A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN-OI03-6963) é uma publicação anual da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. DIRETORIA
(Biênio 2000 - 2002)
Presidente: Reinaldo Martiniano Marques (UFMG) Vice-Presidente: Audemaro Taranto Goulart (PUC-Minas) Primeira Secretária: Lúcia Helena de Azevedo Vilela (UFMG) Segunda Secretária: Ivete Lara Camargos Walty (PUC-Minas) Primeira Tesoureira: Terezinha Maria Scher Pereira (UFJF) Segundo Tesoureiro: Paulo Motta Oliveira (UFMG) CONSELHO DA ABRALIC
Edson Rosa Silva (UFRJ) Eneida Leal Cunha (UFBA) Evelina de Carvalho Sá Hoisel (UFBA) Lea Sílvia dos Santos Masina (UFRGS) Maria Lúcia de Barros Camargo (UFSC) Marília Rothier Cardoso (PUC-RJ) Raul Hector Antelo (UFSC) Sandra Margarida Nitrini (USP) Suplentes: Gláucia Vieira
~1achado
ILTAL); Sílvia Maria Azevedo (UNESP)
CONSELHO EDITORIAL
Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Dirce Cortes Riedel, Eneida Maria de Souza, Haroldo de Campos, João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Block de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Tania Franco Carvalhal, Yves Chevrel.
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Produção editorial Lúcia Bernardes Preparação e revisão de texto Erikc Ramalho Formatação e produção gráfica Sérgio Antônio Silva Impressão e acabamento O Lutador Tiragem 1000 exemplares
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
R349 Revista brasileira de literatura comparada. N. 1 (1991) - Rio de Janeiro: Abralic, 2002 -v. Anual Descrição baseada em: N.3 (1996) ISSN 0103-6963 1. Literatura comparada - Periódicos. L Associação Brasileira de Literatura Comparada. CDD 809.005 CDU 82.091 (05)
Apresentação
A Abralic põe em circulação o número 6 de sua revista. O tema focalizado - Literatura e Valor - é um desdobramento dos debates e reflexões produzidos por professores, pesquisadores e intelectuais participantes do Colóquio Abralic, realizado em agosto de 2001. A repercussão do evento e os resultados que ele proporcionou de certa forma impuseram-nos a necessidade de estender a reflexão do tema a um número ainda mais expressivo de pesquisadores. Com esse objetivo, estimulamos a participação de nossos associados, solicitando a sua presença nesta publicação. A resposta à mobilização foi, de fato, surpreendente. A Comissão Organizadora deste número 6 recebeu um apreciável conjunto de artigos o que tornou, inclusive, o trabalho de sua seleção bastante difícil. Ao fim da tarefa, chegou-se aos quinze textos que compõem o corpo desta edição da Revista Brasileira de Literatura Comparada, um painel de estudos que focam o tema sob perspectivas diversas. Assim, a idéia de valor insinua-se pelos estudos críticos, levantando, além das discussões sobre o valor literário propriamente dito e a sempre candente matéria do cânone, um punhado de questões que se impuseram ao pensamento contemporâneo como a importância da tecnologia, os sinais da passagem do século, a conquista da liberdade, o primado das representações, com todo o encantamento e as contradições que tais valores produzem nesse mundo ávido por elidir fronteiras. Esse resultado exibe uma marca significativa que é a vitalidade com que as idéias circulam em nossas instituições, prontas a se transformarem em textos que abrirão para elas um espaço ainda maior. E ao acolher essa produção e divulgá-la, a Abralic está cumprindo uma de suas mais importantes funções que é servir de ponto de confluência e de expansão do pensamento crítico na área de estudos comparados. Reinaldo Martiniano Marques
Presidente da Abralic
Sumário
Uma aventura literária por novas tecnologias Ana Cristina Coutinho Viegas
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As regras do jogo ou A arte de inventar pontes e passagens André Bueno
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Fronteiras na literatura brasileira: tendências e sintomas da passagem do século Ângela Maria Dias
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História e representação literária: um caminho percorrido Belmira Magalhães
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Entre tapas e beijos: Peter Handke e a crítica Celeste H. M. Ribeiro de Sousa
83
Quando a moeda literária vale 1,99 no mercado clandestino de Clarice Lispector Edgar Cézar Nolasco
99
Transformações do romance na América Latina e no Caribe Eurídice Figueiredo
109
Resenhando O momento literário, de João do Rio Gilda Vilela Brandão
121
o custo e o preço do desleixo: trabalho e produção n' A hora da estrela Hermenegildo José Bastos
141
Literatura e autoritarismo em Georg Lukács Jaime Ginzburg
151
De leitor a turista na Ilhéus de Jorge Amado Maria de Lourdes Netto Simões
177
Biografia e valor literário Marília Rothier Cardoso
185
Museu de tudo (e depois?) Sergio Mota
203
Um poema, duas invenções Socorro de Fátima P. Vilar
215
Cânone e liberdade Susana Scramim
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Uma aventura literária por novas tecnologias
Ana Cristina Coutinho Viegas Colégio Pedro II - Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro)
o caráter literário de um texto não é simplesmente o resultado de um conjunto de indicadores textuais, uma vez que o valor da obra se produz segundo contextos sócio-culturais específicos. Importa, portanto, para os estudos literários, não apenas a produção material da obra, mas também a produção do valor da obra. Esse valor é socialmente instituído, prescindindo de sujeitos dotados da disposição e da competência necessárias para tal. Depende de constelações sociais concretas e processos históricos definidos por determinadas necessidades, capacidades cognitivas, sentimentos, intenções e motivações gerais e, ainda, de condicionamentos políticos, sociais, econômicos e culturais. Agentes o julgam e lhe atribuem sentido em função dessas articulações. Devem-se levar em conta diferentes agentes e instituições que participam da produção desse valor através da produção da crença no valor da arte em geral e no valor distintivo de determinada obra. A permanência de certa aura em torno da "criação" constitui o principal obstáculo a um estudo rigoroso da produção do valor dos bens culturais. É ela, com efeito, que dirige o olhar para o produtor - pintor, compositor, escritor - , impedindo que se pergunte quem criou esse "criador". Ao transfigurar a "fabricação" do material em "criação", desvia-se, para além do artista e de sua atividade própria, a busca das ·condições dessa capacidade demiúrgica. O artista que faz a obra é ele próprio feito, no seio do campo de produção, por todo o conjunto daqueles
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que contribuem para descobri-lo e consagrá-lo enquanto artista conhecido e reconhecido - críticos, prefaciadores, "marchands" etc. A orientação sobre a vida literária, e não apenas sobre a configuração do texto, supõe uma investigação das ações dos indivíduos que, de diversos modos, lidam com fenômenos tidos como literários. Todos esses componentes transformam a esfera desses fenômenos numa rede, que, nos mais diversos modos e com os mais diferentes resultados, se articula com esferas extraliterárias. Rede composta por textos de tipos muito diferenciados (poemas, ensaios, romances, dramas etc.), pelas mais diversas formas de mediação (artigos de jornal e de revista, livros, peças de teatro, filmes, programas de televisão, conferências, sites na internet etc.). Também fazem parte dela instrumentais de produção diversos, organizações, instituições e empresas, autores, leitores profissionais, produtores, editores, críticos, comerciantes, leitores/espectadores/ouvintes (compradores, consumidores) e, finalmente, todas as atividades específicas de produção, transmissão, recepção e processamento, interações e comunicações múltiplas. Os componentes desse campo se articulam, interagem, exercem e sofrem influências, estabelecem relações de dependência, padrões de organização e estruturas temporais na esfera da política econômica, da mecânica de mercado, dos sistemas de mídia e da técnica produtiva e distributiva l . Como o conceito de literatura, de uso dominante até hoje, surgiu contra o pano de fundo de um conceito relativamente preciso de "totalidade histórica", com o desaparecimento dessa totalidade, a figura igualmente precisa da "literatura" não pode, do mesmo modo, persistir. A razão mais importante para a crise do conceito de literatura pode bem encontrar-se aí, em tantas tentativas de redefini-Io apenas no contexto de uma ciência da literatura, excluindo-se o campo da reflexão da teoria da história. A Estética da Recepção já constitui um momento de problematização desse isolamento dos estudos literários. A inclusão do leitor ampliou a prática de pesquisa dos estudiosos de literatura. Por um lado, pelo fortalecimento da cultura de massa, por outro, pela crescente concorrência de disciplinas vizinhas, como a lingüística, a teoria literária se viu forçada a não limitar seus estudos a obras e autores. Houve necessidade, portanto, de ampliação dos procedimentos hermenêuticos tradicionais. Assim, Jauss, apesar de permanecer no meio do caminho para a construção de um novo paradigma, foi um dos precursores das modificações contemporâneas nos estudos literários. A partir de sua teoria, uma abordagem do ponto de vista da estética da produção, por exemplo, não poderia mais seguir simplesmente a estética da criação, da genialidade ou o biografismo ingênuo,
I RUSCH, Gebhard. Teoria da história, historiografia e diacronologia. In: OLINTO, Heidrun Krieger (org.). Histórias de literatura. As novas teorias alemãs. São Paulo: Ática, 1996, p.133-167.
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2 SCHMIDT, Siegfried. Towards a constructivist theory of media genre. In: North-Holland, Poetics 16, 1987, p.371-395.
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sem levar em conta relações históricas. O enfoque centrado em processos produtivos foi contestado por não atribuir ao leitor uma função ativa na constituição dos significados textuais. O próprio objeto de estudo passou a ser tratado como fenômeno complexo visto no contexto de uma situação comunicativa. Jauss optou por tentar resgatar, ainda que através de um método parcial, a função de comunicação que a arte praticamente havia perdido. Hoje em dia, uma reflexão séria sobre cultura contemporânea não pode mais ignorar a enorme incidência da mídia eletrônica e da informática. A tarefa não se limita a campos disciplinares tradicionalmente ligados à mídia, como o cinema ou a televisão, mas se estende à história, à filosofia, à sociologia e também aos estudos de literatura. Os papéis atribuídos ao leitor, ao autor e ao texto precisam ser repensados quando se passa da estrutura linear do livro para a forma multimidiática. Ao invés de um lugar na biblioteca, a literatura passa a disputar novos espaços abertos pelas novas tecnologias. Os meios de comunicação cristalizam convenções que são internalizadas pelos indivíduos durante os processos de socialização. Com seus aparatos técnicos, financeiros, políticos e estéticos de mediação e distribuição, a mídia e a mecânica de mercado estabelecem relações de dependência e padrões de organização dos sistemas de bens culturais, entre eles, o literári0 2 • São forças que transformam as obras em objetos desejáveis e adquiríveis. Não é novidade que existe uma literatura comercial e que as necessidades do comércio impõemse no campo cultural. Atualmente, porém, a influência dos detentores do poder sobre os instrumentos de circulação - e de consagração é muito extensa e complexa. As novas tecnologias, por sua vez, promovem alterações tanto na produção, quanto na reprodução e na difusão dos bens culturais de modo geral. A partir da divisão em dois mercados, que tradicionalmente caracteriza os campos de produção cultural- de um lado, aquele restrito aos produtores para produtores e de outro, a literatura industrial, de grande produção - Pierre Bourdieu, em seu livro As regras da arte, indaga se essas fronteiras não estariam ameaçadas de desaparecimento, tendendo a lógica da produção comercial a impor-se cada vez mais à produção de vanguarda através, especialmente, no caso da literatura, das sujeições que pesam sobre o mercado dos livros com seus grandes conglomerados editoriais que negociam com as grandes redes de livrarias. Caso a resposta seja negativa, que possibilidades se apresentam ao escritor para que sua obra sobreviva à margem do circuito mercadológico?
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As lutas que se desenvolvem no campo literário dependem da correspondência que mantêm com as lutas externas (as quais se desenvolvem no seio do campo do poder ou do campo social) e dos apoios que uns e outros possam aí encontrar. É assim que, por exemplo, mudanças na hierarquia dos gêneros se tornam possíveis pela correspondência entre modificações internas e externas, que oferecem aos produtores consumidores dotados de disposições e gostos ajustados aos produtos que se lhes oferecem. Ao tratar da questão do sucesso comercial, Bourdieu destaca a importância do contexto político-cultural para a legitimação do artista e dá como exemplo o caso Zola: É assim que Zola, cujos romances tiveram a mais comprometedora fortuna, sem dúvida deveu o fato de escapar, em parte, ao destino social que lhe determinavam suas grandes tiragens e seus objetos triviais tão-somente à conversão do "comercial", negativo e "vulgar", em "popular", carregado de todos os prestígios positivos do progressismo político; conversão tornada possível pelo papel de profeta social que lhe foi atribuído no próprio seio do campo e que lhe foi reconhecido bem além dele graças ao concurso do devotamento militante (.. ./
Na prática e nas suas representações, o comércio da arte realiza-se, segundo Bourdieu, de forma ambígua, à custa de um recalque coletivo do interesse propriamente econômico e da verdade da prática que a análise econômica desvenda. O empreendimento não pode, com efeito, ser bem sucedido se não for orientado pelo domínio das leis de funcionamento específicas do campo artístico. O empresário de produtos culturais deve conseguir uma combinação entre as necessidades econômicas e um certo "desinteresse", que as exclui. Com o fortalecimento do mercado, entretanto, não se pode deixar de levar em conta que o investimento empresarial também passou a ser valorizado pela mídia como prova do prestígio do artista. Desde Baudelaire, Flaubert etc., o sucesso comercial imediato era suspeito, pois via-se nele um sinal de comprometimento com o dinheiro - postura mantida no século XX ao longo do modernismo. Hoje, e cada vez mais, o mercado passou a constituir também uma instância de legitimação. Pense bem no que significava a glória para um escritor como João Guimarães Rosa e o que significa a glória para um escritor de hoje. Hoje a glória significa a telenovela, a lista
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.136. 3
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, GALV ÃO, Walnice Nogueira. O mercado, eis a questão. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 dez. 1985.
