, voltados simultaneamente para o dentro e o fora do lar e da rua, da montanha, da planície, do mar e do além-mar traduz essa mirada cultural estrábica. Inspirada no paradoxo e na visão crepuscular das civilizações, cons-
24 - Rev. Bras. Lit. Comparada, nU 2 trói-se a montagem de paisagens teóricas, pela sobreposição da montanha, da planície e do mar. Com base nessa múltipla composição geográfica, criam-se famílias e amizades teóricas, em que o conceito de influência passa a ser interpretado no sentido de revitalização de modelos. Harold Bloom, em seu livro A angústia da influência, ao analisar a prática da repetição e da descontinuidade verificadas no ato criador, confirma o que pretendo expressar no âmbito das relações de parentesco intelectual: A verdadeira história poética é a história de como poetas enquanto poetas têm suportado o peso de outros poetas, assim como toda biografia é a história de como alguém suporta o peso de sua própria família - ou do deslocamento da família às figuras de amantes e amigos. 3 A metáfora familiar se expande para o núcleo da amizade - a criação mais livre de laços, afinidades literárias e teóricas, grupos de gerações - e permite a invenção e a fabulação de um espaço neutro onde o convívio com a diferença não se transforma em dramas familiares. Essa prática consubstan-cializa o próprio gesto metafórico da tradução, que consiste justamente na leitura da tradição teórica nacional e estrangeira, de forma esquiva e falseada. A condensação de culturas permite o ato ousado e descompromissado da fragmentação, do recorte, do plágio e do esquecimento. Nessa operação substitutiva, não se cogita tampouco do valor atribuído ao original ou à cópia, a modelos e falsetes. Por meio do olhar irreverente e tranqüilo dessa "mirada estrábica", conseguiremos refletir sobre a cultura brasileira sem resquícios de mágoa ou de ressentimentos. "O terceiro mundo", já sabemos, não é mais aqui.
3. BLOOM, Harold.A angústia da influencia: Uma teoria da poesia. Rio de Janeiro: lmago, 1991. p. 132.
REVISÃO DOS ALGUNS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA LITERATURA COMPARADA CRíTICA E PROPOSTA
Philippe Willemart
1. "Flaubert: Ruminer Hérodias (Ou cognitif-visuel au verbal-textuel)". Almuth Grésillon, Jean-Louis Lebrave e Catherine Fuchs (ITEMCNRS). L 'écriture et ses doublcs. Gencse et variancc tcxtuel/c. Editeurs Ferrer Daniel, Lebrave Jean-Louis. Paris: éd. du CNRS, 1991.
2. BLANCHOT, Maurice. Lautréamont et Sadc. Paris: éd. de Minuit, 1949.
Em um artigo recente,! três lingüistas, Almuth Grésillon, Jean-Louis Lebrave e Catherine Fuchs analisam os rascunhos do início do conto "Herodías" de Flaubert. Nas anotações de trabalho e nos cadernos de viagens, reencontram trechos copiados do historiador judeu Flavius Josêphe do século I e de geógrafos-viajantes inglês e francês Tristam e Parent do século XIX_ Pacientemente, eles seguem as transformações lingüísticas, sintáticas e textuais destes empréstimos nos rascunhos da narrativa que retratam a sua maneira os choques entre Antípas, sua mulher Herodías e profeta J oão-Batista, chamado laokanam_ Trabalho ao mesmo tempo extremamente interessante por seu rigor metódico e inteiramente exemplar pelos estudos de gênese porque descobre o lento caminho da criação em Flaubert. De um ponto de vista técnico, os autores reencontram as fontes objetivas (e insisto nesta grande vantagem dos estudos de gênese que tem por matéria um objeto científico palpável) de um texto literário em textos de um historiador ou de viajantes. Sua leitura se aproxima fortemente da crítica das fontes e da literatura comparada porque estabelece ligações entre dois textos. Se nossos colegas comparatistas se entregam ou se entregavam à miragem das fontes denunciada por Blanchot,z ou, mais modernos, procuram influências ou marcas da literatura francesa nas literaturas sul-americanas, ou se, mais avançados ainda e seguindo Kristeva, eles estudam o intertexto, os três
26 - Rcv. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 lingüistas citados os seguem de bem perto falando de enxerto do texto-fonte sobre o texto flaubertiano. Seguindo Wellek,3 mas sob um outro enfoque, gostaria de denunciar neste texto, a partir deste pequeno exemplo, o que a crítica genética arisca em retomar o mito, ou melhor, a ideologia, que fundamenta os estudos comparatistas e propor um ou uma outra, é difícil escapar a essa coação, mais adaptada a nosso fim de século. Sem sabê-lo claramente, alguns comparatistas brasileiros da nova geração,4 se inspiram desta nova teoria oriunda de críticos alemães e de físicos, defensores da instabilidade. Em um encontro entre estudiosos de gênese do texto literário em Bellagio em 1988, sustentava "que havia um deslocamento do registro geográfico para o da ficção", nessa passagem do texto copiado do viajante Parent ao texto literário, deslocamento que provocava" a vinda à existência brilhante na constelação flaubertiano" de um texto origina1. 5 Wellek falava "de hiato ontológico".6 O conceito de passagem de um registro para um outro, é de longe mais promissor do que o de enxerto. Este último, com efeito, subentende a continuação de um texto ao outro, tenta traçar laços de toda espécie entre o elemento copiado e o texto literário e procura reencontrar a origem, ver uma paternidade. É a tentativa de responder à pergunta' 'De onde viemos?" O enxerto decorre de uma concepção darwiniana mal entendida, já visível em Hesíodo em que os deuses nascem um do outro, De Caos, Érebo e Noite negra nasceram. De Noite aliás Éter e Dia nasceram. 7 Mas esse conceito de enxerto toca também (quero dizer, está próximo de, mas não decorre dele) à teoria da criação na qual, segundo Agostinho de Hippone, as origens são contidas na palavra condensada de Deus que, se desenrolando como uma fita no tempo, cria; teoria que coincide com a do biguebangue dos astrofísicos antes de Prigogine. Enfim, esse conceito, como o da evolução supõe uma intenção criadora, um fio condutor ou uma causa final que dirige o percurso. Os defensores do conceito de passagem de um registro para um outro poderiam invocar Baudelaire: "Manipular sabiamente uma língua, é praticar uma espécie de feitiçaria evocadora",8 feitiçaria que força o escritor a entrar no registro do fantástico, mas seria da nossa parte, cair também no evolucionismo literário. Paul Ricoeur refletindo à problemática do tempo e retomando Kãte Hamburguer, escreve: "Uma barreira intransponível separa o discurso assertivo, falando da realidade, da narrativa de ficção. Uma lógica diferente [... ], resulta deste corte. Esta diferença resulta inteiramente do fato que a ficção substitui a origem-eu do discurso assertivo, que é ela-mesma real, pela origem-eu das personagens da
3. WELLEK, René. Concei· tos de crítica. São Paulo: Cultrix, (1959-s/d.), pp. 244-255 (Concepts of critiôsm. New Haven: Yale U. P. S. - G. Nichols, Jr. - 1963).
4. Entre outros: PINHEIRO PASSOS, Gilberto. "O diálogo machadiano com Moliere e Voltaire em Memórias póstumas de Brás Cubas". Parcours/percursos. BrasilFrança: Percursos literários. São Paulo: Centro de Estudos Franceses-Universidade de São Paulo, 1992. 1. p. 29. 5. WILLEMART. "Une prise d 'histoire dans le manuscrit". Sur la génétique textuel/e. Amsterdam: Rodopi, 1990, pp. 92 et 93. 6. WELLEK. op. cit, p. 253.
7. HESÍODO. Teogonia. São Paulo, Massao Ohno-Roswiwtha Kempf, 1981, p. 132.
8. BAUDELAIRE, Charles. Ocuvres completes. Théophile Oautier (org.). Paris: Seuil, 1970, p. 464.
Revisão dos Alguns Fundamentos ... 9. Une infranchissable barriere sépare le discours assertif,
portant sur la réalité, du récit de fiction. Une logique différente, [ ... ), résulte de cette coupure. Cette différence résulte tout entiêre de ce que la fiction remplace I'origine-je du discours assertif, qui est elle-même réelle, par I'origine-je des personnages de la fiction. RICOEUR, Paul. "La configuration du temps dans le récit de fiction". Temps et récit lI. Paris: Seuil, 1984. p. 98. 10. Le travail de pensée à I'oeuvre en toute configuration
narra tive
s'achêvera
dans un refiguration de I'expérience temporelle. RICOEUR, Paul. Temps et récit. lI!. Le temps raconté. Paris: Seuil, 1985. p. 9. 11. WEINRICH, Harald. Le Temps. Paris: Seuil, 1973. lZ. HAMBURGUER, Kãte. Die Logik der Dichtung, Stuttgard: Ernst Klett Verlag, 1957 (Zéme éd.) trad. franç. Logique des genres littéraires. Paris: Seuil, 1986. 13. Jacques Monod avança os conceitos de acaso e de necessidade que causam uma grande perplexidade entre os filósofos e pesquisadores. Le Hasard et la nécessité. Paris: Seuil, 1970. 14. Em 1979, lIya Prigogine e Isabelle Stengers publicam na Gallimard a história da ciência moderna e contemporânea, reeditada em edição de bolso desde 1986, com uma nova introdução e dois apêndices. Anunciam uma teoria da física que leva em conta o porvir, ou a irreversibilidade dos fenômenos e retoma a teoria das estruturas dissipativas que resultam em fenômenos de auto-organização se produzindo longe do equilíbrio, descoberta que valeu o prêmio Nobel a lIya Prigogine em 1977: "Au-delà d'un point critique qui marque I'instabilité des états stationnaires analogues à I'état d'équilibre, apparaissait le domaine des 'structures dissi-
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ficção".9 Não há portanto ligações intrínsecas entre o discurso assertivo e a narrativa da ficção; as fontes não cabem aqui; traçar um caminho entre a realidade e a narrativa, aqui entre o discurso histórico ou geográfico e o discurso literário, e, por extensão de uma literatura a uma outra, trará considerações pouco válidas e pouco enriquecedoraso Dissertando sobre o tempo, mas podemos sem dúvida o aplicar a nosso propósito, o filósofo francês usa o termo de refiguração para caraterizar essa diferença. 10 Quem diga refiguração, mudança de registro ou de lógica, nega, de uma certa maneira, a evolução entre a realidade e a ficção, entre o discurso de um viajante e o discurso narrativo. Poderiam objetar que comparar o relatório de um viajante com o manuscrito de Flaubert não é a mesma coisa do que por lado a lado um texto de literatura francesa e um outro de literatura brasileira, já que esses textos pertencem ambos à ficção. Retomarei um outro autor alemão, Harald Weinrich que distingue o mundo narrado do mundo comentado,11 para afirmar que desde que comentamos um texto narrado, por exemplo, um texto de literatura francesa, desde que Machado de Assis se apropria de Voltaire ou Stendhal ou que Flaubert copia um texto de um historiador, o mundo narrado muda de registro e pertence ao comentado porque se exerce nele uma tensão e uma ação. Ignorando isso provavelmente, mas essas idéias circulavam, Kãte Hamburguer 12 e Harald Weinrich reencontravam as reflexões de vários homens de ciências, Jacques Monod,13 Ilya Prigogine e Isabelle Stengers,I4 James Lighthill l5 entre outros, para quem a teoria da evolução não explicava suficientemente a origem e a existência de certos fenômenos não clássicos. Em 1988, Prigogine e Stengers alargam as perspectivas abertas pelo livro anterior em Entre le temps et l'éternité. Lembram a importante noção de região do espaço das fases. No decorrer das transformações que sofre um fenômeno, as trajetórias diversas que o compõem, se encontram em uma região, se desintegram e reencontram seu menor elemento, o ponto; esses se reúnem seguindo critérios desconhecidos e criam assim novas trajetórias imprevistas. Ir. Por outro lado, pesquisas recentes sobre a percepção visual minimizam a contribuição exterior em relação ao trabalho interno do cérebro 17 e conseguintemente relativiza sem dúvida a importância do que vemos ou lemos efetivamente e diminui a diferença entre o objeto real e o virtual, aqui, entre o texto lido e a composição de um novo texto. A partir de um elemento exterior, a auto-organização entra em jogo e facilita uma cooperação global espontânea. A visão do mar Morto a partir do Sena vista de Croisset, por exemplo, que teria sugerido a Flaubert o que via sua personagem Antípas do alto de seu
28 - Revo Brasil. LiL Comparada, nU 2 castelo no primeiro capítulo do conto, está contextualizada historicamente e não exige necessariamente a ré-presentação de uma cena do século primeiro; a descrição pode ser nova e original, mesmo recuperando a viagem no Oriente, as fotos do explorador Vignes ou outras leituras anteriores. Depois desse longo comentário, talvez entendamos um pouco melhor as relações entre Kãte Hamburguer, Harald Weinrich e IIya Prigogine. Os dois primeiros falam de mudança de registro e o terceiro de região instável na qual tudo se transforma sob o efeito da auto-organização. O manuscrito de nossas literaturas, escrito em línguas faladas no Cone Sul e nas Caraíbas, pode ser comparado à região na qual os parágrafos, as frases, as palavras, as formas de estilo, e as citações de outros textos da literatura universal, retomadas explicitamente ou não, perdem seu equilíbrio e se dissolvem na sua forma, significação ou sentido, para se tornar outros, seguindo os vai-e-vem da escritura e as imposições do autor. Não há enxerto, milagre ou acaso, mas uma auto-organização ou uma redefinição geral que embaralharia as pistas, se não tivermos o manuscrito como testemunha. Enxerto supõe um estado anterior a partir do qual se constrói um novo estado, é inserir uma planta em uma outra para multiplicar ou criar uma nova espécie. Em nosso caso, seria retomar uma tradição ou um texto, o de Tristam, de Flaubert ou de Voltaire pour vivificar o novo texto. Teria continuação ou evolução do primeiro ao secundo. Nós opusemos a esta concepção que supõe uma identidade entre o mundo dos geógrafos e o mundo da ficção, ou, entre o mundo comentado e o mundo narrado e uma possível evolução de um para um outro. Não é nos submeter ainda ao dogma científico reinante do evolucionismo, mas com um leve atraso, que de emprestar este termo, o enxerto, à botânica ou à medicina que trabalham nesses casos em zonas estáveis de equilíbrio? Sustentamos, pelo contrário, seguindo Kãte Hamburguer e os pesquisadores citados acima, que a passagem de uma lógica a uma outra, ou de uma região a uma outra, provoca, uma transmutação que pode ser vista de duas maneiras. Ou, apoiamos a tese bíblica do ex-nihilo da mãe dos Macabéos que supõe uma destruição inicial, Deus cria o homem a partir do nada; tese retomada por Lacan quando fala dos artistas. Ou, matizamos a tese bíblica porque mergulhamos o objeto antigo na região de Prigogine admitindo assim uma destruição ou uma pulverização das trajetórias ou dos textos iniciais; trajetórias que se reconstituem em outras regiões ou outros textos ao mesmo tempo no cérebro do escritor e no seu manuscrito. As ciências
patives' "o PRIGOGINE, lIya & STENGERS, lsabelle. La nouvelle allianceo Paris: GalIimard, 1986, po 12. Assim, rejeitavam a tese de Monod "sobre a oposição entre acaso e necessidade e centralizavam suas reflexões ao redor dos temas da estabilidade e da instabilidade que doravante descreverão o mundo", ibid., p.14. 15. Em 1986, Sir lames Lighthill, presidente da União Internacional dos especialistas em mecânica teórica e aplicada, "apresentava suas desculpas por ter induzido em erro o público culto, espalhando idéias, que se revelaram incorretas depois de 1960, a propósito do determinismo dos sistemas que satisfazem às leis newtonianas do movimento". Id. ibid., p. 94. 16. "Esta situação lembra aquela que prevalece no estudo dos fenômenos meteorológicos: detalhes insignificantes, que escapam à observação, podem, num futuro próximo, desempenhar um papel significativo. [00'] Pode ser o bater das asas de uma borboleta ou o espirro de um habitante de Madagascar. Id. ibid., pp. 102-103. O efeito borboleta foi citado pela primeira vez pelo meteorologista Edward Lorenz na sua conferência "Predictability: Does the Flap ofa butterfly's Wings in Brazil Set Off a Tornado in Texas?" na Sociedade Americana para o Progresso da Ciência em Washington, dia 29 de dezembro de 1979. GLEICK, lames. Caos. São Paulo: ed. Campus, (1987) 1990, p. 29. 17. "O influxo que o cérebro recebe do olho provoca uma atividade surgindo do córtex ainda mais importante [00'] 80% de tudo o que uma célula do corpo joelhado lateral vê passar vem da densa rede que a liga ao cérebro e não tanto da retina. " VARELLA, Francisco l. Connaitre. Paris: Seuil, 1989, pp. 74-75
Revisão dos Alguns Fundamentos ... -
18. WELLECK, p. 254.
19. CARONI, Ítalo. "La dette culturelle brésilienne n'existe pas. Voir Oswald de Andrade". Anais do X Congresso Nacional de Professores de Francês. Florianópolis, 1991, p. 74. 20. WELLECK, ibid., p. 197.
21. JENNY, Laurent. "La stratégie de la forme". Poétique. Paris: Seuil, 1976.27. p. 262. 22. PINHEIRO PASSOS, Gilberto. A poética do lega. do. (O interlexto francês em Memórias póstumas de Brás Cubas. FFLCH·USP. 1988 (tese inédita)
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cognitivas e a crítica genética se cruzam aqui. Nem a evolução, nem o enxerto de um texto sobre o outro são defensáveis. Rejeitando, portanto, as teses positivistas de influências e de fontes, de débito e de crédito 18 para o manuscrito e para qualquer texto literário, e aceitando a nova descrição do mundo sugerida, entre outros por Prigogine, reencontramos um virtual que fundamenta a autonomia do texto literário em relação a seus antecessores e que proclama a independência de nossas literaturas em relação às literaturas dos países do primeiro mundo. A originalidade desta comunicação não decorre deste grito de independência já lançando por outros, como Ítalo Caroni retomando Oswald de Andrade e negando nossa dívida cultural. 19 Não decorre também não, dessa defasagem da literatura comparada demais submetida em geral ao dogma positivismo sublinhado por Wellek,20 mas a este embasamento teórico vindo de uma descrição não-determinista do mundo que não rejeita as estruturas instáveis e a irreversibilidade e nos dá um novo modelo de inteligibilidade do qual podemos aproveitar em nossos estudos literários. Restaria ver como considerar os estudos comparativas que substituem esse corte epistemológico entre o antigo e o novo ao sustento positivista. Certos comparatistas não leram Prigogine e nem o esperaram para adotar uma atitude drástica e moderna na análise de seu texto, como o assinalei no começo do texto. Wellek falava de hiato entre uma obra nascente e as obras anteriores, Laurent Jenny de um texto centralizador que mantém a liderança do sentido,21 o que é um avanço do ponto de vista teórico, mas não é ainda satisfatório. Gilberto Pinheiro Passos emite uma teoria do legado na sua tese de doutoramento,22 e merece uma atenção especial. O legado se diferencia ou melhor, anula a tradição literária que não age mais como uma força dominante que se impõe; o legado está simplesmente lá, à disposição do escritor que o utiliza como bem entender, como o herdeiro não se sentindo obrigado em manter casas e terrenos herdados, os vende se precisar e redistribui a fortuna dos pais como quer. Outros comparatistas, invocando a estética da recepção de J auss, insistem no "horizonte de espera" dos escritores para explicar as contribuições da tradição literária. As duas leituras estão centradas no escritor, sem dúvida ancorado na tradição, mas que se distanciando, não se sente, de jeito nenhum, forçado por ela, a destrói ou a segmenta se necessário e a redispõe na sua escritura. Esta última posição da crítica comparatista não recorta a de Prigogine e de seus discípulos? O que fará o comparatista ceifado do texto como origem,
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texto-órfão de um passado-renegado, sem dívida em relação à literatura do colonizador ou à literatura universal? Continuará comparando?, mas o que? Com certeza, procurará no seu texto as marcas da outra literatura ou a presença do Outro, mas uma vez as traças descobertas, ele não fará delas a razão ou a causa determinista da escritura estudada, mas discernirá os mecanismos de desintegração que desestabilizam o texto anterior e os de integração ao nível da narratologia, da ideologia, da sócio-crítica, etc. para discernir em seguida, a posição original da escritura estudada em relação à literatura anterior. Nisso, será muito próximo dos estudiosos da gênese que tentam descrever os processos de criação no manuscrito a partir dos acréscimos e das supressões, dos cadernos de viagens e de anotações e da correspondência. Os comparatistas tanto quanto os críticos da gênese considerarão seus textos como a região de Prigogine. Isto é, uma vez atravessada a fronteira, uma vez transposta os textos ou trechos de textos emprestados na folha branca do escritor, o autor relativiza a origem, a denega às vezes, perde a dimensão temporal inicial, para servir unicamente ao novo texto. Os exemplos analisados por Passos no artigo citado ilustram suficientemente este ponto de vista que seria a seguir e para o qual, reenvio os leitores.
NAÇOES LITERÁRIAS
WANDER MELO MIRANDA
"N ão há símbolo mais impressionante da moderna cultura
1. ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. Trad. Lólio Oliveira. São Paulo: Ática, 1989, p. 17.
do nacionalismo do que os cenotáfios e os túmulos de Soldados Desconhecidos. A reverência pública outorgada a tais monumentos, precisamente porque estão deliberadamente vazios, ou ninguém sabe quem jaz dentro deles, não encontra precedentes em épocas passadas [... ]. Por mais que esses túmulos estejam vazios de quaisquer restos mortais identificáveis, ou almas imortais, eles estão, porém, saturados de fantasmagóricas imaginações nacionais" .1 A arguta observação de Benedict Anderson, ao estudar a afinidade da imaginação nacionalista com as modalidades religiosas de pensamento, oferece uma pista instigante para o encaminhamento da questão da historiografia literária que se propõe aqui esboçar. As histórias da literatura são como monumentos funerários erigidos pelo acúmulo e empilhamento de figuras cuja atuação histórico-artística, em ordem evolutiva, pretende retratar a face canônica de uma nação e dar a ela um espelho onde se mirar, embevecida ou orgulhosa de seu amor próprio e pátrio. Carregam em geral esse caráter fantasmagórico que nem a solidez de pedra da letra impressa para sempre no papel consegue desfazer. Uma vez legitimados no panteão das letras nacionais, muitos dos nomes que o compõem, senão todos, são "restos mortais" não mais identificáveis, enraizados que estão em significados perenes, "soldados desconhecidos" em virtude do serviço prestado em prol
32 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nU 2 de um conceito de nação que, afinal, reduz e abole toda diferença. Nenhuma brecha, nenhuma rachadura na construção monolítica que deixe ver o vazio enquanto lugar das projeções imaginárias do nacionalismo patológico da moderna história do desenvolvimento ocidental. A demanda de uma totalidade sem fissuras que tal atitude busca responder ou alimentar é, como se sabe, herdeira da visão iluminista que a revolução burguesa não mediu esforços para ver afirmada no decorrer do século XIX. E resiste, ainda hoje, em certos setores que se autodefinem, no que pese o paradoxo, de progressistas. A concepção de história aí inerente é a de uma temporalidade linear e contínua, que evolui por etapas sucessivas, no interior de um sistema que vai integrando fatos e eventos até formar uma tradição discursiva que reflui maciçamente em direção ao referente. Uma história literária progressista seria, pois, aquela que, forjada pelo espectro do nacional e baseada na metáfora do crescimento orgânico, tenta fazer coincidir a série literária e a série social, tendo em vista um conceito de representação que trabalha com a "imediatidade" dos traços do lugar para compor e definir os valores constitutivos da sua identidade. Dessa perspectiva e se esse lugar é, por exemplo, o Brasil, sua história literária se fará como progressivo processo de emancipação das formas oriundas da Metrópole. Aí onde se ordenam os parâmetros que, contraditoriamente, definem o sentido da história como realização da civilização, ou seja, da forma do homem europeu moderno. Assim é que a construção de uma identidade nacional brasileira aponta, sobretudo a partir do Romantismo, na direção do as sujeitamento "esquizofrênico" ao imaginário europeu - Peri e Ceci no jogo ambíguo de afetos e valores -, através de um exercício de retórica (in)verossímil que conduz à marginalização dos "desafetos nacionais' '2 e, portanto, à sua deslegitimação. Fora de foco, fora da história - está traçado o não-lugar dos deslegitimados que, entre algo chamado Brasil e a imagem idealizada de um país recém emancipado politicamente no grito, teimam em tornar opaca a transparência que permita aos brasileiros verem e serem vistos. Mas mostrar o país e fazê-lo visível para seus habitantes e artistas é, ainda no Romantismo e segundo Flora Süssekind, tarefa do viajante estrangeiro. Munido de pranchetas, lápis, pincéis e tinta, ele vai delineando uma paisagem cartográfica da nação, por onde passa a circular patrioticamente o narrador da ficção brasileira, tornado porta-voz de "certas quimeras genéticas (a árvore familiar, o 'amadurecimento' como processo contínuo, a nacionalidade como essência meta-histórica)".3 Ou então, no século XX, é tarefa dos modernistas da primeira hora, munidos da crença ou ilusão, pouco
2. ROUANET, Maria Helena. Eternamente em berço esp/endido: a fundação de uma literatura nacional. São Paulo: Siciliano, 1991, p. 293.
3. SOSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 19.
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4. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). 3. ed. São Paulo: Martins, 1969, p. 10, v.1. .
5. ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991,p. 11.
6. PAZ, Octavio. HispanoAmérica: literatura e história. O Estado de São Paulo; suplemento literário, 14 set. 1980, p. 3.
7. MORSE, Richard. O espelho de Próspero: culturas e idéias nas Américas. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 13 e 14, respectivamente.
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importa, de estarem mais avançados, mais próximos do projeto racional de melhoramento, educação e emancipação - "Amassa ainda comerá do biscoito fino que fabrico", alardeia Oswald de Andrade, entre sério e cômico. Nesse sentido, fazer uma nação e fazer uma literatura são processos simultâneos, no trajeto do "espírito do Ocidente, buscando uma nova morada nesta parte do mundo",4 como quer Antonio CandidonaFormaçãoda literatura brasileira. O "espírito do Ocidente" acaba, entretanto, virando fantasma, sedutor por certo, embora responsável maior pelo dilema que em geral acompanha a cultura deste lado do Atlântico. Mário de Andrade, com a lucidez de sempre, assinala que a música brasileira e a americana vivem o drama de não terem tido um desenvolvimento' 'mais livre de preocupações quanto à sua afirmação nacional e social", 5 ao contrário da música européia e da asiática, o que de certa forma nos mantém presos, acrescente-se, à idéia do caráter inautêntico e postiço da nossa vida cultural. Não é comum se dizer que a literatura daqui é um galho miúdo, pouco legítimo e meio torto de uma árvore que cresce no centro de um território alheio e inacessível? Octavio Paz afirma que, apesar das tentativas empreendidas ao longo do tempo para nos mantermos no compasso ocidental, essa dança já perdemos há muito, uma vez que somos e nos mantemos "um extremo do Ocidente - um extremo excêntrico, pobre e dissonante".6 A questão é, para o crítico-poeta, saber se, por mais rica e original que seja, a literatura hispano-americana é uma literatura moderna, já que carece de uma reflexão crítica, moral e filosófica mais consistente. Paz lamenta nunca termos tido "movimentos intelectuais originais" e vivermos "intelectualmente no passado". Antes que seja discutida tal posição, compare-se a mesma com a de Richard Morse, quando diz, na abertura de O espelho de Próspero: "Resguardando-me, tanto quanto possível, do tom recriminatório que domina o 'diálogo' norte-sul de ambos os lados, pretendo considerar as Américas do Sul não como vítima, paciente ou 'problema', mas como uma imagem especular na qual a Anglo-América poderá reconhecer as suas próprias enfermidades e os seus 'problemas' ". Mais adiante, acrescenta: "Num momento em que a Anglo-América experimenta uma crise de autoconfiança, parece oportuno confrontar-lhe a experiência histórica da Ibero-América, não mais como estudo de um caso de desenvolvimento frustrado, mas como a vivência de uma opção cultural".7 A dúvida de Paz parece apaziguada pelo viés do descentramento temporal e espacial da literatura como "arte da conjugação", efetuada pela dinâmica sincrônica da "poética do agora". O univer-
34 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nU 2 salismo da proposição permite ao crítico resolver, ou pelo menos colocar em suspenso, a questão da originalidade e do atraso, desfeita pela "voz da Outridade' '8 com que fala a linguagem poética que define nossa identidade. Conclui-se que somos sempre outros, pura diferença, imposta pela perpétua remissão a núcleos paradigmáticos estabelecidos por quem de poder. A idéia de opção cultural com que Morse lê a Ibero-América contém, por sua vez, uma noção de processo civilizatório que, sem cair em extremos universalistas nem em nacionalismos redutores, articula vivências distintas e simultâneas da temporalidade histórica. Descarta ainda a óptica da explicação macroestrutural que delega ao poder um lugar único e fixo e desvela o ideal europeu ou anglo-americano de humanidade como um ideal entre outros, cuja pretensão de unificar todos os demais só se pode dar pela violência. Como notou Benedict Anderson, na segunda metade do século XIX, senão antes, já havia um modelo de Estado nacional independente - mistura de elementos franceses e americanos - disponível para ser plagiado. A "nação" mostrou ser, desde logo, uma invenção impossível de ser patenteada, constituída que fora por padr ões em relação aos quais não se permitiam desvios muito acentuados, embora suscitassem variadas e mesmo imprevistas apropriações. É o estilo dessas apropriações plagiárias, e não a oposição falso/autêntico, que irá distinguir o que chama de nationess. 9 A criação das nações americanas à imagem da utopia européia do Novo Mundo participa desse processo plagiário, que irá perpassar o romance latino-americano no início da sua formação e o levará a se construir como correção ou complemento de uma história de acontecimentos nãoprodutivos. Doris Sommer revela que a literatura do período assume a função político-ideológica de legitimar as nações emergentes após a independência, programando-lhes o futuro enquanto projeção de uma história ideal, concebida por meio do modelo do progresso e da prospe-ridade econômica européia. No "irresistible romance"lO de fundação ficcional da América Latina, a retórica erótica e sentimental desempenha um dos papéis principais: o romance familiar é tomado como modelo de homogeneização nacional, através da conciliação levada a cabo pela liderança liberal, que atua como ponte entre raças, regiões e grupos políticos antagônicos. A apropriação "estilística" do modelo de nação que parece predominar entre nós segue essa lógica conjuntiva, que busca integrar, conciliando diferenças, mesmo quando baseada - mais um paradoxo - na relação mecanicista e rigidamente hierárquica entre modelo (hegemônico) e cópia (periférica) e na indefectível noção de dependência cultural que lhe serve de suporte. Se dermos um salto
8. PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 201.
9. Cf. ANDERSON, p. 77 e passim.
10. SOMMER, Doris. "Irresistible romance: the foundational fictions of Latin America". In: BHABHA, Homi K. (org.). Nation and narration. London, New York: Routledge, 1990.
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11. MORENO, César Fernández. América Latina em sua literatura. Trad. Luiz Gaio. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. xxiii.
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de mais de um século, veremos que essa lógica continua a render frutos, desta vez nos critérios que presidem o volume coletivo organizado com o intuito de oferecer um panorama daAmérica Latina em sua literatura, patrocinado pela Unesco no final da década de 1970. Na introdução, o organizador César Fernández Moreno aponta a diretriz central do trabalho: "considerar a América Latina como um todo, integrado pelas atuais formações políticas nacionais. Esta exigência levou os colaboradores do projeto a sentir e expressar sua região como uma unidade cultural, o que veio a favorecer neles um processo de autoconsciência que o projeto pretende estimular, já que foram chamados exclusivamente intelectuais latino-americanos para participar dele".u O espírito conciliatório e o caráter pedagógico-humanista do enfoque pretendido, sem falar no contraditório e redutor exclusivismo na escolha dos participantes do projeto, dispensam comentários. Tal como proposta, a representação lingüística, literária e política da América Latina vem colocada a estratos de sentido valorativos, predeterminados por uma concepção totalizadora que se quer resguardada de nacionalismos estreitos, na tentativa de atingir um ponto de equilíbrio no eterno movimento da gangorra entre o universal e o particular. Fica de fora, no caso, a articulação crítica diferencial das literaturas latino-americanas e destas com outras literaturas, no sentido de uma relação ou comércio transnacional de signos, que se faz à revelia da demanda de uma identidade cultural una e falaciosamente integrativa. A leitura dos ensaios que compõem o volume demonstra, felizmente, que o objetivo que o preside não se cumpre de todo. Cite-se, como exemplo, o texto' 'Literatura e subdesenvolvimento", de Antonio Candido. Nele a realidade do subdesenvolvimento é desmistificada como álibi das realizações literárias nativistas que postulam a identidade do "sujeito" latino-americano presa a valores localistas. Através das noções de "interdependência cultural" e "assimilação recíproca", alheias a conteúdos universalistas, abre-se caminho para a abordagem do "sujeito" e das produções discursivas latino-americanas como um espaço de intercâmbio e tensão entre valores heterogêneos. Uma história da literatura latino-americana que não se resuma ao arquivo-morto de uma totalidade sem fraturas requer, de saída, que se pense a literatura como perda da memória do continuum da História; que se desvele criticamente, aproveitando a lição benjaminiana, a concepção de que a história como curso unitário é uma representação do passado construída por grupos e classes sociais dominantes, que transmitem do passado só o que é relevante, que se
36 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 siga a direção apontada pela ficção atual de alguns de seus escritores mais significativos, como Ricardo Piglia e Silviano Santiago. Resguardadas as peculiaridades de cada um, tanto para Piglia quanto para Santiago a construção cultural da "nação" é uma forma abrangente de afiliação social e textual, dada pelo cruzamento de verdades e falsificações (propositais ou não) capazes de exceder as margens das convenções literárias e dos lugares-comuns ideológicos. Trabalham ambos com pontos de esquecimento da História oficial, tomada como um enredo policialesco que comprime as divergências "desintegradoras" do ponto de vista superior e excludente que visa a anular ou a unificar todos os outros. Postura semelhante assume teoricamente Homi K. Bhabha em um de seus textos mais recentes, "DissemiNation: time, narrative, and the mar gins of the modern nation" .12 Para Bhabha, escrever hoj e a história das nações demanda o questionamento da metáfora progressiva da moderna coesão social - muitos como um -, deslocando o historicismo das discussões baseadas na equivalência linear e transparente entre eventos e idéias. Contraposta a tal acepção, propõe que se tome a perspectiva de um outro tempo de escrever, capaz de dar conta das formas disjuntivas de representação que significam um povo, uma nação ou uma cultura. Nesse caso, cabe investigar o que chama de "espaço-nação" como uma forma liminar de representação social, internamente marcada pela diferença cultural que assinala o estabelecimento de novas possibilidades de sentido e novas estratégias de significação. É o que ocorre, por exemplo, com a emergência e a afirmação do discurso das minorias - mulheres, negros, homossexuais -, que introduzem processos de negociação por meio dos quais nenhuma autoridade discursiva pode ser estabelecida sem revelar sua própria diferença. Na negociação transcultural e internacional proposta, não se trata de inverter o eixo da discriminação política, instalando o termo excluído no centro. A diferença cultural intervém para transformar o cenário da articulação, reorientando o conhecimento através da perspectiva significante do "outro" que resiste à totalização. Isso porque o ato de identificação não é nunca puro ou holístico, como esclarece Bhabha, mas sempre constituído por um processo de substituição, deslocamento e projeção. Daí a importância delegada às contra-narrativas marginais ou de minorias, na medida em que, ao evocarem a margem ambivalente do espaço-nação, intervêm nas justificativas de progresso, homogeneidade e organização cultural próprias à modernidade. Modernidade esta que racionaliza as tendências autoritárias e normativas no interior das culturas, em nome do interesse nacional e das prerrogativas étnicas.
12. Cf. BHABHA, pp. 291· 322.
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Bhabha assume a postura de tomar a nação como contendo limiares de sentido que devem ser atravessados, rasurados e traduzidos no processo de produção cultural. O descentramento crítico daí resultante contribui enormemente para o avanço conceitual das discussões sobre uma história da literatura latino-americana que, embora pensada em termos comparatistas, não se deixa mais prender pelas oposições categoriais do tipo universal/particular, centro/periferia, nativismo/cosmopolitismo. Melhor, portanto, seguir a trilha fornecida pelo autor quando sugere a elaboração de uma teoria da diferença cultural - ou, no nosso caso específico, uma história da literatura latino-americana - a partir da teoria benjaminiana da tradução. No momento marginal do ato de traduzir, que Benjamin descreve como "estranheza das línguas", torna-se patente que a transferência de sentidos nunca é total entre sistemas diversos, como a indicar que as diferenças sociais são elas próprias reinscritas ou reconstituídas em todo ato de enunciação, que acaba por revelar a instabilidade de toda divisão de sentido num dentro e num fora.
13. Publicada em Poemas (Juiz de Fora: Dias Cardoso, 1930).
O visionário Murilo Mendes, poeta bilingüe auto-exilado na Itália, escreve, muito antes de partir, sua versão da "Canção do exílio",13 substituindo a busca do território invi-sível e elegíaco do nacional pela tradução "cubista" do país - "terra estrangeira" identificada por "macieiras da Califórnia", "gaturamos de Veneza", "filósofos polacos vendendo apresta -ções". Mais do que um mero jogo parodístico, o poema de Murilo instala, pela justaposição de objetos heteróclitos e simulados na linguagem, o circuito da diferença constitutiva da nação. Giuseppe Ungaretti, poeta e tradutor italiano nascido no Egito e exilado voluntariamente no Brasil de 1937 a 1942, percebe bem a situação permanente de exílio do sentido e do sujeito, quando em "Girovago" declara: In nessuna parte di terra mi posso accasare Aogni nuovo clima che incontro
38 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 mi trovo languente che una volta già gli ero stato assuefatto E me ne stacco sempre straniero Os versos curtos, soltos, sem pontuação, sem vínculo aparente entre si, inscrevem-se no branco da página, nela ocupam um espaço reduzido, traçando um roteiro mínimo de sentido. Sentido este que parece não se completar, mas se faz provisório, móvel, errante como o sujeito poético, em constante deambulação. O estranhamento da língua, quase clássica na sua dicção, não fosse o impulso desintegrador que implode graficamente a continuidade frásica, abre brechas e vazios por onde se insinua uma voz estrangeira, desprendida do solo da linguagem - "e me ne stacco sempre/straniero". Atitude desterritorializante, a dimensão de estrangeiro é reforçada quando Ungaretti traduz e a faz sua a "Canção do exílio", de Gonçalves Dias. Na nota marginal que acrescenta à tradução para explicar ao leitor italiano o significado de "sabiá", após especificar a que família o pássaro pertence, diz: "Sono i flautisti deI bosco. Quando migrano si tengono uniti nello stormo con un trillo corale. Passati, si sente il silenzio delle cose. Non si sente piu altro" .14 Que uma nova história da literatura latino-americana saiba como fazer ouvir e falar esse e outros silêncios.
14. UNGARETTI, Giuseppe. Canzone dell'esilio. In: PICo CIONI, Leone. Per conosccrc Ungaretti. Milano: Mondado· ri, 1971, p. 234.
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A CONSTRUÇAO DA LITERATURA COMPARADA NA HISTÓRIA DA LITERATURA
Lúcia Helena
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oje é lugar-comum afirmar-se que a discussão sobre o pós-modernismo exacerbou o questionamento das fronteiras entre os saberes e da posição do "terceiro mundo" sobre as implicações do colonialismo e do neocolonialismo. Em virtude disso e da ênfase que nos últimos sete anos vem sendo dada no Brasil à Literatura Comparada, creio ser propício o mapeamento do lugar deste campo de estudos literários entre nós. Dado fundamental para estimular esta tarefa foi a criação da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada, 1986) e o sucesso obtido por suas gestões em congregar especialistas de variada procedência em torno da questão da Literatura Comparada. A este respeito, o exame dos Anais dos congressos e seminários da entidade indica-nos que está longe de ser pacífico o entendimento do significado e alcance deste campo, já que os trabalhos até agora publicados aglutinam variadíssimo espectro de temas e procedimentos - desde o estudo de autores de uma literatura nacional (em sua maioria portugueses e brasileiros) até textos que investigam o discurso das minorias de raça, gênero e identidade cultural. Descontadas as hesitações de uma área que começa a expandir-se na universidade brasileira, esta variedade vai além da própria abrangência da disciplina e das idiossincrasias de pesquisadores individuais. Ela está a indicar a inserção dos especialistas no lugar de leitores voltados a relações históricas internacionais.
40 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nU 2 Mas este deslisamento dos limites e do alcance da Literatura Comparada não é um sintoma apenas do quadro nacional. Os editores do volume The comparative perspec,tive on literature:,Approaches to theory and practice (1988) dão mostras de que também fora daqui a disciplina apresenta problemas de transparência: If Compara tive Literature is to be more than' a name on the door of an office where someone signs enrollment forms, the curriculum will have to have something in it that all such students can study together, and that something has been theory. Students in Comparative Literature have, moreover, had to become conversant with more than just whichever single criticaI school dominates the study of a single national literature at a given moment (for example, structuralism in French studies, reception theory in German); they have to learn to participate in an international community of theoretical exchange. (Comparative ... , 10. Grifo dos editores)
Tendo surgido no século XIX e sob o crivo das contingências de sua época, a Literatura Comparada desbravou seu espaço num campo de estudos historicamente voltado a investigar "a migração de um elemento literário de um campo literário a outro, atravessando as fronteiras nacionais." (Carvalhal, 1991,9). Deste modo, a Literatura Comparada nascia do esforço de articular as modalidades do nacional e do internacional através de estudos de literaturas de línguas e culturas diversas, fazendo com que nacionalidades migrassem em direção a uma visão "do todo". Na busca de cumprir este programa de ação, a disciplina se assessorava obviamente dos quadros teóricos então disponíveis, comprometendo-se com a crítica de proveniência historicista e com o positivismo. A crítica aos problemas provenientes desta trajetória já foi insistentemente feita por outros estudiosos, e nesta etapa de minha argumentação, interessa-me apenas recolher algumas "pistas" desse percurso, sublinhando que os conceitos de nacional, internacional, origem, influência e evolução acompanham a escalada da Literatura Comparada, do século XIX em diante. A título de exemplo não é ocioso lembrar que a recente denominação (1988) de Literatura Comparada dada aos cursos do Departamento de Ciência da Literatura, da Faculdade de Letras da Universidade do Rio de Janeiro, veio a substituir uma anterior denominação de "Evolução da Literatura", vigente desde a criação da disciplina até a referida data. A troca de denominação visava, muito mais do que uma substituição de rótulos, a indicar uma alteração de
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perspectivas teóricas. Todavia, se estes eram cursos em que se iniciavam os aJunos (no nível c!a graduação) na produção literária dos grandes mestres do passado e do presente, utilizando-se de uma periodização estilística e de estudos monográficos de autores progressivamente dispostos no tempo, na maioria dos casos ainda se conserva o mesmo procedimento. Como um dos temas básicos estudados em sua migração, e inspirando-se na obra Mimesis de Auerbach, um dos eixos desses cursos consiste no estudo das transformações do conceito de realismo ao longo da literatura ocidental, e no estudo de estilos de época, com ampla valorização da Idade Média em diante, oferecendo-se realce a um acervo de literatura ocidental. Ou seja, mesmo hoje, a orientação historicista· e eurocêntrica está presente, com seus poderosos tentáculos. Com esta breve digressão, o que se quer sublinhar aqui é que não só o conceito de Literatura Comparada e os cursos daí decorrentes nascem comprometidos com o conceito de evolução da literatura, como também têm sua opção fundamentallastreada pelo conceito de literatura ocidental. E, ainda que tenha sido mais do que louvável a criação dos cursos de "Evolução da Literatura" e a escolha da obra de Auerbach como forma de se promover a ênfase dos cursos mencionados na relação entre culturas, cumpre sublinhar que esta relação se dava e se dá com predomínio de um elenco de textos selecionados dentro de um acervo específico - o da literatura européia ocidentalque pode estar privilegiando, nesta hegemonia, relações interculturais de dependência e dominação. Suspendamos um pouco a reflexão deste tópico. Creio que tenho já alguns elementos para lançar uma questão na "ponta da língua", que é a que me interessa desenvolver neste artigo - a da "tecnologia do poder" que se insere na determinação de "quem diz o que, para quem, sobre que objeto, e em quantas línguas" - que a meu ver tem perpassado a Literatura Comparada e suas práticas anteriores e hodiernas. Há um consenso, que se não é amplamente verbalizado entre nós, está implícito, de que o professor de Literatura Comparada deve "dominar" várias línguas, num mínimo de três, requisito semelhante ao que é feito por exemplo nos cursos do gênero (no nível de pós-graduação) na Europa e nos Estados Unidos. Quanto a isto, e sem viés colonizado, talvez fosse oportuno verificar o que registra um texto estrangeiro sobre o assunto: Former1y, the distinguishing mark of the student of Comparative Literature had been a knowledge of several foreign
42 - Rev. Brasil. Li!. Comparada, nº 2 languages and the history of more than one nationalliterary tradition. While this aspect of the Comparatist's training has not been eliminated or even disminished in most Comparative Literature programs, it no longer seems to hold the center, which is now conspicously occupied by theory. More and more programs offer the alternative of a specialization in literary theory itself, although the number of students actually completing degrees with such a specialization does not appear to have grown dramatically. But while few declare themselves to be specialists in theory, all have more and more exposure to it. (Comparative ... , 10-11. Grifo meu) Se, nos Estados Unidos e em muitos casos também na Europa, o cerne da Literatura Comparada é a penetração cada vez maior da Teoria Literária como marca distintiva fundamental, entre nós há ainda um consenso baseado no centramento do treinamento lingüístico e, num certo nível, um exagero no conceito do que seja o domínio do uso das línguas instrumentais que, no nível do manuseio textual, deveria consistir numa compreensão excelente de leitura, sem que se necessitasse de uma habilidade de falante no mesmo nível, podendo ser esta adquirida pelo estudioso durante a própria prática da carreira, trazida pelas desejáveis oportunidades de intercâmbio internacional. E, se o domínio de línguas instrumentais é uma necessidade do próprio campo, sua ênfase quase que exclusiva denota, por um lado, o desconhecimento da mudança do próprio perfil internacional da disciplina e, por outro, a existência de um paradoxo a examinar: enfatiza-se como fundamental algo de que não se dispõe. Não se descartem também aqui estratégias de um jogo de poder tipicamente universitário. Para verificá-lo, basta considerar, ao longo do Brasil, o perfil dos estudantes inscritos nos cursos de graduação e, até, de pós-graduação, para não se falar nas dificuldades dos próprios professores. Não se dispõe, em quantidade expressiva, de alunos e de professores bem treinados em Teoria Literária e que dominem, ao mesmo tempo, várias línguas, se tomarmos por "domínio" de uma língua estrangeira algo que vá além de uma razoável e muito boa compreensão de leitura. (E, nos casos em que isto acontece, nada garante que este treinamento em teoria seja suficiente para que se possa dizer que o professorado e o alunado tenham desenvolvido suficiente reflexão sistemática). E isto ocorre por várias razões sociais, que vão desde a miséria nacional, à precariedade do ensino de línguas no país, no segundo e mesmo no terceiro graus, até a quase total alienação da cultura
A Construção da Literatura I. Cf. as discussões de Antonio Candido sobre o caráter auditivo da prática da literatura entre nós (em' 'O escritor e o público", Literatura cso· ciedade) e as de Luís Costa Lima (em "Dependência cultural e estudos literários", Pensando nos trópicos).
