R E V IST A BRASILEIRA DE
S達o Paulo 2012
Diretoria
Abralic 2012-2013
Presidente
Antônio de Pádua Dias da Silva (UEPB)
Vice-Presidente
Ana Cristina Marinho Lúcio (UFPB)
Secretário
José Hélder Pinheiro Alves (UFCG)
Tesoureiro
Diógenes André Vieira Maciel (UEPB)
Conselho Fiscal
Sandra Margarida Nitrini (USP) Helena Bonito Couto Pereira (Univ. Mackenzie) Arnaldo Franco Junior (UNESP - S. J. do Rio Preto) Carlos Alexandre Baumgarten (FURG) Rogério Lima (UnB) Germana Maria Araújo Sales (UFPA) Marilene Weinhardt (UFPR) Luiz Carlos Santos Simon (UEL)
Suplentes
Adeítalo Manoel Pinho (UEFS) Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN)
Conselho Editorial
Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Yves Chevrel.
ABRALIC CNPJ 91.343.350/0001-06 Universidade Estadual da Paraíba Central de Integração Acadêmica de Aulas R. Domitila Cabral de Castro S/N 3º Andar/Sala 326 CEP: 58429-570 - Bairro Universitário (Bodocongó) Campina Grande PB E-mail: revista@abralic.org.br
R E V IST A BRASILEIRA DE
ISSN 0103-6963 Rev. Bras. Liter. Comp. S達o Paulo n.20 p. 1-185 2012
2008 Associação Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.
Editora Ana Cristina Marinho Lúcio Comissão editorial Antônio de Pádua Dias da Silva Diógenes André Vieira Maciel José Hélder Pinheiro Alves Revisão Priscilla Ferreira
Editoração Magno Nicolau (Ideia Editora Ltda.)
Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Rio de Janeiro: Abralic, 1991 v.1, n.20, 2012
ISSN 0103-6963
1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada.
CDD 809.005 CDU 82.091 (05)
Sumário
Apresentação Ana Cristina Marinho Lúcio 7
Experiências
Entrevista com Cláudio Daniel Amador Ribeiro Neto
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Literatura e cultura em tempos digitais Edson Cruz
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Artigos
O livro, o e-book e a poesia digital: considerações gerais Amador Ribeiro Neto
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A literatura digital e sua escritura expandida: uma reflexão sobre a obra Volta ao fim Cristiano de Sales Wilton Azevedo
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Intertexto, hipertexto, hipermídia, transmídia: os caminhos da tecno-arte-poesia Jorge Luiz Antonio
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A aventura da palavra na realidade eletrônica Lilia Silvestre Chaves
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Textos e Hipertextos: experiĂŞncias de leituras em Italo Calvino, Nick Bantock e Stuart Moulthrop Mara Alice Senna Felippe 123
Textos em rede, labirintos literĂĄrios Maria Elisa Rodrigues Moreira 155
Pareceristas 179
Normas da revista 181
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Apresentação
As relações entre literatura e hipertexto vêm recebendo a atenção de pesquisadores de universidades brasileiras nas duas últimas décadas. Em levantamento realizado nos Cadernos de Indicadores da Capes foi possível perceber um crescente número de pesquisas desenvolvidas em programas de pós-graduação, voltadas para a interface entre tecnologias digitais e literatura. Linhas de pesquisa que fazem parte de programas como o da UNEB (Tecnologias literárias: recursos estilísticos, suporte tecnológico e modos de produção cultural alternativos); da UFF (Culturas tecnológicas: midialidade, materialidades, temporalidades); da UFMG (A intermidialidade em produções culturais contemporâneas); da UFPE (Literatura e Tecnologia; Poesia e Literatura no tempo dos hipertextos: criação e leitura); da FUFPI (Leitura de hipertexto; Literatura digitalizada: novos paradigmas, nova ausculta); da UEL (Hipercontexto: estudos da literatura em meio eletrônico); da UERJ (Entre páginas e telas - mapeando os circuitos literários contemporâneos); da PUC-RIO (Literatura na sociedade midiatizada: interseções e convergências); da UFAL (Poesia Brasileira Intermídias); da UNIMONTES (Esquecer para lembrar - redes narrativas na cybercultura; As interfaces entre blog, romance e cinema na ficção de Clarah Averbuc); da UFJF (Literatura e hipertexto); UFSC (O Texto Literário em Meio Eletrônico), para citar apenas os que estão em funcionamento e que apresentaram produções (teses, dissertações, livros, artigos), até o ano de 2009. Projetos que vão, aos pou-
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cos, agregando pesquisadores não apenas de Letras, mas também de Tecnologias da Informação, Mídias Digitais, entre outras áreas que hoje dialogam com a Literatura. O interesse pela temática também pode ser percebido na publicação de dossiês em periódicos na Área de Letras (extratos A1 e A2), a exemplo das revistas Aletria (Intermidialidade, v. 14, 2006); Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea (Literatura e outras linguagens, n.37, 2011); Ipotesi (Literatura e hipertexto, v.14, 2010); O eixo e a roda (Poesia e tecnologias. v.20, 2011); Remate de Males (Tecnologia das Letras, v.29, 2009.); Revista da Anpoll (Multimodalidade e intermidialidade: abordagens linguísticas e literárias, n.27, 2009.); Revista USP (Cibercultura, n. 86, 2010); Revista Galaxia (Cibercultura revisitada, n.16, 2008.); Outra Travessia (Literaturas digitais, v. 1, 2011) Esse levantamento, embora preliminar e lacunoso, evidencia o crescente interesse nessa área e torna cada vez mais necessário o estabelecimento de fóruns de discussão e produção de materiais críticos que auxiliem pesquisadores e professores a lidar com novas linguagens e possibilidades de criação artística e literária. Participam desse número da Revista Brasileira de Literatura Comparada pesquisadores de Minas Gerais, Paraíba, Santa Catarina, São Paulo, Pará e Juiz de Fora, além do poeta Cláudio Daniel e do editor do site Musa Rara, Edson Cruz. A RBLC abre espaço para a experiência do poeta, tradutor e ensaísta Cláudio Daniel, editor da revista eletrônica Zunai, que dialoga com poetas e críticos sobre a arte digital, essa “nova arte que está apenas em seus primórdios”, a espera de um “novo Michelangelo – ou de um novo Mallarmé.” Edson Cruz, editor do site Musa Rara, reflete sobre a eficácia do que chama de webliteratura: “A questão é como colocar o computador e todos os seus agentes a serviço da produção estética e literária. De servir-nos de seus programas para continuar a significar e ressignificar o mundo e as nossas vidas.”
Apresentação
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No artigo O livro, o e-book e a poesia digital: considerações gerais, Amador Ribeiro Neto, partindo de uma experiência de pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação da UFPB sobre poesia em meio digital, chama a atenção para as mudanças ocorridas no fazer literário com a entrada em cena das escritas hipertextuais. Numa escrita poética, o autor coloca em diálogo Caetano Veloso e Humberto Eco, Deleuze e Borges, Benjamin e Valery, Gregório de Matos e Santaella, evidenciando que “O livro que um dia Mallarmé projetou, depois Borges sonhou – e, antes deles, Heródoto quis – , este livro virou realidade. Mas realidade virtual. Este livro é o ciberespaço da infolinguagem.” No artigo A literatura digital e a sua escritura expandida, os autores tecem reflexões sobre a obra poética digital “Volta ao fim”, de Alckmar Santos e Wilton Azevedo. A experiência de artista plástico, designer gráfico e poeta de Wilton Azevedo, aliada à pesquisa sobre “informática linguística e literária”, de Cristiano Sales, fazem-nos refletir sobre as intervenções da tecnologia na “lógica de funcionamento das linguagens” e questionar, junto com os autores, “a expansão das escritas umas nas outras, das linguagens umas nas outras, do som-na-imagem-do-verbo”, processos que os autores denominam de escrita expandida. No seu artigo o pesquisador Jorge Luiz Antonio realiza uma revisão histórica e crítica de conceitos e apresenta aos leitores um quadro de referências tanto de obras críticas quanto literárias, especialmente no campo da poesia. Ao final do artigo o autor apresenta alguns exemplos comentados de obras cíbridas (desde Mallarmé, 1897 até Gustavo Wojciechowski, 2008). Lilia Silvestre Chaves convida os leitores para uma “aventura virtual” que começa com a “Galáxia de Gutemberg” e chega até a era da Internet. Viagem histórica, linguística e porque não dizer poética, uma viagem de retorno, como nos ensino Calvino e como evidencia a autora do artigo: “Que antiga a ideia de hipertextualidade! Também a máquina e as palavras no am-
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biente virtual são mágicas na relação com a realidade e com a vida (interior e exterior) de cada um de nós. Talvez seja tudo um segredo de ritmo e uma forma de capturar o tempo, tanto na ilha dos náufragos de Lost e nas mil e uma noites orientais, quanto na vertiginosa aventura da era eletrônica, todos nós podemos participar”. Mara Alice Senna Felippe analisa três diferentes obras (Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino, Gruffin & Sabine, de Nick Bantock e Victory Garden, de Stuart Moulthrop) tomando como ponto de partida e chegada a ação do leitor. Como afirma a autora: “No mundo do hipertexto digital, mudam as relações não só entre leitor e autor, as estruturas até então disponíveis e praticadas no mercado editorial, o fazer literário, mas a própria noção de literatura, que encontra nesta mudança de paradigma um espaço ideal tanto para aprofundar a crise da própria instituição literária quanto para se colocar como alternativa a ela”. Maria Elisa Rodrigues, unindo teorias e conceitos sobre rede e labirintos, Borges e Calvino, questiona: “Como achar a saída em um espaço que não tem dentro ou fora, como ler hipertextualmente a narrativa literária?” As obras de Calvino e Borges são percorridas pela autora que evidencia “traçados reticulares, hipertextuais, labirínticos”, apontando um modo de pensar a literatura, “a partir de princípios da hipertextualidade”, como “um processo aberto e fluido, objeto de reflexão permanente para o escritor, o leitor, o crítico”. Mais do que uma apresentação do número temático da RBLC, esse texto se apresenta como um convite, talvez a porta de entrada para um labirinto ou o fio de uma trama de textos nos quais o leitor, agora em primeiro plano, pode escolher os caminhos que vai trilhar. Paraíba Ana Cristina Marinho
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Entrevista com Claudio Daniel* Amador Ribeiro Neto
* Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, nasceu em 1962, em São Paulo, onde se formou em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, cursa atualmente o doutorado na mesma instituição. É curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo. Publicou 20 livros de poesia, ficção, antologias e traduções, entre eles Figuras metálicas (2004), Fera bifronte (2010) e Cores para cegos (2012). É editor da revista literária Zunái (www.revistazunai. com). Participou de diversas antologias de poesia brasileira contemporânea, no Brasil e no exterior, entre elas Pindorama – 30 Poetas de Brasil, organizada e traduzida por Reynaldo Jiménez (revista Tsé Tsé, n. 7/8, Argentina, 2001); New Brasilian and American Poetry, organizada por Flávia Rocha e Edwin Torres (revista Rattapallax, n. 9, Estados Unidos, 2003), Cetrería, Once Poetas de Brasil, organizada e traduzida por Ricardo Alberto Pérez (Casa de Letras, Cuba, 2003), e Antologia comentada da poesia brasileira do século XXI, organizada por Manuel da Costa Pinto (Publifolha, São Paulo, 2006).
1. Prezado Claudio Daniel, como é editar uma revista eletrônica? Que diferencial ela tem em relação à revista impressa? A Zunái, Revista de Poesia e Debates, que criei em 2004, em parceria com o Rodrigo de Souza Leão e a Ana Peluso, surgiu como um espaço de divulgação de poesia de qualidade, livre das exigências – ou limitações – do mercado. Como a publicação eletrônica, não tem custos de papel, impressão, distribuição etc., nem possui espaço publicitário ou vínculos com qualquer grupo empresarial, somos absolutamente livres para publicarmos apenas aquilo que gostamos, o que não acontece na maioria das revistas literárias impressas, que dependem do apoio financeiro de alguma editora, instituição pública ou privada ou ainda de leis de incentivo, como a Lei Rouanet. Por outro lado, enquanto as revistas impressas sofrem dificuldades para a distribuição em livrarias, a Zunái pode ser acessada em qualquer ponto do planeta, de Bagdá a Tumbuctu, e sem custos para o internauta. A revista eletrônica permite ainda a publicação de poesia sonora, poesia visual e outras possibilidades de criação intersemiótica com os recursos da tecnologia digital. Fico muito feliz em editar uma revista que está fora do mercado, e que se coloca, inclusive, contra o mercado, com toda a liberdade anárquica de cultivar a beleza, a invenção, a provocação, sem qualquer limite além daqueles de nossa própria capacidade imaginativa.
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2. Para Umberto Eco, o e-livro é viável para manuais e textos objetivos, mas não o é para, por exemplo, se ler Guerra e paz. Você tende a concordar ou não com o semioticista italiano? Concordo plenamente, porque Guerra e Paz não foi escrito para ser lido no computador, mas em livro. Tolstoi, se fosse escrever um e-book, provavelmente faria outra coisa, completamente diferente, levando em consideração os recursos do meio eletrônico. Não acredito que as novas tecnologias levem ao fim do livro como suporte. É muito mais gostoso ler Grande Sertão: Veredas deitado numa rede do que em frente ao computador. As tecnologias digitais permitem criarmos outras coisas, que não vão substituir a literatura, tal como a conhecemos, e sim criar novas formas de arte – e ainda acho que os poetas, escritores e artistas ainda não sabem utilizar todo o arsenal tecnológico disponível; esta tarefa, acredito, será levada em frente pelas novas gerações. 3. Mais ou menos na mesma direção do pensamento de Eco, Paulo Franchetti pondera: “No sentido da portabilidade, perenidade, confiabilidade e acessibilidade, o livro ainda é uma tecnologia superior”. É isto mesmo? O livro impresso é insubstituível? Sim, concordo plenamente. 4. O livro com o qual Borges sonhou, o livro que continha todos os livros, agora é realidade. Virtual, mas realidade. É todo o ciberespaço. Há vantagens em falar-se de um “livro” com tal abrangência? Ou os livros continuam valendo pela sua especificidade? O sonho de Borges – na verdade, o sonho de Mallarmé – é possível com as novas tecnologias, que permitem a interatividade, a permutabilidade, a combinatória, o entrecruzamento de informações
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visuais, sonoras, verbais, o movimento dos signos na tela, superando distâncias geográficas e permitindo não apenas a ampliação dos leitores, mas também dos autores. Há blogues coletivos, por exemplo, que nos fazem lembrar da frase de Lautréamont, de que a poesia seria feita por todos. A internet realiza todas as potencialidades já latentes em obras como o Lance de Dados e o Le Livre, de Mallarmé, que com a sua “arquitetura permutatória e tridimensional da escrita” (PINHEIRO, 1993: 167), antecipa, de certo modo, experiências interativas que se tornaram possíveis com as novas tecnologias eletrônicas, e em especial com a informática e a navegação na internet. Segundo Amálio Pinheiro, O sonho de Mallarmé, perseguido durante toda a sua vida, era dar forma a um livro integral, um livro múltiplo que já contivesse potencialmente todos os livros possíveis; ou talvez uma máquina poética, que fizesse proliferar poemas inumeráveis; ou ainda um gerador de textos, impulsionado por um movimento próprio, no qual palavras e frases pudessem emergir, aglutinar-se, combinar-se em arranjos precisos, para depois desfazerse, atomizar-se em busca de novas combinações. (...) Trata-se verdadeiramente de um livro-limite, ‘o limite da própria idéia ocidental de livro’, como diz Haroldo de Campos (1969: 19), que desafia os nossos modelos habituais de escritura e aponta para o livro do futuro (...) que, segundo Blanchot (1959: 335), já não está verdadeiramente em lugar algum, nem se pode mais ter nas mãos. (PINHEIRO, 1993, p.165-66)
A experiência realizada por Mallarmé em sua estética do inacabado e do permutável encontra paralelos em obras da vanguarda como o Finnegans Wake de James Joyce, na qual “todo acontecimento, toda palavra, encontra-se numa relação possível com todos os outros e é da escolha semântica efetuada em presença de um termo que depende o modo de entender todos os demais” (ECO, 1976, p. 48).
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Na minha opinião, porém, a arte digital – vamos chamá-la assim – já não é literatura, música ou artes visuais, é uma nova arte, que está apenas em seus primórdios. Já temos as ferramentas prontas, falta-nos apenas um novo Michelangelo – ou um novo Mallarmé. 5. Segundo Lucia Santaella, dos anos 90 para cá, estamos vivendo uma revolução mais significativa que a industrial e a eletrônica: a revolução digital. Em sua experiência como editor, leitor e navegador da Internet, você também percebe esta mudança que atinge os múltiplos usos da linguagem, seja na arte ou fora dela? O livro Linguagens líquidas na era da mobilidade, de Maria Lúcia Santaella, é muito interessante. Sem dúvida, vivemos uma revolução sem precedentes nos meios de comunicação, que afetam todas as relações sociais, políticas e econômicas no mundo – imagine se um vírus de computador alterasse todos os dados nos computadores do Pentágono e da Casa Branca, por exemplo... Aliás, o cyberterrorismo já é praticado, por exemplo, pelo serviço secreto israelense, que procura sabotar o programa nuclear iraniano, com fins pacíficos, segundo as autoridades do país. O domínio tecnológico é uma forma de poder; estar alijado desse domínio significa a dependência em relação aos países mais desenvolvidos. Já não estamos mais falando apenas em estética ou em comunicação, mas nas relações de poder entre as classes sociais e países, mediadas pela tecnologia. Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, 1984, de George Orwell, e Farhenheit 451, de Ray Bradbury, explicam muito bem a época em que vivemos. 6. As escritas hipertextuais estão tendendo a uma contenção cada vez maior. A ponto de não apenas as ideias serem abreviadas, como também o modo de redigilas. Para a poesia, esta tendência vem fortalecer seus princípios estéticos ou, ao contrário, vai em direção contrária a eles?
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A concisão pode significar dizer o máximo com o mínimo de recursos – como na poesia de Cummings, por exemplo – ou pode ser apenas a falta do que dizer e o exercício da redundância, como acontece hoje na publicidade, cada vez mais próxima do nível cultural de um boçal. 7. Certa feita, Borges declarou que uma das fontes de felicidade de sua vida era a leitura. Para você também é assim? E esta leitura pode ser online? Ou apenas impressa? Talvez ambas, dependendo do gênero do texto lido? O prazer da leitura de um livro é insubstituível. Existe toda uma erótica do livro, presente em seu formato, peso, textura, cheiro, apresentação visual, que não podem ser reproduzidos na tela do computador. A relação tátil com o livro é diferente. Ler no computador cansa; para mim, é uma necessidade, não uma atividade prazerosa. Há sexo com o livro, não com o computador. 8. Para Irene Machado, a cibercultura permitiu a percepção de novos sistemas sígnicos. Pergunto: até o advento da cibercultura vivíamos em ilhas de informação, circunscritos a redutos de percepção do mundo e suas linguagens? A tecnologia muda a maneira como nos relacionamos com a informação, com as outras pessoas, com o mundo. Altera a nossa sensibilidade e atividade cognitiva. Eu não diria que antes do computador vivíamos em ilhas – apenas nos relacionávamos de outras formas com as pessoas, ideias e coisas. 9. Seguindo uma linha não-linear e de descentramento, o hipertexto destaca-se por inserir o leitor como coautor do texto, como construtor de sentidos. Esta é uma característica própria, e marcante, da era da cibercultura?
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Acredito que sim. Os blogues coletivos, os chats, as redes sociais e os sites interativos já acenam nessa direção. O grande precursor, claro, é Mallarmé, que em suas obras mais radicais faz da criação poética um tipo de jogo. E. M. de Melo e Castro, em texto lido na Feira do Livro de 1962, em Lisboa, afirma que Mallarmé, ante a solicitação da página em branco, joga e concebe o poema como se de um jogo de dados se tratasse. Dados que, no entanto, nunca esgotam as possibilidades totais do acaso, deixando–as sempre intocadas e as mesmas, após a concretização de cada resultado. E termina o poema dizendo: cada pensamento, cada ato, cada imagem descobre e propõe uma jogada. Põe em equação todas as potencialidades da vida e apresenta um resultado livre, resultado que é válido em si próprio, mas não esgota as potencialidades nem da vida, nem de quem cria o poema, de quem encontra o resultado e o propõe. Por isso, cada poema é sempre um retorno ao começo. É sempre um trabalho de reinvenção do mundo (HATHERLY; MELO E CASTRO, 1981, p. 99).
Já no texto intitulado A Proposição 2.01, o autor volta ao tema do poema mallarmaico, dizendo: Uma jogada de dados, embora defina um resultado (o Poema), não abole o acaso (como diz Mallarmé). Os dados, no ar, contêm todas as possibilidades de significação ¬– uma vez caídos sobre a mesa definem um resultado – mas um só – para sempre – e só por aquele instante, pois a próxima jogada já será diferente. A próxima jogada fica sempre em aberto. E esse é o trabalho do Poeta como artista criador (Idem, p. 123).
No Lance de dados, de Mallarmé, a leitura dos signos pode ocorrer na horizontal (de uma a outra página), na vertical, na diagonal, em espiral, como nos trajetos do labirinto poético. A mobilidade estrutural e a proliferação
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de rotas interpretativas também são encontradas em obras da modernidade como o Livro inacabado de Mallarmé, poema labiríntico que, segundo Haroldo de Campos, “incorpora a permutação e o movimento como agentes estruturais” (CAMPOS, 1976, p. 18), superando a categoria de “obra circular”, que pressupõe certa linearidade espaço-temporal, definida já em sua estrutura material: o livro, com uma organização seqüencial do tipo início-meio-fim. O poeta francês, seguindo direção oposta à da lógica narrativa clássica, concebeu, segundo Haroldo de Campos, um “multilivro onde, a partir de um número relativamente pequeno de possibilidades de base, se chegaria a milhares de combinações”. O computador radicaliza todos os procedimentos realizados anteriormente pela vanguarda, culminando com o fim do autor individual e o surgimento da pluralidade de leitores de uma obra. A única questão é se, no momento, temos algo remotamente comparável, em qualidade, ao que já foi feito por Joyce e Mallarmé. Talvez o futuro nos surpreenda, ou talvez o computador acabe se tornando uma máquina como a geladeira, o automóvel ou o ferro de passar roupa. Aguardemos. 10. Segundo Pedro Barbosa, ensaísta português, “o computador é uma máquina semiótica por excelência”. Ou seja, ele deixou de ser apenas um arquivo de armazenamentos para gerar signos e linguagens, através de programas pré-estabelecidos, mas que agem aleatoriamente. Como você avalia esta “produção” do computador no campo da literatura e das artes? Certa vez, fiz uma pergunta semelhante a Arnaldo Antunes, e ele me deu a seguinte resposta: nos anos 1950, a capacidade imaginativa dos poetas – Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, sobretudo – estava muito além dos recursos tecnológicos disponíveis na época (pensemos em obras como Poetamenos, de Augusto de Campos, por exemplo). Hoje, acontece exatamente o
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contrário: os poetas e artistas não assimilaram 10% dos recursos disponíveis pelas novas tecnologias. É uma questão para o futuro. 11. Claudio, sua biografia intelectual aponta para uma rica diversidade de atividades: poeta, ensaísta, tradutor, romancista, antologista, organizador de eventos literários e, atualmente, curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo. A pergunta clássica e inevitável é: como você faz para dar conta de tanta coisa? Eu não faço a menor ideia (rsssss). Também pratico aikidô e esgrima japonesa, escrevo minha tese de doutorado – A recepção da poesia clássica japonesa no Brasil e em Portugal –, coordeno uma oficina poética há vários anos, chamada Laboratório de Criação Poética, que realiza encontros duas vezes por mês para a discussão de poemas e textos teóricos, além de ministrar cursos na Casa das Rosas, na Escola de Teatro, no Espaço CULT e outras instituições culturais. Como diria o Coisa, do Quarteto Fantástico, com a sensibilidade e delicadeza que caracterizam o personagem, “dormir é coisa de mariquinha!”, rsss. 12. O poeta é um tradutor? O tradutor precisa ser poeta para traduzir poesia? Quando o tradutor de poesia também é poeta, acredito que ele está mais qualificado para recriar em português os procedimentos estéticos dos textos originais. Porém, o poeta não é obrigado a ser também tradutor – Maiakovski e Whitman, por exemplo, nunca traduziram nada (e o poeta russo era, assumidamente, monoglota, o que em nada prejudicou o seu surpreendente trabalho). 13. Sua poesia ora experimenta radicalmente com a linguagem, ora espraia-se na expressão discursiva “mais simples”. Por que você atua assim? O que lhe interessa nos diferentes modos de linguagem?
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Eu não gosto de me repetir. Prefiro ficar dez anos sem publicar nada do que diluir a mim mesmo. Em meu último livro, Cores para cegos (Bauru: Lumme Editor, 2012), por exemplo, incluo apenas cinco composições, escritas entre 2006 e 2011 – Letra negra, Flor occipital, Dodecaedro, Gavita, Gavita e o poema que dá título ao volume – que são (menos a última peça) diferentes tentativas de escrever poemas longos, em que uso, de maneira consciente, variados procedimentos – como o poema em prosa, no case de Gavita, Gavita, ao poema dialogado, como o Dodecaedro, escrito em parceria com Simone Homem de Mello. Acredito que estas cinco peças são os melhores poemas que já escrevi – ou os menos ruins, para não pecar pelo narcisismo. Escrever alguma coisa depois desse livro será difícil, muito difícil. 14. Você e o Frederico Barbosa organizaram a antologia Na virada do século, poesia de invenção no Brasil, que reúne poetas, praticamente, do norte ao sul do país. Isto foi há exatos dez anos. Olhando a antologia hoje, que avaliação você faz dela? Os poetas antologizados, que já tinham livros publicados, continuam publicando? E os inéditos, renderam frutos ou ficaram adormecidos nas páginas da antologia? A antologia Na Virada do Século, publicada em 2002 pela editora Landy, reuniu 46 poetas, desde autores que começaram na década de 1970, mas só foram devidamente reconhecidos vinte anos depois, como Júlio Castañon Guimarães, Antônio Risério e Glauco Mattoso, até poetas jovens e na época inéditos em livro, como André Dick e Micheliny Verunschk, que se destacaram nos anos seguintes, publicando vários livros de poesia de qualidade, ganhando prêmios e atuando como críticos literários. Nós incluímos poetas de diferentes estilos, desde o minimalismo até a dicção pop e o neobarroco, sempre com foco na qualidade estética, na originalidade temática,
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enfim, na inventividade. Aliás, é bom ressaltar que a palavra “invenção” não foi usada no sentido poundiano. Na época barroca, por exemplo, “invenção” significava o domínio técnico de todos os recursos da linguagem poética. Para mim, é sinônimo de metalinguagem, de estranhamento, de arquitetura rigorosa, em oposição às facilidades de certa poesia dita colonial e do cotifiano que recicla procedimentos já exauridos do Modernismo dos anos 1930, como o poema-piada e o poema-crônicade-jornal. Frederico Barbosa e eu escolhemos autores que jogavam em outra direção – o da busca de novos territórios poéticos. Entre erros e acertos, acredito que o saldo de nossas escolhas é positivo. Claro que a antologia foi resultado de nosso conhecimento dos poetas que publicavam na época, seja em revistas, sites ou livros de pequena triagem, e também do nosso pensamento sobre poesia naquele momento. Nos últimos dez anos, eu mudei, Fred mudou, a poesia brasileira mudou, e não seria possóvel fazermos hoje uma antologia como foi Na Virada do Século. Creio que hoje o desafio seria outro: não apresentar uma reunião extensa de poetas, mas um pequeno número de autores essenciais, que realmente trabalham com radicalidade inventiva a linguagem poética, sem nenhuma concessão ao fácil, à lógica de mercado ou aos falsos consensos da crítica literária influenciada por Inimigo Rumor. Eu gostaria de fazer uma publicação de apenas 15 nomes, sem o objetivo de mapear nada, mas como intervenção cultural crítica, para “desafinar o coro dos contente” e dizer de modo bem claro: estes poetas não falam de jujubas ou patinhos de borracha, eles fazem poesia de verdade, sem a proteção de nenhum lobby. Eles têm só talento, e isso basta. 15. Como é seu trabalho como editor na Zunái? Quem pode participar da revista? Qual sua periodicidade? A revista sai a cada quatro meses, sem nenhum tipo
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de patrocínio e equipe reduzida – atualmente, eu sou o editor de texto, Ana Peluso é editora de arte e Mariza Lourenço faz as atualizações periódicas, na linguagem HTML. A revista é aberta à participação de qualquer colaborador, desde que seus textos tenham qualidade e revelem a pesquisa de novos procedimentos formais. Tenho o maior orgulho de ter publicado autores como Augusto de Campos, Arnaldo Antunes, Antônio Risério, Alice Ruiz, Armando Freitas Filho, Claudia RoquettePinto, Duda Machado, e também autores da novíssima geração, como Adriana Zapparoli, Andréia Carvalho e Marceli Andresa Becker, vozes singulares, inquietas e surpreendentes no cenário da nova poesia brasileira. 16. Embora você não seja um poeta neobarroco, traduziu o livro Jardim de camaleões, a poesia neobarroca na América Latina. Como foi esta experiência com uma linguagem e temas tão específicos quanto “difíceis”? “Só o difícil me fascina”, escreveu o poeta irlandês W. B. Yeats. O que me motivou a traduzir poemas de autores como o cubano José Kozer, o uruguaio Eduardo Milán e o argentino Nestor Perlongher foi justamente o aprendizado de suas técnicas, de suas estratégias verbais. Tenho a influência de Kozer e Lezama, do mesmo modo que sinto a presença de Bashô e Maiakovski naquilo que escrevo, por isso mesmo não me considero um poeta “neobarroco”, embora compartilhe não apenas algumas de suas pesquisas formais, mas sobretudo a sua visão de mundo e da poesia como síntese, miscigenação e revolução permanente. 17. Em seu livro de ensaio A estética do labirinto: barroco e modernidade em Ana Hatherly (2012) você aponta para a ligação entre barroco e modernidade ou vai além e chega a relacionar o barroco com a pós-modernidade? O livro, que é minha dissertação de mestrado,
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procura mostrar o cruzamento de referências barrocas e de vanguarda na obra da poeta portuguesa Ana Hatherly, aliás uma grande estudiosa da poesia visual do barroco português (seu livro A experiência do prodígio é obra de referência nesse campo) e uma das lideranças do movimento da PO-EX (Poesia Experimental Portuguesa) na década de 1950, que foi o equivalente da Poesia Concreta no Brasil. A diferença entre os poetas de vanguarda brasileiros e portugueses está justamente na valorização do barroco, imprescindível na obra de Herberto Helder, Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro, mas pouco freqüente entre os nossos autores experimentais, com a exceção de Haroldo de Campos (Galáxias) e Paulo Leminski (Catatau). 18. Seu livro de contos Romanceiro de Dona Virgo (2004) é uma mix de prosa com poesia. Você não acredita mais no poder da linguagem prosa em si mesma? Os gêneros literários estão hoje mesclados e o mundo da literatura é, essencialmente, semiótico? Tudo virou proesia? Sim, já virou moda na universidade falarmos em hibridismo, essa mescla de estilos, formas e gêneros que tem precursores ilustres, como o Fausto de Goethe e o Guesa Errante, de Sousândrade. É uma aventura fascinante criar textos híbridos, mas também sinto um raro prazer quando escrevo um haiku que considero válido, como este: sombra de árvore: / conto apenas a você / o que disse o vento (minha safra de haicais, por enquanto, é pequena demais para publicação em livro). 19. Para encerrar: Claudio Daniel é possível um escritor viver sem fazer uso do computador, hoje? Sim, numa ilha deserta, bebendo água de coco, ao lado de uma belíssima loira de olhos verdes.
Entrevista com Claudio Daniel
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Referências CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977 (Debates, 16). CASTRO, Ernesto de Melo, e HATHERLY, Textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa (com E. M. de Melo e Castro). Lisboa: Moraes Editores, 1981. ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1976. PINHEIRO, Amalio. Máquina e imaginário: o desafio das poéticas imaginárias. São Paulo: Edusp, 1993
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Literatura e cultura em tempos digitais Edson Cruz*
Paradoxos potenciais
* Editor do site MUSA RARA <www.musarara.com.br>.
A questão sobre a expansão das novas tecnologias e sua influência na cultura apareceu no século passado, mas suas exigências se fizeram incontornáveis de alguns anos para cá. O computador e o campo de significações da Internet são todos colocados no mesmo saco, melhor dizendo, na mesma rede. A parte mais popular desse processo é a World Wide Web, o conhecido www que, a rigor, é apenas a interface gráfica da Internet. É por meio dela que nos conectamos com os sites, sítios, blogues e demais páginas, com o intuito de divulgar, de criar ou apenas de nos relacionar em um mundo “virtual” que irmana a todos. Essa noção de interface não se limita às técnicas de comunicação contemporâneas. O próprio advento da impressão gerou uma interface padronizada e original com seus cabeçalhos, páginas de títulos, numeração regular e referências cruzadas. Podemos dizer que a própria palavra é uma interface com o plano das ideias, das informações e dos sentimentos e, para discordar de Saussure, não totalmente arbitrária, enquanto signo, como nos mostrou algumas das experiências do psicólogo Wolfgang Köehler (1996). O paradoxo é a essência do que vivenciamos em um mundo onde parece que o virtual suplantou o real. Nada mais paradoxal do que uma pretensa universalidade (realizada por um computador conectado na rede mundial
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de computadores) desprovida de um significado central e unívoco. Vivemos a era da potência, ou melhor, do potencial, no sentido considerado pelo filósofo Pierre Lévy, ao sentenciar que “é virtual aquilo que existe apenas em potência e não em ato” (LÉVY, 1999, p. 47). O que significa dizer que os caminhos ainda estão em aberto, prenhes de potencialidades, visto que o virtual agora é o que fomenta o que costumamos chamar de “real”. Por outro lado, quando o filósofo transpõe o entendimento de “virtual” para o contexto contemporâneo afirma que: “É virtual toda entidade ‘desterritorializada’, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem, contudo, estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular” (LÉVY, 1999, p. 47). Com a internet, ao contrário do que muitos apregoavam, observamos um crescimento da diversidade enunciativa, com regionalismos, nacionalismos e expressões de minorias. Escreve-se cada vez mais e não é o idioma inglês que domina, como poderíamos supor observando um “universo”, que até 2006, era dominado por sistemas operacionais da gigante Microsoft.
Linguagem digital No entanto, a língua é um organismo vivo, mutante e, claro, sofrerá as contaminações dos novos suportes. Apesar disso, não acredito no que diz o linguista norteamericano Steven Fisher quando afirma que o português brasileiro vai ser extinto em mais ou menos 300 anos (Revista Veja, 05 de abril de 2000). O argumento dele tem uma lógica linguística, a partir do conhecimento que temos da dinâmica de outras línguas e outras análises diacrônicas. Para ele, o português brasileiro não resistirá à influência econômica e cultural do espanhol (afinal, o
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espanhol já é a segunda língua mais falada no Ocidente) e se transformará em uma espécie de portunhol. Talvez, o portunhol selvagem apregoado e defendido pelo instigante poeta de fronteira Douglas Diegues. Com o advento da linguagem digital, inesperadamente, a escrita impressa e a linguagem habitual do livro, a literária, feita de letras, sintaxe, sintagmas, morfologia e conotações ganhou em importância. Jovens educados e criados em um ambiente predominantemente visual, saturados de imagens e ícones da cultura contemporânea, começaram a se voltar para a linguagem escrita, estimulados pelo correio eletrônico, MSNs, Facebook e outros diálogos entre suas comunidades sociais. Os que chegaram à fase do consumo de informações na última década, por bem ou por mal, utilizam-se de uma forma de expressão que pode vir a se tornar literária, rudimentar ainda (calcada ainda mais em sua função fática do que poética), mas sujeita ao aprimoramento natural determinado pela própria necessidade de expressão.
Webliteratura e hipertexto Falamos agora em Webliteratura. A literatura em si já não basta. Estamos todos imersos e fascinados pelas novas mídias e suas facilidades de distribuição e possibilidades ficcionais. E não há como fugir disso. Mesmo que intuídos em pixels e bits, os deuses continuam “hóspedes fugidios da literatura”. Deixam agora seus rastros em rizomas de links e hipertextos que trafegam em diálogo intersemiótico nos chamados iPads, e-readers, e-books e outros écrans mais ordinários. Chegamos, então, a uma palavrinha que está na moda no meio virtual e que se configura como característica essencial dessa nova era, ou da cibercultura: o hipertexto. Blocos de informações conectados por meio de elos ou links, capazes de permitir aos navegadores que se movam livremente dentro deles e que nos colocam diante de uma
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nova máquina de ler, que faz de cada leitor-navegante um editor em potencial, redirecionando os paradigmas que balizavam as antigas formas de produção e recepção de discursos. O texto, nessa baliza, passa a ser efetivamente uma galáxia de significantes, não uma estrutura de significados. Como sugere George Landow, em seu livro Hipertext 2.0, os textos não têm mais início. São irreversíveis e possibilitam acesso por diversas entradas, das quais nenhuma poderia ser autoritariamente declarada única, como já pretendia Roland Barthes (LANDOW, 1997, p. 3) em suas análises da escritura. Em S/Z Roland Barthes descreve uma textualidade ideal que encaixa perfeitamente àquela que em computação foi chamado de hipertexto, texto composto de blocos de palavras (ou imagens) ligados eletronicamente por diversos caminhos, correntes, trilhas em textualidade indeterminada, de final aberto, descritas por links, nós, comunidades, redes e caminhos. (LANDOW, 1997, p.3).
O que está em jogo, nessa nova máquina potencializadora de escritas e de leituras, é a possibilidade efetiva de ela vir a alterar efetivamente toda a experiência literária que vier a ser feita a partir dela. Além disso, parece que ela vem confirmar o que já preconizava Barthes, em 1968: a morte do autor. A noção de que a obra não está mais nas mãos do autor, que até então era considerado o Deus todo-poderoso da criação textual. Com o advento do hipertexto, o autor passa a ser reconhecido como um expositor de “múltiplas escrituras e várias culturas, todas em diálogo umas com as outras, em paródia e protesto”. Agora, é o leitor que recria e reescreve a obra durante o ato da leitura. É ele que “une todos os traços que constituem a escrita” (BARTHES apud CHARTIER, 2001, p. 2). A essas potencialidades do hipertexto, temos que agregar as possibilidades de som e de imagem que o
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computador nos traz. Criamos o texto, ou a escritura multimídia interativa, como dizia Pierre Lévy (1993): É preciso pensar as mutações do som e da imagem em conjunto com as do hipertexto e da inteligência artificial. Conexões e reinterpretações serão produzidas ao longo de zonas de contato móveis pelos agenciamentos e bricolagens de novos dispositivos que uma multiplicidade de atores realizarão. (p.107).