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SCHMIDT. Op. cit.,
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de dez mais. Assim sendo, é muito difícil que alguém pense em escrever um livro como o de Rosa (... ) Ou seja: isso tudo aí fora não me diz respeito, vou apenas fazer algo para meu ,. 4 propno prazer. Embora com certa dose de nostalgia, Walnice Galvão levanta uma questão importante: não é mais possível para o artista se colocar numa posição de criador isolado, um mestre da palavra, à espera de ser reconhecido por outros artistas, pelos críticos, enfim apenas pelo mesmo grupo seleto do qual ele faria parte. A mídia, por atuar muito mais diretamente que a academia na ampliação do mercado, determina condições tanto para a produção como para o consumo das obras. Ao se estudar a recepção de uma obra, importa analisar também sua adaptação para outros meios de comunicação - o que vem acontecendo com bastante freqüência - sem esquecer que o leque de receptores se multiplica e diversifica inúmeras vezes. É importante avaliar a intervenção da literatura em veículos dirigidos a uma massa de espectadores, os efeitos dessa interação no campo literário, bem como no próprio meio de comunicação. Afinal, por se tratar de um produto cultural academicizado, esse "marketing" da literatura depende também de certo prestígio no interior da estrutura universitária. Na relação entre academia e mercado, as instituições literárias têm um impacto muito menos direto sobre a produção e a edição contemporâneas, pois não possuem os mesmos meios econômicos, estando os departamentos de literatura praticamente desligados das editoras. De qualquer modo, cada agente, no interior desse universo, empenha, em sua concorrência com os outros, sua força relativa, definidora de sua posição no campo, acompanhada de suas estratégias, e as universidades ainda contribuem para determinar o que deve ser considerado arte. Caso contrário, não haveria os exemplos de livros que se tornam bestsellers e seus autores continuam não sendo legitimados como escritores. Além da importância de se analisar o poder político-econômico da mídia, também precisam ser observadas as modificações no modo de os indivíduos perceberem e representarem realidades a partir da convivência com essa mídia. The way an individual in a social group construes realities and defines the modes of referring to them is different in social groups with only two means of communication (let's say speech and handwriting) from groups which also possess electronic mass-media. 5
p.388.
Em seu clássico ensaio "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica", Walter Benjamin já chama atenção para o
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fato de que toda forma de arte se encontra no ponto de intersecção de rrês linhas. Primeiramente, a técnica atua de forma direta sobre determinada arte, como no caso das relações entre a pintura, a fotografia e o cinema. Em segundo lugar, em certos momentos de sua história, as artes tentam produzir efeitos que mais tarde serão obtidos sem esforço pelas novas técnicas. Em terceiro lugar, deixando de lado o pólo da produção, afirma que mudanças sociais acarretam mudanças na recepçã0 6 • Questões acerca da percepção do mundo - ou melhor, dos mundos - transformam-se hoje em tema central de investigação em diversas disciplinas. Processos midiáticos são entendidos como fatores constitutivos e não reprodutivos da percepção. Estudos antropológicos mais recentes mostram, por exemplo, que membros de culturas escritas estruturam seu pensamento de forma diferente de indivíduos de culturas orais. Também as pesquisas no campo da psicologia da cognição vêm a ser fundamentais para se avaliar como a recepção sofre modificações com os avanços tecnológicos.
o homem "nu ", tal como ele é estudado e descrito pelos laboratórios de psicologia cognitiva, sem suas tecnologias intelectuais nem o auxílio de seus semelhantes, recorre espontaneamente a um pensamento de tipo oral, centrado sobre situações e modelos concretos. O "pensamento lógico" corresponde a um estrato cultural recente ligado ao alfabeto e ao tipo de aprendizagem (escolar) que corresponde a ele. 7 Longe de adequarem-se apenas a um uso instrumental e calculável, os produtos da tecnologia são fontes de imaginário, entidades que participam plenamente da instituição de mundos percebidos. Basta lembrar, por exemplo, que a decadência da cultura estética regida pela prática da aura foi causada, entre outros fatores, pela capacidade recno-industrial de reproduzir a imagem. Na era da informática, como nenhum texto em rede pode requerer um espaço próprio para si, descarta-se a idéia de um espaço para a literatura distinto das práticas cotidianas. O texto literário aparece na mesma tela utilizada para enviar as mensagens mais íntimas ou realizar práticas de trabalhoS. Quando uma mudança técnica desestabiliza um antigo equilíbrio de forças e representações, estratégias inéditas e alianças inusitadas tornam-se possíveis, um conjunto heterogêneo de agentes sociais passa a explorar essas novas possibilidades. No século XIX, após a revolução
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.184. 6
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1998.
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LADDAGA, Reinaldo. Uma fronteira do texto público: literatura e os meios eletrônicos. In: OLINTO, Heidrun Krieger (org.). Literatura e mídia. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2002, p.17 -31.
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industrial da imprensa, os papéis do autor, do editor, do distribuidor, do livreiro estavam claramente separados. Com as redes eletrônicas, entretanto, aproximam-se seqüências temporais que eram distintas e essas operações se tornam quase contemporâneas umas das outras. No mundo eletrônico, o produtor de um texto pode, por exemplo, ser imediatamente o editor no sentido daquele que dá forma definitiva a esse texto e também daquele que o difunde para um público de leitores. A mudança técnica é uma das principais forças qu~ intervêm na dinâmica de uma coletividade, incluindo também a dinâmica que move o sistema dos bens culturais.
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LÉVY. Op. cit., p.16.
Se algumas formas de ver e agir parecem ser compartilhadas por grandes populações durante muito tempo (ou seja, se existem culturas relativamente duráveis), isto se deve à estabilidade de instituições, de dispositivos de comunicação, de formas de fazer, de relações com o meio ambiente natural, de técnicas em geral e a uma infinidade indeterminada de circunstâncias. Estes equilíbrios são frágeis. Basta que, em uma situação histórica dada, Cristovão Colombo descubra a América, e a visão européia do homem encontra-se transtornada, o mundo pré-colombiano da América está ameaçado de arruinar-se (não somente o império dos Incas, mas seus deuses, seus cantos, a beleza de suas mulheres, sua forma de habitar a terra). O transcendental histórico está à mercê de uma viagem de barco. Basta que alguns grupos sociais disseminem um novo dispositivo de comunicação, e todo o equilíbrio das representações e das imagens será transformado, como ( ... ) no caso da escrita, do alfabeto, da impressão, ou dos meios de comunicação e 9 transporte modernos.
No caso brasileiro, uma cultura oral e audiovisual vem substituindo a formação escolar clássica, letrada, a ponto de segmentos inteiros da sociedade terem na telenovela sua principal fonte de educação e formação. Sem contar que essa formação clássica nunca chegou a fazer parte da vida de grande parcela da população. Os próprios profissionais de ensino, bem como os produtores culturais e os críticos são eles mesmos, hoje em dia, de certo modo, formados pela mídia. Na globalização eletrônica, o modelo de comunicação de massa tradicional - concentrado em monopólios em que poucos produzem para muitos - cede lugar a uma coletivização de produção e consumo de informações, acompanhada de uma desmassificação - como no
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caso da internet. Paralelamente a esse processo, consolida-se, para as grandes camadas da população, uma cultura, cujos exemplos paradigmáticos são os seriados norte-americanos. O Brasil é um grande consumidor de ficção, mas via TV. Para a grande maioria das pessoas, oferece-se um modelo de comunicação de massa concentrado em grandes monopólios e apoiado em programações repetitivas de entretenimento light, de onde está praticamente excluída a figura do escritor - só uns poucos conseguem ultrapassar essa barreira - e por onde também não se veicula nenhuma política efetiva de incentivo à leitura. Se, por um lado, a obra de arte só existe enquanto tal, quer dizer, enquanto objeto simbólico dotado de sentido e de valor, se for apreendida por espectadores dotados da atitude e da competência estéticas tacitamente exigidas, tais espectadores só podem fazê-lo na medida em que são eles próprios produtos de uma convivência com obras de arte. Quando não são levadas em conta essas condições, instituem-se em norma universal propriedades específicas de uma experiência que é produto de um privilégio, ou seja, de condições especiais de aquisição. Enquanto a recepção dos produtos ditos "comerciais" é menos dependente do nível de instrução dos receptores, a literatura é um produto acessível aos consumidores dotados de certa competência, a qual deve ser desenvolvida basicamente pelo sistema de ensino. Além de formar leitores, a instituição escolar também reivindica um papel de consagradora, isto é, depois de um longo processo, canonizam-se determinadas obras pela sua inscrição nos programas de ensino. Apesar de não desenvolver aqui a questão de como esse trabalho vem sendo realizado em nossas escolas, questiona-se o lugar nelas reservado para a leitura dos escritores brasileiros. Se o sistema de ensino não está conseguindo formar leitores, quem exerce influência sobre os jovens consumidores de literatura? Volta-se, conseqüentemente, ao mercado e à mídia. Restringe-se, assim, a autonomia do escritor, expondo-o às exigências ou às encomendas dos poderes externos. A rede de elementos que separa a literatura da maior parte das pessoas pode ser observada sob vários ângulos, até mesmo na segregação residencial, uma vez que, numa cidade como o Rio, a quase totalidade da oferta cultural "clássica" - na qual se incluem as bibliotecas e livrarias - concentra-se no centro e na Zona Sul, o que reforça a desigualdade, o acesso anti democrático aos bens culturais. ( ... ) 89% dos municípios do país não têm livrarias. O Rio tem 164 livrarias, concentradas em 39 bairros. Os outros
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la GUEDES. Cilene. Carência de livrarias. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 8 abr. 2000.
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118 bairros da cidade não têm livraria alguma ( ... ) Mesmo nos 39 bairros onde estão as livrarias, a relação é de um estabelecimento para cada 13,426 habitantes. O bairro com mais livrarias é o Centro: 45 estabelecimentos - ou 28% do total. A pesquisa não encontrou qualquer relação entre a existência de livrarias e a de bibliotecas nos bairros do Rio. Há bairros com bibliotecas e sem livrarias e há bairros com 10 livrarias mas sem bibliotecas.
o objetivo das abordagens sócio-históricas é identificar a relação funcional variável em que textos literários encontram-se na "experiência de vida" e não estabelecer as qualidades do texto como representação de intenções pessoais, da realidade histórica ou como resultado de experimentações lingüísticas. Essas relações funcionais revelam as convenções vigentes no que se refere à comunicação literária. Como resultado da relação intertextual de discursos literários e não-literários e das concretizações variáveis de textos literários, a imagem da obra de arte como autônoma desaparece, tornando-se necessário procurar o especificamente "literário" a partir e em oposição a outras manifestações textuais da experiência ou outros tipos de comunicação verbal ou não-verbal. Acentua-se o comprometimento com o paradigma da multiplicidade, visível no esforço de empirizar e historicizar o conjunto do fenômeno literatura e visível ainda na abertura para espaços interdisciplinares e interculturais. Os processos interativos dos vários papéis acionais ficam sujeitos a contínuas modificações sob a influência de impulsos e necessidades de origens diversas. Faz-se mister tomar consciência desses mecanismos, descrevê-los, a fim de elaborar novas formas de intervenção, talvez programas de ação combinada entre agentes diversos - artistas, escritores, professores, jornalistas, pesquisadores - no sentido de criar alternativas visando a democratizar tanto a produção, quanto a distribuição e a recepção da literatura e das artes em geral. É necessário redescobrir o papel dos intelectuais, incluindo os escritores, é claro, em relação às sociedades civis, em especial num país periférico como o nosso. Além disso, uma nova forma de distribuição das obras através da internet pode ser uma saída não só para democratizar a produção e a distribuição, como também para popularizar a leitura. De acordo com Jason Epstein, quando a digitalização dos livros crescer significativamente, editores terão de catalogar todos os livros que vendem. A manutenção desse catálogo universal de livros não pode ser um negócio privado, assim
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como não são hoje os bancos de dados de bibliotecas internacionais e diretórios telefônicos. E aí entra a função das Organizações das Nações Unidas, enquanto entidade de poder acima dos governos locais e interesses privados. Trata-se de um serviço de publicação mundial, multilingüístico e sem fins lucrativos. As máquinas de impressão sob demanda ficariam em lojas estacionárias nas ruas, onde tudo o que você estaria pagando é pelo papel, pelo uso de tal máquina e os direitos dos autores e seus editores digitais. Sem intermediários, esse novo processo faria com que o preço final do livro ao consumidor caísse em 50%. II É importante vincular em um mesmo projeto o estudo da produção, da transmissão e da apropriação dos textos. Significa manejar ao mesmo tempo a crítica textual, a história do livro e, mais além, do impresso e do escrito, e a história do público e da recepção.