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brasileira à reflexão,' e o quase total isolamento cultural de grande parte das universidades, cujo público-alvo não tem acesso a bibliotecas bem equipadas nem a livrarias que disponham de atualizado material de circulação internacional. Assim, a divulgação do acervo intelectual exigido para este tipo de formação fica quase que totalmente a cargo de pesquisadores que disponham de possibilidades de bolsas de estudo no estrangeiro, o que também irá esbarrar em problemas institucionais de verbas públicas destinadas à pesquisa no campo das letras, em sua maioria escassas. E, neste impasse, ou não se expande este estudo em regiões e universidades em que isto não seja possível, ou se trabalha com as realidades locais, como parece estar sendo a opção, fornecendo até alguns cursos com um nível de precariedade consciente, procurando implementar a melhoria destas condições. Mas aí me inquieta uma questão: pergunto-me se por "domínio" da língua entende-se apenas o que parece - ou seja, um necessário à vontade do pesquisador com o material literário que irá examinar - ou se se supervaloriza este domínio da língua estrangeira e se esquece de que muitas vezes este profissional que "domina" a língua estrangeira não dispõe, por outro lado, de suficiente formação teórica que o instrumentalize a viabilizar o seu potencial lingüístico em direções mais amplas_ Ou seja, pergunto-me o quanto de modelização colonizadora existe entre nós na imposição desta condição - a do domínio de certas línguas estrangeiras sobre outras (até mesmo porque no rol destas línguas está sempre o mesmo sabor ocidentalizado e europeu ou o complexo colonizado que o repete) de prestigiar o francês, o inglês e o alemão. Sobre isto é esclarecedora a observação de Wlad Godzich, em "Emergent literature and the field of comparative literature": To comparatists. the problem of field presents itself as challenge to the historical construction of the discipline. It was constituted to compensate for the orientation of literary studies along national lines, but, we must acknowlodge, from the outset we have priviledged certain literatures, notably the German, French, and English. We have granted very limited status to such others as the Italian, Russian, ar Spanish, and except in the newly developing are a of East-West studies, we have remained firmly Eurocentric, even when dealing with texts from the Americas. ("Emergent...", 22) Nas raras vezes em que tenho visto ser debatido o problema, pouco se destaca o fato de que o saber dos que "dominam" as várias
44 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 línguas deveria ser também questionado do ponto de vista da validade da reflexão de que são capazes e não apenas do seu conhecimento técnico-lingüístico. Porque se isto for consenso, então se estaria preparando entre nós, como entendimento do que seja a Literatura Comparada, o de que esta seria uma área de reunião de professores de literaturas estrangeiras (mas que são, todavia, literaturas nacionais) estivessem estes, ou não, aparelhados teórica e reflexivamente, do mesmo modo que supostamente estariam do ponto de vista técnico-lingüístico. E isto porque, a bem da verdade, deve-se ressaltar que o privilégio da inadequação ao pensar não se detém apenas nas mãos de quem conhece o vernáculo e nada mais. Interconectando-se a esta indagação ocorrem outras, destacando-se pelo menos mais duas. Primeiro, a questão de como tem sido vista entre nós a relação entre a Literatura Comparada e a Teoria da Literatura. Segundo, a da pertinência ou não de estudos comparativos que relacionem as literaturas de expressão em língua portuguesa. Quanto à primeira questão, como já vimos em momento precedente, os estudos contemporâneos sobre o tema têm ressaltado uma virada na compreensão de que a primazia do interesse da Literatura Comparada em nossos dias se volta para a teoria. Ou seja, os estudiosos comparatistas estão cada vez mais conscientes de que o avanço metodológico no campo se dará mais favoravelmente na medida em que se trave um diálogo interdisciplinar, principalmente com a teoria literária. Interessante notar que um dos temas que mais têm sido discutidos em Literatura Comparada entre nós brasileiros tenha sido, exatamente, o da "intertextualidade". Isto me leva a considerar que a Literatura Comparada vive hoje uma situação paradoxal, a de simultaneamente dobrar-se sobre si mesma, para reinvestigar e questionar seus fundamentos, e a de necessitar promover um salutar mergulho na alteridade de disciplinas que suplementem e complementem seus próprios impasses oriundos do historicismo e do evolucionismo positivista de que por tanto tempo se nutriu e ainda se nutre. Mas gostaria de voltar um pouco atrás, e retomar a segunda questão que deixei em suspenso. Refiro-me a um certo veto implícito aos estudos comparativos entre literatura portuguesa e brasileira que tenho captado aqui e ali. Estes estudos seriam considerados impróprios porque versariam sobre literaturas de uma mesma língua e mesma origem cultural. Creio que tal veto indica um conhecimento superficial das diversidades interculturais entre Brasil e Portugal, principalmente no estágio atual de desenvolvimento e relacionamento dos dois países e de suas alianças internacionais. Em primeiro lugar, este veto estaria
A Construção da Literatura -
2. Cf. meu estudo a este respeito" A narrativa de Maria Gabriela Llansol", em LusoBrazilian review. 28.2: 37-48 (1991), Winter.
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supondo que estas culturas são uniformes, inteiriças, sem fragmentações e brechas constitutivas, não só em si mesmas, mas entre elas, como também estaria a sustentar-se pelo endosso do evolucionismo que concebe uma literatura como origem da outra. Em segundo lugar, a pertinência desta comparação não avulta apenas no estágio atual das duas literaturas, mas se adequa também aos séculos anteriores, a exemplo dos séculos XVII e XVIII, conforme estudo magnífico de Antonio Candido em "Literatura de dois gumes". Se se observa, por exemplo, dentro da própria literatura portuguesa, dois projetos literários e culturais, como o de Saramago e Maria Gabriela LlansoI,2 já daí teríamos um interessante estudo de como, numa mesma cultura, numa mesma língua, e diante de um mesmo tema - o das relações entre ficção, mito e história - dois escritores desenham uma diversa e interessantíssima cartografia do desejo cultural, ou seja, das conspirações de uma cultura diante de seu passado, e de suas injunções e opções em face do futuro. A questão se enriquece de mais nuances, se pensarmos em reunir a esta dupla uma outra, como João Ubaldo Ribeiro e Sérgio Sant' Anna que, do ponto de vista brasileiro, ofereceriam trilhas diversas de questionamento entre si e permitiriam uma estimulante discussão sobre os impasses brasileiro e português em relação ao que se poderia chamar uma psicanálise dos mitos das duas culturas, que estes autores investigam com perícia, riqueza e rigor. E este me parece ser um estudo cabível no campo de estudos da litefatura comparada. Estudos recentes, no campo da teoria literária e especificamente do feminismo, têm sido fundamentais para colaborarem no alargamento proveitoso do que se pode entender como tema e metodologias válidas no campo da comparatística. Tais estudos têm ressaltado, contra o obstáculo etnocêntrico do eurocentrismo, as questões da discussão sobre as minorias étnicas, as de gênero e as sexuais, guetos a que foram relegados, e em que foram reprimidos problemas culturais fundamentais que hoje se analisam a partir de uma crítica da tecnologia do gênero, da sexualidade e do poder, campos discursivos apenas abertos à teoria e história da literatura, na segunda metade deste século. E, através desta abertura de novos campos, a Literatura Comparada hoje seems to be less a set of practices (e.g., comparing texts in different languages, comparing literary and "nonliterary" texts, comparing literature and the other arts) and more a shared perspective that sees literary activity as involved in a complex web of cultural relations. (Comparative ... , 11)
46 - Rev. Brasil. Li!. Comparada, nº 2 Neste proveitoso momento de expansão da Literatura Comparada entre nós, creio ser fundamental que o estudioso brasileiro - em que pese sua consciência da necessidade de envolver-se na "teia complexa das relações culturais" (de que a produção do conhecimento, no panorama internacional é um dos condimentos indispensáveis) - tenha um comportamento diverso daquele já criticado oportunamente por Roberto Schwarz em "Nacional por subtração", e procure situar-se diante da representação do literário com o arguto olhar de quem não se comporta como o "subalterno", importando modas e perspectivas. Mas como aquele que - tendo sido marginalizado pelo eurocentrismo e pelo etnocentrismo e suas estratégias de colonização e de neocolonialismo - procure fazer da Literatura Comparada uma disciplina que se alie à tarefa de repensar o lugar (ou o entre-Iugar?3) de nossa sociedade e cultura, no panorama contemporâneo internacional.
3. Cf. o estudo de Silviano Santiago, "O entre-lugar do discurso latino-americano", em Uma literatura nos trópi-
cos.
TRABALHOS CITADOS CANDIDO, Antonio. "Literatura de dois gumes". A Educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987, pp. 163-180. C,ARVALHAL, Tânia. "Literatura comparada: A estratégia interdisciplinar". Revista de literatura comparada, 1: 9-21 (1991). ABRALIC. GODZICH, Wlad. "Emergent Iiterature and the field of comparative Iiterature". The comparative perspective on literature. Approaches to theory and practice. Clayton Koelb & Susan Noakes (eds.), Ithaca e Londres: ComeU Univ. Press, 1988, pp. 18-36. KOELB, C. & NOAKES, S. "Introduction: Compara tive perspectives". The comparative perspective on literature. Approaches to theory and practice. Ithaca e Londres: ComeU Univ. Press,1988, pp. 3-17. SANTIAGO, Silviano. "O entre-lugar do discurso latino-americano". Uma literatura nos trópicos. Ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva, 1978, pp. 11-28. SCHWARZ, Roberto. "Nacional por subtracão". Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 29-48.
AS VANGUARDAS PORTUGUESAS DO SÉCULO XX: UMA VISÃO NEOBARROCA
E.M. de Melo e Castro
P
ara os pós-modernistas a questão das vanguardas é uma questão acabada, no ponto de vista não-histórico em que supostamente o pós-modernismo se coloca. Para os teóricos norte-americanos é muito fácil dizer simplistamente que o modernismo acabou com a primeira grande guerra (1914-1918) e que as vanguardas européias (que os Estados Unidos tanto importaram) eram a última conseqüência possível do historicismo e do mito do progresso do século XIX. Tal concepção é, no entanto, ainda fortemente historicista, já que pretende dar uma data e um fato como índices do fim dos tempos históricos, enquanto por outro lado, deprecia a idéia de progresso e de inovação, conseqüências somente negativas desse mesmo historicismo, como se fosse possível considerar estaticamente os valores do fluxo temporal da transformação da percepção do mundo. Dirão os pós-modernos que, com o fim da idéia de progresso, o referente do presente só pode ser o passado, o que não me parece ser uma conclusão brilhante e eficaz, para opor ao desejo de projeção no futuro, típica do modernismo, ou, como dizia o poeta português José Gomes Ferreira, à premente saudade do futuro. É que, se o progresso e a inovação precisam de ser submetidas a uma rigorosa crítica, neste fim de século, pelas conseqüências negativas que o seu abuso e valorização dogmática nos trouxe, não é também a sua negação ou hipostesia pós-moderna que resolverá os nossos problemas de sobrevivência global.
48 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 Trata-se muito mais de criar as condições para a crítica e o controle desses conceitos, do que suspender-lhes idealisticamente a sua teorização e os seus efeitos. Mas a questão pode ser colocada doutro modo. Em vez de seqüências históricas ou de diacronias, trata-se de mudança de paradigma. Estaria, portanto, em causa, o fim do paradigma moderno que desde o século XVII domina a arte e a cultura européias, para dar lugar ao paradigma pós-moderno que começa a manifestar-se no decorrer do século XX. As vanguardas seriam assim não o perspectivar do futuro, mas o reflexo do passado: as conseqüências históricas do fim do paradigma moderno. Tal colocação levanta imediatamente a questão da definição dos paradigmas, moderno e pós-moderno, para podermos começar a entender de que estamos a falar. Segundo o norte-americano David Roberts "o paradigma moderno funda-se no sujeito; os seus valores são a expressão, a criatividade, a subjetividade, a originalidade; a sua forma é a forma interior do desenrolar do tempo: a autodiferenciação da identidade, através da dialética do sujeito e do objeto, da liberdade e da necessidade, da forma e do conteúdo." Se esta caracterização do paradigma moderno nos parece clara e certeira, embora algo incompleta, já as tentativas do mesmo autor e de outros autores, para caracterizar o paradigma pós-moderno, não têm o mesmo rigor, ainda que fortemente apoiados em Walter Benjamin, André Malraux, Habermas e até Lukács. E pode mesmo pôr-se em causa a possibilidade da existência dum paradigma pós-moderno, dado que o termo não significa o mesmo para norte-americanos, para o francês Lyotard ou para os arquitetos anti-funcionais e anti-racionalistas italianos, tal como observa Omar Calabrese. Mas as ligações entre estas três concepções, sendo tênues, não significam nada de preciso em termos ideológicos e muito menos podem constituir a base para que se possa falar em paradigma pós-moderno. Tanto mais que o próprio Lyotard em "O pós-modernismo explicado às crianças" nos vem dizer que o prefixo "pós" não indica seqüência temporal, tratando-se dum critério analítico dos fenômenos culturais, desde os anos 60, nas sociedades avançadas tecnologicamente, o que não comporta uma crítica nem do Modernismo nem do trabalho realizado pelas Vanguardas do século XX. Este trabalho realizou-se precisamente na dilucidação de várias questões tais como: A questão do tempo, subjetivo e objetivo; a questão da história
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e do historicismo; a questão do futuro, do presente e do passado; a questão do novo e do velho; a questão da liberdade, da opressão e do poder; a questão da norma e a transgressão; a questão da unidade e da fragmentação; a questão da percepção e sua multiplicidade sinestésica. Questões que são estruturais e fulcrais para as vanguardas e não podem ser demitidas pela concepção caleidoscópica e todos os estilos e de todas as obras de arte do passado, numa simultaneidade presente, (mesmo que apoiadas no uso de tecnologias avançadas de pesquisa e reprodução de obras de arte) nem tampouco di! uídas numa sobrevalorização da subjetividade ou das relações intersubjetivas prováveis entre os homens no tempo presente, que é o nosso. Tempo em que a problemática das relações de diferença e de identidade se esvaziam ou enchem de si próprias e em si próprias, num mundo talvez possível ou impossível, mas por isso mesmo, indiferente e desligado das relações históricas como componentes genésicos e transformadores. O pós-modernismo coloca-se assim, estático, num nível abstrato de relações entre o ser, o sistema de referência e a consciência do ser, não contendo nem entradas nem saídas, além das metáforas de si próprio. Quanto às Vanguardas, elas dispensam a teorização pós-moderna, porque desajustada aos fatos culturais e vivenciais da cultura européia de que somos protagonistas: sujeitos e objetos, uma vez que tais fatos culturais e políticos se traduzem na passagem da pseudodialética forma/conteúdo, típica do realismo totalitário, para uma concepção probabilítica combinatória, em que o significado é contingente e aberto, e a invenção é livre. Vanguardas estas que, tendo dois momentos de ação bem caracterizados e diferenciados, na segunda década do século XX e na década de 1960, se projetaram à escala global, modelando criticamente a percepção do mundo cibernético e informacional em que hoje vivemos. Não interessa aqui a descrição cronológica dos movimentos dessas primeiras e segundas vanguardas, porque esse trabalho está feito e publicado. Parece-me, por isso, mais interessante, considerar os diversos significados das vanguardas, no mundo do fim do século que é o nosso. Isto, com o objetivo de dizer que nós, na Península Ibérica, no Mediterrâneo, na América Latina e Brasil, para fundamentar a práxis cultural e inventiva, possuímos uma forte componente de entendimento problemático e aberto das relações de produção e comunicação, que são as nossas vanguardas. Movimentos artísticos e culturais que se inscrevem numa outra prática-teórica, mais ampla e universal que é o BARROCO - que o italiano Omar Calabrese tão rigorosa-
50 - Rev. Brasil. Lil. Comparada, nU 2 mente caracterizou como NEOBARROCO; conceito englobante da situação cultural no fim deste nosso século xx. Agora poderíamos falar, isso sim, em paradigma neobarroco e, para iniciar esse trabalhó, teremos que recorrer a duas ordens de caracterização: das vanguardas de 60 e das vanguardas do início do século. E é isso precisamente que me proponho muito sinteticamente assinalar aqui, tomando como referências as vanguardas portuguesas de 1915 - Orpheu, Futurismo e Sensacionismo, no início do século, e "Poesia Experimental" dos anos 60, com suas extensões na poesia visual e vídeo-informatizada dos anos 80. Entre parênteses ficam, por agora, outros movimentos de vanguarda entre 1915 e 1960. No entanto são necessárias duas prevenções: Primeiro: falar das vanguardas dum país não limita o seu significado a esse país e à língua desse país, uma vez que todas as vanguardas são transnacionais e translingüísticas. Segundo: as vanguardas sendo sempre grupos pequenos e com uma implantação minoritária, agem subliminarmente nas sociedades, não necessitando do seu reconhecimento geral nem do seu aplauso, visto que não produzem objetos de consumo imediato. São antes mediadores prospectivos que se imiscuem subrepticiamente nos canais de comunicação e os subvertem ou transformam. Mas afinal o que é ou, o que são as vanguardas? A resposta não pode ser uma só, visto que a sua função nas sociedades é múltipla e dinâmica. No entanto julgo que três parâmetros é possível encontrar em todas as vanguardas: o novo, a liberdade e a marginalidade. O novo contrapondo-se ao velho, ao fóssil, ao já conhecido e manifestando-se pela pesquisa e experimentação dos meios e suportes da invenção e da comunicação. Aliberdade opondo-se à opressão, à repressão e ao poder, é a substância mesma da intervenção inventiva. A marginalização, essa, é o preço da liberdade. Como os diversos grupos de vanguarda valorizaram ou entenderam estes três parâmetros, é, não só caracterizá-los, como relacioná-los interativamente. O primeiro surto de Poesia Moderna em Portugal com características de vanguarda centrou-se na publicação dos dois números da revista Orpheu. Mas Orpheu não era esteticamente homogênea nem foi a única prática de vanguarda desses anos, aliás em sintonia cronológica com outros movimentos das primeiras vanguardas européias: Futurismo (1911); Imagismo (1911); Dadaísmo (1914); UltraÍsmo (1918) e Semanda de 22 em São Paulo. É por isso muito natural esse plurarismo estético nas páginas de Orpheu, pois que às manifestas importações, principalmente Futuristas, se juntavam as coordenadas da nossa própria Poesia, nas
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quais já se detectavam anteriormente alguns sinais de estremecimentos de renovação, embora envoltos em névoas pós-simbolistas. Orpheu deve, pois, considerar-se como uma prática de ruptura de vanguarda, mas também como uma plataforma de encontro entre o passado e o futuro, já que entre os seus organizadores e participantes as posições estéticas pós-simbolistas coexistiam com a preocupação da busca de novas formas de praticar a poesia, de a comunicar e de a fazer atuante na cultura do tempo, nosso e europeu. Preocupações que se manifestam na formulação de várias Teorias Poéticas ou Escolas, das quais a primeira foi o "Paulismo", cujo nome, como é sabido, derivou da primeira palavra de um poema de Fernando Pessoa, Pauis, cujo título genérico era "Impressões do Crepúsculo", e foi publicado emA Renascença (1913). A teorização do "Paulismo" é também de Fernando Pessoa, que desde o início é o motor da primeira vanguarda portuguesa. Quanto ao Futurismo, ele aparece em Portugal como um escândalo. Escândalo sociológico que, como tal, for programado por quem o assumiu e praticou, e como tal foi entendido por quem a ele assistiu ou dele teve conhecimento. Os jornais foram em grande parte o meio de materialização das consciências escandalizadas que assim participavam ativamente no programa Futurista, na sua expansão e consolidação, como movimento de vanguarda. Mas, se as notícias nos jornais não foram muitas, elas usaram um tom tal, apelidando de "loucos" os jovens futuristas (Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor) com uma tão grande veemência, que o público fixou a mensagem do escândalo. Era isso mesmo que os Futuristas portugueses desejavam, de acordo com uma técnica de dar bofetadas no público que já fora usada por Maiakovski num famoso poema! De resto os textos futuristas portugueses - de Almada Negreiros, de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) principalmente, e até os de Mário de Sá-Carneiro (estes em muito menor grau) distinguemse por uma enorme quantidade de frases exclamativas, de invectivas e de insultos, com o intuito de desmistificar, demolir, acabar com os hábitos culturais esclerosados e retrógrados; "criar a pátria portuguesa do século XX!" (Almada). Propósito que revela muito mais a rejeição do obsoletismo da vida portuguesa do momento, do que um programa político nacionalista. Assim os textos futuristas apresentam uma características comum: a exaltação, que se manifesta graficamente de três maneiras: pelo uso exagerado dos pontos de exclamação, pelo uso de maiúsculas e pela própria composição gráfica com vários tipos e tamanhos, sem atingir no entanto a mesma libertação e força dos grafismos de
52 - Rev. Brasil. Lil. Comparada, nº 2 Marinetti. No entanto, pode falar-se, em alguns fragmentos de "Manucure" de Mário de Sá-Carneiro, de Poemas Visuais, que seriam os primeiros da poesia portuguesa do século XX. Quanto ao uso da pontuação, refira-se apenas que, em "A cena do Ódio", de Almada, nos primeiros cinqüenta versos, se contam vinte e três pontos de exclamação; no "Manifesto anti-Dantas", nas primeiras cinqüenta linhas, se contam trinta e um pontos de exclamação; no poema "Manucure" há um grafismo composto só por quatro pontos de exclamação (por baixo de uma equação com nomes futuristas); nos últimos quarenta e cinco versos de "Ode triunfal" de Fernando Pessoa se contam trinta e seis interjeições exclamativas; no fragmento final de "Manifesto", de Almada, composto por cinqüenta e uma linhas, se contam vinte e oito pontos de exclamação, sendo a última palavra, destacada numa linha só, em caixa alta: "ATENÇÃO!" Todo este tom altissonante, de que se fez uma amostragem, faz parte da prática futurista e é uma novidade na poesia portuguesa, quer pelo uso substantivo da pontuação, (que aliás se encontra também em Ângelo de Lima no que diz respeito ao uso inesperado, mas textualmente coerente, das maiúsculas) que como intenção, ao mesmo tempo demolidora e construtiva, no nível conceitual de um futuro que de fato se não vê, e de que se não consegue sequer vislumbrar um modelo plausível. O futurista é, em Portugal, um futuro-desejo, mais que um futuro-modelo de desenvolvimento. Essa incapacidade dos futuristas portugueses (que é também uma incapacidade do momento conjuntural português da Primeira República), lança os jovens poetas nos braços do mito - do mito da Pátria e do mito da raça, de que o "Ultimatum" futurista às gerações portuguesas do século XX de Almada Negreiros é um bom exemplo, não se podendo, mais do que superficialmente (e equivocamente) estabelecer relações entre aquela teorização caótica e vociferante, e o fascismo português. Este viria a nascer alguns anos mais tarde e faria desesperadas tentativas para se apropriar, como precursores, de textos como "Ultimatum" de Almada. Mas, de fato, o substrato teórico do Manifesto e do fascismo português não é o mesmo, caracterizando-se o "Ultimatum", por um incontido e adolescente desejo de progresso, de Europa, e de identidade do homem e do poeta consigo próprio. Ora o progresso, a identificação do homem consigo próprio, e a livre comunicação européia da cultura, sabemos hoje, por experiência prática e teórica, não terem sido características do nosso fascismo, que foi marcada e orgulhosamente isolacionista, anti-progressista e opressor das liberdades individuais. Os mitos da Pátria e da raça são, no Almada jovem
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(22 anos) "Futurista e tudo", a procura de uma identidade coletiva a partir da qual se pudesse finalmente, COMEÇAR. Mas, para além do pendor iconoclasta, Fernando Pessoa virá a acrescentar uma dimensão interiorista e mental ao Futurismo Português, que o distinguirá definitivamente do Futurismo Italiano, marcando-o com a marca pessoana. Basta comparar os seguintes textos: "Um automóvel de corrida ... é mais belo que a vitória de Samotrácia." MARINETII
"Um binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo." ÁLVARO DE CAMPOS
12 Um automóvel e o binômio de Newton não são comparáveis; um é uma máquina, ou objeto; o outro é uma equação - uma expressão de cálculo algébrico, conceptual. Mas ambos exprimem, no entanto, uma realidade quantificável: o automóvel, de tipo pragmático; a equação, de tipo especulativo e intelectual; um, uma realidade exterior-objeto, outro, uma conceptu ação desmaterializada e abstrata. Ora é essa conceptualização, desmaterializada e abstrata, que é nitidamente pessoanas. 22 O automóvel é MAIS belo; O Binômio é TÃO belo; Em ambos o padrão de beleza é clássico, grego: Vitória de Samotrácia e Vênus de Milo. Daqui se poderá concluir que o Futurismo, exaltando a quantificação e o dinamismo, não consegue colocar-se totalmente fora dos padrões qualitativos, que são estáticos. Há, pois, um substrato de contradição que é comum a todos os Futuristas - direi mesmo a todas as vanguardas - e que pode ser resumido como sendo a contradição entre o que se deseja fazer e os meios de que se dispõe, ou seja entre o programa e o código (neste caso o código da poesia e da cultura européia). Tal substrato contraditório irá surgir sob várias formas em todas as manifestações de vanguarda, até assumir a função de um traço característico. Mas a prática demolidora do Futurismo coloca dialeticamente um outro problema que com este se relaciona: é o da assunção de uma tradição que se apresenta como uma continuidade histórica que urge interromper, para que o NOVO surja. Esse problema é central a toda
54 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, n~ 2 a atividade de vanguarda. Assim, é nas primeiras vanguardas deste século que rebenta a tensão contraditória: tradição/novidade; continuidade/fragmentação; passado/futuro; estático/dinâmico; qualitativo/quantitativo; eterno/efêmero - tensão que nos anos 60 assumirá a forma Estabelecimento/Marginalismo e que é de certo modo também uma forma de luta de classes, visto que o estabelecimento se reveste do poder e da cultura (ou de in-cultura) e o marginalismo do contrapoder e da contra-cultura (cultura nova). O Futurismo foi certamente, entre nós, a primeira manifestação de uma cultura marginal e de contra-cultura e por isso mesmo classificado de "louco" pelo bempensante jornalismo português da época. Note-se ainda que todas as vanguardas das primeiras décadas deste século se preocuparam profundamente com o começar ou recomeçar da cultura e da civilização até, para o que muito contribuiu o sabor apocalíptico da guerra 1914-1918, confirmado que a "bela época" do fim do século XIX terminara - e consigo uma cultura agonizava. Mas a verdadeira contribuição original das vanguardas de 1915 veio de Fernando Pessoa com o "Sensacionismo", teorização que se propôs como totalizadora da Poesia Moderna Portuguesa. Diz Fernando Pessoa: Nada existe, não existe a realidade, apenas sensação. As idéias são sensações, mas de coisas não situadas no espaço e, por vezes, nem mesmo situadas no tempo. A lógica, o lugar das idéias, é outra espécie de espaço. Os sonhos são sensações com duas dimensões apenas. As idéias são sensações com uma só dimensão. Uma linha é uma idéia. Cada sensação (de uma coisa sólida) é um corpo sólido delimitado por planos, que são imagens interiores (da natureza de sonhos - com duas dimensões), elas próprias delimitadas por linhas (que são idéias, de uma só dimensão). O sensacionismo, cônscio desta realidade autêntica, pretende realizar na arte a decomposição da realidade nos seus elementos geométricos psíquicos. A finalidade da arte é simplesmente aumentar a auto-consciência humana. Tal Teorização Pessoana foi sub liminarmente repercutida na publicação antológica Poesia Experimental que apareceu em 1964, três anos após o início da guerra colonial, mas quando era passado já o choque de surpresa que o seu início provocou no País e quando se revelava já o seu absurdo, mesmo perante a generalidade da população menos politizada. Viviam-se então anos tensamente contraditórios. Por um lado
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chegaram da Europa e do mundo ondas de abertura, de inovação, de protesto, em suma, de reformulação política, cultural e social, com todos os ingredientes que hoje definem para nós a década de 60 e que culminaram em Paris no Maio de 68. Por outro lado, internamente éramos dilacerados por um clima opressivo de sacrifício inútil e injusto, tanto para nós próprios como para as vítimas da política de Sal azar em África. É, pois, numa sociedade traumatizada e eivada de contradições internas e externas que a Poesia Experimental aparece, propondo ainda mais o reforço dessas contradições e desses traumas através da desconstrução do discurso que suportava ideologicamente essa sociedade. Um dos objetivos claramente expressos no catálogo da exposição "Visopoemas" (Lisboa, janeiro de 1965) era essa mesma desconstrução através de uma conceituação que, pela sua novidade e caráter imediatamente prático, causaram um escândalo que apenas serviu para confirmar a sua adequação e necessidade: "Se a vanguarda é necessária na desmistificação das estratificações sociológicas anquilosadas (quaisquer que elas sejam) a poesia experimental é já a maturidade do CAOS como rigor da invenção - vide princípio da entropia: medida da desorganização de um sistema; o grau de entropia do universo está em constante aumento. O trabalho criador do artista experimental é praticamente criar estruturas atomizadas de grande entropia, pois quanto maior for a entropia dessas estruturas maior será e mais vasta será a informação possível - baseada no cálculo das probabilidades. O usuário do poema que se aperceba das informações de que for capaz. Por isso e para isso aqui se experimentam os objetos e as pessoas em atos vulgares muito simples deliberadamente fora do seu contexto organizado quotidiano - redescobrindo o caos com as nossas mãos - experimentando." Não admira que a poesia experimental tenha sofrido incompreensões e desfigurações de toda ordem já que, como poesia, ela propunha valores e recursos que não eram exclusivamete literários (Poesia visual e objetual) mas que eram especificamente poéticos; como ideologia ela se reclamava principalmente da liberdade como fator indispensável de ação social desmitificadora, liberdade exercida principalmente através do trabalho sobre a linguagem e sobre uma prática que se traduzia na desconstrução não só do discurso oficial vigente mas também dos discursos literários ou paraliterários da oposição política ao regime. Por outro lado, a programática inovação de que era portadora, ia desde o tipo de intervenção cultural através de happenings, ações dadaístas e provocações lúdicas, até ao desmantelar das leis do próprio discurso poético exclusivamente baseado no signo verbal.
56 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nU 2 É assim que quase toda a Poesia Experimental portuguesa produzida a partir do início da década de 60 se pode inscrever dentro de uma denominação geral de "poesia espacial", uma vez que as suas coordenadas visuais são dominantes. De fato, foi e é no campo das experiências visuais e espaciais do texto considerado como matéria substantiva que a pesquisa morfológica, fonética, sintática e sígnica se projetou e projeta. Com a Poesia Experimental pode dizer-se que se propunha pela primeira vez em Portugal uma posição ética ao mesmo tempo de recusa e de pesquisa, em que o primeiro princípio era o de que essa pesquisa é em si própria um meio de destruição do obsoleto, uma desmistificação da mentira, uma abertura metodológica para a produção criativa. O segundo princípio seria o de que essa produção criativa se projeta no futuro. O texto como gerador de probabilidades é um outro conceito global que é posto emjogo de uma forma objetiva, probabilidades de ação e de significação que só no texto e pelo texto se podem realizar, o que transforma esse texto, substantivamente, num programa. O texto programa. O texto lugar de transformação. O texto operação produtora de sentidos. Eis algumas das novidades da Poesia Experimental, que assim propunha materialmente uma materialidade para o texto poético. Materialidade que será confundida por muitos com a velha querela dos formalismos e da dicotomia forma/conteúdo. No entanto, o mundo é já outro. A teoria da informação, a lingüística, a semiótica, a dialética fornecem-nos conceituações mais sutis e mais adequadas; e noções como ambigüidade, redundância, contradição, síntese, são instrumentos indispensáveis para quem se preocupar com a fundamentação teórica da vanguarda. Vanguarda, fato semiológico por excelência, num mundo de sinais que certamente não são, nem nunca foram inocentes. Poderemos agora comparar as vanguardas da primeira metade com as da segunda metade do século XX, numa perspectiva de teorização geral que através da diversidade e da diferença das situações nos leve a compreender os fenômenos, já não divididos em movimentos e contramovimento, em manifestos e contramanifestos, mas tornando evidente o que é uma característica da cultura deste século: o seu autoquestionamento. Assim deve afirmar-se que os anos 60 foram anos de vanguardas, tanto estéticas como políticas. Isto, após um primeiro surto de vanguardas estéticas, no começo deste século, em que o fator "escândalo" foi usado como arma contra o academismo e o espírito conservador, e após toda a tragédia fascista e nazi que ensombrou a cultura ocidental durante duas décadas (pelo menos). Simplesmente, se nos
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anos 60 se volta insistentemente a falar de vanguardas, elas não têm já, nem o mesmo conteúdo, nem a mesma estratégia de escândalo. As segundas vanguardas de 60, longe de serem um revivalismo, desempenharam, antes, uma dupla função, a da teorização crítica, por um lado, e a da democratização e alargamento da idéia de pesquisa estética a vastas camadas de jovens, de todas as latitudes e classes sociais, o que evidentemente implica uma confusão do social e do estético, que é característica destas segundas vanguardas, contrariamente ao pendor aristocrático das primeiras vanguardas deste século. Ao estabelecermos uma ponte entre as vanguardas de 1915 e as dos anos 60, penso que estamos a contribuir para que as diferenças entre elas nos conduzam ao substrato comum, que sutilmente as une: - o desejo de transformação e a consciência de que essa transformação é um processo aberto e sem fim de questionação epistemológica dum mundo labiríntico ou em mosaico (como diz Abraham Moles) em que a turbulência se instaura criando uma semântica aleatória e lúdica, a que metaforicamente se poderá chamar de FRACTAL. É assim possível caracterizar um paradigma que neste fim de século se desenha: o neobarroco que se poderá entender como uma potenciação aberta em que a complexidade, a fluidez, a oposição aos poderes autoritários e a construção aleatória se traduzem num excesso de interação informativa, ao mesmo tempo redundante e inventiva. E é precisamente esta contradição que poderá criar, pelo menos, a simulação de uma coerência nem que seja através de um metaolhar crítico e irônico.
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A FUNDAÇAO DA LITERATURA BRASILEIRA
Regina Zilberman
E pois se é impossível falar do Brasil, sem que se recorde tudo quanto a natureza tem mais belo, mais fecundo, mais precioso como diz Freycinet; se é impossível falar deste país, sem que se observe que o ouro e os diamantes saem de seu seio, ao mesmo tempo, que nele prosperam todas as culturas, como confessa Beauchamp; é também impossível falar dos brasileiros como pondera o Sr. Eugene de Monglave, sem que se recorde que são eles os únicos povos da América que possuem a sua literatura nacional. 1. SOUSA SILVA, Joaquim Norberto de. "Introdução histórica sobre a literatura brasileira". Revista popular. Ano I, tomo 4, oul.-dez. 1859, p. 358.
2. Este estudo foi republicado em 1865, com novo título, "Discurso sobre a história da I iteratura do Brasil", de onde provêm as citações. 3. Gonçalves de Magalhães não menciona Almeida Garrett autor do "Bosquejo da história da poesia e língua portuguesa", de 1826.
JOAQUIM NORBERTO'
Com Suspiros poéticos e saudade, publicado em 1836, Domingos José Gonçalves de Magalhães espera apresentar a estética romântica ao público brasileiro_ Com o "Ensaio sobre a história da literatura do Brasil", do mesmo ano e editado no primeiro número de Niterói,2 almeja lançar as bases para a constituição da história da literatura brasileira. Introdutor do Romantismo no país, Gonçalves de Magalhães inaugura, simultaneamente, a historiografia nacional. Para obter esse resultado, precisa rejeitar possíveis precursores; neste sentido, desacredita os estrangeiros Friedrich Bouterwek, Sismonde de Simondi e Ferdinand Denis que, antes dele, se dedicaram à matéria,3 queixando-se de que a trataram indevidamente; e
60 - Rev. Brasil. Li!. Comparada, nº 2 observa que "nenhum nacional, que o saibamos, ocupado se tem até de tal objeto".4 Para dar conta do recado, Magalhães deve responder à própria pergunta: "qual é a origem da literatura brasileira? Qual o seu caráter, seus progressos, e que fases tem tido?" (p. 244). Ao fazê-la, ele indica o objeto - a literatura de uma dada nação; o método - rastrear as origens, pesquisar os progressos e verificar as fases dessa literatura; e a finalidade - definir seu caráter - da história da literatura. A perspectiva com que Magalhães encara o modo de fazer história da literatura sugere que ele acompanhava as tendências da historiografia romântica. Este afinamento garante ao autor a premissa com que abre o estudo - cada nação tem uma literatura própria e característica, reveladora do caráter do povo que a produz: A literatura de um povo é o desenvolvimento do que ele tem de mais sublime nas idéias, de mais filosófico no pensamento, de mais heróico na moral, e de mais belo na natureza; é o quadro animado de suas virtudes e de suas paixões, o despertador de sua glória, e o reflexo progressivo de sua inteligência. (p. 241). Para Magalhães, a literatura é o "único representante" de um povo, seu "espírito" (p. 241), confundindo-se com ele, razão por que se deixa acompanhar do adjetivo gentílico que a localiza geograficamente. A tarefa encaminhada aos historiadores da literatura não deveria oferecer dificuldades: cabia tão-somente apontar a origem e acompanhar os progressos alcançados desde então pela literatura produzida na nação que se chamava Brasil. O que parecia fácil, contudo, revelou-se quase impossível: Magalhães reconhece que "mesquinhos e esparsos são os documentos que sobre ela se podem consultar" (p. 245); à ausência de textos, soma-se a falta de material qualificado, porque, para ele, as obras escritas por brasileiros até aquela época mostravam-se servis aos padrões europeus e clássicos, a quem procuravam docilmente imitar, legando uma arte inautêntica e artificial: A poesia brasileira não é uma indígena civilizada; é uma grega vestida à francesa e à portuguesa, e climatizada no Brasil; é uma virgem do Helicon que, peregrinando pelo mundo, estragou seu manto, talhado pelas mãos de Homero, e sentada à sombra das palmeiras da América, se apraz ainda com as reminiscências da pátria, cuida ouvir o doce murmúrio da castália, o trépido sussurro do Lodon e do Ismeno, e
4. GONÇALVES DE MAGALHÃES, Domingos José. "Discurso sobre a história da literatura no Brasil." In: Opúsculos hist6ricos e literários. 2. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1865, p. 245.
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toma por um rouxinol o sabiá que gorgeia entre os galhos da laranjeira. (pp. 256-257)
5. "O Sr. Magalhães SÓ, sem auxílio de outrem, efetuou a tão desej ada reforma da poesia brasileira, lenbrada há anos por Mr. Ferdinand Denis, que estusiasta do Brasil lha profetizara uma época de esplendor e glória Iiterária;profecia que vai realizandose; - época que principia a raiar!". In: SOUSA SILVA, Joaquim Norberto de. Modulações poéticas. Precedidas de um bosquejo da paesia brasileira. Rio de Janeiro: Tipografia Francesa, 1841, p. 47.
Originalmente um estudo de pendor historiográfico, o Ensaio acaba desmascarando sua faceta reformista, esperável, aliás, num autor que anunciava ao Brasil e boa nova romântica, enquanto o livrava da poética neoclássica até então hegemônica nas letras locais. Ao mesmo tempo, Magalhães esclarece como entende o modelo de literatura a ser qualificada de verdadeiramente brasileira: deveria apresentar caráter nacional e liberar-se da imitação européia. O poeta desenha o perfil do fundador, esperando que contemporâneos e pósteros reconheçam nele o seu rosto, no que é bem sucedido, conforme sugerem, sobretudo, os ensaios de Joaquim Norberto, dedicados a pontar o decisivo papel exercido pelo autor dos Suspiros poéticos e saudade na constituição da literatura brasileira. 5 A história da literatura, contudo, não vive de valorizar os contemporâneos, antes de eles virarem passado. Compete-lhe, ao contrário da mulher de Lot, voltar os olhos para trás, à procura daquela origem remota de que o presente é a melhor e superior expressão. Sua tarefa é descrever a trajetória que redunda na atualidade, de modo que os românticos, mesmo se a contragosto, precisaram sair em busca do ancestral, aquele que anunciou por vez primeira o padrão de que os coetâneos se tornaram a manifestação ideal. A pesquisa ocupou os historiadores da literatura ativos entre 1840 e 1870, durante o auge do Romantismo no Brasil. Obrigados a garimpar, entre os remanescentes dos escritos produzidos desde o descobrimento até seu tempo, a quem caberia o galardão de fundador, optam, na maioria das vezes, por Basílio da Gama, em alguns casos, por Santa Rita Durão, conforme um percurso que se acompanha a seguir. Almeida Garrett, no "Bosquejo da história da poesia e da língua portuguesa", antecipa a sugestão de que Basílio da Gama era merecedor dessa láurea: Justo elogio merece o sensível cantor da infeliz Lindóia, que mais nacional foi que nenhum de seus compatriotas brasileiros. O Uruguai de José Basílio da Gama é o moderno poema que mais mérito tem na minha opinião. Cenas naturais mui bem pintadas, de grande e bela execução descritiva; frase pura e sem afetação, versos naturais sem ser prosaicos, e quando cumpre sublimes sem ser guindados; não são qualidades comuns. Os brasileiros principalmente lhe devem a
62 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 melhor coroa de sua poesia, que nele é verdadeiramente nacional, e legítima americana. 6 Ferdinand Denis, na mesma época, não tem o poema em tão alta estima:
6. GARRETI, Almeida, "Bosquejo da história da poesia e língua portuguesa". In: Obras Completas. V. 2. Lisboa: Empresa da História de Portugal, 1904, p. 357.
o Uruguai não se distingue tanto pela originalidade da concepção, como pela correção do estilo. É mais interessante pelas particularidades poéticas do que pela impressão que possa causar. Nele se nos depara, todavia, hábil descrição do Novo Mundo, onde vastas planícies se distendem, onde a natureza é tão regular na produtividade e opulenta nas provisões, cobrindo de pastagens o espaço que não reserva às florestas.? A preferência do historiador francês recai sobre o poema de Santa Rita Durão, Caramuru, porque a obra "reveste caráter nacional, apesar de suas imperfeições, e assinala claramente o objetivo a que deve dirigir-se a poesia americana" (p. 62). Ambos os críticos avaliam as epopéias de modo divergente; coincidem, contudo, no critério que os leva a valorizar o poema preferido. Denis destaca o "caráter nacional" do Caramuru, enquanto que Garrett julga O Uruguai poesia "verdadeiramente nacional, e legítima americana", razão por que Basílio é "mais racional [... ] que nenhum de seus compatriotas brasileiros". Por sua vez, as avaliações, embora discordantes, sanam parte notável dos problemas dos historiadores da literatura brasileira, pois, desde um prisma externo, distante, pois, dos interesses imediatos dos intelectuais nativos, apontam-se criações que respondem positivamente às exigências de qualidade para as obras escritas no país. O valor não dependeria apenas do estilo e da naturalidade dos versos, mas também do índice de nacionalidade que carregam consigo, fator de ordem prioritária e presente nos textos de Basílio e/ou Santa Rita Durão. Eis por que essas avaliações e a valorização das obras que as suscitam são retomadas, às vezes quase literalmente, pelos historiadores românticos da literatura do Brasil. Pereira da Silva, contemporâneo de Gonçalves de Magalhães e coparticipante do número inaugural de Niterói, considera O Uruguai "admirável", concluindo que, "de todos [é] o mais nacional".8 Joaquim Norberto também destaca as virtudes do poema de Basílio em seus estudo. Na introdução às Modulações poéticas, enfatiza os méritos estilísticos, reprisando afirmações de Almeida Garrett e Ferdinand Denis:
7. DENIS, Ferdinand. Resumo da história do Brasil. Porto Alegre: Lima, 1968, p. 65.
8. PEREIRA DA SILVA, J. M. "Introdução". In: Parnaso Brasileiro ou Seleção de poesias dos melhores poetas brasileiros desde o descobrimento do Brasil. Tomo I. Rio de Janeiro: Laemmert, 1843, p.43.
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o Uruguai é a melhor de suas produções; o estilo é correto,
9. SOUSA SILVA, Joaquim Norberto de. Op. cit., p. 31.
10. ADÊT, Emflio & SOUSA SILVA, Joaquim Norberto de. Mosaico poético. Poesias brasileiras antigas e modernas, raras e inéditas acompnhadas de notas, notícias biográficas e críticas, e de uma introdução sobre a literatura nacional. Rio de Janeiro: s.e., 1844. 11. SOUSA SILVA, Joaquim Norberto de. "Introdução histórica sobre a literatura brasileira". Revista Popular. Ano lI, tomo 5, jan.-mar. 1860.
a dicção, ainda que pobre, adequada e os versos, ora simples, ora sublimes e sempre apropriados ao objeto de que tratam. Os episódios da embaixada de Sepé e Cacambo ao general Gomes Freire; da batalha de S. Tecla, em que os índios das missões sofrem completa derrota, da visão de Cacambo, do incêndio das tendas do exército luso-hispano-brasílico, da morte da saudosa Lindóia, de descrição da pintura do templo das missões, tão engenhosa e delicadamente interrompida no quarto canto e continuada no quinto, são excelentes. ~ No ensaio que antecede o Mosaico poético, a observação reaparece: "Basílio da Gama imortaliza-se com o seu Uruguai, a melhor de sua produções: o estilo é correto, a dicção adequada, e os versos ora simples, ora sublimes e sempre apropriados ao objeto de que tratam".1II Nas "Introdução histórica sobre a literatura brasileira", sublinha o caráter nacional da obra, revestindo-o de um fator suplementar - seu patriotismo. Norberto reconhece em Basílio da Gama e em Santa Rita Durão "entusiasmo patriótico", graças ao qual "abriram exemplo, com a publicação de seus imortais e sublimes poemas, ricos de pinturas e episódios verdadeiramente brasileiros" .11 Ao considerar patrióticas as obras de Gama e Durão, Joaquim Norberto leva adiante o processo de nacionalização encetado pelos românticos. Garrett e Denis, antes de Magalhães, reconheciam nos poemas "caráter nacional", o que os associava à terra de nascença dos autores e conferia-lhes valor por concretizarem o postulado romântico relativo à necessidade de a criação literária inspi.rar-se na natureza circundante, que acabava por representar e traduzir. Quanto mais embebida pela paisagem natural, aquela vivenciada pelo artista, mais original, pessoal, logo, nacional, era o resultado obtido. Norberto vai além: descobre "entusiasmo patriótico" nos poemas de Gama e Durão, atribuindo indiretamente ardores nativistas a dois escritores que viveram poucos anos na terra natal e acataram com gosto a política dominante na Metrópole, a pombalina no caso de Basílio, a de oposição ao Marquês, no caso de Santa Rita. Ao historiador da literatura convinha, contudo, que os poetas tivessem sido patriotas e que esse sentimento tivesse transitado aos textos, pois, assim, consolidava-se a expectativa de que a literatura do passado tinha antecipado e preparado, de um lado, a estética da época, fundada no nacionalismo, corporificado na natureza americana, de outro, a ideologia vigente, valorizadora das expressões separatistas que diferenciavam a ex-colônia e a velha metrópole. Varnhagen, na introdução ao Florilégio da poesia brasileira,
64 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 é dos poucos que não enfatiza o elemento nativista que estaria encrustrado naquelas obras. Sua preferência recai sobre o poema de Santa Rita Durão, julgado o Caramuru "poema mais acabado", "de fácil e natural metrificação, e dicção clara e elegante"Y Os estudos de Pereira da Silva, Joaquim Norberto e Varnhagen, oriundo das décadas de 40 e 50 do século XIX, são introduções a coletâneas de poemas escritos por autores nascidos ou vividos no Brasil, a quem cabia responder pelo catálogo corrente da literatura local. A preocupação maior dos ensaístas era garantir um elenco de obras redigidas em língua portuguesa e produzidas por homens associados de alguma maneira ao país. Nos anos 60 e 70, aparecem os livros do Cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro. Curso elementar de literatura nacional e Resumo de história literária, e Sotero dos Reis, Curso de literatura portuguesa e brasileira, com outro feitio, por se destinarem ao uso escolar. A alteração do destino das obras, no entanto, não modifica os critérios de avaliação, como sugere a observação de Fernandes Pinheiro, que valoriza a figura de Cacambo, em O Uruguai, por seu "caráter ousado e generoso, o sentimento de amor pátrio que o anima [que] dão-lhe um colorido original, um americanismo, que devera ser mais tarde interpretado pelos delicadíssimos pincéis de Cooper, Irving e Longfellow"Y As mesmas razões levam Sotero dos Reis a considerar Basílio, "se deixarmos de atender à data, o verdadeiro fundador da poesia brasileira, porque soube empregar a cor local com mais arte, que Durão que precedeu na ordem cronológica [sic], ou aquele a quem na frase de Almeida Garrett os brasileiros devem a melhor coroa de sua poesia". 14 Sotero dos Reis responde, com essa anotação, a pergunta de Gonçalves de Magalhães. Basílio constitui a origem, trazendo encumbada em sua epopéia os principais elementos desenvolvidos pela literatura brasileira posterior e resumidos numa noção cunhada e exigida pelo Romantismo: cor local, expressão que conjuga natureza enquanto espaço e nacionalidade enquanto terra e que se eleva à condição de critério de medição do tanto de qualidade e diferença verificável numa dada produção literária de um país. Basílio, com O Uruguai, respondeu positivamente a essas exigências, habilitando-se a posição de fundador, inaugurando a história da literatura e permitindo que ela fosse contada. Tanto a pergunta de Gonçalves de Magalhães, quanto as respostas de Pereira da Silva, Joaquim Norberto, Fernandes Pinheiro e Sotero do Reis, entre outros, apresentam significado particular para uma teoria da história da literatura. Elas conjugam dois tópicos sucessivamente retomados pelos historiadores da literatura: o primei-
12. VARNHAGEN, Fransico A. de. "Ensaio histórico sobre as letras no Brasil". In: Flori16gio da poesia brasileira ou Coleção das mais notáveis composições dos poetas brasileiros falecidos, contendo as biografias de muitos deles. Tomo I. Rio de Janeiro: Academia Brasileira, 1946, p. 35.