Tudo muito bonito e conceitualmente instigante. Mas, como declarou a professora Heloisa Buarque de Hollanda, em um diálogo sobre o assunto que mediamos para o SESC São Paulo, “os textos criados com essa intenção ainda são muito chatos”. Difícil não concordar com ela. Parece que ainda exercitamos, estamos na “potência” mais uma vez. Com exceção das experiências feitas pelo poeta Augusto de Campos e alguns outros epígonos da poesia concreta, a fatura ainda é exígua e pouco animadora. Principalmente, se focarmos a criação em prosa. Apesar disso, não podemos jogar o bebê juntamente com a água do banho. Tudo ainda é muito incipiente, concordo, mas devemos atentar para algumas das experiências expostas no site Dreaming Methods (www.dreamingmethods.com). As novas possibilidades parecem não ser muito amigáveis para uma escrita que se coadunou muito tempo com a imagem do arado, a oratio prorsa, aquela linguagem que embora fosse direta e livre (em oposição a como os Latinos viam a poesia, a oratio vincta, uma linguagem ligada por regras de versificação), ainda estava ligada à linearidade do arado e do pensamento. Para Pierre Lévy, “a nova escrita hipertextual ou multimídia certamente estará mais próxima da montagem de um espetáculo do que da redação clássica, na qual o autor apenas se preocupava com a coerência de um texto linear e estático” (LÉVY, 1993, p.108). Em outras palavras, a literatura linear e estanque, ligada
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só ao entretenimento, ou só ao desenvolvimento e comprovação de uma ideia, me parece que não terá muitas chances com a complexidade que se imporá com essa nova maneira de jogar. Maneira que potencializará o homo ludens que somos, como queria Johan Huizinga (1980). O estudioso de tecnologia digital, Steve Johnson, comenta que muitos ficaram empolgados com as possibilidades criativas de uma obra literária escrita em hipertexto depois do lançamento de “Afternoon: A History”, de 1993. Mas o entusiasmo durou pouco quando se percebeu que a não linearidade se tornava um grande obstáculo para a fruição do texto (JOHNSON, 2001, p.96). Em uma leitura na qual cada leitor pode tomar um caminho diferente, a experiência compartilhada dos leitores se reduz drasticamente e fica mais difícil um juízo de valores consensuais. Ainda, segundo Steven Johnson: “Mas meu palpite é o que o gosto pela prosa não linear vai crescer à medida que nos aclimatarmos a esses novos ambientes — e aos estranhos novos hábitos de leitura que eles exigem” (JOHNSON, 2001, p. 96).
A cibercultura e a reação contra ela Frente a essa enorme multiplicidade de possibilidades, facetas e eventos, não podemos deixar de pensar seriamente no significado da web para o presente e para o futuro da literatura e da cultura. Não é mais possível ter uma opinião simples e unívoca, ou simplesmente descartar o tema. Não podemos ficar só eufóricos ou, ao contrário, nos posicionar reativamente como, inicialmente, se posicionou em livro o jornalista Andrew Keen (2009). Muitos dos que se levantam contra a tecnologia, nos alertando de seus perigos, fazem-no de uma forma muito parecida com a que fez Nietzsche ao declarar sua
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guerra particular ao cristianismo, ou a Deus - que acabou revelando muito de sua incapacidade de viver sem eles. O mito de Narciso, usado pelo vovô Marshall MacLuhan (1996), quando nos falava sobre os meios como extensão do homem, aponta para o entorpecimento e fascínio que nos atingem quando nos deparamos com extensões em qualquer material que não seja nós próprios. E não por acaso a palavra Narciso originou-se da grega narcosis. É neste estado paradoxal de dopping cibernético que nos pegamos a pensar e a questionar sobre o que está acontecendo em nossos dias. Difícil ter clareza e projetar alguma coisa. Mal estamos dando conta do presente. O que revela que estamos, realmente, despreparados para o futuro, qualquer que seja ele. Paradigmas, embora necessários, se tornam velhas chaves para novas fechaduras. Em um diálogo recém-publicado entre Umberto Eco e Jean-Claude Carrière (2010, p. 21-40), discute-se com propriedade a efemeridade dos suportes duráveis que, pode ser justificada pelo fato de a cada instante surgirem novos suportes e aparelhos que exigem um novo tipo de conhecimento para que possamos utilizá-los. É verdade. A geração analógica formada com os livros, e entre os livros, não tem fôlego para tanto. Mas, como podemos observar, a geração de nativos nas novas tecnologias tira e tirará isso “de letra”. Os dois belos representantes de nossa cultura impressa, colecionadores de pergaminhos e incunábulos, apontam para uma “ansiedade de produção” e para uma proliferação de romances contemporâneos de autores tão efêmeros quanto a tecnologia que deve atender às necessidades de consumo. Jean-Claude afirma que “às vezes é útil relativizar nossas pretensas proezas técnicas” ao lembrar que os livros de Victor Hugo chegavam mais rapidamente a outros países do que os best-sellers nos dias de hoje (ECO; CARRIÈRE, 2010, p. 49). Por outro lado, podemos
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concluir também que este fato só revela a incompetência das editoras atuais em se abrirem às possibilidades que as novas mídias nos oferecem. Mas até elas, as editoras lobodinossáuricas, estão se mexendo. Há pouco tempo, a gigante editorial americana Simon & Schuster ditou novas regras para seus escritores. E quais seriam elas? Abrir um blogue. Criar uma página no Facebook. Gerar conteúdo em redes sociais literárias. Interagir. Contaminar-se. Sair dos escritórios empoeirados ou da pretensa redoma criativa. Abrir-se para as novas exigências e imperativos de uma época de cibercultura. Tudo isso posto em contrato.
O futuro do futuro Por outro lado, já flertamos com a Web 3.0, visto que a anterior − a Web 2.0 − banalizou-se como sinônimo de sites e ferramentas interativas que revelaram um leitor ativo na produção e gerenciamento de conteúdos. Mas o que será ela? Mal assimilamos um novo paradigma e já surge outro: o surgimento de uma rede habitada cada vez mais por entidades inteligentes. Entidades essas que serão capazes de sugerir ações para nosotros, os chamados humanos. Algo como já vem fazendo o Google, que nos questiona sobre a certeza de nossas referências para busca e sugere outras, quiçá, melhores. Em um segundo momento, ou mesmo em um terceiro, poderá surgir o que postulam os pensadores da web semântica: A web semântica trará estrutura ao conteúdo significante das páginas da web, criando um ambiente onde os agentes de software que vagueiam de página a página possam prontamente realizar tarefas sofisticadas para usuários. (BERNERS-LEE; HENDLER; LASSILA, 2001, p. 34).
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Em outras palavras, será possível, um dia, que os sistemas e agentes de software (criados por nós mesmos) possam gerar comandos capazes de categorizar conteúdos, de identificar o que seria uma boa escritura, ou uma má escritura, e de sugerir, ou mesmo corrigir, o que estiver aquém da produção de um determinado escritor, ou até aquém do gosto de uma determinada comunidade de receptores (leitores)? O próprio sistema passaria a ser o coautor − e não mais o receptor − e nós passaríamos a ser meros figurantes, como sugere Bourriaud (2011, p. 28): A emergência de novas técnicas como a Internet e a multimídia indica um desejo coletivo de criar novos espaços de sociabilidade e de instaurar novos tipos de transações diante do objetivo cultural: a “Sociedade do Espetáculo” se sucederia então da sociedade dos figurantes, onde cada um encontraria nos canais de comunicação mais ou menos truncados a ilusão de uma democracia interativa.
E, no sétimo dia, Deus observando novamente sua criação rejubilar-se-á. No oitavo, o Google chegará e se apoderará de tudo. Isso já se pode pressentir, embora o jogo não esteja totalmente decidido ainda. Importa-nos, daqui para frente, saber o que faremos com tudo isso e de que forma. A questão é como colocar o computador e todos os seus agentes a serviço da produção estética e literária. De servir-nos de seus programas para continuar a significar e ressignificar o mundo e as nossas vidas. Como propõe o poeta e antropólogo Antonio Risério (1998, p. 203): (...) trata-se de “conectar” as novas tecnologias sígnicas com o cerne mesmo da humanidade. Com a nossa indeterminação. Humana – e poética. É o que muitos artistas – antenas da espécie humana – estão fazendo, nesta nossa contextura sociocultural, onde se configura, de modo irreversível, o horizonte plurifaiscante de uma nova mutação antropológica, comparável somente à Revolução
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Neolítica, quando a escrita e a cidade despontaram para subverter e redefinir a nossa postura no cosmos, e à Revolução Industrial, base mais imediata de nossa atual aventura rumo ao desconhecido.
Referências BERNERS-LEE, Tim; HENDLER, James; LASSILA, Ora. The Semantic Web. Scientific American, Maio de 2001, p. 29-37. BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Martins Fontes, 2011. CARRIÈRE, Jean-Claude; ECO, Umberto. Não contem com o fim do livro. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Record, 2010. CHARTIER, Roger. Readers and Reading in the Age of Electronic Texts, 2001. E-book facultado por <www.text-e.org> HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1980. JOHNSON, Steven. Cultura da interface. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. KEEN, Andrew. O Culto do Amador. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. KÖEHLER, Wolfgang. Psicologia de la forma. Madri: Biblioteca Nueva, 1996. LANDOW, George P. Hypertext 2.0. Baltimore: The John Hopkins University Press,1997. LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2009. MACLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Tradução: Décio Pignatari. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 1996. REVISTA VEJA. São Paulo: Editora Abril, ed. 1643, ano 3, n. 34, 05 de abril de 2000. RISÉRIO, Antonio. Ensaio sobre o texto poético em contexto digital. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; COPENE, 1998.
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O livro, o e-book e a poesia digital: considerações gerais Amador Ribeiro Neto*
Resumo: A chegada do computador e da era cibernética estão mudando comportamentos e linguagens do homem contemporâneo. Era da virtualidade, vida digital, hipertexto, poesia digital, e-book, homem semiótico etc., são realidades que mudam a língua, a linguagem, a literatura e o próprio livro.
Palavras-Chave: ciberliteratura; poesia digital; hipertexto; livro; e-book.
Abstract: The arrival of the computer and the cybernetics era are changing contemporary man’s behavior and language. Virtual era, digital life, hypertext, digital poetry, e-book, semiotic man, etc., are realities that cause changes in language, in literature and in the book itself.
Keywords: cyber literature; digital poetry; hypertext; book; e-book.
Nestes tempos de Internet, a pergunta que mais se ouve é se o livro impresso deixará de existir. Depois da era das imagens, voltamos à era alfabética, nos diz Umberto Eco, em Não contem com o fim do livro. Nunca se leu e escreveu tanto como agora. O livro, ainda segundo Eco, não desaparecerá. * Professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba.
O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados. Você não pode fazer uma colher melhor que uma colher. Designers tentam melhorar, por exemplo, o saca-rolhas, com sucessos bem modestos, e, por sinal, a maioria nem funciona direito.
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(...). O livro venceu seus desafios e não vemos como, para o mesmo uso, poderíamos fazer algo melhor que o próprio livro. Talvez ele evolua em seus componentes, talvez as páginas não sejam mais de papel. Mas ele permanecerá o que é. (Eco; Carrière, 2009, p. 16-17).
Dentro da mesma linha de reflexão, observa Paulo Franchetti (2010, p. 10): “No sentido da portabilidade, perenidade, confiabilidade e acessibilidade, o livro ainda é uma tecnologia superior”. Mas Umberto Eco pondera: É óbvio que um magistrado levará mais confortavelmente para sua casa as 25 mil páginas de um processo em curso se elas estiverem na memória de um e-book. Em diversos domínios, o livro eletrônico proporcionará um conforto extraordinário. Continuo simplesmente a me perguntar se, mesmo com a tecnologia mais bem adaptada às exigências da leitura, será viável ler Guerra e paz num e-book. Veremos. (ECO; CARRIÈRE, 2010, p. 17).
A questão que se coloca, pois, não é a do livro impresso convertido em e-book, simplesmente. Mas a do livro literário. Literatura é trabalho com a linguagem, é, nas palavras de Pound, “novidade que PERMANECE novidade” (2006, p. 33). Ou seja, a cada (re)leitura, uma nova significação é dada ao leitor. Por isto mesmo a dinâmica imposta pela manipulação do e-book não se harmoniza com a necessidade de um tempo mais vagaroso que o livro impresso propicia. Mais adiante, o mesmo crítico complementa: “Grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível” (p. 40). Agora fica claro que, também para Pound, literatura é pura e simplesmente linguagem, ou seja, modo de dizer. O mesmo tema pode receber diferentes tratamentos conforme as variadas ciências da linguagem. Todavia, não a linguagem enquanto aparato vazio de jogos de palavras, de retórica balofa ou de construções semântico-sintáticas nonsense. Pound deixa
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claro que a “grande literatura é” (...) “linguagem carregada de significado (...)” (p. 40). Este significado é o norte para o leitor. E é ele que, depreendemos, perde-se nas páginas do e-book, quando estamos diante de uma obra literária, segundo Eco. Se, em literatura, de um modo geral, é assim, para Paul Valéry, a questão da assimilação e fruição restringe-se, ainda mais, quando se trata da poesia. Ao tratar da relação entre prosa e poesia, nos diz o ensaísta e poeta francês: Mas do que falamos quando falamos em “Poesia”? (...) Acho que é preciso desaprender a considerar apenas o que o costume e, principalmente, a mais poderosa de todas, a linguagem, oferece-nos para a consideração. É preciso tentar se deter em outros pontos além daqueles indicados pelas palavras, ou seja, pelos outros. (VALÉRY, 1991, p. 178).
Depois de enfatizar a importância da linguagem, Valéry discorre sobre as duas dificuldades essenciais no trato com a poesia: a divisibilidade e a musicalidade. Características que “escapam” ao ritmo “natural” do e-book: O que se faz? Trata-se o poema como se fosse divisível (e como se devesse sê-lo) em um discurso de pros que se basta e consiste-se por si; e por outro lado, em um trecho de uma música particular, mais ou menos próximo da música propriamente dita, tal como a voz humana pode produzi-la; mas a nossa não se eleva até o canto que, de resto, pouco conserva as palavras, atendo-se apenas às sílabas. (...). E quanto à música de poesia, essa música particular de que falava, para uns ela é imperceptível; para a maioria, desprezível; para alguns, o objeto de pesquisas abstratas, às vezes eruditas, geralmente estéreis. (...) Nada mais enganador que os métodos denominados ‘científicos’ (e as medidas ou os registros, em particular) que sempre permitem que se responda ‘um fato’ a uma questão, mesmo absurda ou mal formulada. O valor desses métodos (como o da lógica) depende da maneira como são utilizados (VALÉRY, 1991, p. 180).
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Mais adiante, ele continua como predizendo o uso imediato do e-book na literatura: “O que a obra produz em nós, portanto, é incomensurável com nossas próprias faculdades de produção instantânea” (VALÉRY, 1991. p. 192). O livro que um dia Mallarmé projetou, depois Borges sonhou – e, antes deles, Heródoto quis –, este livro virou realidade. Mas realidade virtual. Este livro é o ciberespaço da infolinguagem. Para Lucia Santaella (2004), Dos anos 90 para cá, estamos assistindo a uma nova revolução que (...) provavelmente trará consequências antropológicas e socioculturais muito mais profundas do que foram as da revolução industrial e eletrônica, talvez ainda mais profundas do que foram as revoluções neolíticas. Trata-se da revolução digital e da explosão das telecomunicações, trazendo consigo a cibercultura e as comunidades visuais. (...) Na ciberarte (...) as tradicionais divisões de papéis entre emissor e receptor se ampliam sobremaneira, com a sua condição interativa, a tradição das artes expositivas-contemplativas e mesmo das artes participativas (p. 173-175).
O texto eletrônico, por não se fixar em suporte material, como a folha de papel, possibilita o acesso a distância em tempo real. Ou seja, o texto, sem a materialidade do papel, pode ser lido por múltiplos (ou milhares) de leitores ao mesmo tempo, com tais leitores em espaços geográficos diversos. A biblioteca universal chegou. O grande livro, soma de todos os livros e bibliotecas, tão almejado, está online. Está no ciberespaço. E o ciberespaço (espaço com inovações eletrônico-digitais, da cibernética, da computação, da informação, da comunicação) chegou rápido – e rapidamente está mudando a ordem econômica, a ordem social, a ordem cultural etc. Enfim, está mudando a linguagem. Sociedade da informação, era do virtual, vida digital,
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homem semiótico, hipertexto, infopoesia, e-book são realidades instauradas em nosso tempo. As escritas hipertextuais estão gerando uma economia na escrita, mudando a língua, a linguagem, a literatura. O ciberespaço ultrapassa a nossa capacidade de imaginação e, é claro, nos dá sentimentos de gozo e medo, ao mesmo tempo. Afinal, o novo assusta. “À mente apavora o que ainda não é mesmo velho”, canta Caetano (VELOSO, 1978). Oswald disse: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica” (ANDRADE, 2011, p. 61). Por estas e outras, o novo, o velho, o novelo, o novelho está nos envolvendo em cada linha, em cada palavra, em cada música, em cada pensamento, com esta língua de literaturas, saberes e sabor. Borges um dia declarou: “Dediquei grande parte de minha vida às letras, e creio que uma forma de felicidade é a leitura” (BORGES, 2000, p. 83). Literatura: cursor de novos jogos, brincadeiras, armações, engenhos e engenhosidades: a língua proíbe e a literatura libera. Apenas proibição ou apenas liberação geral não dão em nada – ou levam à barbárie. O lance é continuar deixando literatura e língua trocarem seus beijos sem ter conta e sem ter fim. Literatura: ludismo à mancheia. Exuberância. Pletora sem fim. Com a mudança do meio de produção, ou da mídia de produção, se assim preferir-se, altera-se o modo de recepção do objeto literário. Walter Benjamin (1986) já nos chama a atenção para a nova mudança da postura, também física do leitor, diante do surgimento do jornal – em confronto com o livro. Da mesma forma, a tela do computador impõe não somente mudança na postura física do leitor, como na assimilação das novas mensagens. Diante de imagens que se movimentam associadas, ou não, a sons e cores, o repertório do receptor pede atualização face a esta nova realidade da obra artística.
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A ubiquidade e a velocidade são os principais fatores acrescentados ao livro pelo texto eletrônico. Por ubiquidade entendemos a possibilidade de o leitor recuperar um texto para além do lugar em que eles se encontrem: sem materialidade, independente de sua localização original, o texto eletrônico pode ser lido simultaneamente por diversos leitores que se encontram em qualquer lugar do planeta (Parente, 1999, p. 69).
Mais que objeto cultural – como pontua o semioticista russo Chklóvski (1973) –, o texto literário é um processo cultural singular, desautomatizador, gerando novas percepções do objeto artístico e do mundo em si. Como que antecipando as discussões que adviriam, o semioticista produziu um dos ensaios seminais sobre a arte e seus procedimentos, do qual nos valemos para aplicação aos conceitos e estudos da cibercultura. A respeito desta última, observa-nos Irene Machado (2003): (...) nunca se falou tanto em linguagem e em texto como no campo da recém-nascida cibercultura. Exatamente porque a comunicação agenciada por processos ou redes digitais permitiu não apenas a expansão da linguagem para além do campo linguístico, como também a percepção de relações de linguagem em sistemas nunca antes considerados – do biológico ao digital – tornou-se imperativo encarar a semioticidade desse novo campo da cultura. Por ora os principais temas desse campo são: o processamento dos códigos pela digitalização, a contaminação entre sistemas de diferentes linguagens, os discursos criados pelo diálogo planetário, a problemática da modelização das línguas que dão suporte a este diálogo (p. 64).
A poesia sempre fez interações semióticas com a própria linguagem ou com outras linguagens. O mundo das artes está inserido em seu código verbal como mediação da possibilidade de criar transmutações de sentidos e significações. A poesia dá outro sentido ao já visto, ao já conhecido, como bem observou Chklóvski.
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Mas a poesia, das artes verbais, a que encontrou na infolinguagem seu melhor meio de expressão é, segundo, Octavio Paz (1995), (...) salvación, poder, abandono. Operación capaz de cambiar al mundo, la actividad poética es revolucionaria por naturaleza; ejercicio espiritual, es um método de liberación interior. La poesia revela este mundo; crea outro. Pan de los elegidos; alimento maldito. Aísla; une. Invitación al viaje; regreso a la tierra natal. Inspiración, ejericio muscular. (p. 41).1
“(...) salvação, poder, abandono. Operação capaz de mudar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo, cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola, une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, exercício muscular”. 1
Em tempos de novos suportes e recursos tecnológicos, a poesia farta-se nas múltiplas possibilidades de criação face às novas mídias. Estudar as representações daí advindas é um desafio aos seus estudiosos, bem como aos poetas. Arte-ciência-tecnologia embrincam-se, mais que em outras épocas históricas. O computador é hoje a grande máquina semiótica, afirma Pedro Barbosa (2001), ensaísta português especializado em ciberliteratura. Na tela do computador, desfilam signos dos mais variados matizes, questionando as formas de absorção das novas linguagens. Para Santaella, “qualquer descrição do computador é uma evidência de seu caráter simbólico e cognitivo” (2004, p. 88). Frente a este universo desafiador e estimulante, a poesia encontra um espaço a mais para as suas sempre renovadoras formas de manifestação. Para o semioticista português Rui Torres (2003), o cibertexto (ou o texto em meio digital) modifica o uso inicial do computador, até então utilizado como máquina de armazenamento. A partir de agora, o computador pede um uso criativo. E é neste momento que surge a poesia digital. E, como consequência, altera-se nosso modo de percepção do mundo, gerando uma nova epistemologia Ainda segundo Rui Torres, o computador modifica e amplia tanto a leitura como a escrita. Assim, o semioticista português apresenta três posturas abarcando a criatividade
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literária e o meio digital. São elas: (1) o hipertexto e a hiperficção; (2) o texto animado, interativo e multimídia; (3) o texto gerado por computador. Tais modalidades problematizam a mentalidade analógica e abrem caminhos para novas formas de expressão da literatura – e da poesia, em particular. O hipertexto é o mais permanente e o mais visível. Desde a organização dos arquivos de bibliotecas que as disponibilizam a distância (é o lado permanente) até a cara e o prefixo da www – world wide web –, até o http:// - hipertext transfer protocol (é o lado mais visível). Por isto mesmo o hipertexto é a mais conhecida das modalidades do cibertexto. Diz Rui Torres: “o hipertexto interessa aos estudos literários e culturais no sentido em que ele nos leva a identificar, no tipo de escrita não-linear e sequencial que o caracteriza, a própria noção de literariedade”. E continua: “Por outro lado, o hipertexto permite-nos rearticular, através principalmente da hiperficção, os conceitos de dialogismo e intertextualidade, o primeiro proposto por Bakhtin e o segundo por Julia Kristeva” (TORRES, 2003, p. 5). A tendência do hipertexto para a autorreferencialidade (“a tomada de consciência acerca do próprio meio em que se inscreve”) o relaciona com a pós-modernidade. A convergência entre hipertexto e narrativa metaficcional faz-nos repensar as ligações (linkadas), a colagem, a mistura e a combinação tendo em vista o movimento do diálogo e a variação. Dentro da perspectiva rizomática de Deleuze e Guatarri não interessam o centro ou a periferia, mas as conexões e a pluralidade daí advindas. O rizoma é, por definição, anti-hierárquico: todos os pontos que constituem o sistema estão interligados; qualquer ponto de um sistema rizomático pode estar ligado a outros sem obedecer a regras hierárquicas. Dentro de uma linha não-linear de descentramento, o hipertexto destaca-se por conceder ao leitor o papel de construtor de sentido. Nele, o leitor torna-se autor, ou co-
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-autor, já que é ele quem manipula a informação através das escolhas que faz. O texto animado, multimídia, interativo dos blogs, twitters, facebooks etc., têm feito emergir uma literatura que, mais que em épocas precedentes, toma o leitor e a linguagem como vetores. O princípio norteador de O jogo da amarelinha, os labirintos borgeanos etc., agora são matéria concreta de uma nova escrita, dos manuscritos de computador. A poesia animada por computador, ao trazer para o universo da criação novos componentes como o efetivo movimento e a interatividade, abre portas e janelas para novos campos da criação. O que é altamente estimulante para a nova literatura – e em especial, para a nova poesia, a poesia digital (ou ciberpoesia, ou infopoesia – já que a terminologia ainda não foi fixada). Por fim, o computador passa a gerar textos. A inteligência artificial nunca foi tão natural como agora. O computador é uma máquina semiótica por excelência, observa Pedro Barbosa (2001). Gera signos e linguagens. Tanto a partir de programas pré-estabelecidos, como através de programações aleatórias – e, portanto, inesperadas. Sem nos esquecermos que é constitutivo da tecnologia ela tornar-se obsoleta a cada nova invenção em seu próprio campo. Poesia e computador realizam um ato semiótico, em que a primeira é a representante de uma tradição da arte da palavra e o segundo, um aparelho eletrônico, uma máquina programável que estoca e recupera dados e executa operações lógicas e matemáticas numa grande velocidade, mas que também oferece possibilidades de mediação e transmutação, produzindo signos, significações. (ANTONIO, 2010, p. 27).
Se pensarmos historicamente, veremos que, potencialmente, os meios eletrônico-digitais já se faziam presentes nas múltiplas variedades da linguagem da poesia barroca. Se tomarmos, a título de exemplo, o caso Gregório de
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Matos, temos um poeta que soube manipular os recursos poéticos barrocos como verdadeiros links que se abrem a novos links gerando hipertextos dentro de novos textos, como se usasse o editor de texto e imagem do computador. A junção de várias partes do poema implica a criação de outros poemas, como produzir um interpoema. O poema “Ao braço do menino Jesus quando aparecido” é um caso típico desta abertura “digital”, digamos assim. Vejamos o poema na sua íntegra: “Ao braço do menino Jesus quando aparecido” (Gregório de Matos) O todo sem a parte, não é todo; A parte sem o todo não é parte; Mas se a parte o faz todo, sendo parte, Não se diga que é parte, sendo o todo. Em todo o Sacramento está Deus todo, E todo assiste inteiro em qualquer parte, E feito em partes todo em toda a parte, Em qualquer parte sempre fica o todo. O braço de Jesus não seja parte, Pois que feito Jesus em partes todo, Assiste cada parte em sua parte. Não se sabendo parte deste todo, Um braço que lhe acharam, sendo parte, Nos disse as partes todas deste todo. (MATOS, 2003, p. 59)
Constatamos que há uma permuta entre os termos “todo” e “parte”, que se abrem para novos significados para o poema. Significados que são regidos por uma linha limítrofe à direita, uma vez que não há “rimas” no poema, a não ser a repetição destas duas palavras, contrariando o esquema tradicional rímico do soneto petrarquiano, que
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serve de modelo a este soneto (14 versos distribuídos em dois quartetos e dois tercetos) e à totalidade dos sonetos gregorianos (com rimas interpoladas e emparelhadas nos quartetos, e alternadas nos tercetos). As estruturas poéticas deste poeta baiano barroco mantêm uma dinâmica contínua e renovada da construção de significados pelo jogo intersemiótico de significantes. Para começo de conversa, em parte significativa da poesia de Gregório, não há um centro diretivo. Há pistas rizomáticas para voos e navegações. Aliás, navegar é mais Gregório que voar: pela época das navegações e pelo uso metafórico que o termo assimilou hoje. As palavras de Jorge Luiz Antonio parecem apropriadas, guardadas as devidas proporções de tempo, espaço e linguagem, para descrever o processo poético barroco de Gregório: (...) a palavra que provoca a sensação de visualidade através da parataxe, descritividade, referencialidade; a espacialização dessa palavra, indicando movimento ou não, que se torna também elemento estético; essa mesma visualidade transportada, acondicionada a um editor de texto e de imagem, ou seja, a poesia visual no computador; tantas alterações ocorrem que a palavra deixa de ser legível e passa a ser imagem; a palavra no contexto digital; a palavra em diagrama, produzindo o hipertexto a partir de relações à maneira de uma nova sintaxe; a junção de vários tipos de poesias, com o objetivo de produzir uma interpoesia; uma poesia hipermídia; uma poesia eletrônica como forma de releitura da poesia verbal já existente; uma poesia em movimento num site; a poesia-em-construção que estabelece relações diferentes entre leitor e autor, fazendo com que o primeiro seja o segundo, e vice-versa; ou mesmo releituras digitais de criações poéticas nos meios eletrônico-digitais, numa espécie de intertexto hipertextual. (...) A fusão da palavra e da imagem determina inúmeros caminhos, cuja delimitação faz-se extremamente necessária, até pelo uso dos termos palavra e imagem. (...) Parece-nos necessário delinear uma relação da palavra com a imagem enquanto
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produto literário. O que significa que é um poeta que vai incluir a imagem na sua obra literária. É um artista da palavra que, também conhecedor dos mecanismos estéticos da imagem, vai utilizar outro recurso artístico. (...) O que vai diferenciar a palavra-imagem ou imagem-palavra da poesia, delimitada de outras artes que usam dos mesmos elementos constitutivos, é a sua função poética. É o contexto poético que conforma essa mensagem. (ANTONIO, 2010, p. 3-5, CD encartado).
Vale salientar que a poesia digital, com todo uso que faz da tecnologia de ponta, não é puro experimentalismo, não é mera aplicação vanguardista, não é apenas aplicação vanguardista da high technology. Ela, como bem observou Jorge Luiz Antonio, representa um (...) elo cultural entre as poesias oral, verbal e visual, no sentido que os termos têm sido usados nas mais diferentes manifestações literárias, indicando um certo encadeamento e continuidade histórico-culturais: a poesia digital é a mais recente manifestação poética, um produto que concilia a arte da palavra e a tecnologia contemporânea. A conformidade da palavra à imagem digital passa por um processo que pode apresentar resumidamente como a palavra à procura da imagem, semelhante ao conceito que Roland Barthes denominou de função utópica da literatura: a palavra tem a intenção de se tornar o ser ou o objeto que ela representa. A relação entre a palavra e imagem permite inúmeros enfoques, dentre os quais faz-se necessário estabelecer um parâmetro de enfrentamento da questão (ANTONIO, 2010, p. 3, CD encartado).
Nas palavras de André Parente (1991), O ciberespaço é o novo espaço de comunicação da humanidade, aquele que integra algumas das mais importantes inovações da humanidade, aquele que integra algumas das mais importantes no campo da eletrônica, da cibernética, da computação, da informação e da comunicação. O ciberespaço está transformando profundamente a ordem
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econômica e social: fala-se em sociedade da informação, era do virtual, vida digital, homem simbiótico. (...) as escrituras hipertextuais estão engendrando uma nova ‘economia da escrita’. Por outro lado, o hipertexto e a realidade virtual constituem os principais polos de aplicação do ciberespaço, que nos levam a repensar a dinâmica do processo de comunicação. (p. 78-79).
O livro pode não desaparecer, como afirma Eco, mas seu modo de compor já é outro. Sorte da literatura, que se renova, depois de renovar tantas mídias, como o cinema, a TV, o computador, o vídeo.
Referências ANDRADE, Oswald. Manifesto da Poesia Pau Brasil. In: ___. A utopia antropofágica. 4. ed. São Paulo: Globo, 2011 (Obras Completas de Oswald de Andrade). p. 59-66. ANTONIO, Jorge Luiz. ANTONIO, L. J. Poesia Digital: teoria, história, antologias. São Paulo: Navegar Editora; Columbus, Ohio, EUA: Luna Bisonde Prods; FAPESP, 2010. Contém CD encartado. BARBOSA, Pedro. O computador como máquina semiótica. Revista de Comunicação & Linguagens. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, n. 29, 2001. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: _____. Magia e técnica, arte e política. 2. ed. Trad. Paulo Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 165-196. BORGES, J. L. Pensamento e poesia. In: ___. Esse ofício do verso. Trad. José Marques Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 82-101. CHKLÓVSKI, V. A arte como procedimento. In: ____ et al. Teoria da Literatura: Formalistas Russos. Trad. Ama Mariza Ribeiro Filipouski, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilberman, Antonio Carlos Hohlfeldt. Porto Alegre: Globo, 1973. p. 39-56. ECO, Umberto; CARRIÈRE, Jean-Claude. Não contem com o fim do livro. Trad. André Teles. Rio de Janeiro: Record, 2010. FRANCHETTI, Paulo. Poesia digital. In: ANTONIO, L. J. Poesia Digital: teoria, história, antologias. São Paulo: Navegar Editora; Columbus, Ohio, EUA: Luna Bisonde Prods; FAPESP, 2010. p. 9-10.
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MACHADO, Irene. Escola de Semiótica: a experiência de Tártu-Moscou para o estudo da cultura. São Paulo: Ateliê Editorial, FAPESP, 2003. MATOS, Gregório de. Ao braço do menino Jesus quando aparecido. In: BARBOSA, Frederico; DANIEL, Claudio (Orgs.). Cinco séculos de poesia: antologia da poesia clássica brasileira. 3. ed. rev., São Paulo: Landy, 2003. PARENTE, André. O virtual e o hipertextual. Rio de Janeiro: Pazulin. Núcleo de Tecnologia da Imagem/ ECO-UFRJ, 1999. PAZ, Octavio. El arco y la lira. In: __. La casa de la presencia: poesía e historia. Mexico: Fondo de Cultura Económica, Obras Completas, v. 1, 1995. POUND, Ezra. ABC da literatura. 11. ed. Tradução de Augusto de Campos. São Paulo: Cultrix. 2006. SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004. TORRES, Rui. Poesia em meio digital: algumas observações. In: GOUVEIA, Luís Borges; GAIO, Sofia (Orgs.). Sociedade da Informação: balanço e implicações. Porto: Edições da Universidade Fernando Pessoa, 2003. VALÉRY, Paul. Questões de poesia. Primeira aula do curso de poética. In: BARBOSA, João Alexandre (Org.). Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991. VELOSO, Caetano. Sampa. In: __. Muito: dentro da estrela azulada. CD, 1978.
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A literatura digital e sua escritura expandida: uma reflexão sobre a obra Volta ao Fim Cristiano de Sales* Wilton Azevedo**
Resumo: Desde que a literatura no Brasil começou a incorporar as escritas e os ambientes digitais (meados dos anos de 1990), diferentes formas de fruição e composição têm exigido da crítica literária um aprendizado acerca das estruturas hipermidiáticas nas quais a poesia agora se encontra também implicada. Na busca de entender essas poéticas que se apresentam não mais como promessas, mas sim como fatos observáveis, ocupamonos, no presente ensaio, de uma obra de literatura digital, Volta ao fim, para refletirmos sobre a escritura que hoje é também articulada na produção da poesia.
Palavras-chave: Literatura; escritura digital; ambiência digital.
Abstract: Since the literature in Brazil began to incorporate the writings and digital environments (mid 1990s), different forms of enjoyment and composition of literary criticism have required a hypermedia learning about the structures in which poetry is now also implicated. In search to understand those presenting poetics not as promises but as observable facts, we concerned with this present essay about work of digital literature, Volta ao Fim, to reflect about digital writing that today is also articulated in the production of poetry.
Keywords: Literature; digital writing, digital ambience. * Pós-doutorando Universidade Federal de Santa Catarina/ U.P. Mackenzie / Bolsista CNPq. ** Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Escritas digitais não são mais possibilidades apenas, são também fenômenos atualizados. São fatos. E, se assim estão, não podemos nos furtar à função que nos cabe: estudar o fenômeno.