11 GRECCO, Sheila. Páginas de futuro. Babel: olhares e perfis. 10 jan. 2002. Disponível em <http://babel.no.com.br>. Acesso em: 13 jan. 2002.
( ... ) deve-se considerar o conjunto dos condicionamentos que derivam das formas particulares nas quais o texto é posto diante do olhar, da leitura e da audição, ou das competências, convenções, códigos próprios à comunidade a qual pertence cada espectador ou cada leitor singular. A grande questão, quando nos interessamos pela história da produção dos significados, é compreender como as limitações são sempre transgredidas pela invenção ou, pelo contrário, como as liberdades da interpretação são sempre limitadas. A partir de uma interrogação como essa será talvez menos inquietante /lesar as oportunidades e os riscos da revolução eletrônica. A esfera pública culta refratada em segmentos culturais, constituindo uma pluralidade de grupos de interesses, requer cada vez mais pesquisas interdisciplinares, incluindo profissionais da lingüística, da comunicação, da antropologia, da psicologia, da informática, entre outras áreas, o que certamente potencializará o campo literário. Nem mais o repertório comum e canônico da educação humanística clássica nem o sonho de uma vivência total da arte como parte de projetos de revolução comportamental e política. A educação dos sentidos passou a ser um modo de identificação entre o indivíduo e um recorte grupal. A arte constitui uma forma de resistência à cultura da massificação. Sua sobrevivência, contudo, depende do êxito que obtiver nos meios político-econômicos de circulação. São tempos de megamercados, que
12 CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: UNESP / Imprensa Oficial do Estado, 1999, p.19.
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i3 MORICONI, Italo. A provocação pós-moderna - razão histórica e política da teoria hoje. Rio de Janeiro: Diadorim, 1994.
" CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos. Conflitos multiculturais da globalização. Trad. Maurício Santana Dias & Javier Rapp. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.
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LÉVY. Op. cit., p.127.
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manipulam a moda, e esta, por sua vez, convive com o gosto das tribos, que se relacionam a segmentos de mercado I3. Canclini, em seu livro Consumidores e cidadãos, tenta entender como as mudanças na maneira de consumir alteraram as possibilidades e formas de encarar a cidadania. Não se pode mais alinhar o consumo apenas ao mercado e a táticas publicitárias. Há uma coerência entre os lugares onde os membros de uma classe ou de uma fração de classe estudam, passam as férias e também naquilo que lêem - o que evidencia aspectos simbólicos e estéticos da "racionalidade consumidora" 14. Todos esses dados ratificam a necessidade de se ampliarem as discussões sobre o fenômeno literatura. As inter-relações de produção e fruição no campo da arte vêm sofrendo profundas modificações e requerem maior prudência no estudo de categorias como "arte", "consumo" e "mídia", entre outras. No pólo da produção, encontram-se textos literários contemporâneos que têm como projeto recuperar um modo de contar, lançando mão de uma linguagem despida de metáforas, como recurso para falar "do" e "para" o homem atual. Num mundo dominado pelas imagens, a visão vem a ser um dos sentidos mais requisitados. Os habitantes das grandes metrópoles têm no olhar seu instrumento prioritário de percepção e de capacidade cognitiva. É preciso, portanto, que a arte desautomatize esse olhar. Inquietações contemporâneas como a força da literatura nos dias de hoje, o confronto com a cultura de massa e a necessidade de uma linguagem capaz de atingir o leitor atual suscitam questionamentos sobre que ficção se torna relevante e, portanto, interessante aos leitores. No que diz respeito à pragmática da comunicação, na tradição oral, os parceiros encontram-se mergulhados nas mesmas circunstâncias e compartilham hipertextos próximos. No caso da escrita, a distância entre os hipertextos do autor e do leitor pode ser muito grande. Disto resulta uma tendência à universalidade por parte do autor, assim como uma necessidade de interpretação por parte do receptor. No pólo informático-midiático, os atores da comunicação dividem cada vez mais um mesmo hipertexto. A pressão em direção à universalidade e à objetividade diminui, pois as mensagens são cada vez menos produzidas para durarem. Enquanto o critério dominante no pólo da oralidade primária é a conservação e, no pólo da escrita, a verdade, de acordo com modalidades de crítica, objetividade e universalidade, no pólo informático-midiático, os critérios dominantes são a eficácia e a pertinência 15.
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Este quadro comparativo traçado por Pierre Lévy remete a outro ensaio clássico de Benjamin sobre a figura do narrador e sua substituição pelo romancista 16. O narrador seria aquele homem que sabe dar conselhos, que retira da experiência aquilo que conta, ou seja, transmite sua experiência ou aquela que lhe chega aos ouvidos. O romancista, por sua vez, não recebe nem dá conselhos, não fala exemplarmente sobre suas preocupações. Do ponto de vista do receptor, na tradição oral, importava ao ouvinte ser capaz de reproduzir a narrativa; no caso do romance, o leitor é convidado a refletir sobre a vida. Hoje, que convites pode-se fazer ao leitor? Se o ouvinte tem a companhia do narrador, enquanto o leitor do romance é solitário, de que formas a internet altera a relação autor/leitor? Peguemos como exemplo a experiência do escritor Mário Prata, que resolveu produzir um livro on-line, podendo ser visto pelos leitores no momento mesmo da criação e podendo receber e-mails desses leítores. Logo de saída, em experiências como essa, estão ocorrendo modificações na construção da figura do autor, o qual se aproxima muito mais de um cidadão comum. Além disso, em que medida acompanhar diretamente a produção de um livro interfere em sua recepção? Essa e muitas outras perguntas mostram a relevância de estudos interdisciplinares, incluindo os profissionais da área de Letras. Houve um tempo em que a crítica do leitor se limitava à seção "carta dos leitores". Hoje as redes eletrônicas facilitam as intervenções, ampliando o espaço de discussão.
Deste ponto de vista, pode-se dizer que a produção dos juízos pessoais e a atividade crítica se colocam ao alcance de todo mundo. Daí, a crítica, como profissão especifica, correr o risco de desaparecer. No fundo, a idéia kantiana segundo a qual cada um deve poder exercer seu juízo livremente, sem restrição, encontra seu suporte material e técnico com o texto 17 e I etronlco.
16 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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Além disso, o hipertexto possibilita ao leitor a transformação permanente dos textos:
Teorias da literatura tradicionais nos induziram a supor a existência de sentidos subjacentes aos próprios textos, vinculados à idéia de uma identidade autoral integrada movida por atos intencionais. A quantidade ilimitada de textos conectáveis em sistemas hipertextuais pressupõe, no entanto, uma existência fundante de textos a partir de incontáveis textos referenciais e, assim, todo texto novo já
17 CHARTIER. Op. cit., p.18.
Uma aventura literária por novas tecnologias
18 GABRIEL, N. Kul turwissenschaften und neue Medien. Apud: OLINTO, Heidrun Krieger (org.). Literatura e mídia. Rio de Janeiro: Ed. PUe-Rio; São Paulo: Loyola, 2002, p.n.
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nasce como tecido de textualidades múltiplas e toda instância autoral que altera e acrescenta elementos, por seu lado, emerge na qualidade de compositor de textos multivocais. E é neste sentido que podemos falar numa conversão do autor 18 em "texto".
o campo literário se constitui na interação de diferentes indivíduos que lidam com os fenômenos tidos como literários, indivíduos estes que também se articulam com esferas extraliterárias. A mídia eletrônica e a informática vêm a ser componentes dessa rede. De um lado, a informática, ao misturar os papéis dos agentes sociais, cria uma liberdade nova à medida que permite, por exemplo, que o leitor intervenha na criação de textos ou que o autor se torne editor e distribuidor de seu próprio texto - uma forma de tentar driblar o poder a as exigências do mercado. Por outro lado, não se pode esquecer de que poderosas empresas multimídia determinam, de forma antidemocrática, a oferta de leitura e de informação nas redes eletrônicas. Nem euforia, nem desânimo diante das novas tecnologias. É preciso colocar em foco, de forma interdisciplinar, a discussão sobre como e quanto esses componentes atuam no consumo e na percepção dos bens culturais. Afinal, trata-se da vida contemporânea, que, ao mesmo tempo em que desafia, abre possibilidades para tarefas intelectuais significativas. Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos. Conflitos multiculturais da globalização. Trad. Maurício Santana Dias & Javier Rapp. Rio de Janeiro: UFRJ,1995. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: UNESPlImprensa Oficial do Estado, 1999. GABRIEL, N. Kulturwissenschaften und neue Medien. In: OLINTO, Heidrun Krieger (org.). Literatura e mídia. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2002. GALV ÃO, Walnice Nogueira. Janeiro, 22 dez. 1985.
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As regras do jogo ou A arte de inventar pontes e passagens
André Bueno Universidade Federal do Rio de Janeiro
De la Argentina se alejó un escritor para quien la realidad, como la imaginaba Mallarmé, debia culminar en un libro; en París nació un hombre para quien los libros deberán culminar en la realidad. Julio Cortázar
Passados quase vinte anos da morte de Julio Cortázar, o processo formativo do escritor argentino continua oferecendo temas muito sugestivos para os estudos de Literatura Comparada, na esfera dos valores estéticos e políticos. Na linha principal deste trabalho, analiso deslocamentos na relação Europa e América Latina, Argentina e França, Paris e Buenos Aires, o lado de lá e o lado de cá, como se lê em Rayuela, tendo como fio condutor a trajetória do próprio Cortázar. Deslocamentos que dizem respeito a um processo maduro de superação da dependência cultural e literária, indo além dos problemas postos pelo localismo estreito e pelo cosmopolitismo vazio, pelas afirmações nacionalistas, de algum tipo de argentinidad, e seu oposto, representado pelo intelectual latino-americano cujo sonho foi, durante muito tempo, Paris e a França, deixando de lado as experiências locais
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de seus respectivos países. Argumento que o processo formativo de Cortázar trabalha essa constelação crítica de forma original, criando pontes e passagens onde parecia haver apenas impasses, não aceitando os falsos problemas, relacionando de forma criativa o movimento que relaciona fidelidade local e mobilidade mundial, para usar aqui um comentário de Antonio Candido l , que mais adiante será desenvolvido. Além disso, analiso o processo formativo desse escritor argentino radicado em Paris a maior parte de sua vida como uma experiência que explora os limites de uma tradição moderna, madura e formada, como um campo de possibilidades ainda aberto ao longo da década de 1960 e que recuará, perdendo espaço, nas décadas seguintes, no compasso da crise posta pelas formas econômicas, políticas e culturais do capitalismo avançado, que mudam as relações entre estética e política. É a crise contemporânea, quando saem de cena as tradições revolucionárias ou de revoltas românticas contra o capitalismo, espaço no qual se formou e se desenvolveu a literatura de Julio Cortázar, com os citados deslocamentos, que são analisados nas páginas seguintes, percebendo vantagens onde alguns críticos apontaram apenas perdas e desvantagens. Com esse propósito em mente, vale a pena lembrar alguns dados de sua biografia. Cortázar nasce na Bélgica, em 1914, filho de pais argentinos. É educado ouvindo francês e alemão. Vai para a Argentina com quatro anos de idade, sem saber o espanhol e puxando os erres, o que faria a vida inteira e era bem marcante nas gravações em que lia seus textos. Forma-se em um ambiente em que tinha acesso às línguas e aos livros e, desde pequeno, começa a ler literatura européia - angloamericana, alemã, mas sobretudo francesa - , melhorando seu conhecimento de línguas por conta própria. Daí não se conclua que teve a formação de um aristocrata, pois cresceu num ambiente modesto, de classe média, convivendo em Banfield, subúrbio de Buenos Aires, com crianças filhas de trabalhadores. E, lembremos, a biblioteca de sua mãe não tinha nada de erudita e seletiva, mas será sua via de acesso à imaginação literária. Abandonado pelo pai, será educado e viverá cercado por mulheres, como uma criança tímida, asmática, voltada para a leitura e a imaginação, já demonstrando o fasCÍnio pelas palavras, pelo insólito e pelo inesperado, por tudo que será o caminho de seus contos fantásticos. Faz o curso Normal, chega a cursar em Letras e vai ser professor em cidades do interior da Argentina, como Chivilcoy e Bolivar. É a época em que, jovem solitário entediado com a vidinha do interior, faz o grosso de suas leituras, formando-se como leitor da cultura européia a partir de um certo Extremo Ocidente, ou seja, o próprio interior
I CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987.