13. FERNANDES PINHEIRO, Cônego Joaquim Caetano. Resumo de história literária. Tomo 11. Rio de Janeiro: Gamier, 1873, p. 373. [Grifo do autor. J
14. SOTERO DOS REIS, Francisco. Curso de literatura portuguesa e brasileira. Tomo IV. Maranhão: s. e., 1868, p. 209.
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15. BARTHES, Roland. "Par ou commencer?". Poétique 1. Paris: Seuil, 1970.
16. WHlTE, Hayden. Tropics of Discourse. Essays in Cultural Criticism. Baltimore & London: The lohos Hopkins University Press, 1986. WHITE, Hayden. Meta-História. A imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Edusp, 1992.
17. ELIADE, Mircea. Mito y realidad. Madrid: Guadarrama, 1968.
18. Hayden White destaca igualmente a "plot structure" empregada pela história, obrigando o intérprete a entender a seqüência de eventos apresentada pelo historiador enquanto uma"stary ofa particular kind". WHITE, Hayden. Tropics of discourse, p. 58.
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ro diz respeito ao "por onde começar", base, conforme Barthes, de todas estrutura narrativa;!S o segundo, mais específico, refere-se ao "que incluir". Contemporânea ao aparecimento da história e, seguidamente, julgada parte daquela, a história da literatura não poderia deixar de conter os elementos narrativos que Hayden White, por exemplo, reconhece naquela ciência. Devido à presença inevitável de traços estilísticos próprios às formas ficcionais, White propõe que a metahistória analise, no texto dos historiadores, as diferentes maneiras de contar, porque essas sinalizam suas distintas visões de mundo. Os historiadores escolhem seu modo de narrar, e essas singularidades, situadas no plano lingüístico, definem a perspectiva com que interpretam os fato passados. Segundo White, não há histórias mais "corretas" que outras ou versões mais verídicas: a diversidade situase no plano do discurso, valendo o arranjo e a óptica que o historiador - agora narrador - utiliza.!6 Parte da história ou modo paralelo de se fazer história, a história da literatura recorre igualmente às estratégias narrativas próprias aos gêneros ficcionais. Talvez, no caso dela, o processo aconteça de modo mais evidente, pois, conforme ocorreu a Magalhães, tudo parte da pergunta pela origem, a que sinaliza o início da narrativa, a ponta do novelo. O teor da pergunta, bem como das respostas, especialmente a de Sotero dos Reis, sugere também que a história da literatura constitui uma modalidade de narrativa mítica, com a função de revelar a origem por meio de um relato, que conta como, graças às façanhas de seres sobrenaturais, as coisas vieram à luz pela primeira vez.!7 A história da literatura vale-se, pois, e muito, de estratégias narrativas próprias aos gêneros ficcionais, e isso para se constituir em ciência e conquistar credibilidade. Só assim dá conta tanto da origem, respondendo à questão que foi também de Gonçalves de Magalhães- "por onde começar" -, quanto da continuação, conforme um arranjo verossímil e coerente, acatando então os preceitos de Aristóteles quando se referia à mímese nas artes poéticas. 18 A resposta dada à questão da origem, todavia, não esgota o rol das tarefas atribuídas à história da literatura. Cabe-lhe igualmente definir seu objeto, para isso pesquisando "o que incluir". Na busca de solução para esse problema, recorre a novos parceiros, originários da estética e da política. A estética é chamada a colaborar, porque a história da literatura precisa selecionar, entre o material existente, formado de escritores e suas obras, aqueles que merecem constar da narrativa. Ela dispõe de vários personagens; mas, ao contrário da história, que lida
66 - Rev. Brasil. Li!. Comparada, nº 2 com eventos, estes determinando a distribuição dos papéis entre protagonistas e figurantes, a história da literatura depara-se com um grande número de atores a quem deve atribuir a execução de fatos notáveis, dignos de serem contados. É a estética que executa previamente essa tarefa, oferecendo ao historiador da literatura a relação dos escritores e das obras que atuaram sobre o público leitor e provocaram impacto, permanecendo ativas no tempo. Hans-Robert Jauss chama a atenção para o fato de que os autores e os textos que fizeram história são os que marcaram sua época, com repercussões no(s) período(s) seguinte(s).19 O historiador da literatura recolhe esses dados acumulados e ordena-os, valendo-se de ferramentas agora transportadas da política: o arranjo dos fatos sociais e econômicos vividos por uma dada nação conforme uma cronologia elaborada pela história. A política interfere principalmente quando obriga a literatura a se definir, como queria Gonçalves de Magalhães, enquanto expressão de uma dada nação. Esse processo começa a ocorrer no século XVIII, intensificando-se no século seguinte, porque a burguesia, solidamente instalada no poder, vai buscar na literatura a representação do Estado nacional que dirige e administra. Essa representação pode se fazer de uma ou várias destas maneiras: • a língua literária converte-se em língua nacional, e os escritores transformam-se em paradigmas a serem imitados por todos os falantes; este processo obtém êxito graças aosocorro da escola, que difunde, entre os usuários de todas as classes sociais, e torna obrigatório por intermédio do ensino, o padrão lingüístico escolhido; • os ficcionistas formulam e desenham um tipo nacional que sintetiza as propriedades atribuídas ao ser local; • os artistas louvam a natureza nativa, exaltando suas virtudes e singularidades, sinônimas das qualidades da terra que as abriga. Os historiadores da literatura do Brasil raramente preferem a primeira alternativa, pois a língua portuguesa era patrimônio da metrópole européia de que o país acabava de se independendizar. Esse critério, em certo sentido, corria na contramão, ao obrigar os historiadores a reconhecer o débito dos brasileiros para com a literatura portuguesa. Melhor era ignorá-lo, e preferir os outros dois, que reforçavam a tese de que a literatura era expressão de um povo e formadora do espírito nacional. Nesse caso, Basílio da Gama foi uma boa opção: a epopéia tem valor estilístico, é marcante a presença da
19. JAUSS, Hans-Robert. "Literaturgeschichte ais Provokation der Iiteraturwissenchaft". In: WARNING, Rainer. Rezeptionsaesthetik. Müchen: Fink, 1975. ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção c história da literatura. São Paulo: Ática, 1989.
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cor local, valoriza-se o mundo americano, e o poeta influenciou coetâneos, como o depois concorrente Santa Rita Durão, os árcades Cláudio Manuel da Costa, Silva Alvarenga e Alvarenga Peixoto e até o português Almeida Garrett, admirador confesso do ex-jesuíta. Com Basílio, podia-se dizer que a literatura brasileira "começava"; o poeta apresentava-se como a baliza, necessária para ordenar o "inc1uível", separar o "antes" e o "depois", diferenciar o "superior" e o "inferior". Essa baliza valeu por um tempo, porque, descobertas, depois de muitas e proveitosas pesquisas, obras mais antigas ou importantes e em alta outros princípios estéticos, novos fundadores foram chamados à cena, começos distintos foram propostos. Mas um fato ficou e permanece até agora inalterável: a história da literatura brasileira, realizando a aspiração de Gonçalves de Magalhães, estava fundada, com origem estabelecida e eleito um elenco de atores, concorrendo na disputa pelos melhores papéis.
A CRíTICA DA TEORIA: UMA ANÁLISE INSTITUCIONAL
José Luís Jobim
Raras vezes a crítica e a história literária se indagam sobre a institucionalização dos estudos literários. A aparente ausência de interesse nessa questão explica, pelo menos parcialmente, porque os profissionais da área de Letras muitas vezes apresentam um baixo nível de consciência sobre o significado de seu papel como professores de literatura na universidade brasileira. A própria configuração do curso de Letras - a concepção de seu currículo, a sua compartimentalização em disciplinas - é fruto de um processo cujas normas nem sempre são visíveis para os professores e alunos, até porque usualmente eles se deparam com o curso já "pronto", com uma aparência de continuidade e permanência que faz muitas vezes parecer natural o que é social. Dificilmente se questionam as normas sob as quais se enquadrou o próprio processo constitutivo, ou seja, aquelas que forneceram o quadro de referência que legitimou determinados tipos de discurso e marginalizou outros, procurando reproduzir determinadas configurações de saber e condenando outras. Nas instituições universitárias brasileiras, criou-se uma divisão em departamentos, que não é apenas administrativa. Concebemse os departamentos sobretudo como grandes agregados de disciplinas que cobrem determinados campos. Por extensão, a distribuição dos professores é feita de acordo com as disciplinas que lhes são atribuídas, aquelas nas quais são "especialistas", aquelas cujos
70 - Rev. Brasil. Li!. Comparada, nº 2 "conteúdos" eles dominam e portanto podem ensinar. Pressupõe-se uma totalidade de saber, da qual cada disciplina é uma parte, a ser ministrada ao longo de cada curso. Porém esta imagem de "totalidade" já começa a ficar prejudicada pela própria insulação em que se colocam aos especialistas e disciplinas isolados. Pelas regras do jogo, cada "especialista" tem autonomia para falar apenas de sua "disciplina", evitando entrar na seara alheia, embora sempre se possa perguntar: - Onde estão os marcos imaginários que delimitam as searas? É bom lembrar que, na área de Letras, a demarcação de territórios na maioria das vezes se dá sob a égide de uma determinada concepção de nacionalidade e de literatura. "Literatura" é a palavrachave pretensamente comum a todos os profissionais; "nacionalidade" é o marco das fronteiras em que se separam os especialistas. Mas ambos os termos têm uma história e uma relação com a instituição universitária. Embora se alegue que o "objeto" dos pesquisadores seja a literatura, é interessante assinalar que não há consenso entre eles sobre a própria configuração deste "objeto". Contudo, mesmo sem consenso, podemos verificar que existem representações dele. E mais: ao transmitirem institucionalmente aos discentes (que depois, como professores, retransmitirão aos seus futuros alunos) uma determinada representação de literatura, depreendida dos autores e obras selecionados, os cursos de Letras são responsáveis pela criação de uma imagem do literário. Como já afirmei em outra ocasião, l o estudo das convenções, normas e valores que fundamentam a escolha do cânon pode esclarecer esta imagem: os autores e obras que são valorizados, lembrados, aceitos e incluídos, em nossos programas, bem como os que são desvalorizados, esquecidos, rejeitados e excluídos, podem tornar claro o centro e as margens desta imagem, assim como os fundamentos de sua constituição. Também o termo nacionalidade, apesar da fortuna crítica2 que aponta os perigos de sua aplicação generalizada e acrítica, continua a ser pedra-de-toque da demarcação de territórios para os "especialistas" na área de Letras. Se aceitarmos estes marcos, diremos que Gregório de Matos pertence à Literatura Brasileira, Góngora e Quevedo à Espanhola, Emanuele Tesauro à Italiana. Obviamente, como demonstra João Adolfo Hansen,3 estas fronteiras estabelecidas contemporaneamente não conseguem dar conta da obra daqueles autores, ao menos pelas seguintes razões: 1. existe uma intettexíualidade entre as obras deles; 2. o adjetivo brasileiro, atribuído a Gregório de Matos - bem como italiano, atribuído a Tesauro - é anacrônico, pois certamente Gregório não se qualificaria como tal, num momentO' em que sequer havia Brasil.
1. Cf. JOBIM, José Luís. "História da Literatura". In:
Palavras da crítica- Tendências c conceitos no estudo da
literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
2. Cf. HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismos desde 1870. São Paulo, Paz e Terra, 1991; PEDROSA, Célia. "Nacionalismo literário". In: JOBIM, op. cit., pp. 277-307. 3. HANSEN, João Adolfo. A Sátira e o engenho - Gregório de Matos e a Bahia do séculoXVlI. São Paulo: Companhia de Letras, 1989.
A Crítica da Teoria -
4. Para uma resposta interessante a esta questão, cf. GRAFF, Gerald. Professing literature - An institutional history. Chicago: The University of Chicago Press, 1987. 5. Para um exemplo de respostas interessantes a esta questão, cf. ESPAGNE, M. & WERNER, M. Philologiques 1 - Historie des disciplines littéraires en France et enAIlemagne au X/Xc siécle. Paris: Editions de la Maison des Sciences de I'Homme, 1990.
6. MINSK, Louis. Historical understanding. Ithaca and London: Comel! University Press,1987.
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É importante para a História e a Crítica analisar o papel da universidade na institucionalização dos estudos literários, pois há muitas perguntas sem resposta, ou que sequer foram formuladas_ Em que contexto se deu a gênese da institucionalização destes estudos?4 Sob que estrutura universitária se instalaram os cursos de Letras no país? Que critérios se utilizam para dividir a área de Letras em disciplinas?5 Que ponto de vista cultural presidiu a criação delas? Que tipo de discurso sobre o literário estas disciplinas produzem? Que tipo de esclarecimento a análise crítica delas pode produzir? Como a disciplina não aparece isolada, mas em malha curricular em que se presume ser ela parte de um quebra-cabeças no qual todas as peças são necessárias para a imagem total, nunca deveríamos analisar isoladamente uma disciplina singular, já que sua própria identidade disciplinar depende de um intrincado jogo de oposições e diferenças em que ela se afirma em relação a outras, pela suposta presença ou ausência de determinadas marcas discursivas. A inserção de cada disciplina em um jogo que não se esgota nelas faz com que a análise crítica de qualquer delas implique uma análise crítica da própria institucionalização, dos estudos literários. Assim sendo, pretendemos, no estreito âmbito deste ensaio, dar uma contribuição à História e à Crítica desta institucionalização, através da análise de uma disciplina no curso de Letras: Teoria da Literatura. Para começar, diremos que a universidade brasileira ainda paga um pesado tributo a uma idéia positivista de divisão do saber em áreas demarcadas, o que pressupõe uma representação de estabilidade do conhecimento bastante questionável, pois, mesmo no âmbito disciplinar, a imagem de uma continuidade, permanência, reprodutividade e, por conseqüência, estabilidade do saber vem sendo posta em cheque. O filósofo Louis Minsk, por exemplo, expressou a opinião de que a assim chamada "disciplina" na verdade é uma arena onde os partidários de diferentes modos de saber competem, cada qual com seu próprio objetivo de compreensão, identificação de problemas e linguagem privilegiada. 6 A observação de Minsk cai como uma luva para a disciplina Teoria da Literatura, sob cuja égide dificilmente poderíamos dizer que se abriga um mesmo trabalho, um mesmo "conteúdo programático", um mesmo modo de saber, uma mesma identificação de problemas ou uma mesma linguagem privilegiada, cujas respectivas ausências implicariam exclusão irreparável do seu âmbito disciplinar. Em vez de um discurso homogêneo, Teoria da Literatura designa uma heterogeneidade, uma diversidade, uma variedade de discursos que freqüentemente competem pela primazia. Como disciplina, ela ocupa um lugar no currículo de Letras, área em que os espaços muitas
72 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nU 2 vezes se definem - como nos outros cursos universitários - através do pretenso controle de determinado conteúdos: Proust "pertence" à cadeira de Literatura Francesa, Shakespeare à Literatura Inglesa. Em outras áreas dá-se o mesmo: Aristóteles "pertence" ao departamento de Filosofia, Freud ao de Psicologia, e assim por diante. No atual modelo universitário, em que presenciamos demonstrações de ansiedade em demarcar territórios, em legitimar discursos, para poder com mais clareza excluir o que está fora das fronteiras demarcadas e dos discursos legitimados, a Teoria da Literatura pode pretender ser uma disciplina em que se questionem as próprias fronteiras com que se delimitaram as áreas acadêmicas, ajudando a minar as possíveis pretensões de controle monopolista - de outras cadeiras, departamento e cursos - sobre certos "conteúdos". Mas é bom lembrar que, ao estabelecer-se como disciplina na grade curricular de Letras, ela também pode acabar assumindo um papel que lhe é reservado nos estreitos limites do curso. Se é verdade que a Teoria da Literatura pode questionar, entre outras coisas, os fundamentos dos discursos socialmente articulados sobre literatura, os quadros de referência que delimitam o âmbito do que é considerado como literatura, ou a organização dos sistemas de referência cultural através dos quais se organizam os estudos literários, também é verdade que esse próprio questionamento pode ser legitimado por um papel social atribuído à Teoria: o de ... questionar. A presença da Teoria da Literatura como uma disciplina a mais no currículo de Letras pode significar, no quadro universitário dividido basicamente em áreas de controle e atribuição de saberes, que as Faculdades de Letras, ao confinarem nessa disciplina o controle e a atribuição da discussão teórica nos estudos literários, eximem as outras disciplinas dessa discussão: "Não vamos (os professores de Literatura Brasileira, Portuguesa, Inglesa, Francesa, Alemã, etc.) discutir as nossas divergências conceituais ou os pressupostos a partir dos quais trabalhamos, pois esta discussão 'teórica' não pertence a nossa cadeira". Discutir questões teóricas passa a ser um problema apenas dos professores de Teoria da Literatura, e não dos outros. Contudo, se j á não acreditamos mais em um modelo positivista de universidade, em que se imagine ser possível uma perfeita divisão dos quadros do saber - das atribuições, controles e funções - que geraria uma instituição compartimentalizada de maneira rígida, então talvez até possamos supor que a própria concepção de disciplina merece uma reavaliação. Mas como este ensaio pretende ser apenas uma contribuição à análise crítica de uma disciplina institucionalizada, deixaremos as outras questões em aberto, para voltar ao nosso tema central.
A Crítica da Teoria -
7. Para uma análise das implicações dos diversos rótulo históricos atribuídos aos estudos literários, ver: SOUZA, Roberto Adzelo de. Formação da tcoria da literatura. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1987.
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A Teoria da Literatura, tanto no âmbito dos estudos literários quanto no currículo de Letras, parece um campo recente, mas poderíamos apresentar ressalvas a essa aparência de novidade. Para começar, no que diz respeito aos estudos literários, "Teoria da Literatura" é um rótulo mais recente para uma área que já possuiu e ainda possui outros rótulos. Não nos interessa aqui discutir se a alguns rótulo ("Estética", por exemplo) poderiam corresponder outros objetos além da literatura, nem é de nosso interesse verificar se outras designações teriam uma origem e uso geográfica e academicamente delimitados ("Literaturwissenschaft", por exemplo).7 Queremos enfatizar que, no mínimo, a denominação "Teoria da Literatura" é sucessora, quando não contemporânea, de outras que também nomeiam áreas de estudo cujo objeto é também a literatura, mas o interesse pelo estudo das formas literárias, ou a sua necessidade, mantém-se ainda que a atividade teórica seja chamada de "Poética", "Estética" ou "Ciência da Literatura". No curso de Letras, seria ingênuo supor-se que só se teoriza na cadeira de Teoria da Literatura, já que toda cadeira de Literatura (Brasileira, Inglesa, Francesa, Norte-Americana, etc.) tem como objetivo formas literárias determinadas, sobre/com as quais tem de articular um discurso. As cadeiras necessariamente teorizam sobre literatura, mesmo que muitas vezes não o percebam. A questão que se deve postular, a partir dessa constatação é a seguinte: se todas as cadeiras de literatura necessariamente implicam uma atividade teórica, então para que uma cadeira específica de Teoria da Literatura? Para tentar responder a esta pergunta, é preciso que se faça um breve excurso sobre as programação das disciplinas literárias na universidade: com freqüência estas se constituem, entre outras coisas, de Histórias das Literaturas e culturas nacionais, bem como de análise e/ou interpretação de um universo delimitado de textos literários. É comum lerem-se informações contextuais sobre períodos abordados, além de ensaios críticos sobre os autores do programa; contudo, devido, muitas vezes, à limitação da carga horária, não é possível entrar em questões mais genéricas e abstratas, como, por exemplo: ."Quais são os pressupostos da atividade cognoscitiva que investiga os discursos historicamente designados como literários?"; "Qual a relação entre as representações sociais presentes nos textos literários e as representações sociais vigentes na cultura que interpreta estas mesmas representações?"; "O que significa gênero literário: trata-se apenas de um rótulo ou é uma categoria teórica produzida de acordo com fundamentos racionalmente discutíveis?"; "Qual é, se existe, a condição existencial da obra de arte como criação, como
74 - Rc\'. Brasil. Lit. Comparada, n~ 2 linguagem, como produto?"; "como se situam as diversas correntes dos estudos literários em função das respectivas tomadas de posição a favor ou contra determinados modos de conhecer?"; e muitas outras, que seria ocioso enumerar. Estas questões mais genéricas acabam muitas vezes fazendo parte do repertório da Teoria da Literatura, o que não impede alguns alunos e professores de expressarem a opinião de que esta disciplina deveria ser mais "prática". Com freqüência, esta opinião significa reivindicar que o professor desta disciplina se dedique apenas à interpretação de textos em sala, ou que ele "ensine" formas ou fórmulas de interpretação textual ao aluno. É difícil explicar a quem possui esta visão simplista, para não dizer simplória, que esta concepção de "prática" pressupõe modelos teóricos-interpretativos a priori, que serão aplicados ao texto literário que se escolher. Pode-se imaginar que a interpretação de textos é "prática", não é "teoria", quando o senso comum transforma determinados modos de interpretação em normas, erigindo em valor geral o que antes era procedimento particular. Neste caso, o intérprete pode não perceber que sua "prática" possui determinados pressupostos "teóricos", ou seja, ela é o resultado de um a priori a partir do qual o próprio ato interpretativo se concretizou como experiência, ainda que não se esteja consciente disto. Esta é a razão pela qual a palavra interpretação não tem o mesmo sentido, se adotamos uma perspectiva fenomenológica, 8 freudiana, 9 formalista, lO etc. Para os que preferem as certezas do senso comum, tão mais enganosas quanto mais consensuais, a "teoria" é muitas vezes incômoda, porque significa um esforço reflexivo que pode ultrapassar as aparentes evidências, colocando em cheque valores, posições, atitudes. Em 1983, a revista New Literary Historyll publicou um levantamento, feito em 1982, do ensino e produção de Teoria Literária nos EUA, Grã-Bretanha e Europa. Segundo as palavras do editor, o survey "parecia a forma mais apropriada de descobrir como os teóricos se sentiam sobre sua própria matéria e o que eles e seus alunos pensavam ser suas deficiências e perspectivas" .12 Foi proposto um questionário de três perguntas, a serem respondidas por todos: 1. "Quais deveriam ser os objetivos e funções da teoria literária no momento presente?"; 2. "Que conseqüências práticas a teoria teve em sua docência de literatura e em sua escrita de crítica (writing of criticism)?"; 3. "Quais você considera as deficiências da teoria, se houver, na pós-graduação?". Como era de se esperar, as respostas foram as mais variadas possíveis. A seguir, comentaremos algumas, dentre as que se aproximam de propostas que vemos implantadas nos cursos de Letras das universidades brasileiras.
8. Cf. INGARDEN, Roman. The cognition of the /iterary work of art. [Vom Erkenem des Literarischen Kunstwerks) Evanston: Northwestem University Press, 1973. 9. Cf. RICOUER, Paul. Da interpretação - Ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. 10. Cf. TYNIANOV, Iuri, O problema da linguagem poética - O sentido da palavra poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975,2 v. V.2. 11. V. XIV, Number 2, Winter 1983. 12. Ibidem, p. 411.
A Crítica da Teoria -
13. Ibidem, p. 437.
14. Ibidem, p. 444.
15. Ibidem, pp. 440-441.
16. CULLER, J. Literary Theory in the Graduate Programo In: The Pursuit 01Signs - Scmiotics, Literaturc, dcsconstruction. Ithaca and New York: ComeIl Univesity Press, 1981. pp. 210-226. 17. Ibidem, pp. 218-219
18. Op. cil. nota 11, p. 441.
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Alguns professores defenderam, em suas respostas, um papel basicamente normativo para a teoria, chegando mesmo um deles (Vida E. Marcovic, Universidade de Belgrado) a afirmar que "é a teoria literária que deve oferecer uma base, ou melhor, um ponto de partida, para combater a fluidez geral (de valores e princípios) e reafirmar as assunções básicas que governam as regras do jogo na arte da literatura" Y Nesta vertente normativa, seria função da teoria literária, por exemplo, "ajudar-nos a definir o cânon, a estabelecer quais obras merecem estudo e apreciação e quais não",14 como se diz o professor Robert Schwarz. Outros professores propunham que o objetivo da teoria seria fornecer instrumental para leitura crítica. Um dos adeptos desta opção chega mesmo a expressar a crença de que, em vez de teoria, o que se precisa é de "método", ou seja, far-se-ia necessário haver "uma concentração em colocar com segurança instrumentos para análise nas mãos dos estudantes [... ]".15 Este tipo de opinião parece coincidir com uma concepção estreita que grassa em nossas universidades, de que a disciplina Teoria da Literatura deve dedicar-se a prover o aluno de técnicas para resolver problemas de interpretação de textos específicos. Provavelmente esta presunção ganhou força em nosso meio através de uma leitura estreita dos chamados "estruturalistas franceses" na década de 70, apesar de não ser compartilhada por um dos mais respeitados estudiosos do próprio Estruturalismo, Jonathan Culler, para quem a teoria literária "não é um conjunto de métodos em competição para a análise de obras literária".16 Na opinião de Culler, a teoria literária tem um importante papel nos estudos literários, "não porque oferece métodos para descobrir o que as obras realmente significam, mas porque lida com o que implica a literatura e a interpretação literária, com o que está em jogo na literatura e na interpretação literária". 17 No entanto, houve respostas ao questionário que não se preocuparam em circunscrever a teoria literária no âmbito da interpretação. Um outro caminho é proposto por aqueles que, como David S. Randall (estudante de pós-graduação da State University of New Y ork), acham que "os objetivos e funções da teoria li terária deveriam continuar a articular uma variedade de questões fundamentais concernentes à indagação sobre sua natureza 'disciplinar' ".IX Vista sob este ângulo, a segunda pergunta ("Que conseqüências práticas a teoria teve em sua docência de literatura e em sua sua escrita de crítica?") ganharia novos contornos, assim configurados por Evan Vatkins: ''[. .. ] a teoria é que propõe a questão das 'conseqüências
76 -Rev. Brasil. Li!. Comparada, nU 2 práticas', força-nos a indagar o que nós estamos fazendo e por quê [... ]" .J9 Sob esta perspectiva, é sintomático o depoimento de Keneth Watson, estudante de pós-graduação na Duke University: Cursos baseados na periodicidade, movimentos e "escolas", nos cânones e gêneros tradicionais, no estudo continuado de autores particulares, constituem os currículos literários de muitas universidades, e a maior parte dos professores de literatura formou-se nestes currículos, examinou-os extensivamente, e continuamente questiona os valores e pressupostos em que se baseavam. A teoria aqui fornece meios para indagação envolvente e para a revisão da estrutura através da qual nós ensinamos e [fornece meios] de deslocar esta indagação, dos "comitee meetings" e periódicos especializados para a sala de aula, na qual tanto os estudantes quanto os professores se beneficiam dela e contribuem para ela. 2u E já que Watson verbalizou a questão "revisão da estrutura através da qual e na qual nós ensinamos", é bom recordarmos que, hoje em dia, recebemos no curso de Letras estudantes cujo baixo nível de leitura nos leva a supor que, na vida deles, tanto a literatura quanto os textos impressos em geral não ocupam um lugar importante, não são coisas a que eles atribuam grande valor: "O problema é estrutural, envolvendo a situação marginal da literatura dentro das culturas dos estudantes".21 Evidentemente, a não familiaridade prévia com a literatura apresenta efeitos concretos na sala de aula. Um deste efeitos é não podermos pressupor que o aluno tenha facilidade em, por exemplo, identificar intertextualidades ou em fazer ligações intertextuais. Como ele poderá identificar um texto dado como paródia ou pastiche de outro, se não conhece este outro? Como poderá identificar a ruptura de uma obra em relação às normas estéticas adotadas pelas obras que há precederam, se não conhece as obras (e as normas) precedentes? Como poderá entender textos teóricos que usam como parte de sua argumentação outros textos literários ou teóricos, que ele não conhece? É claro que a "não familiaridade prévia com a literatura" e o "baixo nível de leitura", a que nos referimos anteriormente, têm raízes mais fundas em nossa formação social. Afinal, embora não seja o caso de desenvolver este tema aqui, não podemos deixar de mencionar en passant que o Brasil passou de uma situação de analfabetismo quase integral da população a uma situação em que - havendo
19. Ibidem, p. 449.
20. Ibidem, p. 451.
21. CULLER, op. cit., p. 213.
A Crítica da Teoria -
22. Ibidem, p. 212.
23. Ibidem, p. 213.
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ainda enormes contingentes populacionais analfabetos - os alfabetizados são submetidos a um contexto cultural em que o audiovisual predomina e sufoca a escrita. Então, caberia perguntar: como o professor de uma área tão tradicionalmente vinculada à escrita, como é a área de Letras, deve posicionar-se diante desta cultura audiovisual? Várias respostas a esta questão podem ser enumeradas. Escolheremos duas, a título de provocação: 1. deve-se prover o aluno de todo o volume de conhecimento cuja carência se acredita ser o problema; 2. deve-se "discutir a literatura em sua relações com outras formas de escrita sobre a experiência humana [ ... ]".22 A primeira proposta apresenta alguns problemas de difícil resolução. Citaremos apenas um: a seleção daquilo que se considera "conhecimentos necessários ao aluno" estaria enraizada numa préavaliação do que se considera "conhecimento necessário", e esta seria, no momento atual, no mínimo problemática, visto que estamos há muito afastados da possibilidade de consensos genéricos, baseados em visões de mundo compartilhadas. No entanto, não podemos ignorar que a própria estrutura curricular já significa uma nítida opção institucional sobre os "conhecimentos necessários ao aluno". Quais seriam estes? Exatamente os "conhecimentos" configurados nas disciplinas escolhidas para constarem do elenco curricular. A segunda proposta parece corresponder ao caminho que os professores de literatura vêm trilhando ultimamente, e não apenas em universidades. Quem já deu aulas no primeiro e segundos graus no Rio de Janeiro sabe que é comum passar a idéia do gênero "poesia" aos alunos através da remissão a letras de música popular, ou a idéia de forma teatral através da remissão às telenovelas, pois tanto uma quanto outras são "produtos culturais familiares", isto é, fazem parte do universo audiovisual que atinge o aluno no seu dia-a-dia. Quanto a explorar a literatura "em suas relações com outras formas de escrita sobre a experiência humana", este é um caminho que já vem sendo trilhado em muitas universidades, usando principalmente textos de Filosofia, Semiologia, História, Antropologia, Psicanálise, entre outros. Será que esta exploração significa que nós, professores de literatura, aceitamos a sugestão de Culler, de que, "ao planej ar cursos de literatura, os professores pensem a literatura não como uma seqüência sacralizada de obras definidas pela história literária, mas como uma espécie escrita, um modo de representação, que tem um papel muito problemático nas culturas, em que nossos estudantes vivem?23 Creio que, se nos dirigirmos ao cânon, não para buscar respostas, mas para fazer perguntas, de certa maneira desestabiliza-
78 - Rev. Brasil. Li!. Comparada, nº 2 mos a própria idéia de "uma seqüência sacralizada de obras definidas pela história literária", que se constituiria desde sempre e para sempre no nosso universo de docência e pesquisa. Mesmo porque, em nosso percurso de indagações, também está previsto questionarmos o próprio conceito de literatura, depreendido a partir das normas estéticas propostas por estas "obras definidas" de que fala Culler. Ao pormos em questão as noções estabelecidas sobre o próprio objeto de nosso questionamento, acabamos fazendo com que os limites de demarcação conceitual do literário apareçam menos como fronteiras definitivamente estabelecidas do que como áreas a demarcar, extremamente dependentes do trabalho de topografia que se fizer. Se a nossa visão sobre a literatura não pode deixar de ser uma configuração enraizada em nossa própria autoconsciência social, ao corporificarmos esta visão em discurso, tornamo-la acessível mesmo aos que dela não compartilham, e ao mesmo tempo possibilitamos sua problematização para os que a adotam, pois podem vê-la, não apenas "de dentro" do contínuo fluxo de suas experiências pessoais, mas como uma construção discursiva diante de cujo significado pode posicionar-se. Corporificada em discurso, mesmo a nossa visão de mundo ganha alguma autonomia: transforma-se, de certa maneira, em um argumento exposto a outros, passando a fazer parte de um diálogo continuando, em que não nos reduzimos à nossa imagem de nós mesmos, porque buscamos o outro nas próprias questões que propomos.
A HISTÓRIA LITERÁRIA E A FORMAÇAO DE LEITORES
Marcia de Paula Gregorio Razzini
A idéia de que a literatura brasileira deve ser interessada (no sentido exposto) foi expressa por toda a nossa crítica tradicional, desde Ferdinand Denis eAlmeida Garrett, a partir dos quais tomouse a brasilidade, isto é, a presenca de elementos descritivos locais, como traço diferencial e critério de valor. Para os românticos, a literatura brasileira começava propriamente, em virtude do tema indianista, com Durão e Basílio, reputados, por este motivo, superiores a Cláudio e Gonzaga. ANTONIO CANDIDO, Formação da Literatura Brasileira. 6. ed., Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, vol. I, p. 28.
A difusão do ideário romântico, sobretudo a busca de raízes nacionais, deu início a alguns projetos históricos que tiveram sucesso no Brasil ao longo do século XIX, como a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a montagem da história nacional, a pesquisa etnográfica e, particularmente, a configuração de nossa história literária. Mais do que estabelecer o caráter nacional, preocupação de grande parte da produção literária romântica, pretendia-se a autonomia da literatura brasileira em relação à portuguesa, desdobrando-se muitas vezes em discussões sobre sua existência antes da inde-
80 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 pendência política. Os que a reconheciam desde os tempos coloniais não cessaram de procurar vestígios de brasilidade, traduzidos muitas vezes como topônimos, descrição de frutas, fauna, flora, nomes de índios, seus costumes e crenças. O Uraguai (1769) de José Basílio da Gama e o Caramuru (1781) de Frei José de Santa Rita Durão são sempre evocados pelos primeiros críticos e historiadores literários como obras que traduziam o nosso caráter nacional e como modelos que a poesia brasileira (no caso a poesia romântica) deveria seguir. E, apesar de ambos elegerem como herói principal o colonizador português, Basílio e Durão passaram a representar de forma irreversível a literatura nacional. O destaque que mereceram estas duas epopéias marca a fundação do indianismo enquanto vertente literária entre nós. Os primeiros historiadores de nossa literatura que defenderam o indianismo e o interesse pela natureza exuberante enquanto temas estéticos foram os estrangeiros Ferdinand Denis e Almeida Garrett. De forma prescritiva, Ferdinand Denis afirma a importância da obra de Durão' 'porque reveste caráter nacional, apesar de suas imperfeições, e assinala claramente o objetivo a que deve dirigir-se a poesia americana".1 Os fragmentos escolhidos por Denis para ilustrar o valor do Caramuru destacam costumes estranhos que podiam despertar a curiosidade dos europeus, leitores potenciais de sua obra escrita em francês. 2 Quanto a O Uraguai, Ferdinand Denis louva sua "correção de estilos", suas "particularidades poéticas" e sua "hábil descrição no Novo Mundo", selecionando trechos que focalizam o general Andrada e Cacambo. Ao contrário de Ferdinand Denis, que prefere as cenas masculinas de guerra entre índios e brancos, Almeida Garrett destaca os episódios femininos, das índias de ambas epopéias que morrem por amor, dando preferência a O Uraguai: Notarei por exemplo o episódio de Moema, que é um dos mais gabados, para demonstração do que assevero. Que belíssimas cousas da situação da amante brasileira, da do herói, do lugar, do tempo não pudera tirar o autor, se tão de leve não houvera desenhado este, assim como outros painéis?3 Justo elogio merece o sensível cantor da infeliz Lindóia, que mais nacional foi que nenhum de seus compatriotas brasileiros. O Uraguai de José Basílio da Gama é o moderno poema que mais mérito tem na minha opinião. Cenas naturais mui bem pintadas, de grande e bela execução descritiva; frase
1. DENIS, Ferdinand, Résumé de I'Histoire Litteraine du Portugal, suivi du Résumé de I'Histoire Littéraire du Brésilo Paris: Lecointe et Durey, 1826. Apud e trad. in: CESAR, Guilhermino. Historiadores e críticos do romantismo. "Resumo da História Literária do Brasil". Rio de Janeiro/São Paulo: LTC/Edusp, 1978, p. 57. 2. Descrição de alguns chefes indígenas inimigos de Diogo Álvares que se põem em guerra no Canto IV, a cena do festim antropófago dos vitoriosos no Canto V e a descrição de algumas flores nativas feita por Diogo ao rei da França no Canto VII.
3. GARRETT, João Batista da Silva Leitão de Almeida, Parnaso Lusitano ou Poesias Seletas dos Autores Portugueses Antigos e Modernos. "Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa". Paris: Aillaud, 1826. Apud. CESAR, Guilhermino. Op. cit. pp. 90-91.
A História Literária ... -
4. Idem, ibidem, p. 91.
5. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Florilégio da poesia brasileira. Lisboa: Imprensa Nacional, 1850-53, 3 vols., (2. ed., Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira de Letras, 1946, "Ensaio Histórico sobre as Letras no Brasil", p. 35).
6. Idem, ibidem, p. 15.
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pura e sem afetação, versos naturais sem ser prosaicos, e quando cumpre sublimes sem ser guindados; não são qualidades comuns. Os Brasileiros principalmente lhe devem a melhor coroa de sua poesia, que nele é verdadeiramente nacional, e legítima americana. 4 Desconsiderando a hipótese de coincidência e a de consenso estético (que elegesse os trechos de Lindóia e de Moema como os melhores), pode-se dizer que as opiniões de Garrett influenciaram bastante os críticos e historiadores brasileiros, principalmente sua citação das passagens que traçam o destino trágico das duas índias, pois a maioria das histórias literárias, antologias e compêndios escolares posteriores a ele passaram a repetir o trecho do Canto IV de O Uraguai, que narra a morte de Lindóia, e o trecho do Canto VI do Caramuru, que narra a morte de Moema. João Manuel Pereira da Silva, citando Garrett, inclui estes trechos em seu Parnaso Brasileiro (1843). Eles aparecem no Florilégio da Poesia Brasileira (1850), de Francisco Adolfo de Varnhagen que retomando a crítica feita por Almeida Garrett a O Uraguai, de poema pouco limado, (e ao contrário deste) prefere o Caramuru, considerando-o um "poema mais acabado que" O Uraguai e que "oferece um tipo de resignação cristã, e de virtudes conjugais".5 No começo de seu "Ensaio Histórico", Varnhagen destaca o caráter civilizatório da literatura e a importância da cultura clássica, motivos que podem explicar sua preferência pelo Caramuru, construído nos moldes camonianos, onde a primazia heróica estava só com os brancos e os índios eram retratados como feras ignorantes: A América, nos seus diferentes estados, deve ter uma poesia, principalmente no descritivo, só filha da contemplação de uma natureza nova e virgem; mas enganar-se-ia o que julgasse, que para ser poeta original havia que retroceder ao abc da arte, em vez de adotar, e possuir-se bem dos preceitos do belo, que dos antigos recebeu a Europa. O contrário podia comparar-se ao que, para buscar originalidade, desprezasse todos os elementos da civilização, todos os preceitos da religião, que nos transmitiram nossos pais. Não será um engano, por exemplo, querer produzir efeito, e ostentar patriotismo, exaltando as ações de uma caterva de canibais, que vinha assaltar uma colônia de nossos antepassados só para os devorar?6
82 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 o Cônego Fernandes Pinheiro também inclui estes trechos no Curso Elementar de Literatura Nacional (1862), adotado no então Imperial Colégio de Pedro 11 em seu Curso de Retórica, Política e Literatura Nacional. Celebrando O Uraguai como o "primeiro poema brasílico tanto na ordem cronológica, como na perfeição da obra",7 diz o Cônego do trecho de Lindóia: Com as mais finas cores pinta Basílio da Gama a morte da Cleópatra guarani; e cremos que nenhuma alma sensível deixará de enternecer-se com tão patético quadro. 8 A comparação entre Cleópatra e Lindóia é sugerida por Basílio no mesmo Canto IV que usa do epiteto "Fastosa Egípcia". Entretanto, parece que a alcunha de "Cleópatra guarani" não teve êxito no ambiente literário. Apenas Caldas Aulete em sua Seleta Nacionar nomeia o excerto da morte de Lindóia com o título "Morte de Cleópatra Guarani" . Quanto ao Caramuru, o Cônego não apenas retoma, mas cita ipsis litteris Almeida Garrett e, sem descartar Paraguaçu, chama atenção para o episódio de Moema, o qual considera (ao contrário de Varnhagen) inferior ao de Lindóia: Tempo é de falarmos do episódio de Moema, o mais bem acabado de toda a obra. Não obstante os gabos que se lhe tem feito, julgamo-lo muito inferior ao de Lindóia e descobrimos nele certo ar declamatório sumamente prejudicial ao patético que tinha em vistas produzir. lO Ferdinand Wolf, leitor de Almeida Garrett, Pereira da Silva e Varnhagen, entre outros, também insere os mesmos excertos em seu Le BrésilLittéraire (1863). Ao comentar as epopéias, Wolf expressa a importância delas enquanto obras formadoras do nosso caráter nacional, destacando-as como fundadoras do indianismo no Brasil: Assim, José Basílio da Gama e Durão mais não puderam fazer que preparar Magalhães e Gonçalves Dias. Este fato exerceu uma grande influência sobre o desenvolvimento da literatura do Brasil para que o ponhamos de lado e deixemos de assinalar, em nossos dois poetas, de um lado o amor da pátria e os primeiros sintomas de sentimento nacional, e de outro lado a dependência da metrópole e suas inevitáveis conseqüências. [... ] Malgrado seus defeitos, a Durão e José Basílio cabe o mérito
7. PINHEIRO, Cônego Joa· quim Castano Fernandes. Curso Elementar de Literatu· ra Nacional. Rio de Janeiro: Garnier, 1862, p. 416.
8. Idem, ibidem, p. 420.
9. AULETE, F. Júlio Caldas. Seleta Nacional. Curso Prático de Literatura Portuguesa. 17. ed. Lisboa: Parceria Antônio Maria Pereira, 1909.
10. Op. cil. pp. 432-433.
A História Literária ... -
11. WOLF, Ferdinand. Le Brésil Littéraine- Histoire de la Littérature Brésilienne. Berlim: A. Asher & Co., 1863.Apud CÉSAR, Guilhermino. Op. cil., pp. 159-160.
12. ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. 7. ed., Rio de Janeiro: José OlympionNL-MEC, 1980, v. 2, p. 418.
13. Idem, ibidem, p. 420.
14. Foi observada também a presença dos trechos de Lindóia e de Moema em antologias contemporâneas como a de PéricIes Eugênio da Silva Ramos, Massaud Moisés, Sérgio Buarque de Holanda, Marques Rebelo e José Guilherme Merquior, e nos livros didáticos de José Maria de Souza Dantas, Jorge Miguel, Fernando Teixeira de Andrade, José de Nicola, Carlos Faraco e Marto Moura.
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de terem retratado os indígenas da América muito antes de Cooper e Longfellow. Muitas das figuras que criaram, tais como Cacambo, Cepé, Jararaca, Lindóia, Paraguaçu, Moema, tornaram-se tipos na poesia brasileira. O Uraguai e Caramuru popularizaram-se dia a dia, cada vez mais, [... ]11 Sílvio Romero, apesar de não incluir excertos em sua História da Literatura Brasileira (1888), aponta Basílio como precursor do romantismo nacional aliando sua epopéia à de Durão para atribuir aos autores o mérito de serem os preparadores da nossa Independência. Considerando os defeitos e qualidades dos dois poemas, Sílvio Romero acha o Caramuru superior a O Uraguai: O Uraguai salva-se por ser um fragmento mais épico-lírico do que puramente épico, salva-se, repito, pela forma que faz de Basílio o genuíno precursor do romantismo nacional; [... ] Há por todo o poema versos de muita beleza, como depois poucos foram escritos no Brasil. A descrição da enchente do Uruguai, a do incêndio dos campos, as proezas e morte de Cepé, o episódio de Lindóia, e outras cenas, são dos mais belos fragmentos da poesia nacional. 12 O Caramuru apareceu em 1781. É o poema mais brasileiro que possuímos; pela apreciação do problema étnico, pela compreensão do elemento histórico, e pelo justo equilíbrio concedido ao colono português entre os caboclos, é superior ao Uraguai. [... ] Tal é o sopro do patriotismo, são tão bem pintadas algumas de nossas cenas naturais e alguns de nossos fatos históricos, que o livro é tão perdurável, quanto o for a atual nação brasileira. [... ] O poema tem, além disto, belos espécimens de poesia. O episódio de Moema é deste gênero. 13 Esta rápida passagem pelas histórias literárias dão uma idéia da recepção de críticos e historiadores para O Uraguai e o Caramuru no século XIX. Com o passar do tempo a quantidade de excertos escolhidos nas antologias foi rareando, especialmente nas escolares, como na de Mello Moraes Filho, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, de Eugênio Werneck, sobrevivendo em algumas apenas os episódios a morte de Lindóia e da morte de Moema. 14 O Uraguai de José Basílio da Gama apesar de ter sido composto para enaltecer a posição dos portugueses na contenda entre o trono e os jesuítas pela posse das Missões, acaba determinando a
84 - Rev. Brasil. Li!. Comparada, nº 2 ascendência heróica do índio ao retratá-lo como vítima que, espoliado pelo branco jesuíta, sucumbe ao poder militar luso-espanhol numa espécie de martírio cristão. A força poética do elemento indígena no poema de José Basílio está concentrada na defesa de sua cultura e na inviabilidade de mantê-la, sendo que a morte de Cepé e a de Cacambo são resultado imediato do confronto pela posse da terra, enquanto a morte voluntária de Lindóia representa sua fidelidade ao esposo, recusando casar-se com o branco antagonista Baldeta, o qual esperava obter desta união a autoridade de chefe que tinha Cacambo. Apesar do mérito estético, a repetição isolada nas antologias do trecho que narra a morte de Lindóia descontextualiza seu significado no poema, atenuando o conflito territorial e transformando Lindóia em típica heroína romântica. A inferioridade dos índios em relação aos brancos, fadados ao desaparecimento, vista em O Uraguai como inocência, enquanto a posse das terras é disputada entre portugueses e jesuítas, é tratada no Caramuru de Frei José de Santa Rita Durão como superstição, índice de barbárie e justificativa da empresa colonialista. No Caramuru a primazia heróica está somente com o homem branco, Diogo-Caramuro, enquanto os índios opositores são retratados de forma grotesca e os índios aliados como medrosos e subservientes. É importante assinalar que o trecho mais repetido do Caramuru nas antologias põe em evidência uma personagem secundária, a índia Moema, deslocando a personagem central, Paraguaçu-Catarina, que para figurar como heroína no poema sofrera um processo de branqueamento, com características físicas e morais de branca civilizada, cuja missão era casar-se com Diogo fundando uma descendência mestiça ao mesmo tempo que dava como dote a licença dos índios para a exploração colonial. O episódio da morte de Moema é periférico no poema e serve para ilustrar sua barbárie, de não querer aceitar a monogamia de Diogo,IS entretanto a cena isolada faz da índia sua amante. A repetição dos trechos de Lindóia e de Moema no século XIX parece ligar o culto romântico de heroínas nativas com alguma neutralização dos confrontos pela posse da terra determinando, de certa forma, o gosto dos leitores de antologias e propiciando a recepção da literatura indianista. A permanência destes trechos contribui para que sejam considerados símbolos das obras que exemplificam, uma espécie de emblema do caráter nacional prescrito pela história literária romântica e nunca contestado, sinalizando uma certa tradição que até nossos dias forma o gosto do estudante de literatura brasileira.
15. Apesar dos cronistas, os quais o autor se baseou para escrever a epopéia, dizerem o contrário, Santa Rita Durão retrata Diogo Álvares fiel a Paraguaçu.
A História Literária ... -
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BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Fernando Teixeira de. Literatura I - Coleção Objetivo. São Paulo: CERED, 1987. (Curso e Colégio Objetivo, SP) AULETE, F. Julio Caldas. Seleta nacional. Curso prático de literatura portuguesa. 17. ed., Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira, 1909. BARRETO, Fausto & LAET, Carlos de. Antologia nacional. 6. ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1913. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 6. ed., Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. CANDIDO, Antonio & CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira. 3. ed., Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. CESAR, Guilhermino. Historiadores e críticos do romantismo. Rio de Janeiro/São Paulo: LTC/Edusp, 1978. DANTAS, José Maria de Souza. Novo manual de literatura. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1979. DURA0, Frei José de Santa Rita. Caramuru. Poema épico. Rio de Janeiro: Garnier,
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A BIBLIOTECA LUSITANA, TETRA VÔ ILUSTRE DA , HISTORIA DA LITERATURA EM LíNGUA PORTUGUESAl Morisa Lojolo
De todas as produções literárias, com que os maiores sábios eternizarão a sua fama nos Anais da Posteridade, nenhuma lhes mereceu mais gloriosos elogios, e célebres aplausos que o laborioso estudo de uma Bibliotheca, onde pelo impulso de suas penas renascem à nova vida os escritores, que a tinham alcançado imortal na República das Letras. 2 1. A pesquisa da qual este trabalho faz parte foi financiada por bolsa de pesquisa do CNPq, tendo se beneficiado igualmente de pós-doutorado desenvolvido na John Carter Brown Library (Brown University) com financiamento da FAPESP ao qual somou-se auxílio da Fundação VITAE e da John Carter Brown Library. 2. BARBOSA MACHADO, Diogo. Biblioteca Lusitana Histórica, crítica e cranológica [... ]. Lisboa, 1741. 3. BARBOSA MACHADO, Diogo. Biblioteca Lusitana Jlist6rica, crítica e cronológica [... ]. Lisboa, 1741.