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A primeira manifestação irrefutável da escrita digital se deu pela comunicação. Até muito pouco tempo atrás nos deparávamos, frequentemente, com a expressão “comunicação digital”. Hoje, percebemos que o adjetivo dessa expressão é dispensável. Ao nos referirmos simplesmente à “comunicação”, já estamos evocando uma série de procedimentos e objetos que funcionam dentro da lógica digital. Ou seja, quando almejamos fazer contato com alguém, algum órgão, instituição ou qualquer instância com a qual desejamos nos manter conectados, não contornamos mais os endereços eletrônicos (e-mails) e não deixamos mais de buscar informações prévias sobre o que queremos nos sítios eletrônicos (sites), indicados, na maioria das vezes, em folders ou cartazes, junto ao endereço físico e número de telefone, no caso de pessoas jurídicas, por exemplo. No caso da comunicação pessoal, esse novo comportamento é manifestado de forma muito mais evidente, haja vista os sítios de relacionamento em rede. Dito de outro modo, não precisamos nos referir à “comunicação digital” para deixarmos evidente que estamos articulando, além de telefones, correspondências impressas e sinais analógicos, os meios digitais de comunicação. Enfim, basta-nos a palavra ‘comunicação’ para sabermos do que se trata. Isso ocorre porque o ato de se comunicar já incorporou procedimentos e objetos digitais, o que ainda não verificamos com tanta segurança na produção literária. Porém, não estão mais muito isolados os poetas, escritores e artistas que incorporaram as escritas digitais aos seus trabalhos, transformando-as, assim, em escrituras poéticas digitais. Partindo-se do entendimento de que o poeta atua na região limítrofe da linguagem que articula para se expressar, não é difícil imaginar que essas escritas verbivocovisuais (hipermidiáticas) passariam a figurar nas criações artísticas de quem, via de regra, está procurando as diferentes potências da linguagem. Alguma teoria já se tem esboçado para a chamada
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Entenderemos por literatura digital a criação literária inerente apenas ao computador. São criações que não podem ser observadas em outro meio ou materialidade. 1
Referimo-nos à obra O que é o virtual?, na qual Pierre Lévy teoriza, a partir das noções que Deleuze desenvolve para a relação entre ‘virtual’ e ‘atual’, sobre as principais transformações culturais pelas quais a sociedade passa, tendo em vista a ascensão dessa lógica de comunicação digital no seio da própria sociedade. 2
Embora saibamos que o conceito de hipertexto tenha sido teorizado antes do advento das escritas digitais [Cf. Palimpsestes, de Gérard Gennette (1980)], e outros teóricos que preferiram adotar o termo “intertexto”, optamos aqui pelo termo “hipertexto” de acordo com o sentido que o senso comum lhe atribuiu, após o advento do computador: textos interligados por links eletrônicos no ambiente digital. 3
No sentido bakhtiniano mesmo. 4
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literatura digital.1 Algumas delas em consonância com as teorias da comunicação ou da semiótica; outras em consonância com procedimentos automatizados de geração de significantes, caso dos portugueses Rui Torres e Pedro Barbosa e dos franceses Philippe Bootz e JeanPierre Balpe. Nota-se em comum, nesses casos citados, bem como no caso de alguns artistas brasileiros, inseridos em universidades públicas e privadas, que a teoria em torno das experiências poéticas digitais aparece à medida que objetos digitais vão sendo criados, com o propósito artístico de evocar experiências estéticas. Dito de outro modo, teoria e prática vão se desenvolvendo juntas. Outros ainda atrelam essa reflexão ao pensamento do próprio espaço virtual e o fazem acompanhados de alguma filosofia deleuzeana; parece ser o caso de quem se filia a Pierre Lévy e sua tecnofilia.2 E muitas outras são as frentes de trabalho que já se ocupam desse tipo de criação literária também na Espanha e nas Américas do Norte e do Sul. A abordagem que mais nos interessa é a que toma a criação poética digital numa espécie de fronteira (mas que une em vez de separar) entre o campo da literatura e o das artes visuais. Quando as escritas digitais começaram a despontar no trabalho de poetas e artistas, a principal forma de apresentação foi a que se optou chamar de hipertexto.3 Porém, as escritas digitais que encontramos figurando, na produção literária da contemporaneidade, são escritas hipermidiáticas (verbivocovisuais). Mais do que estabelecer nós entre diferentes textos e linguagens, princípio do hipertexto eletrônico, o que se observa na criação atual, em ambientes hipermidiáticos, é a cronotopia4 das linguagens ocorrendo simultaneamente num mesmo tempo-espaço. A palavra, o som e a imagem abrem, juntos, um campo de possibilidade estética que tende a fazer pensar de novo e com diferentes resultados certas primazias que a crítica atribuiu à literatura. A principal das primazias, com certeza,
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remete-nos à presença sine qua non da palavra, se o que está em questão é a arte literária. Colocar em xeque essa questão não significa aderir ao argumento imediatamente oposto, em que a criação literária prescinde da palavra. Preferimos procurar um ponto mais equilibrado entre essas duas frentes, pois acreditamos que, no primeiro caso, incorre-se na excessiva repetição de valores de uma crítica estabelecida dentro da lógica do meio impresso (e também da poesia oral). E, no segundo caso, equivocase por um deslumbramento pelo digital (o que também chamamos de tecnofilia) e pela falta de observância das obras literárias digitais que se vêm compondo, pois, já num primeiro olhar (e aqui estão implicadas não apenas a visão, mas também a audição e demais sentidos que, segundo uma corrente fenomenológica francesa, atuam juntos na produção de significação),5 podemos notar a palavra intervindo, ainda, nessas obras digitais. Quando afirmamos, então, que a primazia da palavra deve ser repensada, estamos muito mais nos referindo à diferente lógica à qual ela está agora submetida. Ou melhor, ao diferente espaço-tempo em que ela habita. Se sua atuação hoje convive materialmente com outras naturezas concretizadas na tela de um computador (som e imagem), qualquer emissão de valor a seu respeito (crítica) deve levar em conta seu entrelaçamento com essas diferentes naturezas. Dizendo de modo mais claro: a palavra deve ser repensada na sua relação com as técnicas que não apenas convivem com ela, mas que também a fazem aparecer. Referimo-nos ao processo de composição dessas diferentes naturezas entrelaçadas (linguagens), referimo-nos à arquitetura da obra digital. Cabe-nos perceber, nesses objetos, em que medida essa coexistência de verbo, som e imagem, arquitetada por poetas e artistas, abre-nos novas possibilidades de sensibilidade e entendimento em torno das próprias linguagens. Ou seja, até que ponto essa convivência material da palavra com o som e a imagem em movimento pode nos dizer algo de novo acerca do funcionamento, ou do estatuto,
Referimo-nos a MerleauPonty e suas teses sobre percepção. Para o filósofo francês, a construção de sentidos, artísticos ou não, se dá num corpo fenomenal (que é diferente de um corpo estesiológico). Nessa forma de entender o corpo, os sentidos não operam separadamente. 5
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Essa ideia, bem como a de escritura expandida, aparece melhor formulada na seguinte pesquisa: AZEVEDO, Wilton. Interpoesia: O início da Escritura Expandida, Université Paris 8 – Laboratoire de Paragraphe. Pós-doutorado, sob a supervisão do Prof. Dr. Philippe Bootz. Paris, 2009. 6
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da própria palavra. Bem como precisamos perceber até que ponto a palavra animada junto ao som e à imagem pode nos ensinar algo de diferente, na lógica dessas outras matrizes sígnicas (som e imagem). E mais: levando-se em conta que o que viabiliza esse convívio entre diferentes matrizes sígnicas é o aparato tecnológico digital, cabenos refletir em que medida essa tecnologia intervém na lógica de funcionamento das linguagens e até que ponto as linguagens nos revelam outro modo de conviver com as tecnologias digitais. O que notamos na ambiência digital é que o significado das palavras não cabe mais somente nelas mesmas. Assim como, matematicamente, há um lado escuro do cubo, cuja existência não é invalidada por não conseguirmos vê-lo, a palavra, no meio digital, parece evocar problema parecido. Há um significado que não mais está ligado a um signo usual ou poético, mas sim a um signo que se mostra em expansão, dilatando-se. Ele, o significado, está lá, mas só é detectado pelos seus componentes binários, que, diga-se de passagem, estão entrelaçados aos componentes binários do som, da imagem e demais acontecimentos manifestados na tela do computador.6 Entretanto, a criação poética digital não consiste, no nosso entender, em grande invenção, revolução ou algo absolutamente novo. O que acaba tornando o poema digital algo aparentemente inovador e revolucionário é a insistência, de uma certa crítica, em firmar paradigmas atrelados a uma literatura que se manifesta por meio de palavras impressas em papel, sendo que estamos falando de criações que tomam como linguagem a ser articulada aquela do meio de comunicação mais dinâmico do tempo presente, o digital. E é importante ressaltarmos ainda: mesmo na literatura impressa em papel os sons e as imagens evocadas pelas palavras estão presentes e convivendo na experiência estética da leitura. Algo que de fato vemos se modificar na apropriação que o artista faz da ambiência digital é que as diferentes linguagens não apenas estão materializadas como também estão à nossa
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disposição no imenso banco de dados que é a internet. Sendo assim, dentre outras coisas, o que cabe ao artista é selecionar e articular essas linguagens para expressar sua forma poética. Porém, dito assim dessa maneira, ao leitor deste ensaio pode passar despercebido que articular as linguagens e materialidades que já estão disponíveis em rede demanda muito trabalho de programação, edição e aprendizado de habilidades que até então não faziam parte do ofício do poeta, quais sejam, intervenção junto aos códigos de programação. E ainda é importante destacar: nem todos os softwares de edição e programação de que precisa o artista estão já à sua disposição. Não é novidade no mercado informático a aparição de programas elaborados, sobretudo, para o trabalho artístico; é o caso do Processing, por exemplo, que vimos utilizando para uma de nossas criações mais recentes, e que deve ter seu primeiro protótipo apresentado no final do corrente ano. Contudo, não queremos, com este ensaio, impor uma reflexão teórica às obras que estudamos, mas apenas desejamos perceber a crítica aparecendo, na medida em que melhor nos relacionamos com o objeto artístico. Com essa finalidade, falaremos de uma obra poética digital específica: Volta ao Fim, de Alckmar Santos e Wilton Azevedo (2011). Notar-se-á, no desenvolvimento do argumento que se segue, que a teoria acerca da escritura digital, que chamamos de escritura expandida, vai se constituindo a partir da observação muito próxima que fizemos do processo criativo de uma obra específica. Daí a ausência de remissões constantes a teóricos da literatura, dado, obviamente, que a teoria literária pouco, ou quase nada, tem se ocupado de pensar a literatura digital. Por esse motivo, uma teoria (e posteriormente uma crítica) que almeja assumir o ambiente digital como campo de reflexão, como episteme, deve partir, acreditamos, dessas experiências poéticas já desenvolvidas com as mídias digitais, para, depois, sedimentar-se junto a uma tradição teórica que não devemos, ingenuamente, ignorar, nos
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estudos literários contemporâneos. Ou seja, por mais que operadores teóricos como os de Roland Barthes (Grau-zero da escrita e Da obra ao texto), ou de Derrida (noção de “rastro”), ou de Wolfgan Iser (Ato de Leitura), nos inspirem na elaboração de um diálogo crítico com a tradição teórica literária, apostamos que, num primeiro momento, revela-se necessário nos aproximarmos mais das experiências das criações digitais e de seus procedimentos de composição do que de uma teoria que não se ocupou ainda das escrituras digitais. O diálogo, sem dúvida indispensável, com essa tradição teórica deve aguardar o momento oportuno, que as próprias obras digitais nos apontarão com sua nova episteme. Sendo assim, vamos à literatura digital.
Volta ao Fim é mais que um texto com dispositivos informacionais digitais. É uma leitura expandida que agrega e abarca tudo que uma narrativa pode conter no mundo das redes, sem esquecer que o ato da fala sempre se caracterizou, antes de tudo, pela criação de conceitos. E, pelo que nos consta, não existe conceito sem a concepção de imagem e de som. A aquisição do conhecimento pela procura disposta na rede faz desta proposta – Volta ao Fim – sua própria metáfora, uma fita de Moëbius, em que sua fita não é apenas percorrida pela formiga de Escher, mas também pela própria fita em si mesma. O tempo e o
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espaço, contínuos e entrelaçados, fazem da ida e da volta o mesmo espaço, mas tempos diferentes. Um contar que sai da voz, da música, das expressões faciais e das imagens editadas. Um narrar que não atende a espera pelo fim ou pelo início, conforme aprendemos com as sintaxes tradicionalmente fixadas pelo gesto de contar, mas que, no entanto, articula os elementos mesmos de uma história contada. No contar impresso, precisamos da gramática minimamente linear desses “eus” líricos que fixam um fato num tempo. O acontecimento narrado é substância (carne) formada de tempo e espaço, que se moldam simultaneamente e se fixam numa materialidade textual que sempre estará à disposição do leitor quando este desejar a experiência estética. Podemos recuperar a imagem oferecida por Sartre, em Qu’est ce que la Litterature?, e dizer que uma narração se constitui, inicialmente, de uma história contada e marcada materialmente como manchas negras sobre fundo branco, que demandam nossa animação para que tempo e espaço sejam postos em movimento, compondo, com isso, algum sentido; falamos isso, claro, no caso da literatura impressa (para a literatura oral, por exemplo, essa materialidade é a sonoridade, a melodia, o ritmo etc.). Esse tempo, que se fixa, junto com o espaço, na substância narrada, não se confirma em Volta ao Fim; e não se confirma na forma nem no conteúdo. Neste, não recuperamos exatamente uma volta cíclica, como quem parte do fim para ali voltar; é um não findar de começar, ou um sempre começar de terminar, que escapa à expectativa que o ato de narrar mais costumeiramente nos ensinou. Naquela (forma) não conseguimos ligar reiteradamente os tempos das palavras proferidas com o tempo das imagens editadas, que, por sua vez, não ligamos também com o tempo das palavras que aparecem na tela, ou com o tempo da música. Da mesma maneira, não conseguimos ligar reiteradamente todos esses tempos programados com o tempo da experiência inaugurada pelo leitor, o da leitura. Os significantes que vão se materializar
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diante do leitor, cada vez que o mesmo se dispuser a ver a obra, são os mesmos (tal qual se verifica na obra impressa, entretanto, com a potência do hipermídia); porém, os tempos desencontrados das linguagens que se entrelaçam (e o desencontro se dá no leitor) exigirão que o corpo onde a obra faz síntese, o leitor, espacialize o tempo a cada leitura. É como se o tempo precisasse a cada nova leitura passar por um processo de espacialização, de fixação, pois nem mesmo para os “eus” líricos do poema (verbo, som, imagem) o tempo obedece a uma gramática minimamente linear. São fluxos, são pensações (pensamentos e sensações), que não organizam tempos, mas apenas os evocam.
Se é que podemos falar em hierarquia de planos. 7
Ora ao fundo, ora à frente, imagens coletadas e editadas propõem seres e objetos em movimento, que não instauram uma relação imediatamente lógica com o que aparece em primeiro plano:7 uma face que muda incessantemente de expressão e gesto, sem corresponder, também imediatamente, às palavras proferidas pelo declamador dos versos. Uma trilha sonora, composta também a partir de softwares, vem juntar-se aos versos lidos para, juntos, darem o tom musical à obra. São, pelo menos, quatro instâncias de significações coabitando-se. E admitir que se tratam de quatro matrizes sígnicas não equivale a sustentar discursos em prol do fragmento, pois acreditamos que cada signo se dá por inteiro e não em partes, e que a significação também estará submetida a
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um fenômeno inteiro, bem como a composição das obras, pois, no código fonte (programação), o que se nota é muito mais a implicação das matrizes umas nas outras do que a fragmentação das inscrições. Mais do que isso, o que se nota é a expansão das escritas umas nas outras, das linguagens umas nas outras, do som-na-imagem-noverbo. É o que chamamos de escritura expandida.
Cada capítulo materializa um estilo próprio com essa escritura expandida, que revela não apenas um tempo em constante composição, mas também diferentes “eus” que enunciam e se anunciam nas diferentes matrizes sígnicas. Um rosto que nos fala com a voz dos olhos, com o silêncio da boca que se articula ora em gritos surdos, ora em mudez assumida. Um leitor-escritor que declama versos que não querem definir um tempo, nem mesmo um espaço, mas, quem sabe, querem apenas recompor uma experiência, que nem se sabe vivida de fato. Peças musicais sinfônicoeletrônicas que embalam (mas não se impõem como harmonia regente) o ritmo das imagens que nos remetem a performances editadas ao fundo, às vezes mapeadas à frente, sem se perder de vista algo que se pretenda bonito. Tudo isso são falas que não se erguem, mas nos atraem para esse espaço de significâncias programadas para a tela do computador. Parece natural pensarmos que os campos que se abrem com obras literárias digitais, tal qual Volta ao Fim, são os já teorizados campos do som, da imagem e/ou
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Em Palavrador (Festival de Inverno de Diamantina, 2006), por exemplo, vemos a intervenção do leitor espaço adentro, encarnado no avatar que é conduzido por Caos e Eros. Em outras obras, vemos até mesmo a demanda do corpo físico (estesiológico) do observador (Cf. quase todas as obras expostas na bienal de arte e tecnologia de 2010, em São Paulo). 8
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do verbo. Mas, se continuarmos tomando esses campos de reflexão como matrizes separadas, estaremos, por exemplo, incorrendo em experiências como a de transpor para o meio digital poemas do movimento concretista (o que, no nosso entender, diminui a própria potência que esses poemas têm no papel). Continuar tomando as matrizes sígnicas em separado é se recusar a entender a poética do campo (ambiência) onde as três linguagens manifestamente convivem. Nas tentativas que se têm feito mais frequentemente para teorizar acerca dessa poética do ambiente digital, notamos um predomínio dos argumentos que se justificam mais pelo efeito intelectual que o hipermídia causa do que pela experiência estética que esse meio também pode inaugurar. Mais uma vez, é importante deixar claro que buscamos um ponto mais equilibrado entre dois polos que tendem a formar dicotomias: nem tanto e somente a experiência intelectual, nem apenas o arrebatamento estético. Não é de hoje que esses dois fenômenos atuam juntos no reconhecimento do que seja ou não arte. Nossa ideia, então, é perceber, dentre outras coisas, como o estético e o intelectivo podem conviver de forma a não submeter em demasia um ao outro. Não é difícil encontrarmos criações artísticas digitais em que o leitor-observador é convocado a intervir fisicamente juntos aos significantes da obra.8 Essas obras interessam de maneira incontornável não apenas ao entendimento das transformações pelas quais a arte tem passado, mas, sobretudo, nos ajudam a compreender como a arte tem proposto novas formas de nos relacionarmos com o mundo e com a tecnologia digital. Essa percepção que a arte nos instiga tem nos revelado, não é de hoje, que o observador deve ter outra postura, outro comportamento em seu ato de contemplação (o mesmo se pode afirmar do leitor no ato de leitura). E aqui já estamos diante de um campo não aberto, mas em muito potencializado, pelas mídias digitais (em artes plásticas,
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Hélio Oiticica e Lygia Clark já provocavam efeitos nesse sentido com seus Parangolés e Bichos). Rearranjar o leitor é um campo aberto sobre o qual a crítica muito se debruçará ainda. Mas o que dizer, portanto, sobre obras em que o leitor não é convocado para dentro da tela como significante, caso de Volta ao Fim? O que formular sobre esses casos em que nos vemos até mesmo próximos, mas não limitados, à videoarte, na qual o signo-leitor não se materializa como significante da obra? No caso de Volta ao fim, vemos uma possível sofisticação do leitor já reconfigurado pela criação literária digital. Se antes precisávamos ser arrancados do nosso conforto contemplador para entendermos nossa outra forma de nos relacionar com o mundo (papel que as obras das Bienais e Feiras de Linguagem Eletrônica cumprem bem), hoje já podemos nos sentar novamente para contemplar uma criação artística sem, no entanto, aderirmos às balizas que as molduras, as estátuas, recitais ou saraus nos sugerem. E isso porque estamos nos sentando diante de uma mídia que já nos fez habitar as obras. Estamos diante de uma mídia que, manipulada por artistas, já nos ensinou algo sobre nossa própria condição de leitores. E sentados diante dessas escrituras expandidas, diante dessas faces sonoras, desses versos táteis e das imagens em movimentos analógico-digitais (programadas em softwares), podemos redescobrir uma beleza que não nos remeta apenas às explicações acerca do quanto a literatura e a arte nos transformam, mas que também nos proporcione encantamentos pelas cores, consistências e percepções corporais. E ressalte-se que estamos nos referindo apenas a obras que, como em Volta ao fim, circularão e serão observadas pelos espectadores no monitor de um computador. Ou seja, estamos deixando de analisar, conscientemente, uma outra lógica de fruição que essas literaturas têm manifestado: a performance de apresentação da obra em exposições, congressos e
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eventos de arte, pois, no caso específico do poema digital que trouxemos mais detalhadamente neste ensaio, bem como no caso de Palavrador, também citado, ou Atame9 e alguns outros, houve exibições coletivas, geralmente em seus lançamentos, que implicaram estruturas cênicas e aparatos técnicos que projetaram essas obras em forma de espetáculo (no sentido de ser apresentada numa sala adaptada à performance para viabilizar a fruição coletiva). Essa espetacularização (não no sentido negativo que outrora podemos ter sugerido aos tecnófilos) aproxima, evidentemente, as criações literárias a uma série de criações de artes visuais e plásticas que se têm visto em salões e exposições de algumas décadas para cá. No caso da obra Atame, por exemplo, vemos um trabalho com os arquivos de sons, imagens e textos que são operacionalizados durante a apresentação. Enquanto os vídeos e performances editados digitalmente vão sendo projetados no telão de uma sala escura, a trilha sonora e o texto poético (escrito) vão aparecendo à medida em que o autor, no comando de uma mesa de som e operação, vai articulando esses signos junto aos vídeos. No momento de lançamento da obra, as matrizes sígnicas vão sendo entrelaçadas na presença do telespectador, o que nos faz lembrar algumas performances de artes visuais presentes em eventos de artes plásticas. Ou seja, o arquivo em vídeo que o autor leva para esse tipo de apresentação é diferente daquele que circulará em DVD para a fruição de quem adquirir o poema digital. Essa mesma experiência foi feita com Volta ao fim.
Trabalho apresentado em Paris, Centre George Pompidou, em 2004. Mais detalhes em: <http:// wiltonazevedo.tumblr.com/ page/7>. 9
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Claro, não se trata de aproximarmos literatura e artes visuais por esse único viés do acontecimento artístico, pois isso escaparia ao nosso ambiente de investigação, que é o digital. Se reduzirmos essa proximidade da literatura com as artes visuais à performance de exibição, estaremos captando apenas a lógica digital funcionando como dispositivo de gerenciamento do acontecimento artístico, tarefa que as artes visuais já cumprem com mais propriedade que a literatura. Nosso interesse, portanto, para os estudos literários é perceber de que maneira essas escrituras digitais expandidas (programadas e fruídas em computador) podem nos ensinar algo sobre o fenômeno de linguagem a que chamaremos ainda de literatura. Revisitar conceitos de um campo consolidado, como o da reflexão literária, requer, dentre outras coisas, pisar em outros terrenos; aprender com outras epistemes. E o ambiente digital é, seguramente, um espaço-tempo em que os diferentes campos do conhecimento podem conviver; e não apenas em forma de hipertextos (ligados uns aos outros), mas, sobretudo, criando novos modos de significar e compreender as relações mundanas.
Referências AZEVEDO, Wilton. Atame. Paris, Centre George Pompidou, 2004. Performance. Disponível em: < h t t p : / / w i l t o n a z e v e d o . t u m b l r. c o m / p a g e / 7 > . AZEVEDO, Wilton, SANTOS, Alckmar. Volta ao Fim. Florianópolis, ABCiber, 2011. [Performance no prelo, para gravação em DVD]. BARTHES, Roland. O Grau Zero da Escrita. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. MARINHO, Francisco (coordenador). Palavrador. Diamantina, 2006. Performance -mais detalhes em <http://1maginari0. blogspot.com.br/2009/03/palavrador.html>. MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 2008.
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Intertexto, hipertexto, hipermídia, transmídia: os caminhos da tecno-arte-poesia Jorge Luiz Antonio*
Resumo: Este artigo estuda a tecno-arte-poesia, ou poesia digital, que estabelece negociações semióticas com as artes, o design e as tecnologias, sob o ponto de vista da inter e hipertextualidade, hiper e transmidialidade, com base em amostra internacional de exemplos.
Palavras-chave: Poesia Contemporânea - Literatura e Hipertextualidade - Tecno-Arte-Poesia
Abstract: This article studies techno-art-poetry or digital poetry, which establishes semeiotic negotiations of poetry with arts, design and technologies, under the viewpoint of inter and hypertextuality, hyper and transmidiality, based on an international sample of examples.
Keywords:
Contemporary Poetry Hypertextuality – Techno-Art-Poetry
–
Literature
and
Enfoques e Conceitos
Universidade de Sorocaba (UNISO); pesquisador colaborador do LabjorUNICAMP. *
Este estudo trata dos processos criativos que envolvem literatura, poesia, arte, design e tecnologias, especialmente reunidos para produzir leituras não sequenciais, não lineares, sejam elas intertextualidades, hipertextualidades, hipermidialidades, interdisciplinaridades, transdisciplinaridades, transmidialidades dos meios impressos, digitais e/ou cíbridos, bem como as interatividades possíveis entre leitor e texto, motivadas pela imaginação ou por programas computacionais, por meio dos quais o ciberleitor passa
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a ser coautor ou participa da reconstrução particular do texto. Os termos “em literatura e poesia” se referem às diferenças entre literatura e poesia, que adotamos de Pound (1995) e outros. Quatro conceitos são importantes para a compreensão da poesia digital ou tecno-arte-poesia, um tipo de poesia contemporânea que não se enquadra completamente nos cânones literários do meio impresso, pois contém elementos ligados à intertextualidade, hipertextualidade, hipermidialidade e transmidialidade. Outro aspecto, que se mostra inerente aos quatro anteriores, é a interatividade, pois se apresenta implícita na noção de leitura não linear, realizada por meio da escolha de cada leitor, com base em seu quadro de referências, ou seja, é a interação do leitor com os signos verbais e não verbais do texto. Prefixos, radicais e adjetivos englobam uma parte significativa das teorias que envolvem os processos criativos da literatura e da poesia com as artes, o design e as tecnologias: inter-, hiper-, e-, trans-; -textualidade, -midialidade e -disciplinaridade; eletrônico ou digital. Mais do que um estudo morfológico, trata-se da formação de palavras para explicar conceitos que caracterizam práticas criativas contemporâneas. Assim, temos conceitos e autores que os estudaram ou estudam: intertextualidade (KRISTEVA, 1974, 1974a), intermidialidade (HIGGINS, 1984; CLÜVER, 2006; MENEZES, 1991; KIRCHOF, 2007, 2012), interdisciplinaridade (BARTHES, 1987); hipertextualidade (NELSON, 1992; LANDOW, 2006; BOLTER, 1991; BARTHES, 1992; ROSENBERG, 1996), hipermidialidade (NELSON, 1992; LANDOW, 2006; BOLTER, 1991), transmidialidade (WIRTH, 2006; WENZ, 2004); transdisciplinaridade (PIAGET; MORIN; NICOLESCU, 1999; Lima de FREITAS). Obras fundamentais como Introdução à Semanálise (Kristeva, 1974), La révolution du langage poétique (KRISTEVA, 1974a), Palimpsestes (GENETTE, 1982) e Hypertext 3.0 (LANDOW, 2006) nos levam a apreciar melhor uma antologia como The New Media Reader
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(WARDRIP-FRUIN; MONTFORT, 2003), na qual um conjunto de textos nos oferece um panorama do desenvolvimento da teoria da cibercultura. O quadro sinótico abaixo facilita a compreensão esquemática das relações: INTER-
HIPER-
TRANS-
-TEXTUALIDADE
-MIDIALIDADE
-DISCIPLINARIDADE
DIGITAL/ELETRÔNICO INTERATIVIDADE
Surgiram teorizações que criaram prefixos como “inter”, “hiper” e “trans”, para radicais como “textualidade”, “midialidade” e “disciplinaridade”. Todos esses intercruzamentos resultam de conceitos observados em obras criativas e são aplicações de inovações tecnológicas (só não encontramos estudos sobre a hiperdisciplinaridade). Essas reflexões procuram observar os meios tridimensionais, bidimensionais (especialmente o meio impresso), os digitais e os cíbridos. Há também uma história desses radicais, prefixos e sufixos, que acompanha o surgimento de processos criativos que envolvem literatura, poesia, artes, design e tecnologias, e tem seus primórdios no final do século XIX, um primeiro momento no início do século XX, com as vanguardas, e um recrudescimento, a partir da segunda metade do século XX até os dias atuais.
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Os critérios para a leitura de uma obra de arte, e, conseqüentemente, os critérios para considerá-la a partir de um cânone, são variáveis através dos tempos: Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo, ajuntar membros de toda procedência e cobri-los de penas variegadas, de sorte que a figura, de mulher formosa em cima, acabasse num hediondo peixe preto; entrados para ver o quadro, meus amigos, vocês conteriam o riso? Creiam-me, Pisões,1 bem parecido com um quadro assim seria um livro onde se fantasiassem formas sem consistência, quais sonhos de enfermo, de maneira que o pé e a cabeça não se combinassem num ser uno (HORÁCIO, 1995, p. 55).
A obra idealizada e criticada por Horácio passou a ser um tipo de arte muitos séculos depois. É o que podemos ver com as fotocolagens de Raoul Hausmann (18861971) e Hannah Höch (1889-1978) e as fotomontagens de Jorge de Lima (1895-1953): <www.apinturaempanico. com.br>. A representação dos elementos da realidade na linguagem literária tem sido objeto de muitos estudos, dentre os quais vale destacar o seguinte: A segunda força da literatura é sua força de representação. Desde os tempos antigos até as tentativas de vanguarda, a literatura se afaina na representação de alguma coisa. O quê? Direi brutalmente: o real. O real não é representável, e é porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura (BARTHES, 1995, p. 22).
A busca de um processo de representação do real tem oferecido inúmeros exemplos para os leitores de literatura: Que o real não seja representável – mas somente demonstrável – pode ser dito de vários modos: quer o definamos, com Lacan, como o impossível, o que não
Este pequeno tratado é uma carta dirigida pelo poeta aos seus amigos, os Pisões, pai e filhos. 1
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pode ser atingido e escapa ao discurso, quer se verifique, em termos topológicos, que não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem) (BARTHES, 1995, p. 22).
Há infinitos exemplos dessas tentativas, que permitem leituras sob os mais diferentes pontos de vista: Ora, é precisamente a essa impossibilidade topológica que a literatura não quer, nunca quer render-se. Que não haja paralelismo entre o real e a linguagem, com isso os homens não se conformam, e é essa recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que produz, numa faina incessante, a literatura (BARTHES, 1995, p. 22-23).
A força de representação, ou mimese, que Barthes (1995, p. 22-23) denomina de função utópica da literatura, é o caso em que não se pode coincidir uma ordem pluridimensional com uma ordem unidimensional. A hipótese de Barthes nos conduz para uma leitura especial: Poderíamos imaginar uma história da literatura, ou, melhor, das produções de linguagem, que seria a história dos expedientes verbais, muitas vezes louquíssimos, que os homens usaram para reduzir, aprisionar, negar, ou pelo contrário assumir o que é sempre um delírio, isto é, a inadequação fundamental da linguagem ao real (BARTHES, 1995, p. 23).
A negociação semiótica da poesia com as artes, design e tecnologias representa outra maneira de dar continuidade, na história, dos expedientes não apenas verbais que os homens usaram para reduzir, aprisionar, negar, ou, pelo contrário, assumir a inadequação fundamental da linguagem ao real. Samoyault, ao refletir sobre a literatura com base na intertextualidade, também contribui para as reflexões que este estudo está desenvolvendo:
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A literatura se escreve certamente numa relação com o mundo, mas também apresenta-se numa relação consigo mesma, com sua história, a história de suas produções, a longa caminhada de suas origens. Se cada texto constrói sua própria origem (sua originalidade), inscreve-se ao mesmo tempo numa genealogia que ele pode mais ou menos explicitar. Esta compõe uma árvore com galhos numerosos, com um rizoma mais do que com uma raiz única, onde as filiações se dispersam e cujas evoluções são tanto horizontais quanto verticais (2008, p. 9).
Essa história da literatura existe e faz parte de todos os instrumentos teóricos de que se valem a história, a crítica e a teoria literária, para compreenderem as obras literárias. A própria história da tecno-arte-poesia é uma história da sua origem e de seus diálogos intersemióticos com outros textos. Sob o ponto de vista da semiótica, à história dos expedientes verbais, pode-se acrescentar a dos expedientes não verbais; ela poderia ser denominada de história das negociações da poesia com os signos verbais e não verbais e poderíamos datá-la a partir do final do século XIX, incluindo alguns precursores dos séculos anteriores. A intertextualidade, conceito que Julia Kristeva desenvolveu em artigos publicados na revista Tel Quel (números de 19662 e 19673) e, posteriormente, em livro (19694), pode ser compreendida a partir dos seguintes parágrafos: [...] O estatuto da palavra define-se, então, a) horizontalmente: a palavra no texto pertence simultaneamente ao sujeito da escritura e ao destinatário; e b) verticalmente: a palavra no texto está orientada para o corpus anterior ou sincrônico. Mas no universo discursivo do livro, o destinatário está incluído, apenas, enquanto propriamente discurso. Fundese, portanto, com aquele outro discurso (aquele outro livro), em relação ao qual o escritor escreve seu próprio texto de modo que o eixo horizontal (sujeito-destinatário)
Trata-se de “A palavra, o diálogo, o romance”, conforme Samoyault (2008, p. 15). 2
“O texto fechado”, conforme Samoyault (2008, p. 15). 3
Kristeva chega ao conceito de intertextualidade a partir da análise e da difusão da obra de Mikhail Bakhtin em França (Samoyalt, 2008, p. 16). 4
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e o eixo vertical (texto-contexto) coincidem para revelar um fato maior: a palavra (o texto) é um cruzamento de palavras (texto). Em Bakhtin é o primeiro a introduzir na teoria literária: todo texto se constrói mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar de noção de intersubjetividade, instala-se a intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla (KRISTEVA, 1974, p. 65).
Ao estabelecer eixos (horizontal e vertical), Kristeva aponta para um tipo de leitura que pode ser entendida como não linear: O significado poético remete a outros significados discursivos, de modo a serem legíveis, no enunciado poético, vários outros discursos. Cria-se, assim, em torno do significado poético, um espaço textual múltiplo, cujos elementos são suscetíveis de aplicação no texto poético concreto. Denominaremos este espaço de intertextual. Considerado na intertextualidade, o enunciado poético é um subconjunto de um conjunto maior que é o espaço dos textos aplicados em nossos conjuntos (KRISTEVA, 1974, p. 174).
O espaço textual múltiplo depende do quadro de referências de cada leitor, mas a relação entre textos representa as reflexões da década de 1960, especialmente com o desenvolvimento dos estudos semióticos em suas relações com as artes, a literatura e a poesia. Por exemplo, o comunicado “A arte como facto semiológico”, de Mukarovsky (1997, p. 11-17), importante estudo para a compreensão e delimitação da semiologia das artes, apresentado no VIIIème Congrès International de Philosophie à Praga, em 1936, vai ser publicado em livro no ano de 1966: O termo intertextualidade designa esta transposição de um (ou de vários) sistema(s) de signos em um outro, mas já que esse termo tem sido frequentemente entendido no sentido
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banal de “crítica das fontes” de um texto, preferimos a ele o de transposição, que tem a vantagem de precisar que a passagem de um sistema significante a um outro exige uma nova articulação do tético – posicionamento enunciativo e denotativo (KRISTEVA, 1974a, p 60).
Samoyault estabelece uma tipologia das práticas intertextuais (2008, p. 48-67): citação, alusão, plágio, referência; paródia e pastiche; integração5 / colagem e operações de colagem.6 Genette (1982) apresenta cinco tipos: intertextualidade, como “a presença efetiva de um texto em um outro” (1982, p. 8); paratextualidade: título, subtítulo, prefácio, posfácio etc.; metatextualidade: “uma relação de comentário que une um texto ao texto do qual ele fala” (p. 11); hipertextualidade:7 relação pela qual um texto pode derivar de um texto anterior, sob a forma, sobretudo, da paródia e do pastiche; arquitextualidade: estatuto genérico do texto. Compagnon (2007) propõe, em 1979, um trabalho sistemático sobre uma prática intertextual dominante, a citação, que se situa no cruzamento das concepções extensivas e restritas da intertextualidade. Outro exemplo crítico-criativo desse processo de citação e intertextualidade, a partir do conceito de palimpsestos, é Palimpsestos: Uma história intertextual da Literatura Portuguesa, de Francisco Maciel Silveira (1997), sob o pseudônimo de SamiR SavoN,8 que é uma história da literatura recontada na voz e estilo de quantos a escreveram. A intermidialidade de Dick Higgins (1997) foi um conceito elaborado em 1963-1964 para descrever as atividades frequentemente problemáticas e interdisciplinares que ocorriam entre gêneros que se tornaram predominantes nos anos de 1960: desenho e poesia, pintura e teatro, performance e poesia falada etc. Esses novos gêneros foram responsáveis pelo desenvolvimento de várias denominações mais adequadas, como poesia visual, arte performática, poesia sonora etc.
As operações de absorção de um texto por um outro supõem diversos fenômenos de integração e colagem da matéria emprestada (Samoyault, 2008, p. 59). 5
Nas operações decolagem, o texto principal não integra mais o intertexto, mas coloca-o ao seu lado, valorizando assim o grafmento e o heterogêneo (Samoyault, 2008, p. 63). 6
Não adotamos o conceito de Genette neste artigo. 7
Trata-se de uma escrita em espelho, que significa Novas Rimas. 8
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O autor usa a expressão “mass literacy”, o que pode ser traduzido por “letramento em massa”, ou “alfabetização em massa”. Como há o termo “literacia” (Dicionário Houaiss) em português, optamos por “literacia em massa”. 9
Estado psíquico de aguçada percepção sensorial. 10
O texto foi escrito em 1966, publicado em 1967 e republicado na rede digital em 1997. O conceito de intermedia foi elaborado nos anos de 1963-1964 e publicado, pela primeira vez, em 1965. 11
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Contudo, devido ao alastramento da literacia de massa,9 à televisão e ao rádio transistor, nossas sensibilidades mudaram. A grande complexidade deste impacto deunos uma predileção para a simplicidade, para uma arte baseada nas imagens latentes que um artista sempre faz para atingir seu objetivo. Como com os cubistas, estamos procurando uma nova maneira de olhar para as coisas, mas de uma maneira mais total, uma vez que somos mais impacientes e mais ansiosos para chegar às imagens básicas. Isso explica o impacto dos happenings, peças de evento, filmes com mídias mistas. Não perguntamos mais para falar magnificamente de levantar armas contra um mar de problemas, queremos vê-lo feito. A arte que faz isso mais diretamente é a que permite essa imediação (fronteira) com um mínimo de dispersão. A bondade sabe apenas como a amplitude do psicodélico10 significa, tem gosto e se percebe, e acelerará este processo. Minha própria conjectura é que não mudará nada, apenas intensificará uma tendência que já existe. Pelos últimos dez anos ou mais, os artistas têm mudado seus meios para adequar-se a essa situação, a tal ponto em que os meios quebraram as formas tradicionais e se tornaram meramente pontos purísticos de referência. A ideia surgiu, como se fosse por combustão espontânea através do mundo todo, que tais pontos são arbitrários e somente úteis como instrumentos críticos, dizendo que determinado trabalho é basicamente musical, mas também poético. Este é a aproximação intermidiática para enfatizar a dialética entre as mídias. Um compositor é um homem morto a menos que ele componha para todas as mídias e para seu mundo (HIGGINS, 1997)11.
No ensaio “Intermedia”, de 1965 (HIGGINS, 1984, p. 18-28), o autor propõe uma ruptura dos gêneros, ao mesmo tempo em que exemplifica e comenta seu ponto de vista: Muito do melhor trabalho que está sendo produzido hoje parece desembocar entre mídias. Isso não é um acidente. O conceito de separação entre as mídias surgiu na
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Renascença. A ideia de que uma pintura é feita de tinta sobre a tela ou que uma escultura não deveria ser pintada parece característica do tipo de pensamento social – categorizando e dividindo a sociedade entre a nobreza com suas várias subdivisões, a pequena nobreza sem títulos, artesãos, servos e trabalhadores sem terras –, que nós chamamos de concepção feudal da Grande Cadeia do Ser. A aproximação essencialmente mecanicista continuou a ser relevante ao longo das primeiras grandes revoluções industriais, recentemente concluída, e na presente era da automação, que constitui, de fato, a terceira revolução industrial. (...) Nós estamos nos aproximando do alvorecer uma sociedade sem classes, para a qual a separação em rígidas categorias é absolutamente irrelevante (HIGGINS, 1984, p. 18).