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da Argentina. Cabe notar que esse período não marca nenhum contato de Cortázar com as formas da cultura popular em seu país ou mesmo na América Latina. Mas não significa que não tenha havido, em seu processo formativo, uma experiência local, da Argentina e de sua realidade. Houve, e será sempre marcante, como experiência linguística, cultural, afetiva e, por fim, política. Com o fim da Segunda Guerra, a sociedade Argentina será marcada pela ascensão do peronismo. Como Cortázar lembrará várias vezes, com humor e ironia, o jovem escritor, todo voltado para problemas estéticos, ficava incomodado com o alarido das massas ocupando o espaço público em Buenos Aires. Isso porque os bumbos das massas peronistas incomodavam a audição dos quartetos de Bártok e a devida apreciação de Schoenberg. Mais que isso, aquele jovem esteta portenho percebia as massas argentinas como uma espécie de bárbaros, como se lê no conto Las portas dei cielo. Com Peron no poder, fica em situação desconfortável diante da nova ordem, não aderindo ao sentido nacionalista, religioso e fechado, que se pretende para a educação. Demite-se de seu cargo de professor, antes que fosse, de qualquer forma, demitido, como vários de seus colegas. Não estava em seu campo de interesses beijar o anel do bispo em visita à escola onde trabalhava. Em 1951, com uma Bolsa de Estudos, vai para Paris. Não é um exilado, um perseguido político, e faz questão de frisar, sempre que isso é sugerido. Não há um martiriológio na formação de Julio Cortázar. Tampouco rompe relações com a Argentina, pois fica numa espécie de vai e vem, durante alguns anos, com visitas regulares a seu país. Mas, em seu processo formativo, foi decisiva essa passagem da América Latina para a Europa, da Argentina para Paris, onde viverá até morrer, no começo de 1984. Será um exilado político, de fato, apenas após 1974, quando a ditadura militar censura seus livros e proíbe sua presença no país. Nesse momento, sentirá o peso negativo do exílio, ao ver cortadas suas referências - com seus leitores, os amigos, o país, a cultura e a memória. Por contraste com a fase anterior, em que o exílio é percebido como uma oportunidade, criativa e construtiva, um campo de novas possibilidades na arte de inventar pontes e passagens, quer na vida cotidiana, quer na elaboração de seus relatos. A virada na literatura e na vida de Julio Cortázar viria na passagem da década de 1950 para a de 1960. Não era um desconhecido, pois já tinha publicado Los premios, Bestiário, Las armas secretas e Final dei juego, onde estão vários de seus contos mais marcantes, como Casa tomada, Carta a una senorita em Paris, Las puertas dei cielo, Circe, Bestiario, Las babas dei diablo, EI perseguidor,
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Las armas secretas, Continuidad de los parques, Torito, Axolotl, La noche boca arriba e Final dei juego 2• Não tinha muitos leitores, mas já era um contista conhecido em certos círculos bem informados. O exemplo que ocorre é logo o de Casa tomada, publicado SGb os auspícios de Borges, um conto muito cifrado e que se presta a várias interpretações. O que invade a privacidade daqueles dois irmãos - o narrador e Irene, morando numa casa enorme, que daria para muitas pessoas, guardando a memória dos pais, dos avós e dos bisavós - , e pouco a pouco os confina dentro de casa, para no final expulsá-los, fazendo com que saiam y deixando a chave e torcendo para ninguém querer entrar em tão estranha casa, ocupada por forças que nunca são nomeadas? Há várias interpretações, e uma certa proximidade com os relatos de Kafka. Pode-se ler como um tema típico do século XX, quando o indivíduo e sua vida privada são, com frequência, acossados, invadidos, resultando em alterações radicais na vida cotidiana, que podem chegar à prisão e à morte, sem que se entenda os motivos. Pode-se ler, também, como um tema metafísico, da estranheza de estar no mundo, de perder o abrigo, de não haver porto seguro, a vida sendo vivida como exílio e deslocamento, tornando inútil e ilusória a segurança da vida cotidiana. Mas Casa tomada também pode ser lido por um viés político mais direto, ligando o conto ao contexto argentino do peronismo, onde a casa que é tomada seria representação do malestar vivido pelo jovem esteta que tinha sua privacidade invadida pela massa ruidosa que tomava conta do espaço público, perturbando a percepção estética, o recolhimento e as leituras. No seu ponto mais crítico, que remete a Bestiário, o escritor, enquanto jovem esteta em formação no Extremo Ocidente, numa Argentina que via o povo entrar em cena pela via do peronismo, estava profundamente incomodado com o aluvião zoológico trazido pela presença dos cabecitas negras ocupando as ruas da cidade. De outro ângulo, menos referencial e direto, o conto pode ser lido como forma da estranheza que é tão marcante na vida cotidiana das cidades modernas do capitalismo, e que rendeu muita literatura de boa qualidade, justo como cifra desse mal-estar, que tem a ver com opacidade e alienação e, tantas vezes, tem como ponto de partida súbitas alterações no ritmo e na rotina de todos os dias, que parecia natural e entra em crise. No romance Los prêmios, temos uma representação bem fantasmagórica da Argentina da época, com os personagens postos num estranho navio que nunca parte, que volta ao porto, depois de uma morte e misteriosas revoltas a bordo. E lá está Persio, o personagem que encarna o tema, tão caro a Cortázar, do perseguidor, daquele que não aceita a aparente naturali-
CORTÁZAR, Julio. Cuentos completos -1. Buenos Aires: Alfaguara, 1996. Z
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3 O trecho pertence a uma ~arta enviada a Roberto Fernandez Retamar.
4 CORTÁZAR, Julio. Rimbaud. In: Obra crírica - 2. Buenos Aires: .-\lfaguara, 1994.
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dade das coisas e do que é definido pelo costume, pela linguagem, pelo pensamento, como realidade, fechada e exclusiva. Portanto, seria incorreto afirmar que não havia uma representação da experiência argentina nesse parte do processo formativo de Julio Cortázar. Havia sim, mediada por um forte impulso estético e algumas indagações metafísicas. Mas será com a publicação do conto El perseguidor que se nota a mudança no processo formativo desse escritor. Pela primeira vez, situa seu relato numa realidade cotidiana reconhecível e situável, não apenas em uma forma da imaginação fantástica. O perseguidor Johnny Carter, criado a partir de Charlie Parker, e suas indagações podem ser lidos como uma espécie de pequena Rayuela, que será publicada em 1963, marcando de fato um divisor de águas na formação de Cortázar que, vivendo em Paris, como que descobre a América Latina de onde viera. É o momento em que, como ele mesmo afirmava, aproxima-se dos outros seres humanos, de seus problemas e de suas vidas cotidianas, assim como dos conflitos históricos mais importantes. Indigna-se com o colonialismo francês na Argélia, descobre a América Latina através da Revolução Cubana, decide tornar empenho prático sua tomada de consciência. Uma vez mais, mudam de posição a Europa e a América Latina, o velho e o novo continente, o centro e a periferia. Mudança que está resumida na epígrafe deste artigo: "de la Argentina se alejó un escritor para quien la realidad, como la imaginaba Mallarmé, debia culminar en un libro; en Paris nació un hombre para quien los libros deberán culminar en la realidad"3. Com isso, não se entenda que a elaboração estética deixe de interessá-lo, fazendo-o pender para formas tardias de naturalismo e verismo cru. O que importa, nessa mudança, é o deslocamento que se opera na relação entre literatura e sociedade, literatura e vida cotidiana, como são explorados os limites entre estética e política, mediando os materiais da vida de todo dia. Não é de surpreender que Cortázar tenha encontrado seus leitores entre a juventude da década de 1960, nem que tenha estado muito à vontade nos eventos de Maio de 1968, pois as revoltas estudantis e operárias do período puseram, por um breve instante, a utopia nas ruas, colocando a poesia nos muros da cidade e na vida cotidiana das pessoas, como que realizando a superação da distância que separa arte e vida, estética e política. Dando ar de realidade à tradição de revoltas românticas contra o capitalismo, mais para anárquicas e libertárias, que sempre foram tão importantes na formação de Cortázar, desde a publicação de seu primeiro texto, Rimbaud, em 1941 4 • Não é exagero
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afirmar que escreve, experimenta e persegue seus objetivos estéticos e políticos no limite de uma tradição moderna, madura e formada, que tem seu auge em 1968 e que experimentará um acentuado declínio nas décadas seguintes, com a ascensão do conjunto, aqui indicado apenas na sua forma genérica, que define o capitalismo avançado em sua fase contemporânea. O que era percebido na época como avanço revolucionário se revelaria um recuo em grande escala, inclusive para a América Latina, fazendo com que pareçam épocas remotas mesmo as décadas mais recentes e as experiências das gerações que viveram até quase o final do século XX. No limite da tradição moderna, formada e madura, bem perto da crise posta pelo capitalismo avançado, a literatura de Cortázar movese entre duas divisas fortes e atraentes: a da revolta romântica, resumida em Rimbaud e seu é preciso mudar a vida, e a revolução realista, resumida em Marx e seu é preciso mudar o mundo, não apenas oferecer explicações ou dele apresentar belas imagens ilusórias, como consolo e refúgio diante do mundo desencantado, fazendo da experiência estética um sucedâneo da religião, o coração de um mundo sem coração. Como estamos cansados de saber, nem mudou a vida, nem mudou o mundo, e a distância que separa arte e vida, dimensão estética e vida cotidiana, parece insuperável. Ou, na pior das hipóteses, a sociedade do espetáculo 5 , fazendo de tudo mercadoria e imagem da mercadoria, simulacros a se repetirem num presente veloz, vazio e voraz, sem memória e sem espessura, teria anulado a própria arte como conhecimento negativo da realidade. No caso de Cortázar, se não fosse possível tomar distância da vida cotidiana como opacidade e estranheza, espécie de noite onde os navios cruzam mares solitários sem j amais se encontrarem, toda sua elaboração da literatura, do leitor e da leitura iria por água abaixo. Pois, como dissemos acima, seu processo formativo faz parte de uma tradição moderna madura e formada, experimentada em seus limites, estéticos e políticos, existenciais e sociais. Levando ao limite a linguagem, a experiência e a percepção das formas sociais, seus textos são literatura e comentário sobre os procedimentos literários, ao mesmo tempo narração e ensaios sobre as formas e possibilidades de narrar, além dos quais estariam o silêncio ou a própria destruição da literatura6 • Mas o que resulta é, apesar de todas as inovações e rupturas, ainda literatura. Para tal tipo de experiência fica difícil imaginar leitores acostumados com pastiches ou jogos de linguagem isentos de conflito e contradição, indiferentes às relações entre estética e política, arte e vida cotidiana.
DEBORD, Guy. La societé de I' spectacle. Paris: Gallimard, 1992.
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ARRIGUCCI JR., Davi. O escorpião encalacrado. São Paulo: Perspectiva, 1973. Antonio Candido aponta para esse paradoxo da literatura no ensaio Quatro esperas. In: O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.