A
Biblioteca Lusitana Histórica, Crítica e Cronológica na qual se compreende a notícia dos autores portugueses, e das obras, que compuseram desde o tempo da promulgação da Ley da Graça até o tempo presente,3 escrita por Diogo Barbosa Machado, Ulyssiponense Abade da Paróquial Igreja de Santo Adrião de Sever, e Acadêmico do Número de Academia Real foi impressa na Officina de Antônio Isidoro da Fonseca em 1741, e oferecida a Augusta Majestade de D. João V. Produzida sob os auspícios da Academia real de História (fundada em 1720 pelo mesmo D. João V), esta obra, a tantos títulos fundadora, fornece matéria exemplar para a reflexão sobre alguns tópicos à luz dos quais se inaugura em língua portuguesa, a tradição ocidental da história da literatura. Por antiguidade tetravô da história brasileira, não falta para estabelecer-lhe remoto e premonitório laço de parentesco com a
88 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 acanhada situação cultural do Brasil, (naquele idos d'antanho colônia portuguesa) uma coincidência curiosa: Isidoro da Fonseca, tipógrafo que a imprimiu, parece encarnar os percalços da tradição da imprensa no Brasil: arrostando os decretos portugueses que proibiam atividades tipográficas na Colônia (e, segundo Hallewell, tentando ressarcir-se dos eventuais prejuízos que a impressão da obra tão pouco lucrativa como a Biblioteca Lusitana lhe trouxe ... ), para cá transladou, no século XVIII, sua oficina tipográfica para vê-la confiscada e destruída em pouco tempo.4 É como se, por algum distorcido senso de humor da história, sendo inaugural em língua portuguesa, a obra de Barbosa Machado já apontasse, nessa fortuita coincidência, questões com as quais terá de lidar, mais tarde, a história literária brasileira. As justificativas com que Diogo Barbosa Machado argumenta em favor de sua obra inscrevem-na no movimento geral de dotar as emergentes nacionalidades européias de histórias de literatura, desenvolvida a partir de reformatação de antigas bibliotecas, o que, de certa maneira, já aponta o relativo arcaismo do modelo de obra escolhido pelo Cônego: já desde o século XVI registram-se Bibliotecas, sendo, inclusive, uma delas, a Biblioteca Universalis de Gesner, mencionada pelo próprio Barbosa Machado. Entre as razões invocadas para a fatura de sua obra em quatro volumes Barbosa Machado elenca as seguintes: a. Estilmuladas de ambição da glória as mais célebres nações do mundo querendo estender a sua fama, assim como a tinham dilatado com as espadas, perpetuarão nos monumentos literários das bibliotecas os admiráveis progressos que fizeram em todas as faculdades;5 b. Entre todos os reinos e cidades da Espanha, que com gloriosa emulação compuseram bibliotecas para perpertuar na república das letras os nomes de seus naturais, unicamente Portugal se não jactava de semelhante brasão; c. [... ] merecendo seus insignes filhos, que o mundo conhecesse pelos mudos caracteres da impressão os frutos de sabedoria (que) com portentosa fecundidade tinham produzido; d. Depois de examinados com escrupulosa observação não somente os nossos livros históricos, mas grande parte dos estranhos, e extraídas deles as notícias pertencentes a esta biblioteca, as procurei com desvelo em várias livrarias, onde eram depósito de muitos escritores portugueses cujas obras não lograram o benefício da luz pública, onde colhi copioso fruto, como também de pessoas eruditas,
a
4. HALLEWELL. Lawrence. In: O Livro no Brasi~ sua história. HalIewelI assinala em 1747 a presença da impressora de Antônio Isidoro da Fonseca no Rio de Janeiro levantando, como hipótese para sua arriscada imigração, as dívidas contraídas por ocasião da impressão da obra de Barbosa Machado (pp. 14-20).
5. As ci tações de Barbosa Machado, por serem muito numerosas, serão antecedidas
de letras, como objetivo de facilitar posteriores referências a elas.
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que zelosas de imortal fama da nação portuguesa, se interessaram em tão ilustre empresa.
6. CAMÓES, Luis de. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora LIda., s/do p. 337.
7. A biblioteca inclui, entre seus nomeados, santos, reis e até mulheres. A seleção dos
tópicos das biografias, além de ter sempre um sentido plutarquiano, faz ombrear o discurso objetivo de datas e localizações geográficas com outro, frouxo e impressionista, resultando a leitura moderna num texto deliciosamente hibrido, surrealista quase, como se pode ver nos excerto transcrito: "Santo Antonio imortal glória, e ilustre brasão do reino de Portugal, e particularmente da famosa Lisboa, que foi o venturoso berço de tão ilustre Taumaturgo dilatando mais vastamente a fama do seu nome com a produção deste grande filho, do que o tinha alcançado pela fundação do Capitão Ulisses. No faustlssimo dia 15 de agosto consagrado a Triunfante Assumpção de Maria Santissima do ano de 1195. (p. 184) [... ] como lhe perturbasse a quietação, que apetecia seu espirito, as freqüentes visitas de parentes, e amigos, se retirou para o convento de Santa Cruz de Coimbra [... ]. Como depositário da Divina Onipotência, usou tão despoticamente de seus poderes, que teve sujeita a seu domínio a natureza, sendo o principal empenho de sua beneficiência restituir olhos aos
As transcriações acima sublinham traços importantes do discurso que molda as bibliotecas antecipando, nesta modelagem, sua natureza precurssora de histórias da literatura. Ressalta, nas três primeiras citações, o substrato nacionalista do projeto da Biblioteca, ao qual não faltam, inclusive, ecos de versos em que Camões apresenta a D. Sebastião suas credenciais de ter para servir-vos, braços às armas feito; para cantar-vos, mente às Musas dada. 6 Esta antiga aliança entre Armas e Letras reafirma-se nas lo as ao Rei a quem Barbosa Machado dedica a obra: é para os presumidamente atentos (e pretendidamente benévolos ... ) ouvidos de D. João V, que o autor da Bibijoteca frisa que tudo o que fez foi feito
e. em obséquio desta Monarquia, sempre respeitada pelas Armas, e agora mais gloriosa pelas letras, da qual seja V. Majestade Soberano Árbitro por tantos anos quantos são os vassalos, que lhe obedecem nas quatro partes do Mundo medindo-se a duração de seu Reinado pela suavidade de seu domínio [... ]; O mesmo prólogo torna-se também sugestivo pelo que ensina (sobretudo para o habitante deste informatizado e trepidante fim de século ... ) relativamente à importância e abrangência das Bibliotecas. Enfeixando informações referentes aos mais diferentes campos e agentes do fazer e do saber humanos,? as Bibliotecas, tal como as apresenta Barbosa Machado, além de não se confinarem a assuntos e temas de literatura, configuram-se como forma então moderna de organização e arquivo de conhecimento, uma vez que representam
f. [... ] eruditos Anphitheatros em cuja espaçosa circunferência aparecem animados os Oráculos de todas as ciências, que para nunca emudecerem deixaram impressa nos fecundos partos de seus engenhos a mais nobre de todas as potências. Os conteúdos que a Biblioteca Lusitana elenca, aliados à sobriedade impessoal da voz passiva que os enuncia, sugerem a objetividade e abrangência pretendidas por obras de tal feitio, que põe lado a lado santos (cf. excertos g e h), heróis nacionais e escritores; esta fraterna democracia entre o Céu, o Paço e as Letras, sem dúvida amplia muito o sentido da expressão autores portugueses, e das obras, que compuseram que Barbosa Machado registra como sendo o assunto de seu livro. Fruto já de uma civilização que faz da escrita linguagem privilegiada de registro dos saberes (cf. excerto o) a Biblioteca soma informações bio e bibliográficas a juízos de
90 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2' p) registrando, no elenco de seus pontos altos, tópicos polêmicos: questões de autoria (cf. excertosj e n), de cronologia e local de nascimento e morte (cf. excerto g, j e l), fixação de uma variante como fidedigna (cf. exCerto o e p) & similares questiún-
mlor (cf. excerto
culas que provavelmente tiravam o sono aos letrados da época, sendo portanto, apregoadas na abert,ura da obra, como marcas de seu valor: g. [... ] se fazem patentes as Pátrias, que ilustram com seus nascimentos, como os lugares que foram religiosos depósitos de suas cinzas; h. Relatam-se as ações memoráveis de suas vidas para documentos exemplares de vida moral, e política; i. Com a luz sempre clara de Chronologia se des.terram as sombras dos Anacronismos, que confundem a verdadeira época dos Annos; j. Restitui ao seu verdadeiro Author a obra injustamente usurpada pela afectada sciência dos plagiários; I. Defende-se com fundamentos sólidos o berço em que se animaram alguns de seus ilustres filhos contra a opinião mal fundada de outras Nações ambiciosas de tão grande glória; m. Aparece justificada a inocência de outros falsamente acusada no Tribunal de maledicência; n. Declara-se o nome de muitos modesta, ou maliciosamente oculto, e com enigmáticas figuras de anagramas, e letras iniciais disfarçado; o. Ressuscitam-se das urnas dos Arquivos as Obras M. S. a quem a Arte Typográphica negou o benefício da luz pública; p. Últimamente se assinam as diversas impressões de cada livros, e qual delas seja a mais correta e estimável.
Em inúmeros momentos, como já se antecipa nos excertos acima, Barbosa Machado articula de forma orgânica e consistente a produção e armazenamento de conhecimentos sob a forma de bibliotecas com o estabelecimento e difusão da imprensa, assinalando: 1. as vantagens do registro escrito de conhecimeritos oralmente transmitidos (cf. excerto s, onde os termos sublinhados remetem ao mundo da oralidade); 2. a exigência de intertextualidade de projetos históricos (cf. excerto r, trecho sublinhado) e 3. a dificuldade e retardo que, em Portugal, circundaram a difusão dos benefícios da imprensa (cf. excerto q, trecho sublinhado; excerto r, trecho sublinhado com traço duplo): q. [... ] somente lhe faltava (a Portugal, mI) para último complemento de sua glória publicar a Biblioteca dos Autores, de que foi
cegos, ouvidos aos surdos, língua aos mudos, juIzo aos loucos,liberdade aos cativos, e vida aos mortos. Foi Apóstolo no Oficio, Mártir no desejo, Doutor na Ciência, e Virgem por privilégio. Vaticinou o futuro, revelou o en· coberto, ilustrou Lisboa com o nascimento e honrou Pádua com a sepultura [... ] em 29 de abril de 1263, trinta e dois anos passados depois da sua morte [... ] aberto o cofre [... ] se achou o corpo resoluto em areia, e a língua contra o imo pério da morte, e o tempo, viva, e incorrupta, e depois de lhe fazer o Seráfico Doutor um breve elogio, a colocou em um cofre de cristal.
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fecundíssima Mãe, e ser notório aos outros Reinos lhes não era inferior Portugal, assim em o número, como na qualidade dos Escritores. Não faltaram doutíssimos Portugueses que com grande desvelo empreenderam este grande assunto, de que logo darei uma breve relação, mas como as laboriosas vigílias, que dedicaram a este estudo, não lograram o benefício da luz pública, não se comunicou a sua utilidade à República Literária; r. Depois de examinados com escrupulosa observação não somente os nossos livros históricos, mas grande parte dos estranhos, e extraídas deles as notícias pertencentes a esta biblioteca, as procurei com desvelo em várias livrarias que eram depósitos de muitos Escritores Portugueses, cuias obras não lograram o benefício de luz pública, onde colhi copioso fruto, como também de pessoas eruditas, que zelosas de imortal fama da Nação Portuguesa se interessaram em tão ilustre empresa. s. [... ] atendendo igualmente pela glória da Pátria e da sua Religião se empenharam com louvável emulação e comunicar-me benevolamente as notícias dos Religiosos que nos seus Claustros foram vigilantes cultores das ciências ...
À moldura nacionalista do projeto português já apontada contrapõe-se uma curiosa nota ufanista, que reponta no excerto t, relativo a oscilações na escolha da língua na qual Barbosa Machado escreverá seu texto: t. Determinado estava a escrevê-la na língua Latina, na qual não pequena parte tinha composto, mas arrependi-me da resolução, considerando que seria infrutuoso este meu trabalho para muitos Portugueses, que ignoram aquele idioma, o qual possuindo indubitavelmente entre todos o principado, lhe preferem com indiscreta eleição o estudo de outras línguas, que ainda que polidas, lhe são sumamente inferiores assim na majestade da Origem, como na energia da locução. Esta foi a causa que me moveu a que mudando de estilo, e de língua antepusesse a materna à Latina, para que a utilidade, que se pode colher da lição desta obra, fosse a todos patente; Não deixa de ser intrigante a informação de que o projeto inicial de Barbosa Machado contemplava a redação de sua Biblioteca Lusitana em Latim. Não insinua tal determinação uma certa birra anti-vernácula de fundo talvez aristocrático & eclesiástico, sendo Monarquia e Igreja instituições de contorno supra-nacional e, assim, tendo por expressão adequada uma língua internacional como o Latim? O caso é que, de qualquer forma, a confessada predisposição latina do Autor e sua posterior opção pelo Português parecem dar bem
92 - Rev. Brasil. Lil. Comparada, nº 2 a medida das ambiguidades da cultura portuguesa do tempo, as quais - traduzidas nas contradições do projeto intelectual de Barbosa Machado - explicam a ambivalência de um projeto que, ao menos em seus albores, tinha contornos simultaneamente latinos, patrióticos & nacionalistas! N este sentido, é interessante observar que as razões pelas quais Barbosa Machado acaba capitulando à última flor do Lácio são de ordem pragmática: o excerto t informa que o Autor cede ao vernáculo em detrimento do Latim pelo fato de muitos portugueses ignorarem tal idioma o que sugere uma já bastante moderna preocupação com a circulação de sua obra, insinuando talvez que os segmentos familiarizados com a cultura clássica, já são insuficientes como públicoalvo para obras como a Biblioteca Lusitana. 8 Interessa agora assinalar que marcas muito semelhantes às até agora discutidas mantém-se em textos portugueses posteriores ao século XVIII, dando assim, mais verossimilhança e força ao parentesco postulado entre estas matrizes da história literária portuguesa e algumas marcas discursivas e metodológicas presentes nos primeiros projetos e produtos da história da literatura brasileira já no século XIX. No Primeiro ensaio sobre história literária de Portugal desde a sua mais remota origem até o presente tempo [...V texto publicado em 1845, mais de cem anos portanto depois da Biblioteca Lusitana, reencontraram-se vários tópicos e valores presentes na obra de Barbosa Machado. Seu autor, Francisco Freire de Andrade, começa por frisar o gigantismo da empreitada que parece crescer ainda mais pela demora de sua realização, cujo início, como aponta o Autor, antecede de trinta anos sua publicação: A obra que vai agora ser publicada pela imprensa foi começada a escrever em 1814 [ ... ]
8. Em Frei Luís de Souza, obra de 1844, Garretl recria Portugal nos primeiros anos do domínio espanhol (15801640) e, na cena de abertura da peça, conversa de Dona Madalena de Vilhena (que lia Os Lusíadas) com Telmo Pais registra a dificuldade de acesso a textos vernáculos: a Bíblia em Português é referida por Telmo Pais como mencionada apenas por protestantes: "[ ... ] Mas, minha Senhora, isto de a Palavra de Deus estar assim noutra língua que a gente ... que toda a gente não entende... confesso-vos que aquele mercador inglês da rua Nova, que aqui vem às vezes,
tem-me dito suas coisas que me quadram... E Deus me perdoe, que eu creio que o homem é herege, desta seita nova de Alemanha ou de Inglaterra. Será?" (pp. 55-56). 9. FREIRE DE ANDRADE, Francisco. Primeiro ensaio
Se a demora da publicação talvez reforce a idéia das dificuldades que, ainda no século XIX circundavam a produção da intelectualidade portuguesa, entre a razões que Freire de Andrade elenca para a escritura de sua obra, ele destaca, como já o fizera um século antes Barbosa Machado, o desconhecimento em que jazia a produção literária poruguesa: o esquecimento ou se quer, desleixo, em que via jazer, com grande dissabor o seu, esta parte tão rica de nossa história. Sempre nos calcanhares de Barbosa Machado, Freire de An-
sobre hist6ria literária de Portugal desde a sua mais remota origem até o presente
tempo, seguido de diferentes opúsculos, que servem ... Lis·
boa, 1845.
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drade contrapõe a tal desconhecimento a existência de história literárias de outras nações porventura não melhor aquinhoadas, do que a portuguesa, neste gênero de glória, porém de certo menos incurosas do que nós, em fazerem valer os seus títulos de honrada reputação [... ] as quais já contavam com o registro de tal produção, dado que [... ] possuiam já há muito suas Histórias literárias, e delas algumas escriptas com a maior perfeição (p. 8):
o texto de Freire de Andrade sugere ainda, como de resto j á o sugerira a obra de Barbosa Machado, o caráter cumulativo de projetos como o seu, de vez que o autor sente-se obrigado a justificar a falta de referências, em seu trabalho, à obra de Ferdinand Denis argumentando que [... ] no ano de 1814, em que o Autor começou a escrever as suas Memórias históricas, não tinha aparecido ainda o Resumo de História Literária de Portugal, escrito po Mr. Ferdinand Denis, e só impresso no ano de 1826; nem de tal assunto se haveria talvez ocupado ainda ilustre literato (p. 8)
10. Como o próprio Freire de Andrade indica, as obras tidas por detratoras da literatura portuguesa são o quarto capítulo do Canspec/, Rcipubl. Littcr. de Heuman, o sétimo parágrafo do capítulo 5 da Biblia/. His/or. Littcr. de Jena editada em 1752 por Jugler, o chap. 38 de Siec/e de Louis XN de Volta ire, tomo 1 capo 20 e tomo 2 capo 38 Voyagc cn Portugal de Link, o capítulo 45 do tom 2 de Voyagc en ci-dcvan/ Duc de Chate/ct cn Portugal...&c de Ou Chatelet e, finalmente, a Voyage en Portugal, ct particularemcnt à historique, ou Tablcau Moral de Pedro Carrere de 1798.
Justificar a omissão de Ferdinand Denis aponta a necessária intertextualidade de projetos de cunho histórico, a qual se reafirma na expressão das discordâncias que o Autor nutre relativamente a outros escritores que se ocuparam da literatura portuguesa, inc1uindo-a de permeio a outras observações de viagem. Freire de Andrade pretende ajustar contas com alguns das olhares estrangeiros que se detiveram por sobre o panorama da literatura portuguesa, referindo que a segunda e não menos poderosa razão que moveu o Autor a escrever algumas Memórias sobre a História literária da sua nação, foi o ver com quão pouco respeito diferentes escritores estrangeiros se haviam intrometido a falar da nossa literatura, e até o descrédito sobre ela tinham pretendido lançar, como foram, entre outros, um Heuman, um Jugler, um Voltaire, um Link, um Du Chatelet, um Pedro Carrere.lO(p. 9) Judiciosamente, no entanto, Freire de Andrade também regis-
94 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, n~ 2 tra obras anteriores à sua, cujas referências à literatura portuguesa ele endossa. [... ] todavia não faltaram também outras, que, melhor informadas, mais esclarecidas ou imparciais, tem escrito acerca deste mesmo assunto com a exação devida, e dando os merecidos louvores [... ] (pp. 12-13) identificando tais obras como a Lettre 187 e 189 do tomo XV de Le Voyaeur trançais de Delaport, ou as notas e suplemento as Capo 15 da Viagem de Chatelet a Portugal (Paris An VI 2 tom de 8 gr) de Bourgoing, ou a Introduction a la Poesia Lyrique Portugaise, ou Choix des odes de Francisco Manoel, traduites en Français, a de Ferdinand Denis e a de Sismonde de Sismondi. Finalmente, ainda e sempre como Barbosa Machado, Freire de Andrade inclui, nas considerações gerais sobre sua obra, o projeto civilizatório do qual ela faz parte: para ilustração, pois assim dos estrangeiros como dos seus próprios nacionais, que com tamanha sem-razão tem em menospreço o literário de Portugal, e por ver se desperta nos seus compatriotas o antigo, ainda hoje algum tanto adormecido gosto da literatura e Língua Portuguesa (pp. 12-13) Identificam-se assim, nos objetivos, justificativas, modos e condições de produção a qual alude Freire de Andrade, ecos muitos próximos das falas que, lá longe, no século XVIII, tinham selado algumas diretrizes do projeto pioneiro de Barbosa Machado. E entre os dois (mas de certa maneira enviesada posterior a ambos ... ) encontram-se diretrizes similares em projetos levados a cabo bem mais tarde, num Brasil já independente: J anuário da Cunha Barbosa que entre 1830 e 1834 dirige a Imprensa Régia no Rio de Janeiro, organiza, em 1829 o primeiro tomo de seu Parnaso brasileiro. Nas considerações Ao público com que justifica sua obra elenca razões semelhantes às invocadas pela Biblioteca do outro Barbosa: o amor à pátria, a missão civilizatória das antologias e histórias literárias, a dificuldade de acesso às obras anteriores sobre a literatura brasileira, a precariedade da conservação de manuscritos e as vantagens da imprensa. Emprendi esta coleção das melhores Poesias dos nossos Poetas, com o fim de tornar ainda mais conhecido no mundo literário o Gênio daqueles brasileiros, que, ou podem servir
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de modelos, ou de estimulo à nossa briosa mocidade, que já começa a trilhar a estrada das Belas Letras, quase abandonada nos últimos vinte anos dos nossos acontecimentos Políticos. Os que se deram a semelhante tarefa na Inglaterra, França, Portugal e Espanha, de certo não tiveram tantas dificuldades a vencer, como as que encontro neste país, onde a Imprensa é moderna, e por isso os escritos, por mais de uma vez copiados, podem ser, em muitas partes, diferentes dos que saíram da pena de seus autores. São tais parentescos & parecenças que tornam sedutor o estudo comparativo entre diferentes projetos de historiografia literária, uma vez que parece que os fantasmas do castelo da história, perambulam soltos, e soltos assombram as ante-salas das histórias literárias, de aquém e além Equador ...
BIBLIOGRAFIA BARBOSA MACHADO, Diogo. Biblioteca Lusitana Histórica, Crítica e Cronologia na qual se compreende a notícia dos autores portugueses, e das obras, que compuseram desde o tempo da promulgação da Ley da Graça até o tempo presente. Lisboa, 1741. CAMÓES, Luís de. Os Lusíadas. (Emanuel Paulo Ramos, org) Porto: Porto Editora Ltda., s/do FREIRE DE ANDRADE, Francisco. Primeiro ensaio sobre história literária de Portugal desde a sua mais remota origem até o presente tempo, seguido de diferentes opúsculos, que servem ... Lisboa, 1845. GARRETT, J. B. da S. L. de Almeida. Frei Luís de Sousa. Viagens na minha terra. (Antonio Soares Amora, org.) São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965. HALLEWELL, Lawrence. O livro no Brasil, sua história. São Paulo: T.A.Queiroz/Edusp, 1985.
NEM LERO NEM CLERO: HISTORICIDADE E ATUALIDADE EM QUARUP DE ANTONIO CALLADO Ligia Chiappini
L 'histoire nous ratrappe, elle est à nos trousses MARCAUGÉ
A primeira edição de Quarup, de 1967, sai com uma "orelha" de Franklin de Oliveira, onde ele afirma a sua atualidade. Segundo o crítico, Quarup iria representar para a literatura brasileira do decênio de 60 o que Grande Sertão:Veredas, de Guimarães Rosa, tinha representado para a literatura brasileira do decênio de 50. A novidade de Quarup, interpretando a sua época, seria sobretudo expressar uma vontade de transformação. Nesse sentido, o livro irradiaria uma energia nova, o que levou tantos leitores da época a considerá-lo como o romance da revolução brasileira por excelência. É o caso de Ferreira Gullar e da sua leitura também feita no calor da hora:
1. Revista Civilização Brasi· D. 15, p. 252.
leira,
Isso é que é, na verdade, a Revolução Brasileira. E a gente acredita mais nela quandó surge, diante de nós um livro como Quarup, porque se vê nele que a revolução continua e se aprofunda, que ela ganha carne, densidade, penetra fundo na alma dos homens. O rio que vinha avolumando suas águas e aprofundando seu leito, até março de 1964, desapareceu de nossas vistas. Mas um rio não acaba assim. Ele continua seu curso subterraneamente, e quem tem bom ouvido pode escutar-lhe o rumor debaixo da terra.!
98 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 Já tive oportunidade de mostrar a parcialidade dessa leitura (no livro Quando a pátria viaja: Uma leiturà dos romances de Antonio Callado, Havana: Casa de las Américas; 1983) e de explicá-la pelo horizonte de expectativa dos leitores da época, que se constituía fundamentalmente em torno de experiências como a das ligas camponesas, do governo de Miguel Arraes em Pernambuco, do Movimento Estudantil, das campanhas de alfabetização pelo chamado método Paulo Freire, da virada popular de parte da igreja católica brasileira, do teatro e da poesia empenhados que se queriam "nacional e popular". Ou seja, um horizonte de expectativa exterior à obra de Callado e à própria literatura, tecido pelos discursos que expressavam e deslanchavam essas práticas políticas e c,ulturais, mas também um horizonte interno a Quarup e à tradição da literatura brasileira. Em primeiro lugar, porque o romance se relaciona estreitamente com esses discursos e essas práticas, tematizando diretamente o movimento revolucionário de Francisco Julião e seus seguidores, a experiência de Arraes e a tentativa de uma revolução pacífica, paralelamente às pregações da violência revolucionária, no embate das tendências do tempo. Em segundo lugar, porque o livro dialoga com obras fundamentais da nossa literatura, no mínimo, desde Gonçalves Dias e Alencar a Guimarães Rosa, passando por Mário de Andrade e perseguindo um filão que afirma o Brasil do interior contra o Brasil amaneirado e afrancesado do litoral. Hoje, sobretudo depois de estudos decisivos como a Formação da literatura brasileira de Antonio Candido se tornarem conhecidos, sabemos que essa sempre foi uma tradição ambivalente, a tradição da vertente nacionalista de nossa literatura que se caracteriza pelo movimento pendular entre cosmopolitismo e nacionalismo, vanguarda e regionalismo. Mas, naquele tempo, o mais visível era o segundo termo, base ideológica do projeto revolucionário, como também deixa claro a leitura de Ferreira Gullar: De fato, enquanto lia o romance, não podia deixar de pensar nos índios de Gonçalves Dias, em Iracema, de Alencar, em M acunaíma, de Mário de Andrade, em Cobra Norato, mesmo nos Sertões, de Euclides, em Guimarães Rosa. Pensava na abertura da Belém-Brasília, no Brasil, nesta vasta nebulosa de mito e verdade, de artesanato e eletrônica, de selva e cidade, que se elabora, que se indaga, que se vai definindo. 2 Esse leitor, como muitos outros no calor da hora, não apenas fazia uma leitura harmônica da tradição literária com que o romance dialoga, como também dele próprio e da realidade brasileira, do
2. Idem, ibidem.
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3. "Comment écrire )'histoiTe de France?", in: Magazine Littéraire, fev. 1993, n. 307.
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processo desenvolvimentista em curso, emblematicamente representado pela estrada Belém-Brasilia que, de repente, no texto do poeta-crítico, estabelece um trânsito livre entre a ficção e a realidade e entre a busca física do centro do País com o deslocamento da capital para Brasilia e a busca simbólica de uma identidade nacional. Contradição é uma palavra que não aparece nessa leitura. No entanto, o projeto revolucionário das ligas camponesas e o desenvolvimentismo nacionalista constituiam uma contradição que, mais tarde, revelar-se-ia insuperável. Ou seja, a revolução popular era incompatível com o nacionalismo e o desenvolvimentismo da burguesia. Mas Quarup resiste a essa leitura datada. Hoje podemos perceber isso, e essa é uma das razões da sua atualidade, entendendo agora atualidade no sentido da sua relação com o nosso hoje e não com o hoje de ontem, identificado por Franklin de Oliveira. De fato, Quarup falou aos leitores da década de 60, nacionalistas, desenvolvimentistas, populistas, anti-imperialistas, pequeno-burgueses e "revolucionários". Mas continua falando aos leitores de 90, ainda pequeno-burgueses, porém mais cosmopolitas e céticos tanto diante dos programas desenvolvimentistas e modernizadores quanto diante dos radicalismos de uma esquerda festiva. E consegue essa façanha porque é um livro profundamente histórico e profundamente artístico, desmentindo os preconceitos que freqüentemente levam a crítica a opor o histórico ao estético. Quarup é grávido de história, não apenas no sentido de que tematiza fatos da história recente do País, do suicídio de Getúlio Vargas ao golpe de 64, passando pela política de proteção (?) dos índios e pela luta camponesa, mas porque é ele mesmo história, enquanto memória e reconstrução do presente ou daquilo que os franceses, na esteira de Pierre Nora estão chamando hoje os "lieux de mémoire", lugares ao mesmo tempo materiais, funcionais e simbólicos, que permitem a retomada do passado no presente. O "lieu", nessa acepção, nunca é dado, mas é artifício, construído e permanentemente reconstruído. Como diz François Hartog, comentando a monumental história da França recém concluída por Pierre Nora e seus co-autores - Les fieux de mémoire, em sete volumes - "o que faz um bom 'lieux' é sua plasticidade, sua capacidade de mudar perdurando: por exemplo, a direita e a esquerda".3 Para Quarup, poderíamos tomar outros pares além desse que também nele existe: o centro e o litoral, o quarup e o banquete, os índios e os camponeses, o Xingu e o Catete, entre outros. O mesmo historiador citado acima acaba seu artigo com a hipótese de que Les lieux de mémoire, o livro ele mesmo, seria um
100 - Re\'. Br3sil. Li!. Comparada, nº 2 "lieu de mémoire". E o mesmo poderíamos dizer de Quarup. Sua atualidade e sua historicidade passam pelo trabalho que o romance realiza com uma série de "lieux de mémoire" e por ele próprio constituir-se em um, porque também ele é capaz de mudar enquanto perdura, pondo em cena, interrogando e obrigando os leitores a interrogar lugares-funções-símbolos da nossa memória individual e social, capazes de durar enquanto se transformam e que, por isso mesmo, exigem um trabalho permanente de decifração. A história dos "lieux de mémoire", ainda segundo Hartog, é uma história do presente, como os romances de Antonio Calladoque se fazem com recuo mínimo em relação aos acontecimentos que focalizam. Segundo ele próprio nos conta em Tempo de Arraes, enquanto Quarup se gestava, a história avançava mais rápida, atropelando o romance, porque o golpe de 64 surpreendeu a todos e fez envelhecer de um dia para o outro idéias, sonhos, certezas, palavras, atitudes e livros, que se supunham muito atuais. Por isso Quarup que queria a princípio comemorar, novo Retrato do Brasil vinculando diferentes Brasis por diferentes ritos, do Xingu ao Sertão, com rápidas passagens por rituais menos nobres no Rio de Janeiro, acaba encenando a (e nos convidando a refletir sobre a) distância entre os "lieux de mémoire" do Brasil pré-golpe e o "non-lieu" , a não memória que a tecnocracia dos militares traz à luz com a pós-modernidade de um Brasil que logo seria integrado não pela revolução mas pela Rede Globo. Mas Quarup que, a princípio, quer comemorar, atropelado pelo golpe, faz aparecer a verdadeira ruptura epistemológica que este representou para toda a intelectualidade brasileira, provocando a interrogação que segundo os comentadores do livro de Pierre Nora é típica dessa nova história: a interrogação "sobre o que somos à luz do que não somos mais" . Segundo Marc Augé, a história hoje tende a tornar-se atualidade. Atualidade, Quarup é ficção muito próxima da história, mas ao contrário desta não precisa retroagir nos séculos para interrogar o presente. A interrogação se faz pelo confronto de dois tempos e dois modelos sociais simultaneamente vividos: a sociedade indígena, ainda legível nos restos do presente (ou a sociedade que ela pode inspirar num futuro utópico encarnado na luta camponesa) e a sociedade branca, citadina, capitalista e americanizada, depois de afrancesada, do Brasil litorâneo. Uma das cenas mais interessantes do romance, nesse sentido, é a cena da festa do quarup, desenrolando-se simultaneamente aos acontecimentos que, no Rio de Janeiro, precipitam a morte de Getúlio e que chegam aos intelectuais no Xingu através do rádio. O desen-
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contro total entre os dois mundos fica aí evidente pela narração truncada da festa indígena, das notícias provindas do Rio de Janeiro com a sua repercussão junto aos brancos e do amor frustrado de Falua e Ramiro por Sonia, bem como do sumiço desta e de Anta, único encontro possível num mar de desencontros. Apanha-se aí, no confronto Xingu-Catete, o fracasso de uma utopia que tinha o índio como inspiradora. E antecipa-se o fracasso da revolução, prefigurando já a abertura de uma nova era, a era da ditadura que logo se iniciaria com o golpe de 1964. Marc Augé fala de uma ambição antropológica como pano de fundo dessa história que é história da atualidade, já que ela se interroga sobre a eficácia de símbolos no meio dos quais nós nos encontramos. Essa é também a interrogação permanente de Quarup, daí sua historicidade, de ficção que conta, faz e é história, e sua atualidade. Daí também o livro colocar-se ele próprio como um símbolo ambíguo a decifrar, o que o faz durar como obra de arte, falando a várias gerações em diferentes línguas e lugares. Num tempo em que a Europa Ocidental começa a repropor as identidades nacionais, procurando ultrapassar não sem conflitos, os nacionalismos e em que Países do Leste, Ásia e África refundam e afundam suas nações em guerras sangrentas, um livro que pareceria retrógrado (crítica que o romance incorpora tematizando o seu aparente anacronismo) por buscar a Nação em tempo de internacionalização, revela-se atual e pertinente num momento em que os países da América Latina, sem terem ainda sequer se constituído como verdadeiras nações, são constrangidos a darem o salto para a internacionalização, como forma de resistir ao seu desaparecimento do mapa mundial retraçado pela nova configuração de alianças européias, asiáticas e norte-americanas. Recentemente, a política do governo Collor mostrou-nos a fragilidade da abertura precipitada da Nação ao Estrangeiro, sem que ela tenha podido descobrir, valorizar e proteger suas próprias riquezas materiais e culturais. O renascimento das preocupações nacionais mesmo na Europa Ocidental hoje e casos como o das perdas irreversíveis de Portugal, como preço para sua entrada no mercado comum europeu, começam a mostrar que o que parecia velho pode ser lido como extremamente atual. Mas como Quarup consegue isso? Que recursos utiliza para superar as contingências que o geraram e alçar o vôo até nossos dias, enquanto arte capaz de despertar os sonhos da história? Muitos são esses recursos que vão do reaproveitamento de obras marcantes da literatura brasileira, dos cronistas a Guimarães Rosa, até a abertura para o que de mais atual há na ficção européia contemporânea, de
102 - Rev. Brasil. Li!. Comparada, nº 2 Joyce e Thomas Mann ao Nouveau Roman, mas também do que há de mais clássico, como, por exemplo, a Divina comédia, de Dante. Não seria possível mostrar aqui em pouco tempo e espaço o trabalho paciente do escritor que buscou adequar o estilo à matéria multiforme com que trabalhou, utilizando para isso do mito à reportagem, do discurso indireto-livre ao monólogo interior, da prosa lírica à paródia, lançando mão tanto de metáforas sublimes quanto de palavrões e gíria quando cena, cenário e personagens assim o exigiam. Destaco apenas dois desses recursos, aliás estreitamente vinculados um ao outro: o contraponto de discursos no retrato plural do Brasil e a paródia na análise das relações entre intelectual e povo. Romance polifônico, Quarup confronta discursos para traçar um retrato plural e fragmentário do Brasil, o único possível. E, ao confrontar esses discursos, vai desvendando a fragilidade das visões de Brasil e das soluções para o Brasil que a intelectualidade (padres, médicos, jornalistas, engenheiros, militares, antropólogos, entre outros) têm a oferecer. Recapitulemos rapidamente um inventário dessas visões e discursos que, no livro já referido, estudei com mais detalhes: Para Hosana, o padre rebelde e descrente de uma igreja movida por interesses ainda estranhos ao ingênuo padre Nando do início do livro, a sua própria história, a de Nando e a do Brasil é a história de um abandonado por Deus, a história da "difícil digestão do Deus decomposto". Para Falua, o jornalista que gosta de cheirar lança-perfume, o Brasil é um país drogado, complexado, país de droga e carnaval, o mesmo que mais tarde vai ser cantado festivamente como "sem pecado do lado de baixo do Equador". Para Ramiro, o médico-burocrata do chamado, eufemisticamente, "serviço de proteção aos índios", o Brasil é um país da doença e sua doença maior vem de copiar os Estados Unidos, afastando-se da matriz francesa. Nossa vocação legítima, segundo ele, é a de chile do atlântico. Por isso, quando sua amada Sônia foge com o índio Anta para o meio da floresta, depois de buscá-la numa excursão malograda, contenta-se em procurá-la no "quartier Latin", em Paris. Para Lauro, de tendência integralista, a saída do Brasil é retrilhar as sendas que as narrativas lendárias abriram, buscando num índio abstrato as raízes da brasilidade. Para os holandeses, Leslie e Winifred, o Brasil é uma república de estudantes e o caminho é o matriarcado, fundado no culto de Maria contra o Deus homem. Para Levindo, o estudante-mártir, o Brasil é o centro do País que precisamos descobrir e explorar, voltando-nos para dentro de nós mesmos contra as influências de fora. Para Vilar, confiante na modernização, o Brasil só se constrói abrindo estradas
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de norte a sul, aproximando centro e periferia, litoral e interior e sanando as diferenças pelo progresso. Os seus' 'lieux de mémoire" aí são substituídos por lugares de passagem, um não lugar; seu projeto é pós-moderno. Para Otávio, o líder comunista, o Brasil é o país pobre, Brasil senzala, celeiro dos Estados Unidos e seu projeto, como o do Partido Comunista no momento, leva-o a aceitar a aliança com a burguesia nacional contra o inimigo supostamente maior: o imperialismo norte-americano. Para Fontoura, o antropólogo que se dedicou aos índios até a morte, o Brasil é o inimigo, é o litoral que destrói o índio e que é preciso atacar para salvá-lo. O índio é o não-Brasil, o anti-Brasil. O projeto de Fontoura é inviável e ele o sabe, por isso se destrói com a ajuda da bebida; por isso acaba morrendo corroído pelas saúvas como o próprio centro do Brasil que procura. Porque o litoral chegou lá: saúva, leia-se: capitalismo, doença e corrupção mataram o não-Brasil. O Brasil matou o Brasil, levando a melhor contra a vida, a natureza, os índios e aqueles que tentaram defendê-los. Finalmente, o Brasil de Nando é o que mais evolui, porque ele, ao longo do livro, vai incorporando, antropofagicamente, os brasis dos outros, transformando-os e redefinindo suas próprias visões, seu discurso e sua prática. Do Brasil missioneiro, paradisíaco das missões comunistas-cristãs, ao Brasil dos índios do Xingu a serem catequizados para Deus; do Brasil dos índios do Xingu a serem protegidos da catequização branca, ao Brasil das ligas camponesas, da revolução que vem chegando, pacífica promessa; do Brasil, pátria insatisfeita na mão de políticos apressados e predadores que não aprenderam a paciência do amor trabalhado e trabalhoso, ao Brasil do exílio em terra própria, Pátria que viaja abandonando seus filhos ao desamparo. Do Brasil novo paraíso natural, onde a missão única é amar e deixar-se amar, ao Brasil ressuscitado para o heroismo redentor pelo quarup branco, pelo ritual de morte e renascimento de Levindo, o Brasil mulato e mameluco, renascendo das cinzas e buscando energias novas no sertão. O Nando-Levindo do final renuncia a toda palavra e a todo amor que não tenham poder transformador, porque marcados pelos limites de classe e tenta reaprender a agir eficazmente com a ajuda do homem simples, encarnado no seu companheiro de viagem: Manoel Tropeiro. As partes finais do romance, intituladas "A praia" e "O mundo de Francisca", reafirmam essa opção que tem seus pontos de contato estreito e inusitado com a opção de Sonia, entranhando-se no mato definitivamente com o índio Anta. O movimento, apesar das diferenças, é o mesmo: da civilização para a barbárie em busca de uma civilização outra; da palavra para o silêncio, em busca de uma
104 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nU 2 comunicação mais verdadeira; de um nome para outro, em busca de si mesmo. Não por acaso é Sônia que, pela primeira vez, critica o palavreado vazio dos intelectuais. Na cena em que Falua, Otávio c Ramiro discutem sobre a sorte de Getúlio às vésperas do suicídio, diz Otávio: "Precisamos socorrer Getúlio Vargas". A conversa prossegue no mesmo tom, expressando a impotência dos intelectuais para mudar o curso da história. Sônia aproveita para sair discretamente, encontrarse com Anta e fazer amor na beira do rio. Ao voltar, ouve de Falua: "Gegê vai mesmo é para o beleléu" e mais outros palpites sobre o momento grave de Getúlio e do País. Entrando, ela percebe que ninguém notara sua ausência, porque estavam todos entretidos no diálogo que não avançara em nada e comenta para si mesma: "o mesmo lero". Hoje, relendo o final de Quarup, podemos julgá-lo envelhecido: um projeto de intelectual que parte em missão, ainda redentor, ainda padre. E tenderemos a parodiar a prostituta sensível e crítica: o mesmo clero, senão o mesmo lero ... Mas, se lemos esse final à luz de cenas anteriores em que tínhamos visto processar-se o abandono da Igreja e a lenta aprendizagem da humildade pelo intelectual, depois de vários fracassos, a superação dolorosa das ilusões que vão da catequese ao palavreado pretensamente revolucionário, o mesmo final pode ser relido como a afirmação de uma utopia a reconstruir sobre novas bases e para a qual nós, intelectuais brasileiros, ainda não estamos preparados. Hoje, depois das críticas que fizemos ao nacionalismo, ao populismo, ao iluminismo, quando parecia que tínhamos aprendido a lição de humildade que o golpe nos ensinou a duras penas, eis que os ventos da abertura e da Nova República nos tornaram a confrontar com velhos esquemas, palavras e atitudes da década de 60, a começar pela mitificação do chamado método Paulo Freire e apesar da autocrítica do próprio Paulo Freire. Quem teve oportunidade de participar desse processo, em 60, como estudante, e em 90, acompanhando de perto os projetos da secretaria de educação da Prefeitura de São Paulo dirigida por Paulo Freire, não pode deixar de ler em Quarup um alerta e um questionamento ainda atual do iluminismo dos intelectuais e da nossa crença fetichista na palavra. Voltamos então a reler aí cenas que podem passar desapercebidas, redescobrindo nelas uma crítica radical ao projeto iluminista e à retórica dos intelectuais que se propõem como líderes do povo. Lembremos a cena em que Nando observa Francisca alfabetizando os camponeses, na parte do livro não por acaso intitulada" A
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Palavra". Lê-se aí que a luz do projetor de volta da parede acendia a cara dos camponeses, "repetindo por fora o trabalho de escultura que a palavra fazia por dentro". A luz do projetor, no caso, é figuração do projeto iluminista que acredita possível esculpir as consciências pela palavra magicamente incorporada como poção libertadora. Prosseguindo na mesma cena, temos a lição do cla, cle, cli, cló, clu: - ela - disse o camponês. - Classe clamor - disse Francisca, - Cle. - Clemência. - Cli. - Clima. -Clu. - Clube- do cla-cle-cli, da classe - clamor e reclamação. -Eu. Outro slide e disseram: Re. - Pensem em classe e clamor - disse Francisca enquanto colocava o slide com o pronome e o verbo. - Eu re - disse um camponês. - Eu remo! - disse outro. - Eu clamo! - disse outro. - Eu sei professora, eu sei Dona Francisca. Eu reclamo! - Reclamar vocês todos sabem o que é - disse Francisca. Os camponeses riram. - Só que precisam reclamar cada vez mais. Reclamar tudo a que vocês têm direito. Direito também vocês sabem o que é. Direito que todo homem tem de comer, de ganhar dinheiro pelo trabalho que faz, de votar em quem quiser em dia de eleição. - O voto é do povo- disse um camponês. - O pão é do povo- disse outro. - Isto mesmo - disse Francisca - mas vamos deixar as lições passadas e aprender a de hoje. Nosso Estado tem um ... - Governador - disse um camponês. - E o Brasil- disse Francisca - tem um ... - Presidente da República. - Muito bem. Todo país tem seus Governadores e tem um Presidente. Mas agora o mundo tem um Governo que conversa com todos os Governos. O Governo dos Governos se chama Nações Unidas, quer dizer a União de todas essas
106 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 N ações. Cada Nação tem uma lei, que manda em todos, e que se chama ... Quem é que se lembra? - Lei Áurea- disse um camponês. - Não - disse Francisca. - Essa foi a que acabou com os escravos - disse um camponês. - Isso mesmo - disse Francisca - a Lei Áurea foi o decreto da Abolição, quer dizer, que aboliu, acabou a escravidão dos negros no Brasil. Mas tem uma lei que governa todos nós. A cons ... - Constituição - disse um camponês. - Muito bem - disse Francisca - cada país tem sua constituição. Mas as Nações Unidas, que é o Governo de todos os países, tem uma declaração. Chama-se declaração dos direitos do homem. E está ali escrito tudo a que os homens têm direito, que é coisa feito pão, saúde, educação, voto. Como se vê, a moça que ao primeiro sinal de perigo vai fugir para a Europa é quem dita palavras de ordem aos camponeses. E a aula tida por revolucionária acaba aproximando-se, pela inculcação de verdades prontas, e pela confiança acrítica nas instituições (da constituição brasileira que estava sendo rasgada à ONU que, na sua inércia, nos reservava as surprezas preocupantes de hoje) do que será tido por seu oposto: a aula de moral e cívica inventada (?) pela ditadura. Para Francisca e para os intelectuais do livro e da vida brasileira então (temo que para muitos ainda hoje), o camponês sem saber ler, escrever, distinguir entre constituição, declaração, lucro, imperialismo, coronelismo, remessa, não é gente. Diz ela: "E não sei de coisa nenhuma que eu pudesse fazer como artista que me desse a alegria de transformar essa gente em gente". Callado coloca isso "en passant". Não dá sua opinião, mas, avançando no livro, vemos que existe aí uma dimensão crítica à crença abusiva dos intelectuais em si próprios e na civilização da palavra escrita. Sobretudo, isso se torna evidente quando aproximamos a cena anterior à cena da prisão dos camponeses, outro ponto alto do livro: Os camponeses estão na praça; a polícia chega e vai fazendo as prisões. Os rádios portáteis vão sendo ligados e transmitem fragmentos do discurso de despedida de Miguel Arraes. Logo a seguir, os rádios são confiscados pela polícia e as últimas palavras de Arraes, que jurava resistir em nome do voto popular, são retomadas parodicamente pelos camponeses:
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Os camponeses do grupo de Hermógenes e os que estavam mais por perto tremeram de raiva e bem que quiseram dizer alguma coisa e um deles se lembrou da frase inteira da lição 74, a qual disse em voz alta: - isto não é democracia, governo do povo? - Que é que tu está falando aí?- berrou um soldado na cara dele. - Feito menino que assobia no escuro o camponês saiu com o resto da lição: - Cra, cre, cri, cro, cru. Escravo. Os outros acompanharam diante dos soldados bestificados. - Credo, criança, crônica, crua. - Cra, cre, cri, cro. - Silêncio! - Cruuuuuuu! - Pros carros os que estão gritando! - ordenou o tenente mais que se disperse. Foram tocados para dentro dos carros aos empurrões por soldados pálidos que por desconhecerem a lição 74 acreditavam na súbita loucura daqueles homens um momento atrás tão silenciosos e mansos. - DECRETO, CRISE, LUCRO! - O BRASIL CRESCE COM CRISES MAS CRESCE? DEMOCRACIA, CRA,CRE,CRI,CRO,CRU! Dois tintureiros cheios de camponeses aos berros saíram pelas pontes e fizeram muita gente voltar a cabeça com aquele ruído de propaganda eleitoral ou comercial que brotava dos carros herméticos: - ESCRAVO,ESCRAVO,ESCRAVO!CRA!CRU!