O primeiro parágrafo do ensaio “Intermedia” apresenta semelhanças conceituais com a interdisciplinaridade do ponto de vista de Barthes: Dir-se-ia com efeito que o interdisciplinar, de que se faz hoje um valor forte da investigação, se não pode realizar pelo simples confronto de saberes especiais; o interdisciplinar não é uma sinecura: ele começa efectivamente (e não pela simples emissão de um voto piedoso) quando a solidariedade das antigas disciplinas se desfaz, talvez mesmo violentamente, através dos abalos da moda, em proveito de um objecto novo, de uma linguagem nova, ambos situados fora do campo das ciências que pretendíamos tranquilamente confrontar; é precisamente este mal-estar de classificação que permite diagnosticar uma certa mutação” (BARTHES, 1987, p. 55) (...). O interdisciplinar, de que se fala muito, não consiste em confrontar disciplinas já constituídas (nenhuma delas, com efeito, consente em entregar-se). Para praticar o interdisciplinar, não basta escolher um “assunto” (um tema) e convocar à sua volta duas ou três ciências. O interdisciplinar consiste em criar um objecto novo, que não pertence a ninguém. O Texto é, creio, um desses objectos (p. 81).
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A transmidialidade ou transmidialização (WENZ, 2004; WIRTH, 2006) é a transferência do texto de um meio para outro. Wenz (2004) retomou o conceito de transmidialização que Bruhn (2001) usou para a música, o adaptou para o texto digital, para chegar à seguinte classificação: integração (conceito de intermídia de Higgins), inflexão (criação de textos espaciais e por meio de programas, cujo exemplo, é a linguagem VRML), adaptação ou texto como modelo de base de dados, e interpretação de um papel (a passagem de uma novela impressa para um jogo de computador). Para cada tipologia, Wenz apresentou vários exemplos. A intertextualidade pensada por Kristeva sai das fronteiras do signo linguístico para abranger os signos verbais e não verbais, numa rede de intercomunicações e possibilidades ilimitadas. O texto dentro do texto se expande para os processos de hipertextualidade, quando os programas de hipertexto começam a ser usados a partir 1967, com o HES (Hypertex Editing System). Os conceitos de hipertexto e de hipermídia, de 1965, estudados por Ted Nelson, e o surgimento do primeiro programa de hipertexto, o HES (Hypertext Editing System), de Andy van Dam, em 1967, representam um segundo momento dos meios digitais como proposta para uma nova escrita. A intermidialidade de Higgins e a transmidialidade de Wenz e Wirth continuam válidas para as experimentações poéticas até os dias atuais. O conceito de hipertexto permitiu a criação de programas de computação e estabeleceu uma linguagem com a qual pudemos, podemos e poderemos criar e produzir outros significados, por meio de um recurso que já existia, mas que precisou de um programa de computador para se tornar mais eficaz: a possibilidade da leitura não linear, que permitiu a produção de novos sentidos. As escolhas das lexias – unidades mínimas de significação para a Linguística (DUBOIS, 1993, p. 361) e unidades de leitura para Barthes (1992, p. 47), ou um bloco de textos e as ligações eletrônicas que os unem,
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numa releitura de Landow (2006, p. 3) – se tornam, na maior parte das vezes, as opções dos ciberleitores. O termo hipermídia é um aportuguesamento de hypermedia e é considerado como um sinônimo de hipertexto, embora haja algumas diferenças apontadas por quem criou ambos os termos em 1965: complexos de ramificações de gráficos, animações e som interativos (hipermídia) e um texto ramificado que permite respostas ou reações (hipertexto) (NELSON, 1992, n.p12). Hipertextualidade e hipermidialidade são termos cuja diferenciação entre ambas se baseia nos mesmos conceitos apresentados por Ted Nelson: se hipertexto é uma “escrita não sequencial - texto que se ramifica e permite escolhas ao leitor, que é melhor lido numa tela interativa (Nelson, 1992, p. 0/2)”, ao termo hipermídia pode se acrescentar que o texto tem mais componentes, além das palavras: grafismos, imagens animadas e/ou estáticas e sons. Hipertexto e hipermídia, como programas computacionais ou como linguagem, surgem quase que simultaneamente e são considerados como sinônimos por muitos autores. Uma história sucinta do conceito de hipertexto começa com os seguintes precursores: Walter Benjamin (1892-1940), em dois textos de 1926, reunidos em Rua de mão única, de 1928, comenta o uso do fichário, cartoteca ou cartografia pelos professores e pesquisadores e lhe atribui efeitos estéticos e manipulações e leituras não lineares; Paul Otlet (1866-1940) cria, por meio de filmes, o seu Traité de documentation: le livre pur le livre: theorie e pratique, que apresenta um sistema hipertextual em rede, à semelhança da futura rede digital; Vannevar Bush (18901974) com seu artigo “As We May Think”, idealizado em 1932 e 1933, escrito em 1939,13 e publicado em 1945, apresenta o projeto de uma máquina denominada de Memex (Memory Extender), muito semelhante ao sistema de arquivo da rede digital; Ted Nelson cria o Projeto Xanadu, em 1960, e cria o conceito e termo “hipertexto”, em 1965. O primeiro programa de hipertexto, HES
O livro contém 20 páginas não numeradas, incluindo a folha de rosto. O trecho está citado na página que foi contada como sendo 19, cujo título é: Erratum; And a Note on the Term “Interactive Multimedia”. 12
Conforme Nielsen (1995, p.33), Vannevar Bush desenvolveu algumas ideias para o Memex em 1932 e 1933 e escreveu um rascunho do texto em 1939. 13
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(Hypertext Editing System), de Andy van Dam, na Brown University (EUA) é de 1967. A partir dos anos 1980, novos programas vão sendo criados constantemente. A rede digital – World Wide Web, WWW, ou Web – foi criada por um grupo de pesquisadores do CERN (Centre Européen pour Recherche Nucleaire), da Suíça, chefiado por Tim-Berners Lee e Robert Cailliau, em 1989. A pesquisa foi baseada na contribuição da cultura dos hackers da década de 70 e parcialmente no trabalho de Ted Nelson, em Computer Lib, de 1974, que imaginou um novo sistema de organizar informações e o denominou de hipertexto, em 1965. A equipe de pesquisadores criou um formato para os documentos de hipertexto, que foi denominado de HTML, adaptou ao protocolo TCP/ IP, inventado em 1974, ao protocolo HTTP, e criou um formato padronizado de endereços, o URL. O software WWW foi distribuído gratuitamente pela Internet. Em 1993, Marc Andreessen criou o navegador Mosaic, que permitiu ver texto e imagens e ouvir sons na rede, que foi distribuído gratuitamente na web do NCSA (National Center for Supercomputer Applications) da Universidade de Illinois. Em 1994, Jim Clark, da empresa Silicon Graphics, fundou, com Marc Andreesen, a Netscape, que produziu e comercializou o Netscape Navigator. Parente afirma que o [...] hipertexto vai favorecer a intertextualidade em todos os seus níveis. O estruturalismo e o pós-estruturalismo reúnem, sob o conceito genérico de intertextualidade, uma série de noções distintas – dialogismo, desconstrução, obra aberta, rizoma - que nada mais são do que um processo de abertura do texto através da qual este se dá a ler como uma rede de interconexões. A ideia de geral é a de que o texto não tem um sentido que preexistiria à sua leitura. Pela intertextualidade, podemos dizer que é a leitura que constrói o texto. Na verdade, a intertextualidade constitui uma forma de pensamento em rede que se contrapõe à ideologia de uma leitura passiva, guiada pela ordem dos discursos (PARENTE, 1999, p. 87).
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A inclusão de signos não verbais (imagens, sons, animações) da hipermidialidade nos coloca frente aos processos criativos vinculados à multimidialidade avant la lettre da ópera de Wagner (1813-1883), explicitada como arte total ou integração das artes, em 1849 (PACKER; JORDAN, 2000). O conceito de “lexia” deixa de ser um instrumental teórico para a compreensão do texto impresso e pode também auxiliar na compreensão do hipertexto e da hipermídia dos meios digitais: [...] estrelar o texto, separando, como faria um pequeno sismo, os blocos de significação cuja leitura capta apenas a superfície lisa, imperceptivelmente soldada pelo fluxo das frases, o discurso fluente da narração, a grande naturalidade da linguagem corrente. O significante de apoio será recortado em uma seqüência de curtos fragmentos contíguos, que aqui chamaremos de lexias, já que são unidades de leitura (BARTHES, 1992, p. 47).
As passagens da poesia do meio impresso para o meio digital continuam a ser temas frequentes de estudos tecno/ciber/culturais e ciber/literários, e são válidos, pois cada teórico encontra novos enfoques a partir do seu conhecimento especializado, daí surgindo outros limites, fronteiras, delimitações temáticas, datas, processos criativos, movimentos poéticos esquecidos das histórias literárias, poetas não incluídos nos cânones literários, obras de tiragem limitada e esquecidas da crítica literária etc. Ao considerar como passagem a presença da poesia em vários meios (oral, bidimensional ou impresso, tridimensional ou físico e digital ou simulado), vale transcrever a afirmação de E. M. de Melo, ao se referir à videopoesia: A poesia está sempre no limite das coisas. No limite do que pode ser dito, do que pode ser escrito, do que
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pode ser visto e até do que pode ser pensado, sentido e compreendido. Estar no limite significa muitas vezes, para o poeta, estar para lá do que estamos preparados para aceitar como possível. A tarefa de quebrar essas fronteiras tem estado predominantemente nas mãos dos cientistas, mas também dos poetas que apropriando-se de conceitos científicos e de produtos tecnológicos, encontram neles os mais excitantes desafios para si próprios e como inventores e produtores de coisas belas destinadas à fruição artística (CASTRO, 2008, p. 119).
Temos, em épocas anteriores, os caligramas, também denominados de carmen figuratum, pattern poem, Bildergedich, Figure Poem ou poema figurativo. A Poesia Concreta apresentou inovações significativas desse tipo de poesia. A Poesia Experimental Portuguesa, iniciada em 1960, ampliou o conceito para variantes como “visopoema”, “audiovisopoema”, “poema fílmico”, “kinetofonia” etc. Também existe a ekphrasis, que é uma descrição poética de obras de arte, pessoas ou lugares. 14
Estar no limite significa que temos algo antes e algo depois e que essas fronteiras são tênues. Esse constante “estar no limite” também sugere que ocorre uma passagem, mesmo que isso não signifique ficar totalmente de um lado ou de outro. Da poesia oral à poesia impressa e desta para a poesia digital, há um período significativo de negociações semióticas com as artes e com o design, no qual surgem os poemas-cartazes14 e os poemas visuais, que são expostos como se fossem obras de arte; na confluência do uso dos objetos industriais e dos conceitos de escultura e arquitetura, surgem as instalações poéticas; na confluência das artes sonoras e cênicas, aparecem as poesias fonéticas e sonoras, as poesias vivas ou performances poéticas; com o uso de algumas tecnologias da comunicação (tipografia, máquina de escrever, fotografia, cinema, rádio, televisão), também ocorrem algumas interferências poéticas; mas isso não é o objeto de estudo deste artigo. O desenvolvimento das tecnologias computacionais, desde os fins dos anos de 1930-1940, até os dias atuais, essa função utópica incorpora elementos representacionais por intermédio da simulação que a informática vem oferecendo, buscando criar uma realidade virtual. É nesse universo conceitual que se faz necessário falar de um tipo de processo criativo que sempre se apresenta nos limites da poesia, das artes, do design, das ciências
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e das tecnologias. Devido ao seu caráter interdisciplinar, ou mesmo transdisciplinar, ficou conhecido como ciberpoesia, poesia digital, escritura expandida, ou tecnoarte-poesia. Surgiu o mundo cíbrido e, com eles, as obras cíbridas. Eis alguns exemplos na área da tecno-arte-poesia, que comentaremos a seguir.
Exemplos comentados A leitura não linear acompanha a escolha do leitor e foi, ao longo da história, facilitada pela tecnologia disponível de cada época: desde o olhar seletivo do leitor, que busca o que se mostra mais representativo no seu quadro de referências, houve as iluminuras medievais, as anotações dos copistas à margem do texto, a máquina de leitura idealizada pelo italiano Agostino Ramelli em 1598 etc., até o surgimento dos programas de hipertexto em 1967, que vêm sendo desenvolvidos até os dias de hoje. De maneiras diversas, a literatura e a poesia vêm fazendo negociações semióticas com essas tecnologias, ao longo do surgimento da tecnocultura ou cibercultura. Muitos exemplos significativos fazem parte de várias antologias da poesia contemporânea, como é o caso de “Pequena compilação de poemas experimentais” (CASTRO, 1965, p. 107-110; I-LIII), La escritura em libertad: Antología de poesía experimental (MILLÁN; García SÁNCHEZ, 2005) etc. A maior parte dos estudiosos costuma situar cronologicamente a amostragem para análise a partir de Un Coup de Dés, de Stephane Mallarmé, 1897, passando pelas vanguardas (Futurismo, Expressionismo, Dadaísmo, Surrealismo etc.) e detendo-se mais nas produções poéticas da segunda metade do século XX até os dias atuais. Outros autores ampliam esse universo, incluindo poemas do século III a. C., como os de Símias de Rodes, e apresentam exemplos em vários épocas e países.
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Os poemas de Zang Tumb Tuum, de Marinetti, 1914, são compostos de palavras soltas e com variados tamanhos de fontes, que nos convidam a juntá-las à nossa maneira, na ordem que nos parecer válida (podemos folhear o livro aleatoriamente), e, dessa maneira, produzir significados. O processo de leitura se assemelha a uma estrutura hipertextual. Guillaume Apollinaire (1880-1918) é um dos poetas que organizam as palavras de modo a produzir imagens, como é o caso de “La colombe poignardée et le jet d´eau” (fig. 1). Na conferência “O Espírito e os poetas” (2002, p. 155-166), proferida em 1917, ele fala sobre os aspectos formais da palavra na poesia: Os artifícios tipográficos levados muito longe, com uma grande audácia, tiveram a vantagem de fazer nascer um lirismo visual que era quase desconhecido antes de nossa época. Estes artifícios podem ir muito longe ainda e consumar a síntese das artes, da música, da pintura, da literatura (APOLLINAIRE, 2002, p. 156).
Apollinaire publicou, em 1913, Pintores cubistas (1997). 15
Os artifícios tipográficos apontados por Apollinaire se tornam imagens em seu Calligrammes, de 1918. O poeta, que fez uma das primeiras apreciações críticas da pintura cubista,15 decompõe o verso e o modula em imagens, produzindo também sequências sonoras a cada verso que se torna um “traço” do seu “desenho”: “douces figures poignardées”, “chères levres fléuries” etc. Cent milles milliards de poémes, de Raymond Queneau, 1961, contém 10 sonetos de 14 versos cada um. Cada verso está impresso numa tira de papel. O leitor pode escolher diferentes tiras e combiná-las. Esse processo de permutação e combinação das tiras permite, teoricamente, a elaboração de 100 trilhões de poemas. É um dos exemplos dos processos matemáticos aplicados à literatura e à poesia pelo OULIPO (Ouvroir de Littérature Potentielle). A escolha do leitor por um conjunto de tiras de papel em determinada ordem é um
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processo interativo, de escolha sequencial de versos, que se assemelha ao que atualmente podemos fazer, por intermédio dos programas computacionais. Anos depois, foram feitos inúmeros programas, de modo a nos permitir experimentar essas tiras de papel por processos digitais interativos e hipertextuais. Objecto Poemático de Efeito Progressivo, de E. M. de Melo e Castro, 1962, é formado por nove tiras de papel em cores verde claro e branco, que se alternam e aumentam de tamanho (a primeira mede 2cm X 20cm e a ultima tem 21,5 cm X 20 cm). O efeito progressivo pode ser compreendido nos diferentes tamanhos das tiras. Cada tira mostra um poema com poucas palavras. O leitor necessita levantar cada tira para descobrir outros signos (na maioria, compostos de palavras e símbolos de pontuação) e ir construindo significados a partir do conjunto de tiras que escolheu. Colidouescapo (2006), de Augusto de Campos, cuja primeira edição foi em 1971, é um livro de poesia que precisa ser lido com a interação do leitor. Ele é composto de papéis de pequena dimensão (12,5 cm X 13cm), dobrados. Na dobra de cada página, no meio de cada canto esquerdo, há um determinado número de letras que pode ser combinada com outro número de letras de outra dobra. Trata-se de uma leitura à maneira hipertextual, pois o leitor pode escolher a ordem que lhe interessar, numa espécie de jogo de construção de significados. Infreucombia, de Bern Porter (1989), collage dadaísta, ainda em uso até hoje, à semelhança do cut-up method de Brian Gysin, cuja fonte são ilustrações de revista, especialmente de produtos industriais, torna-se um intertexto (apropriação de textos existentes anteriormente) e um hipertexto (podemos ler os fragmentos na ordem que escolhermos para a produção de significado, à semelhança da montagem de um quebra-cabeça). Reality Dreams: An Autobiographical Journal, de Joel Weishaus, de 1992-1995 - <www.cddc.vt.edu/host/ weishaus/cont-r.htm> - oferece, de início, uma aparente
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contradição para uma estrutura hipertextual, oferecendo dezesseis opções numeradas, mas, em cada uma delas, oferece um percurso não linear por meio de palavras em cores, as quais podem ser escolhidas de acordo com o interesse de cada ciberleitor. Joel denomina de digital literary art suas experiências criativas, que mesclam poesia e prosa, sempre acrescentando referenciação bibliográfica vasta, à semelhança de estudos universitários. Magnetic Poetry, de Dave Kapell (1993), é uma caixa contendo ímãs magnéticos com palavras em cada um deles. Foi pensado inicialmente para compor letras de músicas. No formato de um livro objeto, cada ímã pode ser organizado e fixado na porta de uma geladeira ou de qualquer objeto metálico. Há também uma versão digital: < http://play.magpogames.comcreate.cfmk=1 >. Ladislao Pablo Györi (1995) - http://lpgyori.50g. com/ - utiliza o computador, a teoria da informação e o cálculo da probabilidade com o fim de modificar a sintaxe usual para postular a não linearidade como elemento composicional. Essa experiência poética, que ele denomina de poesia virtual ou vpoesia, é a produção de construções virtuais em 3D ou poemas visuais 3D com alta entropia e conteúdo visual. Os critérios para esses poemas virtuais ou vpoemas baseiam-se em [...] entidades digitais interativas, capazes de: (i) integrarem-se a ou bem ser geradas dentro de um mundo virtual (aqui denominado de DPV ou “domínio de poesia virtual”), a partir de programas ou rotinas (de desenvolvimento de aplicações RV e exploração em tempo real) que lhes conferem diversos modos de manipulação, navegação, comportamento e propriedades alternativas (ante restrições “ambientais” e tipos de interação), evolução, emissão sonora, transformação animada, etc.; (ii) ser experimentadas por meio de interfaces de imersão parcial ou total (ao ser “atravessáveis” ou “sobrevoáveis”); (iii) assumir uma dimensão estética (de acordo com o conceito de informação - semiótico e entrópico), não
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reduzindo-se a um simples fenômeno de comunicação (como mero fluxo de dados) e (iv) manterem-se definidas em torno de uma estrutura hipertextual (circulação de informação digital aberta e multíplice), porém sobretudo envolvendo hiperdiscursos (caracterizados por uma não linearidade semântica forte) (GYÖRI, 1996, p. 162).
A poesia virtual conceituada por Györi só existe no espaço eletrônico e nas redes de computadores, é interativa, animada, hiperligada e navegacional. “To Find the White Cat in the Snow” - <www.cddc. vt.edu/journals/newriver/herrstrom/hypercat/maincat. html> -16 de David Herrstrom, de 1996, é um poema hipertextual, cuja primeira página é a seguinte: TO FIND THE WHITE CAT IN THE SNOW Elements of the Search Sortilege on the eve before is useless: the real and the sidereal are self evident like songs & riddles: What is outside stone, inside light, joined by water & a circle of breath?17
Herrstrom alia o significado do texto à procura hipertextual, oferecendo cinco signos verbais: “sortilege”, “stone”, “ligth”, “water” and “breath”. Cada signo é uma rota para outro poema, uma possível busca ao leitoroperador. Uma rota que é um convite e um desafio. O título já é outro desafio ao leitor: encontrar um gato branco na neve. Click Poetry, de David Knoebels (EUA, 1996) <http://home.ptd.net/~clkpoet/> - é um livro digital de poesia hipermídia, mesmo com a aparência de um livro impresso e se caracteriza a partir do título sugestivo: uma poesia-clique ou poesia-do-clique, elemento bastante significativo da interface da cibercultura. Por ser um livro eletrônico composto de poucas palavras, pede a interação do leitor: ele lê a primeira página, clica nas palavras lidas e lê outras, e, pouco depois, ouve um terceiro verso.
Esse poema foi criado em 1979 e experimentado em várias maneiras no papel; insatisfeito com o resultado, Herrstrom fez performances orais, nos anos 80, a quatro vozes. Nos anos 90 ele conheceu o hipertexto e construiu a versão hipertextual em 1996. 16
Tradução nossa: Como encontrar um gato branco na neve / Elementos da busca / Sortilégio na noite anterior é inútil: o real / E o sideral são evidentes como os sons e enigmas: / O que está além da pedra, dentro da luz, / unido pela água e o círculo de respiração? 17
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Ao tratar de clip-poemas digitais, de 1997 - http:// www2.uol.com.br/augustodecampos/clippoemas.htm -, Augusto de Campos relata uma de suas experiências nos meios digitais: A possibilidade de dar movimento e som à composição poética, em termos de animação digital, vem repotencializar as propostas da vanguarda dos anos 50, VERBIVOCOVISUAL era, desde o início, o projeto da poesia concreta, que agora explode para não sei onde, bomba de efeito retardado, no horizonte das novas tecnologias. Desde que, no início da década de 90, pude pôr a mão num computador pessoal, enfatizando a materialidade das palavras e suas inter-relações com os signos não-verbais, tinham tudo a ver com o computador. As primeiras animações emergiram das virtualidades gráficas e fônicas de poemas pré-existentes. Outras já foram sugeridas pelo próprio veículo e pelos múltiplos recursos de programas como Macromedia Director e o Morph. Os clip-poemas são o produto de dois anos de experiências entre muitos tateios, curiosidades e descobertas. Para orientação do usuário, decidi dividir as animações em três grupos, distinguindo as interativas, que denominei interpoemas, das demais, animogramas, e dos morfogramas, que constituem uma categoria específica. Que o centenário do Lance de Dados me sirva de totem nessa nova viagem ao desconhecido, e as palavras de Mallarmé, ainda uma vez, de lema: “Sem presumir do futuro o que sairá daqui: NADA OU QUASE UMA ARTE” (CAMPOS, 1997).
Antilogia Laboríntica (1997) - <www.refazenda.com/ aleer/> -, de André Vallias, é denominado pelo autor de poema diagramático, mas pode ser visto como um poema hipertextual. A partir das letras tridimensionais “ALEER”, cada leitor-operador pode fazer o percurso de sentido que quiser: no caminho, encontrará poemas, trechos de enciclopédia, conceitos e imagens. Kinopoems, de Sylvio Back (2006) - http://www.
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cronopios.com.br/pocketbooks/kinopoems/ - é uma obra que foi inicialmente composta de poemas-roteiros, que depois foram trabalhados pelo artista digital Pipol que, com o auxílio do programa Flash, transformou-o num livro digital que traz muitas semelhanças com o livro impresso, pois é possível “folheá-lo”, por meio de cliques, como se fossem folhas de papel. Em se tratando de um livro eletrônico, existe a imagem de um projetor em movimento em dois momentos: um, já com o filme “rodando” (o da capa e repetido na página 16), e outro, projetando o “start”, aquela ponta com números de um a cinco que abre todo rolo de filme (página 32). Também existe uma imagem em movimento de fotogramas pretos riscados (pág.20), abrindo o “poema-roteiro” sobre Cruz e Sousa (BACK, 2008a). Nóisgrande Revista Digital-Objeto, cujo lançamento ocorreu em 7 de abril de 2006, na Casa das Rosas, em São Paulo - <http://www.fabiofon.com/noisgrande> -, é uma revista que reúne, de forma híbrida, revista literária, cdrom e objeto de arte. Trata-se de uma “noz” produzida em resina poliéster transparente que possui em seu interior um cd-rom com trabalhos realizados por dez autores. Foram produzidas apenas setenta unidades, sendo que cada uma será assinada e numerada pelo organizador, Fábio Oliveira Nunes. A obra, primeiramente, dialoga com as conquistas do grupo Noigandres, que, a partir dos anos 50, foi reconhecido por sua produção em poesia concreta – de onde se inspira, também, o próprio nome dessa publicação. Os participantes são: Fábio Oliveira Nunes (concepção), Omar Khouri, Paulo Miranda, Daniele Gomes, Diniz Gonçalves Júnior, Edgar Franco, Josiel Vieira, Letícia Tonon, Peter de Brito, Vivian Puxian. Nóisgrande é um exemplo de fusão dos meios e das artes, portanto, uma obra cíbrida: um objeto de resina poliéster no formato de uma noz, uma parte transparente e outra opaca, separada ao meio por velcroG. É uma obra
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de arte que provoca estranhamento e pede interação. Ao abrir a noz de resina poliéster transparente, encontramos um mini cd-rom em uma capa de plástico. O espectadoroperador-leitor sai do meio físico e precisa ingressar no meio eletrônico, se quiser saber o conteúdo, e, para isso, necessita de um computador. O conteúdo da obra é linguagem digital, homenagem a Pound e outros poetas modernistas. Um livro em uma caixa, que oferece ao leitor a possibilidade de escolher um dos quatro títulos sugeridos pelo autor, composto de folhas soltas ou em pequenos cadernos, sem numeração ou ordem, que pode ser lida da maneira que o leitor escolher. Assim é Aquí debería ir el título18 / La poesía en caja / Tipoemaca / Tipostales tales tipos / Bonus track tipografía, poemas & polacos (2008), de Gustavo Wojciechowski (Maca). A poesia se constrói por imagens, poucas palavras, por cores como preto, vermelho e branco, mapas, recursos do design gráfico, fotografias, informações sobre famílias tipográficas. Não há limites cronológicos, tipológicos e temáticos para as possibilidades de exemplificação. Enquanto este artigo está sendo elaborado, muitos poetas estão criando novos exemplos ou publicando o resultado de seus processos criativos. Tudo está em processo e em progresso constantes. Agradeço a todos os poetas e teóricos que estão citados neste artigo, pois, sem eles, a abordagem teórica não seria exemplificada.
Referências
A partir de Aquí debería ir el título, o autor oferece oportunidades de escolha ao leitor. 18
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A aventura da palavra na realidade eletrônica Lilia Silvestre Chaves*
Resumo: Em uma época de simultaneidade como a nossa, temos ao alcance a literatura de todos os tempos, e o texto manuscrito, o impresso e o eletrônico coexistem. Com a hipertextualidade eletrônica, surge uma nova maneira de comunicação com o texto e, mais do que nunca, se fala em leitura ativa. Neste trabalho, depois de um rápido olhar para o passado, para a Galáxia de Gutenberg, miramos o futuro, e, para traçar um paralelo entre a cibernética e a literatura, seguimos as “propostas para o próximo milênio”, de Calvino. Enfim, procuramos fazer uma breve reflexão sobre a atuação do autor/ leitor, e a possibilidade de uma leitura crítica e criadora dos textos eletrônicos (literários ou não). Ausência de fronteiras, fusão do oral e do escrito, convergência dos papéis de leitor, autor e crítico, aceleração, fragmentação e multilinearidade, virtualização do real e realização do virtual, assim se processa o ler e o escrever na era da Internet.
Palavras-chave:
hipertextualidade,
leitura,
escrita,
literatura, Internet.
Abstract: In the era permeated by the simultaneity in which
Universidade Federal do Pará (UFPA). *
we live in, literature of all ages is at the reach of our hands and hand written, printed and electronic texts coexist. Within the electronic hypertextuality, a new way of interacting with the text appears and, more than ever before, there is the implementation of an active reading process. In this study, after a brief overview of the past, towards Gutenberg Galaxy, we aim at the future, following Calvino´s “proposals for the next millennium” in order to build a connection between cybernetics and literature. Finally, we reflect upon the work of the author/ reader and the possibility of the emergence of a critical reading
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which creates electronic texts (literary or not). The process of reading and writing in the age of the internet develops in an environment that comprises the absence of borders; the fusion of oral and written language; the convergence of the roles of reader, author and critic; acceleration, fragmentation and multilinearity; virtualization of the real and actualization of the virtual.
Keywords: hypertextuality, reading, writing, literature, Internet.
Si ce sont les plumes qui font le plumage, ce n’est pas la colle qui fait le collage. Max Ernst Lost Desde a última década do século XX, testemunhamos o surgimento e a evolução de um novo universo, criado a partir do nada e situado em lugar nenhum, o ciberespaço. Vivemos, então, em uma nova era – a era da Internet –, em que o espaço cibernético é uma versão digital do nosso mundo e soma-se a ele, aumentando o espaço que temos para viver e interferindo no tempo nosso de cada vida e na nossa própria noção de identidade. Encontramos morada em um novo além – um entre-lugar ou espaço intermédio –, segundo o antropólogo indiano Homi Bhabha (1998). Para ele, colocar a questão da cultura na esfera do além é o tropo dos nossos tempos. Residir no além é ser parte de um tempo revisionário, um retorno ao passado e ao presente “para redescrever nossa contemporaneidade cultural, e tocar o futuro em seu lado de cá. Então, o intermédio ‘além’ torna-se um espaço de intervenção no aqui e no agora” (Bhabha, 1998, p. 27): a Internet é esse lugar além. Pensando nesse universo virtual, lembrei-me daquela série de televisão – Lost –, na qual, depois de um acidente de avião, os sobreviventes ficam exilados em uma ilha situada em nenhum lugar. Uma ilha que parece ter vida
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própria, onde os protagonistas se encontram consigo mesmos, revisitam o passado, são visitados por seus próprios fantasmas e, fora do contexto em que viviam, são obrigados a reaprender a viver naquele lugar totalmente novo para eles, o que os obriga a repensar suas vidas. Acabam, na verdade, por se reinventar e, de acordo com sua personalidade e a lembrança de um passado, revelam o que têm de melhor ou de pior.1 Como os personagens da série, ao entrarmos na virtualidade do ciberespaço, precisamos aprender a procurar e a escolher nossos rumos, e, de acordo com o ambiente visitado, podemos experimentar a tentação de reinventar ou mesmo de revelar o que de mais profundo existe em nossa alma, ou, em outras palavras, parodiando um poeta do século XIX, a tentação de mettre notre coeur à nu, desnudar nosso coração. Embrenhar-se nas histórias contadas em livros ou filmes ou perder-se nos abismos dos portais que se abrem na tela de um computador conectado à Internet – apesar de se estar concretamente confortável na segurança das poltronas – não deixa de ser uma grande aventura. Vejamos o significado dessa palavra (posso procurar nas páginas do dicionário ou simplesmente abrir o Houaiss eletrônico instalado na máquina):
A série Lost foi criada por Jeffrey Lieber, J. J. Abrams e Damon Lindelof e teve seis temporadas, de 2004 a 2010. Misturando o sobrenatural à science fiction, Lost conta o drama de sobreviventes de um desastre de avião. A história passa-se em uma ilha tropical misteriosa, com cenas em outros lugares da vida de cada um dos personagens. 1
aventura – s.f. [Do lat. adventura, ‘coisas que estão por vir’.] 1 circunstância ou lance acidental, inesperado; peripécia, incidente, Ex.: as a[venturas] de um andarilho. 2 empresa de desfecho incerto, que incorre em risco, em perigo. Ex.: percorrer as montanhas do Nepal foi uma grande a[ventura]. 3 conjunto de fatores que determinam um acontecimento ou um fim qualquer; contingência, eventualidade. Ex.: são a[venturas] da sorte 4 relacionamento amoroso passageiro.
Todas as acepções da palavra “aventura” que colei
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podem, de uma forma ou de outra, estar ligadas ao percurso pelos hipertextos (talvez eu devesse dizer hipermídia) do ciberespaço. A expressão usada por Pascal2 para o texto impresso define muito bem o hipertexto – mot lancé à l’aventure [palavra lançada à aventura] – e, quando a colamos aqui, neste outro contexto, pretendemos mostrar a necessidade atual de embarcar junto com a palavra, na aventura do leitor-escritor diante da multiplicidade de percursos possíveis e na confluência da leitura com a escrita. No início da aventura virtual, quando ligamos o computador à tomada e acionamos o botão da partida, parecem sempre longos os segundos que as imagens levam para começar a aparecer na tela. Aqueles que já experimentaram a sensação da navegação on-line sempre sentem certa ansiedade ao fazer a conexão com a Internet: a mesma ansiedade que antecede as viagens e que antecede a leitura de um livro. Depois, tomam o timão e o leme e, com o mouse em punho, lançam-se nesse mundo flutuante, que sempre oferece novos e misteriosos caminhos, novos e labirínticos textos. A metáfora da viagem, na Internet, não foi criada ao acaso. A palavra grega kubernétikê, que inspirou cybernetics (introduzida no inglês em 1948,3 e depois aceita por todas as línguas de cultura), significa ‘arte de pilotar, arte de governar’. Seguindo o vocabulário da navegação, a língua portuguesa (como todas as outras) também criou seus neologismos: ciberespaço, cibernauta, cibercafé, ciberpirata, cibernamoro, cibersexo, ciberliteratura, ciberpoesia. Ciber, o prefixo, é mais que piloto, é aquele que governa a direção do vento e, mais ainda, aquele que é o próprio vento (pensemos em naves à vela) – no que diz respeito à literatura, aquele que escolhe a leitura, sua rota, sua interpretação. Nem sempre o itinerário já está definido, o navegante da Internet (o internauta, de Internet + nauta – marujo, “usuário interativo da rede internacional Internet”) pode seguir muito mais direções do que as apontadas pela rosa dos ventos. Isso porque a
É Alckmar Luiz dos Santos (199-) que utiliza essa expressão de Pascal para mostrar que, no que concerne ao hipertexto, “há uma indeterminação ainda maior do eventual percurso exegético que se queira seguir, devido principalmente à confluência das instâncias de produção e interpretação”. 2
Pelo matemático norteamericano Norbert Wiener (1894-1964). Cibernética: ciência que tem por objeto o estudo comparativo dos sistemas e mecanismos de controle automático, regulação e comunicação nos seres vivos e nas máquinas. 3
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trama dos caminhos virtuais é tecida em forma reticular, em forma de teia, a larga, imensa teia do universo. O Word Wide Web, ou simplesmente Web, é um sistema hipertextual público. Aberto a todos. A Internet é uma rede interligada aos quatro cantos do mundo. Esses “quatro” cantos do mundo passam a acessar, no domínio virtual, infinitos cantos do mundo digital. Esse espaço sem fronteiras existe virtualmente para ser descoberto e explorado e, na aventura da palavra, constitui-se de possibilidades. O possível, para o filósofo francês Pierre Lévy (1995), que por sua vez cita Deleuze, é aquilo que existe em potência, exatamente igual ao real, só lhe falta a existência. A palavra “virtual” vem do latim medieval virtualis, derivado de virtus, potência, força. O conceito de virtualidade é muito antigo. Na filosofia escolástica, é virtual o que existe em potência e não em ato. Como o que é virtual tende a se atualizar, para a filosofia, o virtual não se opõe ao real, mas ao atual: virtualidade e atualidade são somente duas maneiras de ser diferentes. Ainda segundo Lévy (1995), o virtual é um modo de ser fecundo e potente, que alimenta o jogo nos processos de criação, abre futuros, cava poços de sentido nos terrenos planos da presença física imediata. O real, o possível, o atual e o virtual são complementares. Além disso, a virtualização é uma dessubstancialização que se inclina para a desterritorialização. As noções de tempo e de espaço, na Internet, chegam ao máximo da imaginação: como se fosse possível estar ao mesmo tempo fora e dentro da máquina – perdendo-se a matéria corporal (dessubstancialização, sem substância) e entrando-se em um espaço fora do espaço (desterritorialização). A virtualização é o que possibilita o provimento de dados do ciberespaço. Para se disponibilizar na Internet – e consequentemente dentro do ciberespaço – uma pintura qualquer, é necessário tornar a imagem virtual, ou seja, uma representação digital daquilo que seria um objeto da realidade. A pintura se dessubstancializa, mas mantém
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potencialidades suficientes para a imagem ser entendida como originária de uma pintura. Não são somente imagens que podem ser “virtualizadas”, textos que contêm informações, também. O ciberespaço é constituído de fluxos de informações. Pertencendo a todos e a ninguém, o ciberespaço permite uma visão simultânea do mundo e inscreve todos os que estão conectados no que alguns teóricos convencionaram chamar “o tempo real da emissão e da recepção”. Imaginem-se instalados diante de uma tela luminosa, lendo e escrevendo um texto, interagindo com outras pessoas que, em suas casas, têm, diante dos olhos, uma tela parecida. Atrás desse cristal líquido, através da máquina, abre-se, ao alcance de todos, um espaço mágico, dinâmico e vivo, inconcebível em qualquer outro lugar. Há quem considere que, na Internet (e aqui me aproprio de uma expressão nietzscheana), o homem se sente como um Prometeu liberado, livre das amarras da individualidade (da aparência? do corpo?) e movido por uma liberdade poderosa e ilimitada (e, por isso mesmo, perigosa). Depois da primeira etapa da viagem (a conexão com a rede), é possível aventurar-se em lugares virtuais, visitar museus, bibliotecas, jornais, webzines, sites, blogs, e-books – os visitantes do espaço cibernético passam a fazer parte desse espaço, mas, como não perdem as suas características humanas, gostam de se encontrar, de fazer amizades, de criar comunidades virtuais, de conversar. O trânsito pelos espaços virtual e real pode ser explicado como uma passagem sucessiva do interior ao exterior, do eu ao outro, do privado ao público e vice-versa, em uma continuidade que pode ser comparada ao efeito sugerido pela fita de Moebius.4 Tudo é contínuo, ubíquo, sincrônico. Entramos na máquina e a tecnologia passa a fazer parte de nós. Essa relação homem/máquina vai além da já antiga ficção dos robôs, por exemplo. O computador nos transporta sem que saiamos de onde estamos. Tornamo-nos virtuais.