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1. As formas do fantástico Há alguns modos de chegar a Cortázar que mais valeria evitar. O primeiro deles é o hagiográfico, muito comum enquanto o escritor estava vivo e gozava de uma justa reputação internacional. Esse modo tem a desvantagem de colar em excesso nos textos, perdendo de vista ângulos críticos mais agudos e difíceis, fazendo tudo girar em torno da linguagem, da consciência de linguagem e das experiências de ruptura nas convenções genéricas da literatura. O que é bem verdade, mas tem da própria forma literária uma percepção reduzida, tautológica e ensimesmada. O segundo modo a ser evitado, creio, é aquele que incorpora, sem maiores problemas, a literatura de Cortázar a algum novo cânone do conformismo, fazendo dela objeto de culto acadêmico, retirando da forma literária todo fascínio e toda inquietação. O terceiro modo, mais difuso e confuso, de todos o mais pernicioso, é aquele que joga a estranheza dos relatos de Cortázar no saco de gatos dos efeitos mágicos e maravilhosos que o olho de Medusa do colonizador prescreve e espera dos escritores da América Latina. Em algum lugar, Gore Vidal fez, a propósito do realismo mágico latino-americano, uma observação que mistura agudeza e preconceito, mas que vale a pena lembrar: quando, em meio a um desses relatos, algum general começava a voar, ele parava a leitura e fechava o livro. O lado preconceituoso é bem claro e nos coloca num lugar pouco honroso. A parte aguda do comentário diz respeito às formas diluídas do mágico e do maravilhoso, que acabam sendo mesmo macumba prá turista, para lembrar aqui Oswald de Andrade. Confirmando o preconceito, por exemplo, nas relações entre América Latina e do Norte, cabendo a nós o papel de alguma coisa exótica, meio que fora do mundo moderno, com um acesso mágico ao mundo, mas não a capacidade racional de organizar e mudar o mundo, nos termos mais exigentes e avançados da época. Fique como exemplo uma das edições de Rayuela, publicada nos Estados Unidos com o título de Hopscotch e que tem na capa, como era de se esperar, um militar com óculos escuros e bigodes, vendo-se ao fundo praias e palmeiras. Tristes trópicos, trastes típicos, tudo para consumo superficial e desavisado dos temperos exóticos e alegóricos que deveriam vir dos países atrasados. As formas que o fantástico assume na literatura de Cortázar são muito diferentes do acima exposto. Pertencem a uma rica floração que se dá no contexto do Rio da Prata, do Uruguai e da Argentina como uma mesma região cultural e literária, que desenvolve um estilo muito forte de literatura fantástica. Tradição da qual participam
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Julio Cortázar, Macedônio Fernandez, Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Felisberto Hernandez, Juan Carlos Onetti e Roberto Arlt, para citar apenas os nomes mais destacados, seja de forma direta, seja levando a forma realista aos limites onde começa o fantástico e sua estranheza. Referência clássica dessa literatura é a Antología de la literatura fantástica, publicada em 1940 por Silvina Ocampo, Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. Desde sempre, é uma literatura urbana e elaborada, distante do regionalismo e das manifestações tardias do naturalismo. Daí que as formas da estranheza elaboradas por esse fantástico não se nutram de visões religiosas, místicas ou préurbanas, que facilitariam sua identificação com alguma América profunda, contraponto mágico e maravilhoso à racionalidade ocidental e à expansão mundial do capitalismo também no Extremo Ocidente. Visão fraca e superficial, que nos confina no espaço restrito do exotismo, do pensamento mágico, da redução quase que a um estado de natureza. E que desconhece, com certeza, as formas das tradições populares e mestiças ao longo da História e em contato com a modernização do capitalismo. Vale lembrar que tradições populares não precisam ser sinônimo de populismo, de folclore ou exotismo de consumo, fácil e caricato. Como problema relevante, temos a relação do mundo rural e pré-urbano, negro, indígena, mestiço, dos países da América Latina, com o mundo urbano que o capitalismo vai formando. Num dos extremos, o urbano, essas tradições populares seriam apenas resíduos inúteis. No outro, que idealiza as mesmas tradições, teríamos formas intactas, capazes de atravessar os processos históricos e as rupturas sem qualquer alteração. Evidente que esses dois extremos não podem dar conta de um processo muito matizado e mediado, além do mais bem próximo no tempo e, em certas regiões, bastante incompleto. Ficando no caso de Cortázar, e indo direto ao ponto, seus relatos só podem ter como contexto a vida cotidiana nas cidades modernas formadas pelo capitalismo, lá e cá, na Europa e na América Latina, como estranheza e opacidade, empobrecendo a experiência e mutilando a vida. Relatos, portanto, a partir do mundo desencantado que é a vida de todo dia nessas cidades. Fazendo o interesse voltar-se para os particulares sensíveis, as qualidades inesperadas que se apresentam, ao narrador e aos personagens, opondo valores de uso e o domínio geral do valor de troca, abstrato, burocrático e impessoal, voltado o tempo todo para a acumulação e o que pode ser quantificado. As formas do fantástico em seus relatos tem um fundamento bem preciso e identificável: a força e o fascínio da estranheza derivam de alterações e deslizamentos, inesperados e inusitados, na reprodução e aparente naturalidade dessa mesma vida cotidiana. Ou seja,
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CORTÁZAR, Julio. Algunos aspectos deI cuento. In: Obra critica - 2. Buenos Aires: Alfagarra, 1994. 7
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há uma relação, de conflito e contradição, entre textos e contextos, mesmo que não seja de tipo naturalista ou realista. E é uma relação que se esvaziaria, que seria de todo desinteressante caso não houvesse essa tensão com a realidade de todo dia. Sem intenção política expressa, dissolvendo as referências históricas e sociais, criando um clima de estranheza em meio ao cotidiano naturalizado, os relatos de Cortázar são herdeiros de uma certa tradição de recusas e revoltas diante das formas da vida urbana criadas pelo capitalismo. E que passam, com certeza, pela tradição das recusas românticas e surrealistas, por exemplo, tentando criar pontes e passagens, alargar o campo do possível diante do mal-estar que é vivido no cotidiano. Vale dizer que as formas sociais são percebidas e abordadas, mesmo que de maneira difusa e dispersa, distanciada, que não elabora as referências de forma realista. É o paradoxo, apenas aparente, da literatura que toma distância, desfaz ou rarefaz as referências históricas e sociais, situando seu material num espaço menos tangível, mas que acaba por conseguir o efeito de uma forte crítica, voltada justo para a realidade de onde se afastara 7 • Com isso, fica-se desobrigado de condenar essas formas do fantástico como se fossem apenas tentativas, mais ou menos ilusórias, de reencantar o mundo desencantado, aplainando os conflitos e juntando, num passe de mágica, aquilo que a reprodução da vida social e histórica sob o capitalismo separa, fragmenta e isola. Ou seja, essas formas do fantástico não participam da tentativa de criar soluções imaginárias para problemas bem reais. E, ao explorar limites - da linguagem, do pensamento, da experiência da vida cotidiana, das formas sociais e históricas - dão forma negativa ao mal-estar vivido no cotidiano, indicando sempre o sonho de alguma coisa que está além, em outro lugar, que ainda não existe, que poderia existir ou que também poderia ser, digamos assim, mera miragem. Tratando ainda das formas do fantástico na literatura de Cortázar, é possível precisar os procedimentos que armam os relatos e resultam na estranheza que lhes dá força e fascínio. Logo na abertura de Algunos aspectos dei cuento, o escritor argentino situa sua concepção do fantástico:
Casi todos los cuentos que he escrito pertenecen ai género fantástico por falta de mejor nombre, y se oponen a ese falso realismo que consiste en creer que todas las cosas pueden describirse y explicarse como la daba por sentado el optimismo filosófico y científico dei siglo XVIII, es decir, dentro de un mundo regido más o menos armoniosamente por un sistema de leyes, de principias, de relaciones de causa
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y efecto, de psicologías definidas, de geografias bien . 8 cartografzadas .
Nota-se que Cortázar combate uma certa noção fechada de realidade, mas a forma de seus contos fantásticos, muito precisos, parte dessa mesma ilusão de realidade para conseguir seus melhores efeitos. Para avançar esse ponto, vale a pena referir uma comparação, feita por Mario Goloboff,. entre os estilos de Borges e de Cortázar. Embora se aponte, seguidas vezes, Cortázar como continuador de Borges, há uma diferença fundamental na relação com a realidade: El mundo de Borges es (como éste lo dice de algún otro autor) "profesionalmente irreal No hay para él outra realidad que la irrealidad. Ni otra causalidad que la fantástica. El mundo todo pertence a esta categoría; la realidad, como tal, no tiene existencia alguna. Por eso lo fantástico de Borges es un orden completo que se contrapone completamente - ai orden de la realidad 9.
8 GOLOBOFF, Mario. Julio Cortázar - La biografía. Buenos Aires: Seix Barrai, 1998.
li.
J á nos contos de Cortázar as coisas se passam de maneira diferente, assim percebida pelo mesmo crítico:
Para Cortázar, en cambio, la realidad, nuestra realidad, lo abarca todo, inclusive lo fantástico. Lo que, en su opinión, sucede, es que una lógica cartesiana há invadido, o mejor dicho, limitado, los contornos de la realidad. Pero dentro de ésta caben, deben caber, los suefíos, las fantasias, los desórdenes ( ... ) El mundo fantástico, para Cortázar, está 10 dentro dei nuestro .
No ensaio Del cuento breve y sus alrededores, Cortázar situa sua forma de compor o fantástico. Os contos precisam ser esféricos, completos em si mesmos, criando sua força a partir de uma sugestão de Horácio Quiroga, que elaborou um decálogo do perfeito contista, dos quais é citado apenas o seguinte: "Cuenta como si el relato no tuviera interés más que para el pequeno ambiente de tus personajes, de los que pudiste ter sido uno. No de otro modo se obtiene la vida en el cuento"ll. Esférico, completo em sim mesmo, situado no pequeno ambiente dos personagens, dos quais o narrador poderia ser um, temos a exploração do fantástico a partir do mais comum, corriqueiro e cotidiano, não como um golpe brusco e completo, que abarque tudo, mas como um súbito estranhamento, um inesperado deslocamento, mais para o
GOLOBOFF, Mario. Julio Cortázar - La biografía. Buenos Aires: Seix Barrai, 1998, p.79.
9
10 GOLOBOFF, Mario. Julio Cortázar - La biografía. Buenos Aires: Sei x Barrai, 1998, p.79.
" CORT ÁZAR, Julio. Del cuento breve y sus alrededores. vol. 1. In: Ultimo round. México, Siglo Veintiuno, 2 vols, 1969, p.59.
As regras do jogo ou A arte de inventar pontes e passagens
12 CORTÁZAR, Julio. Del cuento breve y sus alrededores. vol. I. In: Ultimo round. México, Siglo Veintiuno, 2 vols, 1969, p.78.
13 CORTÁZAR, Julio. Del cuento breve y sus alrededores. vol. I. In: Ultimo round. México, Siglo Veintiuno, 2 vols, 1969, p.80.
14 CORTÁZAR, Julio. Del sentimiento de no estar de todo. In: La vuelta ai dia en ochenta mundo. México: Siglo Veintiuno, 2 vols, 1967, p.59.
IS CORTÁZAR, Julio. Del sentimiento de no estar de todo. In: La vuelta ai dia en ochenta mundo. México: Siglo Veintiuno, 2 vols, 1967, p.32.
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sutil, que mude tudo e arme a estranheza do relato. Daí que a técnica de grande contista do fantástico anda em paralelo com a do jogador e a do mágico que escondem as regras do jogo, os truques fundamentais, sem o que todo o fascínio se perderia, e teríamos um leitor entediado. Mais que isso, a forma do relato fantástico parte de obsessões, de pesadelos, de alucinações, de um território difícil e nebuloso. Porém o conto fantástico bem feito elabora esse campo estranho como se fosse uma liberdadefatal 12 , que é ponto de partida e de chegada, que precisa criar uma ponte com o leitor. Situado no pequeno ambiente cotidiano dos personagens, o conto fantástico não se joga no vazio. Bem ao contrário, lo fantástico exige un desarrollo temporal ordinario. Su irrupción altera instantáneamente el presente(. .. ) Sólo la alteración momentánea dentro de la regularidad delata lo fantástico, pera es necesario que lo excepcional pase a ser también la regia sin desplazar las estructuras ordinarias entre las cuales se há insertado 13 • Mas é uma culinária que pode desandar, observa Cortázar no final do ensaio, não há receita garantida para que o prato esperado seja mesmo servido, com sua mistura impecável de materiais e temperos. Em outro ensaio, Del sentimiento de no estar de todo, importante para se entender a forma de seus relatos fantásticos, Cortázar parte de uma sugestiva epígrafe, tirada de um desenho de Artaud: "Jamais reél et toujours vrai"14. Para indicar, uma vez mais, o lugar da estranheza e do deslocamento, tanto para seus relatos, quanto para sua posição no mundo e na vida cotidiana. Daí esse curioso sentimento de não estar por inteiro, em si e nas situações, nos relatos e nas circunstâncias da vida. Que é assim resumido: Mucho de lo que he escrito se ordena bajo el signo de la excentricidad, puesto que entre vivir y escribir nunca admití una clara diferencia; si viviendo alcanzo a disimular una participación parcial en mi circunstancia, en cambio no puedo negaria en lo que escriba pu esta que precisamente escriba por no estar o estar a medias. Escriba por falencia, por descolocación; y como escriba desde un intersticio, estoy siempre invitando a que otros busquen los suyos y miren por ellos esse jardín donde los árboles tienen frutos que son, 15 por supuesto, piedras preciosas. EI monstruito sigue firme .
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Esse territórios deslocados, onde jogam a criança e o adulto, o princípio de realidade e o princípio de prazer que recusa dobrar-se às regras do jogo impostas pela fixidez da realidade cotidiana, que fazem convites à viagem em meio ao mundo desencantado, que propõem sua peculiar alquimia do verbo em meio ao pragmatismo da linguagem adaptada à racionalidade apenas instrumental, que imaginam possíveis em meio ao que é apenas restrito à necessidade, supõem um leitor ativo e atento, sensível às sutilezas. De certo modo, repetem a tradição crítica moderna, que deseja formar novos leitores, tanto como antecipação, ao modo idealista, de futuros cidadãos livres, como ao modo materialista, que vê no estranhamento e na distância crítica condições para desnaturalizar as regras do jogo posto pela alienação. São exercícios muito elaborados, que apontam para outras formas de viver e conviver em sociedade, mesmo quando partem e terminam na mais radical estranheza. Que fazer? A seu modo, vão desmontando coisas que já estão mesmo podres, mas andam pelas ruas, tomam elevadores, exercem o poder, multiplicam o medo e só fazem aumentar a solidão daqueles que habitam outros territórios. Daí a arte de inventar pontes e passagens em meio àquilo que continuaremos chamando, por muito tempo ainda, realidade. Cortázar morreu no dia 12 de fevereiro, um domingo, no começo da tarde. Foi enterrado no cemitério de Montparnasse: El 14 por la mafíana, el coche que se dirigía desde la rue Martel ai cementerio de Montparnasse describió un extrafío itinerario. El trayecto habría podido ser casi directo, pero una suerte de rayuela involuntria lo condujo hacia los jardines de Luxemburgo y ~/asar por la plaza donde se levanta la estatua de Balzac .