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A cena é ambígua. grito dos camponeses, recitando a lição 74, por um lado pode ser lido como grito heróico de resistência do sertanejo "antes de tudo um forte", mas, por outro lado, pode ser lido como a repetição mecânica de uma lição agora inútil, pelo camponês abandonado por todos os deuses (da religião e da revolução). A palavra-protesto e luminosa vira sombra, berro irracional, pranto patético, loucura. Voltando a Franklin de Oliveira, podemos concordar quando diz, no mesmo texto citado no início, que Quarup é o romance da crise que mais demoniacamente já feriu o Brasil. Sobretudo se pensarmos na atualidade do problema indígena e na importância do fenômeno das ligas camponesas que, como nos mostra Chico de Oliveira em Elegia para uma re(li)gião, não por acaso, a Cia ajudou
108 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, n!! 2 a arrazar. Aliás, nenhum trabalho escrito até hoje sobre o livro de Callado, incluindo os meus próprios, conseguiram explorar suficientemente a bela síntese, a profunda reflexão político-antropológica contida na metonímia sobre a qual se apóia o romance, aproximando realidades e protagonistas tão distintos e, ao mesmo tempo, tão semelhantes: o índio e o camponês nordestino. Mas quando o mesmo Franklin de Oliveira define o romance como "circularidade, terra, chão, paisagem, céus, plantas, águas, a coisa cosmo e a coisa homem congregados em compacta coesão", eu digo não, pois entre a coisa cosmo e a coisa homem se interpõe a palavra não mais coisa. Ao tornar isso palpável o livro exige o silêncio do intelectual e impõe-nos a desconfiança do fascínio que a palavra exerce sobre nós e do poder que, através dela, exercemos sobre os outros. Nessa caricatura da aula de Francisca, feita pelo verbo desconexo dos camponeses jogados à sua própria sorte, impõe-se a necessidade de arearmos as palavras e de respeitarmos o homem e a mulher pobres que delas desconfiam, se quisermos insistir no desejo de inventar um novo mundo para o qual, apesar do fracasso da revolução no Brasil e do chamado socialismo real no mundo, a viagem de Nando e Manoel Tropeiro continua apontando: um mundo novo em que o vero, o justo e o belo tomem o lugar do clero e do lero.
VIAGENS TEXTUAIS. , UM PERCURSO: , AMERICA-AFRICA-EUROPA (DA "PASÁRGADA" DE MANUEL BANDEIRA)
Maria Aparecida Santilli
N
um artigo que escreveu para a Revista do Instituto Cultura e Língua Portuguesa (ICALP, 7, 8, 1987), Luís Barreto, entre observações ainda candentes sobre "A Herança dos descobrimentos", revisou a aventura portuguesa dos mares através de perspectiva harmônica com o pensamento de abrangência do mundo contemporâneo, tomando-a desde seu' 'significado planetário". "Os descobrimentos", diz ele, "são, antes de mais, esta revolução qualitativa e quantitativa, no campo do conhecimento e do acontecimento que leva, pela primeira vez, a uma idéia, relativamente aproximada, da realidade planetária física, o Mundo, e humana, a Humanidade" (p. 10). Barreto passa para os desdobramentos que essa óptica comporta, como sejam: o de tal revolução abrigar "a passagem dos centros do poder e do saber", das civilizações islâmica e judaica, para a civilização cristã e, "mais gradativamente, do espaço mediterrâneo para o espaço atlântico"; a criação de uma "economia mundo"; e, afinal, de uma "cultura mundo" que o citado autor toma como "um quadro pluricivilizacional formador de novos horizontes tanto de cultura comportamental (formas de vida, modos de alimentação, vestuário, sensibilidade, etc.), como da cultura intelectual (formas de linguagem/pensamento, valores, idéias, conceitos, etc.)" (pp. 1011). Consideradas tais reflexões, não será, porventura, menos opor-
110 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 tuno, quando se comemoraram os quinhentos anos de descoberta da América, próximos da celebração dos quinhentos anos de descoberta do Brasil, registrar outros percursos, de diversas mãos, nas linhas horizontais e verticais que se inscreveram sobre os rastros das ligações atlânticas, como sejam os das "viagens literárias", por obra e graça das embarcações culturais. Talvez seja mesmo até mais prazerosa a alternativa de verificar como, sobre as rotas das navegações, até a África e o Brasil, incidiriam outros sulcos, centenas de anos depois, pela passagem de motivos literários migradores, bem embalados em folhas de poesia deste século, conforme se pode detectar. Anote-se, a propósito, como Gérard Genette (Figuras, São Paulo: Perspectiva, 1972) avalia as virtualidades relacionais da obra literária, lembrando que "para Borges como para Valéry o autor de uma obra não exerce sobre ela nenhum privilégio, pois ela pertence desde o nascimento Ce talvez antes) ao domínio público e vive apenas de suas inumeráveis relações com as outras no espaço sem fronteiras da leitura. E nenhuma obra será original, porque a quantidade de fábulas ou de metáforas de que é capaz a imaginação dos homens não é ilimitada. Toda obra será universal porque esse pequeno número de invenções pode pertencer a todos". (p. 127). Genette retoma a questão do livro como "uma relação", ou "um centro de relações" e a da literatura como um espaço "plástico", "curvo", onde podem sediar-se "as relações e os encontros mais paradoxais" que, "em cada instante", seriam "possíveis" Cp. 129). E, na medida em que cada livro renasce em cada leitura (p. 128) e que o tempo das obras não é definido pelo ato de escrever, mas pela leitura e pela memória, segue-se que o "sentido dos livros está na frente deles e não atrás", porque um livro não é um sentido acabado, "mas uma reserva de formas que esperam seu sentido" Cp. 129), o sentido que toda leitura encontrará. Estas idéias são incitadoras às considerações que, ora aqui, se farão sobre uma cadeia de leituras. Vale dizer, sobre uma cadeia de buscas, encontros de sentido, entre leitores-escritores, no percurso de um dos tantos motivos itinerantes, cujo vetor de peregrinação apreendeu-se, a partir das águas da literatura brasileira, para as da literatura caboverdiana e para as da literatura portuguesa. Pretende-se re-tomar. a "Pasárgada", de Manuel Bandeira, numa variante dos objetivos pelos quais já, em outras instâncias, se procurou observar:
Viagens Textuais. Um Percurso
Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero N a cama que eu escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente Que Joana a louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d' água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem a1calóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar
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112 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nU 2 E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar - Lá sou amigo do rei Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada." ("Vou-me embora pra Pasárgada", de Libertinagem, 1930) A "Pasárgada", de Manuel Bandeira, configura-se, conforme se sabe, como reflexo ou duplo quase "simétrico do mundo real", mas em contraponto (' 'punetum contra punetum' ') com este. Para ser invertido pelo' 'sonho' " o universo indesejado na equação do poema fica, salvo as "honrosas exceções", como um pressuposto descartado por aquele outro que o desejo inspirou. Ou seja: a poesia não persegue imprimir, em seu corpo, o mundo referencial rejeitado; as imagens do mundo desejado é que se alastram, em toda a extensão do poema para o decorrente despejo do mundo indesejado ou indesejável do qual se quer libertar. Por outra tomada, dir-se-á que, vivificantes, as imagens do mundo que se deseja fazem-se um presente (o da invenção) do qual se desalojam as do outro (o da referencialidade vetada). O mundo imaginário habitou-se, assim, pelo preenchimento de imagens espaciais surpreendentes, imprevistas, versões modernas do "mundo às avessas", mas o "mundo às avessas" que não se quer proscrever, com o qual o sujeito do texto poético, concordando em gênero, número e grau, quer a si próprio prescrever. No nível amplo, da história geral dos fatos literários, "Pasárgada" se incluiria no domínio da tópica, mais precisamente a do "loeus amoenus", dos "lugares amáveis" que não servem aos fins (ditos) utilitários, mas sim ao gozo, ao prazer. Como aqui se vai reiterar, o "lugar ameno", de Bandeira, entretanto, não se ajusta ao paradigma do refúgio/abrigo natural, de que tratou Robert Ernst Curtius ("O lugar ameno", em Literatura européia e Idade Média latina, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957), cujos ascendentes Curtius localizou, desde as literaturas clássicas e dos tempos medievais, na descrição da natureza, nas cenas pastoris, nas novelas de cavalaria. Na" Pasárgada" de Bandeira o que mais parece manifestar-se, como questão candente da modernidade, são as suas contradições. Observe-se, entre outras, a disposição para uma mobilidade
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moral ("Lá tenho a mulher que eu quero/Na cama que eu escolherei"; "Tem alcalóide à vontade", "Tem prostitutas bonitas/para a gente namorar", "Tem processo seguro/De impedir a concepção' '). A exigência, generalizada no poema, de flexibilidade nas atividades e nas relações individuais faz lembrar, a propósito das relações amorosas e a modernidade, o que refere Renri Lefevre: " Além de desaparecerem as noções de pecado e de pureza, assume-se a dissolução entre "o amor (a sexualidade vivida humanamente) e a reprodução (biológica)" (Introdução à modernidade, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p. 223). Mas, por outro lado, "Pasárgada" enfatiza-se como signo de descoberta e apropriação do desejo também de estabilidade ou segurança ("Lá sou amigo do rei"), estabelecendo-se a contradição. "Vou-me embora pra Pasárgada" é, como se sabe, um poema de que o próprio Bandeira fez a história, remetendo às origens de sua concepção e inscrevendo-o, formalmente, na interminável corrente genealógica em que se inscreve a vida dos textos. "Pasárgada" lhe viera, segundo uma lembrança imprecisa, da leitura da famosa cidade fundada por Ciro, onde este vencera Astíages, a sueste de Persépolis. O nome "Pasárgada", pelo quanto Bandeira confessou (ou ficcionalizou ... ), saltara-lhe, então, como "um grito estapafúrdio". Para Bandeira, significava, então, o "campo dos persas", ou o "tesouro dos persas". Ainda segundo sua versão, no pico do sentido, queria dizer "uma paisagem fabulosa, um país de delícias", como o de "L' Invitation au voyage", conforme declarou vinte anos depois. Mas, em "O convite a viagem", de Baudelaire, o sentido tópico decantava-se no refrão, como um núcleo semântico que viria a ser fundante para o poema de Bandeira: "Lá, tudo é paz e rigor,fLuxo, beleza e langor" (As flores do mal, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, pp. 234-235). A articulação com' 'viagem' " do lastro significante baudelairiano, sobrevive no "Vou-me embora", de Bandeira, assim como sobrevive o sistema de contrapartidas do texto francês. No poema de Baudelaire, porém, consolida-se a relação metafórica do "lugar ameno" com o espaço natural (de que Curtius tratou) pela presença explícita de "sóis orvalhados", das "mais belas flores", dos "cristais infinitos", enquanto a presença humana se faria apenas subliminar em "luxo!1angor". A zona tópica que Bandeira, entretanto, explorará é socializada, na linha que melhor se definiria pela poética de Bachelard, como uma retórica social do espaço.
114 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 Bandeira elege signos como "rei", "rainha", indícios de um organismo social que enquadra em certa aura nostálgica do passado. A evocação da rainha, "falsa demente" e "contraparente", em "pendant" com o amigo rei, miscigena história e ficção, desafiando a encontrarem-se razões para tal. Por que a opção por Joana, a Louca, essa figura controvertida na história de Castela e esmaecida nas brumas lendárias das desgraças de amor e crueldades do poder? Recorde-se o casamento, em paixão, com Felipe, o Belo, arquiduque de Áustria e príncipe de Flandres; a profunda melancolia de mal-amada; a perturbação mental pela morte do bem-amado; a ascenção ao trono e o afastamento, por obra do pai e do filho; a prisão (declarada por incapacidade) até a morte (em 1555), no castelo de Tordesilhas. Certamente para resgate dos ex-centrados da História e dos acontecimentos irreparáveis da vida real da humanidade cujos significados o Bandeira, arauto e criador de outro gênesis, quer projetar no seu mundo de invenção. Em "Vou-me embora pra Pasárgada", as seqüências enumerativas de composiçã%rganização do lugar do futuro, do estado social da imaginação instauram o regime democrático da fantasia, desde as práticas lúdicas da infância e da "ars amandi" libertária; num movimento de otimizar tudo quanto representa "a outra civilização". Em Pasárgada, signo do prazer sem sombras, o império ideal arquiteta-se por rarefação de compulsões: dos éditos da lógica e dos decretos da ética; dos espartilhos políticos e dos contrapesos sociais. Adolfo Casais Monteiro (Figuras e problemas da literatura brasileira contemporânea, Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, 1972), depois de deter-se na consideração do próprio "Manuel Bandeira", "50 poemas de Manuel Bandeira", refletindo sobre "Bandeira e Drummond" (pp. 135 e ss.), conclui que' 'Bandeira e Drummond surgem num momento em que a autêntica poesia só pode começar por uma recusa, em que a poesia precisa começar a partir de zero. De zero, isto é: lavando as mãos da excessiva sabedoria parnasiana, da excessiva musicalidade simbolista, da excessiva convicção verde-amarela, pois que o verde-amarelismo é, sob a capa do modernismo, um último estertor do convencionalismo. A poesia é mais séria do que nunca, e por isso mesmo tem de escorraçar dos seus domínios os homens 'sérios', compenetrados na suprema importância das tradições, das formas, do metier, das 'verdades eternas'; é chegada a hora de reinventar a seriedade pela zombaria, a verdade pelo descrédito lançado sobre os donos da verdade. Esta foi a função, mas em dois tons diferentes, que os nossos dois poetas foram chamados a desempenhar" (p. 136).
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Casais Monteiro reporta-se, a propósito, do "poder de choque da poesia" que "se tornou motivo de abundantes equívocos, suscitando uma infinidade de falsos adeptos e de falsos inimigos da poesia moderna" (p. 137). Como se recordou, Bandeira desvela os étimo-textos de seu famoso poema. Pois aqui se poderá fazer o mesmo e descobrir o de Bandeira, em análoga função, isto é, nos intertextos que farão o futuro do seu, como seja, por exemplo, através de perseguir as viagens do sentido, nas quais "Pasárgada" emigra, mais precisamente para a literatura cabo-verdiana e para a literatura portuguesa. A casa literária cabo-verdiana em que' 'Pasárgada" se acolhe é, não por mera coincidência, a do "Itinerário de Pasárgada" (1946), de Osvaldo Alcântara/Baltazar Lopes (republicado em Cântico da manhã futura, Praia: Banco de Cabo Verde, [1986]). Trata-se de um conjunto de cinco poemas: "Passaporte para Pasárgada", "Saudade de Pasárgada", "Balada dos companheiros para Pasárgada", "Dos humildes é o reino de Pasárgada", "Evangelho segundo o rei de Pasárgada". É visível, no transcurso da série, a escalada da cabo-verdianidade, através da qual a tópica vai nacionalizar-se no ponto de chegada de uma viagem sem escalas, para casar-se, em Cabo Verde, com outras, quer mais próximas da tradição cabo-verdiana e do imaginário português, quer mais remotas como as da tópica mística ou profética de textos fundantes na civilização ocidental e cristã. Na série referida, o espaço conota-se por atualização do "topos", ao articular-se com os signos do domínio histórico e geográfico da referencialidade cabo-verdiana. Como no poema brasileiro, manifesta-se a ênfase sobre o futuro, imanente à utopia, que, no texto cabo-verdiano, melhor se denominaria como "futuração". Através de instâncias de significação que oscilam do tom nostálgico ao contestatário, é como se o passado histórico da gente de Cabo Verde se reabsorvesse nos termos da redenção com os quais se projeta no horizonte do futuro desejado. No domínio de Alcântara/Lopes, a zona tópica também se socializa, como no de Bandeira e, em cada um dos cinco poemas, parece perseguirem-se linhas de sentido da Pasárgada do Brasil. Veja-se, por exemplo, a do desejo/prazer, no segundo poema da série, denominado "Saudade de Pasárgada", onde a extensão do sentido opera-se com a gestação étnica, com a mestiçagem biológico-cultural "caboverdeamadamente" sugerida, quando o "gens"
116 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 literário brasileiro se apresenta como o alicerce sobre o qual assentar-se a poética da crioulidade, no poema considerado: SAUDADEDEPASÁRGADA Saudade fina de Pasárgada ... Em Passárgada eu saberia onde é que Deus tinha depositado o meu destino ... E na altura em que tudo morre ... (cavalinhos de Nosso Senhor correm no céu; a vizinha acalenta o sono do filho rezingão; Tói Mulato foge a bordo de um vapor; o comerciante tirou a menina de casa; os mocinhos da minha rua cantam: indo eu, indo eu, a caminho de Viseu ... ) N a hora em que tudo morre, esta saudade fina de Pasárgada é um veneno gostoso dentro do meu coração. Com traços evidentes de relação também com "Evocação de Recife" o poema de Alcântara/Lopes manifesta que o autor caboverdiano faz uma "leitura com" Manuel Bandeira, de franca adesão, ao comprazer-se na fruição do lugar ameno, denunciado na nostalgia que não trava, entretanto, a marcha da consciência ao reconhecimento da sedução de evadir. Uma das possíveis leituras é a de que se pode ver, no "Itinerário de Pasárgada" cabo-verdiano, uma inversão capital de significação de modo a entender-se o conjunto de poemas como que aquém da modernidade; de um lado não só por já não se recusar a estética da imitação, como também por até evocar a velha prática poética de mote e glosa, ajustada, então, à proposta de cindir a cadeia de motivos associados do poema brasileiro. Este "Itinerário", portanto, distancia-se do culto do novo que na alvorada pré-modernista se anunciou. De outro lado, na série de Alcântara/Lopes, faz-se uma assepcia "ética", relativamente ao poema de Bandeira, sobre a qual se faculta uma espécie de "re-cristianização", exaltada no clímax, de efeito retroativo sobre todo o novo' 'reino" imaginado e consoante com os tempos pretéritos por onde revalidar o dar" a César o que é de César e a Deus o que é de Deus".
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Mas, a rota de Pasárgada pela literatura cabo-verdiana não se fará por um único diapasão, por uma nota só. Terá seus momentos de rejeição, nas páginas de outro poeta, de Ovídio Martins, que faz uma leitura "versus" Pasárgada, no poema "Anti-evasão": Pedirei Suplicarei Chorarei Não vou para Pasárgada Atirar-me-ei ao chão e prenderei nas mãos convulsas ervas e pedras de sangue Não vou para Pasárgada Gritarei Berrarei Matarei Não vou para Pasárgada (De Gritarei Berrarei Matarei - Não vou para Pasárgada, Rotterdam, 1973) A eficácia da brevidade, neste poema, já como profissão de fé, por sedução da terra (cabo-verdiana), vem confirmar que é pura ilusão querer-se estabelecer um paralelismo, entre a extensão que ocupa um discurso e a extensão de seu valor de signifcação. De fato, a retomada de Pasárgada, por Ovídio Martins, resulta num grito (de exorcismo - naturalmente, à tentação da utopia) e num silêncio (de sonegação de espaço à evasão), com uma síntese cortante, para inverter, apenas, as setas de direção do sentido; para trocar enfaticamente o sinal positivo pelo sinal negativo, na equação taxativa de vida que o texto fundante instaurou. É flagrante a vontade política que ressalta do tom de exaltação da voz' 'passionária" na demanda de transitar, da dor à violência, num reduto de defesa que se quer inacessível à evasão. A viagem de "Pasárgada" a Portugal estará devidamente ilustrada pelos poetas da Távola Redonda, a conhecida revista (de 20 fascículos, publicados de 1950 a 1954) em cujo número nono, "a par de poesias diretamente ou indiretamente inspiradas no poema de
118 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 Bandeira, se publicaram também textos em prosa que, no registro de um aparente humor, representavam, de modo pelo menos oblíquo, a posição dos poetas da Távola perante certos aspectos da poesia e da realidade suas contemporâneas". Recorde-se que a denominação Távola Redonda (Folhas de Poesia que foram cogitadas, primeiramente, com o título de "Arame Farpado", para contraporem-se às propostas' 'fechadas" do neo-realismo), sugerida por António Manuel Couto Viana, seria indicativa de um "espaço plural, espaço livre, espaço poético" porque, para Couto Viana, "a poesia era (e é) uma távola redonda", "com pão e vinho para todo o povo". N esse domínio estético de democráticas franquias, também a poesia de Bandeira se alastrou. Num texto (em prosa), de David Mourão Ferreira, esse contexto português colocava-se para além dos limites pontilhados de Pasárgada, no "extra-muros" do território ideal de Bandeira (recorde-se o título do texto de Mourão Ferreira: "Nos arredores de Pasárgada' '), território ideal cujas portas levadiças parecem inexpugnáveis ao indesejado ou aos indesejáveis. Outro texto, também em prosa, de Luiz de Macedo, consagra a obra de arquitetura poética de Bandeira, como "cidade eterna", onde Pasárgada, então, "portuguesamente", passava, pelas ondas do imaginário, a outra nacionalidade: "O rei de Pasárgada", diz Macedo, "é Dom Sebastião". Mas não será, por acaso, Dom Sebastião. Macedo aí o elege também enquanto o bisneto de Joana, a louca, fato pelo qual acaba por reforçar, em Pasárgada, o sentido de parentesco com o mundo europeu. Num poema de António Manuel Couto Viana, "O calcanhar de Pasárgada", como o título indica, a retomada da tópica com os sentidos investidos por Bandeira, faz-se por outro viés, como se poderá ver: Vou com asas de cera. - Que um sol de inverno me acompanha, frio e vago Outros vão de avião em plena primavera: Chegam depressa e chegam sem estrago. (Não - nunca tive alguém a minha espera: Ali, o meu lugar é só e amargo). Fujo aos divertimentos mais bravios. E só de ouvir o rimanceiro, junto a margem Dos rios, As asas ruflam límidas, na aragem.
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(Para aspirar a flor destes poemas idos, Vale a pena a viagem).
o rei mal me conhece-mal-me-quer. Há quem me queira ver na divisão dos éticos, Mas em Pasárgada - sabeis! - ninguém me fere: vivo longe dos rótulos dos práticos. (Uma coisa, porém, me faz doer: os telefones automáticos! Os te-1e-fo-nes au-to-má-ti-cos! OS TELEFONES AUTOMÁTICOS! (Távola Redonda - folhas de poesia, 9) A leitura/poema que Couto Viana faz sobre "Pasárgada", revela-se de tensão. É como se o alarmassem as suficiências/insuficiências da versão utópica. É como se sua perspectiva não pudesse ajustar-se mais estreitamente à perspectiva de seu precedente, de Bandeira, e pela qual' 'Pasárgada" acabou por ser o que é. Visto de outra maneira, "Vou-me embora prá Pasárgada" deixa-lhe as comportas do sentido abertas, por onde novo sentido, o do próprio texto português, poderá se infiltrar. No poema de Couto Viana, a alusão enfática ao "calcanhar" (de Aquíles, naturalmente), em última instância, metaforiza, também, através do ponto frágil, a vulnerabilidade do universo do sentido à penetração, até fatal, de outro(s) lance(s) de significação, a cada leitura, a cada tempo. O ponto frágil do universo "moderno" que os telefones automáticos passam a significar no poema de Couto Viana, sugere que, na utopia pasargadiana, haveria uma grande ausência: a do silêncio cuja presença seria o indispensável contraponto à poluição sonora do universo indesejado, a recusar. O suporte mitológico (a alusão às "asas de cera", remontando a Dédalo/Ícaro), a substituição da "mãe-d'água" que conta histórias, do poema de Bandeira, pelo "rimancero, junto à margem/dos rios", indicam a diferença de lugar, o ponto diverso do qual emana a fala do locutor do novo texto. Associados com a freagem da plena fantasia do bem-amado da proposta brasileira, são os índices mais evidentes da "aclimatação" temática que se operou. Por vicicitudes de brevidade deste texto, as considerações pretendidas devem interromper-se. Talvez valesse a pena fazê-lo com a sugestão que paira sobre as migrações do sentido referidas, na corrente da tópica do lugar
120 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nU 2 ameno, de cuja ancestralidade e vitalidade não foi possível aqui amplamente tratar. Quanto à sugestão que se sobreleva, é aquela ditada pelo pensamento instigante de Valéry e Borges, evocados por Gérard Genette, em que se apoiaram, também, outros passos destas reflexões: "[ ... ] o verdadeiro criador não é aquele que inventa, mas o que descobre", "e o critério de valor de uma criação não está no seu aspecto de novidade, mas, ao contrário, na antigüidade profunda: o melhor do novo está naquilo que corresponde a um desejo antigo" (Figuras, p. 250). Uma boa pergunta, pertinente a todo o caminho percorrido, será, por fim, então: em que ponto do passado estará o começo do começo da fantasia do "lugar ameno", da utopia do querer/prazer? Se se imaginar o "lugar ameno" com limites de espaço politicamente delineado - como fazem imaginar o poema e os depoimentos pasargadianos de Bandeira -, prontamente se aciona o gatilho da memória de outras leituras notáveis que na mesma caixinha de Pasárgada se havia antes arquivado. Já lá se depositaram em diferente passado e do mais remoto passado os diálogos platônicos Da República (escritos pelo ano 392 A.C.), onde as comportas sociais deixariam o "passe livre" para a igualdade de educação, de obrigações, de cargos. E mais: a substituição do egoísmo pessoal e do espírito c1ânico, pela comunidade dos bens, das mulheres e das crianças, com que Platão sonhou. No pacote Da República, a memória terá também decantado antes das leituras da Civitas Solis (suplemento de Realis Philosophiae Partes Quatuor, 1620) -, o discurso da Utopia (1518, De Optimo Republicae Statu, deque Nova Insula Utopia) de Thomas More, a par de tantos outros de que não há aqui margem para falar. O poema de Bandeira não se quis expresso como outros textos utópicos, quanto ao mundo do indesejado, conforme já se disse. Se Thomas More fosse Bandeira, não abdicaria - como não abdicou - de uma parte primeira para alvejar o despotismo dos governos, o servilismo cortesão, a venalidade dos cargos, a mania das conquistas, o luxo, a injustiça e, finalmente, os males congênitos da propriedade pessoal. Se Bandeira fosse Thomas More, por certo teria mostrado, de imediato, a ilha longínqua - como sua Pasárgada -, democrática, socializada, sob o signo da liberdade a que More mostrou aspirar. Representação de um lugar ideal? Projeto irrealizável? Fantasia? Aposta fictícia? Ou revoluções por imaginação? De qualquer maneira, este percurso singular, tão rapidamente entrevisto, levou, ao menos, a alguma das primeiras respostas que
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"Viagens textuais" permitem tirar: também no universo de língua portuguesa, contextualizado no quadro da "cultura-mundo" a que as grandes navegações teriam aberto, a qualquer tempo e dentro de um processo de significar compartilhado, todo cruzeiro atlântico, não obstante as afinidades, apontará para as diferenças da significação que resultam em poder-se rubricar cada um dos conjuntos culturais desse universo de inter-relações, com o seu' 'made in" nacional.
UM FENÔMENO POLIÉDRICO: O ROMANCE-FOLHETIM FRANCÊS DO SÉCULO XIX
Marlyse Meyer
E
ste texto é um resumo de algumas das conclusões possíveis que foram se colocando ao cabo de uma longa viagem que levou a examinar os diferentes aspectos do romance folhetim francês do século XIX, e sua difusão no Brasil desde seus primórdios. (1838). Partindo de uma imagem de Gramsci que vê o romance popular como um "fenomeno poliédrico" e de outra, forjada por um grande estudioso de Eugene Sue, Jean-Louis Bory, tento "dar a volta ao monstro", para tentar abarcar as diferentes faces do "poliedro" São tantas as faces do poliedro que seria injusto que ficasse somente desse impetuoso jorro ficcional a costumeira e redutora imagem: a de um extenso e lacrimoso novelão "mexicano". Para lá da monotonia de seus desdobrados e repetitivos enredos, dos chavões melodramáticos e moralizadores, para além das catadupas de lágrimas, do sentimentalismo derramado, da pieguice conservadora tão denunciada pela crítica dos dois lados, esses grandes folhetins do século XIX não deixam de ter audácia. Não têm medo de remexer numa realidade sombria, com uma carga de violência e excesso que fazem dessa literatura "de consumo" um prato "quente" de comida "forte", que muitos estômagos de hoje não agüentariam, viciados que estão em deglutições mais pasteurizadàs. Que remexem também com as zonas sulfúreas do ser, tendo como principal condimento o Mal, omnipresente e protagonista-mór, SOD as mais diversas encarnações.
124 - Rev. Brasil. Li!. Comparada, nU 2 o mundo tenebroso do folhetim oitocentista oferece a imagem de uma luta agônica pela vida, opondo os fracos, os virtuosos, as vítimas da sociedade, os perseguidos, as mulheres abandonadas, estupradas, viúvas esposas-mártires, as crianças espancadas, sevicia;, das, os pobres, a todos os injustiçados enfim, aos poderosos, aos fortes, aos hábeis, aos luxuriosos, aos ricos, aos perversos, aos patrões, aos contramestres, aos agiotas, ao destino adverso, aos MAUS, em suma. Os quais, ainda que nem sempre triunfem, sempre sobrevivem, seja à espreita de novo bote, seja permanecendo na lembrança de suas vítimas, com tanta força às vezes, que estas podem até repelir o happy ending a que teriam direito. Penso em Flor de Maria, do folhetim matriz, Os mistérios de Paris, a doce Flor de Maria, irmã de Sônia e até de Lucíola, que se deixa morrer de vergonha pela vida passada, quando, finalmente, é reconhecida como filha de Rodolfo e Princesa de Gerolstein. Nesse teatro do combate entre o bem e o mal, Flor de Maria, La Goualeuse, prostituída à força, é a figura paradigmática da representação da virtude, a partir do Mal absoluto que a vitimou: a pureza chafurda no lodo, e é o lodo que é privilegiado no livro, carregado de fortes tintas, que dão calafrios no leitor; a queda é que torna mais meritório ainda o caminho para a luz ou para a verdade. Confundem-se às vezes a encarnação do mal e a encarnação do bem, donde mais complexo o embate, que nem sempre_é_simplesmente maniqueísta, tornando embaraçoso o jogo das identificações do leitor. E se o jesuíta Rodin (O Judeu Errante, de Sue) é, incontestavelmente, "uma das mais poderosas figurações do Mal da literatura francesa" (Bussiêre, p. 36) situa-se também nas bandas do mal aquele herói eleito como positivo, imorredouro no sentido literal da palavra, uma vez que, anos a fio, o público obrigou seu autor a ressucitá-Io. É nosso conhecido Rocambole, herói pilantra, assassino a sangue frio, herói canalha, um Dr. Hosmany de seu tempo, desprovido de escrúpulo, de senso moral, de piedade. Herói proteico e ... rocambolesco, amado, e citado pelo cruel Maldoror. E quem empunha contra ele - arrebanhando toda a simpatia do leitor - a Bandeira do Bem? O leitor que não há de ter esquecido Baccarat, "prostitutriz" arrependida. A qual, para dar cabo do Mal encarnado em dois homens, utiliza, tal Roberto do Diabo (antigo e amado Livro do Povo), todo o arsenal de sua sempre renovada, mas não mais pecaminosa sedução. E não é inverossímel estender o jogo dos espelhos ficcionais tão bem prescrutados por Valeria de Marco I e imaginar que Lucíola, personagem-título de Alencar, entre os romances que lera, tivesse acompanhado nos jornais as peripécias rocambolescas, enxu-
1. MARCO, Valeria de. O império da cortesã. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
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gando as próprias lágrimas ao ler as façanhas de sua arrependida e recém virtuosa colega. Quanto ao "romance da vítima", à espanhola, ou à Montépin, a sempre reiterada virtude, os ponteios também reiterados da mensagem moralizadora poderiam tornar-lhe enfadonha demais a leituracomo já acontece nos últimos volumes dos Mistérios de Paris - não houvera a pimenta da violência sob todas as formas. Casca tear de estupros, incestos quase acontecidos, adultérios, maridos bêbados, mulheres cruelmente fatais, esposas, princesas até, martirizadas; crianças largadas na roda ou expostas aos lobos, na neve. E, redundante, dentro da tradição popular dos antigos canards, complaintes ou broadsheets, o tema das execuções capitais. Forcas ou guilhotinas, muitas vezes acopladas com o carnaval de rua e o povo participando do duplo espetáculo. É lembrar o admirável capítulo final dos Mistérios de Paris ou o Carnaval Romano no Conde de Monte Cristo; ao passo que, freqüentemente, tanto Montépin quanto Richebourg associam guilhotina e fusilamento à loucura, sempre num cenário de rua. O crime, a miséria, a prostituição, persecutores e perseguidos, enfim, atrocidades sem conta compõem esse mundo folhetinesco. Ou mundo folhetinizado? A vida como ela é ... ? Desse universo ficcional que, por anos a fio, alimentou o imaginário dos brasileiros, pode-se perguntar se entre os possíveis motivos do deleite dos leitores/ouvintes não estaria também esse lado sombrio das narrativas? Fascinadoras e fascinantes pelo próprio excesso, pelo "mau gosto", que remetia ao obscuro, ao turvo, embutidos no recôndito dos seres e das situações. O turvo daquela "coisa feia e grave" de que fala Machado de Assis em "A causa secreta"? Um escritor que sabe fisgar esse feio, esse grave no cotidiano mais trivial para compor, no registro que é o seu, econômico e sutil, mas não menos cruel, a sua versão abreviada dos' 'Mistérios do Rio de Janeiro". Menos pitoresco embora do que o dos sórdidos basfonds de Paris, nem por isso é menos perturbado e perturbador o universo que compõe "A causa secreta", "O enfermeiro", "O caso da vara". E até mesmo o aparentemente romanesco (no sentido de "romance", à inglesa) "Casa velha". Classificada entre os contos, essa novela acumula os chavões do romance "feminino" sentimental, mas trabalha ambigüamente com o amor, o incesto. Vai seguindo a lógica dessa ficção feminina nos seus 10 capítulos distribuídos em quatro números de A Estação (de 15 de janeiro a 28 de fevereiro de
126 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 1885), até uma conclusão bem machadiana, que obriga a recolocar o enredo noutra perspectiva. Um conto-folhetim em suma, discretamente perverso, como é em folhetim seu modo de publicação, tal como a grande parte dos contos de Machado, aliás. Não é difícil imaginar o partido que o escritor poderia tirar da obrigação de suspensão do próprio texto curto, o conto-folhetim. Necessidade de manter viva a atenção do leitor, possibilidade de graduação de efeitos, o que, justamente, pode aumentar e exacerbar o envolvente mal estar que distilam muitos deles. E quem seria esse leitor? Cabe observar, que na medida em que grande parte dos contos e até romances (Quincas Borba, por exemplo), sairam aos pedaços em jornais destinados às "senhoras" e, obviamente às famílias, que leitor deveria ter em mente Machado, ao entregar a esses periódicos a primazia de uma literatura que, à medida que o tempo foi avançando, foi ficando nada "feminina", cada vez mais afastada de posturas como por exemplo o moralismo subjacente a Miloca (1874), com requintes de crueldade, até? Pois Machado não hesita em confrontar suas "gentis leitoras", mimosas defensoras da "elevação moral da família" com o tenebroso do ser e do folhetim ... E acredito que se as ditas gentis leitoras e seus respectivos cônjuges puderam enfrentar galhardamente o minucioso horror da descrição clínica do episódio central de "A causa secreta" (tema que também está em "Conto alexandrino"), é que de há muito deviam ter o estômago arrimado, e aguçado o gosto pelo deleitável das situações limite, ao ler e ouvir ler, entre outras tantas cenas do mesmo jaez, episódios como o da tortura do hediondo Mestre Escola, cegado a frio, com vitríolo, por um médico negro e bom, a mando do justiceiro Rodolfo. Ou a morte da horrenda e aterrizadora Chouette, torturadora de Fleur de Marie. Ou ainda, num registro mais sutil, a já citada cena dos esgares mortais do tabelião Ferrand, sucumbindo à própria luxúria (quero dizer, morrendo efetivamente) alimentada - e não recompensada - pelos meneios da voluptosa e mulata Cecily "voyeurizados" pelo buraco da fechadura. (O caro leitor terá reconhecido cenas tiradas dos Mistérios de Paris). O confronto com Eugene Sue não é gratuito, já que sabemos que desde o início da publicação francesa dos Mistérios, as séries chegam rapidamente e são imediatamente traduzidas no Brasil, sem falar na presença aqui de seus outros romances, "tradicionais", haj a visto a presença de Matilde na biblioteca dos avós de Pedro Nava. Este retorno a Eugene Sue leva-me também de volta à questão que eu me colocava nos idos de 1970 no artigo que serve de abertura a este livro, a da recepção nos trópicos apenas urbanizados de um tipo de ficção brotado das contingências da revolução industrial na
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2. DUTRA, Hip61ito da Silva. Os latifúndios. São Paulo: 1887, citado em Arlequim, Rio de Janeiro: 1887.
3. MACEDO, Joaquim José de. As victimas-algozes: Quadros da escravidão: Romances por Joaquim Manoel de Macedo. 2. ed., Rio de Janeiro: H. Garnier, 2 tomos, tomo 1, xiv, pp. 5-7.
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civilizada .Europa. Eu me atinha às considerações de Chevalier, que via uma das chaves do sucesso de Sue na França e na Europa na dolorosa situação do trabalhador, esmagado nas devoradoras cidades grandes pós-revolução industrial. E me interrogava sobre as razões de um sucesso indiscutível em longínquas plagas, numa sociedade escravocrata, onde não caberiam portanto as questões levantadas por Chevalier. Mas leituras e reflexões subseqüentes mostraram que se pode, me parece, pensar que uma das leituras da recepção ao folhetim romântico francês e seus continuadores poderia, sim, ser feita a partir da chave do binômio classes laboriosas/classes perigosas. Uma chave que também revelaria medos e horrores, provocando no leitor aqueles turvos deleites, os medos deletérios: não é impossível imaginar que, pela mediação desses inconfessáveis prazeres, o tão divulgado, lido e treslido folhetim de Eugene Sue possa ter encontrado no leitor brasileiro da época uma particular ressonância que também remete a seu tema gerador: engendrado que foi o romance pelas condições peculiares de vida/sub-vida numa grande capital, em fase de modernização, narradas no registro do excesso. Mistérios e misérias das camadas populares parisienses auto-identificadas pela identificação que forjavam para elas os ricos e por elas assumida: classes laboriosas sinônimo de classes perigosas. Aqui, como lá, o mesmo medo dos possuintes, que criaram as classes criminosas ao confundir o malfeitor e o trabalhador. Medo maior em se tratando do trabalhador-coisa, coisificado pelo próprio dono. "O escravo é o homem que nasceu homem e que a escravidão tornou peste ou fera" (J. M. de Macedo, As vítimas-algozes). Dito de outra forma: "o escravo é um ente necessário cuja missão na terra é ser intermediário entre a matéria bruta e o cofre do senhor"2. Uma insegurança generalizada dominava campo e cidade, que o autor da encantadora Moreninha tentava descrever, num seu livro estranho e ambígüo, de 1869, As vitimas-algozes. Quadros da escravidão: "a vida, a fortuna e a reputação dos senhores estão de dia e principalmente de noite à mercê dos escravos" .3 Eugene Sue reconheceria os seus no "romance" que abre esses quadros, Simeão, o crioulo. No clima geral, na caracterização das "classes perigosas", nos epítetos, nas situações, no ponto de partida: semelhante àquele locus paradigmático que abre os Mistérios de Paris, o infame "tapis-franc", o "Lapin-Blanc, botequim "freqüentado por homens saídos das galés, larápios, ladrões e assassinos". Em que medida, ao emprestar a Sue o modelo consagrado dos espaços que abrigam as classes perigosas, Macedo, mais do que
128 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nU 2 cópia, não encontra a legitimação da referência literária para descrever, sem escandalizar o leitor, um muito cotidiano referente? Outra infecta tasca, a traduzir outra realidade social e econômica, mas que deve produzir o mesmo medo naqueles que, como Rodolfo, não têm por hábito freqüentá-la e passam ao largo: Medo na roça. Medo no Rio de Janeiro. E medo em Paris capital do século XIX - diante dos "selvagens da civilização" descritos por Eugene Sue. Estes, aglomerados no escuro de ruelas e becos, e nas margens desertas do rio, o rio Sena, em infectas espeluncas. E a provinciana Rio de Janeiro, também noturnamente entregue aos mesmos "selvagens" urbanos, não os exóticos filhos da selva, mas os selvagens da "não civilização". Violência das maltas de capoeira, rondando, atemorizadoras, por vielas e becos escuros, vaganças das" classes perigosas" que englobam tanto o negro como o branco livre, trabalhador ou não, excluído do mundo do trabalho por gosto, fuga ou coerção. Não são menos assustadores os "quadros do mal" que "fazem", por exemplo, os "ravageurs" no romance de Eugene Sue, ou os desmandos do Chourineur antes de sua conversão, como aliás é igualmente repelente a miséria total de MoreI e sua família, tão honestos, mas tão calamitosamente diferentes. Lá como cá podem ser terrivelmente assustadoras as "classes laboriosas/classes perigosas" e o encanto da ficção disfarça ainda que espelhe uma realidade de guerra, a guerra encarniçada do que não se pode chamar senão de luta de classes, e provoca no leitor de lá e de cá o que seria uma idêntica" angústia social". (Bussiêre, in Europe, p. 44) A angústia que suscitam todas aquelas' 'vítimas" que fomos encontrando no conjunto dos folhetins, todas as vítimas de uma sociedade onde reina a lei do mais forte. Mas como se não bastasse, vai ser acoplada ao negro outra figura da violência, um outro atributo a reforçar sua periculosidade, uma figura que reativa grandes medos. O medo da doença, o medo da morte, o medo da peste, em suma. Aquela peste que já se materializara na mortífera colera, praga real no século XIX, mas também praga mítica, ficcionalizada no outro grande folhetim de Sue, O Judeu Errante. Jurandir Freire Costa aponta para essa nova figura do medo chamando a atenção sobre a necessária alteração no uso do "escravo doméstico urbano [... ], perdido e afastado dos companheiros, no isolado trabalho de uma casa". Esta mudança está estreitamente ligada à transformação da
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mulher da família tradicional colonial numa mulher ocidentalizada, à européia. A mulher "higienizada", cuja casa, por conseguinte também deve ser higienizada. Nesse processo, o papel tradicional do escravo doméstico há que ser repensado, diz Jurandir Freire Costa: A função do escravo dentro da casa foi modificada a partir do momento em que se processou a luta médica para a "casa higiênica" . "Os médicos criaram então um outro procedimento tático: inverteram o valor do escravo. De 'animal' útil ao patrimônio e à propriedade, ele tornou-se animal nocivo à saude" . A solução encontrada foi confundir o próprio negro com a doença, e alinhá-lo' 'junto com 'miasmas', 'insetos', 'maus ares' e 'maus hábitos', tornando-se um veneno que a família absorvia" na casa não reconvertida às exigências da higiene. O leitor terá reencontrado na figura desse bicho-coisa-moléstia, "bárbaro", "degenerado", "cheio de vícios físicos e morais", "ébrio", "sedutor", que é o escravo, muitos dos "vícios" que definiam no folhetim os despossuídos: as mulheres de rua ou da fábrica, os operários ... E pode-se ainda perguntar em que medida a existência de todos esses "selvagens da civilização", que incluem até negros, em pleno coração da própria capital da civilização, modelo supremo, não teria permitido aos primeiros leitores brasileiros de Sue, aquela certa elite que tinha acesso aoJornal do Comércio e outros, de se sentirem como que auto-justificados diante daquilo que lhe" custa encarar de face" . (Macedo, I, vi). E que é tão facil escamotear atrás do brilho das parisienses vitrines da rua do Ouvidor e das luzes dos salões. Aquilo que é o não dito da literatura brasileira do tempo, quanto muito cotucado com vara longa. No teatro de Martins Pena, por exemplo, ou ambiguamente evocado pelo mesmo Macedo naquela sua face hedionda de venda de beira de estrada. Tautológica metáfora para dizer/não dizer a "escravidão, um mal enorme que afeia, infecciona, avilta, deturpa e corro e a nossa sociedade". (I, VI). Um não dito cujo corolário é o medo. Mas, afinal de contas, como o medo também prolifera na Cidade Luz, obscurecida pelas trevas das classes perigosas ... Selvagens da civilização na brilhante Europa, civilização dos "selvagens" dos trópicos, civilizados, entre outros, por obra e graça dos romances vindos de Paris, cuja leitura, até nos serões das fazendas, permitiria fazer ouvidos moucos e calar os sobressaltos quando ecoa na noite a fala dos tambores e do jongo. anunciadores de revolta e vingança. Espeluncas, negros hediondos, jongos e caxambús dos feiticeiros, envenenamentos e assassinatos de senhores, estupro de sinha-
130 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 zinhas. Escravos-miasmas ... Mais tarde, meninos vidreiros, mulheres italianas defloradas pelo fazendeiro ou pelo contramestre, meninas perdidas. Continua-se o elenco? meninos de rua, e, sempre a subalternização do negro. Etc. etc. etc., um infindável etecetera. Contribuição autenticamente brasileira a acrescentar a cor local e o exotismo ao soturno e paroxístico universo folhetinesco parisiense. Não teriam faltado portanto elementos de identificação, e até mesmo nos grandes traumas urbanos, entre leitores franceses e leitores/ouvintes dos atemorizadores folhetins de Eugene Sue, que projetavam um medo que se prolongou no modo do desvario rocambolesco e será como que diluido no miserabilismo, igualmente repelente para os bem pensantes, dos romances de Richebourg ou Montépin. Uma identificação que o provável aumento de consumidores do folhetim francês, mais apelativo que os fracos congêneres nacionais vai também provocar no próprio sujeito-objeto do medo dos primeiros e possuintes leitores. Haja visto os testemunhos do pessoal dos Gattai, e de J acob Penteado, que completam os do Senhor Marino, de Jean Lec1erc, ou Yves Olivier Martin, a confirmarem todos as agudas percepções de Gramsci. E ainda que não se tenham provas mais concretas de que aquela nova "subalternidade" brasileira tivesse tido acesso ao folhetim, a familiaridade com seu universo era total. O descaso à lei pelos ricos, a cegueira da justiça para os pobres. E o cotidiano era tão folhetinesco quanto era folhetinesco e melodramático o discurso dos jornais ou dos tribunais. Daqueles juízes apreciando as acusações das "meninas perdidas", defendendo seus agressores; dos jornais descrevendo os horrores cometidos pelos escravos e suas obviamente hediondas faces. Mundo folhetinizado para efeitos de persuasão, onde o medo entrava como peça fundamental. Mundo folhetinesco a exigir o discurso do melodrama para dizer o paroxismo das situações, o paroxismo dos sentimentos. Paroxismo da linguagem dos acusadores e das vítimas. Uma fala que é quase como que o discurso "natural" dos despossuídos, daqueles que só têm o corpo, o grito, o descabelamento para dizer da inominável aventura de seu cotidiano, antes de acabar servindo também aos moralizadores bem pensantes.
A LINGUAGEM DO MELODRAMA Uma linguagem cuja retórica é escandalosa, insuportável, de mau gosto para os parâmetros da crítica oficial e do código dominan-
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4. BROOKS, Peter. "Une eslh<'tique de I'étonnement: le :noélodrame", in Poétique, 129,1974. Ver também L 'Im,Jll'!Qginazione melodrammati-
,a. Parma: Pratiche, 1986.
5. É interessante notar as diferentes recepções ao melodrama nestes últimos tempos. Nos anos 70, melodramas de Victor Hugo representados em Paris, só podiam ser levados no modo paródico. Já em 1992, foi levada num teatro de Paris uma fidelíssima adaptação do célebre Les deux orphelines de Dennery, por jovens atores que se entregavam de corpo e alma e provocaram emoções numa platéia bastante diversificada, que, a muito custo, retinha
as lágrimas. Pensa-se nos valores morais e sua crise ...