A fita de Moebius (August Ferdinand Möbius (17901868), matemático alemão) só tem uma face. É um circuito fechado, que possui um retorno que faz com que a figura tenha a propriedade matematicamente estranha de não ter mais do que uma única face e que passa do interior para o exterior do circuito (percorremos integralmente todas as faces sem descontinuidade – é um processo contínuo). 4
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A galáxia de Gutenberg Se queres prever o futuro, estuda o passado. Confúcio
Dissemos que a Internet é um lugar além. Não podemos esquecer, entretanto, que todo além contém em si um aquém, um antes. Descrever a época em que vivemos, estudar sua produção artística e sua vivência cultural, é também – e não menos importante – retornar ao presente, para olhar de uma nova maneira o que se fez no passado e, entre outras possibilidades, para poder intervir, por exemplo, na forma de ler um texto tradicional, reinventá-lo, recriá-lo, de maneira a dar continuidade à sua recepção, na direção de horizontes sempre novos. Hoje, repetindo para aprender e criando para renovar, podemos dizer que o passado – lugar “aquém” desta era da Internet em que mundo e cibermundo coexistem – retorna e se transforma em futuro, na encruzilhada de tempos em que vivemos. A história do livro da leitura e da escrita, da literatura e de suas relações já viu outras revoluções antes que o texto eletrônico viesse se refletir em nossos olhos de leitores. A primeira tentação, segundo Roger Chartier – em sua Aventura do livro: do leitor ao navegador –, é comparar a revolução eletrônica com a de Gutenberg. No entanto, a transformação do livro manuscrito em impresso não foi tão radical: ambos eram objetos palpáveis e baseavam-se nas mesmas estruturas e formatos (o códex, o caderno, o sistema de páginas, a distribuição do texto). Há, portanto, uma continuidade muito forte entre a cultura do manuscrito e a cultura do impresso, embora durante muito tempo se tenha acreditado numa ruptura total entre uma e outra. Com Gutenberg, a prensa, os tipógrafos, a oficina, todo um mundo antigo teria desaparecido bruscamente. Na realidade, o escrito copiado à mão sobreviveu à invenção de Gutenberg, até o século XVIII, e mesmo o XIX (CHARTIER, 1999, p. 9).
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Por muito tempo, ainda persistiu a suspeita de que o impresso rompia a cumplicidade entre o autor e seus leitores e corrompia os textos com suas frias mãos mecânicas e comerciais. Essa crítica aos primeiros livros impressos também é feita aos livros digitalizados, aos textos eletrônicos, cuja leitura se faz na tela de um computador. Nessa nova revolução, o livro-objeto, de papel (que sempre existirá), passou a dividir seu império com algo que não é mais manuseado, que se inscreve em uma tela. No seu livro A galáxia de Gutenberg, Marshall McLuhan,5 que, entre outras coisas era professor de literatura, analisa o aparecimento da escrita e da tipografia. Com a escrita, há uma transição da cultura tribal, fechada e estável para o aparecimento do homem alfabetizado, individualizado, vivendo na instabilidade das sociedades modernas. Segundo McLuhan, nacionalismo, industrialização e mercados de massa são resultados da extensão tipográfica do homem. McLuhan distinguiu três etapas na evolução da humanidade. A primeira fase corresponde à civilização oral, dos povos anteriores ao advento da escrita, que se comunicam pela palavra falada e pelos gestos; marcada pela presença e pelo vivido, nela predomina a consciência mítica. A segunda fase surge com a escrita, de início, timidamente, restrita a pequenos grupos. O advento da escrita produz o distanciamento necessário para a reflexão e a consciência crítica. A grande explosão da escrita se dá no século XV, com a invenção da tipografia e a evolução da imprensa, que tornam mais intensa a difusão do texto escrito. Inicia-se aí a chamada “galáxia de Gutenberg”. A terceira fase surge no século XX, com o surgimento dos meios de comunicação como o rádio, o cinema, a TV. O marco fundador da nova galáxia da informação é a criação do telégrafo sem fio, mais conhecido como rádio, em 1896, pelo italiano Guglielmo Marconi.6 Mesmo após a invenção da imprensa, os livros nunca foram a única maneira de obter-se informação.
Herbert Marshall McLuhan (1911-1980) foi um filósofo e educador canadense. The Gutenberg Galaxy: The Making of Typographic Man. Toronto: University of Toronto Press, 1962. 5
Marquês Guglielmo Marconi (1874-1937), físico e inventor italiano, considerado o pai da comunicação a longa distância a radio (ondas curtas). Inventou, em 1896, o telégrafo sem fio, mais conhecido como rádio. A telegrafia foi inventada, em 1839, por Samuel Morse, nascido em 1791, nos Estados Unidos. 6
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Havia pinturas, imagens populares impressas, instrução oral, e por aí vai. Pode-se, porém, dizer que os livros foram, de algum jeito, o instrumento mais importante na transmissão de informação científica, incluindo notícias de eventos históricos – e, por isso, sempre foram mais usados nas escolas. Mas, com as mass media, do cinema à televisão, alguma coisa mudou. Ainda nos anos 60 do século XX, McLuhan anunciou que a maneira linear de pensar, instaurada pela invenção da imprensa, estava para ser substituída por uma forma mais global de percepção e compreensão através de imagens de TV ou outros tipos de dispositivos eletrônicos. Cada nova tecnologia cria um meio visto em si como corrompido e degradante, mas que transforma seu predecessor em forma de arte. Os meios se sucedem uns aos outros tão velozmente que um meio nos torna conscientes do seguinte, e, assim, começam a representar o papel que antes era da arte: o de nos tornar conscientes das consequências psíquicas e sociais da tecnologia, ajudando-nos a formar nossa percepção e nosso julgamento. A ideia de que “a mensagem é o meio”, proposta por McLuhan (1968, p. 21), significa que o essencial não reside no conteúdo transmitido, mas no meio que o transmite; a maneira pela qual percebemos a informação é transformada pela mídia que o divulga. Mas talvez a mais importante conclusão a que chegamos com o escritor canadense é a de que cada nova tecnologia, à medida que a aceitamos e experimentamos, torna-se um prolongamento de nós mesmos e interfere na nossa vida. Hoje o mundo em que vivemos é configurado eletronicamente, e a máquina, transformando a linguagem, mudou as relações que temos conosco e com os outros. Os meios de comunicação interferem nas sensações humanas – daí o conceito de “meios de comunicaçao como extensões do homem” (título de uma de suas obras), ou “prótese técnica”. Na sua conferência Da Internet a Gutenberg, em 1996, Umberto Eco também volta seu olhar para o passado,
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comentando que a mídia começou a celebrar o declínio da escrita e o poder da imagem – na TV – justamente no momento em que, na cena mundial, surgia o computador. Mesmo sendo um instrumento por meio do qual se podem produzir e editar imagens, o computador é, antes de mais nada, um instrumento alfabético: Em sua tela rolam palavras, linhas e, para usar um computador, você deve ser capaz de escrever e ler. A nova geração é treinada para ler em uma velocidade incrível […]. Nesse sentido pode-se dizer que o computador nos faz retornar à Galáxia de Gutenberg. [...] O computador trouxe hipertextos. Em um livro tem-se que ler da esquerda para a direita (ou da direita para a esquerda, ou de cima para baixo, de acordo com diferentes culturas) em uma forma linear. Podem-se saltar páginas, pode-se – já alcançada a página 300 – voltar para checar ou reler algo na página 10 – porém isso implica trabalho, digo, trabalho físico. Ao contrário, um hipertexto é uma rede multidimensional onde cada ponto ou nó pode, potencialmente, ligar-se a outro (ECO, 1996).
Literatura e cibernética Na direção apontada pela etimologia da palavra “tecnologia” – do grego tekhnologia, ‘tratado ou dissertação sobre uma arte’ –, formada dos radicais gregos ‘tekhno’ (de tékhné, ‘arte’, ‘indústria’ ou ‘ciência’) e ‘logía’ (de logos, ‘linguagem’), e com a intenção de fazer um paralelo entre a cibernética e a literatura, sigo daqui por diante o rastro deixado por Italo Calvino, que, em 1985, foi convidado para um ciclo de seis conferências ao longo do ano acadêmico, na Universidade de Harvard.7 Segundo ele, o milênio que acabava tinha visto o surgimento e a expansão das línguas ocidentais modernas e das respectivas literaturas, que exploraram suas possibilidades expressivas, cognoscitivas e imaginativas. Foi o milênio
Italo Calvino morreu antes de escrever a sexta conferência – que, idealizada, mas não escrita, intitular-se-ia “Consistência” –, e antes de partir para Harvard, onde iria participar das Charles Eliot Norton Lectures entre 1985 e 1986. Suas conferências, traduzidas para o inglês, foram publicadas em 1988, pela Harvard University Press, com o título Six Memos for the Next Millennium. A edição brasileira que uso aqui é de 1990. 7
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O telefone, rádio, televisão, o livro impresso? 8
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do livro, na medida em que vimos o objeto-livro tomar a forma que nos é familiar. Questionando-se sobre o destino da literatura e do livro, na era tecnológica dita pós-industrial, o escritor italiano (talvez eu devesse dizer cubano) conclui que há coisas que só a literatura, com seus meios específicos, pode proporcionar ao homem. Assim, ao selecionar, em um esquema incrivelmente simples, a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade e a multiplicidade (valores que considerava caros na literatura), Calvino, de certa forma, previu o destino da literatura e do livro no milênio seguinte. O universo infinito da literatura (às vezes usando de atalhos muito antigos) sempre abriu caminhos novíssimos, mas, “se a literatura não basta para [nos] assegurar que não [estamos] apenas perseguindo sonhos” (CALVINO, 1990, p. 20), devemos nos voltar para a ciência: ambas (literatura e ciência) nos oferecem percursos que podem mudar nossa imagem do mundo. Como escritor de ficção, Calvino (1990) buscava, em primeiro lugar, a leveza, tirando peso “ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades” e, principalmente, “à estrutura da narrativa e da linguagem”. Para ele, às vezes, o mundo inteiro, a vida parecia petrificar-se “como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa” (CALVINO, 1990, p. 16). Mas Perseu, herói que voa com sandálias aladas pelo vento e pelas nuvens, é capaz de cortar a cabeça da Medusa sem ser transformado em pedra, utilizando um espelho para não olhar diretamente para a Górgona. É nessa recusa da visão direta que se encontra a força de Perseu e não na recusa da realidade do mundo em que vivia, realidade que traz consigo e que assume. Cada vez que o reino do humano parece condenado ao peso, uma tecnologia surge para se tornar parte de nós mesmos e nos trazer a faculdade de nos transportar para outro espaço.8 Nessa concepção, a “leveza” pela virtualização seria uma espécie de evasão através da máquina e, certamente, é liberdade. A viagem imaginária provocada pelo livro repete-se de
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maneira ainda mais real no espaço eletrônico. Ao lado das metáforas literárias sobre a leveza, Calvino alude ainda ao poder da levíssima imagem do software e dos bits sem peso, reatando-a a um fio muito antigo na história da poesia: os poemas enciclopédicos De rerum natura, de Lucrécio, e Metamorfoses, de Ovídio. O ideal de tudo abranger também é alvo do continente da Web. A rapidez, segunda proposta de Calvino para a literatura futura, hoje se revela, também, na world wide web. O tempo do texto eletrônico joga com tensões de diferentes passados e futuros e mesmo com a de entretempo – um tempo intermédio –, aspirando a um público universal que pode partilhar inclusive a crítica dos discursos trocados. A comunicação a distância – livre e imediata – que a rede autoriza traz a nova modalidade de constituição e de comunicação do conhecimento, conforme a expressão de Roger Chartier (2001), em sua conferência on-line sobre leitores e leituras. A maneira de escrever transforma-se, e assim a escrita, a leitura e a crítica literárias. Extremamente rápido com seus pés alados, mensageiro entre deuses e homens, que melhor patrono para a era da máquina do que Hermes-Mercúrio? Na vida prática, o tempo, diz Calvino, é uma riqueza de que somos avaros, mas na literatura, pode-se dispor dele com generosidade. O contrário é verdadeiro: há certo prazer na lentidão. As digressões, divagações e citações, que atravessam a rapidez do discurso, equivalem às retículas formadas pelas referências internas do hipertexto9 eletrônico. A relatividade do tempo confunde-se com o percurso labiríntico. Mais do que uma prática tecnológica, o hipertexto é uma prática cultural. Liames podem ser estabelecidos entre livros diferentes ou entre trechos do mesmo livro. Atualmente, os liames são chamados de links10 no hipertexto da web. A hipertextualidade absorveu a noção de intertextualidade. Na história do livro (do Ocidente), São Tomás de Aquino, em sua Summa, teria sido o
O prefixo hiper (do grego “υπερ-”, sobre, além) remete à superação das limitações da linearidade, ou seja, não sequencial do antigo texto escrito, possibilitando a representação do nosso pensamento, bem como um processo de produção e colaboração entre as pessoas, ou seja, uma (re) construção coletiva. O termo hipertexto, cunhado em 1965, costumeiramente é usado onde o termo hipermídia seria mais apropriado. O filósofo e sociólogo estadunidense Ted Nelson, pioneiro da tecnologia da informação e criador de ambos os termos escreveu: “Atualmente a palavra hipertexto tem sido em geral aceita para textos ramificados e responsivos, mas muito menos usada é a palavra correspondente ‘hipermídia’, que significa ramificações complexas e gráficos, filmes e sons responsivos – assim como texto”. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/ Hipertexto>. 9
O conceito de “linkar” ou de “ligar” textos também foi criado por Ted Nelson, influenciado pelo conceito de “lexia” (ligação de textos com outros textos) desenvolvido por Roland Barthes no livro S/Z. 10
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primeiro, ao invocar o testemunho de autores sob a forma de citações, estabelecendo ligações entre os vários livros citados, recortando ideias, interpretando, dialogando com eles, a sugerir aos seus leitores links para outras leituras. Na literatura, escritores utilizaram a hipertextualidade, criando diálogos intencionais com o leitor, advertindoos do seu status de papel, de ficção, de jogo. Posso aqui também fazer links (off-line) com obras como Don Quixote, de Cervantes, Tristam Shandy, de Laurence Sterne, Jacques, le Fataliste, de Diderot, Bouvard et Pécuchet, de Flaubert, Les Caves du Vatican, de André Gide, O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, entre outros (sem falar nos dicionários e enciclopédias), obras labirínticas que embaralham a ordem da leitura, e em que os autores se intrometem na narrativa para incitar os leitores a um vaivém semelhante ao do hipertexto do ciberespaço. São textos que incluem outros textos, provocando, no universo dos livros de papel, a vertigem da mise-en-abyme da hipertextualidade virtual. O fio que interliga essas obras vai se estender até a rede da textualidade eletrônica, com seus hiperlinks, com seus jogos virtuais, que nos inspiram o voo e a evasão. A fascinação que sentimos quando ouvimos histórias nos transporta instantaneamente para mundos reais ou imaginados. Em uma narrativa há sempre um objeto mágico. Calvino cita, entre outras histórias, a de Sheherazade, que, com suas mágicas palavras soube salvar sua vida a cada noite, encadeando histórias curtas umas nas outras, interrompendo-as no momento exato: duas operações sobre a fragmentação do discurso, sobre a continuidade e a descontinuidade do tempo. Que antiga é a ideia de hipertextualidade! Também a máquina e as palavras no ambiente virtual são mágicas na relação com a realidade e com a vida (interior e exterior) de cada um de nós. Talvez seja tudo um segredo de ritmo e uma forma de capturar o tempo, tanto na ilha dos náufragos de Lost e nas mil e uma noites orientais, quanto na vertiginosa aventura da era eletrônica, todos nós podemos participar.
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No labirinto eletrônico, perdendo-nos é que encontramos: [O hipertexto] é uma armadilha. Uma chegada a uma velha estação (sua página inicial = home), que lhe sugere um retorno, a sensação de uma recuperação do tempo e dos lugares perdidos (todos aqueles que você sabe que existem na net e [a que] nunca vai dar conta de ir), ou se uma ebulição de cores e sons ([nas] pages com recursos sonoros) que lhe causa a sensação de que está vivo hoje [na contemporaneidade digital] (PIMENTEL, 2005).
Todas as propriedades do hipertexto – a virtualidade, a não linearidade, a não delimitação (na ideia de infinitude), a fragmentação – foram experimentadas separadamente pelos autores, ao longo da história da literatura. Na escrita hipertextual do ciberespaço, essas características são inseparáveis, acrescentando-se a elas a multissemiose e a interatividade. A literatura hipertextual é, portanto, uma nova forma de ficção, interativa, cibertextual, hipertextual: uma hiperficção.11 Os poetas e teóricos ainda estão à procura de um termo para definir a infinita possibilidade dos textos criados em computador. Para os conceitos da informática no uso da linguagem e a criação e edição poética no início do século XXI, não há, e nem pode haver, nenhuma exatidão. Cada nome, cada etiqueta corresponde a apalpadelas, a procedimentos muito diferentes e sempre empíricos, e algumas vezes acompanhados (mas não sempre) de um esforço de reflexão teórica, técnica e estética: Foi no início de 1995 que a rede de telecomunicações Internet começou a se desenvolver de maneira vertiginosa; foi então que, na «net», na «tela» ou na «web», apareceram formas de poesia ainda desconhecidas: a «ciberpoesia», a «cyber-Art», a «e-poesia», a «web-poesia», a «web-Art», a «mail-Art», a «mail-poesia», e mil outras variantes de poesia, «digital», «numérica», «tecnológica», «eletrônica», «multimídia», «hipermídia», «hipertextual», «interativa», «sintética», «gerada», «animada» (VUILLEMIN, 2004).
A hiperficção mescla as características hipertextuais da escrita com as da cultura digital. A primeira obra de hiperficção foi Afternoon, a story (1987), de Michael Joyce. No Brasil, ainda são poucos os sites de hiperficção, ao contrário dos exemplos em inglês. A primeira hiperficção em português na Web, segundo seus autores, é Tristessa, disponibilizado pelo grupo desde 1996 no endereço <http://www.quattro.com.br/ tristessa/>. 11
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A linguagem desse texto oral-verbal apresenta erros de digitação, abreviações ou reduções de palavras (como ocorre na fala = “tá”, “cê”, “bora”, “aki”); duplicação de letras, abuso dos sinais de pontuação, uso de maiúsculas para indicar atitudes, emoções, sentimentos, entonações específicas, gritos ou sussurros [oi!!!!!!!!!!}, [adoooooooooro!] [Você TEM de escrever!!] [PRESTA ATENÇÃO] [Vcs são D+!!!]; frases curtas – para o efeito “ping-pong”; uso de minúsculas depois de ponto e no início do texto; uso de emoticons ;-))). 12
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Na terceira conferência, Calvino fala da exatidão. Registra, então, o seu repúdio contra a linguagem oral usada de modo aproximativo, casual, descuidado, esse “flagelo linguístico”, cuja origem pode estar “na política, na ideologia, na uniformidade burocrática, na homogeneização dos meios de massa ou na difusão acadêmica de uma cultura média” (p. 72). Essa inconsistência não está somente nas palavras e nas imagens das mídias, ela existe no mundo todo. Só a literatura parece estar a salvo desse vírus. Talvez a intolerância de Calvino aumentasse diante da nova linguagem híbrida, falada-escrita, da rede, ou, ao contrário, talvez até o incomodasse menos, pela criatividade e pela espontaneidade com que os jovens a utilizam em salas de bate-papo ou em conversas on-line nas redes sociais.12 Também em e-mails ou em listas de discussão, encontramos textos mais próximos da modalidade escrita, ao lado de pedidos, comentários coloquiais, desculpas, brincadeiras, elogios etc., que se aproximam da modalidade oral pura: mais do que as diferenças formais, são as circunstâncias de produção e uso que determinam as semelhanças e as dessemelhanças entre as duas modalidades e a seleção de uma delas, por parte do falante/escritor, no momento da interação (ALVES, 2001). Para explicar sua quarta proposta – a visibilidade –, Calvino cita um verso de Dante, Poi piovve dentro a l’alta fantasia [Pois chove dentro da alta fantasia] e explica: “a fantasia, o sonho, a imaginação são lugares dentro dos quais chove” (CALVINO, 1990, p. 97), e o poeta compreende que as imagens chovem do céu e são enviadas por Deus. O lado visual da fantasia nada mais é do que a chamada imaginação verbal e o processo da leitura parte da palavra para chegar à imagem. Somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens pela mídia, que cabe repetirmos a pergunta feita por Calvino em um contexto semelhante: na civilização da imagem, corre-se o perigo de perder a imaginação? Tanto a exatidão – no que diz respeito à palavra –, quanto a visibilidade – no que diz
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respeito à imagem – encontram no ciberespaço, como reflexo do mundo real, o que existe de melhor e de pior, ou seja, para repetir a metáfora de Dante, trazem em si tudo o que existe de inferno e de paraíso e, graças ao poeta, passam pela purificação no purgatório. Se o divino manda a chuva para fertilizar nossa fantasia, é preciso aplicar o que Calvino chama de “pedagogia da imaginação” para – com o mundo do ciberespaço – não perdermos o hábito de controlar a nossa própria visão interior, sem sufocá-la e sem “deixá-la cair num confuso e passageiro fantasiar” (CALVINO, 1990, p. 108)? O ciberespaço não alcança a civilização ideal que Aldous Huxley idealizou, em 1931, no seu Admirável mundo novo. Nem se assemelha ao mundo descrito por Thomas More, na sua Utopia13 (1516), local onde se encontraria a sociedade ideal e, sendo ideal, inalcançável. Para More, a maioria das necessidades coletivas baseia-se em uma filosofia do prazer. Todo cidadão de Utopia busca a felicidade e o prazer. Entretanto, seu autor entendeu como dialética a relação entre igualdade e liberdade e optou pela igualdade. Não participávamos como leitores dos mundos de Huxley e de More como participamos agora do mundo da Internet. A máquina nos leva, metaforicamente, para dentro dela, para um espaço novo em que igualdade e liberdade são possíveis (será que ainda utopicamente?): dentro do mundo virtual somos reais e, através da imaginação, participamos de uma obra de ficção. Nossa transformação em “seres virtuais” transgride a ordem natural da própria virtualidade. Em certos ambientes virtuais, a interação traduzida por uma espécie de escrileitura14 gerou, na virada do milênio, algo mais profundo do que a viagem que a leitura nas páginas dos livros impressos provocava na imaginação de alguns leitores. E “não há nenhum mal em nos lembrar de que, cada vez que escolhemos um livro para ler na cama, de noite, abrimos para nós um caminho entre premonições e promessas do inferno” (MANGUEL, 2000, p. 133).
De Optimo Reipublicae Statu deque Nova Insula Utopia [Sobre o melhor estado de uma república e sobre a nova ilha Utopia] ou simplesmente Utopia. A palavra utopia (que vem do grego, ou-topos: lugar nenhum) tornou-se sinônimo de projeto irrealizável, fantasia, delírio, quimera, lugar que não existe. 13
Pelo matemático norteamericano Norbert Wiener (1894-1964). Cibernética: ciência que tem por objeto o estudo comparativo dos sistemas e mecanismos de controle automático, regulação e comunicação nos seres vivos e nas máquinas. 14
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Dissemos que Calvino faleceu antes de escrever a sexta conferência que estava prevista. Quem o fez, algum tempo depois e por sua própria conta, foi o escritor argentino Ricardo Piglia, que elege o deslocamento como estratégia discursiva e ideológica para tentar enfrentar a crise da literatura no mundo contemporâneo. A proposta de Piglia está disponível em: <http://www.chaodafeira.com/ wp-content/uploads/2012/05/ uma-proposta.pdf>. 15
Tradução: “Internet é a ditadura do instante e a espera infinita da novidade. Nesse contexto, como a literatura, que está nos antípodas dessas preocupações, poderia existir?”.
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O quinto tema é a multiplicidade. Calvino foi, realmente, um profeta dos tempos pós-modernos, tanto da world wide web, quanto do romance impresso contemporâneo: verdadeiras enciclopédias abertas do mundo fragmentário atual. Os temas de suas propostas interligam-se, entrecruzam-se. Nessa quinta proposta, o autor cita novamente os poemas de Lucrécio e de Ovídio, e o modelo de um sistema de infinitas relações de tudo com tudo, que se encontra naqueles dois livros tão diferentes um do outro. Para ele, a literatura é um espaço que permite ver o mundo. Também os recursos tecnológicos oferecem tempos multíplices, ramificados, divergentes, convergentes e paralelos. Na rede, as ideias nem sempre evoluem linearmente, o processo de ligação consiste numa série de vozes individuais em conversa interminável, unidas por uma teia a um só tempo de relação e de conflito. Talvez seja o fenômeno da globalização do tempo (conhecer tudo mais depressa, conhecer tudo imediatamente) a principal característica da rede, junto com a ilusão da união dos espaços: é ela que nos dá a ilusão de que a distância não existe. Em suas conferências,15 Italo Calvino recria a fascinação própria dos textos literários, como um leitorautor que tem o condão da palavra para interpretar, comentar e profetizar (não seria esse o ideal do crítico de arte?), em um texto estonteante, com miríades de links, uma delicada e imensa teia hipertextual, que nos conduzem a leituras para todo o tempo que ainda temos de viver.
Era da Internet
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Internet, c’est la dictature de l’instant et l’attente infinie de la nouveauté. Dans ce contexte, comment la littérature, qui est aux antipodes de ces préoccupations, pourrait-elle exister? Samuel Dixneuf16
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Para falar de Era da Internet, é preciso ficar bem claro que na época em que nós vivemos existe de tudo, a “aldeia global” expandiu-se para o mundo inteiro propriamente dito e, mais, passamos a ter o que comumente chamamos de “mundo real” e “mundo virtual”. No que diz respeito à literatura, a atual galáxia – como a chamaremos? – abrange tudo o que se fez no passado e, no presente, aquilo que se cria literariamente dentro e fora da máquina – textos e e-textos... Na fusão de dois mundos, desconstroem-se as dimensões essenciais da realidade (como tempo e espaço), e a multiplicidade dos processos funde-se em um único processo, em tempo real, no planeta inteiro. Tornamo-nos, ao mesmo tempo, leitores, autores e até editores, apropriamo-nos do novo meio e redefinimos a textualidade que surge em uma espécie de continuum coletivo, que vai do tradicional a um novíssimo que se transforma a cada momento. Um dos aspectos mais fascinantes da Internet é o fato de ela não ser estanque nem rígida, pelo contrário, é flexível, aberta, descentralizada e multidirecional; a tecnologia pode ser transformada e adaptada a novos contextos e necessidades. Segundo Chartier (2001), daqui por diante, em vez de lamentarmos a irremediável perda da cultura escrita (ou, ao contrário, exaltarmos sem prudência a nova era da informática), é preciso aceitar a futura coexistência, nem sempre pacífica, entre as duas formas do livro e os três modos de inscrição e de comunicação dos textos: a escrita manuscrita, a publicação impressa, a textualidade eletrônica. Não se trata mais de fazer uma passagem sem volta de uma galáxia para a outra: continuaremos a utilizar a escrita linear, mas podemos usar um outro tipo de escrita, como o hipertexto, que desvincula a leitura do caráter linear. A mutação tecnológica trazida pelo hipertexto é também uma mutação cultural. Como leitores, somos livres para escolher o percurso da nossa leitura (por meio dos links dos hipertextos) – há uma fluência e uma
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continuidade no ambiente digital que possibilita ao leitor “embaralhar, entrecruzar, reunir textos que são inscritos na mesma memória eletrônica” (CHARTIER, 2001, p. 13) –, somos livres para compartilhar nossos gostos e escolhas (nas diversas semioses), tornamo-nos cúmplices entre nós. O espaço novo da cibernética trouxe a liberdade do leitor. À frieza da máquina sobrepõe-se uma espécie de alma que nada mais é do que a aura das palavras que usamos, etérea o suficiente para ser sentida. Ainda segundo Chartier (2001, p. 13), esses traços (entre outros) indicam que “a revolução do livro eletrônico é uma revolução nas estruturas não apenas do suporte material do escrito, como também nas maneiras de ler” e, ainda, eu acrescentaria, nas maneiras de viver. O computador e a Internet tornaram-se realmente um prolongamento do nosso corpo e da nossa mente. Ao longo de todo o texto deste ensaio, venho repetindo sobre as novas possibilidades da literatura neste novo milênio. A pergunta de Samuel Dixneuf – epígrafe desta segunda parte, sobre a relação literatura e internet –, “se a internet é a ditadura do instante e a espera infinita da novidade, como a literatura, que é o oposto disso poderia existir?”, tem um duplo sentido: o de transformação – “o que acontece com a literatura na época atual?” – e o de espaço – “onde está a literatura, dentro ou fora da internet?”. Uma das características mais fortes do nosso tempo é a simultaneidade: a idade contemporânea diferencia-se das anteriores pelo ecletismo (tanto no sentido filosófico de “justaposição de teses e argumentos oriundos de doutrinas [...] diversas, formando uma visão de mundo pluralista e multifacetada”, quanto na acepção mais comum de “prática ou disposição de espírito que se caracteriza pela escolha do que parece melhor entre várias doutrinas, métodos ou estilos” (Houaiss eletrônico). O século XXI ou, se preferirmos, a era da Internet abrange a leitura e a escrita (tanto no papel, quanto na tela) de textos de todos os tempos, inclusive de antes do surgimento da
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web, até para poder olhá-los de maneira nova – com as possibilidades trazidas pelas novas tecnologias. Nesse misto de Pasárgada e de Nau dos Insensatos que é a Internet, encontramos uma espécie de biblioteca universal. A Internet aparece como a realização de um sonho muito antigo, o de uma biblioteca que compreenderia virtualmente todo o saber do mundo. Bibliotecas e universidades do mundo todo disponibilizam, on-line, grande parte de seus livros antes impressos, alguns em “modo texto”, outros em “modo imagem” (digitados ou escaneados). Do livro digitado ao livro eletrônico, a leitura ganha terreno e torna-se mais e mais criativa. Os e-books permitem, inclusive, que o leitor acrescente comentários que serão lidos, depois, por outros leitores, assim como a Wikipedia, o infinito dicionário virtual cujos verbetes podem ser aumentados ou transformados por quem quiser. A literatura transita também nos sites de escritores já consagrados ou ainda desconhecidos, nos blogs (espécie de diários públicos, muitos com tendência literária), nos grupos de discussão através de e-mails, e até nos chats (salas de bate-papo onde também é possível encontrar um material vivo e imediato, revelador de um novo gênero textual). Pode-se, por um certo prisma, considerar os chats como “livros” infinitos, em que autores são também leitores e personagens de outros e de si mesmos. Para reduzir esse efeito perturbador da presença de múltiplos conteúdos textuais sobre um mesmo suporte, a sugestão de considerar o suporte eletrônico como uma biblioteca e não como um livro (ou seja, trocar de metáfora) é bem-vinda. Do ponto de vista da leitura, cada vez mais importante nos estudos literários e linguísticos, os gêneros permanecem categorias dominantes da recepção. Ao longo dos tempos, as pesquisas sobre o texto centraram-se ora no autor, ora no texto, ora no leitor. A leitura por meio de hiperlinks, diferente da leitura no livro, traz uma nova intimidade do leitor com o literário. Há uma espécie de fusão das figuras do autor e do leitor, que trocam de papéis entre si
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e apropriam-se, ainda, da função do crítico de literatura. No novo milênio, o diálogo que se estabelece entre texto e leitor adquire a velocidade própria do ciberespaço: com a aceleração e a simultaneidade temporal. Com a fusão dos antigos gêneros e o surgimento de novos, todas as leituras são, em princípio, possíveis, mas a simultaneidade provoca uma união – o novoantigo – e pede novas formas de leitura-crítica. É a era do leitor-autor, e mais, do leitorautor-ator, pois, em um mundo escrito, é preciso escrever para se comunicar, ler o texto do outro e jogar com esse texto enquanto corpo escrito, para atrair o outro e entrar em comunicação com ele: trazê-lo “às falas”. A leitura que se faz no espaço virtual é mais que “leitura ativa”, é uma “leitura compartilhada”. Em uma socialização virtual, as citações (e o compartilhamento dessas citações) recriam o perfil do escrileitor que se reinventa apoderandose dos textos que cita e gera a possibilidade de outros seguirem essa teia. Essa nova maneira de comunicação por meio do texto (seu e de outrem) necessita, nos estudos literários, de uma conceituação atualizada do que pode ser considerado “literário”, do que é autoria (do “findo” conceito de plágio), do que é, hoje, crítica literária. A leitura crítico-biográfica, como análise e (re) invenção tanto da obra quando da própria vida enquanto texto, como escritura que une o real à ficção, não pode prescindir, no momento atual, dos novos espaços de interatividade, criados pelas comunidades virtuais da cibercultura. Espera-se que a prática da hiperficção ou ciberficção produza um efeito libertador na passagem do modelo clássico da literatura para esse novo modelo in presentia que aponta para a convergência da crítica, da teoria e da tecnologia contemporâneas. A “transdução” – que une tradução, no sentido de interpretação, com o prefixo ‘trans’ – faz passar um texto de uma época a outra, de um domínio de saber a outro, de uma referência a outra, por meio das diferenças, disparidades e mesmo das incompatibilidades que as separam. Como exemplo cito Citton, para quem “ler Diderot de uma
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forma literária é conduzir sua palavra através de tudo o que nos separa dele, para permitir que essa palavra nos fale hoje, produza ressonâncias sempre sugestivas no seio de nossas preocupações contemporâneas”.17 Além disso, introduzir o hábito de uma nova forma de leitura – a reticular, na tela do computador –, ao lado da leitura linear tradicional – nas páginas do livro –, significa orientar ou – por que não? – desorientar o pensamento (a expressão é de Derrida), deixando a liberdade guiar o leitor-pesquisador, incentivando sua autonomia na escolha dos atalhos, na (hiper)pesquisa de temas específicos, ligados à leitura e interpretação, descrição e análise dos gêneros à luz das teorias da Crítica Literária ou dos princípios da Análise do Discurso. Sempre que se fala sobre texto e, consequentemente, sobre autor, a noção de intenção vem à baila e, com ela, a relação de responsabilidade que se atribui ao autor sobre o sentido do texto e sobre a significação da obra. Os novos meios eletrônicos tornam urgente a redefinição do autor, uma vez que este é confrontado com uma enorme variedade de experiências e práticas. Afinal, quem é quem nesse texto infinito que vai e volta (ou não) sem direção certa? A vida escrita vivida no mundo virtual parece fundir o autor do texto com o seu leitor. “Autor” vem do latim auctor, ‘alguém que dá origem ou promove’. Perguntar o que as palavras ou o texto querem dizer não é exatamente a mesma coisa que perguntar o que o autor quis dizer. É necessário definir bem esse “querer dizer”. Em 1968, Roland Barthes aclamava o leitor como todo-poderoso e anunciava a morte do autor. “Quando um fato é contado [...] a voz perde sua origem, o autor entra em sua própria morte, a escrita começa” (BARTHES, 1984, p. 61). O autor cede o seu poder ao leitor. Segundo Barthes, é a linguagem que fala, e a posição de leitura deve ser compreendida como o lugar onde o sentido plural, móvel, instável é reunido e onde o texto, qualquer que seja, adquire sua significação. Um ano depois do ensaio de Barthes,18 Michel Foucault
No original, jeu de transduction (emprestamos a expressão usada pelo pensador suíço Yves Citton, em La compétence littéraire: apprendre à (dé)jouer la maîtrise, que por sua vez a empresta do filósofo Gilbert Simondon). Disponível em: <http:// litterature.inrp.fr/litterature/ discussions/enseignement-dela-litterature-l2019approchepar-competences-a-t-elle-unsens>. Acesso em: 20 fev. 2010. 17
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Ambos os textos de Barthes e de Foucault só foram publicados postumamente (o de Barthes, em Le bruissement de la langue, 1984; o de Foucault, em Dits et écrits, 1994).