Dentre os muitos registros que sua morte deixou, cito a seguir o de Juan Gelman, que assim terminava sua Carta: En corrientes y esmeralda, en otros tiempos, vi pasar a escritores que nunca dejaron el país y escribían como un francés cualquiera. yo entendi mejor a buenos aires leyendo lo que vos escribías en parís. así es tu grandeza, así tu amor. También entendí mejor el mundo leyéndote, o sea, lo quise más. creo que no sería difícil demostrar cómo y por qué tu literatura es más audaz que la de borges, más inicial y misteriosa, es decir, más abierta a todos los temblores por venir, más carifíosa dei presente y, por eso mismo, más respetuosa o dolida dei pasado.
16 GOLOBOFF, Mario. Julio Cortázar - La biografía. Buenos Aires: Seix Barrai, 1998, p.287.
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a vos siempre te veo - como tu personaje - inventando un camino para ir de una ventana a outra ventana , del misterio de un puno a los crepúsculos de mozart, de un ser a otro, y otro, y otro, y afro. siempre sentí que tu amor es infinito. GOLOBOFF, Mario. Julio Cortázar - La biografía. Buenos Aires: Seix Barrai, 1998, p.287-288. 17
siem[?;re supe que tu obra nos abriga, que tu mejor obra sos vos.
2. Fidelidade local e mobilidade mundial Ao longo de toda sua vida, Cortázar teve que se haver com as críticas, à direita e à esquerda, provocadas pelos deslocamentos que marcaram seu processo formativo e sua maturidade como intelectual latino-americano vivendo na Europa. Como se nota, estamos no campo minado que relaciona referências locais e universais, regionais e cosmopolitas, nacionais e internacionais, com as mais diversas ênfases, mas como um problema recorrente que, apenas expulso pela porta, volta pela janela, senta-se no meio da sala e exige atenção. É interessante analisar como, ao longo do tempo e dos embates, Cortázar desloca essas tensões, tentando trazer para sua literatura as consequências de suas posições estéticas e políticas. A via de acesso à mobilidade mundial, sem perder a fidelidade aos dados e referências locais, que será logo adiante abordada, começa com uma criança educada na Bélgica, ouvindo o francês e o alemão, sem saber ainda o espanhol, que só aprenderá na volta à Argentina. Esquecerá o francês, mas quando o fascínio pelas palavras toma conta de sua imaginação, a memória trará de volta essa língua e o interesse fará com que aprenda outras, fazendo-o frequentar literaturas de língua espanhola, francesa, anglo-americana e alemã, sobretudo, mas também a russa. Já é, digamos assim, um mundo cosmopolita, uma mobilidade da imaginação literária, um campo de formação que trará resultados. Lembre-se também que ganhou a vida na Europa, durante muito tempo, como tradutor da UNESCO, mergulhado numa babeI burocrática de línguas usadas no sentido oposto do que ele desejava para sua literatura. Em resumo, para enganar e mentir, não para buscar o acesso a formas mais profundas e variadas de perceber a realidade de todo dia. Mas também é um mundo móvel, com muitas viagens e o acesso a várias línguas e referências culturais, mesmo que percebidas pelo avesso, a contrapelo, como algo a evitar no trato com a
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linguagem. No vértice do problema, não se pode nunca esquecer que escreveu sempre em espanhol, mantendo-se fiel até o fim a essa referência que é, ao mesmo tempo, linguística, cultural, política e afetiva. Continua deslocado, mesmo vivendo na Europa, e não é à toa que o ambiente de Rayuela é composto quase que apenas por estrangeiros excêntricos exilados em Paris. Basta lembrar o Clube da Serpente, suas reuniões e intermináveis discussões, bem ao modo de um cenáculo boêmio parisiense, à margem da vida da cidade, do trabalho, das finanças, da burocracia e da família. Modo de não estar por inteiro nas situações que se esgota, quando Oliveira é deportado após ser pego fazendo sexo com uma mendiga. Na volta à Argentina, o mal-estar continua, com a narrativa explorando os duplos - Oliveira, que viaja, e Traveler, o que fica em seu país; Maga, o amor louco e misterioso, e Talita, sem o clima de cenáculo boêmio parisiense, mas numa pauta mais próxima e realista, levando as experiências de Oliveira ao limite, vale dizer, à cena final, em que está pendurado najanela do Hospício, à beira do suicídio, enquanto os amigos o chamam, "venha tomar um chá, deixa disso", sem que as coisas se resolvam. (Cena de hospício que foi, segundo o próprio Cortázar, inspirada pelo Murphy de Samuel Beckett, comprado às margens do Sena por acaso). Ou seja, permanecem em aberto, do lado de lá e do lado de cá, na Europa e na América Latina, como uma indagação mais geral sobre a condição humana no século XX. No plano da vida pessoal, basta lembrar que Cortázar terá a cidadania francesa apenas no final da vida, com a chegada dos socialistas ao poder, embora a tivesse solicitado muitas vezes ao longo dos anos. O tom e o tipo das críticas variam ao longo dos anos e vão se dando no calor da hora, com uns excessos que a passagem do tempo torna mais evidentes, às vezes beirando as raias do ridículo, talo exagero. Em resumo, há os que ficaram, na Argentina e na América Latina, e os que partiram para a Europa. Como partiu e não voltou, Cortázar precisa defender sua posição muitas vezes, com paciência, de maneira amistosa, com irritação e ironia, fazendo uma espécie de pedagogia de sua mobilidade e interesses. No mais geral, para alguns Cortázar apenas estaria cumprindo o destino típico do intelectual argentino que sempre viu na França sua verdadeira pátria cultural. Teríamos mais um afrancesado, pedante, posando de cosmopolita entre os cultos e civilizados, esquecendo suas origens periféricas e atrasadas, mesmo que o exemplo seja a Argentina, muito urbanizada e com uma forte pose de Europa aqui na América Latina. Mas a ninguém escapa que, de fato, ao longo do século XIX e durante boa parte do XX, Paris foi mesmo, para o bem e para o mal,
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a capital cultural da América Latina, funcionando como referência de civilização e cultura. Pode ser mais produtivo perceber nesse deslocamento não um voltar as costas para a Argentina e a América Latina, mas a abertura de um campo novo, de tensões e conflitos, de percepções e de interesses, estéticos e políticos. Não como uma traição à pátria e um abandono do caráter nacional argentino, ou coisas do tipo. De fato, ao deixar para trás esses ângulos do problema, há uma vantagem no processo formativo de Cortázar, não uma perda, muito menos uma irreparável desvantagem. O marco que é Rayuela ilustra bem esse assunto, ao situar-se no lado de lá e no lado de cá, na Europa e na América Latina, em Paris e Buenos Aires. O dito Ocidente e seu Extremo Ocidente, reais e imaginários, permanecem conflituosos e contraditórios e continua o processo formativo do escritor de país periférico que, mesmo em Paris, continua o trabalho de entrar em contato, absorver, interpretar e utilizar essa cultura "avançada". Nisso tudo, Cortázar não ficará ao lado dos nacionalistas, mas tampouco entrará para a fileira dos afrancesados. Vale lembrar Juan Gelman, citado páginas atrás, lembrando que muito escritor argentino que nunca deixou seu país queria passar por francês. E que aprendeu muito sobre Buenos Aires ( ... ) lendo Cortázar! Estranhas voltas que o mundo dá, às vezes mesmo oitenta mundos em volta de um mesmo dia. Deslocada, sua literatura não embarca nem na estreiteza localista, nem no canto de sereia do cosmopolitismo vazio, pedante e ornamental. Pois todo seu processo formativo - de que são testemunho seus romances, contos, poemas, ensaios, fragmentos, cartas - , é atravessado por um permanente mal-estar, um sentimento de não estar de todo, uma estranheza diante da linguagem, da realidade cotidiana, mas também da mesma cultura ocidental e de sua filosofia, com seus modos lógicos e identitários de organizar, classificar e hierarquizar a experiência, deixando de lado ângulos que são cruciais para a literatura do tipo que estamos analisando. Esse mal-estar tem a ver com estranheza e estranhamento, do sujeito em relação a si mesmo, da sociedade como opacidade e resistência, que é preciso enfrentar, a partir de dentro, para criar um outro modo de olhar o estado das coisas. É um mal-estar que diz respeito a várias coisas: à própria literatura e sua linguagem, como apenas mais um ismo, apenas uma outra fura, um mero cânone do conformismo, que é preciso desmontar, inventando pontes e passagens; ao pensamento e à filosofia ocidentais, que determinam e restringem os modos de perceber o tempo e o espaço, unificando tudo em relações causais e de identidade, que enquadram num
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molde estreito o pensamento e a imaginação; é mal-estar também diante da própria condição humana, daí as constantes indagações metafísicas e patafísicas, explorando limites e usando o pensamento não-ocidental como contraste, ao modo de uma bofetada zen ou uma cacetada metafísica, que desmonta muita pose e muita pompa fundada na aparência natural das coisas e das situações; por fim, mas não menos importante, será mal-estar explícito com as formas da condição humana no capitalismo avançado, na Europa, na América Latina, em todo os lugares. Será assim até sua última viagem pelo mundo desencantado, feita com sua companheira, Carol Dunlop, uma paródia de grande navegação ou exploração espacial, em que os dois organizam uma expedição, que durará trinta dias, para percorrer a estrada que liga Paris a Marselha, trajeto que se faz em poucas horas l8 • Deixando de lado as críticas endereçadas a Cortázar por viver fora da Argentina, retomo a observação de Antonio Candido. No ensaio Literatura e Subdesenvolvimento, após analisar os problemas postos pelo atraso e pela dependência, aponta uma certa superação do atraso, como um sintoma de maturidade, em que se teria formas de interdependência, de influências recíprocas, fazendo com que aquilo que fora imitação vá se tornando assimilação recíproca, tornando bem comum o legado literário e cultural. É nessa altura que o autor faz uma breve mas importante referência a Cortázar: "A consciência destes fatos parece integrada no modo de ver dos escritores da América Latina; e um dos mais originais, Julio Cortázar, escreve coisas interessantes sobre o novo aspecto que apresentam fidelidade local e mobilidade mundial, num entrevista à revista Life"19. E, fechando o ensaio, evita um falso problema:
Não se exigirá mais, como antes se exzgzr/a, explícita ou implicitamente, que Cortázar cante a vida de Juan Moreyra ou Clarice Lispector explore o vocabuláro sertanejo. Mas não se deixará igualmente de reconhecer que, escrevendo com requinte e superando o naturalismo acadêmico, Guimarães Rosa, Juan Rulfo, Vargas Llosa praticam em suas obras, no todo ou em parte, tanto quanto Cortázar ou Clarice Lispector no universo dos valores urbanos, uma espécie nova de literatura, que ainda se articula de modo transifigurador com o próprio material daquilo que foi um dia o nativismo. 20
o ensaio de Antonio Candido, publicado pela primeira vez em 1970, refere uma entrevista dada por Cortázar à revista Life. Vale a pena retomar o contexto da entrevista e do debate em que estava situado
18 BUENO, André. Viagens pelo mundo desencantado. In: Revista Terceira margem, ano IV, n. 5-6, Rio de Janeiro, Pós-Graduação em Letras da UFRJ, 1998, p.16.
19 CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987, p.155.
20 CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987, p.162.
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21 GOLOBOFF, Mario. Julio Cortázar - La biografía. Buenos Aires, Seix Barrai, Apéndices, 1998.
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o problema da fidelidade local e da mobilidade mundial. Na entrevista, Cortázar responde a uma crítica de José María Arguedas que, no Primer diario, do que viria a ser o livro El zorro de arriba y el zorro de abajo, opõe os dados locais e regionais, junto com as tradições culturais populares da América Latina, ao pólo muito urbanizado que a literatura de Cortázar representa. Com certo desdém, o escritor argentino responde que Arguedas faz literatura apenas regional, perdendo de vista a tal mobilidade mundial, possível também para o escritor da América Latina. Estamos, como se nota, no centro do debate acerca das condições da literatura em países dependentes. Na réplica à entrevista dada à revista Life, Arguedas responderá que "digo en el primer diário de este libro y lo repito ahora, que soy provinciano de este mundo ... "21. Para dar mais interesse ao debate, o livro de Arguedas elabora as tradições populares com muito estilo, acrescentando comentários, digamos assim, metaliterários, sobre outros escritores da América Latina, dentre eles Cortázar, chamando-os pelo nome. Mas não se tratava de ataques ou polêmicas pessoais, sim do problema de como criar uma literatura de primeira linha em países atrasados e dependentes. Visto assim de longe, mais de trinta anos passados, parece um falso problema, alimentado pelo calor da hora, e que está muito bem resolvido no final do ensaio de Antonio Candido. Na mesma linha, pode-se acrescentar que o escritor urbano Julio Cortázar não pode ser o escritor José María Arguedas, voltado para tradições locais, populares e indígenas, elaboradas para além da estreiteza localista, do populismo fácil ou do excesso de cor local enfraquecendo a forma literária. Se é assim, parece um diálogo de surdos, ficando a sugestão de que estivessem buscando coisas parecidas, embora por caminhos de todo diferentes, tornando a comparação estéril. Contra os críticos mais afoitos e sectários, sequiosos por enquadrá-lo em alguma categoria do tipo intelectualizado e alienado, Cortázar defenderá sempre a posição madura, que relaciona mobilidade mundial a fidelidade local, chamando para o escritor da América Latina um espaço e um alcance maiores. É o que faz, respondendo às criticas de Oscar Collazos: .. , La auténtica realidad es mucho más que apenas el 'contexto socio-historico y politico', la realidad son los setecientos millones de Chinos, un dentista peruano y toda la población lationamericna, Oscar Collazos y Australia, es decir el hombre y los hombres, el hombre agonista, el hombre en la espiral histórica, el homo sapiens y el homo faber y el homo ludens, el erotismo y la responsabilidad social, el
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trabajo fecundo y el ocio fecundo; y por eso una literatura que merecza su nombre es aquela que incide en el hombre desde todos los ángulos (y no por pertenecer ai Tercer Mundo, solamente o principalmente en el ángulo sociopolitico) , que lo exalta, lo incita, lo cambia, lo justifica, lo saca de suas casillas, lo hace más realidad, más hombre, como Homero hizo más reales, es decir más hombres, a los griegos, y como Martí y Vallejo y Borges hicieron más reales, ' h om b res, a l ' . 22 · mas es d eClr osiatmoamencanos.