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te. Lembrando Victor Hugo em William Shakespeare: "o bom gosto é uma precaução tomada pela boa ordem." Não seria, sugere o historiador da literatura Peter Brooks,4 não seria porque' 'representa uma vitória sobre o recalcado? [... ] a articulação do melodrama rompe as barreiras do princípio de realidade, e tudo o que esta comporta em matéria de boas maneiras e de modulações. Ter a coragem de pronunciar frases tais como 'o céu é testemunha de minha inocência' ou, 'hei de perseguir-te até o túmulo' é alcançar a expressão perfeita das condições psíquicas e morais na sua forma menos complicada e mais infantil. [... ] Quando nós dizemos todos os dias 'pai' ou 'filho', é com um tom modulado, acomodado às convenções e aos matizes da existência. Quando se enunciam as mesmas palavras no melodrama é para nomear a plenitude quase insuportável do sentimento essencial. As emoções e condições exprimidas nos transtornam pela sua pureza instintual: é forte demais o seu gosto. E, no entanto, aí reside, sem dúvida, uma das causas da atração e do sucesso duradouro do gênero. Gênero cuja própria existência se liga à possibilidade e à necessidade de dizer tudo. Esta subida do.reprimido graças à retórica está intimamente ligada ao esforço fundamental do melodrama para colocar e exprimir com clareza os problemas morais de que trata. [... ] O reconhecimento final da virtude permite uma leitura moral do mundo [... ] e nos garante que uma leitura moral do universo é possível, que o universo possue uma identidade e uma significação morais. Num universo dessacralizado, onde os imperativos morais e claros comunitários se perderam, onde o reino da moral foi ocultado, a função primordial do melodrama é de redescobrir e de reexprimir claramente os sentimentos morais os mais fundamentais e de render homenagem ao signo do bem. [... ]"5 Se lembramos que Coelina foi um romance "popular" de Ducrai-Duminil, e reescrito pelo mesmo autor constituindo o primeiro melodrama "oficial"; que, por sua vez, a inspiração dos Mistérios de Paris nasceu de um melodrama, e que o romance de Sue tornou a voltar para o palco, e que essa interação teatro de melodrama e romance-folhetim foi ininterrupta, a análise de Peter Brooks também é válida para o romance-folhetim. Permite inseri-lo nesse grande discurso da "imaginação moral", na feliz expressão de Brooks, que faz a força e a importância de um gênero tão injustamente desprezado.
132 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 FOLHETIM E AMÉRICA LATINA Não será por acaso que melodrama e folhetim parecem ter encontrado seu terreno de eleição pelas plagas da América Latina. Sabe-se que muito cedo, tal como no Brasil, o romance doméstico à inglesa e o folhetim francês, traduzido em jornal, invadiram Colômbia, México, Argentina, etc. E, com o tempo, esse universo romanesco, pelo habitual caminho de jornais recortados e fascículos, lidos ou contados oralmente, terá alcançado aquelas classes subalternas, as historicamente exploradas e sofridas massas da América Latina. Não é de espantar portanto a fácil aclimatação nesses países onde "a desgraça pouca é bobagem" de um gênero romanesco que, além de cativar auditórios e leitores pelas engenhosas tramas, tematisava sub-condições de vida, exacerbadas relações pessoais e familiares. Desenvolvia um paroxismo de situações e sentimentos mal e mal canalizados por uma mensagem conservadora que se desejava conciliadora, mas não apagava totalmente seu valor de denúncia, e cultivava uma forma de sobressalto narrativo a mimetizar o sobressalto do vivido, amenizando-o pela magia da narrativa. Uma literatura romanesca despudoradamente expressiva, o que vinha de encontro àquela já mencionada tradição, que também é ibérica, do gosto pelo excessivo gestual, o empolado da palavra que compõem a oratória, tão apreciada pelas populações analfabetas. Reflexo paroxístico de sua secular desgraça e permanente aspiração a um universo moral, onde finalmente reinasse a justiça. E o amor. Aquele amor puro que busca na leitura de romances o velho caçador de onça da floresta amazônica, herói de um romance dedicado a Chico Mendes pelo chileno Luis Sepulveda: noite de vigília de caça a onça brava, à luz do lampião, o velho lê um livro, para espanto de um seu companheiro. "É verdade que sabes ler?" " Um pouco". "E você lê o que?" Um romance". "Fala de quê?". "De amor". Há no universo melodramático uma dimensão profunda que Vargas Llosa tenta apreender no seu belo ensaio A orgia perpétua: "Melodrama talvez não seja palavra exata para expressar o que quero dizer, porque tem uma conotação ligada ao teatro, ao cinema, ao romance, e eu me refiro a algo mais vasto, que está presente sobretudo nas coisas e homens da realidade. Falo de uma certa distorção ou exacerbação do sentimento, de perversão do gosto entronizado em cada época, dessa heresia, contraponto, deterioração (popular, burguesa e aristocrática), que os modelos estabelecidos pelas elites, como padrões estéticos, lingüísticos, sociais e eróticos sofrem em
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6. LLOSA, MARIO VARGAS. A orgia perpétua: Flaubert c Madamc Bovary. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979, pp.20-21.
7. ou Quadcrni, vol. 2, par. 208, Miscellanea - 1930, pp. 845-846.
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cada sociedade; falo da mecanização e aviltamento de que, na vida cotidiana, padecem as emoções, as idéias, as relações humanas; falo da inserção, por obra da ingenuidade, da ignorância, da preguiça e da rotina, do cômico no sério, do grotesco no trágico, do absurdo no lógico, do impuro no puro, do feio no belo. [... ] o elemento melodramático me comove, porque o melodrama está mais perto do real que o drama, a tragicomédia que a comédia ou a tragédia." "Quando uma obra de arte inclui, além dos outros, entremeados a eles, [... ] esse lado ridículo, patético, burlesco, ruim, alienado e estúpido, e o faz sem tomar uma distância irônica, sem estabelecer uma superioridade intelectual ou moral, com respeito e verdade [... ], sinto uma emoção idêntica à que me produz a representação literária da rebeldia e da violência. "6 Melodrama e folhetim invadem o cinema. O cinema das auroras, emocionando e alimentando o imaginário brasileiro e latino americano. Construindo os futuros personagens dos romances de Manuel Puig. E desembocam no cinema mexicano. No tango e na canção sertaneja. Na "circo-canção" de Vicente Celestino. Quem não chorou comA cabocla Tereza? Coração materno? O ébrio? Folhetim-melodrama matriz da rádio-novela, romanceada por Vargas Llosa em Pantaleão e as visitadoras. E last but not least, pela mediação da mesma rádio-novela, o folhetim é fundamento da telenovela, esta grande criação narrativa da América Latina. Com a primeira grande gesta da integração latino americana: do rádio para a televisão, de Cuba "para o mundo": O direito de nascer. Gramsci, quem sabe, veria na telenovela aquela releitura atualizada, aquela "tradução" que ele sugere que se faça dos romances populares. (GRAMSCI, 1950:134-135).7 Não seria a telenovela a "tradução" atualizada de um velho gênero que jornais, revistas (a Fon-Fon), fascículos, prolongaram pelo século XX adiante, recontado através de novos veículos? Um produto novo, de refinada tecnologia, nem mais teatro, nem mais romance, nem mais cinema. Onde reencontramos o de sempre: a série, o fragmento, o tempo suspenso que reengata o tempo linear de uma narrativa estilhaçada em tramas múltiplas enganchadas no tronco principal, compondo uma "urdidura aliciante", aberta às mudanças segundo o gosto do "freguês", tão aberta, que o próprio intérprete, tal como na vida, nada sabe do destino de seu personagem. Precioso freguês que precisa ficar amarrado de todo jeito, amarrado por ganchos, chamadas, puxado por um suspense que as antecipações anunciadas na imprensa especializada e até cotidiana não comprometem, na medida em que a curiosidade é atraída tanto pelo como,
134 - Rev. Brasil. LiL Comparada, nº 2 quanto pela expectativa dos diversos reconhecimentos que dinamisam as tramas. E sempre, no produto novo, os antigos temas: gêmeos, trocas, usurpações de fortuna ou identidade, enfim tudo que fomos encontrando nesta longa trajetória, se haverá de se reencontrar nas mais atuais, modernas e nacionalizadas telenovelas. Sua distribuição em horários diversos correspondendo a modalidades folhetinescas diferentes: aventura, comicidade, seriedade, realismo. Sempre de modo a satifazer o patrocinador. Mas falta ao folhetim televisivo a audácia dos velhos antepassados, onde, por mais edu1corados que tentassem ser, a "moral" nunca chegava a apagar o escândalo de um cotidiano mal vivido por muitos, escandalosamente presentes entre os personagens. Talvez a violência da realidade vivida nestes nossos países sej a folhetinesca demais para ser verossímil ficcionalmente. Os aqui e agora de uma miséria sem mistérios não ousariam transpor a barreira do "fait divers", mas não têm como dispensar para dizê-la a grandiloqüente e insubstituívellinguagem do não-escrito folhetim. Por outro lado, se no "gênero traduzido", a concretude explícita da imagem é talvez menos favorável ao devaneio imaginativo do que a leitura/oitiva, ela torna porém mais falaciosas ainda as identificações e projeções com o ilusório "realista" do faz de conta. Mas nem por isso o moderno avatar da novecentista "literatura industrial", relida e renarrada com os novos artifícios da nova tecnologia, e, agora, plenamente massificada, com seu público de milhões de pessoas do alto a baixo da escala social, deixa de pressupor velhos modos narrativos: todos aqueles narradores à antiga, que recontam a história contada pela telenovela na fala adequada a um público acostumado a outros códigos. Outra vez uma novela sem fronteiras. Tal como a novela franco-inglesa de gabinete de leitura, modelo Sinclair das Ilhas, tal como o romance-folhetim importado, uma fonte de sonhos e de lucro. Mas desta vez é a Europa e o mundo que se curvam diante da América Latina. Do Brasil em particular, o grande fornecedor e exportador da velha/nova matéria-prima narrativa. Mas voltando ao nosso mal amado, denegrido, consolador, iterativo, matricial folhetim. Folhetinesco? E a vida? Interroguem-se os manes de Nelson Rodrigues-Suzana Flag-Myrna, o agudo e impiedoso escrutador da "vida como ela é". E lembro ainda uma peça, El dia en que me quieras, do venezuelano Cabrujas, que sugere outras leituras ainda do folhetim. Enquanto toda a cidade ferve de impaciência, esperando a chegada do grande herói, o mito latino americano nascido na França, Carlos
Um Fenômeno Poliédrico 8. Até mesmo a dos sentenciados e piores fascinoras, diz Eug~ne Sue nos capítulos finais dos Mistérios, aqueles em que desenvolve suas teorias sobre regime penitenciário, a pena de morte, etc. Nos capítulos 1 a 9 da oitava parte, entremeia, com grande habilidade narrativa, peripécias terríveis com o ato de contar histórias por Pique-Vinaigre, bandido pé-de-chinelo, condenado à exposição em praça pública e às galés, e que faz um dinheiro graças a seu talento. Como explica Eugene Sue: "existia antigamente nas prisões um contador oficiaI que, mediante leve contribuição de cada preso, tornava mais leves as longas noitadas de inverno, graças a suas improvisações. E, se já é curioso assinalar esta necessidade de ficções, mais curioso ainda é o que pode observar o pensador: essa gente corrompida, esses lad~s, esses assassinos antes preferem histórias com sentimentos generosos, heróicos, com relatos onde a fraqueza e a bondade são vingados das opressões selvagens. Do mesmo modo as meninas perdidas: elas apreciam especialmente a leitura de romances singelos, comoventes, e geralmente têm asco às leituras obcenas. Pique-Vinaigre possuía esse dom para os relatos heróicos, onde a fraqueza, após mil obstáculos, acaba por triunfar sobre seus perseguidores. [...] da mesma maneira os populares dos teatros de boulevard acolhem com aplausos frenéticos a libertação da vítima e apupam com apaixonadas imprecações o mau ou o traidor [... ]; é um pessoal que jamais aceitaria uma obra dramática cujo desenlace fosse o triunfo do celerado e o suplício do justo." (Mystcres de Paris. Paris: Hallier, 1978, vol. 3, p. 58, pp. 303-304.
9. PrólogodePapini,Elespe-
jo que huye. Biblioteca de BabeI, Ricci, 1978, p. 7
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Gardel, - naquele avião que haverá de se espatifar na chegada -, um jovem acalanta outro sonho. Quer mudar os destinos do mundo e ir trabalhar num kolkhose na União Soviética. Sonho de justiça e mudança, que foi inspirado pela tragédia da mãe: cansada de passar fome, enforcou-se. Trampolim para a morte, o degrauzinho formado por uma pilha de livros: romances-folhetim de Xavier de Montépin. Ambígüa mensagem. Que reflete a ambigüidade, a complexidade, o caótico associado ao' 'monstro", a cuja volta venho tentando passear. Não foi possível completar a figura do poliedro, dar a volta completa ao "monstro", nem fechar o périplo, muito menos fechar a questão. Esta fica em suspenso. E não há explicação que dê conta plena do "fenômeno". Em última análise, romance grego, canção de gesta, "romance", "nove}", trancoso, folhetim, novelão, estórias de Malva ou da negra Totonha, Golo perseguindo Geneviêve de Brabant na lanterna mágica do menino Marcel em Combray, mosqueteiros, Sinclair, Sherlock Holmes, Amanda, Salomão Ayala, Vautrin, Emma Bovary, Pavão Misterioso, Oliveiros, Raskolnicof, o de ambulante Ulisses-Bloom, Diadorim... Tudo são histórias que compõem e ajudam a vida de cada um e de todos nós. 8 E delas se pode dizer o que Borges diz das histórias de R. L. Stevenson, de Emílio Salgari ou das Mil e uma noites: "son formas de felicidad, no objetos de juicio."9 E, para finalmente concluir, recorro a outra citação, a de um grande 'estudioso do assunto, para fazer-lhe endossar, a ele, a explicação inconfessável, aquela que talvez recubra todas as outras, e o populário exprime tão bem: o que é de gosto regala a vida. A citação é tirada da conclusão do livro pioneiro, eruditíssima pesquisa, de Regis Messac, Le "detective novel" et l'influence de la pensée scientifique. "Para escrever estas páginas precisei ler milhares de romances-folhetim, de livros de detetive, 'noveIs' e 'romances'. Ainda que, ao fazer esta confissão, corra o risco de comprometer minha reputação de homem sério, agora que terminei meu livro, continuo a ler aqueles romances." E arremata, como palavra final, com uma surradíssima citação de um clássico francês. Que transcrevo no original, não só para também parecer mais sério, mas igualmente porque é a língua de Eugene Sue e de Dumas, de Rocambole e de Pardaillan: "Si Peau d'âne m'était conté J'y prendrais un plaisir extrême ... " O que é de gosto ... FIM
LucíOLA E ROMANCES FRANCESES LEITURAS E PROJEÇÕES*
Sandra Nitrini
Lia-se até a hora do chá, e tópicos havia tão interessantes que eu era obrigado à repetição. Compensavam esse excesso as pausas para dar lugar às expansões do auditório, o qual desfazia-se em recriminações contra algum mau personagem ou acompanhava de seus votos e simpatias o herói perseguido. JOSÉ DE ALENCAR,
• Texto publicado em Parcours/Pcrcursos Brasil-França; Percursos Literários. Org. de Glória Carneiro do Amaral e Gilberto Pinheiro Passos. São Paulo: FFLCHUSP/CAPES, 1992, pp. 1927. Distribuição restrita. 1. São Paulo: Átiea, 1977. 2. Paris: Garnier-Flammarion, 1966. 3. Paris: Garnier-Flammarion, 1966.
"Como e porque sou romancista' ,
Quando José de Alencar opta por criar situações nas quais suas personagens lêem obras literárias, ele não está apenas se inserindo numa tradição de uso de determinado recurso poético, mas está também introduzindo nas entranhas de sua obra a explicitação dos modelos em que se apóia para realizar seu projeto de criação do romance nacional. Imbricam-se leituras realizadas pelo escritor e seu processo de escritura, através do qual essas leituras adquirem estatuto de ficção, ao serem feitas pelas personagens. Tendo como substrato esta idéia, volto-me para um estudo de Lucíola,' com o intuito de desentranhar de seu discurso modalidades de leituras de romances franceses realizadas por suas personagens principais. São três os romances lidos por Lúcia e Paulo: Paul et Virginie de Bernardin de Saint-Pierre,2 Atala de Chateaubriand 3 e La dame
138 - Rev. Brasil. Li!. Comparada, nº 2 aux camélias de Alexandre Dumas Filh0 4 publicados, respectivamente, em 1788, 1801 e 1848. Lucíola surgiu em 1862. Desses romances, não há dúvida de que a relação de simbiose mais intensa de Lucíola é com La dame aux camélias, o que talvez constitua um dos fortes fatores que levaram parte da crítica contemporânea ao autor, determinada por uma concepção equívoca do que seja o processo criador, a acusá-lo de imitar Dumas Filho. Salta aos olhos até do leitor mais desavisado a semelhança temática dos dois romances e de situações vivenciadas pelos pares Armand-Marguerite e Paulo-Lúcia. 5 Lucíola e La dame aux camélias giram em torno da relação amorosa de dois jovens provincianos por duas cortesãs famosas e cobiçadas. Num primeiro momento, ambos relutam em aceitar a verdadeira condição de suas amadas; num segundo momento, os dois casais isolam-se, e, por fim, acabam se separando por pressões de ordem social, embora persistam laços afetivos entre eles. O primeiro encontro de Paulo e Armand com Lúcia e Marguerite realiza-se em espaço público: na rua das Mangueiras e na praça "de la Bourse". Ambas provocam-lhes profunda admiração e uma visão idealizadora que as coloca no elenco das mulheres' 'mães" e "irmãs", protótipos significativos do ideário burguês. A "encantadora menina" e a "femme vêtue de blanc" configuram-se como personagens dignas de desempenharem o papel de heroínas, por suas características tão celebradas: "pureza", "virgindade" e "beleza", como manda o figurino romântico. Amigos facilitam a aproximação de Paulo e Armand à Lúcia e Marguerite, na Festa da Glória e no "Opéra Comique", à manifestação respeitosa dos jovens para com as moças, segue-se a revelação, por parte de Sá e Gaston, do papel que elas desempenham na sociedade e o conseqüente embaraço dos dois. N a primeira visita que ambos fazem às jovens, tanto uma como outra demonstram não os reconhecer. Depois de eles fornecerem detalhes do primeiro encontro, as duas confessam lembrar-se e os tratam amavelmente. N as ceias da casa de Marguerite e Sá, a reunião caminha para um clima de libertinagem. Os dois moços distanciam-se cada vez mais dos outros convidados e justificam a presença de Lúcia e Marguerite em tal ambiente, apresentando-as como "elementos deslocados". No entanto, a francesa canta canções libertinas e a brasileira desfila nua para os presentes. Tais atitudes turvam a visão pura e casta que elas tinham despertado nos dois provincianos. Armand pede a Marguerite para não cantar. Paulo pede a Lúcia para não
4. Paris: Nelson et Calmann Lévy, s.d.
5. Permito-me retomar, aqui, algumas ocorrências similares que já tive oportunidade de assinalar, no artigo HLu_ cíola e A dama das camé-
lias". Travessia (16/17/18). Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1988/89, pp. 84-97.
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desfilar. Ambas, porém, assumem sua condição diante de seus apaixonados. Uma e outra dão seu grito de revolta. Lúcia enfrenta a pressão da sociedade contra sua união com Paulo, num discurso de alcance mais social. Marguerite manifesta-se contra um bilhete irônico e ciumento de Armand. Os dois jovens apaixonados vão a bailes onde sabem que encontrarão as sedutores cortesãs. E ambos servem-se de outras mulheres de vida fácil, amigas de Lúcia e Marguerite, para provocarlhes ciúmes. As duas lêem romances cujo tema trata do amor entre jovens levianas e moços da sociedade. Marguerite lê Manon Lescaut de Abbé Prévost: estória do amor fatal do cavaleiro des Grieux por Manon que, apesar de sedutora e infiel, corresponde profundamente a seu sentimento. Lúcia lêA dama das camélias. Ambas "regeneradas" condenam a atitude das heroínas dos romances. Para Marguerite, é impossível agir como Manon, quando se ama. Para Lúcia, Marguerite desrespeita o amor, dando ao ser amado seu corpo profanado, "com as torpes carícias que tantos haviam comprado". Além dessas e muitas outras similaridades marcantes no nível das" situações narrativas", aparecem em Lucíola várias referências ao romance de Dumas Filho, através das quais as personagens alencarianas comprovam a densidade da recepção desse livro no Brasil do século XIX. Elas se valem do termo "camélia", como signo de um código de comunicação que se propõe a estabelecer um contrato de compra e venda de corpo entre emissor e receptor. É com esse conteúdo semântico que Cunha envia a Lúcia' 'um vaso de cristal cor de leite", ostentando uma "camélia soberba" junto com uma carta na qual "insistia com Lúcia para aceitar o seu amor, oferecendo-lhe as condições mais brilhantes que poderia desejar uma mulher na sua posição". E também é com esse conteúdo semântico que Paulo, profundamente enciumado, lê o novo objeto que enfeitava a sala da casa de Lúcia, numa das escasseadas visitas que vinha lhe fazendo, na chamada fase de "regeneração". Compreendendo também esse código, Lúcia nega-se a identificar-se com a "dama das camélias" e, para dar prova disso a Paulo, lança da janela o objeto que tanto o irritara: O vaso e a flor acabavam de despedaçar-se nas pedras da calçada. Lúcia tomou-me a carta das mãos e sem ler rasgou-a friamente. (p. 93) Enquanto espalham-se pelo romance de José de Alencar refe-
140 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 rências aLa dame aux camélias, Paul et Virginie e Atala surgem em momentos pontuais do processo narrativo. O excesso de semelhança e a reiteração das referências ao romance de Dumas Filho podem ser interpretados como um propósito, por parte do autor, de traçar com veemência a relação especular entre seu romance e o do escritor francês. Detecta-se, pois, uma diferenciação de graus de relação entre Lucíola e os romances franceses acima referidos, no nível do discurso narrativo e de um movimento especular. No entanto, se adentrarmos o mundo das personagens e as focalizarmos como leitoras, veremos que os três romances aglutinam-se em torno de um traço constitutivo da interioridade de Lúcia e Paulo: projetam sua experiência de vida na leitura, estabelecendo uma relação entre e ficção e a "realidade" por eles vivida. Esse procedimento é encabeçado por Lúcia. Paulo revela-se um leitor distanciado. Incitado por ela, no entanto, não se' nega a estabelecer um paralelo entre sua experiência e a ficção e a discutir com Lúcia a respeito disso. A primeira leitura inserida em Lucíola é a do romance de Dumas Filho. Cumpre lembrar que o ato de ler só se explicita na chamada fase de regeneração de Lúcia, com início marcado por sua reconciliação com Paulo, após a interferência do abominável Couto. Vinte dias depois dos terríveis momentos que viveram, seguidos de um feliz reencontro, Paulo surpreende Lúcia lendo um livro. Assustada, ela o esconde "sob as amplas dobras do vestido", mas não consegue se livrar da agilidade de Paulo, que' 'meio à força, meio rindo", toma-lhe o livro. Ao narrar seis anos depois sua experiência com Lúcia, Paulo menciona as motivações que podem levar uma pessoa a ler: [... ] nem sempre por hábito ou distração, mas pela influência de uma simpatia moral que nos faz procurar um confidente de nossos sentimentos, até nas páginas mudas de um escritor. (p.83) Paulo-narrador enuncia, de certo modo, a poética da leitura realizada por José de Alencar no livro no qual se apresenta como um dos principais protagonistas. Ele <;hega a fazer indagações como tentativa de penetrar a fundo na interioridade de Lúcia, valendo-se de sua experiência enquanto leitor de La dame aux camélias: Lúcia teria, como Margarida, a aspiração vaga para o amor? Sonharia com as afeições puras do coração? (p. 83)
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o diálogo entre Paulo e Lúcia, seis anos antes, revela as posições contrárias que ambos têm sobre o romance de Dumas Filho e, de modo especial, sobre Margarida: - Esse livro é uma mentira! - Uma poética exageração, mas uma mentira, não! Julgas impossível que uma mulher como Margarida ame? - Talvez; porém nunca desta maneira! disse indicando o livro. - De que maneira? - Dando-lhe o mesmo corpo que tantos outros tiveram. Que diferença haveria então entre o amor e o vício? Essa moça não sentia, quando se lançava nos braços de seu amante, que eram os sobejos da corrupção que lhe oferecia? Não temia que seus lábios naquele momento latejassem ainda com os beijos vendidos? (p. 83) Encerra-se esse diálogo com as palavras de Paulo que toma a iniciativa de verbalizar a negação de uma possível identificação entre eles e o par amoroso francês, imediatamente corroborada por Lúcia: - Está bem; deixemos em paz A dama das camélias. Nem tu és Margarida, nem eu sou Armando. - Oh! juro-lhe que não! (p. 84) Profundamente irritada, Lúcia manifesta seu desejo de não acabar de ler' 'esse sacrilégio literário", rasgando-o com suas' 'mãos crispadas", Esse "livro inocente", "primor da escola realista", segundo Paulo, é estrangulado "como uma víbora" por Lúcia. Tal gesto bem como o diálogo que o antecede, através do qual a ex-cortesã brasileira faz severas críticas à sua homóloga francesa, respondem a uma necessidade de auto-afirmação: Lúcia busca um caminho próprio para dar fim a seu dilaceramento pessoal. Só ela tem conhecimento de que é Lúcia e Maria da Glória ao mesmo tempo; só Paulo intuiu a "presença" de Maria da Glória na cobiçada cortesã do Rio. Esse relacionamento abriu-lhe a possibilidade de recuperar de fato e socialmente a identidade perdida. Como Lúcia vive o conflito entre "a carne e o espírito" do qual Margarida está imunizada, só lhe resta, enquanto leitora que projeta sua vida na literatura, negar-se a espelhar-se na cortesã parisiense. A essa altura da narrativa, Lúcia dá início a um processo de recusa ao corpo, atitude enigmática para seu parceiro, acarretando algumas rusgas entre eles e interpretações equivocadas por parte de
142 - Rev. Brasil. Li!. Comparada, nº 2 Paulo, mas perfeitamente coerente com seu projeto de recuperar a identidade perdida e com sua concepção de amor, vivenciado por uma ex-cortesã. Depois de várias recusas aos assédios de Paulo, as quais provocaram seu afastamento, Lúcia vai procurá-lo e aceita passar o dia em sua casa, não sem antes lhe impor uma condição: a de não tentar possui-la. Os dois chegam a um acordo, e o dia transcorre tranqüilamente. Após o almoço, Paulo ausenta-se por algumas horas. Aproveitando essa oportunidade, Lúcia desempenha todas as funções de uma honesta e convencional "mulher do lar", arrumando as desordens da casa e das roupas, preparando quitutes e doces como uma exímia cozinheira e providenciando compras de artigos e produtos básicos para o bom andamento de uma casa. Surpreso e encantado com tudo isso, Paulo aproxima-se de Lúcia, fazendo-a sentar-se em seus joelhos e cobrindo-a de beijos, demonstrando, assim, que esquecera o compromisso selado entre eles. Ao dar-se conta de que ele não tem forças para cumprir sua promessa, ela dispõe-se a restituir-lhe sua palavra e se oferece como uma morta: Lúcia deu um passo para mim. Era realmente um corpo morto e uma feição estúpida que ela me oferecia. Repeli com vago terror. (p. 97) Logo em seguida a essa cena, depois de alguns momentos de descontração, Lúcia vai à estante e traz um livro para lerem juntos. Seduzida pelo nome de Paulo, ela escolhe o romance de Bernardin de Saint-Pierre, Paul et Virginie, que lhe entrega sorrindo. Assim diz o narrador. Será que é só o nome de Paulo que determina a escolha de Lúcia? O nome da protagonista francesa com toda sua carga semântica não a teria atraído também? Não estaria ela buscando, através desse título, o acesso a uma estória que lhe permitisse projetar-se numa heroína que se contrapusesse à "dama das camélias"? Ao som da voz de Paulo, Lúcia penetra no idílio fraternal daqueles dois jovens reintegrados na natureza paradisíaca da Ilha Maurícia. Ao dar-se conta da impossibilidade de recuperar seu tempo de menina, portanto, de se identificar com Virginie, ela arrebata o livro das mãos de Paulo, interrompendo-lhe a leitura. Tudo leva a crer que Lúcia toma conhecimento apenas do amor fraternal entre as crianças. A interrupção da leitura a impede de acompanhar o despontar das atrações sexuais que a, então, adolescente francesa começa a sentir por seu "irmão", assim como o afastamento dos dois. A leitura incompleta desse romance constitui um acertado recurso literário de que se vale José de Alencar para propiciar a Lúcia
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a oportunidade de começar a explicitar o novo código de relacionamento que elajá vinha propondo a Paulo. Em outras palavras, a leitura parcial de Paul et Virginie integra-se na esfera do amor dessexualizado insistentemente insinuado por Lúcia, a partir de um determinado momento de sua relação com Paulo. No entanto, essa explicitação, visível no plano da linguagem literária que se vale do recurso da leitura para a personagem expor-se, ainda não pode ser captada por Paulo. Lúcia não dialoga com ele sobre esse romance, apenas reage emocionalmente: Quando eu lia a descrição das duas cabanas e a infância dos amantes, Lúcia deixou pender a cabeça sobre o seio, cruzou as mãos nos joelhos dobrando o talhe, como a estatueta de Safo de Pradier que por aí anda tão copiada em marfim e porcelana. De repente a voz desatou num suspiro: - Ah! meu tempo de menina! Voltei-me para ela; as lágrimas caíam-lhe em bagas; quis atraí-la, fugiu, arrebatando-me o livro das mãos. (p. 98) De certo modo, o percurso de Lúcia e Virginie nas suas relações amorosas é inverso. Lúcia deseja transformar sua experiência afetivo-sexual em fraterna. Daí seu paulatino afastamento corporal do amado. Vivenciando um amor fraterno desde o berço, Virginie começa a sentir sua transformação, através de impulsos sexuais, o que lhe provoca mudanças de comportamento com Paulo, também muitas vezes incompreensíveis para ele. Mas as trajetórias de uma e outra se diferenciam muito. O embate de Virginie com seu "mal desconhecido" é solitário, uma vez que Paulo, adolescente, mantémse no registro do amor fraternal, apesar do projeto do futuro casamento entre eles, arquitetado pelas respectivas mães e compartilhado de bom grado pelos dois. Além disso, a luta interna de Virginie é aplacada por seu deslocamento a Paris, onde vai viver, a contragosto, com uma rica tia durante uns dois anos. Condição imposta pela parenta parisiense para que ela pudesse ter acesso a uma herança. A mãe apóia esta sugestão pois assim poderia garantir uma estável situação econômica para o futuro casal e, sobretudo, naquele momento, salvaguardaria Virginie do "mal desconhecido", que não havia escapado a seus olhos. Por outro lado, a identidade do nome das personagens masculinas não é suficiente para apagar profundas diferenças de conteúdo nas suas relações com Lúcia e Virginie. Quando lê o romance de Bernardin de Saint-Pierre, Paulo de Lúcia localiza-se na esfera do
144 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, n!! 2 amor sexual e nem sequer pode vislumbrar a possibilidade de vivenciar a experiência do jovem par francês. Talvez por isso, ele só consiga, como narrador, registrar a sedução de Lúcia pelo livro de Bernardin de Saint-Pierre em função da presença de seu próprio nome e lhe escape o significado de Virginie. No decorrer da narrativa, no entanto, essa experiência tornar-se-á realidade porque Lúcia conseguirá, através de atos e palavras, convencê-lo a aceitar as novas regras de relacionamento. Logo após a interrupção da leitura de Paul et Virginie, em meio a lágrimas de Lúcia, Paulo, pensando em distraí-la, traz da estante Atala de Chateaubriand.6 Note-se que;desta vez, é ele quem escolhe o romance. Lúcia consegue ouvi-lo com uma atenção religiosa, em seguida ao descontrole emocional, provocado pela leitura do livro de Bernardin de Saint-Pierre. A leitura desse romance permite à heroína alencariana acompanhar a luta interna de Atala para vencer sua paixão e não se entregar a Chactas. Quando chega a passagem em que a "jovem selvagem afirma que nunca será amante de Chactas", Lúcia interrompe a leitura de Paulo, com as seguintes palavras: - Não podíamos viver assim? (p. 98) Impõe-se, aqui, assinalar a transformação operada por Paulonarrador no texto de Chateaubriand. Na verdade, o termo "amante" não coincide com a exata palavra "esposa", utilizada por Atala, ao se dirigir a Chactas na cena referida em Lucíola. Ao final de uma longa declaração de amor diz Atala: Eh! bien, pauvre Chactas, je ne serai jamais ton épouse! (p. 97) Tal substituição terminológica revela a deformação causada pela leitura projetiva de Paulo. A palavra "amante" remete tanto ao sujeito do amor quanto a um relacionamento amoroso fora do casamento. O termo "esposa", por sua vez, refere-se à idéia de um relacionamento selado por um contrato social, no contexto em que viviam Paulo e Lúcia. Independentemente do conteúdo destes termos nas intervenções de Atala e Chactas, os quais os empregam um pelo outro, a substituição operada por Paulo evidencia sua leitura projetiva. Ela está em consonância com a problemática do relacionamento entre ele e Lúcia. Há pouco, ela se negara a oferecer-lhe o corpo, ou, recuando diante de seus propósitos, dispusera-se a entregar-se como morta. Por outro lado, a forte relação amorosa entre os dois não é
6. Os leitores contemporâneos de Chateaubriand foram muito sensíveis às possibilidades de aproximaçio entre Alala e Paul cl Virginic. Chateaubriand nunca negou a inf1uincia de Bernardin de Saint·Pierre, chegando a declarar que sabia mais ou menos de cor o célebre romance deste autor. Embora longo para uma nota, não posso me furtar a oportunidade de transcrever um paralelo entre esses dois romances feito por Dussault, em artigo que apareceu em Journal dcs DébtJts, em 17 de abril de 1801: "Ambos se propuseram a uma grande finalidade moral e parece terem se guiado pelos mesmos principios e mes· mos sentimentos. Mas o autor de Paul cl Virginic é mais doce, mais agradável, mais perfeito; o de Atala mais nervoso, mais forte, mais enérgico. Um é mais equilibrado, contido, outro mais ousado, mais impetuoso. O autor de Paul ct Virginic dá mais importância às idéias morais, o de A tala às idéias religiosas. O primeiro honrou a religião com paixão, censurando seus ministros com amargura: o segundo honra e inclui nas mesmas homenagens o dogma, o culto, os ministros e a religião, ao mesmo tempo. Em Paul cl Virginic, um padre torna-se uma causa indireta, mas sempre odiosa, da catástrofe fatal: em Atala é um padre que repara todos os males causados pelas paixões, ignorância c fanatismo. A
Lucíola e Romances Franceses obra de Bernardin de SaintPierre ressente-se daqueles tempos em que dominavam a sátira religiosa e o espírito de inovação: a do cidadão Chateaubriand, de uma época em que a piedade, a consideração e a verdadeira filosofia lhe sucederam." Tradução minha. Apud introdução de Ferem nand Letessier Atala-René, Les Aventures du Dernier Abencérage. Paris: Garnier, 1958, pp. XIV-XV. Cumpre assinalar que sessenta anos depois, tais romances foram selecionados para comporem, lado a lado, o perfil de um heroína brasileira, cujo criador tivera acesso a uma vasta biblioteca européia, conforme se verifica em "Como e porque sou romancista" .
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suficiente para eles pensarem sequer na possibilidade de a oficializarem. Introjetando os preconceitos da sociedade, nem Paulo nem Lúcia admitiam o casamento como solução para o envolvimento entre eles. Lúcia jamais seria esposa de Paulo. Este continuava querendo-a como amante. Em nome de um verdadeiro amor, ela começa a recusar-se a sê-lo. Neste sentido, o termo "esposa" inexiste no eixo paradigmático do código de relacionamento dos dois. Esse pequeno detalhe mostra mais uma vez que José de Alencar manuseia sabiamente seus instrumentos de ofício. A leitura projetiva de Paulo, tal como ele r~vela seis anos depois de sua efetiva realização, abre uma brecha para sua ouvinte interrompê-lo, o que talvez não ocorresse, se o leitor tivesse sido rigorosamente fiel ao texto de Chateaubriand. Desta vez, o recurso da interrupção abre espaço para Lúcia verbalizar "com todas as letras" o desejo de que ela e Paulo se espelhem no modelo dessas personagens francesas. Os dois discutem e manifestam pontos de vista diferentes, tal como fizeram a respeito de La dame aux camélias: - Atala tinha um motivo para resistir, Lúcia! - E eu não tenho? - Ela obedecia a um voto; e a virgindade lhe servia de defesa. Lúcia respondeu-me arrebatadamente: - Alguns espinhos que cercam a rosa, valem o veneno de certas flores? Um voto é coisa santa: mas a dor da mãe que mata seu filho é horrível. - Não te entendo! Ela demorou um instante o seu olhar ardente sobre mim, e murmurou abaixando as longas pálpebras: Queria dizer que se eu fosse Atala, poderia perder a minha alma para dar-lhe a virgindade que não tenho; ffi;l>S o que eu não posso, é separar-me deste corpo! (p. 98) Recordemos, aqui, em linhas gerais a estória de Atala. Chactas, índio da tribo dos Natchez cai prisioneiro dos Muscogulges e é libertado por uma de suas jovens, Atala, que o acompanha na sua fuga. Apaixonados, os dois sentem atração mútua e vivem em circunstâncias totalmente favoráveis para que se consume a união entre eles. Chactas, como Paulo, também experimenta as perpétuas contradições de sua amada, que o atraía e o repelia, que o contemplava com olhar apaixonado, para, em seguida, desviá-lo em direção ao céu: Les pérpetuelles contradictions de l'amour et de la religion
146 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 d' Atala, l'abandon de sa tendresse et la chasteté de ses moeurs, la fierté de son caractere et sa profonde sensibilité, l'élevation de son âme dans les grandes choses, sa susceptibilité dans les petites, tout ne pouvait pas prendre sur un homme un faib1e empire: pleine de passions, elle était pleine de puissance: il faUait ou l'adorer, ou la haú. (p. 97)
o enigma desfaz-se para Chactas quando Atala, depois de ter se envenenado, conta que sua mãe, não se satisfazendo em batizá-la para que ela seguisse a religião de seu verdadeiro pai, Lopez, também a consagrara à Virgem Maria, o que a obrigava a manter votos de castidade. Como bem leu Paulo, o impedimento para a realização amorosa desse par romântico indígena devia-se a um motivo de ordem espiritual que não podia, de modo algum, ser transposto para suas vidas. Lúcia não faz uma leitura literal neste sentido, mas procura explicitar a legitimação de seus motivos, fundamentados em nome de um verdadeiro amor. Para Atala, impedir a posse de seu corpo obedece a um imperativo de ordem sagrada. Para Lúcia, recusar-se a entregar-se a Paulo insere-se no seu projeto de recuperar o verdadeiro amor. Negar o corpo significa apagar sua história, já que Lúcia não pode mais oferecer, a Paulo, sua virgindade. A resposta de Lúcia ao argumento levantado por Paulo revela que, dentro de sua circunstância de vida, ela deseja projetar-se em Atala. Assim, a leitura do romance que tem por título o nome dessa personagem feminina cria condições favoráveis para Lúcia verbalizar a Paulo sua proposta de vivenciarem um amor fraternal, proposta esta, como já afirmei acima, que ela vinha insinuando através de atitudes. Lúcia negou veementemente sua identificação com Marguerite, recuou diante da impossibilidade de espelhar-se em Virginie, mas aceitou projetar-se hipoteticamente na personagem indígena de Chateaubriand. Na perspectiva do coflteú:10 semântico da relação amorosa, as experiências dos pares Paulo-Lúcia e Chactas-Atala equivalem-se. A sensualidade trespassa o amor e determina o jogo da relação amorosa entre essas personagens. Em Virginie, a sensualidade é contida. Paulo não chega a percebê-la. Daí a inexistência de conflito entre eles. Os diferentes graus de relação de Lúcia com as personagens femininas dos romances franceses que lê - desde a repulsa até a anuência a uma projeção hipotética - manifestam-se, poeticamente, através de suas condutas como leitora: irascível, a ponto de rasgar um livro; perturbada emocionalmente, arrebatando o romance das
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mãos de Paulo, em meio a lágrimas e, por fim, religiosamente atenta, com autodomínio suficiente para verbalizar, a seu amado, sua proposta de amor fraternal. Lúcia rasga o livro cuja heroína, Marguerite, cortesã como ela, não apresenta conflito entre corpo e espírito em sua verdadeira relação amorosa com Duval. Essa atitude de Lúcia, leitora de La dame aux camélias, anuncia sua aproximação de Virginie e Atala. Lúcia, Virginie e Atala vivenciam, por motivos diferentes, o conflito entre o amor carnal e o espiritual. Suas trajetórias realizam literariamente o ideário do amor romântico, cuja balança pende para o lado espiritual no seu embate com a carne. Instala-se o conflito sempre nas personagens femininas, o que as torna enigmáticas para os dois Paulos e para Chactas. Em suas trajetórias específicas as três vencem os apelos corporais e seu destino é um só: a morte. A introdução de leituras de romances realizadas pelas personagens de Lucíola constitui um hábil recurso poético. Através dele se explicitam temas ligados à trajetória da relação entre Paulo e Lúcia e se delineia um dos elementos constitutivos da interioridade dessas personagens: a leitura projetiva, principal foco de interesse deste estudo. A inserção dos romances de Bernardin de Saint-Pierre, Chateaubriand e Dumas Filho transforma em matéria de Lucíola parte da tradição com a qual José de Alencar dialoga no seu processo de criação. Neste caso específico, o tema do amor fraternal entre Paulo e Virginie, Chactas e Atala é selecionado em vista da narração de determinado momento do processo amoroso entre Lúcia e Paulo. Por outro lado, ele funciona também como um procedimento literário através do qual Lúcia consegue expor, ao leitor e a Paulo, o perfil das heroínas com as quais ela gostaria de se identificar, ainda que, em termos de trajetória de vida, ela se assemelhe mais à personagem que mais condena e rejeita. A leitura redutora de Paul et Virginie e Atala feita por Lúcia serve para irradiar o espaço do conteúdo semântico no qual ela pretende situar seu projeto de nova vida. Mas ecos mais recônditos de outras linhas de significação instauradas também por uma tradição mais diluída e presentificadas nessas obras francesas podem ser ouvidos emLucíola: oposição entre campo (natureza) e cidade, à qual acham-se atreladas as idéias do bem contra o mal, da simplicidade e pureza contra sofistificação e depravação dos costumes, entre outras adotadas como temário recorrente em romances da natureza, romances indigenistas e romances urbanos que anunciam ou incorporam o ideário romântico do século XIX. Situando-se em seu tempo e seu espaço, lendo um romance
148 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 urbano, um romance da natureza e um romance indígena numa fase de reconsideração de sua vida, Lúcia despoja-se cada vez mais de objetos e roupas luxuosas, aproxima-se cada vez mais da simplicidade dos costumes e, se não pode viver no campo, tenta, a seu modo, aproximar-se dele, afastando-se da corte e retornando à periferia, seu local de origem, onde vai morrer. La dame aux camélias contém, igualmente, um espaço temático no qual se visualiza a valorização do campo, como "topos" privilegiado de vida, amor, simplicidade, fidelidade e felicidade. A tudo isso, Marguerite teve acesso por pouco tempo. Aquilo que para ela fora uma experiência passageira, porque a vivenciara com Duval, numa união marital, inaceitável para a sociedade, tornara-se para Lúcia um projeto de vida, com uma diferença: viveria isolada, num convívio fraternal com Paulo. Também para ela esse sonho foi de durabilidade extremamente exígua. As narrativas do século XIX tinham de ser drásticas com suas cortesãs assim como tinham de zelar pela virgindade de suas heroínas. Cortesãs regeneradas ou virgens, todas caminham para a morte. Nesta perspectiva, Lúcia carregando a imagem da cortesã e projetando-se na imagem da virgem romântica encontra-se com Marguerite que tanto condena e rejeita, encontra-se também com Virginie e Atala nas quais gostaria de projetar-se, conforme nos revela a leitura por ela realizada dos romances de Dumas Filho, Bernardin de Saint-Pierre e Chateaubriand. Sua auto-punição e conseqüente morte adquirem, à luz do confronto com essas obras, uma dupla causa e um duplo significado: morre por ter sido cortesã, morre por ter vivenciado o conflito entre a carne e o espírito. Morte como punição, morte como salvação constituem o destino desta heroína brasileira que transita da imagem da cortesã para a das virgens românticas francesas.
MACHADO DE ASSIS E OS SOFISTAS
Roberto de Oliveira Brandão
Fazer uma leitura da ficção de Machado de Assis a partir dos sofistas gregos do século V a.c. nos levaria a considerar alguns campos privilegiados do pensamento daqueles primeiros mestres profissionais, em especial a linguagem como instrumento de persuasão, a aparência como dimensão humana das coisas e o social enquanto espaço onde se confrontam os interesses dos homens. Que tais temas ainda hoje sejam importantes, não se deve ao fato de terem sido abordados pelos sofistas, os inimigos históricos dos filósofos, mas porque, em muitos aspectos, o homem parece permanecer o mesmo. Uma das afirmações mais conhecidas dos sofistas sustentava que a habilidade de falar podia transformar a pior tese na melhor, isto é, através do discurso o orador pode impor ao ouvinte idéias, valores e crenças. Isso implicava em aceitar que existe um distanciamento entre linguagem, realidade e verdade. E que estas duas podem ser produzidas pela e na linguagem. Embora suas teses não tenham sido homogêneas nem unânimes, algumas delas marcaram o grupo como tal, principalmente a partir das críticas feitas por Platão e Aristóteles. Assim ocorreu com a idéia da relação entre linguagem e persuasão, em que esta era considerada uma dimensão daquela. Numa época em que os filósofos buscavam resolver os problemas inerentes à linguagem como instrumento de apreensão da verdade, Górgias sustentava que nada existia
150 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nU 2 e, se algo existisse, não poderia ser pensado nem comunicado. Dizia ele que" não comunicamos seres nem coisas, mas apenas palavras" . Essa valorização da linguagem por si mesma, que o aproximava dos poetas, provocava a ira dos filósofos. Sabe-se que Platão opunha aos discursos dos rapsodos "que não permitem exame e que nada ensinam, pois só têm a finalidade de persuadir", os discursos "escritos para serem estudados ou pronunciados com fins didáticos, e que são verdadeiramente escritos na alma, tendo como tema o justo, o belo e o bom".1 Aristóteles reprovava os sofistas porque, segundo ele, falavam não para significar, mas apenas "pelo prazer de falar' ',2 ao passo que, para o filósofo, as únicas formas aceitáveis de discurso seriam as que tivessem por objeto promover o conhecimento da justiça, da beleza e da bondade. Para os sofistas, linguagem e retórica estavam estreitamente ligadas enquanto instrumento persuasivo e político. O que se devia considerar no discurso não era o valor de verdade nem o princípio da contradição, mas seu efeito pragmático como forma de exercer o poder de convencimento sobre os ouvintes. Sustentavam que o domínio da palavra permite dominar os homens, levando-os a pensarem e fazerem o que desejamos. Ademais, a persuasão tinha uma dimensão política que a legitimava enquanto forma "civilizada" de impor a vontade do orador. Górgias, cujo nome se ligou a um dos diálogos platônicos mais famosos, distinguia a submissão "voluntária", operada pela palavra, da "violenta", imposta pela força. No Elogio a Helena, ao defender a bela esposa de Menelau por ter "fugido" com Páris, motivo da guerra de Tróia (Ilíada), ele enumera quatro razões que poderiam explicar aquela atitude: vontade dos deuses, imposição do destino, rapto violento ou, finalmente, persuasão pela palavra. Ele justifica esta última: "a palavra é um poderoso soberano que com pequeno e invisível corpo realiza empresas absolutamente divinas". E acrescenta: "Aquele que infunde uma persuasão age injustamente, mas quem é persuadido, enquanto se vê privado da liberdade pela palavra, só de erro pode ser censurado".3 Daí a importância de se conhecer e exercer a arte da retórica, que eles ensinavam. N a Antigüidade a retórica era o contraponto da dialética, espécie de dialética "popular", uma vez que, segundo Aristóteles: "Todos os homens participam, até certo ponto, de uma e de outra; todos se empenham dentro de certos limites em submeter a exame ou defender uma tese, em apresentar uma defesa ou uma acusação". Se é legítimo, dizia ele, defender-se utilizando a força física, mais o será através das palavras, já que estas definem melhor o ser humano do que aquela. 4 Em suma, a linguagem era o espaço onde os homens,
1. PLATÃO. Fedro. Coleção Amazônica, V. Belém: Universidade Federal do Pará, 1975, p. 97. 2. ARISTÓTELES. Metafísica. Porto Alegre: Globo, 1969, IV, 5, 1009 a 16-22. Ver também: CASSIN, Barbara (sous la direction de). Le plaisir de parlcr. Paris: Minuit, 1986.
3. PLATÃO. GÓrgias. Fragmentos e Testimonios. Biblioteca de Iniciación Filosófica, 102. Buenos Aires: Aguilar, 1966, p. 87.
4. ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d., p. 33.
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5. PLATÃO. GÓrgias. Coleção Amazônica, lII-IV. Belém: Universidade do Pará, 1980, p. 123.