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fazia uma conferência cujo título revelava as mesmas preocupações, Qu’est-ce qu’un auteur? [O que é um autor?], na qual reflete, entre outras coisas, sobre o que torna difícil abandonar a função-autor. A noção de autor, diz Foucault, é “o momento forte da individualização na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da filosofia também e na das ciências” (1994, p. 792). Entretanto, Foucault parte da fórmula de Beckett, Qu’importe qui parle, quelqu’un a dit qu’importe qui parle [Que importa quem fala, alguém disse que importa quem fala], para explicar que, na interpretação de um texto, não se trata de exaltar o gesto de escrever, nem de alfinetar um sujeito em uma linguagem, trata-se de abrir um espaço em que o sujeito que escreve não para de desaparecer. Compara, então, o “parentesco da escrita com a morte” (a perpetuação dos heróis ou mesmo a ideia de afastar a morte – como nas mil e uma noites). A escrita parece estar ligada ao sacrifício, e a obra moderna recebeu “o direito de matar o autor”, ideia fixa da crítica àquela época. A leitura crítica e criadora dos textos eletrônicos (literários ou não) provoca mais uma reviravolta no mistério da escrita, originando uma reconfiguração do papel do autor, que parece, mais do que nunca, um dos elementos da tríade autor-leitor-personagem reunida em uma única pessoa. O diálogo que se estabelece entre texto e leitor (e isso implica a cadeia histórica de sucessivos leitores de uma obra) adquire a velocidade própria do ciberespaço. Se Roland Barthes (1987), em O prazer do texto, repetia que a pessoa civil, passional, biográfica do autor desapareceu, também acrescentava que, no texto, de certa maneira, o leitor deseja o autor. Inversamente, o autor deseja leitores. Atualmente, no lugar de representação ou de projeção, a ideia de colaboração tornou-se mais determinante. Poderia ser lançada aqui, para uma reflexão futura, a pergunta: se o leitor se identifica com o crítico, qual será o futuro da crítica literária, um fórum on-line? De
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qualquer forma, a interatividade certamente modificou o relacionamento da crítica com o navegador da Internet. Enquanto existirem textos, existirão autores, leitores e críticos, que se transformam junto com a textualidade. Enveredamos, no espaço virtual, por uma via sem rumo definido: nossa vida abriu-se para uma teia que nos envolveu sem que nos déssemos conta disso. Encontramos dificuldade em definir a textualidade, a abertura textual, a censura, os direitos autorais, o crítico de arte e de literatura, especificamente. Será a literatura cibertextual realmente nova ou apenas um prolongamento lógico da literatura anterior? Parece evidente que a mutação tecnológica trazida pelo hipertexto é também uma mutação cultural. A tecnologia do hipertexto está liberta da antiga opressão das técnicas de reprodução e das instâncias de destinação; esperamos que a prática da hiperficção produza o mesmo efeito libertador, na passagem do modelo clássico da literatura para o novo modelo in presentia. Os estudiosos da cibercultura costumam falar de união. Segundo Alain Finkielkraut (2005), precisamos compreender o sentido histórico da necessidade moderna de uma conciliação entre as duas culturas, a científica e a literária, convergência anunciada por Landwon (1997), no título de seu livro: Hypertext 2.0. A convergência da crítica, da teoria e da tecnologia contemporâneas. Calvino (1990, p. 133) termina sua quinta e última conferência dizendo que “entre os valores que gostaria fossem transferidos para o próximo milênio está principalmente este: o de uma literatura que tome para si o gosto da ordem intelectual e da exatidão, a inteligência da poesia juntamente com a da ciência e da filosofia”. Sartre dizia ser a meta do século XXI a conquista da morte e a conquista das estrelas. Eu diria ser a conquista de vidas em novas dimensões em um esplêndido palco constelado de tempos e espaços. Nietszche exaltava a teia da aranha – e o que dizer da teia-rede tecida no céu de nosso século? Por outro lado, o filósofo de Assim falava Zaratustra acreditava que o futuro abria-se para o vazio. Mas que vazio é esse que preenche,
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na sua imaterialidade, os mais impossíveis horizontes de desejo do homem moderno? Que lugar a literatura ocupa na construção/interpretação do novo imaginário surgido com a Internet, essa rede que une situações pessoais vividas com situação pessoais criadas? Um lugar de encontro para os leitoresautores? Uma interface que reconstrói, reinventa as relações entre as pessoas e os textos? Digamos que, em certo sentido, a Internet e a literatura se confundem. A leitura crítica e criadora dos textos eletrônicos (literários ou não), com a viagem do hipertexto, provoca uma reviravolta na história da escrita e reconfigura o papel do autor, mais do que nunca, um dos elementos da tríade (para não dizer trindade – três em uma só pessoa?) autorleitor-personagem. As reflexões anteriores acerca do texto e da leitura, no domínio dos estudos, tanto literários quanto linguísticos, dos teóricos e críticos das últimas décadas (Bakhtin, Barthes, Eco, Genette, Iser, Jauss), que já concebiam a leitura ativa e criadora, ainda são perfeitamente válidas na tarefa de compreender e interpretar a criação literária do ciberespaço, mas uma nova leitura crítica talvez precisasse penetrar nos bastidores da “hiperescrita”, no processo criativo oferecido ao escritor (e, posteriormente, ao leitor) pelos recursos da máquina, que permite a inclusão no texto de elementos multilineares, acelerando e fragmentando ainda mais o ato de ler e pondo em jogo, inclusive, a própria noção de gênero literário. Castells, em seu livro A sociedade em rede (1999, p. 395), afirma que o virtual existe na prática e o real existe de fato. A realidade, como é vivida, sempre foi virtual, por ser sempre percebida por símbolos formadores de prática. Para o sociólogo espanhol, o inédito do sistema de comunicação é a construção da virtualidade real em que a própria realidade (ou seja, a experiência simbólica/ material das pessoas) é inteiramente captada, totalmente imersa em uma composição de imagens virtuais no mundo do faz-de-conta, no qual as aparências não apenas
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se encontram na tela comunicadora de experiência, mas se transformam na experiência. Mas a sociedade virtual não existe em um lugar imaginário, em um lugar espiritual, ou em um lugar perdido. Ela existe na virtualidade do ciberespaço – um aqui-agora sem espaço nem tempo. E é possível ir até lá. O que não se pode negar é que essa ideia de “ir até um outro mundo” repousa, como nos dois romances citados (Admirável mundo novo e Utopia), na esperança de um novo tempo, de uma nova era para o homem (um novo humanismo, talvez). Mas se a civilização cibernética não se revelou como uma civilização melhor, pelo menos não aos olhos comuns, é um novo lugar para experimentar. Um lugar nenhum, uma “ilha” utópica para os desejos cansados de homens perdidos – Lost –, de pessoas que precisam se reinventar, um mundo de palavras para criarmos a nossa história? Para nos perdermos, mas também para nos reencontrarmos e nos recriarmos. Voltemos à primeira epígrafe, às palavras do poeta Marx Ernst: “Se são as plumas que fazem a plumagem, não é a cola que faz a colagem”. A colagem, nesse sentido, são as diversas vozes que fazem parte de cada um de nós e que trazemos para a nossa leitura, não importa o lugar em que estamos. Emplumamo-nos, tecemo-nos com os textos de muitos outros eus, que, por sua vez, repetem e compartilham com seus leitores os nossos próprios textos. Mais do que nunca se fala em leitura ativa: nos inúmeros gêneros eletrônicos, o texto parece pedir ao leitor para ser interrogado, compartilhado, manipulado, reescrito, vivido. O entrecruzamento de momentos textuais com os vividos permite ampliar a noção de texto, cuja circunscrição alarga-se de modo a abranger mais do que a palavra escrita propriamente dita, adaptando a escrita à fala e a fala à escrita. Com a interação eletrônica, surge uma nova maneira de comunicação com o texto, uma escrileitura. Ao recortar, copiar, colar, o leitor torna-se também autor. Ler com a “tesoura” ao alcance das mãos (no teclado de um computador) é participar de uma
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criação infinita e trazer para o labirinto do hipertexto – o novo modelo textual do texto além do texto – o prazer de desfigurar, transformar, recriar o texto. E mais, o prazer de se recriar, de se (re)escrever. A figura do outro passou a ter papel preponderante nos textos virtuais. Presente no processo da escrita, o leitor (e o crítico), ao ler a vida do outro, escreve, lê e interpreta a sua própria vida. Desdobra-se, cria um personagem, passa a ser esse personagem e também seu autor e mesmo seu leitor. É uma espécie de ficção psicológica: a ficção da identidade do eu. Seguindo a concepção de que o outro se forma de nós mesmos, de que nós inventamos o outro, nós também somos inventados pelo outro, segundo o seu desejo. Ao fazer uma relação entre o desejo ilusório de ser um outro, a histeria e a mitomania, Jules de Gaultier (apud Palante, 1903), médico, psiquiatra e filósofo, criou, a partir do personagem epônimo do romance Madame Bovary, de Flaubert, o substantivo bovarysme, para nomear essa evasão no imaginário por insatisfação. O bovarismo é um aspecto da ficção psicológica fundamental: a ficção da identidade do eu. A tendência que o homem tem de se conceber outro do que ele realmente é. Je est un autre [“eu é um outro”] exclamou um dos poetas mais revoltados da literatura francesa. Se a alteridade atravessa nossos discursos, se nossa fala é impregnada da fala de outros, é porque, segundo Bakhtin (1984, p. 300), “nosso próprio pensamento [...] nasce e se forma em interação e em luta com o pensamento de outrem, o que não pode não encontrar seu reflexo nas formas de expressão verbal de nosso pensamento”. Em outro contexto, segundo uma teoria de Lacan, traduzida por outro psicanalista, seu discípulo, da qual nos apropriamos aqui (ladrão que rouba ladrão...), cada um de nós acaba se tornando um personagem do romance que é sua própria vida. Assim como nosso pensamento, nossa fala, nossas palavras, o nosso estilo também está impregnado do estilo dos outros. O que estou aqui propondo é que há ambientes na Internet que acolhem os autores e leitores dos textos como
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personagens, como personae, poderia dizer mesmo como atores cuja voz é a palavra escrita, atuando em um palco virtual. Desses textos as pessoas conectadas participam (inter)ativamente. Ora, isso significa dizer que, na rede, estamos livres, livres para criar e criar enquanto lemos e escrevemos, e, ao mesmo tempo, participando da escritura, vivendo, existindo dentro dela. Um texto (que pode ser literário ou não) que se constrói como um fenômeno que mistura percepção, troca, interação associação, memória, experiência, criação e prazer. Significa dizer, também, que há possibilidades de escrita literária na web que se desligam da intenção de escrever um texto literário, mas que um romance, por exemplo (para citar um gênero que tem uma tradição mais antiga), pode surgir da reunião de conversas nos chats, de posts e troca de comentários em blogs, do compartilhamento de imagens e textos ou de depoimentos e de perfis nas redes sociais, de curtas mensagens como os tweets de 140 caracteres etc.. A rede coloca em xeque categorias e conceitos tradicionais (como o conceito de individualismo e o das relações de autoria e de poder). Dimensões básicas da vida (como tempo e espaço) são desconstruídas, e a interação local-regional-global expressa um mundo globalizado no qual, segundo Castells (1999, p. 51), “todos os processos se somam num só processo, em tempo real no planeta inteiro”. Modificando o contato entre “a esfera da criação e a esfera da recepção”, diminuindo ou superando o intervalo temporal que distinguia nitidamente o momento de produção do autor e o momento da atividade do leitor, a Internet interfere na atividade de autores e leitores, na concepção do próprio texto e no conceito de “literário”. Altera, ainda, e às vezes suprime o papel dos agentes intermediários que tradicionalmente preparam e podem condicionar o encontro da obra com o público leitor (revisores, editores, críticos). Hoje, e com a Internet, ainda mais, a literatura acolhe outros textos em seu seio, diluindo as fronteiras do que se chamou de “literariedade”.
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Hipertextualidade, espacialidade e temporalidade, direitos do autor, e interações com o autor, leitura na tela e produção escrita on-line são pontos importantes quando estudamos este espaço sempre em construção que é a web. A história da Internet mostra que a escrita está no centro da rede. Ela é um texto imenso, gigantesco, infinito. A Internet é um novo espaço literário ainda em construção. Ausência de fronteiras, fusão do oral e do escrito, convergência dos papéis de leitor, autor, crítico e editor, aceleração e simultaneidade, fragmentação e multilinearidade, virtualização do real e realização do virtual, assim se processa o ler e o escrever na era da Internet.19
Referências
“Ler e escrever na era da Internet: virtualização do real ou realização do virtual” é o título da pesquisa de Lilia Silvestre Chaves e Izabel Cristina Rodrigues Soares, Universidade Federal do Pará (UFPA). 19
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Textos e hipertextos: experiências de leituras em Italo Calvino, Nick Bantock e Stuart Moulthrop Mara Alice Sena Felippe*
Resumo: A proposta deste ensaio é estabelecer um diálogo entre três formas diferentes de livros e/ou suportes de textos literários, propondo uma investigação sobre os processos de leitura e a presença do leitor em Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino; Griffin & Sabine, de Nick Bantock; e a hiperficção Victory Garden, de Stuart Moulthrop. O estudo objetivou mostrar como diferentes linguagens literárias se aproximam e também divergem em muitos aspectos, mas, ao final, ajudam a cunhar novas modalidades de composição, de difusão e de apropriação do escrito na era digital, a partir da ação de um leitor que se modifica ao navegar nos caminhos bifurcáveis da literatura eletrônica.
Palavras-Chave:
Suporte;
Leituras;
Leitores;
Ciberliteratura.
Abstract: The purpose of this essay is to establish a dialogue among three different types of books and/or literary texts plataforms by proposing a discussion about the reading process and the reader’s presence in If on a winter’s night a traveler, by Italo Calvino; Griffin & Sabine, by Nick Bantock; and the hyperfiction Victory Garden, by Stuart Moulthrop. This work intents to show how different literary languages are similar and also differ one from the other in many aspects, but eventually help to build up new forms of composition, dissemination and ownership of writing in the digital age, starting with the action of a reader who changes when navigating the outbranching paths of electronic literature. Doutora em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora. *
Keywords: Writing Environments; Reading; Readers; Cyberliterature.
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Observamos que, no formato tradicional impresso, a divisão da narrativa de ficção em capítulos, cenas, descrições e parágrafos transmite um ritmo à leitura, que se caracteriza pela repetição e por progressões temporais regulamentadas pelo autor. Ainda que seja criado um universo paralelo de associações enquanto lê, o ponto essencial é que o autor impõe ao leitor um ritmo que o transporta pelo fluxo de informações até o final, como o faz Italo Calvino, em Se um Viajante numa noite de inverno, mesmo que em leituras fragmentadas e percursos combinatórios. Nesse aspecto, o hipertexto eletrônico em Victory Garden funciona de maneira diferente, sem algumas das limitações impostas pelo material impresso e também por causa das suas novas possibilidades de acesso ao texto. O leitor tem a chance de usufruir da obra e também participar em sua elaboração, o que pode ser feito com maior velocidade e de maneira direta através da escolha dos links presentes na narrativa. A mobilidade é uma das características que atraem no hipertexto eletrônico e que se constitui na oportunidade de construir percursos, interferir no destino de personagens ou no que poderia ser o fim da estória. Em relação a esse aspecto, concordamos com Umberto Eco (2003), que destaca o valor da “inamovibilidade” das narrativas que o impresso permite, como se tivéssemos uma certa necessidade de sua severa lição “repressiva”. Porque “a função dos contos ‘imodificáveis’ é precisamente esta: contra qualquer desejo de mudar o destino, eles nos fazem tocar com os dedos a impossibilidade de mudá-lo” (ECO, 2003, p. 21). Assim, entendemos que a narrativa hipertextual pode nos educar para a liberdade e a criatividade, o que, de fato, é muito interessante; mas, como afirma Eco (2003, p. 21), “os contos ‘já feitos’ nos ensinam também a morrer”. A leitura do livro Se um viajante numa noite de inverno (Se uma notte d’inverno un viaggiatore, 1979), de Italo Calvino, suscita também o fato de que o leitor corre o risco de perder-se ou não entender o percurso narrativo.
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Há o risco de entrar em descaminhos que podem resultar em uma “má leitura” do texto, ainda que isto seja produtivo, como acredita Ricardo Piglia.1 Seja como for, é possível afirmar que o livro reserva um prazer especial que vem adornado com uma beleza diabólica. Mas quem disse que não há como se perder nos labirintos da ficção eletrônica? Este é, aliás, um dos fortes argumentos contra o novo suporte para o fazer literário. Se um viajante numa noite de inverno constitui-se de uma metaficção complexa que exige grande capacidade de apreensão, o que a tornou um agradável e desafiante passeio por caminhos que se bifurcam, aqui lembrando Borges (1989), em “O jardim dos caminhos que se bifurcam”2 (Ficciones, Emecé, Buenos Aires, 1956), conto que inspirou Calvino a fugir da narrativa tradicional. E enumera as razões presentes na obra de Borges:
PIGLIA, R. “Ler errado é muito produtivo”. Entrevista a Julián Fuks. Revista Entrelivros, n. 21. 1
Este conto é considerado por Calvino (1990) “o ensaio mais vertiginoso sobre o tempo” escrito pelo autor argentino que traz uma estória de espionagem – a exemplo do próprio Se um viajante que adota o modelo das redes dos possíveis – mas inclui um relato metafísico, que por sua vez inclui a descrição de um interminável romance chinês, tudo isso concentrado em uma dúzia de páginas. 2
Porque cada texto seu contém um modelo do universo ou de um atributo do universo – o infinito, o inumerável, o tempo, eterno ou compreendido simultaneamente ou cíclico; porque são sempre textos contidos em poucas páginas, com exemplar economia de expressão; porque seus contos adotam frequentemente a forma exterior de algum gênero da literatura popular, formas consagradas por um longo uso, que as transforma quase em estruturas míticas (CALVINO, 1990, p. 133).
Calvino faz do Leitor seu personagem principal com a única missão – que no decorrer da trama se desdobra em várias – de ler romances. A história, formada por outras, é cheia de surpresas, bem ao gosto do gênero policial, na qual o Leitor vive situações cômicas e trágicas em busca do “livro certo”, para que possa retomar a leitura interrompida. O entrecruzamento de histórias e as situações de suspense e mistério fazem lembrar os contos de Edgar Alan Poe, que se baseiam no romance de enigma, em que os fatos são trabalhados na narração como reconstrução e dedução. Se estivéssemos tratando
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de uma ficção eletrônica, poderíamos afirmar que, no suporte informatizado, vigoraria a multissequencialidade como recurso importante e marcadamente representado pelas lexias do texto. Em Victory Garden, o leitor assume, na tela, essa função de buscar e escolher qual sequência narrativa deve seguir, o que pode significar, a partir da decisão tomada, um avanço ou retrocesso no esquema da leitura. O autor parece identificar-se com o leitor através do Leitor, a quem ele nomeia como tal e inscreve na narrativa, deixando-o perder-se em uma rede de signos. Talvez esta seja uma forma de demonstrar a figuração do leitor na literatura ou, antes, as representações imaginárias da arte de ler na ficção. Como indica Piglia, em Que és un lector? (2005, p.25), para poder definir o leitor, primeiro é preciso saber achá-lo, nomeá-lo, individualizá-lo e, então, contar sua história. Isto a literatura faz, dá ao leitor um nome, retirando-o de uma prática múltipla e anônima, tornando-o visível em um contexto preciso, integrando-o em uma narração particular. Para Piglia, [...] o nome próprio é um acontecimento porque o leitor tende a ser anônimo e invisível. Certamente, o nome próprio associado à leitura remete a citação, a tradução, a cópia, aos diferentes modos de escrever uma leitura, de fazer visível o que se leu. [...] Trata-se de um caminho paralelo ao das citações: uma figura aparece nomeada, ou melhor, é citada. Se faz existir uma situação de leitura, com suas relações de propriedade e seus modos de apropriação. (PIGLIA, 2005, p. 24).
Na busca pelo prazer da leitura, o Leitor de Calvino acaba também encontrando o amor na figura da Leitora misteriosa que o acompanha em sua busca pelo complemento do livro. A aventura do Leitor se desenrola pela leitura de pelo menos dez inícios de capítulos de livros inacabados, de autores diferentes, em gêneros variados. Narrativas que se interrompem e que se assemelham
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ao espírito das Mil e uma noites, sempre à espera de um recomeço, um novo relato, histórias que se entrecruzam e que levam o próprio autor a perguntar: “Que história espera seu fim lá embaixo?”. Aliás, em Victory Garden e em Griffin & Sabine, poderíamos perguntar a mesma coisa. A primeira permite construir inúmeros caminhos até o final, se o leitor quiser chegar ao final ou mesmo começar por ele, enquanto a última simplesmente não tem final específico, como que a suspender a ação do leitor ou deixar sua imaginação criar o desfecho, talvez à espera do próximo volume de aventuras. Como explicou Italo Calvino, durante conferência no Instituto Italiano de Cultura de Buenos Aires, em 1984: Tive de escrever o início de uma dezena de romances de autores imaginários, todos de algum modo diferentes de mim e diferentes entre si: um romance todo de desconfianças e sentimentos confusos; outro todo de sensações densas e sanguíneas; um introspectivo e simbólico; um existencial e revolucionário; um cínicobrutal; um de manias obsessivas; um lógico e geométrico; um erótico-pervertido; um telúrico-primordial; um apocalíptico-alegórico. (CALVINO, “Il libro, i libri”, Nuovi Quaderni Italiani, Buenos Aires, 1984, p.19).
Em vários momentos do romance, o autor aponta para a discussão em torno do prazer de ler. O tema remete o leitor à preocupação barthesiana com o prazer ou jouissance do texto, que deve ser algo próximo ao desejo erótico, a ponto de, como acredita Calvino em Se um viajante, (p. 17), “conduzir ao prazer mais consistente, à consumação do ato”, um prazer ao final inconcluso. Barthes (2002, p.12) descreve este prazer do texto como algo “semelhante a esse instante insustentável, impossível, puramente romanesco, que o libertino degusta ao termo de uma maquinação ousada, mandando cortar a corda que o suspende, no momento em que goza”. O prazer da leitura em papel está em aproveitar cada relato, numa atividade
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lenta, destilada, concentrada, o que significa também, ou, sobretudo, a possibilidade de voltar atrás, de reler. A releitura, tão comum no impresso, parece antagonizar com a ordem temporal de uma sociedade dominada pela pressa, pela fragmentação e velocidade, o que em muito se assemelha às características presentes na construção da ficção eletrônica. Há mesmo referências explícitas ao sentimento do leitor em relação ao ato de leitura e ao próprio fato de poder manusear um objeto-livro, extraindo dele as significações que melhor lhe aprouver. Pensando nisso, no prazer que pode estar por trás de toda leitura e no sentimento do leitor, principal interessado no conteúdo da obra literária e razão de sua existência, Calvino dialoga com seu Leitor, ensinando-o um passo a passo do ritual da boa leitura: Revire o livro entre as mãos, percorra o texto da contracapa, das orelhas, são frases genéricas que não dizem muito. Melhor isso que um discurso que pretenda sobrepor-se de forma indiscreta àquele que o livro deve comunicar diretamente, àquilo que, pouco ou muito, você mesmo extrairá dele. É certo que esse passeio ao redor do livro – ler o que está fora antes de ler o que está dentro – também faz parte do prazer da novidade, mas, como todo prazer preliminar, este também deve durar um tempo conveniente e pretender apenas conduzir ao prazer mais consistente, à consumação do ato, isto é, à leitura do livro propriamente dito. (CALVINO, 1990, p. 16-17).
Talvez também por esta razão, a busca incessante pelo prazer da leitura e a manutenção da atenção do leitor, o romance de Calvino parece ter explicitamente a função de levá-lo à tarefa de perceber a intertextualidade inscrita em suas linhas, como que a chamá-lo a coparticipar com sua leitura dos fatos e o uso de um repertório de conhecimentos individuais, de leituras e experiências anteriores. Mas, ao mesmo tempo, sugere uma busca de outros conhecimentos relacionados – pode-se dizer
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até parodiados no texto – que trazem em si uma carga de mistério, que faz com que o leitor se depare com algo que ainda não sabe bem o que é. Assim ocorre com a personagem Ludmilla, a Leitora de Se um viajante... (p. 52): “Gostaria que as coisas que leio não estivessem todas ali, concretas a ponto de serem tocadas, e sim que se pudesse captar ao redor algo que não se sabe exatamente o que é, o sinal de não sei o quê...”. Curiosamente, o mesmo sentimento que se apodera de um leitor imersivo que, ao ler uma narrativa como Victory Garden, por exemplo, tem desperta a ânsia pelo jogo, pelo inusitado, pela busca de algo mais, algo como lançar-se ao desconhecido que há por trás de cada link que só espera o primeiro click do mouse. Nesta relação que o autor pretende estabelecer com o mundo, percebe-se a influência borgeana ao longo do hiper-romance, especialmente no conto “Numa rede de linhas que se entrecruzam”, um exemplo de narração construída como operação lógica, figura geométrica ou jogo de xadrez. Nesse conto de espelhos estruturado por Calvino, o personagem, que também se coloca na posição de narrador, é um colecionador de caleidoscópios que multiplicam ao infinito a sua imagem como uma forma de esconder, entre tantas outras, o seu verdadeiro eu. Mesmo as páginas que escreve “evocam a fria luminosidade de uma galeria de espelhos onde um número limitado de figuras se refrata, reverte-se, multiplica-se” (p. 167). A personagem busca captar uma imagem da totalidade, poder colecionar não só espelhos, mas conhecimento, pessoas, almas. De espelho em espelho – acontece-me às vezes sonhar – a totalidade das coisas, o universo inteiro, a sapiência divina poderiam concentrar enfim seus raios luminosos num único. Ou talvez o conhecimento do todo esteja sepultado na alma e um sistema de espelhos que multiplicasse minha imagem até o infinito e restituísse sua essência numa imagem única me revelasse a alma do todo que se esconde na minha. (CALVINO, 1990, p. 171).
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Para aquele que se aventura na tarefa de juntar os fragmentos narrativos, o resultado são constantes idas e vindas ao livro, aos recursos da biblioteca e toda a carga de memória, rastros e resíduos que são deixados a todo momento pelos escritores. Faz parte do jogo acompanhar, até onde for possível, os fios das diversas narrativas que se iniciam a cada busca pelo “romance certo” ou alguma continuação de uma das obras iniciadas e não acabadas. Mais que relatos, mais que sentidos, a narrativa produz uma experiência, uma tarefa a que os Leitores que buscam o livro também estão sujeitos, como se observa em um dos inúmeros exemplos contidos em Se um viajante. Afirma a personagem Ludmilla, a Leitora da narrativa: Antes de mais nada, é preciso obter um exemplar completo de Se um viajante numa noite de inverno e outro igualmente completo de Fora do povoado de Malbork. Isto é, os romances que começamos a ler acreditando que tivessem esses títulos; se afinal seus verdadeiros títulos e autores são outros, eles que nos expliquem que mistério existe por trás dessas páginas que passam de um volume a outro. (CALVINO, 1999, p. 96).
Logo adiante, o autor explica que agindo assim está lançando mão de um expediente da arte de contar, um artifício, uma espécie de regra a sua escolha que consiste em colocar-se “um pouco mais abaixo das possibilidades de narrar” das quais dispõe. Para Calvino, tamanha multiplicidade narrativa resulta em uma verdadeira riqueza, vasta e sólida, melhor do que consumir-se e esgotar a narrativa em somente uma história, ao passo que tendo um “estoque praticamente ilimitado de substâncias narráveis, estou em condições de manipulá-la com desprendimento e tranqüilidade, deixando transparecer um ligeiro enfado e permitindo-me o luxo de demorarme em episódios secundários e detalhes insignificantes” (CALVINO, 1999, p. 113). De fato, os recursos utilizados são uma forma prazerosa
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e instigante de prender o leitor, que sempre irá buscar novos caminhos para deslocar dentro da narrativa. Por isso, para Calvino, desmontado e remontado o processo da composição literária, o momento decisivo da vida literária será a leitura. Ainda que entregue à máquina, a literatura continuará sendo um lugar privilegiado da consciência humana, uma explicitação das potencialidades contidas no sistema de signos de toda sociedade e de toda época. Assim, “a obra continuará a nascer, a ser julgada, a ser destruída ou continuamente renovada pelo contato do olho que lê.” (CALVINO, 2009, p. 26). Em Se um viajante..., a fragmentação dos capítulos de diferentes romances leva o leitor a uma viagem em busca de seu próprio caminho como em um hipertexto informático que abre possibilidades de leitura, de navegação. Talvez, não por acaso, Calvino inicie o penúltimo capítulo do livro da seguinte forma: “Leitor, é hora de sua agitada navegação encontrar um ancoradouro” (CALVINO, 1999, p. 256). O próprio livro parece gerar estas viagens num itinerário de raciocínios e fantasia, como mostra o discurso de um leitor que o personagem central encontra na biblioteca: “O estímulo da leitura me é indispensável, o de uma leitura substancial, embora eu não consiga ler de cada livro mais que algumas páginas. Mas aquelas poucas páginas encerram para mim universos inteiros, que eu não consigo esgotar” (CALVINO, 1999, p. 257). Como acredita um dos leitores a certa altura: A leitura é uma operação descontínua e fragmentária. Ou melhor: o objeto da leitura é uma matéria puntiforme e pulverizada. Na imensidade da escrita a atenção do leitor distingue segmentos mínimos, aproximação de palavras, metáforas, núcleos sintáticos, transições lógicas, peculiaridades lexicais que se revelam densas de significado extremamente concentrado. São como as partículas elementares que compõem o núcleo da obra, em torno do qual gira todo o restante. (CALVINO, 1999, p. 257).
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Ao pensar primeiramente na posição que o leitor (ou seria o personagem Leitor?) ocupa no romance de Calvino, é preciso tentar entender uma espécie de relação de poder que se estabelece entre quem lê e o autor. Em certos momentos, o autor se deixa levar, talvez fraquejar, pela forte presença do outro, do leitor, de um fantasma que o espreita. No capítulo 8, tal impressão é retirada dos arquivos, do registro no diário do escritor-personagem Silas Flannery, que afirma: “Os leitores são meus vampiros. Sinto uma multidão de leitores que olham por cima de meus ombros e se apropriam das palavras à medida que elas vão se depositando sobre a folha” (CALVINO, 1999, p. 175). Em alguns pontos da narrativa, especialmente no capítulo 11, o autor dá “voz” aos leitores que questionam sua própria posição, gostos e sentimentos em relação à leitura e ao livro. Um dos leitores acredita que a leitura “consiste numa operação sem objeto ou que seu verdadeiro objeto é ela própria. O livro é um suporte acessório ou, mesmo, um pretexto” (p. 258). Tome-se como exemplo a abertura do hiper-romance de Calvino, que se dirige a “você”, que pode ser aquele que de fato lê o livro ou ao personagem dentro da própria narrativa. Ao observar o mosaico moderno de significações em que se transforma o hiper-romance, percebem-se características que só fazem concretizar os movimentos da linguagem, evidenciando propriedades como os deslocamentos, as hiperligações, as multirreferencialidades. Ainda mais importante é destacar a forma como a escrita romanesca de Calvino constrói um tecido significativo efêmero, baseado em constantes interrupções, falta de páginas, quebra de capítulos, as constantes sugestões do autor de que “voltemos um passo” na narrativa. O autor nos faz lembrar da noção de “obra aberta”, presente nos escritos de Umberto Eco (2000) e que também pode ser observada nas narrativas de Griffin & Sabine e Victory Garden. Por outro lado, também nos faz identificar uma controvérsia quanto a alguns pontos destacados por Landow (1997 p. 181-182),3 para
“(1) fixed sentence, (2) definite beginning and ending, (3) a story’s ‘certain definite magnitude’, and (4) the conception of unity or wholeness associated with all these other concepts. In Hypertext fiction, therefore, one can expect individual forms, such as plots, characterization, and setting, to change, as will genres or literary kinds produced by congeries of these techniques.” 3
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quem a prática do hipertexto questionaria aspectos em relação à narrativa impressa como o uso da sentença fixa, início e fim definidos, uma certa “magnitude definitiva” da história e a concepção de unidade e integralidade associadas a todos os outros conceitos. Na ficção em hipertexto, portanto, pode-se esperar que formas individuais, tais como enredo, caracterização e ambientação mudem, assim como os gêneros literários produzidos pela conjugação destas técnicas. Na verdade, consiste não apenas em simples mudança, mas alteração profunda nos formatos e conteúdos das narrativas. Pensar sob uma perspectiva que envolve outras percepções, como a descontinuidade da leitura na tela, a busca de palavras-chave ou temáticas que o leitor-navegador quer capturar, sem que haja necessariamente uma identidade e coerência envolvendo uma totalidade textual a qual o elemento pertença. Chegamos mesmo a considerar os textos no mundo digital como algo que se assemelha a um grande banco de dados, que busca fragmentos cuja leitura absolutamente não supõe a compreensão ou a percepção das obras em sua identidade singular. Em Se um viajante numa noite de inverno, há o movimento do jogo, um jogo de rastros, uma escrita suplementar que só pode ser admitida a partir da falta de centro da narrativa, das substituições no campo da linguagem. O romance de Calvino pode ser considerado como uma metáfora da leitura e do próprio leitor, pois, ao apresentar um sujeito que viaja para as imagens que lhe são enviadas a partir da página impressa, permite o estabelecimento de comparação com um leitor, que também viaja a partir daquilo que seus olhos lhe apresentam, das experiências que vivencia na leitura. O leitor, na obra de Calvino, são vários, múltiplos, seres que também precisam ser lidos, nomeados, conhecidos ou, como diria Piglia, classificados em “um tipo de zoologia ou de botânica irreal que localiza gêneros e espécies de leitores na selva da literatura.” (2005, p. 25). Calvino dá-nos antes uma nítida noção de repetição,
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de algo sem final, uma ideia de incompletude que ele próprio apresenta no apêndice de Se um viajante..., como nos seguintes trechos: “[...] não se trata do ‘inacabado’, mas sim do ‘acabado interrompido’, do ‘acabado cujo final está oculto ou ilegível’, tanto no sentido literal como no metafórico” (1999, p. 268). Ou ainda: “Não me pergunte onde está a seqüência deste livro!... Todos os livros continuam além... Os livros são degraus para o limiar...” (1999, p. 77). E também em: “Ao ler, eu procuro um respiradouro... se meu olhar escava entre as palavras, é para tentar discernir o que se esboça à distância, nos espaços que se estendem para o além da palavra ‘fim’” (1999, p. 259). Entretanto, não é apenas a ideia do inacabado que nos sugere o romance de Calvino, mas a noção de que a incompletude transparece nas páginas e capítulos do romance de uma maneira quase que “material”, além da estrutural que se observa de forma mais imediata. O controle do próprio texto parece fugir das mãos do autor, que convida o leitor para participar da narrativa de forma particular, imaginando, construindo o fim de cada parte do romance e ainda o enredo em torno do Leitor e da Leitora. De fato, poderíamos pensar que há um autor por trás de cada leitor que constrói um tipo de narrativa hipertextual imprevisível formada por hipotextos que levam a uma multiplicidade de narrações. Como explica o próprio Calvino: “Meu intuito aí [Se um viajante numa noite de inverno] foi dar a essência do romanesco concentrando-a em dez inícios de romance, que pelos meios mais diversos desenvolvem um núcleo comum, e que agem sobre um quadro que o determina e é determinado por ele.” (CALVINO, 1990, p. 134-135). O autor demonstra essa atração pela multiplicidade em seu texto, característica que está inclusive inserida na obra Seis propostas para o próximo milênio, ao afirmar que o modelo das redes dos possíveis pode estar concentrado em poucas páginas, como pode constituir uma estrutura que leva a romances extensos, nos quais a densidade de
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concentração se reproduz em cada parte separada: “Hoje, a regra da ‘escrita breve’ é confirmada até pelos romances longos, que apresentam uma estrutura acumulativa, modular, combinatória”. (CALVINO,1990, p. 134). Em cada episódio do romance, os objetos mais simples são vistos como o centro de uma rede de relações de que o escritor não consegue se livrar, multiplicando os detalhes a ponto de suas descrições e divagações se tornarem infinitas. Independente do ponto de partida, o discurso do autor se alarga de modo a envolver horizontes sempre mais vastos. A variedade de formas e caminhos leva a um tipo de estrutura labiríntica que em muito se assemelha a um arquétipo das imagens literárias do próprio mundo, o que se observa na multiplicidade e complexidade de representações que a cultura contemporânea nos oferece. A literatura do labirinto pode mesmo trazer em si uma dupla possibilidade, que nem sempre possui limites nítidos entre si: de um lado, há uma recusa ao simplismo, às representações massificadoras de mundo, o que mostra uma necessidade de enfrentamento da realidade complexa; de outro lado, há o encantamento pelo perderse em entradas sem saídas, em movimentos circulares, em buscas e possibilidades abundantes, algo que representaria a própria condição do homem. Calvino diria que o melhor a se fazer é buscar na literatura o caminho mais indicado para a saída, “embora essa saída nada mais será que a passagem de um labirinto para outro.” (2009, p.116). Por fim, quando observamos a estrutura narrativa da obra de Italo Calvino, notamos o quanto se aproxima da chamada literatura eletrônica, pelo menos em alguns conceitos fundamentais como a falta de linearidade, a multissequencialidade, o contato com o leitor, enfim, uma interessante tentativa de fugir às amarras da tradição impressa e, de alguma maneira, aproximar-se de uma abertura que leva ao novo, ao descentralizado e fragmentário. Isto nos faz lembrar que nenhuma teoria do texto que discuta o assunto jamais emprestou ao texto uma imagem de linearidade estrita, de produção
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monolítica e unívoca de significações. E todo o esforço teórico das últimas décadas apontou desde cedo para essa constante ultrapassagem da leitura pelo texto. É claro que os materiais e a materialidade do hipertexto são diferentes, mas um romance como Se um viajante numa noite de inverno presta-se plenamente para exemplificar algo que é inerente também ao campo literário da tradição impressa, isto é, a capacidade de construir significações localizadas, mas que não deixam de remeter para o horizonte geral dos sentidos possíveis. A narrativa em Griffin & Sabine intriga o leitor, não só pela aura de mistério que se instala ao longo da narrativa, mas por um apelo visual que acompanha suas páginas, marcadas por desenhos e ilustrações exóticas, fortemente coloridas e com apresentação de criaturas e paisagens fantásticas. O texto incorpora referências a personagens e lugares históricos, várias versões de cartas, e-mails, um manuscrito em forma de rascunho e diário, além de vozes que se entrecruzam com outras vozes para entreter e surpreender o leitor, numa espécie de narrativa fragmentada, que se estabelece por meio de superposição textual. Em cada página há elementos que prendem a atenção, como cartas, cartões-postais, gravuras, tudo impresso de forma luxuosa e atraente. Quase que imediatamente nos lembramos do uso destes recursos em comparação com os da hipermídia em ficções eletrônicas, capazes de agregar ao texto som, imagem, gráficos, animação, entre outros dispositivos que o suporte disponibiliza. Primeira parte da trilogia de Nick Bantock – ficcionista e ilustrador inglês de livros pop-up, que inclui ainda os romances Agenda de Sabine (1992) e O caminho do meio (1993) –, a história de Griffin e Sabine faz o leitor se perguntar onde realmente começa a ficção, o que é a realidade e o que o impulsiona a abrir as correspondências que estão inseridas de forma suplementar no livro. Griffin mergulha em sua fantasia para escapar de uma existência monótona, mas o seu interesse parece beirar a obsessão, fruto talvez de uma personalidade expressa
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através da arte, das imagens e da própria caligrafia, de um traço levemente perturbador, ou ainda através das colagens, muitas vezes subliminarmente violentas, em blocos de palavras impressas e páginas datilografadas de forma imperfeita. Entendemos que tais recursos são desestabilizadores do texto e da própria leitura, uma forma de modificar o aspecto linear da narrativa, de quebrar a homogeneização do enredo e a forma como possa ser visto pelo leitor. A expressão dos sentimentos conturbados de Griffin se reflete nas imagens que produz, o que leva o leitor a tentar entender quais são os vínculos que aproximam o imagético da narrativa e em que momentos escrita e imagem se aproximam. É próprio do senso comum pensar que um leitor “viaja” enquanto lê, porque transporta-se para espaço e tempo diversos do seu, percebe esse espaço e tempo, interage com ele e seus atores e, ao final, modifica-se de algum modo em função desse novo saber. Ao tomar a leitura como sinônimo de viagem, pensa-se em um sujeito que “mergulha” em um mundo que lhe é novo e que se lhe abre para a observação, para o conhecimento. Cabe ao leitor decifrar, através de um código escrito do qual possui conhecimento prévio, o novo, ao mesmo tempo em que cabe ao viajante decifrar, pela observação confrontada com as informações prévias que possui, os elementos que se apresentam. É possível que este seja o mesmo processo a que se submete o leitor-navegador quando adentra nos caminhos múltiplos da ficção eletrônica. De fato, as comparações podem ser feitas também em relação a Se um viajante, de Calvino, texto que também surpreende o leitor com efeitos de “viagens” e busca por novos caminhos. Na narrativa de Nick Bantock, o leitor não só mergulha nas histórias – ele literalmente “entra” no mundo que lê –, como também volta no tempo, o que pode ser interpretado como o percurso da busca do conhecimento, uma vez que se faz necessária, durante esse processo, a busca de suas fontes, sua inspiração, suas referências. Assim, a cada vez que retira uma carta do envelope, o leitor interfere de
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forma decisiva no percurso da leitura e na compreensão dos acontecimentos narrados. Talvez possamos ir além e imaginar que o mesmo sentimento toma o leitor que escolhe por determinado link com a certeza da liberdade na concretização dos seus desejos. O leitor assume a posição de um observador, um voyeur que talvez, intencionalmente ou não, parece colocar-se na história ao ter o objeto narrado (cartas e cartões) em suas mãos. A sedução está no apelo das imagens, que têm o mesmo poder hipnótico aos olhos do receptor como a pintura, a escultura, o teatro, o cinema e, mais recentemente, as artes eletrônicas. O romance epistolar de Bantock, que seduz por si mesmo, encontra estratégias para envolver o momento de leitura: sem o intermédio de um narrador, mas de uma forma que beira o voyeurismo, o leitor manuseia as cartas e os cartões-postais acompanhando a trajetória da história de amor de Griffin e Sabine por meio de suas correspondências e das imagens a elas relacionadas. O movimento e envolvimento geram uma fascinação à parte e transformam o leitor em observador de pequenas obras de arte construídas em cartões-postais. Cada página pode trazer uma carta, um cartão de fino aspecto impresso com luxo, o que transforma a estrutura criada por Bantock em um tipo de jogo ficcional que abre perspectivas de reflexões sobre a evolução da narrativa contemporânea, no momento em que oferece ao leitor mais do que um enredo impresso em papel. O que se descortina à medida que a leitura avança é uma mistura de romance multimídia, que reúne literatura, arte e cultura pop. A carta que pode ser manuseada, aberta, desdobrada, é como se fosse um link, uma ferramenta no jogo narrativo, um momento de escolha e decisão do leitor. A leitura das cartas e cartões-postais ilustrados é um trajeto que possui uma via de mão dupla, que força o leitor a agir, a retirálas de seus envelopes e desdobrá-las. Em tempos remotos, somente os livros marcavam a vida de seus leitores por
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meio de seu conteúdo, uma via de mão única. Bantock oferece ao leitor um romance que subtrai um pouco da “vida do papel” no momento em que dobra, desdobra as cartas, deixando marcas de sua passagem, ou melhor, de sua experiência de leitura e da interação com um tipo de livro-objeto, pronto para ser manuseado. Trata-se também de um suporte perfeito para a escrita pessoal e mística que se coloca em primeiro plano e que se constitui de textos episódicos, entrecortados, fragmentos que compõem um percurso narrativo indefinido, que leva ao desencontro e à transformação, deixando o leitor ávido, em suspense. Os postais, confeccionados com papel de alta gramatura, possuem imagem na frente e no verso e apresentam características de um cartão-postal comum: texto manuscrito escrito à tinta, endereço do destinatário e selos carimbados pela agência oficial dos correios. Para ter acesso ao conteúdo das cartas, o leitor é obrigado a abrir os envelopes, retirá-las e desdobrá-las para adentrar no universo narrativo criado por Bantock, que exige do leitor um aprofundamento nas relações das personagens, como que uma cumplicidade que se confirma com o ato da leitura ou a intromissão em aspectos íntimos que a narrativa expõe. Esse recurso que o autor lança mão nos remete à estrutura hipertextual de escrita, que oferece caminhos paralelos, interligados ao núcleo principal, uma parte que, de alguma forma, se submete ao todo. É interessante lembrar que, em seu ensaio sobre a Visibilidade, contido na obra Seis propostas para o próximo milênio, Calvino (1990) trata desse tipo de fantasia que o escritor lança mão como forma de tentar descrever o mundo. Assim é com Bantock, que transforma sua fantasia em um mundo de potencialidades que não podem ser transfiguradas em ato. Ou, como diria Calvino, “o mundo em que exercemos nossa experiência de vida é um outro mundo, que corresponde a outras formas de ordem e desordem” (1990, p. 113). Assim, os estratos de palavras que se acumulam sobre a página como os estratos de cores sobre a tela são ainda um outro mundo, também
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ele infinito, porém mais governável, menos refratário a uma forma. “A correlação entre esses três mundos é aquele indefinível [...], ou melhor, poderíamos classificá-lo de indecidível, como o paradoxo de um conjunto infinito que contivesse outros conjuntos infinitos” (CALVINO, 1990, p.113). A leitura do romance epistolar de Bantock oferece a ideia de um texto multíplice, que substitui a unicidade de um eu pensante pela multiplicidade de sujeitos, vozes, olhares sobre o mundo e sobre a própria narrativa, utilizando uma forma de poder de condução do leitor por caminhos que fazem interconexões da memória às referências do texto, às cartas que o remetem para fora da linearidade do romance. A estrutura narrativa utilizada em Griffin & Sabine não possui uma centralidade definida, mas é antes constantemente recentrada a partir de cada carta ou cartão enviado e exposto ao leitor, o que faz com que sua organização discursiva esteja em frequente deslocamento, podendo ter seu centro não fixado, mas momentaneamente demarcado em qualquer dos muitos pontos (ou correspondências) possíveis ao longo da ficção. É uma valorização explícita das partes que revela a verdadeira substância do todo. A forma narrativa de Bantock muito se assemelha também ao que Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) descrevem em Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, em que as multiplicidades são a própria realidade e estão longe de supor alguma unidade; não entram em nenhuma totalidade ou remetem a um sujeito como principal elemento da narrativa, mas antes a um fenômeno inexplicável que dá vida à trama. Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e... e... e...” Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. [...]