Ao fundo do debate, ecoam os conflitos que, em várias situações, opuseram a tradição das revoltas românticas contra o capitalismo e a tradição revolucionária mais diretamente pragmática. Mas Cortázar não vestirá o terno, mesmo o da nova ordem, matando os sonhos para ser, enfim, "realista". Percebe muito bem que por aí caminham o dogma e a ortodoxia. Um resposta para esse problema foi dada com Libro de ManueZZ3, onde os temas políticos, incluída a luta armada, são tratados de forma direta, em diálogo com a própria perseguição e interesses da tradição com a qual Cortázar sempre teve muitas afinidades. O motivo principal do livro era mesmo aproximar estética e política, as pautas que andavam mais ou menos separadas em sua literatura até aquele momento. O livro resultou numa polêmica acesa, que criticava ambos, livro e autor, pelos mais diferentes motivos: uma vez mais por viver em Paris, longe da América Latina, ao que ele poderia responder, com ironia, citando a canção, "seja uma boa moça, fique em seu bairro, case com alguém como você, não vá embora"; por não estar no front da revolução, falando a "linguagem das metralhadoras"; por estar fazendo uma literatura voltada para o consumo e para o mercado; e por aí afora. Lido assim de longe, o mais curioso é o texto de Ricardo Piglia, El socialismo de los consumidores 24, que identifica, ao longo de toda a literatura de Cortázar, a relação com marcas e mercadorias, com a coleção de coisas e o consumo, fazendo de seus relatos não mais que uma integração passiva ao fetiche da mercadoria. Quando o que se dá é bem o contrário: o escritor maduro da América Latina, vivendo em Paris, herdeiro das tradições românticas, surrealistas e existencialistas, muito bem criticadas e depuradas, coloca-se sempre contra o mundo criado pelo fetiche da mercadoria, opondo qualidades sensíveis ao mundo abstrato das trocas e da acumulação privada dos valores sociais, daí derivando a força e a estranheza de sua literatura. Notável é que tantos críticos argentinos estivessem de lança em punho para atacar um escritor que era, de fato, um aliado das lutas de libertação, dentro e fora da América Latina.
22 GOLOBOFF, Mario. Julio Cortázar - La biografía. Buenos Aires, Sei x Barrai, Apéndices, 1998, p.200.
CORTÁZAR, Julio. Libro de Manuel. Buenos Aires: Editorial Sudamerica, 1973.
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GOLOBOFF, Mario. Julio Cortázar - La biografía. Buenos Aires, Seix Barrai, Apéndices, 1998.
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CORTÁZAR, Julio. Ultimo round. México: Siglo Veintiuno, tomo l, 1969.
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Se a ironia é mesmo a pátria do intelectual, ela fazia falta seus críticos mais duros que, no afã de serem realistas, acabavam empobrecendo a imaginação e diminuindo o alcance da própria forma estética. Mas não faltava ironia em Cortázar que, na última capa do Ultimo round, lá embaixo, no canto direito, colocava um fragmento intitulado Las grandes biografías de nuestro tiempo: " ... el escritor Julio Cortázar, un pequefío-burgués com veleidades castristas" conforme escreveu Ramiro de Casasbellas em Primera Plana25 • Mas Cortázar seguiria apoiando a Revolução cubana, apesar dos tropeços e dos problemas, como o vivido por ocasião do caso Heberto Padilla. Trata-se do manifesto, assinado por importantes intelectuais europeus de esquerda, contra o rumo fechado, estalinista mesmo, que a Revolução estava tomando, inclusive com processos públicos parecidos com os de Moscou. A relação de Cortázar com os cubanos esfriaria - de fato nunca mais seria a mesma - , embora ele permanecesse "fiel até o fim", como era seu lema. O que teria custado a Cortázar, na visão até mesmo de amigos seus, como o também escritor argentino Osvaldo Soriano, um certo dogmatismo, a pretexto de não dar armas aos chacais. Longe do calor da hora, a polêmica perde muito de seu interesse, o que não acontece com sua literatura, embora fique sempre a controvérsia em torno de tentativas de criar pontes e passagens, como no Libro de Manuel. Para alguns críticos, trata-se de uma experiência malograda, em que não se lê nem uma boa narrativa realista, nem uma boa elaboração fantástica da realidade. Ficando o melhor da literatura deste escritor argentino nos contos fantásticos que lhe deram justo destaque e projeção internacional. Por esse caminho, a força de Cortázar estaria, sempre, nos relatos curtos, no conto breve e seus arredores. Nem mesmo cabendo muito peso a Rayuela, passada toda a fanfarra em torno das rupturas e experiências com a linguagem literária. Para outros críticos, esse divisor de águas não é claro, e pode nem mesmo existir, sendo preciso buscar outra medida para situar o valor dos fragmentos, dos contos e dos romances de Julio Cortázar. Longe, bem longe do calor da hora e das opiniões extremadas, algumas beirando o ridículo, de tão exageradas. Mas, voltas que o mundo dá, já no final de sua vida, em 1982, num trabalho escrito para a Conferencia Mundial sobre Políticas Culturales, realizada no México, a mobilidade mundial e as fidelidades locais ganham um acento, ao mesmo tempo maduro e inesperado, em que Cortázar poderia muito bem ser confundido com o mesmo Arguedas do debate que passou pela entrevista à Life. Em resumo, pela primeira vez o escritor argentino radicado em Paris aponta para o peso das massas indígenas e mestiças na cultura e na literatura da
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America Latina, não como nostalgia, folclore ou populismo, mas como herança rural a ser pensada com cuidado e interesse. Temos aí, digamos assim, o fecho da polêmica entre Cortázar e Arguedas. Em resumo, "el escritor conoce también los lados positivos de ese segmento de tarea cultural que le há tocado cumplir desde que dejó de entender la literatura como un puro ejercício artístico. Su inserción contemporânea y los procesos geopolíticos le hán permitido descubrir la posibilidad de despertar ecos dormidos, imágenes subyacentes, formas y herencias telúricas que los procesos de colonialismo primero y de aculturación foránea más tarde habían sumido en un limbo deI que apenas asomabam fragmentariamente en el folklore, las artes, las conductas y los temperamentos"26. Que distância separa essa percepção da realidade da América Latina daquela do jovem esteta argentino que se irritava com os cabecitas negras, vale dizer, o povo argentino batendo bumbos nas ruas e atrapalhando a audição de Bártok. A mostrar, com clareza, as vantagens dos deslocamentos, da mobilidade, das posições estéticas e políticas que não precisam fixar-se em um só contexto, nacional ou regional. Para terminar, um breve comentário sobre posições de leitura e formação dos leitores, no Brasil e na América Latina. Julio Cortázar gostava de repetir que o grande sucesso da literatura latino-americana a partir da década de 1960 não era um fenômeno comercial, conduzido pelas editoras e seus interesses. Para ele - que não usava, nem gostava, do horrível cacófato boom da - o sucesso desses escritores era resultado de uma espécie de revolução silenciosa conduzida por leitores anônimos, vários deles, que começaram a ler os livros de gente até então desconhecida ou pouco conhecida do grande público. Quando lançou Bestiario, na mesma época em que Felisberto Hernandez publicava Nadie enciende las lámparas, lembra que os dois livros caíram num poço: "Pero sucedió, aI contrario do que se pensa, un hecho admirable, y es que esos libritos fueron leídos por algunos sapos que vivían en ese pozo. Esos sapos eran lectores, argentinos, uruguayos, chilenos o peruanos que, como todos los sapos, le empezaron a pasar el chimento aI sapo de aI lado, y muchos de nuestros libros iniciaron una especie de carrera furtiva y secreta, como debe suceder en el mundo de los sapos .. .''27. Daí a que alguns editores mais espertos percebessem o interesse comercial desses escritores da América Latina foi um passo, e o resto é história bem conhecida. Pela primeira vez um conjunto de escritores do nosso continente, maduros e talentosos, ocupa espaço internacional fazendo literatura de primeira linha, revertendo o caminho
CORTÁZAR, Julio. Ultimo round. México: Siglo Veintiuno, tomo I, 1969, p.267-268. 26
CORT ÁZAR, Julio. Ultimo round. México: Siglo Veintiuno, tomo I, 1969, p.227.
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da dependência, influenciando escritores e críticos, na Europa, nos Estados Unidos, nos outros Continentes, um pouco por todo canto. Apesar de todo preconceito e todo estereótipo colado à América Latina e seus habitantes. O leitor há de ter notado que Cortázar, na citação anterior, não menciona leitores brasileiros. Indicação, uma vez mais, da distância que separa a América Hispânica da América Portuguesa, apesar de uma aparente proximidade, fazendo as coisas penderem mais para o campo da diversidade do que para o de uma unidade cultural. Faz tempo, mas eu me lembro bem do modo como cheguei a Julio Cortázar: lendo, no interior de São Paulo, na virada da década de 1960 para a de 1970, as traduções da Civilização Brasileira. Logo em seguida, lendo O escorpião encalacrado, de Davi Arrigucci Jr., e sua tradução da Prosa dei Observatorio, feita para a Coleção Signos, dirigida por Haroldo de Campos. Depois, vivendo em São Paulo e no Rio de Janeiro, continuei lendo os livros de Cortázar, as traduções e os originais. Vai um longo caminho, crítico e como leitor, daquele O jogo da amarelinha até a bem cuidada edição Archives/Archivos de Rayuela, criando pontes e passagens pela via de um tempo que não é mesmo lá muito linear. Após sua morte, em 1984, ainda esperava que, ao entrar em uma livraria, houvesse um outro de seus livros, inesperado, para ser lido. Não pelo sapo pedante, aboletado no Parnaso Contemporâneo, nem pelo chatíssimo Homo Academicus, carregado de preconceitos e suposta sabedoria. Mas, voltas que o mundo dá, tantas, às vezes mesmo oitenta mundos em um mesmo dia, com os meus olhos de outrora, então e agora, mantendo para sempre Julio Cortázar no céu das minhas afinidades eletivas. Enquanto esperamos, com o sonho de uma coisa que não existe, que supere o erro da espécie, que nos ensine a abrir a porta e sair para jogar, vale dizer, a céu aberto uma realidade humana que seja digna de seu nome. Jamais como aqueles que, mientras hablan amablemente de golondrinas, polidos e civilizados, nem notam o sangue que escorre de seus dedos.
Fronteiras na literatura brasileira: tendências e sintomas da passagem do século
Ângela Maria Dias Universidade Federal Fluminense
U ma das hipóteses iniciais de Canclini sobre a América Latina, no I
CANCLINI. 1989. p.l9.
2
Ibidem.
seu Culturas híbridas l , menciona nosso "orgulho de ser pós-modernos há séculos e de um modo singular", por constituirmos "a pátria do pastiche e da bricolage, onde convivem muitas épocas e estéticas"2. Evitando valorações sobre a mencionada precocidade, importa reconhecer o possível rendimento desta polêmica observação. Sua ambivalência, de um lado, aponta para a nossa condição compartilhada de povos historicamente colonizados, e, de outro, pode enfocar, produtivamente, esta espécie de bovarismo estrutural, relativizando o "gap" que, em princípio, manifesta. Afinal, se a nostalgia da metrópole ocorre como consequência de nossa inscrição na linguagem do dominador; a própria dinâmica da miscigenação cultural que nos constitui termina por gerar um arraigado antidogmatismo diante de quaisquer verdades ou valores. O caso de Machado de Assis, como autor do primeiro romance moderno da literatura brasileira e, segundo Fuentes, também da hispanoamericana, é exemplar. Memórias póstumas de Brás Cubas, ao encenarem a escrita como leitura mesclada e desrespeitosa de variado repertório - o Pentateuco, Xavier de Maistre, Sterne, entre outros transformam a paródia e a citação, em suas diversificadas formas, na maior evidência de nossa radical impossibilidade de ser realistas e ou de professar a crença num mundo objetivo, acima de qualquer suspeita.