6. DUMONT, Jean-Paul. Les Sophistes. Fragments ct Temoignages. Paris: Presses Universitaires de France, 1969, p. 161.
7. GOMES, Pinharand •. Filosofia Grega Pré-Socrática. 2. ed. Lisboa: Guimarães, 1980, p. 267. 8. Ibidem, p. 271.
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enquanto homens, deviam resolver seus problemas. Na prática, contudo, sabemos que nem sempre foi assim. Não paravam aí, contudo, as múltiplas funções sociais atribuídas à linguagem pelos sofistas. Usavam-na também com fins terapêuticos. Não sem sua característica pitada de ironia, Platão nos narra que Górgias costumava vangloriar-se de em certa ocasião ter conseguido que um doente se deixasse tratar pelo médico utilizando apenas a linguagem. 5 Conta-se também que outro sofista, Antifon, autor de uma Arte de combater a neurastenia, prometia curar seus pacientes, bastando que lhe contassem os males que os afligiam. Embora não se saiba bem o alcance desses relatos, a verdade é que antecipam o uso psicanalítico da linguagem. 6 Como sustentavam os sofistas que não há uma verdade única, mas apenas o que "parece" ser a cada homem, o ato de argumentar implicava em poder sustentar posições diferentes, e até contrárias, sobre tudo. Essa posição se tornou método discursivo com Protágoras, outro sofista interlocutor de Platão. Dizia ele que sempre "se podem sustentar dois discursos perfeitamente contraditórios sobre o mesmo tema".7 E em outro sibilino - e moderno - fragmento que lhe é atribuído, o homem é descrito como a "medida de todas as coisas", 8 afirmação que tem sido alegada para atestar o seu relativismo absoluto. A disputa entre ciência e opinião, natureza e lei, essência e aparência, ser e devir é antiga. Os sofistas nada mais fizeram do que situar tais problemas no campo dos interesses humanos, onde reinam as divergências e os conflitos. Enquanto os filósofos buscavam compreender o mundo, pressuposto de um compromisso ético com o saber, os sofistas sustentavam o primado da opinião como forma de atuação social e política. À verdade, fundada na razão, sobrepunham a argumentação alicerçada na experiência cotidiana onde predominam o senso comum, as paixões e os interesses pessoais que condicionam a visão e a avaliação dos fatos. Górgias alegava que as mesmas coisas podiam ser um bem ou um mal, dependendo da situação e das pessoas a que se referissem, como o alimento, que é um mal para o doente que não pode ingeri-lo, e um bem para o homem saudável. Do mesmo modo,.o ferro das armas é nocivo para os que são mortos por ele, mas um bem para o fabricante de armas. O próprio Aristóteles reconhecia que, diante de certos homens, seria inútil tentar convencer utilizando apenas argumentos fundados na ciência. Distinguia ele os discursos dirigidos à multidão dos usados como instrumentos de ensino. Aqueles usam apenas lugares comuns, opiniões estabelecidas, emoções, ao contrário destes que tiram sua força da reflexão e da razão. Se, como os sofistas, admitia
152 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 que era preciso sa,ber utilizar argumentos opostos, não o seria para, ao sabor da vontade, sustentar o pró ou o contra, pois, como observa: "não se deve persuadir o que é imoral", mas somente "para ver claro na questão e para reduzir por nós mesmos ao nada a argumentação de um outro, sempre que este seu discurso não respeite a justiça".9 Embora sumário, esse quadro dá uma idéia das implicações no uso da linguagem pelos sofistas. Se, por um lado, ela torna-se um campo de ação social e política, no plano literário, na medida em que privilegiavam a autonomia dos signos, libertando-os ao mesmo tempo do real, da razão e da ética, abrem todo um horizonte à expressão literária cujas possibilidades ainda hoje não foram esgotadas. A concepção pragmática dos sofistas não impede, porém, que as críticas dos filósofos percam sua pertinência, uma vez que, buscar a adesão, mesmo que voluntária, pela manipulação das aparências e da produtividade semântica da linguagem, decorrentes das condições existenciais do homem, conquanto revestida de um inquestionávele, por isso, de valor argumentativo - sentido democrático, pode não ser senão outra forma, a mais polida, é verdade, de exercer o poder.
MACHADO DE ASSIS E A LINGUAGEM Machado de Assis é um artesão da linguagem na acepção retórica de domínio dos meios expressivos. Com essa matéria-prima ele cria, recria e transforma o mundo, mas um mundo que tem a forma e a substância da linguagem. Suas personagens transitam pela realidade como o leitor por sua ficção: não entre seres, mas entre aparências. Se o ser, unívoco e imutável, às vezes percorre sua ficção, não o é senão como estratégia que revela o movimento ilusório. Vejamos esse percurso. No início de Ressurreição, Félix abre a janela e vê diante de si uma natureza alegre e acolhedora. Percebemos que, na verdade, essa cena ocorreu num primeiro dia do ano há dez anos atrás. Presente e passado, imagem e realidade confundem-se. A intervenção do narrador dá o tom à descrição: Parecia que toda a natureza colaborava na inauguração do ano. Aqueles para quem a idade já desfez o viço dos primeiros tempos, não se terão esquecido do fervor com que esse dia é saudado na meninice e na adolescência. Tudo nos parece melhor e mais belo, - fruto da nossa ilusão, - e alegres com vermos o ano que desponta, não reparamos que ele é também um passo para a morte.
9. A rtc Rct6rica cArtc Poéti· ca, pp. 32-33.
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A nossa atenção transita das percepções mais gerais para as coisas situadas no tempo que as transforma. As marcas do percurso são dadas pelos modeladores "parece", "aqueles", "ilusão", que retiram o ser de sua região abstrata e indefinida e o situam no foco do olhar que capta o mundo, dando-lhe forma e sentido particulares. Entre a expressão absoluta: "a natureza colaborava", e a relativa: "parecia que a natureza colaborava", ou entre' 'tudo é belo" e "tudo nos parece mais belo", ou ainda: "fervor com que esse dia é saudado" e "fervor com que esse dia é saudado na meninice e na adolescência", estende-se o tempo que reduz o ser ao sentido que lhe damos, à perspectiva com que o vemos. Quando o narrador diz: "alegres com vermos o ano que desponta não reparamos que ele é também um passo para a morte", qual é o ser referenciado pela expressão" ano que desponta": seria a alegria da vida ou o prenúncio da morte? Mas o autor nos mostra que fazemos uma opção pela primeira, pois ela nos é favorável.
A LINGUAGEM COMO ARGUMENTO
o recorte do mundo operado pela linguagem não é determinado apenas pelas limitações na vida do homem, mas também pelos interesses que o movem. Se cada termo necessita de outros que o expliquem, isso se dá porque o convencimento do ouvinte exige que ele assuma como suas as perspectivas do falante. Os limites entre descrição e argumentação tornam-se então muito tênues. No início de laiá Garcia, quando o pai de laiá reluta em aceitar de Valéria a tarefa de convencer seu filho Jorge a seguir para a guerra, lemos o seguinte fragmento de diálogo: - Seu filho não é criança, disse ele; está com vinte e quatro anos; pode decidir por si, e naturalmente não me dirá outra cousa ... Demais, é duvidoso que se deixe levar por minhas sugestões, depois de resistir aos desejos de sua mãe. - Ele respeita-o muito. A esse diálogo segue-se uma intervenção do narrador, que revela os propósitos ocultos da mãe do rapaz: Respeitar não era o verbo pertinente; atender fora mais cabido, porque exprimia a verdadeira natureza das relações entre um e outro. Mas a viúva lançava mão de todos os recursos para obter de Luís Garcia que a ajudasse em persuadir o filho.
154 - Rcv. Brasil. Lit. Comparada, nU 2 Como ele lhe dissesse ainda uma vez que não podia aceitar a incumbência, viu-a morder o lábio e fazer um gesto de despeito. Vemos que diálogo e narração disputam a prerrogativa de expressar o significado da conversa entre Valéria e Luís Garcia. A diferença entre "respeitar" e "atender" marca a distância que vai do desejo à ordem. A expressão "Ele respeita-o muito" revela a ambigüidade entre constatação e argumento. O discurso em situação só conhece o segundo, escolha deliberada do aparato retórico com que se modela o real. O duplo movimento da fala de Valéria é sugerido pela observação posta no olhar de Luís Garcia que, diante de sua resistência, a vê "morder os lábios e fazer um gesto de despeito". Com esse expediente, insere-se nos fatos "morder/fazer um gesto" uma interpretação partilhada entre Luís Garcia e o leitor: "de despeito", denunciando a troca dos motivos com que Valéria esconde seus propósitos.
GESTO E LINGUAGEM Os gestos das personagens machadianas não servem apenas para torná-las mais verossímeis como seres humanos. Equivalentes da linguagem articulada, servem também para velarídesvelar as suas motivações. Em geral passam quase despercebidos, apenas denunciados pela fala do narrador ou de outra personagem. É comum entre as personagens de Machado os lábios cederem aos olhos ou às mãos a função de expressar o que lhes vai no espírito. Em laiá Garcia há uma passagem em que Luís Garcia mostra à esposa uma carta de Jorge onde este confidencia que ama alguém, sem, contudo, mencioná-la. Estela sabe tratar-se de si e procura descobrir se o marido alimentava alguma suspeita. Não percebendo nada que o denunciasse, ela arrepende-se da própria suspeita. Estabelece-se então um complexo movimento entre gestos e intenções, dissimulação e desconfiança ao mesmo tempo: Estela, sem levantar a cabeça, olhou ainda de esguelha para ele, como a procurar-lhe na fronte a intenção escondida, se porventura havia alguma, e esse gesto era tão travo de receio e hesitação, era sobretudo tão dissimulado, que ela o sentiu e arrependeu-se. Depois, é sua mão que a ameaça denunciar. O afeto, mal
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contido, quer manifestar-se: "A mão tremia; ela firmou-a sobre a borda da secretária; mas o tremor, ainda perceptível, não cessou". Volta então a interrogar os gestos do marido: "E o sorriso era tão natural, tão despreocupado, tão honesto, que Estela ficou tranqüila" . O efeito tranqüilizador que encontra no sorriso do marido na verdade significa a margem de segurança que ela busca para poder preservar o sentimento recalcado, mas ainda vivo. Sob a capa da indiferença e da calma, pulsa o jogo das emoções que oscilam entre desejo e censura. Em Dom Casmurro encontramos todo um ritual de pequenos e quase insignificantes gestos que configuram o interior das personagens. Quando um sentimento mostra-se ambíguo ou uma situação conflituosa, os movimentos do corpo, sobretudo olhos e mãos, se encarregam de transmitir o indizível que vai na alma. O alcance do paradoxo entre a impotência da linguagem e a experiência viva e intransferível, e, por isso, transbordante de significado, só as pessoas envolvidas podem avaliar, e o leitor, naturalmente: Estávamos ali com o céu em nós. As mãos, unindo os nervos, faziam das duas criaturas uma só, mas uma criatura seráfica. Os olhos continuavam a dizer cousas infinitas, as palavras de boca é que nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas como vinham ... A expressividade dos gestos face ao bloqueio da linguagem verbal dá o tom a certas passagens de Don Casmurro. Rememorando a cena em que Capitu desenha no muro seu próprio nome junto ao de Bentinho, o narrador, já maduro, confessa: "Em verdade não falamos nada; o muro falou por nós". Em outro lugar: "Dito isto, espreitoume os olhos, mas creio que eles não disseram nada, ou só agradeceram a boa intenção". Na cena do beijo, os comportamentos dos adolescentes são diametralmente opostos, ela desenvolta e loquaz: "Ouvimos passos no corredor: Era D. Fortunata. Capitu compôs-se tão depressa que, quando a mãe apontou à porta, ela abanava a cabeça e ria. Nenhum laivo amarelo, nenhuma contradição de acanhamento, um riso espontâneo e claro, que ela explicou por estas palavras alegres: - Mamãe, olhe como este senhor cabeleireiro me penteou; pediu-me para acabar o penteado, e fez isto. Veja que tranças!". Bentinho, por sua vez, fica muito inibido, embora tentasse demonstrar o contrário: "Como quisesse falar também para disfarçar o meu estado, chamei algumas palavras cá de dentro, e elas acudiram de pronto, mas de atropelo, encheram-me a boca sem poder sair nenhuma". Mais tarde, já em seu quarto, vem-lhe inesperadamente a
156 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 palavra reveladora: "De repente, sem querer, sem pensar, saiu-lhe da boca esta palavra de orgulho: - Sou homem!". Investido ao mesmo tempo da consciência do presente e da experiência do passado, o narrador percebe o paradoxo entre uma linguagem que esconde a verdade e um silêncio que a revela: Assim, apanhados pela mãe, éramos dous e contrários, ela encobrindo com a palavra o que eu publicava pelo silêncio. Esses exemplos bastam para mostrar como em Machado ser e parecer são complementares. Puros sentidos que apontam a sucessão do aqui e agora da experiência e do desejo. Entre um e outro o homem sente-se cindido. Daí que esteja sempre às voltas com as ambigüidades, as dúvidas e as suspeitas. Essa é a condição do mundo dos vivos, nos diz o "defunto autor" Brás Cubas, onde opiniões e interesses são a regra. Estamos no centro do pensamento relativista de Machado, pensamento que poderia ser subscrito por qualquer sofista antigo. Mas, como Machado é Machado, ele se faz sofista por opção criativa. Talvez seja impiedoso em sua visão do homem, ao dizer que até a confissão que se proclama acaba sendo o avesso da hipocrisia que se cala. Voltamos ao problema da relação entre verdade e mentira, essência e aparência, realidade e sentido. Condição do mundo verdadeiramente? Ou a tarefa do homem?
JORGE AMADO E O BILDUNGSROMAN PROLETÁRIO
Eduardo de Assis Duarte
N
o momento em que ainda se comemoram os oitenta anos de Jorge Amado, gostaria de abordar não o romancista consagrado de Gabriela, Dona Flor ou Quincas Berro D 'Água, objeto contínuo de estudos tão consistentes quanto diversificados. O escritor apreciado por milhões de leitores em todo o mundo ostenta em sua recepção crítica um considerável acervo de pesquisas, teses e ensaios, porém quase todos centrados nas obras da maturidade. Já os primeiros livros, produzidos sob o impacto de importantes transformações históricas no Brasil e no mundo, dão a impressão de estarem envoltos numa certa cortina de silêncio por parte da crítica, talvez por exporem em demasia o ardor militante que os atravessa. Sensível às demandas de seu tempo, durante mais de duas décadas Jorge Amado levou uma vida entranhada com a política e marcada fortemente pelos laços com a esquerda. Hoje, todavia, ele completa oitenta anos tendo assistido à Glasnost, à Perestroika e ao desmoronamento do "socialismo real": caiu o muro de Berlim, varreram-se os últimos resquícios da era (e dos métodos) de Stálin. A crise do marxismo - e das próprias concepções revolucionárias enseja um momento privilegiado de reflexão. Daí julgarmos propício voltar os olhos para as obras primeiras e tentar resgatar os escritos do jovem que abraçou a utopia e ousou, como tantos de sua geração, romper com a arte "neutra" e intransitiva, para fazer do romance uma arma política.
158 - Rcv. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 Nestes casos, o requisito básico que se impõe ao crítico remete à compreensão dos valores, do ponto de vista, enfim, do paradigma que norteia uma opção literária desse porte. Narrativas como Suor, Jubiabá, Capitães de areia ou Seara vermelha fundamentam-se numa concepção de romance como discurso de representação, mas também de intervenção na cena política. Daí a necessidade de polarizar os elementos da crise social, de adotar a perspectiva dos excluÍdos e de elevá-los ao centro da figuração literária. É um romance que se defronta com os impasses de seu tempo e que desliza entre estética e retórica para formalizar a emergência das massas no conturbado período dos anos 30 e 40. Este apego ao real conduz a uma literatura voltada para o coletivo e seduzida pelo desejo de viver, interpretar e, até mesmo, "fazer" a História. Nascido numa terra onde arte e política sempre se amalgamaram, o romancista, desde a estréia, expõe seu fasCÍnio pelo gesto de falar o país e de buscar sua verdadeira face. Impossível não reconhecer aí os dotes do observador que, aos dezoito anos (já o notou um crítico), vincula um dos aspectos mais salientes da identidade nacional à grande festa popular brasileira. Ainda adolescente, Jorge Amado escreve País do carnaval e intui uma das facetas de nosso caráter, além de captar com certa precisão o jogo de hipocrisias vigente nos processos de dominação incruenta.! Outros exemplos desta capacidade de explicitar pela ficção certos componentes da realidade nem sempre "legíveis" no cotidiano - ou mesmo no discurso da historiografia oficial - encontram-se em Jubiabá, livro que tomaremos como objeto principal destas considerações. Amado se apropria da tradição do romance de aprendizagem, para situá-la no nível das classes populares no Brasil dos anos 30. A trama é armada tendo como núcleo as peripécias e andanças do protagonista, desde a infância pobre e rebelde na favela de Salvador, até a maturidade consciente do líder proletário em que se transforma. Jubiabá constitui-se num dos pontos altos da linhagem do "romance proletário" vigente à época, combinando o realismo da denúncia social com uma intensa idealização do oprimido. Amado recorre aos modelos ancestrais da narrativa para construir um personagem-síntese de uma geração que luta por elevar-se da marginalidade à cidadania. E então vemos surgir Antônio Balduíno, primeiro herói negro do romance brasileiro. É este herói que inicia o livro suando, vendendo a força do corpo jovem numa luta de box: Foi quando o alemão voou para cima dele querendo acertar no outro olho de Balduíno. O negro livrou o corpo com um gesto rápido e como a mola de uma máquina que se houvesse
1. Cf. SANT' ANNA, Affonso Romano de. Tempo brasileiro, n" 74, p. 47.
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2. AMADO, Jorge. Jubiabá. Rio de Janeiro: Record, 1984, p.16.
partido distendeu o braço bem por baixo do queixo de Ergin, o alemão. O campeão da Europa Central descreveu uma curva com o corpo e caiu com todo o peso. 2 O fato desta cena abrir o romance confere a ela um sentido emblemático, fundado na conjunção do trabalho manual com a luta. Por outro lado, a rapidez com que o lutador desvia de um golpe para desfechar outro logo em seguida, se insere na dimensão de intensa mobilidade que o caracteriza em todo o texto. A imagem da mola é significativa não apenas do gesto decisivo para a definição do combate inicial. Ela aponta para o procedimento básico de condicionar aos constantes deslocamentos a vitória nas lutas maiores que irão se seguir, além de simbolizar a positividade impulsionadora do próprio romance. A mola representa a evolução de uma vida que terá a rebeldia como meio e a procura como fim. A imagem da mola sintetiza ainda o enredo construído de forma helicoidal, fruto da combinação de circularidade com linearidade ascensional. Este formato de enredo pode ser facilmente comprovado pelas relações do personagem com o espaço, sobretudo com o espaço de origem - o Morro do Capa Negro. Em seu processo de formação, o herói parte sempre deste ponto, para a ele voltar enriquecido nas experiências que lhe vão moldando a personalidade. É um enredo simples como a linguagem que lhe dá vida, obedecendo ambos aos princípios de um romance empenhado em atingir a um público cada vez mais amplo. Em lubiabá Amado abandona a prosa fragmentária experimentada em Suor e opta por soluções convencionais. O texto deixa visíveis uma série de procedimentos construtivos de grande aceitação popular: o ritmo ágil, marcado pelas repetições; o tratamento folhetinesco das peripécias e façanhas do herói; os exageros melodramáticos; as coincidências; as mudanças bruscas do destino; a variedade das ações; o maniqueísmo de situações e personagens. Ao lado disso, as imagens arque típicas e o substrato mitológico que permeiam diversas passagens, completam a presença no texto de uma série de elementos oriundos da tradição romanesca.
É com este arcabouço popular/popularizado que lubiabá encaminha a trajetória de formação do protagonista. O livro dialoga com a tradição do Bildungsroman - que passa por Dickens, Fielding, Goethe, entre outros - combinando-a com o tom de elevação do proletariado presente nas narrativas soviéticas anteriores ao realismo socialista. O livro de Goethe, segundo Lukács, tematiza a "reconciliação
160 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 do homem problemático - dirigido por um ideal que para ele é experiência vivida - com a realidade concreta e sociaL" Lembra em seguida que esta reconciliação' 'não pode nem deve ser um simples acomodamento", nem muito menos uma "harmonia pré-estabelecida", sendo o personagem "forçado a procurá-la à custa de difíceis combates e de penosas vagabundagens, ao mesmo tempo em que deva estar, contudo, em condições de a alcançar."3 Em Jubiabá esta integração ao todo social passa por mediações inexistentes na obra goetheana, a começar pela origem burguesa de Wilhelm, bastante diversa da quase indigência que marca a condição lúmpen de Balduíno. De início, o ideal de vida expresso no romance amadiano conflita inteiramente com a aludida reconciliação, ao propor a "liberdade" do marginal como alternativa à "escravidão" das ocupações proletárias. O caráter de Balduíno vai sendo delineado a partir de situações sociais bastante distintas das que produziram a ascensão burguesa na Alemanha. Ele cresce tomando ciência de uma memória familiar marcada pela tradição da rebeldia social e de uma memória comunitária que atualiza a tradição do cativeiro. A aproximação entre os dois romances começa a se delinear a partir da recusa dos protagonistas a uma integração social pacífica e sem traumas. O" ideal malandro" aponta para a recusa dos caminhos proletários existentes no Brasil da década de 30; da mesma forma que o ideal artístico do jovem Wilhelm Meister para a recusa do destino burguês que a vontade do pai lhe apontava. Os dois textos, ao serem confrontados, expõem um jogo de semelhanças e diferenças. No romance de formação burguês o personagem se preocupa com seu destino individual e com a concretização plena de suas potencialidades. Na carta dirigida ao amigo Werner (terceiro capítulo do quinto livro) Wilhelm deixa claros seus propósitos de ascensão social, mostrando-se consciente das dificuldades que aí se colocavam em função de sua origem não-aristocrática. Ora, eu tenho uma inclinação irresistível precisamente para a formação harmoniosa de minha natureza, a qual o meu nascimento recusa-me ... Eu não nego agora que o meu impulso de ser uma pessoa pública, de atuar e fazer boa figura em um círculo mais amplo, torna-se cada dia mais irresistível... Você bem vê que tudo isso só é encontrável para mim no teatro e que apenas neste elemento único eu posso movimentar-me e formar-me. No palco o homem formado aparece tão bem personificado em seu brilho como nas classes aItas. 4
3. "Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister", in: Teoria do romance. Lisboa: Presença, s/d., p. 155.
4. GOETHE, Afios de aprendizaje de Guilhermo Meister, Iibro V. In: Obras completas, vol. 11. Madrid: Aguilar, 1968. Para esta citação optamos pela tradução de Marcus Vinicius Mazzari, direto do original, que é parte de seu ensaio "Utopia de Formação e Utopia Social nos Romances WilheimMeister Lehrjahre e Wilhc/m Meister Wanderjahre". São Paulo: FFLCH/USP, 1982, cópia mimeografada. Os grifos são nossos.
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5. BENJAMIN, Walter. "Goethe", in: Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo: CultrixEdusp, 1986, p. 59.
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o texto evidencia a opção artística como alternativa para uma formação que eleve o jovem ao mesmo patamar de reconhecimento social desfrutado pela classe dominante. Sem abdicar de seu ideal humanista, Wilhelm quer subir no palco como quem sobe na vida. Esse desejo de ascensão tipicamente burguês não existe em Balduíno, que é filho de mãe (quase) escrava e pai rebelde. Tudo o que o personagem amadiano quer é "não ser escravo" e essa busca de liberdade leva-o primeiro à rebeldia malandra e, em seguida, à militância operária. Quanto a seu pai, ficamos sabendo que Valentim foi na mocidade jagunço de Antônio Conselheiro e amante de muitas mulheres, que bebia bastante e que morreu "debaixo de um bonde num dia de farra grossa." A "rebeldia primitiva" do pai (no sentido de Hobsbawm), sua vida boêmia e a morte prematura levam o pequeno Baldo a tomá-lo como exemplo. Balduíno tem do pai não uma memória concreta, fruto da convivência e do conhecimento. Para ele, o jagunço Valentim é a própria abstração da valentia, do inconformismo e de tudo quanto há de heróico na mente infantil. Esse paradigma de comportamento, ligado aos padrões romanescos, irá sendo paulatinamente assumido pelo filho, que ainda cultua os feitos de Zumbi dos Palmares e dos cangaceiros nordestinos. Como Wilhelm, Balduíno vai se tornar uma pessoa pública, mas em função da necessidade social e não da racionalidade que move o personagem goetheano. Além disso, vai exibir-se em tablados de ringue e de circo, nunca num teatro. Em vez das comédias e dramas alemães, encenará o melodrama Os 3 sargentos; em vez da formação letrada, terá a escola das ruas. O personagem de'Goethe evolui do teatro para a medicina e finda sua peregrinação integrado ao avanço econômico e social da burguesia. O personagem amadiano sai do tablado para a estiva e termina liderando uma greve cujo referencial é a utopia socialista, e não a "ideologia da filantropia burguesa em sua formação utópica" que permeia o Wilhelm Meister. 5 Tais diferenças colocam lubiabá como estilização' 'proletária" do romance de formação burguês. Balduíno se integra à realidade, mas para mudá-la "por dentro", exercendo o papel subversivo de ajudar a romper estruturas estagnadas. Já Wilhelm assume o tecnicismo implícito à vitória da revolução industrial, torna-se médico, vai ocupar uma função valorizada na nova sociedade. Inclui-se, portanto, no novo equilíbrio estabelecido. Enquanto isso, Balduíno vai também assumir a ascensão de sua classe, mas ainda na fase pré-revolucionária, basicamente voltada para o desequilíbrio da ordem vigente. Assim, o bildungsroman proletário afasta-se e, mesmo, opõese a seu correspondente burguês pelo encaminhamento dado ao
162 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nU 2 desenrolar da trama. Ao contrário de Wilhelm, Balduíno não sofre o processo de acomodação diante da vida e de reflexão sobre o passado que marca a maturidade experiente do personagem de Goethe. Acrescente-se o fato de que este transita por um processo de formação basicamente individual (apesar de todo o envolvimento com a Sociedade da Torre) e sai da crise para o cômodo enquadramento final. Já Balduíno está envolvido num processo de crescimento coletivo de nítida coloração épico-romanesca. Sua formação é mais política e coletiva do que propriamente individual: é toda uma classe que se levanta e luta por direitos mínimos de cidadania. Este fato demarca bem as diferenças entre a ficção militante de Jorge Amado e o bildungsroman burguês de Goethe. Aqui a formação da consciência heróica sai do universo pessoal e parte para o coletivo, no rumo de uma pré-consciência revolucionária. Entre a formação do homem burguês e a do proletariado insurgente existe a distância que vai da postura reflexiva - mas enquadrada - do Wilhelm maduro para a busca permanente de uma ação desequilibradora por parte de Balduíno. Quanto à aprendizagem no sentido restrito de formação cultural, também esta é deslocada para o universo das classes populares, afastadas da educação convencional. O saber que por aí perpassa vem da experiência vivida, do testemunho ou da literatura oral. Trata-se de um saber prático, imediatista, nascido das dificuldades cotidianas e da luta contra a opressão. A história dos bandidos é um exemplo. Balduíno as conhece através dos causas contados nas conversas dos adultos. Os feitos dos cangaceiros surgem hipertrofiados em meio às histórias de assombrações ou dos tempos da escravidão: Antônio Balduíno ouvia e aprendia. Aquela era a sua aula proveitosa. Única escola que ele e as outras crianças do morro possuíam. Assim se educavam e escolhiam carreiras. Carreiras estranhas aquelas dos filhos do morro. E carreiras que não exigiam muita lição: malandragem, desordeiro, ladrão. Havia também outra carreira: a escravidão das fábricas do campo, dos ofícios proletários. Antônio Balduíno ouvia e aprendia. (p. 35) Fica patente a rigidez de uma estratificação social que nega aos oprimidos acesso a atividades que lhes possibilitem alcançar um outro nível de vida. Raros eram os homens livres do morro: Jubiabá, Zé Camarão. Mas ambos eram perseguidos: um por ser macumbeiro, outro por malandragem. Antônio Balduíno aprendeu muito nas
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histórias heróicas que contavam ao povo do morro e esqueceu a tradição de servir. Resolveu ser do número dos livres, dos que depois teriam ABC e modinhas e serviriam de exemplo aos homens negros, brancos e mulatos, que se escravizavam sem remédio. (pp. 39-40, grifas nossos)
6. Cf. BAKHTIN, Mikhail. Esthétique de la création verbale. Paris: Gallimard, 1984, pp.225-231.
Eis a gênese do ideal de liberdade que subjaz à rebeldia do protagonista. Por outro lado, eis a chave para o entendimento do sentido épico do bildungsroman proletário. Aos poucos, o romance vai conduzindo essa ânsia de liberdade no rumo da consciência de classe, e o personagem termina tendo na greve um modo novo de aprendizagem, em que se forma o cidadão e se compartilham experiências e aspirações. De acordo com a tipologia de Mikhail Bakhtin, J ubiabá se enquadra no modelo do romance de formação realista, em que a evolução do personagem é indissolúvel da evolução histórica. fi O trunfo realista de Jubiabá está situado justamente nesta combinação da aprendizagem e crescimento do herói com a narração do movimento ascensional das classes subalternas, que é o dado histórico mais importante da década de 30. E aí nos deparamos de novo com a questão da representação histórica no romance. Em Jubiabá, Amado soube captar o momento e as transformações vividas pelo país através de sua expressão maior. A greve é o ponto culminante do livro (como será também em Capitães da areia) porque as antenas do escritor estavam ligadas no que era fundamental em termos das aspirações dos trabalhadores. A questão institucional, a Constituinte de 1934, a própria Aliança Nacional Libertadora e a preparação do levante de 27 de Novembro, ausentes do livro, situavam-se muito mais entre as preocupações da classe média politizada e das lideranças de oposição ao varguismo, do que as das massas. Para estas, o fato novo estava na conquista dos direitos trabalhistas e na passagem de um estágio de anomia entre patrões e empregados, para o estágio de efetiva organização obreira com tudo que isto implicava. O fato de o romance não aprofundar sequer a possibilidade de um levante armado o Brasil, no momento em que a cúpula do Partido Comunista trabalhava nesse sentido, é duplamente revelador. Demonstra, em primeiro lugar, que nesta fase de sua carreira Jorge Amado não coloca os objetivos da organização como roteiro da obra literária. A política está presente emJubiabá, mas não para favorecer os objetivos imediatos do partido. Apesar de ser o grande sucesso literário de 1935, o romance contribui muito pouco (ou quase nada) para a incitação à tomada violenta do poder e este é um dado positivo
164 - Rev. Brasil. Li!. Comparada, nº 2 que ainda hoje tem seu peso. lubiabá não expressa a campanha da ANL, mas algo de significação histórica muito maior. Por outro lado, ao se limitar a fazer com que toda a ação se dirij a para a greve e não para o confronto armado, o romance revela um arguto sentido de perspectiva histórica, até mesmo admirável em se tratando de um jovem de 23 anos. E aí cabe a questão: o que é dotado de maior concretude histórica, a gradual evolução de um membro do lumpesinato como Balduíno ou os sonhos prestistas, apoiados pelo PCUS, de promover uma revolução armada, de nítida hegemonia comunista, no Brasil de 1935? Com toda idealização romanesca, lubiabá parece estar num campo de plausibilidade maior do que os planos dos revolucionários brasileiros daqueles tempos. Balduíno salta da malandragem para a militância, mas vê na greve a ponte para a conquista de uma identidade social livre dos resquícios da escravidão. O final do texto é revelador da nova ética e da nova postura assumida pelo personagem. Ele, que começara o livro derrubando o branco europeu, levanta "a mão calosa e grande" não mais para agredir, mas para responder feliz ao aceno de outro anglo-saxônico - o marinheiro Hans - certo de que um dia também partirá num navio ... Risonho e vencedor, Balduíno é fiel à sua natureza e quer ganhar o mundo para se juntar a todos os mulatos, todos os negros, todos os brancos, que na terra, no bojo dos navios sobre o mar, são escravos que estão rebentando as cadeias. (p. 329) A conquista da consciência e da solidariedade proletária conforma o sentido político do romance, que assimila o contexto da chegada definitiva dos trabalhadores à equação política brasileira. Da luta racial à luta de classes, o texto reflete (e refrata) o limiar histórico a partir do qual a questão operária ganha nova amplitude. lubiabá é otimista, solidário, romanesco. Politiza a malandragem ao libertar seu herói da circularidade obsedante que marca a tradição picaresca ou a moderna literatura do outsider, de que é exemplo BerlinAlexanderplatz, de Dõblin. lubiabá quer impulsionar o leitor com a mesma mola que projeta Balduíno. Ignora a adversidade e os muitos desvãos do próprio real para, no dizer de Antonio Candido, "erguer até às estrelas o gesto do trabalhador brasileiro."
THE COURTIER ABROAD: OR, THE USES OF ITAL Y
Peter Burke
INTRODUCTION
• Excepcionalmente as notas do autor virão após o final deste artigo.
Students of the Renaissance have long been discontented with the traditional account of its "reception" outside Italy, with the unfortunate implication that Italians alone were active and creative, while other Europeans were passive, mere recipients of "influence". In order to drive out the simplistic diffusionism embodied in this traditional account, it may be advisab1e to draw on its opposite or antibody, in other words functionalism, or at least to ask what the "uses" of Italy were for writers scholars and artists in other parts of Europe, and how far Italian forms or ideas were assimilated into indigenous traditions. To escape the limitations of functionalism, however, it is important to study the ways in which these foreigners interpreted what they saw, heard or read, their perceptual schemata, their horizons of expectation.!'- An ordinary working historian wouId be ill advised to take sides in current controversies in the field of literary theory, to pronounce on the ultimately metaphysical question whether real meanings are found in texts or projected onto them. AlI the same, there can be IittIe doubt of the reIevance of reception theory (concerned as it is with a temporal process), to the work of cultural historians in general and in particular to historians of the Renaissance (long concerned with reception in a narrower sense).2 They need to assimilate the still somewhat alien notion of Rezeption (or Wirkung) into their own eraft traditions. 3
166 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nยบ 2 A few years ago, two enterprising scholars put together a collection of articles on "The Enlightenment in National Context", stressing regional variation and local needs rather than the French mode1. 4 It would be extremely useful to have a study of the European Renaissance on similar lines. To make a small contribution to such a collective volume is the purpose of this paper, an essay in every sense, since it is a provisional report on work in progress presented in order to test reactions to both method and interpretation. 5 It is concerned with "the historical process of acceptance, appropriation, transformation, rejection and substitution" in the case of a work which might be described as unofficially authoritative in some social circles in quite a number of countries. It deals with the reception, ar as Italian scholars would say, the "fortune" of one famous Renaissance text, Castiglione's Courtier. The area surveyed in this study is essentially Europe minus Italy, though there are odd references to the Courtier in Japan and to the New World. 6 ltaly is omitted not because reactions to Castiglione were uniform - they were in fact rather diverse - but because the process of adaptation is revealed more clearly by the history of his reception in other countries, other cultures. 7 The period with which this essay is concerned runs from 1528, when the Courtier was first published, in an e1egant folio edition (ironically enough, in republican Venice), to the early seventeenth century, when frequent reprints finally come to an end. 8 In the ninety years 1528 - 1619 there were at least 110 editions of the Courtier, 60 in Italian and 50 or more in other languages. 9 I cannot, however, begin in 1528 and discuss the Courtier after the Courtier without more ado. Historians of the reception of texts face different types of problem according to the kind of book with which they are concerned. The practical relevance of the Courtier to daily life in some social circles encouraged contemporary comment, favourab1e and unfavourable, providing a thick dossier for future historians of its reception. On the other hand, its combination of ambiguity with a lack of original ideas makes Castiglione's book particularly difficult to handle. With respect to its ambiguity, I am inclined to agree with those modern readers who find The C ourtier what is sometimes called an "open" work, despite the fact that (as this essay will try to show), the author's contempararies generally seem to have seen a clear and distinct message in the book.1O The dialogue form is exploited in such a way as to anticipate the objections of most of its later criticsY The ambiguities of the Courtier may not all be intentional; they owe something to the fact that lhe process of writing and revision was spread over some twelve years at a time when the situation of the author, not to mention Italy as a whole, was changing rapidlyY As for the book's lack of originality, it obviously complicates (not to say undermines) any attempt to study its "influence". We cannot safely approach lhis text without bearing in mind the history of the Courtier before lhe Courtier. The book was far from the first treatise in its genre. 13 It was self-consciously
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modelled on classical treatises by Cicero and others, and the borrowing from antiquity include certain central concepts, notably that of "grace" .14 However, Cicero wrote in a society without a court. Courtesy, like the court itself, bs been described as a medieval' 'invention" .15 Castiglione has his place in a tradition (going back to he tenth century) of writers who adapt the ancient Roman vocabulary of good manners to the court milieu. He owes an unacknowledged and perhaps indirect debt to medieval discussions of courtly behaviour in France and elsewhere. 16 Bearing all these problems in mind, we may embark on a stl1dy of the reception process, discussing in tum the physical diffusion of the book, its translations, imitations, and other reactions, friendly or hostile.
THE DIFFUSION The outlines of the story of the diffusion of Castiglione's book abroad are well known, but details can be added almost ad infinitum. By 1534 it was possible to read the Courtier in Spanish, by 1537 in French, by 1561 in English, by 1566 in German and Polish. In fact two German versions were produced in the sixteenth century, two and a quarter Latin renderings (the third being a translation of book 1 alone), and three French translations. Between 1534 and 1619 there were over fifty editions of the Courtier in languages other than Italian, including 21 in French, 10 in Spanish and 13 in Latin. 17 In any case, some foreigners read Castiglione in the original. At least three Italian editions of the text were printed at Lyons (by Rovillio, in 1550, 1553, and 1562). In 1530, only two years after the first edition appeared, Edmund Bonner was writing to Thomas Cromwell asking for the loan of "the book called Cortegiano in Ytalian" .18 There are more than 20 copies of Italian editions of the Courtier in Cambridge alone. 19 A few of them have been acquired recently, but most were bought at the time and in some cases the names of former private owners are known. One of the copies of the Courtier in Italian now in the library of Trinity College Cambridge has a name written in it a sixteenth-century hand, "Thomas Wryght", presumably the man who was sizar, scholar and chaplain at the college between 1563 and 1572. 20 Of the nine references to Castiglione in Cambridge inventories in the reign of Elizabeth (almost enough to confirm Gabriel Harvey's famous observation on the Cambridge fashion for modem Italian writers), only one is to the Hoby translation. One reference is to the Italian text, owned by Abraham Tillman of Corpus; and seven, in that academic culture, to a Latin translation (three specifically to the Latin translation made by Bartholomew Clerke of King's). Tillman owned both a Latin and an Italian version, perhaps to improve his languages,21 Similarly, at Oxford, E. Higgins of Brasenose owned copies of the Courtier in Italian, Latin, French and EnglishY
168 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 Sir Thomas Tresham, a compulsive book collector, owned more than one Courtier in Italian and in Latin. 23 Details of this kind, if collected from all over Europe, could offer a basis for a social history of Castiglione's reception. It is, for example, not without interest to note that Castiglione's readers included the emperor Charles V, Francis I, Zygmunt August King of Poland, and James VI and J.24 It is aIs o intriguing to learn (given Professor Jonathan Brown's recent observations on the painter's calculated spontaneity), that Velazquez owned an Italian edition of the C ourtier (by his time, the Spanish translation had been banned).2S A study of the books mentioned in 219 inventaries from 16th-century Paris has turned up references to no fewer than 18 copies of the Courtier, five in Italian and 13 in French. The owners were generally men of the law (procureur, lieutenant criminel etc.), though there was also one marchand hostelain. 26 In provincial Amiens, on the other hand, a similar study of 887 inventaries 1503 - 76 turned up only one reference, to a French edition owned by a procureur généralY However, researches of this kind on the presence of the Courtier in the libraries of individuaIs from different social groups, and in different parts of Europe has barely begun.
THE TRANSLATIONS The translations of the Courtier, on the other hand, ar at least some of them (English, French and Spanish rather than Latin, German and Polish), have been studied in considerable detail, mainly from a linguistic and literary point of view. It may be worth noting the European languages into which the Courtier was not translated in the period, difficult as it is to say whether this is to be explained by the state of society, the state of language (ar indeed by accident). There was no translation into Flemish ar Dutch until the later seventeenth century (a1though at least three of the Spanish editions were published in Antwerp); no translation into the Scandinavian languages; ar into Slav languages other than Polish; ar into Portuguese (unless one inc1udes the adaptation by Rodrigues Lôbo, to be discussed in its place); ar into Hungarian (despite the receptivity of Hungary to the Renaissance) - but then the book was published two years after the disaster of Mohács, when Hungarians had other things to think about. In this brief discussion from the point of view of a sacio-cultural historian, it seems advisable, however, to focus on the social identity of the translators and on the way in which they rendered certain key passages in the text. The translators inc1uded the following: Juan Boscán (c. 1487 - 1542), a Catalan patrician and poet who probably knew Castiglione in his last years as nuncio in Spain;28 J. Colin, possibly Jacques Colin (d. 1547), abbé, Latin poet, courtier, and diplomat, who was posted to Italy in 1528 and presumably discovered the
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Courtier there;29 Gabriel Chappuys (c. 1546 - c. 1613), poet, historian, interpreter, theologian, and the translator of Ariosto and Boccaccio as well as Castiglione;30 Sir Thomas Hoby, a Herefordshire gentleman, a Cambridge man, and a Marian exile (though he spent more of his exile in Catholic Italy than in Protestant Germany), who made his translation at the request of the marquis of Northampton;31 Bartholomew Clerke (1537 - 90), Professor of Rhetoric at Cambridge, Fellow of King's and MP for Bramber, a man whose social circle included John Caius and Lord Buckhurst;32 Lukasz Górnicki (1527 - 1603), a Polish courtier, encouraged to make his translation by King Zygmunt August;33 Laurentz Kratzer, customs officer (Mautzahler) of Burghausen in Bavaria, who dedicated the book to his Duke;34 and Johann Engelbert Noyse, another Bavarian apparently, who dedicated his version to one of the Fuggers. 35 It is impossible to discuss the reception of a text in translation without going into philological detail. In a brief account such as this, such detail can only be presented at the price of extreme selectivity. I shall concentrate on the rederings of certain of Castiglione's key terms, notably cortegianía and sprezzatura, placing the Hoby translation in the foreground but looking at it from a compara tive perspective. Hoby wanted, so he tells us, "to follow the very meaning and wordes of the Authour, without [... ] leaving out anye parcell one or other" or "being misledde by fantasie" .36 Like the other translators, however, he encountered serious problems because the language into which he was translating lacked precise equivalents for some of the book's most important concepts. 37 Hoby's difficulties began with the very subject of the book, cortegianía. In English the term "courtesy", like "courtier", was in use by the thirteenth century at the latest, but courtes in the medieval sense is not quite what Castiglione is discussing. Hoby has to coin a new word, "courtiership" or to paraphrase it as "the trade and manner of courtiers". By the end of the sixteenth century, new terms had come into existence, including "courtliness" or even "courtship" in a non-amorous sense, thanks perhaps to the vogue for Hoby's translation. However, the terms were not available to him. The French translators had similar problems. Colin coined a word, courtisannie, while the anonymous translator tried out alternative paraphrases such as profession courtisane, lart du courtisan, or façon de bon courtisan. 38 A still greater challenge was posed, as one might have guessed, by what has become the most famous concept in the whole of Castiglione's book, sprezzatura.1t is presented as as new coinage. Count Lodovico Canossa, explaining the need to avoid affectation, declares that the courtier must, "per dir forse una nova parola, usar in ogni cosa una certa sprezzatura, che nasconda l' arte, e dimostri ció che si fa e dice venir fatto senza fatica e quasi senza pensarvi" (Book 1, ch. 26). Sprezzatura was not, literally speaking, a new word but rather a new sense given to an old word, the basic meaning of which was "setting no price
170 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nÂş 2 on", or as Florio suggested at the end of the century in his Worlde of Wordes, "a despising or contemning" . This passage seems to have given some initial trouble to BoscĂĄn, who first translated sprezzatura literally, as desprecio ("contempt"), and then more in accordance with the context as descuido ("carelessness"), the term he uses when the word crops up again later. Colin opts for nonchalance, which has become a dose analogy to the Italian term (whether or not it already was in his day). The anonymous French translator and Chappuys are both more cautious and double words up, nonchalance et mesprison in the first case, mespris et nonchalance in the second. 39 As for Hoby, he made more than one attempt at finding the right word. In his rendering of the Italian passage quoted above, he writes that the courtier must "(to speak a new word) [... ] use in everye thing a certaine disgracing to cover arte withall, and seeme whatsoever he doth and saith, to doe it without paine, and (as it were) not minding it". Castiglione himself twice used the word disgrazia in a similar sense a few lines later on, when Hoby translates it "disgrace". The next time sprezzatura occurs, it is again rendered "disgracing", but on the third occasion Hoby chooses "Recklessnesse".411 Hoby's choice of terms is precious evidence of his own reaction to Castiglione, if only we can interpret it (which is no easy task, given all the changes which have taken place in the English language in the four hundred odd years which separate us from him). We can begin by asking what alternatives were open to him. He did not opt for "nonchalance" like the French translators. 41 He aIs o avoided the terms "carelessness" and, perhaps more surprisingly, "negligence", employed in English as early as Chaucer, a word which corresponds to the non ingrata neglegentia advocated in Castiglione's own mo deI, Cicero, and adopted by Clerke in his Latin version, referring to the need to behave "negligenter et (ut vulgo dicitur) dissolutĂŞ", the latter term being his attempt to render Castiglione's neologismo Clerke also uses the term incuria. 42 What were the associations of the terms which Hoby did use? Unlike sprezzatura, "disgracing" was not newly-coined. It seems to have been strongly pejorative. "Rude and unlearned speech defaceth and disgraceth a very good matter" wrote Robinson in his 1551 translation of More's Utopia. "Filthy disgracements" wrote Norton in his 1561 translation of Calvin. 43 We must therefore at least entertain the possibility that the translator was, consciously or unconsciously, subverting his text. 44 Hoby was, after all, a Protestant, indeed a Marian exile, and some other renderings of his have been interpreted as signs of a "protestant bias", notably "trifling tales" for Castiglione's novelle. 45 There was deliberate paradox and desire to surprise in Castiglione's invention of the term sprezzatura, which etymology and context between them rendered highly ambivalent, but Hoby perhaps stressed the negative side at the expense of the positive. It is unfortunate that his journal gives us no due to his feelings about Italy at the time he was studying there. 46
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If the exact choice of words by Hoby teUs us something about the Courtier's reception in England, a great deal can be learned from the much freer version by Lukasz Górnicki, the Dworzanin polski (1566), a translation which is not a translation. 47 What Górnicki did with Castiglione's text was to transpose it. He transferred the setting from Urbino to a villa near Kraków belonging to his patron, bishop Samuel Maciejowski, chanceUor of Poland. It was not only the setting which was naturalised. The questione della língua, which is so important and so topical a theme in the Cortegiano, is transformed into a discussion of the advantages and disadvantages of the different Slav languages. There are also significant omissions. Górnicki explains at the start that he has left out Castiglione's discussion of painting and sculpture because, he remarks disarmingly, "we don't know about them here" (u nas nie znaja). Still more significant is the omission of the ladies, who have a significant if unobtrusive role to play in the original text. They disappear because in Poland, Górnicki explains, ladies are not learned enough to take part in such a discussion. Their disappearance necessitates other changes. The organisation of the third book, in which the characteristics of the gentildonna da corte are debated, is of course disrupte by the change, while the misogyny of Castilione's Gasparo PalIavicino becomes superfluous, and is very neatly replaced by the anti-Italian attitudes of Podlodowski. Given what the original author himself preached and practised on the subject of imitation, we may be alIowed to conc1ude that Górnicki was more faithful to his original than the mere translators like Hoby and Clerke precisely because he was less faithful. All the same, the contrast between the two texts does reveal a good deal about the cultural differences between Poland and Italy and about the problems of reception and assimilation. This effectively original work which c1aims to be a translation may be usefulIy juxtaposed to an example of the reverse. Nicolas Faret's Honête homme first appeared in 1630.48 It is a treatise, not a dialogue, on "the art of pleasing at court". It makes no reference to Castiglione. However, it soon launches into a discussion of behaviour marked by "une certaine grace naturelIe [... ] au dessus des préceptes de l' art". The author criticises la négligence aftectée but recommends nonchalance. It is not hard to find Faret's source. What is difficult is to reach a balanced verdict on this book. If you read it as an original work, it looks like pure plagiarism. On the other hand, if you regard is as translation, its freedom becomes apparent. Faret suppresses the "dialogic" element, thus flattening the text. He draws on later writers on good behavior, such as DelIa Casa, Guazzo, and Montaigne (on the education of children). He shortens some sections, such as that dealing with physical exercise, while he amplifies others, on poetry, for example, on boasters, on princes, and, above alI, on religion. Once again, the contrast between the two texts reveals something of wider differences - between Italy and France, and between the 1520s and the 1630s.