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Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 37).
A história impressa no livro Griffin & Sabine aponta para uma dispersão dos sujeitos e a valorização das singularidades, criando uma estrutura rizomática, descentralizada, que não se justifica por nenhum modelo estrutural ou gerativo. A trama parece abraçar o tempo contemporâneo e as inúmeras viagens ao passado, no presente e no futuro, mas não impõe um fim, já que neste primeiro romance da trilogia o volume termina com as cartas pregadas no teto de um estúdio vazio e um narrador, até então ausente, informando que Griffin Moss desapareceu. A própria escrita é diferenciada para os dois personagens, pois enquanto Sabine escreve seus cartões e cartas com uma caligrafia firme, com letras bem traçadas usando uma tinta clara, quase dourada, Griffin redige os cartões em letras maiúsculas, de formato um tanto irregular e as cartas são datilografadas com correções visíveis feitas à mão com caneta rabiscando sobre a tinta preta. Mais uma vez os signos são múltiplos atrativos para o leitor, que ativa sua percepção visual ao entrar em contato com caligrafias e técnicas de desenho e pintura que, somadas ao contexto da narrativa, o envolvem neste estranho amor de papel. Não há nada de impessoal nisto, ao contrário, o autor parece querer inserir o leitor na cena, trazendo-o para a intimidade que se forma e evolui a cada correspondência. Enfim, a primeira (ou talvez a última) pergunta que poderia ser feita é que se trata de uma possibilidade de resposta à temeridade do fim da era do livro. Um tipo de impresso que reforça uma estética que inclui o tradicional, o inovador, o minimalismo e o excesso, a nostalgia e a visualidade como fatores de atração desse novo leitor que
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se configura? Certamente é uma fórmula não nova, mas inovadora de tentar levar ao leitor uma literatura que se multiplica em diálogo com outras formas de sentido, como a imagem, a cor, a escrita como correspondência, os adereços que estão intimamente ligados ao ato de narrar, mas que, ao mesmo tempo, são extralivro, um “além” do livro ou mesmo “fora” dele. No nosso modo de ver, tratase de mais uma tentativa de fugir ao lugar comum da ideia de tradição, de texto fechado, linear, preso às amarras da escrita convencional. E, assim como Calvino, em Se um viajante..., Bantock buscou uma espécie de subversão da ordem ao estruturar o texto de maneira alternativa, apostando mais na atividade do leitor do que nos cânones (bem) estabelecidos da literatura que sempre vigoraram. Estes verdadeiros autores “subversivos” tentaram, de alguma forma, libertar-se dos limites a sua arte. Ao tentarem romper uma narrativa considerada linear, eles poderiam inaugurar uma forma de pensamento hipertextual na literatura. Como diria Bolter: “É como se estes autores estivessem esperando pelo computador para libertá-los do impresso. E de fato, muitas de suas obras poderiam ser transferidas para o espaço da escrita (hipertextual) e plenamente reconstruídas naquele” (BOLTER, 1991, p. 132). De alguma forma, as artes parecem antecipar os futuros desenvolvimentos sociais e técnicos e, neste caso, com a literatura não foi diferente. Autores como Landow (1997), Bolter (1991) e Murray (1997) são unânimes em afirmar que estas tentativas de rompimento dos padrões “lineares” da escrita teriam sido precursoras do conceito do hipertexto. Estas obras poderiam ser chamadas metaforicamente de “hipertextuais” porque se abrem a outros textos através de conexões e associações que podem ou não ficar a cargo do leitor. São obras que, de certa forma, subvertem a noção de texto tradicional, apontando para a atividade do leitor em seguir caminhos variados em histórias multiformes. As subversões aos padrões ocorrem em nome de uma outra ordem de leitura, apostando em
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interrupções ou colocando imagens e símbolos em uma determinada página, ou ainda a repetição exaustiva de um certo símbolo gráfico em meio ao texto. A partir do estudo de Se um viajante numa noite de inverno e Griffin & Sabine, acreditamos tratar-se de narrativas literárias “préhipertextuais” (LANDOW, 1997) elaboradas por autores que tentaram romper com o espaço limitado da página impressa fazendo uso de exercícios narrativos em termos de associações do pensamento e na reinvenção do próprio objeto textual. Se as duas narrativas analisadas anteriormente se aproximam, em alguns aspectos, da hiperficção eletrônica por possuírem características que levam a tal conclusão, nada mais apropriado neste momento que visualizar a ficção eletrônica Victory Garden e conhecer esta nova forma de criar e ler literatura na tela de um computador, com o aparato da máquina que permite interferências e recursos inéditos ao leitor comum, que agora se vê investido de certas liberdades até então impensadas. O hipertexto eletrônico, capaz de realmente produzir uma vastidão de possibilidades narrativas sem fechamento e de incorporar em um só texto uma grande heterogeneidade de linguagens, só pode ser realizado com os recursos da informática. Mesmo que consideremos o hipertexto como uma extensão das formas discursivas tradicionais com o auxílio de um forte aparato tecnológico, o que surge não é somente uma estética de aperfeiçoamento do impresso, mas uma linguagem que se multiplica e se conecta com outras mídias em relação intersemiótica, num universo repleto de signos intercambiáveis e móveis. Não é apenas uma rede de microtextos, como diria Lévy (1993, p. 41), mas um grande metatexto de geometria variável, com gavetas, com dobras. Um parágrafo pode aparecer e desaparecer sob uma palavra, capítulos surgem sob uma palavra do parágrafo, um pequeno ensaio sob uma das palavras destes capítulos, e assim virtualmente sem fim, de fundo falso em fundo falso, enquanto durar a vontade de leitura do navegador.
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No mundo do hipertexto digital, mudam as relações não só entre leitor e autor, as estruturas até então disponíveis e praticadas no mercado editorial, o fazer literário, mas a própria noção de literatura, que encontra nesta mudança de paradigma um espaço ideal tanto para aprofundar a crise da própria instituição literária quanto para se colocar como alternativa a ela. Vamos então conhecer a hiperficção Victory Garden. Um jardim em forma de mapa com 993 lexias4 e mais de 2804 links de conexão abertos para a curiosidade e paciência do leitor que se aventura pelos descaminhos da ficção eletrônica. Victory Garden, romance em formato digital (CD-ROM) produzido por Stuart Moulthrop, em 1992, é inspirado na obra de Jorge Luis Borges, especificamente no conto “O Jardim dos caminhos que se bifurcam”. A Guerra do Golfo ocorrida em 1991 é o pano de fundo do enredo principal, que possui uma forte influência política em todas as vertentes da história, já que os personagens, os lugares e aspectos da narrativa estão ligados diretamente ao conflito e suas consequências. Uma lexia pode conter vários links ou absolutamente nenhum, o que prenderia o usuário à página ou permitiria que ele se movesse apenas para frente ou para trás, como se estivesse virando as páginas de um livro. A existência do hipertexto permitiu aos escritores a oportunidade de experimentar outras formas de segmentação, justaposição e encadeamento lógico. Histórias hipertextuais geralmente têm mais de um ponto de entrada, muitas ramificações internas e nenhum final bem definido. Assim como as histórias multiformes criadas por Calvino, as narrativas hipertextuais são intrincadas teias de fios emaranhados. A diferença para a narrativa Se um viajante... reside não só nas características do suporte digital, mas na própria acessibilidade e interação do leitor na história, na utilização de um intermediário ou dispositivo como o mouse para navegar na tela, enfim, inúmeros fatores que são completamente diferentes do manuseio do objetolivro como o conhecemos até então.
Barthes descreve lexia como “uma seqüência de curtos fragmentos contíguos” (p.47). Os lexias ou blocos de textos, que podem ser visualizados na tela do computador formados em hipertextos, são compostos por um ou mais links direcionando o leitor a outras partes da narrativa. O leitor pode continuar a narração se quiser, com os links permitindo que volte ou avance pelas histórias lidas de modo diferente a cada acesso. In: BARTHES, Roland, em S/Z: uma análise da novela Sarrasine de Honoré de Balzac. Tradução Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. 4
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A navegabilidade é um dos fatores que diferenciam a hiperficção do texto impresso, pois ocorre principalmente através de uma barra de ferramentas com funções: o botão de retorno (leva de volta à lexia anterior), o botão de lista de link (abre uma janela que lista todos os links partindo da lexia atual, cada um com o nome e o título da lexia de destino), o yes que não tem botão (pode ser usado para responder a possíveis dúvidas no texto), o botão de impressão (faz uma cópia impressa da lexia). Geralmente, cada lexia tem um link padrão, ou seja, basta pressionar a tecla “enter” e o leitor pode seguir um caminho fornecido pelo autor. Pressionando as teclas de controle mostra palavras-chave/frases (clicando duas vezes, estas palavras ativam links que podem ser diferentes a partir do link padrão). Em suma, o leitor pode mover-se no texto pressionando a tecla de retorno após a leitura de cada lexia. Um duplo clique o leva a palavras-âncora, abrindo a lista de links em que pode selecionar um, digitando uma palavra no tipo de caixa (uma alternativa ao clicar duas vezes palavras-âncora) ou pode voltar do jeito que quiser com outro recurso disponível na tela. Já na página de rosto, o leitor tem várias opções para ir em frente: pode seguir para o mapa e escolher uma das lexias apresentadas ali como seu ponto de partida; também pode ir para a página de listagem de “caminhos para explorar”, treze vias dispersas através do texto, cada qual concentrando-se em diferentes aspectos da narrativa, alguns deles pouco organizados em torno de vários personagens que aparecem no texto e que desenvolvem uma trama de acontecimentos que se desdobram no emaranhado de estórias. Dentro de “caminhos a explorar” há um link padrão – que ao leitor pode facilmente passar despercebido – levando a uma lexia anúncio “caminhos para lamentar”, oferecendo mais sete caminhos préordenados. O que se observa é que, mesmo ao escolher um desses caminhos, o leitor pode sempre optar por não seguir os links padrão e selecionar um caminho que o leve a uma tensão em algum ponto da narrativa, basta clicar
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em algum ponto aleatoriamente. Essa ampla liberdade de escolha não se nota no texto impresso, como pudemos verificar em Se um viajante... e em Griffin & Sabine, mas também não significa que o leitor possa fazer tudo que quiser dentro dos caminhos que o autor disponibilizou. Há ainda a chance de ir a uma lexia na qual é possível construir uma frase repetidamente, escolher uma palavra entre duas alternativas oferecidas. Desta forma, várias frases diferentes podem ser construídas, cada uma levando a diferentes pontos de partida (algumas das frases coincidem com o início de “caminhos para explorar” e “caminhos para lamentar”). Depois de ter começado a explorar o texto, o leitor se vê diante de fragmentos de narrativas – que são geralmente várias lexias sucessivas que mostram o desenvolvimento de uma vertente de certa história –, cartas, relatórios, transcrições da TV, citações de livros de ficção e teóricos, letras de música e outros materiais diversos. Com teias de lexias ligadas em suas redes de rotas alternativas – ao contrário da impressão fixa unidirecional –, o hipertexto presente na hiperficção apresenta uma tecnologia radicalmente divergente, interativa e polivocal, favorecendo a pluralidade de discursos sobre o enunciado definitivo e libertando o leitor de uma possível dominação pelo autor. Jay Bolter (1991) é um dos estudiosos que acredita que o hipertexto eletrônico pode abrir novas prerrogativas para o leitor: O novo meio reifica a metáfora da resposta do leitor, para o leitor participa da construção do texto como uma seqüência de palavras. Mesmo que o autor tenha escrito todas as palavras, o leitor deve chamá-las e determinar a ordem de apresentação pelas escolhas feitas, ou os comandos dados. Não há só um único texto unívoco para além do leitor; o autor escreve um conjunto de textos potenciais, dos quais o leitor escolhe. (BOLTER, 1991, p. 158).
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Para ele, o hipertexto seria o único formato em que o leitor de fato teria algum poder e dependeria de um processo de seleção. O suporte viria concretizar a metáfora de uma resposta de leitura, na medida em que o leitor participa da composição do texto como uma sequência de palavras. Essa participação é real na hiperficção e até mesmo em páginas convencionais da Web. Em vez de um fluxo linear de texto como é próprio da linguagem verbal impressa, no livro particularmente, o hipertexto quebra essa linearidade em unidades ou módulos de informação, consistindo de partes ou fragmentos de textos. É formado por nós de informação, que podem aparecer na forma de texto, gráficos, sequências de vídeos ou de áudios, janelas ou de misturas entre eles. Mas, ainda assim, vale lembrar que, se o autor escreveu todas as palavras e escolheu todas as imagens, o leitor ainda precisa destacá-las e determinar a ordem de apresentação por meio das escolhas feitas e pelos links percorridos. Leitores e escritores de hipertextos parecem tornar-se coaprendizes e coescritores, por assim dizer, companheiros de viagem no mapeamento e remapeamento de experiências textuais (visual, cinética e sonora). E é esse processo parcialmente colaborativo que difere este tipo de estrutura narrativa das mais tradicionais, uma vez que o leitor atua de forma mais incisiva sobre o texto com escolhas de percursos a partir de uma vontade particular. O percurso de leitura é, no mínimo, labiríntico, já que há várias cenas que ocorrem na maioria dos caminhos pré-ordenados, de forma idêntica ou com pouca variação. A ordem em que essas cenas estão relacionadas difere bastante de um caminho para o outro, mas em geral eles podem ser dispostos em ordem cronológica. Ainda que em alguns momentos os acontecimentos sejam narrados em uma disposição diferente do que aconteceu, e apesar de existirem diferenças na ordem de caminhos, a narração possui índices ou marcadores suficientes para ajudar o leitor a colocá-los em uma sequência específica. As cenas não estão dispostas de forma sucessiva, mas vão
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se entrelaçando umas as outras para que o leitor possa acompanhá-las através das lexias, que possuem tamanhos distintos. Assim, é possível que o foco mude para outra cena e, em seguida, possivelmente para um terceiro, antes de retornar ao primeiro. Mesmo que os múltiplos caminhos possam dar destaques diferentes a diferentes cenas e personagens, a maioria deles, pelo menos, traz algo de todas as cenas centrais. Neste sentido, seria pertinente recordar a definição de base de Landow (1997), para quem o hipertexto denota um texto composto por blocos de texto e as ligações eletrônicas que os agregam. A hipermídia apenas alargaria a noção de texto no hipertexto ao incluir informação visual, som, animação, e outras formas de dados. Assim, [...] dado que o hipertexto, que liga uma passagem de discurso verbal a imagens, mapas, diagramas e som tão facilmente como a outra passagem verbal, expande a noção de texto para além do exclusivamente verbal, não distinguo entre hipertexto e hipermídia. Links eletrônicos tanto conectam lexias “externas” a uma obra [...] como interiores a ela, criando assim texto que é experimentado como não linear ou, mais propriamente, como multilinear ou multissequencial. Embora os hábitos convencionais de leitura se apliquem dentro de cada lexia, uma vez que se abandonam os limites vagos de cada unidade de texto, aplicam-se novas regras e novas experiências. (LANDOW, 1997, p. 3-4).
Claramente se observa que a organização reticular das unidades textuais deixa de existir, deixa de ter sentido o conceito de página enquanto unidade arbitrária determinada exclusivamente pelas particularidades físicas do suporte papel. O leitor assume uma das capacidades do autor, que é a de decidir a organização do texto através da navegação escolhida. Ainda assim, é possível afirmar que o CD-ROM muito se aproxima do livro clássico, não somente por possuir a dimensão material do objeto, mas
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pelo fato de poder ser adquirido em alguma livraria e ocupar espaço em uma biblioteca. No mercado, existe até a estratégia de alguns editores de apresentá-lo em uma embalagem com mais volume para fazer lembrar ao leitor do suporte livro impresso, o que só reafirma o fato de que as nossas referências do que seja livro ainda se voltam para o formato do códex. Contudo, não ignoramos os esforços em tornar essa comparação algo do passado, através do aperfeiçoamento do hipertexto informatizado que permite todas as dobras imagináveis, adaptáveis pelo leitor. E, é claro, com muita velocidade para satisfazer a um público mais imediatista, que não quer esperar para virar uma página e descobrir os próximos acontecimentos. A tela do computador não é, de fato, o equivalente informático da página impressa. Diante do CD-ROM o usuário pode se confundir com frequência, pois os novos objetos digitais exigem uma participação mais efetiva, não mais na simples decodificação das mensagens, mas também no funcionamento operacional do sistema técnico de leitura. Contudo, se o usuário não se intimidar diante dos erros e da desorientação, e não desistir da navegação, ele se tornará um internauta errante, do tipo que desconhece os procedimentos, mas irá descobrilos pela tentativa. Entre as descobertas, está a de que o computador não faz nada sozinho e precisa da ação participativa do leitor-usuário, ação que o transforma, de fato, em um navegador. Se o leitor de Victory Garden perguntasse, a exemplo do que fez Italo Calvino em Se um viajante numa noite de inverno: “Que estória aguarda, lá embaixo, seu fim?”, certamente ficaria difícil dar uma resposta definitiva, já que o que a ficção eletrônica pode oferecer ao leitor é apenas uma “sensação de final”, permitida pelas lexias e pelos links, o que não quer dizer que seja um fim definitivo de qualquer forma. Ainda que não houvesse links em tudo, é sempre possível voltar atrás de uma maneira e fazer uma escolha diferente em algum lugar, numa fase anterior, e dessa forma evitar totalmente o beco sem saída. Depois
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de um caminho de lexias ligado com links padrão, o autor pode sugerir um possível fim, negando qualquer ligação padrão ainda mais, mas isso é apenas uma sugestão que o leitor pode ou não aceitar. Seja como for, a recusa de conclusão pode ser entendida como uma negação da mortalidade, de estar em um tipo de situação onde definitivamente não há volta. Essa atração pelos jogos eletrônicos e histórias como as de ficção virtual representa, de certa maneira, uma encenação dessa rejeição da morte. Ao receptor é oferecida a chance de apagar memórias, começar tudo de novo, refazer o percurso escolhido anteriormente ou não, de repetir um acontecimento e experimentar uma solução diferente para as situações vividas. Isso, os meios eletrônicos podem oferecer, a possibilidade de encenar uma visão profundamente divertida da vida, uma visão de erros remediáveis e opções em aberto. A narrativa cibertextual, sem fim e sempre mutante, é um lugar de deleite num sentido de intermináveis transformações. Comparada aos formatos anteriores apresentados neste ensaio, a ficção eletrônica com suas conexões e associações pode ser caracterizada fundamentalmente como intertextual e infinitamente recentrável, pelo abandono da fixidez pela maleabilidade ou mutabilidade constante, pela abertura às remissões inter e intratextuais, o que provoca um descentramento quer da linearidade quer do próprio núcleo textual. Ao contrário das narrativas em papel, possui um acesso instantâneo e fácil a uma biblioteca virtual de fontes e informações que oferecem aos leitores um controle sem precedentes do que – e do como – se ler. O autor se vê colocado em segundo plano na medida em que os textos são atomizados e as lexias estão dispersas e reconfiguradas para servir às finalidades de quem as usa. O impulso linear da página impressa é rompido na medida em que o leitor faz suas escolhas pelos caminhos que prefere seguir, ao longo dos quais pode trabalhar e pensar de modo não sequencial. Concordamos com Babo (2004, p. 108), quando afirma
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que o que acontece no texto rizomático, em ambiente de hipertexto, é que o acesso propriamente perceptivo ao texto não pode senão ser feito segundo aquele dispositivo, ou seja, inevitavelmente deslinearizado, adquirindo desde logo uma vocação ao descentramento, à infinitude, à fragmentação ou à heterogeneidade semiótica, em imagem, som e letra, de que a textualidade participa. Importa mais apontar para uma mutação da configuração textual, ainda que no início, mas que já desperta para algo maior e incontornável, a experiência de escrita ou da escrita como experienciação dos limites. Todas as espécies de hierarquias de status e de poder se tornam irrelevantes, até mesmo as tipográficas – como tipos menores para notas de rodapé, ou destaques em citações – na medida em que a tela do computador promete democratizar o tratamento visual dos vários textos apresentados. Um leitor mais entusiasta pode tomar para si o desafio de esgotar todas as possibilidades do hipertexto, o que, além de cansativo, pode resultar na produção de incontáveis caminhos através da teia hipertextual. A ordem na qual os segmentos de história são lidos e o contexto local de cada lexia determinam, em certa medida, como eles são interpretados e, em alguns casos, o efeito cumulativo das interpretações imprevisíveis pode realmente produzir uma história totalmente nova. Ler todas as lexias em Victory Garden significa que se deve ler, ou então ignorar completamente, várias lexias. Tentar compreender todas as alternativas possíveis de ordens em que as lexias podem ser lidas está além da capacidade de qualquer leitor individual e não nos parece ser aspecto relevante para quem se propõe a conhecer este tipo de narrativa. Logo nas primeiras tentativas, percebe-se que Victory Garden representa um tipo de ficção de hipertexto que, por causa de seu tamanho, é teoricamente e praticamente inesgotável. Por isso, é melhor descartar a leitura exaustiva como um desfecho definitivo para a ficção de Moulthrop. A verdade é que todas estas interpretações compartilham a propriedade
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comum de serem muito flexíveis e também fortemente indeterminadas e não podem querer dar conta de forma alguma de explicar cada aspecto da grande teia que é Victory Garden. Aqui talvez se encontre a maior diferença e afastamento em relação a Se um viajante numa noite de inverno e Griffin & Sabine. Embora as narrativas em papel sejam fragmentárias e em vários momentos não sequenciais, ainda assim há uma noção de finitude. Em Victory Garden não há limites, o que provoca um constante descentramento, quer da linearidade quer do próprio núcleo textual. Consideramos importante ressaltar que existem especificidades da literatura eletrônica e da impressa que devem ser lembradas não para confundi-las e igualá-las, mas para explorar seus pontos em comum sem misturá-los. Basta que pensemos que, ao contrário do livro impresso, o texto eletrônico não pode ser acessado sem o código ser executado, o que faz de tal mecanismo parte integrante da obra, já que contém informações ou observações interpretativas fundamentais para a compreensão do que foi proposto pelo autor. Então, há muito mais do que a simples e romantizada relação entre o autor, sua inspiração e talento diante do papel, há mecanismos que existem por trás da máquina e que constituem ponto fundamental para que a narrativa seja produzida e disponibilizada em um processo decodificado para o entendimento do leitor.
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Textos em rede, labirintos literários Maria Elisa Rodrigues Moreira*
Resumo: Para tratar da relação entre literatura e hipertextualidade, elegemos as teorias de rede como modelo para nortear uma leitura das obras de Jorge Luis Borges e Italo Calvino que privilegie a multiplicidade de abordagens possíveis. Nesse sentido, tomando o hipertexto como uma metáfora, na acepção de Pierre Lèvy, elegemos uma de suas formas representativas para abordar as obras dos dois escritores, o labirinto, que nelas aparece em roupagens as mais diversas.
Palavras-Chave: Hipertexto; Labirinto; Italo Calvino, Jorge Luis Borges.
Abstract: To treat the relationship between literature and hypertextuality the network theories as a model to guide a reading of Jorge Luis Borges and Italo Calvino’s works that privilege the multiplicity of possible approaches. So, taking the hypertext as a metaphor, according to Pierre Lèvy, we elect one of its representative forms to approach the work of the two writers, the labyrinth, which appears in many different guises.
Keywords: Hypertext; Labyrinth; Italo Calvino; Jorge Luis Borges.
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais. *
Se quiserem acreditar, ótimo. Agora contarei como é feita Otávia, cidade-teia-de-aranha. Existe um precipício no meio de duas montanhas escarpadas: a cidade fica no vazio, ligada aos dois cumes por fios e correntes e passarelas. [...] Essa é a base da cidade: uma rede que serve de passagem e sustentáculo. Todo o resto, em vez de se elevar, está pendurado
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para baixo: escadas de corda, redes, casas em forma de saco, varais, terraços com a forma de navetas, odres de água, bicos de gás, assadeiras, cestos pendurados com barbantes, monta-cargas, chuveiros, trapézios e anéis para jogos, teleféricos, lampadários, vasos com plantas de folhagem pendente. Suspensa sobre o abismo, a vida dos habitantes de Otávia é menos incerta que a de outras cidades. Sabem que a rede não resistirá mais que isso. Italo Calvino
É ao Marco Polo calviniano, narrador-arquiteto que elabora, com fios distintos, a rede sutil que define e sustenta uma cidade reticular, pendente sobre o abismo, cujo equilíbrio depende dos nós e conexões que estabelece, que recorremos para dar início a esse pensamento acerca da literatura e da hipertextualidade. Para não sucumbir frente ao precipício, Otávia precisa pautar suas relações sobre as tramas dessa rede, sobre as conexões entre os mais variados objetos e pensamentos, sob o risco de afundar caso os elos se rompam. São essas conexões que garantem sua estabilidade: “O que faz com que uma rede seja forte é o fato de cada ponto da rede se apoiar nos outros pontos da rede, e é porque a rede local adiciona, junta essas fraquezas umas com as outras, que ela engendra força” (CALLON, 2004, p. 77). A rede define-se, assim, muito mais pelas linhas que traça que pela superfície que cobre: O que aparece [na rede] como único elemento constitutivo é o nó. Pouco importam suas dimensões. Pode-se aumentá-la ou diminuí-la sem que perca suas características de rede, pois ela não é definida por sua forma, por seus limites extremos, mas por suas conexões, por seus pontos de convergência e de bifurcação. Por isso a rede deve ser entendida com base numa lógica das conexões, e não numa lógica das superfícies (KASTRUP, 2004, p. 80).
Espaço topológico móvel, a rede nos parece o modelo mais adequado a um pensamento complexo associado à literatura, uma vez que se mostra capaz de incorporar
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suas contradições, desvios e simultaneidades. Interessa-nos destacar, em especial, o modo de raciocínio e a carga simbólica da rede, que trazem para o cerne do pensamento a ideia das relações, das passagens, das ligações, das transições, do constante engendramento de diferenças. Nesse espaço de produção de sentidos teríamos ciência, filosofia, arte, homens, natureza, máquinas, saberes diversos atuando conjuntamente na construção de um diálogo reticular instituído através de conexões, aproximações e distanciamentos, constantes e múltiplos, visando aos conhecimentos necessários e desejados em determinados agenciamentos e configurações da realidade. Como afirma Elyana Yunes, é no exercício desse pensamento nômade e mestiço que subjaz à figura da rede que se desenvolve “[...] o matiz das diferenças em que se articulam o filosófico, o poético, o mitológico, o lógico, sem hierarquizar conhecimentos e sem excluir modos de saber” (YUNES, 2004, p. 278). Eleger a rede como o modelo de pensamento para orientar um olhar sobre as obras de Jorge Luis Borges e Italo Calvino é, assim, colocar em destaque uma leitura das conexões e das diferenças, dos percursos possíveis e da multiplicidade de abandonos por eles determinadas, da possibilidade de crescimento constante dessas obras para “todos os lados e em todas as direções” (KASTRUP, 2004, p. 80). A noção de rede, conforme sua genealogia traçada por Pierre Musso (2004), é marcada pela polissemia. O autor começa por indicar sua aproximação com os imaginários míticos da tecelagem e do labirinto, os quais são profundamente marcados por relações com a transformação e com a criação de percursos, passando em seguida ao reticular interno da medicina e ao externo das técnicas, até chegar à sua atualidade de múltiplos níveis de significação, quando a rede se torna um “modelo de racionalidade”, uma “ferramenta de análise”. Esse percurso parte da rede concebida como algo exterior ao corpo, que tanto pode cobri-lo e resguardá-lo quanto confundi-lo e des-
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norteá-lo, passando num segundo momento pela quase fusão entre rede e corpo, quando a rede passa a integrar o corpo humano e a se identificar com seu modo de funcionamento, para voltar, por fim, ao exterior como artefato construído, como técnica, como artificialidade. A rede passa, assim, de objeto a ser observado a modelo a ser construído, assumindo um caráter técnico pautado por sua matematização e geometrização: ela se torna artefato para a cobertura de um território, modelo de comunicação que altera a relação do ser humano com o espaço e o tempo. É a partir desse percurso polissêmico que a rede se estrutura também como um conceito, como um modo de raciocínio, como um método de pensamento. A rede traz em seu próprio escopo conceitual uma diversidade de pensamentos e de modos de concretização – ela pode ser uma “ferramenta de análise”, um “operador de leitura”, um “modo de raciocínio”, uma “tecnologia do espírito”, uma “matriz técnica” ou uma “metáfora”, modelos que podem ser expressos como um “sólido-cristal”, um “sistema de circulação de fluidos”, um “diagrama”, uma “árvore”, um “labirinto”: “Surpreendente plasticidade dessa figura da rede que pode revestir formas diversas: um estado, seu inverso e a passagem de um ao outro” (MUSSO, 2004, p. 25). É justamente esse caráter fronteiriço, deslocado, híbrido, que nos leva a destacar as redes como o modelo mais enriquecedor para se pensar a literatura nas obras de Jorge Luis Borges e Italo Calvino: As metáforas da rede parecem inscrever-se/situar-se a meio caminho entre a árvore e o caos, entre uma ordem linear hierarquizada e uma desordem absoluta. A imagem da rede é a de uma figura intermediária: uma trama mais aberta e mais complexa que a árvore, porém estruturada demais para dar conta do aleatório e da desordem. Enquanto, no início do século XIX, a figura da rede se opunha à da árvore, a modernidade coloca a rede entre a árvore e a nuvem. A rede permite opor uma forma geral à
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pirâmide ou à árvore, lineares e hierarquizadas, mas impede de cair no caos e na desordem (MUSSO, 2004, p. 34).
Mas a rede pode aparecer, ela própria, sob diversas configurações, dentre as quais duas parecem-nos profícuas à reflexão sobre a literatura, no contexto de uma produção de saberes pautada pela complexidade: o hipertexto e o labirinto. A primeira, marcadamente contemporânea, associada às novas tecnologias de informação e, em especial, à internet, configura-se como o modelo reticular por excelência de nossa época;1 a segunda, figura simbólica que persiste desde a antiguidade, encontra vigorosa utilização nos mais diversos campos do saber, em especial, na literatura. O hipertexto é aqui tomado na acepção de Pierre Lévy, como “uma metáfora válida para todas as esferas da realidade em que significações estejam em jogo” (LÉVY, 1993, p. 25), como “um modo de abordar o texto” (FURTADO, 2006, p. 87). De acordo com Lévy, um texto é um complexo problemático que se resolve em uma atualização, através da criação de uma resposta a um problema colocado pela virtualidade do texto. Cada leitura de um texto é, desse modo, uma leitura diferente, da qual podem emergir novos significados; o texto é tecido (tecido junto: complexus) pelo leitor, retalhado e depois costurado, formando uma trama única que pode tanto criar quanto desconsiderar elos e conexões da rede textual:
Ainda que algumas das características do hipertexto se façam perceptíveis em textos de épocas bastante distintas, seu conceito como aparato tecnológico e operador de leitura é contemporâneo. 1
Lemos ou escutamos um texto. O que ocorre? Em primeiro lugar, o texto é esburacado, riscado, semeado de brancos. São as palavras, os membros de frases que não captamos (no sentido perceptivo mas também intelectual do termo). São os fragmentos de texto que não compreendemos, que não conseguimos juntar, que não reunimos aos outros, que negligenciamos. De modo que, paradoxalmente, ler, escutar, é começar a negligenciar, a desler ou desligar o texto. Ao mesmo tempo que o rasgamos pela leitura ou pela escuta, amarrotamos o texto. Dobramo-lo sobre si mesmo. Relacionamos uma à outra as passagens que se correspon-
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dem. Os membros esparsos, expostos, dispersos na superfície das páginas ou na linearidade do discurso, costuramo-los juntos: ler um texto é reencontrar os gestos têxteis que lhe deram seu nome (LÉVY, 1996, p. 35-36).
Hipertexto e rede aproximam-se, pois, pela metáfora têxtil, que os interliga e relaciona intimamente, tornando-os noções complementares e permitindo que os costuremos na tentativa de enriquecer os estudos literários. Ao ser utilizado como metodologia de leitura do literário, como postura para se percorrer um território, o hipertexto possibilita a complexidade do sentido, coloca em movimento uma gama de saberes móveis e cambiantes que são, por definição, impossíveis de unificação numa totalidade. A cena da reflexão literária constitui-se, assim, com base numa concepção de conhecimento que se sabe incapaz de totalização e finitude, num processo de leitura que assegura a criação de linhas de fuga a interpretações rígidas, garantindo a possibilidade do estabelecimento de conexões que ampliem e amplifiquem o texto e que abram espaço para a intervenção ativa e crítica daquele que sobre ele se debruça: Se atribuir sentido a um texto é conectá-lo a outros, é construir um hipertexto, o sentido será sempre móvel, em virtude do caráter variável do hipertexto de cada interpretante – o que importa é a rede de relações estabelecida pela interpretação. Estaria assegurada, dessa forma, uma das virtudes da literatura, segundo Ricardo Piglia: permitir ao escritor e, por extensão, ao leitor “escapar desses lugares nos quais é comum ficarmos presos” (MIRANDA, 2004, p. 102).