172 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nO 2 ADAPTATIONS The freedom of these adaptations has taken us more than half-way to the many works which were inspired by the Courtier or imitate it in a more or less precise sense. Too many to discuss here. An American scholar once listed no fewer than 945 treatises on the gentleman published in Europe before 1625, and later discovered 472 more. 49 In a brief essay concemed with general problems of reception, it seems best to discuss a small number of examples in relative detail. There have been many discussions of the importance of the Courtier in the culture of Renaissance England (from Sir Thomas Elyot on), and some of Renaissance France, so it may be more useful to take three examples from the Iberian peninsula, which should indicate in their variety something of the range of possible responses to Castiglione's book. 50 Luis de Milán is probably best known today for his music for the vihuela de mano, but he also deserves to be remembered for a charming dialogue, El Cortesano, set in Valencia at the court of the royal duke of Calabria. 51 This dialogue includes a brief discussion of the quality of the perfect courtier by the duke and Don Luis himself, but it is so brief as to be little more than a kind of homage to Castigliones. 52 The rest of the book is taken up with songs and poems, with jests (the court fool takes part, speaking Catalan while the nobles reply in Castillian), and with descriptions of clothes, impresas and festivaIs. The book is a kind of anthoIogy of anecdotes and verses without the central story or argument which gives at least an appearance ofunity to Castiglione's work. El Cortesano has virtually nothing to do with classical antiquity. It draws on and celebrates late medieval traditions; knights errant, courtly love, tournaments, and so on. What it takes from Castiglione is generally what is most traditional in his book. It exemplifies a 16th-century way of reading his text. Much closer to the spirit of Castiglione is the "Court in the Village and Winter Nights" [Côrte na Aldeia e Noites de Inverno] published in 1618 by a nobleman in the circle of the Duke of Bragança Francisco Rodrigues Lôbo (c. 1573 -1621).53 In sixteen short nights the five main characters discuss a variety of socio-literary subjects, starting with the value and the dangers of romances of chivaIry, and going on to the etiquette of visiting, correct forms of speech, the art of love, writing letters, composing impresas, responding wittily when the situation requires it, and even the art of dialogue itself. The conception and some of the themes seem to have been inspired by the Courtier, but Rodrigues Lôbo is well aware of Castiglione's own classicaI models and his discussion of grace and urbanity [graça, urbanidade] is closer to Cicero and Quintilian and their rhetorical context than it is-to Castiglione himself. What he has followed in the Courtier, an indeed caught very well, is not so much specific details as the general lightness of touch and in particular the art of presenting a case in the form of an argument between contrasted characters who do impress the reader
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as individuaIs; the Doctor of law, the Fidalgo, the Student, the old man, and so on. The characters are all men: in this and other respects the book is reminiscent oftheDworzanin polski. Like Górnicki's book, Côrte na A Ide ia is still very much admired in its country of origin and only the contingent fact that it is written in a language not very well known in Europe has prevented the author from acquiring the literary reputation he deserves. Castiglione would surely have appreciated it as a creative and a graceful imitation in the manner of his own dealings with Cicero. To imitate Castiglione creatively was easier if one left the court and wrote about another ideal. The obvious example to take is the school or university. It is not so far from the original, in the Fourth Book ofwhich the objection is made to Ottaviano that he is describing a schoolmaster rather than a courtier. One English humanist, who is known to have admired Castiglione's book seems to have been tempted in this direction. Roger Ascham's Schoolmaster does in fact begin as a dialogue in a circ1e of friends who inc1ude William Cecil and Walter Mildmay. It is a pity that the book does not continue in the same manner. One wonders whether the author rejected the dialogue form as too playfull. All the same, something similar had already been attempted, as Ascham could hardly have known, in Spain. It was probably in the 1550s that the humanist Cristóbal de Villalón wrote a dialogue on education which remained unpublished until relatively recent1y.54 El Scholástico, as it is calIed, is concerned with the ideal student and the ideal teacher at the university, so we may all have something to learn from it. It is set at the University of Salamanca (or nearby, in a garden belonging to the duke of Alba) and it takes the form of a discussion between the rector and a group of nine dons. As in the case of the Courtier, the discussion is placed, somewhat nostalgicalIy, a generation earlier (and the choise of the date 1528 is perhaps a kind of homage to Castiglione). The main subject of this dialogue is the university curriculum, inc1uding the place of magic and the role of the pagan c1assics, but towards the end the speakers widen their concerns and move c10ser to the Courtier in their discussions of the virtues and failings of women; the importance of music, painting, and other arts; and the behaviour appropriate in a university, a gravity [gravedad] which you will be pleased to hear does not exc1ude grace or wit or the propensity to falI in love (honourable love, of course). The book ends with the speakers swapping funny stories. El Scholástico is not a great work of literature, but, like El Cortesano, is does have considerable charm and it was a loss to sixteenthcentury readers that it was not published in their day, probably because of the criticism of the people who are "so delicate in their faith" [tan delicados en la te] that they attack Greek and Latin literature as pagan. As the fate of the Decameron during the Counter-Reformation demonstrates, the Inquisition was always peculiarly sensitive to reflection on itself.
174 - Rev. Brasil. Lil. Comparada, nU 2 OTHER RESPONSES Translations and adaptations are obvious evidence for the reception of a text. Another - heroic - way to study responses to the Courtier might be to examine all surviving 16th-century copies in the hope of finding annotations or at least underlinings. 55 The Earl of Surrey, for example, made notes in his copy of the Italian edition of 1541, while Gabriel Harvey inserted some opinions of his own in his copy of the Hoby translation. 56 My sample-survey of the annotated copies of the Courtier in Cambridge has produced nothing so interesting. However, an inspection of the rather jejune comments does produce some faint image of the sixteenth-century readers, even if only to suggest that they were more interested in the jokes, or the references to love than they were in sprezzatura. Finally, one can collect favourable and unfavourable references to Castiglione and his book. Quit a number of each have been unearthed from England. To the much-quoted passages from Ascham and Harvey can be added the approving comments by William Patten (1548), Thomas Nashe (1589), Sir George Buck (1615), and others. However, here as elsewhere in this essay it will be necessary to be selective and to compensate for the flattering imitations already discussed, it is better to concentrate on unfavourable responses, his cool rather than his warm reception. Thomas Wyatt's third satire, for example, addressed to Sir Francis Bryan, has been described as "the weightiest (and hitherto unrecognised) contemporary English critique of the Courtier" .57 At the end of the century another satirist, John Marston, took "the absolute Castilio" as his target on more than one occasion. "Take ceremonious compliment from thee I Alas, I see Castilios beggery" .58 One should perhaps take the attendant Balthasar in Much Ado as another crack at the Courtier because of the affected way in which he declines to sing: "Note this before my notes I There's not a note of mine that's worth the noting" . It was of course unjust to identify the author of the Courtier with the affected behaviour he pilloried; it has already been remarked that Castiglione has a way of exploiting the medium of dialogue to anticipate his critics. However, the point is to understand this reaction, whether just or injust. Castiglione had become a symbol and a scapegoat. Rejecting the Courtier was a way of rejecting the court, and Castiglione's book was read with spectacles coloured by a long tradition of anti-court literture. 59 It was perceived, as texts so often are, in stereotyped terms. Indeed, in a way reminicent of More's Utopia, the Courtier was perceived in terms of a geme which it subverts as well as follows. The book was also a focus for anti-Italian resentment which was not merely the response of good Protestant to the land of popery but also a backlash against what we might call Italian cultural imperialism, or, more vividly, in
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Elizabethan style, the "aping" of foreign ways. This was the age of the proverb (whether devised by an Italian or an Englishman I would not care to speculate), Inglese italianato e diavolo incarnato. In France they sometimes dec1ared that "11 n'est rien pire qu'un françois italiquÊ", and there too reactions to the Courtier became associated with anticourt traditions, with Protestant rejection of Italy, and with a xenophobia which the regency of Catherine de Medici would do nothing to alleviate. 60 The critique of "courtisanismes" by the humanist Calvinist printer Remi Estienne, (whose fierce rejection of François italianize may remind modem readers of current attitude to franglais) is an obvious exemple of such over-determination. 61 It would premature to offer any very precise or firm chronological, geographical, or sociological conc1usions at this point. From the chronological point of view, however, it may be worth stressing the 1540s (with 8 French and at least 4 Spanish editions) as a peak in the publishing history of the book. On the geographical side, the importance of the book in Spain is attested by imitations as well as editions, let alone the presence of the work in private libraries up to the time of Velazquez. As for the sociology of the readership, the French evidence at least suggest's that the noblesse de robe (above all in Paris), were the most avid consumers of the book (whether because a group on the periphery of the nobility needed this kind of instruction, or because the noblesse de robe were the main general readers in this period). Conc1usions are most precise and most firm when we tum to the transformation of the text in the process of its reception - stripped bare by its readers, if not completely perverted. Castiglione might well have been amazed had he known that some of his readers would underline the jokes rather than the arguments, or that he would be associated with the very affectation and flattery he made his characters reject. In addition, we have seen his text lose its dialogic quality, its chiaroscuro, its three-dimensionality. We have watched it being flattened in the course of its reception. This is perhaps the inevitable fate of texts. Observations of this kind are unlikely to surprise modem students of "Reception Theory" or Wirkungsgeschichte. All the same, they are scarcely compatible with the traditional notion of "tradition".
176 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 NOTES 1. On schemata, A. Warburg, Gesammelte Schriften (Leipzig und Berlin, 1932), and E. H. Gombrich, Art and /lusion (London, 1960). On "horizon of expectations", H. Gadamer, Wahrheit und Methode (1960: English trans. London, 1975), and H. R. Jauss, Literaturgeschichte aIs Provokation (1974; English trans.). 2. D. Hay, The Italian Renaissance in its Historical Background (Cambridge, 1961), entitles two chapters "The Reception of the Renaissance in Italy" and "The Reception of the Renaissance in the North". 3. A somewhat mechanical view of the "diffusion" or "spread" of humanism can be found in scholars of the calibre ofP. O. Kristeller, "The European Diffusion ofItalian Humanism", Italica 39 (1962), 1-14, and R. Weiss, The Spread ofItalian Humanism (London, 1964). On the other hand, F. Simone, /l rinascimento francese (Turin, 1961), S. Dresden, "The Profile of the Reception of the Italian Renaissance in France", in Iter Italicum, ed. H. Oberman and T. Brady (Leiden, 1975, 119 - 189), and Q. Skinner, Foundations of Modern Political Thought (2 vols., Cambridge, 1978, esp. vol. 1, part 3), are aware, as Dresden puts it, that "whatever is transmitted changes". 4. R. Porter and M. Teich, eds, The Enlightenment in National Context (Cambridge, 1981). 5. The footnotes to this essay are intended to reveal both the extent of the secondary literature on Castiglione and the need (given the contradictions and gaps in this literature) for more work on a number of problems. 6. J. Cartwright, Baldassare Castiglione (2 vols., London, 1908),2,440, tells the story of two Japanese ambassadors who visited Mantua in 1585 taking the book home with them. J. M. Corominas, Casiglione y la Araucana (Madrid, 1980) cIaims to be "estudio de una influencia" but lacks precision. Alonso Ercilla (s. 1533 - 94), author of the epicAraucana, spent much of his !ife in Chile. 7. The fortunes of the Courtier in Italy have not yet been the object of systematic study. Parts of the story are told by V. Cian, Archivio storico lombardo 14 (1888), 661 - 727, G. Mazzacurati, "Percorsi dell 'ideologia cortegiana", in La corte e el cortegiano, ed. C. Ossola (Rome, 1980), 149 - 72, and G. Patrizi,"Il Libro dei Cortegiano e la trattatistica sul comportamento", in Letteratura italiana, ed. A. Asor Rosa, 3, part 2 (Turin, 1984). 8. However, the book was translated into Dutch in 1662, under the title De volmaeckte hovelinck, and translated for the second time into German in 1685, as Galante Nachgespriiche. In 1773 Df. Johnson was still praising it as "the best book that ever was written supon good breeding". 9. L. Opdycke, ed., The Courtier (New York, 1901),419 f: cf. note 17 below. 10. On the idea of the "open" work, U. Eco, The Role ofthe Reader (London, 1981). 11. Cf. W. A. Rebhorn, Courtly Performances (Detroit, 1978), 186. 12. J. Guidi, "Les différentes rédactions et la fortune du 'Coutisan' ", in Réécritures, ed. Guidi (Paris, 1983). 13. On earlier Italian examples, see E. Mayer, Un opuscolo dedicato a Beatrice d'Aragona (Rome, 1937) and D. Rhodes, "Whose New Courtier?", in Cultural Aspects of the Italian Renaissance, ed. C. H. Clough (Manchester, 1976), dealing respectively with Diomede Caraffa and (probably) Mario Equicoia. 14. On the history of "grace", S. H. Monk, "A Grace Beyond the Reach of Art", Journal of the History of Ide as 5 (1944), 131 - 50; on the ancient Roman concern with manners and self-presentation, E. S. Ramage, Urbanitas (Norman, 1973). 15. D. Brewer, "Courtesy and theGawain Poet", inPatternsofLoveandCourtesy, ed. J. Lawlor (London, 1966),54.
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16. S. Anglo, "The Courtier" in The Court of Europe, ed. A. G. Dickens (London, 1977), with special reference to medieval France. The German contribution to discussions of courtliness is emphasised by C. S. Jaeger The Origins ofCourtliness (Philadelphia, 1985), Cf. G. Weise "Vom Menschenideal und von den Modewéirtem der Gotik und der Renaissance" (1936) on medieval terms such as gracieux, courtoys, hovesch. 17. The only attempt at a complete Iist seems to be Opdycke (1901), 419 - 21, who reached a total of 49. His 17 Spanish editions may include a few ghosts. At any rate his list contrasts with A. Palau y Dulcet, Manuel dei librero Hispano-Americano (Oxford and Barcelona, 1948-), who mentions only ten, which he has seen personally, and M. Morreale, Castiglione y Boscán (Madrid, 1959), who mentions twelve; but R. Klesczewski, Die franzosischen Übersetzungen des Cortegiano (Heidelberg, 1966), adds eight French editions which Opdycke missed. He also missed the Polish translation. The number of English editions is also controversial. The D.N.B. claims there were five in Elisabeth's reign, but W. Raleigh, ed., The Courtier (London, 1900), Ix, could only find four. 18. P. Hogrefe, "Elyot and 'the boke called Cortegiano in Ytalian' ". Modern Philology 27 (1929 - 30), 303 - 9. 19. H. M. Adams, Catalogue ofthe Books Printed on the Continent of Europe 1501 -1600 in Cambridge Libraries (2 vols., Cambridge, 1967), Iists 20 Italian, one Latin and two Spanish editions; Trinity have acquired three more Italian copies since. These and other modem acquisitions need to be subtracted but on the other side, there are 17th-century editions and English editions to add. Emmanuel College alone, for example, has three copies of the London 1612 edition of the Latin translation. 20. I should Iike to thank the Librarian of Trinity for permission to examine the eleven Italian editions of the Courtier now in their possession. 21. E. Leedham-Green, Books in Cambridge Inventories (2 vols., Cambridge, 1986). 22. M. H. Curtis, Oxford and Cambridge in Transition (Oxford, 1958). 23. British Library. Add. Mss. 39, 830 [a scrap-book with Iists ofpurchases], ff. 178v, 187 v. 24. D. H. WiIIson, James I (London, 1956),22. 25. J. Brown, Velazquez: Painter and Courtier (New Haven, 1986). Brown does not mention this item in the painter's library, recorded in the 1661 inventory as "Cortesano de Castellon en italiano"; F. Rodríguez Marín, Francisco Pacheco maestro de Velazquez (Madrid, 1923), 55. The book had been placed on the Spanish Index of 1612: Palau y Dulcet (1948 -), 3, 276. On the other hand, J. Cartwright, Baldassare Castiglione (2 vols., London, 1908), 2, 443, claims that it was already on the Spanish Index by 1576. 26. A. H. Schutz, Vernacular Books in Parisian Private Libraries of the Sixteenth Century (Chapel HiII, 1955),43. 27. A. Labarre, Le livre dans la vie amiénois du 16e siecle (Paris and Louvain, 1971),385. 28. Morreale (1959); D. H. Darst, Juan Boscán (Boston, 1978). 29. Dictionnaire de Biographie Française; Klesczewski (1966), 24 f, who notes that the authorship of this translation is problematic [the candidates including a Jean Colin as well as Jacques], and that the work may have been shared . 30. Dictionnaire de Biographie Française. 31. Dictionary of National Biography. 32. D.N.B. 33. Polski Slownik Biografyczny. 34. R. Stéittner, "Die erste deutsche Übersetzung von B. Castigliones Cortegiano", Jahrbuch für Münchener Geschichte 2 (1888), 494 - 9, who confesses his failure to discover further biographical details. 35. Stéittner (1888), J. Ricius (c. 1520 - 87), who translated book 1 of The Courtier into Latin, was bom in Hannover, and educated at Wittenberg before becoming Professor of Poetry at Marburg. He is known to have visited Italy. J. Turler, who also translated The Courtier into
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Latin, may be the same person as the Hieronymus Turler (c. 1550 - 1602) who published a famous essay De peregrinatione and translated Machiavelli 's Istorie fiorentine into Latin. Prefatory epistle to Lord Henry Hastings; London, 1948 ed., 6. A brief general discussion in C. Gabrieli, "La fortuna de '11 Cortegiano' in Inghilterra", La Cullura 16 (1978),218 - 52. On his problems with the aesthetic terms in the text, L. Gent, Picture and Poetry 1560 -1620 ((Leamington Spa, 1981), 15. Klesczewski (1966). Discussion in Klesczewski (1966), 168 f. Castiglione Book 1, chs. 26,27,28; Hoby, 46, 47, 48. The Oxford English Dictionary's first reference to "nonchalance" is as late as 1678. However, Hoby probably knew one of the French translations of the Courtier. He was working on his translation in Paris and his epistle to Hastings refers to the book's high reputation in France. Cicero, De oratore, 23.78; B. Clerke, De curiati sive aulico (1571: London, 1593 ed.), 45. However, according to the Middle English Dictionary, ed. S. E. Kuhn and J. Reidy, Ann Arbor 1954 -, in progress, Necgligence [sic] is not used (before 1500) except in moral and spiritual contexts, to mean something like "omission of duty" or "sloth". My thanks to Professor John Stevens for drawing my attention to this point. Oxford English Dictionary s.v. "disgrace". The usage cIosest to Hoby's is Sidney's in his Defence of Poetry, [in his Miscellaneous Prose, ed. K. Duncan-Jones and J. van Dorsten, Oxford, 1973, 111] where "disgracefulness" seems to mean "inelegance", but this is c. 1580, and so carries on from Hoby and may even allude to him. I should like to thank Professor Stephen Orgel for drawing this possibility to my attention. Raleigh (1900), Iix. T. Hoby,A Booke ofthe Travaile andLifeofme Thomas Hoby, ed. E. Powell (London, 1902: Camden Miscellany, 10). The edition I have used is that edited by R. Pollak (Kraków, 1954). On the man and the book, R. Lowenfeld, L. Górnicki (Breslau, 1884), and D. J. Welsh, "11 Cortegiano Polacco", Italica 40 (1963),22- 6. LOwenfeld's book was in Lord Acton's Iibrary, now in Cambridge; its pages remained uncut till 1983. I have used the modem reprint of the 1636 edition (ed. M. Magendie, Paris 1925). There is a useful introduction. Cf. M. Magendie, La politesse mondaine en France de 1600 à 1660 (Paris, 1925). R. Kelso, The Doctrine of the English Gentleman in the 16th Century (Urbana, 1929); id., Doctrine for the Lady of the Renaissance (Urbana, 1956). She found 891 itens on the lady. On England, W. Schrinner, Castiglione und die englische Renaissance (Berlin, 1939); E. R. Vincent, "11 cortegiano in Inghilterra", in Rinascimento europeo e rinascimento veneziano, ed. V. Branca (Florence, 1964),97 -1 07; D. Javitch, Poetry and Courtliness in Renaissance England (Princeton, 1978). On France, E. Bourciez, Les moeurs polies (Paris, 1886), C. A. Mayer, "L'honnête homme", Modern Language Review 46 (1951), 196 - 217, and P. M. Smith, The Anti-Courtier Trend in French Renaissence Literature (Geneva, 1966). L. de Milan, El Cortesano (1561: repr. Madrid, 1874). For a good brief account ofthe author, c. 1500 - c. 1561, see the new (1980) edition of Grove'sDictionary of Music and Musicians. 79 f, "RegIas deI cortesano". Mastre Zapater's description of the universe on the last day of the dialogue, pp. 362 f, is an echo or at least an equivalent of Bembo's famous speech at the end of the Courtier. I used the Lisbon, 1972 edition. On the author, W. J. Schnerr, "Two Courtiers: Castiglione and Rodrigues Lôbo", Comparative Literature (1961) 138 - 53. C. de Villalón, El Scholastico, ed. R. J. A. Kerr (Madrid, 1967). On the Author (c. 150058),1. J. Kincaid, Cristóbal de Villalón (New York, 1973).
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55. R. Darnton stresses the importance of this approach in his unpublished paper, "Steps Towards a History of Reading". 56. Vincent (1964) cited; C. Ruutz-Rees, "Some Notes of G. Harvey in Hoby's Translation of Castiglione's Courtier", Proceedings of the Modem Languages Association 25 (1910). 57. D. Starkey, "The Courl: Castiglione's Ideal and Tudor Reality", Joumal of the Warburg and Courtauld 45 (1982) 232 - 9 (at p. 234). 58. 1. Marston, Poems, ed. A. Davenport (Liverpool, 1961), 68, "Castilio" also occurs in Marston's Antonio and Mellida. Despite having an Italian mother, Marston apparent1y read Castiglione in the Hoby translation. 59. On this tradition, C. Uhlig, Hofkritik im England des Mittelalters und der Renaissance (Berlin, 1973). 60. Mayer (1951), on Philibert de Vienne's Philosophe de Cour; Smith (1966). On an English misunderstanding of Philibert, D. Javitch, "The Philosopher of the Court", Comparative Literature 23 (1971) 97 -124. 61. H. Estienne, Deux dialogues (1538: ed. P. Ristelhuber, 2 vols., Paris, 1885).
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A COMPARAÇAO ELIDIDA: A MEMÓRIA DE BRODIE
Raúl Antelo
To be premature is to be perfect. OSCAR WILDE
Ser um precursor é ver aquilo que nossos contemporâneos estão constituindo /lO momento como pensamentos, como consciência, como ação, como técnicas, como formas políticas, vê-los como os veremos um século mais tarde. JACQUES LACAN
Em seu ensaio sobre "Tres formas deI eterno regreso", Jorge
1. BORGES, Jorge Luis. "Tres formas dei eterno regreso". La Nación. Buenos Aires, 14 dez. 1944.
Luis Borges pondera que "en tiempos de auge la conjetura de que la existencia deI hombre es una cantidad constante, invariable, puede entristecer o irritar; en tiempos que declinan (como éstos) es la promesa de que ningún oprobio, ninguna calamidad, ningún Hitler, podrán empobrecemos".1 Pouco depois, analisando o propósito de Nietzsche ao escrever Assim falou Zaratustra, admite que ninguém deve ter deixado de reparar que essa obra é uma imitação formal dos textos canônicos orientais embora ninguém tenha ainda esgotado o sentido de conceber a história universal como interminável e periódica. Os detratores de Nietzsche postulam, nesse retorno cíclico, "una confusión humana, harto humana, entre la inspiración y el recuerdo, cu ando no entre la inspiración y la transcripción". Mais implacáveis ainda, os defensores de Nietzsche apressam-se a justifi-
182 - Rev. Brasil. Lil. Comparada, nº 2 car a repetição ora pela surpreendente ignorância do filósofo, ora por sua tendência ao "mero adorno retórico, una suerte de adjetivo o de énfasis. Olvidan o simulan olvidar la trágica importancia que Nietzsche atribuyó a ese adorno".2 Os críticos de Borges parecem reincidir nos mesmos passos e interpretam os cíclicos retornos de suas ficções, ora como postulações da irrealidade, ora, mais recentemente, como peculiares postulações da realidade. 3 Borges, leitor de Nietzsche, detem-se, por sua vez, numa passagem deste em que Zaratustra condena toda experiência legada aos pósteros como religião. Ela deve, porém, infiltrar-se lentamente, trabalhada por muitas gerações porque a idéia mais alta exige sempre tempos longos; de início, deve ser pequena e até sem força, simples, árida quase, por prescindir da eloqüência, para, a longo prazo, ser a religião dos mais livres, mais altos e mais serenos. Aí julga Borges encontrar a explicação do mistério recorrente de uma memória que não se apaga. Aí, poderíamos extrapolar, há algo da memória de Borges que vibra em sintonia. "El tono inapelable, apodíctico, los infundados anatemas, las énfasis, la ambiguedad, la preocupación moral [... ] las repeticiones, la sintaxis arcaica, la deliberada omisión de toda referencia a otros libros, las soluciones de continuidad, la soberbia, la monotonía, las metáforas, la pompa verbal, tales anomalías de Zaratustra dejan de serlo en cuanto recordamos el extrano género literario a que pertenece [... ] A veces lo juzgamos como si fuera un libro dialéctico; otras como si fuera un poema, un ejercicio desdichado o feliz de noble prosa biblica. Olvidamos, propendemos siempre a olvidar, el enorme propósito deI autor: la composición de un libro sagrado, un evangelio que se leyera con la piedad con que los evangelios se leen".4 No prefácio a seu último livro de relatos, em que o ofício do velho reescreve o brilho genial do moço, Borges define essas ficções (aí incluída "O evangelho segundo Marcos", a seu ver, a melhor da série) como relatos realistas, exceção feita, apenas, àquela que dá título ao volume. Beatriz SarIo, ao analisá-la, inclina-se por uma chave oblíqua de leitura dizendo que' 'El informe de Brodie despliega una mezcla pertubadora de filosofia política en situación ficcional. El argumento de Borges remite a una pregunta sobre el buen orden de la sociedad y para exponerIo eligió una estrategia de género que lo ubica en la tradición e los viajeros filosofantes, pero, aI mismo tiempo, introduce modificaciones en esa tradición: mientras Gulliver no es ambíguo respecto de sus Yahoos (porque puede compararIos con los virtuosos Houyknhnms), Brodie presenta unjuicio enigmático e inestable sobre sus propios 'Yahoos', porque, pese.l su natura-
2. Idem. "EI propósito de Zaratustra". Lo Noción. Buenos Aires, 15 oul. 1944.
3. No primeiro time, com avaliação positiva, o ensaio
pioneiro de Ana Maria Barrenechea; com avaliação negativa, a leitura da geração da revista Contorno. No segundo time, descontadas as leituras de uma "história pessoal", à maneira de Didier Anzieu ou Rodriguez Monegal, estão as que reescrevem uma história universal em que Borges reencontraria seu destino sulamericano, como a análise da "Biografia de Tadeu Isidoro Cruz", praticada por Davi Arrigucci em Enigma e comentário, ou sua reincidência, em plano mais geral, em Out of contexto Historical Reference ond the Representation of Reality in Borges de Daniel Balderston.
4. Idem. "EI propósito de Zaratu8tra", op. cit.
A Comparação Elidida
5. SARLO, Beatriz. "Borges pregunta sobre el orden". Punto de vista, a. 15, n. 43, Buenos Aires, ago. 1992, p. 20.
6. Cf. "AIgunos pareceres de Nietzsche", La Nación. Buenos Aires, 11 fev. 1940.
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leza (bestial o decadente) lograron construir la forma de un orden, lo que significa responder a la pregunta política".5 Creio, sem contestar essas leituras, poder me colocar ao lado e interpretar as ênfases e repetições, a sintaxe arcaica e as preocupações morais, a ambiguidade e a pompa verbal como uns tantos indícios do gênero a que pertence O relatório de Brodie e, em conseqüência, a própria ficção de Borges. Nem dialética, nem poética, sua escritura imita a composição de um livro sagrado, o Livro. Nela o retorno desenha a forma de um conteúdo que é a diferença. Em tempos de declínio como o nosso, nos bastidores desse Theatrum philosophicum, mexem-se as pecas de uma contra-utopia negativa. Ponto de convergência mas, ao mesmo tempo, linha de fuga, o texto de Borges escreve sua própria leitura. Não nos oferece uma teoria da desmemória mas nos persuade de que há saber no esquecimento porque esquecimento e epifania (eu e tu) são fenômenos mais do que contíguos: eles são simultâneos. A escritura de Borges, sabemos, deslê, de várias formas, a dos predecessores. No fragmento 1072, "A inocência do devir", de Nietzsche, temos já a memória de Brodie: " Qué hago aI borronear estas páginas. Velar por mi vejez registrar para el tiempo, cuando el alma no puede emprender nada nuevo, la historia de sus aventuras y de sus viajes de mar. Lo mismo que me reservo la música para la edad en que esté ciego".6 Mas, muito amiúde, nós encontramos Borges deslendo um anarquista estético como Valéry. Na idéia de que a operação crítica capital é a determinação do leitor, uma vez que "le lecteur actif fait des experiences sur les livres - il essaye des transpositions". Na noção de texto como transformação, já que a obra, "elle dure pour s'être transformée". Na convicção de que ficção é tudo quanto não existe nem subsiste sem causa expressiva porque tem "la parole pour cause". Valéry entendia que se começa escrevendo os próprios desejos e se acaba escrevendo Memórias. "On sort de la littérature et on y revient". Borges, por sua vez, escreveu uma parábola para ilustrar que "en el principio de la literatura está el mito y asimismo en el fin". Nominalistas e anti-realistas, Borges e Valéry indiferenciam escritura de tradução. Não acreditam na originalidade, affaire d'estomac que faz com que "todo lo que comemos es, a la larga, carne humana", como nos diz o Dr. Brodie, isto porque ambos descrêem de um sujeito unificado pela razão. Borges e Borges; Valéry e M. Teste. Eis uma leitura infame sugerida pelo próprio Borges: atribuir maior valor aos textos de Mme Teste ou aos dos amigos de Edmond do que aos dele próprio. Ao mais-que-perfeito M. Teste, um Leonardo de ostinato rigore, Borges confessa preferir a irregularidade de Whitman, autor de filantrópicas rapsódias, compos-
184 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2 tas "en función de un yo imaginario, formado parcialmente de él mismo, parcialmente de cada uno de sus lectores" . Whitman mas não Valéry, de quem, aliás, se pode dizer, como de Shakespeare, he is nothing in himself Brod (e não Kafka) e ainda Brodeur, o tradutor inglês das kenningar: todos Brodies, nada em si mesmos, meros Borges e não Borges.
*** Numa conferência sobre o poeta e a escritura,? Borges tentou ilustrar o árduo processo prototextual que o levou a redigir, em 1980, um relato póstumo (o último conto de Borges) que, de fato, vinha se escrevendo em muitos outros textos prévios. Disse o autor, na ocasião, que" A memória de Shakespeare" se revelou a ele durante um sonho, um sonho arrevesado que tivera, muito antes, talvez em 1972, quando lecionava em East Lansing, no Michigan. Acordei de um sonho confuso e lembrei de uma frase (contei tudo a Maria Kodama); essa frase (acho que a ouvi em inglês) era I'm about to seU you Shakespeare's memory ("Estou a ponto de lhe vender a memória de Shakespeare"). Não sei qual era o resto do sonho, o contexto se perdeu para sempre mas ficou essa frase" A memória de Shakespeare" . Não é a memória de Shakespeare no sentido da fama de Shakespeare, isso teria sido muito trivial; também não é a glória de Shakespeare, mas a memória pessoal de Shakespeare. E isso serviu de estímulo para um conto, que teve a forma de outros contos meus, porque embora eu não pense na memória de Shakespeare como algo precioso, para os fins patéticos de um conto, convém que seja algo precioso, ou m~smo, terrível. Quer dizer, voltei a uma forma, a um esquema, que usei em muitos contos. Por exemplo, em "O Zahir", não sei se estão lembrados. Esse conto teve origem na palavra "inesquecível", que usamos continuamente. Pensei que seria terrível não poder esquecer alguma coisa, estar refletindo continuamente em torno disso, então me ocorreu que, para os efeitos literários de meu relato, era conveniente que essa coisa fosse aparentemente comum, porque se a gente vê a quimera, que tem três cabeças, ou o unicórnio, um cavalinho branco com um chifre, ou um minotauro, um homem com cabeça de touro, ou como queria Dante, um touro com cabeca humana, é natural não se esquecer. Pensei em algo muito comum, pensei em uma moeda de vinte centavos que, a diferença de seus milhares de irmãs, fosse inesquecível, e um homem não
7. BORGES, Jorge Luis. "EI poeta y la escritura. Clarín, Buenos Aires, 26 jan. 1989. Trata-se de una conferência, na Sociedade Hebraica Argentina, de 1982.
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pudesse esquecê-la, até o ponto de não poder pensar em outra coisa. Assim saiu o conto "O Zahir". Depois usei esse mesmo método em outros contos meus; por exemplo, em "O livro de areia", que é um livro infinito; num primeiro relance, um livro infinito parece ser um tesouro mas chega a enlouquecer quem o possui. E depois em "O Aleph" . Nesse conto eu parti do conceito de eternidade; é a idéia (é claro, falsa talvez) de que pode existir um instante em que está todo o passado, todos nossos ontens, como disse Shakespeare, e todo o porvir: todo o tempo em um único instante. E levei essa idéia a uma categoria menos importante, ao espaço, e pensei em um ponto onde estivessem contidos todos os pontos do mundo, e assim escrevi o conto" O Aleph' , . É a mesma idéia de um dom precioso que acaba sendo terrível. E escrevi esse outro conto, "A memória de Shakespeare"; claro que o critério da venda me pareceu mesquinho, era melhor a idéia e um dom misterioso. Escolhi um professor alemão que tinha o culto de Shakespeare, um estudioso de Shakespeare a quem é dado, de um modo misterioso, possuir a memória pessoal de Shakespeare. A venda, mesquinha, só poderia produzir um Nome falso; por isso Borges escolhe a doação e a memória de Shakespeare tem a forma do relatório de Brodie. Em um texto como o de Borges, pervertido pela ninharia da personalidade, leitores como Sylvia Molloy entendem que a leitura da memória e a memória da leitura oferecem uma sutil continuidade: elas permitem que o sujeito que as põe em prática atualize uma autoridade fugaz e reversível - a do idêntico - de tal sorte que texto e memória funcionam como depósitos de lixo ou, nas palavras do memorioso Funes, "como un vaciadero de basuras'·. Cabrera Infante associa justamente o nome da personagem borgiana ao de outra, não menos memorável, feita também de pura memória: o Mr. Memory de 39 Steps. Aliás, esse Mr. Memory, que é a memória entendida como espetáculo, tudo relembra e demonstra até que ponto recordar é trivializar ou, ainda, tornar a viver, como num memorial. A vida está cheia de memória; a morte, porém, é o descanso no esquecimento. O declínio da memória revela uma subjetividade j á perdida por definição e que, por sua vez, se desdobra em uma ficcionalidade mínima (a impossível imaginação das origens) e uma ficcionalidade máxima (a liberdade de fingir uma origem). Nenhuma é superior à outra. Nenhuma é anterior à outra. A ficção, segundo a fórmula de Co1eridge, lembrada oportunamente por Borges, requer "a willing
186 - Rev. Brasil. Li!. Compar~da, nº 2 suspension of disbelief", aquilo que o jovem Borges chamava de transonhação tolerada pela convicção e pela rotina, "una transonación consentida por el engreimiento y el hábito". Hermann Soergel (o erudito shakespereano), David Brodie (o autor do relatório), Alejandro Ferri (o representante em "O Congresso") ou, em outras palavras, os últimos Borges, estão todos entreverados (ou, como ele diria, interwoven) com o primeiro. Aceitando a idéia de que, dispersada a leitura, resta na memória apenas uma síntese mais ou menos arbitrária dos textos lidos, o sujeito (a escritura) se define, desta sorte, como efeito residual ou terminal, como esvaziamento e não como ratificação de categorias históricas ou psicológicas tais como linguagem, subdesenvolvimento, Tertium Orbis. Em Inquisiciones, o primeiro Borges insiste na idéia da subjetividade como resto, a personalidade como ninharia. Uma e outra vez, martela, em "La nadería de la personalidad", que não há um eu total: "equivócase quien define la identidad personal como la posesión privativa de algum erario de recuerdo". A identidade é posição mas não possessão e, nesse sentido, diferença, porque diante dos infinitos estados de consciência, não espanta que muitos deles aconteçam de novo de forma borrosa. Borges não chega a impugnar a percepção sensível imediata mas antes critica a reiterada antítese entre o eu e o não eu e, talvez mais do que isso, combate a idéia de que essa antítese seja uma constante. Lemos na Vida de Torres Villarroel, nos diz, que os sentimentos se superpõem em simultaneidades que alguns chamam de loucura, mas que configuram uma polifonia perceptiva a que mais tarde Baudelaire daria nome, o castigo de si próprio: "je suis le soufflet et la joue", o sopapo e a face. A questão borgeana reside em admitir que, num mundo de ficções enganosas, só há verdade na ficção; daí que o simultaneismo deixe de ser, em seus textos, uma qualidade que se imita para ser uma quantidade que se desdobra, uma narrativa que torna e retoma. O relatório de Brodie, o derradeiro Borges, precede o primeiro na cifra de uma identidade infinita, idéia ilustrada pela parábola de Aquiles e a tartaruga, que nos mostra que, frente ao irracional, o homem está sempre rezagado, atrasado. Contra toda ilusória vanguarda, retaguarda: o zagueiro antecede o dianteiro. Whitman, Kafka, Picasso (os exemplos, descontínuos, são do próprio Borges) derrotaram Aquiles. Como a vida, portanto, é verdadeira, não há realidade por trás da realidade nem verdade encoberta por falsidades. Essa ontologia hermenêutica radical define o sujeito como' 'un punto cuya inmovilidad es eficaz para determinar por contraste la cargada fuga deI tiempo. Esta opinión traduce el yo en una mera urgencia lógica sin cualidades propias ni distinciones de individuo a individuo".8
S. Idem. Inquisicioncs. Buenos Aires: Proa, 1925, p. 95.
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Assim, Rosendo Juarez, que fica na zaga, naqueles exercícios de narrador tímido da História universal da infâmia (e que, a rigor, já aparecera em uma outra ficção, anterior à primeira, "Hombres pelearon"), retoma em uma das últimas, a "História de Kosendo Juarez", incluída no derradeiro relatório de Brodie, e onde o que conta, aquilo que, de fato, definiria textos e memórias, é o procedimento. Neste relato diferido, e em sua referência dilatada, "las armas no, los hombres pelearon". Em outro retorno, "O etnógrafo" (de Elogio da sombra), o candidato a cientista Fred Murdock, em cujo nome já repercutem restos de crimes, também se vê modificado pelo objeto de estudo escolhido (a cultura de fronteira), com o qual, porém, admite ter aprendido "algo que no puedo decir" e que, entretanto, "podría enunciarIo de cien modos distintos y contradictorios". O segredo, sinistro e incomunicável, conduz Murdock ao silêncio de uma nova profissão, a de bibliotecário. Na biblioteca, então, o caráter residual e radical de texto e memória conjugados se transfigura em unending rose ou moeda de ferro, vaciadero de basuras.
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9. Idem. "Aldous Huxley Aftcr many a summcr", Sur. Buenos Aires, dez. 1939, p. 64.
David Brodie é, como Murdock, etnógrafo. Seu relato sobre os yahoos alegoriza uma identidade terminal. Yahoo: lago mas também iugum (que dá o trabalho do jugo e o êxtase da iôga). Ou ainda la joue baudelairiana, face, mas também carranca, figura de proa que se atira ou joga ao desconhecido. Yahoo ya yo ou meras identidades residuais. Os yahoos são nômades e, portanto, brutais: não têm nome próprio, donde desconhecem a paternidade. Como os pacáas-novos do Pará, descritos por esse outro Murdock-Brodie que é O turista aprendiz, os yahoos ocultam-se para comer ao passo que fazem suas necessidades na frente de todos. Aglomeram-se no pântano, sob o rigor do sol equatorial e dos miasmas. Sua noção de limites é precária, como a dos índios de Buenos-Aires. Mas o traço marcante é que lhes falta memória: desconhecem a duração e, portanto a história, mas eles têm previsão. Os yahoos não são uma nação primitiva mas degenerada, um bárbaro do qual, entretanto, "será injusticia olvidar rasgos que lo redimen". Os yahoos "representan, en suma, la cultura", a identidade em cifra de alteridade. Os yahoos são o enigma. Édipo, o Minotauro ou o Tigre. O homem-animal, o ser de fronteira, o tiers-Ínstruit. Os struldbrugs complementam os yahoos. São os imortais de Balnibarbi, pura memória, "hombres odiosamente capaces de caducidad pero no de muerte, voraces, decrépitos, inmortales".9 Os yahoos, entretanto, são mortais. Eles vão morrer.
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que Borges encontrou em um escritor de fronteira como Swift? "Un suefto antropométrico que en nada roza las complejidades de nuestro ser [... ] quiere demostrar que las bestias valen más que los hombres. Exhibe una virtuosa república de caballos conversadores, monógamos, vale decir, humanos, con un proletariado de hombres cuadrúpedos, que habitan en montón, escarban la tierra, se prenden de la ubre de las vacas para robar la leche, descargan su excremento sobre los otros, devoran carne corrompida y apestan. La fábula es contrapoducente, como se ve. Lo demás es literatura, sintaxis" .10 Mas seu propósito, com" O relatório de Brodie" , é aproveitar a parte nutritiva que encerra a materia fecal,1I resgatando, assim, nessa dialética ou vaivém, uma das chaves de nossas impossibilidadesY MinaI, o que passa pelo esfínter, passa, pela Esfinge e nos coloca, literalmente, em um aperto. O mal-estar gera a esfinge mas a esfinge não gera o horror. 13 Não é por acaso, então, que o melhor de outro escritor de fronteira, outro irlandês, Oscar Wilde, seja, a seu ver, "The Sphynx", "donde el contacto con la realidad es más tenue." 14 Em outra ocasião, analisando The Croquet Player de H. G. Wells, Borges observou que "la esfinge describe con toda perplejidad un monstruo variable; ese monstruo es el hombre que la está oyendo. Wells describe una región de pantanos envenenados en la que ocurren hechos atroces; esa región es Londres o Buenos Aires y los culpables somos tu y yo" /s diferença, a rigor, trivial e fortuita porque, como lemos no exergo do primeiro livro - najoue e no jogo do Livro - nuestras nadas poco difieren. O que Borges consegue com "O relatório de Brodie"? Não um relato realista, que não é, de fato; mas uma ficção que, sequer fugazmente, tangencia as complexidades do ser e hesita, de forma também fugaz, entre a ênfase nas diferenças e a descoberta das semelhanças. Parte dessa hesitação se encerra na recomendação final, que, como diz Beatriz Sarlo, é enigmática mas poderia ser entendida como a conclusão de um estudo comparativo elidido, fantasma. Essa análise contrastiva do que Brodie deve ter encontrado em Glasgow e Borges em Buenos Aires, verdadeiro exercício de crítica comparada, ainda que não escrita, merece ser reconstruída. Ela mostra não apenas a verdade da ficção mas, ainda, o fingimento de toda verdade. Tudo nos leva a supor nela um anteparo aos calamitosos totalitarismos contemporâneos. Algo nos permite imaginar, entretanto, uma crítica à apatia do pluralismo e ao niilismo da diferença. Esse algo, dimensão intervalar do ficcional, hiato ou fenda textual que rearticula a memória, combate uma política linear da diferença. Se tomarmos, com efeito, o sionismo como representante dessa política
10. Idem. "Arte de injuriar" in: Obras Completas, Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 422. 11. Idem, ibidem. 12. Em "Nuestras imposibilidades" (Sur, Buenos Aires, primavera de 1931, pp. 131· 134), Borges dedica sua análise da dialética fecal, a sodomia, "a los apologistas de la viveza, dei alacranco y de la cachada". A partir desse texto, Daniel Balderston apresentou, no I Congresso Internacional de Teoria Literária (Universidade de Buenos Aires, jul. 1993), uma reflexão sobre o homoerotismo no autor de Ficções. 13. BORGES, Jorge Luis. Tcrtos cautivos. Barcelona: Tusquets, 1986, p. 303. 14. Idem, ibidem, p. 135. 15. Idem, ibidem, pp. 84-85.
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16. Idem, "Algunos parece· res en Nietzsche", op. cit.
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integrista, O texto borgeano não permite dúvidas "este nacionalismo es el más exorbitante de todos pues la imposibilidad de invocar un país, un orden, una bandera, le impone un cesarismo intelectual que suele rebasar la verdad. EI nazi niega la participación deI judío en la vida alemana; el judío, con injusticia igual, finge que la cultura de Alemania es cultura judía."16 Urna advertência contra a correção política. O relatório de Brodie é a memória simiesca e simulada de um animal sem memória, liberado do jugo do tempo. É o relatório que um usurpador - alguém que detém a memória, Brod ou Brodie escreve para urna Academia. É um relato residual e infinito, brando, que dá nome aos outros relatos da série, excedidos em nome e memória. Jorge Luis Borges morreu a 14 de junho de 1986. Nesse dia, um de seus melhores leitores brasileiros, Alexandre Eulálio, rabiscou um aide-mémoire "Borges desce aos Infernos discretamente, corno sempre viveu, sem querer incomodar ninguém num sábado - ele que continua a ser o último e maior e o mais realizado escritor deste século de desescritores e conseguiu dar um sentido mais límpido às Palavras da tribo. Borges ou da literatura. Borges ou da memória: corno o seu personagem Funes, ele viveu urna só vasta insônia, soturno lugar da lembrança. Motivo pelo qual há de atravessar a pé enxuto o rio Letes, que a poeta inglesa Edith Sit\vell diz fluir verde na planície distante. O esquecimento não terá domínio sobre esse autor de urna certa lacunosa História de la eternidad, meramente argentina".
COLABORADORES DESTE NÚMERO
Eduardo de Assis Duarte, doutor em letras pela Universidade de São Paulo. Professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Eneida Maria de Souza, professora titular de Teoria da Literatura e Literatura Comparada da Universidade Federal de Minas Gerais. Presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), gestão 1988-1990. Autora de A pedra mágica do discurso, Traço crítico e outros ensaios. E. M. de Melo e Castro, poeta e crítico literário português. Presidente do Conselho Consultivo do IADE, Lisboa. Autor de Transparências, O fim visual do século XX, Visão visual, entre outros. José Luís Jobim, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Autor e organizador da coletânea Palavras da crítica. Ligia Chiappini, professora titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo. Autora de Regionalismo e modernismo, O foco narrativo, entre outras publicações. Lúcia Helena, professora titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense. Autora de Totens e tabus do modernismo brasileiro e Escrita e poder, entre outros ensaios. Márcia de Paula Gregório Razzini, doutoranda do programa de pós-graduação em Literatura da Unicamp. Maria Aparecida Santilli, professora titular de Literatura Brasileira e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Autora, entre outros ensaios, de Entre linhas, Africanidade. Marisa Lajolo, professora titular de Literatura Portuguesa da Unicamp. Autora de Do mundo da leitura para a leitura do mundo, Usos e abusos da literatura na escola.
Marlyse Meyer, professora titular de Cultura Brasileira da Unicamp, aposentada. Autora de Caminhos do imaginário no Brasil, Maria Padilha e sua quadrilha, As surpresas do amor, a convenção no teatro de Marivaux, Autores de cordel e outros ensaios. Peter Burke, professor do Emmanuel College, de Cambridge, Grã-Bretanha. Autor deA cultura popular no início da era moderna, Veneza e Amsterdã, A Revolução Francesa na História, A fabricação de Luís XIV e Sociohistory of language. Philippe Willemart, professor titular de Língua e Literatura Francesa na Universidade de São Paulo, autor de Universo da criação literária. Raúl Antelo, professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Santa Catarina. Autor de Literatura em revista, Na ilha de M arapatá, João do Rio, o dândi e a especulação, entre outros ensaios. Regina Zilberman, professora da PUC-RS. Autora, entre outras, das seguintes publicações: Estética da recepção e história da literatura, Literatura infantil brasileira: História & histórias, A literatura infantil na escola. Roberto de Oliveira Brandão, professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo. Autor de As figuras de linguagem, A tradição sempre nova. Sandra Nitrini, professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo. Autora de Poéticas em confronto. Nove novena e o Novo Romance. Tânia Franco Carvalhal, professora titular de Teoria e Crítica Literária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Autora de A evidência mascarada, Literatura Comparada, Um crítico à sombra da estante, entre outras publicações. Presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), gestão 1986-1988. Wander Melo Miranda, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, é autor de Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago, além de outros ensaios.
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