Para caracterizar o hipertexto, Lévy (1993, p. 25-26) aponta seis princípios básicos que lhe confeririam sua mobilidade definidora, a saber: metamorfose; heterogeneidade; exterioridade; multiplicidade e encaixe das escalas; topologia; e mobilidade dos centros. O princípio de
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metamorfose garante a constante reconstrução da rede hipertextual por todos os atores nela envolvidos, num processo de produção e negociação perpétuo. O princípio de heterogeneidade afirma que a rede hipertextual é formada por nós e conexões os mais diversos possíveis, num “processo de acolhimento da alteridade” (LÉVY, 1996, p. 25). De acordo com o princípio de exterioridade, “a rede não possui unidade orgânica, nem motor interno” (LÉVY, 1996, p. 25). Conforme o princípio de multiplicidade e encaixe das escalas, a rede se desenvolve fractalmente, de maneira que um nó pode conter toda uma rede e assim por diante, num processo ininterrupto de citações, remissões e recomeços. Já o princípio de topologia ressalta o caráter espacial da rede, uma vez que “a rede não está no espaço, ela é o espaço”. O último princípio indicado por Lévy é o de mobilidade dos centros, segundo o qual a rede hipertextual não tem um centro único, mas sim uma multiplicidade de centros em constante mobilidade, observação semelhante à feita por Italo Calvino no que se refere também ao mundo contemporâneo: “os acontecimentos, independentemente de sua duração, se tornam punctiformes, interligados por segmentos retilíneos, num desenho em ziguezagues que corresponde a um movimento ininterrupto” (CALVINO, 1995, p. 48). Pierre Lévy utiliza-se ainda de outra imagem para caracterizar o hipertexto e o acesso que o mesmo nos dá “a outras maneiras de ler e de compreender” (LÉVY, 1996, p. 40). É o “efeito Moebius”, um movimento de “passagem do interior ao exterior e do exterior ao interior”, no qual “os limites não são mais dados”, “os lugares e tempos se misturam” e “as fronteiras nítidas dão lugar a uma fractalização das repartições” (LÉVY, 1996, p. 24-25). Ou, nas palavras de Edgar Morin (2007, p. 73), “as fronteiras são sempre fluidas, são sempre interferentes”. Nessa perspectiva, o saber se constituiria a partir de heterogêneos elementos de um jogo baseado no confronto, na fluidez, na mistura, enfim, como um processo em que o resultado depende do agenciamento coletivo de conhecimentos e subjetividades múltiplas:
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Aqui, não é mais a unidade do texto que está em jogo, mas a construção de si, construção sempre a refazer, inacabada. Não é mais o sentido do texto que nos ocupa, mas a direção e a elaboração de nosso pensamento, a precisão de nossa imagem do mundo, a culminação de nossos projetos, o despertar de nossos prazeres, o fio de nossos sonhos. Desta vez o texto não é mais amarrotado, dobrado feito uma bola sobre si mesmo, mas recortado, pulverizado, distribuído, avaliado segundo critérios de uma subjetividade que produz a si mesma (LÉVY, 1996, p. 36).
Nesse movimento de leitura que manipula o texto, que o esburaca, rasga, dobra e costura, permitindo a intervenção crítica e criativa do leitor/pesquisador, aproximamo-nos da literatura como que de um anel de Moebius, com suas duas faces que são ao mesmo tempo uma só, “o paradoxo do uno e do múltiplo” apontado também por Edgar Morin. E é nessa figura que não tem dentro ou fora que nos apoiamos para aproximarmos o modelo hipertextual de outra das espacialidades que pode ser assumida pela rede e sobre a qual interessa determo-nos: o labirinto. Figura cara à literatura, o labirinto é uma das temáticas de destaque na obra de Jorge Luis Borges, que dele se vale em diversos de seus contos, abordando-o por muitas de suas múltiplas veredas, mas também marca sua presença na produção de Italo Calvino, seja ela ensaística ou ficcional. Marta Canfield afirma que o labirinto povoa a escrita borgiana, na qual aparece transvestido em metáforas várias, de casas, palácios, cidades, da alma, do sonho, da selva, do deserto, dos livros, da viagem pelo mundo e até mesmo do próprio mundo, mas também como construções metafísicas, imaginativas, criativas ou artísticas (CANFIELD, 1999). Assim, o próprio Borges aborda a questão, indicando a tênue linha que pode transformar qualquer espaço em labirinto: El concepto de laberinto – el de una casa cuyo descarado propósito es confundir y desesperar a los huéspedes – es
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harto más extraño que la efectiva edificación o la ley de esos incoherentes palacios. El nombre, sin embargo, proviene de una antigua voz griega que significa los túneles de las minas, lo que parece indicar que hubo laberintos antes que la idea de laberinto. Dédalo, en suma, se habría limitado a la repetición de un efecto ya obtenido por el azar. Por lo demás, basta una dosis tímida de alcohol – o de distracción – para que cualquier edificio provisto de escaleras y corredores resulte en un laberinto (BORGES, 2007a, p. 156).2
“O conceito de labirinto – o de uma casa cujo descarado propósito é confundir e desesperar os hóspedes – é bem mais estranho que a efetiva edificação ou a lei desses incoerentes palácios. O nome, contudo, provém de uma antiga voz grega que significa os túneis das minas, o que parece indicar que houve labirintos antes da ideia de labirinto. Dédalo, em suma, teria se limitado à repetição de um efeito já obtido pelo azar. Por demais, basta uma dose tímida de álcool – ou de distração – para que qualquer edifício provido de escadas e corredores resulte em um labirinto” (tradução nossa). 2
Nesse sentido, é bastante interessante a construção do labirinto que se prenuncia em “A morte e a bússola” (Borges, 2007c). Nesse conto, uma investigação policial constitui-se não apenas como uma trama de construção labiríntica, mas também como um exercício de construção de labirintos: nele se narra o percurso do investigador Erik Lönrot, que “se julgava um puro raciocinador, um Auguste Dupin” (p. 121), em busca da solução de um assassinato. Esse percurso acaba por levar a labirintos diversos – a casa de Triste-le-Roy, labirinto multiplicado ao infinito por suas duplicações e espelhos; o labirinto losangular planejado a posteriori por Red Scharlach para a morte de Lönrot; o labirinto de uma única linha reta apontado pelo próprio Lönrot, no momento de sua morte, como possível solução para uma outra morte, a ocorrer em outro tempo possível. Nesse breve conto de investigação policial bem ao estilo de Edgar Allan Poe, como explicita a menção a Dupin, Borges constrói uma série de distintos labirintos, assim como converte o próprio crime num labirinto narrativo no qual Lönrot se embrenha desde o princípio da investigação, pois o crime apresenta-se como decorrente do desejo de Lönrot de que o assassinato investigado tivesse uma motivação “interessante”, a qual acaba por ensejar o plano de sua própria morte: “O primeiro termo da série me foi dado pelo acaso”, afirma Scharlach, referindo-se ao primeiro assassinato, o de Yarmolinsky,
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que havia decorrido de uma frustrada tentativa de roubo. Mas, ao saber, pelos jornais, que Lönrot estava investigando os escritos da vítima em busca da chave para a sua morte, o acaso abandona a explicação de Scharlach: “Compreendi que o senhor conjecturava que os hassidim haviam sacrificado o rabino; dediquei-me a justificar essa conjectura” (BORGES, 2007c, p. 133). E Borges termina o conto acenando para um labirinto temporal, como o que desenvolve em “O jardim de veredas que se bifurcam” (BORGES, 2007b), ao apresentar um labirinto em linha que corrobora sua afirmação de que basta muito pouco para transformar qualquer espaço em labirinto: “Para a outra vez que o matar – replicou Scharlach –, prometo-lhe esse labirinto, que consta de uma única linha reta e que é invisível, incessante” (BORGES, 2007c, p. 135). Em Italo Calvino, ainda que o espectro do labirinto pareça não se espraiar de maneira tão ampliada, sua presença é incisiva em ensaios como “O desafio ao labirinto” e “Cibernética e fantasmas: notas sobre a narrativa como processo combinatório”, ambos publicados no livro Assunto encerrado (2009a), ou em estruturas como as de As cidades invisíveis (2004) e Se um viajante numa noite de inverno (1999a), para não citar o pequeno conto infantil, ainda não publicado em português, La foresta-radice-labirinto (2011). Mario Barenghi (2007), ao pontuar que a figura do labirinto atravessa a obra de Calvino como um fio vermelho, aproxima-a das inúmeras aparições do bosque, das prisões, dos horizontes e da página em branco, algumas das quais ressaltaremos ao longo dessa reflexão. Mostra-se instigante ao pensamento, nesse sentido, o conto “O conde de Montecristo” (2007), no qual a prisão e a página em branco que precede a escritura emaranham-se de tal modo que o labirinto que se constitui apresenta-se como muitos. Assim o próprio Calvino apresenta esse texto: No conto, vemos Alexandre Dumas extraindo seu romance O Conde de Monte Cristo de um hiper-romance que con-
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tém todas as variantes possíveis da história de Edmond Dantès. Prisioneiros de um capítulo do “Conde de Monte Cristo”, Edmond Dantès e o abade Faria estudam seu plano de evasão e se perguntam qual entre as variantes possíveis seria a certa. O abade Faria escava túneis para fugir da fortaleza, mas erra o tempo todo o caminho e acaba dando por si em celas cada vez mais profundas. Com base nos erros de Faria, Dantès procura desenhar um mapa da fortaleza. Enquanto Faria, de tanto tentar, tende a realizar a fuga perfeita, Dantès tende a imaginar a prisão perfeita, aquela de onde não se pode fugir (CALVINO, 2009c, p. 214-215).
O conto começa com Dantès contando sua história: a prisão, o desorientamento, as tentativas de fuga do abade e o método que parece a ele, Dantès, mais apropriado para se pensar num modo de escape dessa fortaleza-labirinto. Até então, os únicos outros enredamentos que se vislumbram são o da afinidade do conto com a obra de Alexandre Dumas, e o da explicitação do método de Dantès com os procedimentos narrativos de Calvino. Dividido em nove pequenos “capítulos”, é essa a história que se apresenta como tônica até a sexta parte da narrativa, quando a desorientação espaço-temporal que vimos experimentando até então no que diz respeito ao Castelo de If, local onde estão os prisioneiros, desdobra-se para um outro labirinto: a ilha de Montecristo. Assim Dantès traça essa aproximação: Nas pichações com que o abade Faria recobre as paredes, alternam-se dois mapas de contornos recortados, constelados de setas e senhas: um deveria ser o mapa de If, o outro de uma ilha do arquipélago toscano onde se esconde um tesouro: Montecristo. É justamente para procurar esse tesouro que o abade Faria quer fugir. Para alcançar seu objetivo, ele precisa traçar uma linha que no mapa da ilha de If o leve do interior ao exterior e que no mapa da ilha de Montecristo o leve do exterior àquele ponto mais interno que todos os ou-
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tros pontos, que é a gruta do tesouro (CALVINO, 2007, p. 265).
O labirinto começa a se ramificar, a exigir percursos hipertextuais como os apontados por Lèvy; If torna-se também Montecristo e vice-versa, num espelhamento que exige a inversão da direção em que se busca a saída (ou a chegada): “Em um caso ou no outro, observando bem, ele tende ao mesmo ponto de chegada: o lugar da multiplicidade das coisas possíveis” (CALVINO, 2007, p. 265). Mas não termina aí essa ramificação, e, na parte 7, o labirinto de If-Montecristo explode em mais uma direção, a da ilha de Elba, de onde Faria deseja libertar o imperador, Napoleão. O pensamento sobre o labirinto, também complexificado, reflete-se na fala do próprio narrador: “Essas interseções tornam ainda mais complicado o cálculo das previsões; há pontos em que a linha que um de nós está acompanhando se bifurca, se ramifica, se abre em leque; cada ramo pode encontrar ramos que partem de outras linhas” (p. 266). É apenas no capítulo 8 que o labirinto de ��������� If-Montecristo-Elba vai se mostrar enredado em um outro labirinto, ainda mais amplo: a página em branco, os rascunhos e projetos e tentativas e possibilidades de Alexandre Dumas, o próprio processo de escrita. Numa espécie de mise en abyme de narrativas e referências, o labirinto de Dantès exige que os personagens “imundos de tinta” percorram “as linhas da escrita cerrada”, “entre correções emaranhadas” (CALVINO, 2007, p. 267): “A fortaleza concêntrica If-Montecristo-escrivaninha de Dumas nos contém a nós, prisioneiros, o tesouro, o hiper-romance Montecristo com suas variantes e combinações de variantes da ordem de bilhões e bilhões, mas ainda assim, sempre em número finito” (p. 268). Se Borges termina por apontar um labirinto em linha reta, Calvino dá ao seu a forma de uma espiral: Uma espiral pode girar sobre si mesma em direção ao interior ou ao exterior: ao se aparafusar para dentro de si
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mesma, a história se encerra sem desdobramento possível; ao se desdobrar em espirais que se alargam, poderia a cada volta incluir um segmento do Montecristo com sinal de mais, acabando por coincidir com o romance que Dumas entregará para a impressão, ou talvez o superando em riqueza de circunstâncias afortunadas (CALVINO, 2007, p. 268).
Para desdobrar as linhas desses labirintos, figuras que em Borges e Calvino tornam-se repletas de possibilidades, em direção às redes hipertextuais, conforme aqui as vimos tratando, tomaremos como referencial a breve classificação feita por Umberto Eco (1991, 2007), segundo a qual existem três tipos de labirintos distintos: o labirinto clássico, o labirinto maneirístico e o labirinto em rede.3 O labirinto clássico seria como o de Cnossos, o famoso labirinto em Creta que tem em seu interior o Minotauro: um labirinto unicursal, no qual a única coisa a se fazer é chegar ao centro e do centro à saída, por um só caminho possível. Espaço no qual o fio de Ariadne serve como guia, o labirinto de Creta é passível de ser “desenrolado”: feito isso, o fio que aparecia como algo estranho a ele mostra-se como o próprio labirinto... Esse labirinto aparece em Borges, por exemplo, num texto que se delineia como um crescente novelo ao qual, a cada movimento, agrega-se nova parte do percurso:
Optamos por essa classificação devido à sua aproximação com a literatura, o que não implica em afirmar que ela seja a única possível: em Fux (2010), por exemplo, os labirintos e suas formas são apresentados a partir do referencial da matemática. 3
Esse é o labirinto de Creta. Esse é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Esse é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja trama de pedra se perderam tantas gerações. Esse é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja trama de pedra se perderam tantas gerações assim como María Kodama e eu nos perdemos. Esse é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja trama de pedra se perderam tantas gerações assim como María Kodama e eu nos per-
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demos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto (BORGES, 2010, p. 91).
Mas o labirinto de Borges, ainda que se constitua como um texto no qual nada resta a não ser seguir em frente, já aponta sua própria falácia: em lugar da saída, deparamo-nos com sua conversão num outro labirinto do qual é impossível escapar, o tempo, e que garante que o “estar perdidos” se prolongue ao infinito. O labirinto clássico de Eco transforma-se, em Borges, num pesadelo: ele tem apenas um caminho possível, mas em seu fim a saída não pode ser encontrada... É essa também a linha de estranhamento que norteia o poema “Labirinto”, que ainda que recorra à figura do Minotauro, elemento chave desse labirinto clássico – “Não esperes a investida/ Do touro que é um homem e cuja estranha/ Forma plural dá horror à maranha/ De interminável pedra entretecida” –, acentua a inexistência da saída: “Nunca haverá uma porta” (BORGES, 2009, p. 35). Como afirmava Calvino ecoando o poeta e crítico alemão Hans Magnus Enzensberger, para que o labirinto mantenha “seu fascínio e seu risco” ele não pode ser desvendado: “O labirinto foi feito para que quem nele entra se perca e erre. [...] Se conseguir [atravessá-lo], terá destruído o labirinto; não existe labirinto para quem o atravessou” (ENZENSBERGER apud CALVINO, 2009c, p. 213-214). Borges parece, assim, aceitar o “desafio ao labirinto” posteriormente evocado por Calvino – num jogo de duplo movimento, ele o desestrutura ao converter sua saída em passagem a um novo labirinto, mas ao mesmo tempo o perpetua por garantir que seu segredo não será desvendado: Fica de fora quem acredita que pode vencer os labirintos fugindo a sua dificuldade; portanto, é um pedido pouco pertinente aquele que, no labirinto, fazemos à literatura: que ela própria forneça a chave para podermos sair dele. O que a literatura pode fazer é definir a melhor atitude para
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encontrar o caminho da saída, embora essa saída nada mais será que a passagem de um labirinto para outro. E o desafio ao labirinto que desejamos salvar é uma literatura do desafio ao labirinto que desejamos evidenciar e distinguir da literatura da rendição ao labirinto (CALVINO, 2009b, p. 116, grifos do autor).
O segundo labirinto apresentado por Eco é o labirinto maneirístico: neste, as possibilidades de trajetos são múltiplas, mas apenas uma leva à saída. Diante desse labirinto, se o Minotauro não se mostra mais necessário, o fio de Ariadne poderia sê-lo, auxiliando aquele que por ele transita a não chegar a becos sem saída: os erros, aqui, podem acontecer, mas solucionam-se com o necessário retorno a um ponto anterior para dar continuidade ao trajeto. Esse labirinto, se desenrolado, tomaria a estrutura de uma árvore. E aqui se faz inevitável a associação do labirinto com o bosque, figura apontada por Barenghi como chave na obra de Calvino: do bosque onde todos se perdem (e perdem também suas vozes) de O castelo dos destinos cruzados (1994), passando pelo bosque que se converte em mundo particular de O barão nas árvores (1999b), chegamos à floresta-raiz-labirinto, que se constitui como único trajeto possível para a cidade de origem (CALVINO, 2011). La foresta-radice-labirinto narra a história do Rei Clodoveo, que ao retornar de uma longa guerra para seu reino de Alberoburgo encontra, circundando-o, uma floresta que se mostra como um verdadeiro labirinto de galhos e raízes. Para chegar à cidade, o rei precisa resolver os enigmas do labirinto e ainda desvencilhar-se de uma traição em andamento, que é tramada pela rainha Ferdibunda e pelo primeiro-ministro Curvaldo. Complementam o grupo o escudeiro do rei, Amalberto, a princesa Verbena e o jovem Mirtillo. Nessa trama, Calvino envolve o Rei Clodoveo num duplo enredamento labiríntico, pois o rei é cercado tanto pelos enganos da floresta quanto pela traição que aos poucos toma corpo. Para escapar a
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esse emaranhado, o Rei precisa driblar inúmeras saídas falsas, e a cada instante se evidencia que, para encontrar a verdadeira, será fundamental que um fio de Ariadne apresente-se como guia e possibilite o desvendamento do mistério. É nesse ponto que nós, leitores, somos também enredados por essa narrativa-floresta-labirinto da qual tentamos encontrar a saída: os movimentos de todos os personagens são marcados pela presença de um estranho pássaro, cujo som funciona como chamariz, induzindo a que se o siga pela floresta. Mas mesmo esse condutor parece se apresentar como mais um dos pontos cegos do labirinto – seguir o pássaro não leva à saída, e pode mesmo acabar por conduzir quem está do lado de fora para o interior do labirinto, como acontece com a princesa Verbena. Essa falsa solução, entretanto, mostrase ela mesma como outra armadilha do labirinto: pois, se o pássaro não leva o rei à saída, ele o leva até sua filha, a qual havia, em companhia de Mirtillo, desvendado o mistério do labirinto – nele, as coisas ocupavam lugares diferentes dos habituais, de modo que os galhos pareciam raízes e as raízes pareciam galhos, e para chegar à saída bastava aceitar a caminhada sob outra perspectiva, deslocada e invertida. Mas, ainda que a complexificação narrativa com que Borges e Calvino abordam esses labirintos faça deles modelos intrincados, eles ainda não correspondem ao labirinto que aqui nos interessa mais diretamente, o terceiro labirinto apontado por Eco, o labirinto em rede,4 no qual se podem constituir inúmeros caminhos e saídas, o labirinto que se constitui como tal por estar aberto a uma infinidade de possibilidades: O labirinto de terceiro tipo é uma rede, na qual cada ponto pode ter conexão com qualquer outro ponto. Não é possível desenrolá-lo. Mesmo porque, enquanto os labirintos dos dois primeiros tipos têm um interior (o seu próprio emaranhamento) e um exterior, no qual se entra e rumo
Esse labirinto-rede que se apresenta a nós como imagem-guia pelo território borgiano-calviniano pode ser associado ainda ao rizoma de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), movimento esboçado pelo próprio Umberto Eco em sua caracterização dos labirintos em rede (ECO, 1991, 2007). Indicamos, aqui, de modo sucinto, as “características aproximativas do rizoma” conforme apontadas por Deleuze e Guattari, mas preferimos não nos fixar a essa forma, cujo uso excessivo e às vezes pouco criterioso acabou por tornar problemática e restrita para pensar a rede e o hipertexto: 1º e 2º: Princípios de conexão e de heterogeneidade; 3º: Princípio de multiplicidade; 4º: Princípio de ruptura a-significante; 5º e 6º: Princípio de cartografia e de decalcomania. 4
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ao qual se sai, o labirinto de terceiro tipo, extensível ao infinito, não tem nem interior nem exterior. Pode ser finito ou (contanto que tenha possibilidade de expandir-se) infinito. Em ambos os casos, dado que cada um dos seus pontos pode ser ligado a qualquer outro ponto, e o processo de conexão é também um processo contínuo de correção das conexões, seria sempre ilimitado, porque a sua estrutura seria sempre diferente da que era um momento antes e cada vez se poderia percorrê-lo segundo linhas diferentes (ECO, 1991, p. 338-339).
Ricardo Lajara (1996) afirma que Eco, ao traçar essa tipologia do labirinto, se esquece do que seria um quarto formato do labirinto, o qual ele afirma ser mais literário e menos material, e que seria o responsável pelos maiores temores infligidos ao ser humano: o labirinto ligado ao infinito e que se concretiza em figuras como o mar, o deserto, o tempo, o cosmos. Ao contrário de Lajara, entretanto, acreditamos que esses labirintos marcados pela infinitude, representados por modelos que se abrem ao vazio, podem ser pensados como os labirintos em rede de que nos fala Eco, uma vez que se apresentam como possibilidade a qualquer tipo de percurso, a qualquer forma de conexão. Nessa perspectiva, temas caros a Borges – como o tempo e o deserto – e a Calvino – como o horizonte e a página em branco – constituem-se objetos de narrativas labirínticas extremas, que apontam para o caminho que mais multíplice e desorientador pode ser: aquele do labirinto sem paredes, sem marcas, sem limites ou contornos estáveis aos quais se possa recorrer. Como achar a saída em um espaço que não tem dentro ou fora, como ler hipertextualmente a narrativa literária? É esse, por exemplo, o labirinto apresentado por Borges em “Os dois reis e os dois labirintos”: Contam os homens dignos de fé (mas Alá sabe mais) que nos primeiros tempos houve um rei das ilhas da Babilônia que reuniu seus arquitetos e magos e os mandou construir um labirinto tão desconcertante e sutil, que os varões mais
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prudentes não se aventuravam a entrar, e os que entravam se perdiam. A obra era um escândalo, porque a confusão e a maravilha são operações próprias de Deus, e não dos homens. Com o passar do tempo veio à sua corte um rei dos árabes, e o rei da Babilônia (para zombar da simplicidade do hóspede) fez com que ele penetrasse no labirinto, onde perambulou ofendido e confuso até o cair da tarde. Então implorou socorro divino e deu com a porta. Seus lábios não proferiram queixa alguma, mas disse ao rei da Babilônia que ele na Arábia também tinha um labirinto que, se Deus fosse servido, lhe daria a conhecer algum dia. Depois voltou à Arábia, reuniu seus capitães e alcaides e devastou os reinos da Babilônia com tamanha boa sorte que arrasou seus castelos, dizimou sua gente e aprisionou o próprio rei. Amarrou-o em cima de um camelo veloz e o levou para o deserto. Cavalgaram três dias, e disse-lhe: “Ó rei do tempo e substância e cifra do século!, na Babilônia desejaste que eu me perdesse num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; o Poderoso teve por bem que eu agora te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros para impedir a passagem”. Logo depois, desamarrou-o e o abandonou no meio do deserto, onde ele morreu de fome e de sede. A glória esteja com Aquele que não morre (BORGES, 2008b, p. 122123).
Território sem dobras, o deserto convertido em labirinto constitui-se como o espaço por excelência no qual não se pode identificar interior ou exterior, como a matéria sobre a qual é possível traçar e destraçar todos os caminhos possíveis, num movimento de ida e volta que pode levar tanto a incontáveis saídas quanto a nenhum escape. Não há como desenrolar esse labirinto, pois ele não se compõe por linhas fixas, mas sim por trajetos evanescentes que podem ser rasurados a todo o momento. Essa pequena narrativa, no entanto, traz à cena ainda um terceiro labirinto, o da escritura borgiana. “Os dois reis e os dois labirintos”, texto que compõe o livro O Aleph,
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“História dos dois reis e dos dois labirintos”: “Do primeiro apêndice da obra [A general history of labyrinths] copiamos uma breve lenda árabe, traduzida para o inglês pelo Sir Richard Burton. Intitula-se: [...]” (tradução nossa). 5
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havia sido publicado anteriormente por Borges, conforme indica o segundo volume de Textos recobrados, na revista Obra, de 1936, como parte de “Laberintos”, artigo que vinha assinado pelo pseudônimo Daniel Haslam. Nessa publicação, Borges comenta o livro A general history of labyrinths, de Thomas Ingram, e, assim, anuncia a “Historia de los dos reyes y los dos laberintos”: “Del primer apéndice de la obra [A general history of labyrinths] copiamos una breve leyenda arábiga, traducida al inglés por Sir Richard Burton. Se titula: [...]” (BORGES, 2007a, p. 157-158),5 passando em seguida à referida lenda. Em 1939, o mesmo texto aparece em El Hogar, com o título “Uma lenda árabe”. Em O Aleph, de 1952, o texto aparece acompanhado da seguinte nota: “Esta é a história que o reitor divulgou do púlpito. Veja-se a página 113” (BORGES, 2008b, p. 122). A referência apresentada conduz ao conto “Aben Hakam, o Bokari, morto em seu labirinto”, também publicado em O Aleph, que assim remete à história do deserto-labirinto: “Nosso reitor, o senhor Allaby, homem de curiosa leitura, exumou a história de um rei a quem a Divindade castigou por ter construído um labirinto e a divulgou do púlpito” (BORGES, 2008a, p. 113). Embaralhando informações e fatos, ficção e realidade, textos originais e plágios, Borges constrói, assim, bem à sua maneira, um labirinto textual, e o fio de Ariadne que nos apresenta como guia em suas notas informativas constitui-se como outro dos elementos desse labirinto, levando-nos a saídas que não sabemos mais se são verdadeiras ou falsas. Como afirmou Lisley Nascimento (2007, p. 70), “os prólogos, os prefácios, as notas de pé de página, que normalmente servem para auxiliar a leitura ou referendar a escrita, são, no entanto, em Borges, em sua maioria, falsos, dissimulados ou adulterados. Então, antes perturbam do que guiam o leitor”. Se Borges faz do deserto um labirinto reticular que se amplia com os artifícios de sua própria produção, Calvino explicita esse movimento labiríntico da escrita ao tomar a página em branco como elemento e motivo de vários de seus textos. Foi ela que levou o labirinto de Dantès
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a novas bifurcações, assim como é ela que aparece ao final de O barão nas árvores, quando todas as peripécias de Cosme de Rondó sobre as árvores são aproximadas por seu irmão, o narrador da história, [...] a este fio de tinta, que deixei escorrer por páginas e páginas, cheio de riscos, de indecisões, de borrões nervosos, de manchas, de lacunas, que por vezes se debulha em grandes pevides claros, por vezes se adensa em sinais minúsculos como sementes puntiformes, ora se contorce sobre si mesmo, ora se bifurca, ora une montes de frases com contornos de folhas ou de nuvens, e depois se interrompe, e depois recomeça a contorcer-se, e corre e corre e floresce e envolve um último cacho insensato de palavras ideias sonhos e acaba (CALVINO, 1999b, p. 364).
E é ela ainda, a página em branco, o labirinto que conduz a narrativa de Irmã Teodora sobre a história de Agilufo, o personagem que dá título a O cavaleiro inexistente (1999c). É na construção dessa narrativa, imposta como penitência, que a Irmã investe sua vida, é do “fundo de uma página branca” (CALVINO, 1999c, p. 440) que espera que chegue a verdade, é no labirinto de possibilidades que ela representa que precisa escolher o caminho a ser traçado, “aqui nesta página é preciso encontrar espaço para tudo” (p. 440). Mas não é tarefa simples o desafio ao labirinto da escrita, da literatura: “Mas este fio, em vez de fluir veloz entre meus dedos, eis que afrouxa, que se interrompe, e, se penso em quanto tenho ainda que pôr no papel de itinerários e obstáculos e perseguições e enganos e duelos e torneios, sinto que me perco” (p. 455). Em “Cominciare e finire”, texto inédito de Calvino encontrado entre os manuscritos preparatórios das Norton Lectures (das quais resultou a publicação do livro Seis propostas para o próximo milênio) e publicado nos Saggi (2001a), um dos aspectos que o escritor aborda é justamente o que ele chama de “momento crucial”, o momen-
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to em que se decide “como começar a escrever”. Nessa reflexão, fica explícito o porquê de a página em branco configurar-se como um labirinto: Il punto di partenza delle mie conferenze sarà dunque questo momento decisivo per lo scrittore: il destacco dalla potenzialità illimitata e multiforme per incontrare qualcosa che ancora non esiste ma que potrà esistere solo accettando dei limiti e delle regole. Fino al momento precedente a quello in cui cominciamo a scrivere, abbiamo a nostra disposizione il mondo – quello che per ognuno de noi costituisce il mondo, una somma di informazioni, di esperienze, di valori – il mondo dato in blocco, senza una prima né un poi, il mondo come memoria individuale e come potenzialità implicita [...] (CALVINO, 2001b, p. 734).6
“O ponto de partida das minhas conferências será, portanto, esse momento decisivo para o escritor: o destaque da potencialidade ilimitada e multiforme para encontrar algo que ainda não existe mas que poderá existir somente com a aceitação dos limites e das regras. Até o momento precedente àquele no qual começamos a escrever, temos a nossa disposição o mundo – aquilo que para cada um de nós constitui o mundo, uma soma de informações, de experiências, de valores – o mundo dado em bloco, sem um antes nem um depois, o mundo como memória individual e como potencialidade implícita [...]” (tradução nossa). 6
É nessa perspectiva que propomos pensar como labirinto reticular também as obras de Borges e Calvino, as quais acreditamos poderem ser atravessadas tendo por guia possibilidades de trajetos, nós e conexões os mais diversos, que podem ir adiante ou voltar sobre si mesmos, que podem originar outras veredas e bifurcações, que podem levar a múltiplas saídas. Pensar a literatura a partir dos princípios da hipertextualidade é pensá-la como um processo aberto e fluido, objeto de reflexão permanente para o escritor, o leitor, o crítico. Percorrer os textos literários – e aqui, mais especificamente, as obras de Borges e Calvino – através de traçados reticulares, hipertextuais, labirínticos, significa criar caminhos de leitura marcados pela multiplicidade e diversidade de possibilidades, percursos que permitem uma tessitura particular do texto, num diálogo entre o novo e o já dito, constantemente retomado e ressignificado: as linhas de acesso aos mesmos alteram-se no tempo e no espaço, se corrigem e se chocam continuamente, levam a lapsos e enganos, mas também a deslumbres e encantamentos. O labirinto, assim, se suscita a necessidade de uma bússola, de um fio de Ariadne, também possibilita a deriva, por vezes fundamental ao pensamento.
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Textos em rede, labirintos literários
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CALVINO, Italo. Cominciare e finire. In: CALVINO, Italo. Saggi. 1945-1985. Milano: Mondadori, 2001b. v. 1, p. 734-753. CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. 2. ed. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. CALVINO, Italo. O conde de Montecristo. In: CALVINO, Italo. Todas as cosmicômicas. Tradução de Ivo Barroso e Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 258-269. CALVINO, Italo. Assunto encerrado: discurso sobre literatura e sociedade. Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2009a. CALVINO, Italo. O desafio ao labirinto. In: CALVINO, Italo. Assunto encerrado: discurso sobre literatura e sociedade. Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2009b. p. 100-117. CALVINO, Italo. Cibernetica e fantasmas (Notas sobre a narrativa como processo combinatório). In: CALVINO, Italo. Assunto encerrado: discurso sobre literatura e sociedade. Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2009c. p. 196-215. CALVINO, Italo. La foresta-radice-labirinto. ������������������ Milano: Oscar Mondadori, 2011. CANFIELD, Marta. Borges: del minotauro al signo laberíntico. In: TORO, Alfonso de; REGAZZONI, Susanna. El siglo de Borges: literatura, ciencia, filosofía. Madrid: Iberoamericana; Frankfurt am Main: Vervuet, 1999. v. 2, p. 67-76. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. v. 1, p. 11-37. ECO, Umberto. O antiporfírio. In: ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Tradução de Beatriz Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. p. 316-341. ECO, Umberto. Dall’albero al labirinto: studi storici sul segno e l’interpretazione. Milano: Bompiani, 2007. FURTADO, José Afonso. O papel e o pixel. Do impresso ao digital: continuidades e transformações. Florianópolis: Escritório do Livro, 2006. FUX, Jacques. A matemática em Georges Perec e Jorge Luis Borges: um estudo comparativo. Belo Horizonte, 2010. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais. KASTRUP, Virgínia. A rede: uma figura empírica da ontologia do presente. In: PARENTE, André (Org.). Tramas da rede: novas dimensões filosóficas, estéticas e políticas da comunicação. Porto Alegre: Sulina, 2004. p. 80-90.
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LAJARA, Ricardo. El laberinto como metáfora espacial en Borges y Calvino. In: BORGES, Calvino, la literatura: el coloquio en la Isla. Madrid: Fundamentos, 1996. v. 2, p. 145-149. LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. MIRANDA, Wander Melo. Apropriações, deslocamentos, falsificações: literaturas. In: CAVALCANTI, Lauro (Org.). Tudo é Brasil. Rio de Janeiro, São Paulo: Ministério da Cultura/Itaú Cultural, 2004. p. 99-106. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Eliane Lisboa. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. MUSSO, Pierre. A filosofia da rede. In: PARENTE, André (Org.). Tramas da rede: novas dimensões filosóficas, estéticas e políticas da comunicação. Tradução de Marcos Homrich Hickmann. Porto Alegre: Sulina, 2004. p. 17-38. NASCIMENTO, Lyslei. Monstros no arquivo: esboço para uma teoria borgiana dos monstros. In: JEHA, Julio (Org.). Monstros e monstruosidades na literatura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. p. 61-80. YUNES, Elyana. Poiesis. In: CARVALHO, Edgard de Assis; MENDONÇA, Terezinha. Ensaios de complexidade 2. Porto Alegre: Sulina, 2004. p. 276-283.
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Pareceristas ad hoc
Ana Cláudia Félix Gualberto (UFPB) Gláucia Machado (UFAL) Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN) Luciano Barbosa Justino (UEPB) Rogério da Silva Lima (UNB) Simone Dália de Gusmão Aranha (UFCG)
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Normas da revista
Normas para apresentação de artigos • Só serão aceitos trabalhos enviados pela internet para o endereço: revista@abralic.org.br • Os artigos podem ser apresentados em português ou em outro idioma. Devem ser produzidos em MSWord 2007 (ou versão superior), com uma folha de rosto onde constem os dados de identificação do autor: nome, instituição, endereço para correspondência (com o CEP), e-mail, telefone (com prefixo), título e temática escolhida. A extensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas e, no máximo, 20, espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar também Abstract e Keywords. • O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de não doutor, desde que a convite da comissão editorial – casos de colaborações de escritores, por exemplo. • Após a folha de identificação, o trabalho deve obedecer à seguinte sequência: - Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem grifos); - Nome(s) do(s) autor(es) – à direita da página (sem negrito nem grifo), duas linhas abaixo do título, com maiúscula só para as letras iniciais. Usar asterisco para nota de rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a). O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da sigla;
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- Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito, itálico e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado em itálico, corpo 10, com recuo de dois centímetros de margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10; - Palavras-chave – dar um espaço em branco após o resumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto 10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito, itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos. Máximo: 5 palavras-chave; - Abstract – mesmas observações sobre o Resumo; - Keywords – mesmas observações sobre as palavraschave; - Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas, quando houver; - Parágrafos – usar adentramento 1 (um); - Subtítulos – sem adentramento, em negrito, só com a primeira letra em maiúscula, sem numeração; - Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos etc.) – devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo autor; - Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10.
- Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras em língua estrangeira – itálico.
- Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico), seguidas das seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte 11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobre-
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nome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s).As citações em língua estrangeira devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé. - Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando constituírem textos já publicados, devem incluir referência completa, bem como permissão dos editores para publicação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas quando absolutamente necessários. - Referências – devem ser apenas aquelas referentes aos textos citados no trabalho. A palavra REFERÊNCIAS deve estar em maiúsculas, negrito, sem adentramento, duas linhas antes da primeira entrada.
Alguns exemplos de citações • Citação direta com três linhas ou menos
[...] conforme Octavio Paz, “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” (PAZ, 1982, p. 37)
• Citação indireta
[...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as conseqüências de certas linhas da poética drummoniana.
• Citação de vários autores
Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, 1991; Borges, 1998; Campos, 1969)
• Citação de várias obras do mesmo autor
As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confronto entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens
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em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidoscópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992) • Citação de citação e citação com mais de três linhas Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire: Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...] (FREIRE, 1759, p. 87 apud TEIXEIRA, 1999, p. 148)
Alguns exemplos de Referências • Livro PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. Paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. • Capítulo de livro BERND, Zilá. Perspectivas comparadas trans-americanas. In: JOBIM, José Luís et al. (Org.). Lugares dos discursos literários e culturais – o local, o regional, o nacional, o internacional, o planetário. Niterói: EdUFF, 2006. p.122-33. • Dissertação e tese PARMAGNANI, Claudia Pastore. O erotismo na produção poética de Paula Tavares e Olga Savary. São Paulo, 2004. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. • Artigo de periódico GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: uma breve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 37- 57, 2004.
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• Artigo de jornal TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4. • Trabalho publicado em anais CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Maria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte. p. 85-95. • Publicação on-line – Internet FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e geografia) literária na Itália contemporânea. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S1517106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acesso em: 6 fev. 2009. Observação Final: A desconsideração das normas implica a não aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).
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