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Aliás, O caráter fundador e revolucionário deste romance de 1880 redime, em plena vigência do realismo oitocentista, nossa ancestral inferioridade: a suposta "insuficiência de elementos romanceáveis, na sociedade brasileira do tempo da monarquia", sua fisionomia "largamente aluvial, sem contornos definidos e sem a densidade necessária para alimentar, salvo nos casos excepcionais, uma arte social no sentido em que foi uma arte social o romance burguês europeu do século XIX e continua a sê-lo sua prole recente"3. A radicalidade desta impotência talvez explique, pelo avesso, o empenho realista e documentário de grande parte de nossa produção literária, na medida em que, como o reconhece Benedict Anderson 4 , a estabilidade da paisagem sociológica - capaz de fundir o mundo de dentro do romance com o mundo de fora e com a vida cotidiana do leitor - delimita claramente um horizonte e engendra a solidez sociológica de um mundo específico, indispensáveis, no século XIX, ao desenho do imaginário nacional. Nada mais compatível com a histórica tradição empenhada de nossa literatura, então em núpcias com a recém-nascida independência política da ex-colônia. Hoje, no vertiginoso alvorecer do século XXI, a invasão do real pelo dilúvio de imagens eletrônicas e cibernéticas da última revolução capitalista exaspera a ancestral pergunta ibero-americana sobre quem somos nós. É que ao bovarismo estrutural gravado em nosso inconsciente coletivo pela História, como bem o reconhece Ricardo Piglia, se soma um outro: ... 0 bovarismo é uma chave do mundo moderno: a forma em que a cultura de massas educa os sentimentos. Existe uma memória impessoal que define o sentido dos atos e a cultura de massas é uma máquina de produzir lembranças e ...... . 5 expenenczas.
Cercados por imagens e simulacros, confundidos pela volatilidade tecnomidiática, reduzidos a "um espaço público profundamente conturbado pelos aparelhos tecno-tele-midiáticos, ( ... ) e pela nova estrutura do acontecimento e da espectralidade que produzem"6- jamais soubemos tão pouco a diferença entre o real e a ficção. Por isso mesmo, quando Flora Sussekind se propôs desenhar um perfil genérico sobre "A literatura brasileira dos anos 90", resolveu defini-la através das premissas "crise de escala", "tensão enunciativa" e "geminação entre econômico e cultural"? A implicação visceral entre elas esboça um panorama fortemente desestabilizado pelos efeitos de nossa globalização subordinada - em que a centralidade da
HOLANDA, Sérgio Buarque. O espírito e a letra. Estudos de crítica literária I. 1920-1947: Volume I. PRADO, Antonio Arnoni (org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.330.
3
4
Ibidem.
PIGLIA, Ricardo. Ficção e teoria: o escritor enquanto crítico. Travessia revista de literatura, n. 33, Ilha de Santa Catari na,ago. -dez., 1996, p.47-59. l
DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 1994, p.109.
6
SUSSEKIND, Flora. A literatura brasileira dos anos 90. Folha de São Paulo. Mais! São Paulo, domingo, 23 jul. 2000, 6-11, p.6. 7
Fronteiras na literatura brasileira...
8
Idem, p.1!.
HERKENHOFF, Paulo. Introdução Geral. XXIV Fundação Bienal de São Paulo: núcleo histórico: antropofagia e histórias de canibalismos. São Paulo, A Fundação, 1998, v.I, p.22-34.
9
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financeirização econômica na vida social, o depauperamento da soberania do Estado e a fragilização dos nexos simbólicos constituintes da nação dissolvem parâmetros aceites de convivência, aprofundam os conflitos e a sociabilidade violenta e inviabilizam a existência de horizontes mais solidários. Pela primeira premissa, fica detectado um universo de "instabilizações, expansões e compressões"8 responsável pela dissolução de fronteiras entre os gêneros e denunciado na enunciação problemática da segunda premissa. A "geminação entre econômico e cultural", mencionada como terceira premissa, atualiza, pelo cruzamento intertextual de linguagens, gêneros e materiais de hoje, o que, na tradição literária brasileira, pode ser considerada sua histórica "latência antropofágica9 . Entretanto, esta renovada tentativa de traduzir o conflito de culturas - entre as divergentes tradições locais e o cosmopolitismo cultural da metrópole encontra um problemático limiar, a partir da década de 60. De fato, se a dialética local/cosmopolita - concebida por A. Candido como constante do processo de formação da literatura e da cultura brasileiras - prevalece soberana até o esgotamento do empenho atualizador do intelectual público brasileiro, o perturbador alvorecer da década de 70 prepara a hegemonia de um outro diapasão. A definitiva ascensão da cultura audiovisual e a progressiva afirmação do paradigma informático instituem - depois de uma insuficiente tradição de cultura letrada - o que denominamos de "bricolage transcultural" - entendida, simultaneamente, como disseminada forma de conhecimento e impositiva moldura de criação. Com a transnacionalização econômica e cultural, nossas relações de dependência internacionalizam-se e o ultracontemporâneo passa a frequentar todas as imagens urbanas, descartando, decididamente, o histórico prestígio do valor literário e o missionarismo do intelectual atualizador e projetivo. Em seu lugar, a hegemonia das redes tecnotele-midiáticas, aliada à soberania do mercado, propiçia a emergência de outros protagonismos na arena do espetáculo público: os comunicadores-culturais, os tecno-especialistas e os jornalistas-cronistas-humoristas do mundano-midiático, geralmente dedicados ao "faitdi vers" anti problemático. Espremida em meio à frÍ"ola geografia do tríptico mercado/ tecnologia/espetáculo, a criação literária sofre de uma injunção já diagnosticada, há quase um século atrás, por Freud. No seu incurável e agudo mal-estar. entre a autoconsciência da forma ou a compensação sucedânea do enredo. num amplo espectro de variações e nuances,
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a produção contemporânea desvia-se dos padrões canônicos e, ao mesmo tempo, reprograma-os em desconcertantes combinações. De início, podemos situar um núcleo de criações em torno do emblema "Fiéis servidores da nossa paisagem", que, extraído do drummondiano "Os bens e o sangue", constitui a epígrafe do Resumo de Ana de Modesto Carone. Esse livro, constituindo um conjunto espelhado de duas novelas sobre a trajetória dos mesmos personagens % narradas pelo mesmo narrador, a partir de pontos de vista diferentes % configura uma espécie de emblema de um primeiro tipo de realismo, já que alia a vocação autoconsciente da forma ao empenho da radical tematização do brasileiro comum e anônimo, de nosso "homem sem qualidades". Esta primeira estratégia narrativa aludida apresenta, de um lado, o marcado viés experimental que, através da "miniaturização narrativa" e ou da decidida prática do fragmentário, pode conduzir o relato a diversificados intercâmbios com os meios gráfico-visuais (desde os mais criativos modelos de diagramação da página e programação visual de tipos e espaços, até a gravura, o desenho e esboços diversificados), além de fazê-lo confluir com vários gêneros, desde o ensaio, passando pela poesia em prosa, pela autobiografia, pela etnografia, até as mais intertextualizadas formas ficcionais. E, conforma, de outro, a perspectiva autocrítica capaz de matizar a inclinação realista e ou documentária com o problemático enfoque da enunciação e de seu modo de produção literário. Dentre as variantes deste diapasão, podemos mencionar a ironia sutil e o documentarismo minimalista de Zulmira Ribeiro Tavares, exemplares no antológico Cortejo em Abril, conto que dá nome à coletâriea. No histórico abril de 1985, o cortejo fúnebre de Tancredo Neves figura a alegoria das populares dores anônimas, levantando, insidioso, o véu da mitologia populista produzida e disseminada pela mídia e pela hegemonia política. Na Trouxa frouxa de Vilma Arêas, a persistência de semelhante miniaturização poetizante apresenta uma sequência de histórias breves narradas "quase como uma etnografia"lO, em que a ambiguidade do ponto de vista humorístico constitui um olhar simultâneo, capaz de estar de fora e compartilhar, pungente, desde o mais ínfimo detalhe de dentro. O filantropo de Rodrigo Naves, também utilizando o mesmo tipo de narrativa fragmentária, compõe uma espécie de sátira cuja implícita ferocidade sugere a elevada temperatura da ironia discursiva, entre mordacidade, descrença e derrisão. O objeto replicado é um tipo de produção discursiva bastante atual, de moral bem-falante, em que a exaltação de modelos de conduta e procedimentos, numa chave alta-
10 OLIVEIRA, Francisco de. Trecho nas orelhas do livro de ARÊAS, Vilma. Trouxa frouxa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Fronteiras na literatura brasileira
!I NAVES, Rodrigo. O filantropo. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p.89.
12 TAVARES, Zulmira Ribeiro. Cortejo em abril. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p.59.
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mente superficial, se encontra inteiramente desgarrada do contexto social em que se exerce. O personagem, composto pela montagem da maior parte dos fragmentos narrados em primeira pessoa, resulta, afinal, um cínico e desconcertante "filantropo" que, traçando a própria existência pelo compasso dajusta medida aristotélica, revela-se, nesta mesma precisão, um perverso sexual, no trato com meninas "de doze anos": "E meninas são criaturas exigentes. Requerem controle e precisão. Como certas aves, alçam vôo ao menor ruído, e escapam ao transe a que as conduzimos com tanta dificuldade. É também preciso saber dosar o tempo. Elas se tornam impacientes quando ultrapassamos a justa medida"ll. Em todas estas obras, tomadas como reduzida amostragem do primeiro tipo de realismo abordado, ressaltam um extremo visualismo e uma percepção intensamente plástica dos panoramas e dos personagens, distante das abordagens psicologizantes e da promiscuidade de um enfoque narrativo onisciente. Há, sobretudo, nas criações deste núcleo, um intenso respeito pelos personagens, por seu mundo, por seus sonhos e suas dores. Longe de um enfoque populista ou idealizante, o modo de produção mesclado da forma impede tanto o distanciamento realista-onisciente-convencional, quanto todo o tipo de identificação fácil e empática entre narrador e personagem. Daí a quantidade de "Cromos", que, como um dos títulos repetidos nas mini-histórias de Vilma Arêas, poderia bem dar conta de outros mini-relatos, de outras coletâneas, como por exemplo, este "Um Assassino" de Zulmira Ribeiro Tavares.
Ao olhar a mulher velha sentada no banco da praça, não posso acreditar que um dia tenha sido realmente moça. Sua mocidade só pode ter sido rascunho, ou começo, para velhice tão perfeita. Assim também o moço andando rápido; sei que enxerga a sua velhice no futuro apenas como desvio, erro, talvez hipótese - e é sabido como elas falham. Sua mocidade tem a realidade e o ar dourado desse sol que se abate a pino . dad e so b re a praça - como um assasszno. . 12 sem pze Assim, mesmo a primeira pessoa, como nas passagens citadas, mantém um admirável recato diante da decisiva possibilidade de derramamento ou mesmo de um provável escorregão no grotesco, pela perversidade ou, ainda, pela escatologia do assunto, como no caso do último "Dudu", no livro de Vilma Arêas, em que a preparação do cadáver do pai doente, ex-bêbado e aleijado, exige do filho enormes doses de lucidez, maturidade e, sobretudo, a sabedoria de um compassivo senso de humor.
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Na fronteira deste primeiro realismo, os contos de Jair Ferreira dos Santos, ainda que mais refratários ao visualismo anti-psicologizante, figuram, em sua matizada crueza, alguns "fiéis servidores de nossa paisagem" urbana, numa espécie de dicção crítica em que o ficcional se combina a um certo tom ensaístico de moralista, na linha de Cioran, ou a uma agônica disposição dramática. Vale anotar o volume A inexistente arte da decepção, no qual o conto de mesmo nome constitui uma tocante encenação da velhice solitária. Nada se cria quando, entre o ímpeto da vontade e a circunstância do estar no mundo, só se interpõe o puro espanto:
No momento exato em que abre a porta do banheiro, crê ter ouvido o telefone tocar e corre para ele, pressurosa, mas o aparelho permanece mudo, morto. Ela se deixa ficar ali, de pé, enrolada na toalha, à beira da inexistente arte da decepção, enquanto seu rosto vai sendo emparedado na estupidez que, nos velhos, é não ter nenhuma escolha a 13 fazer. No extremo mais avançado das fronteiras deste realismo autocrítico, o referido visualismo narrativo realiza-se como experiência intersemiótica nesse último livro de Valêncio Xavier, quando se cruzam, complementam e interatuam, imagens (desenhos, reproduções de gravuras, fotografias e publicidade) e palavras, numa confluência de gêneros, pela apropriação de história em quadrinhos, literatura de cordel, cinema, e literatura de almanaque. O volume Minha mãe morrendo e o menino mentido apresenta três novelas - já que a segunda, O menino mentido, desdobra-se em duas partes - que compõem uma espécie de romance de formação, em que o autor, num tom "naif' e infantil, narra suas experiências fundadoras, transcorridas exatamente na primeira e segunda infâncias, sempre em torno das imagens: a morte da mãe, a imagem doente da leitora distante, pálida e deitada, as imagens recorrentes e obsessivas das primeiras histórias em quadrinhos com as aventuras de Lampião, os primeiros filmes, os primeiros medos, o sonho repetido, as primeiras emoções sensuais. O menino de 1933, contando, em 2001, as imagens de um Brasil do início do século passado, retoma o Oswald de Andrade do Primeiro Caderno do Alumno de Poesia, de 1927, não só pela dicção poético-ingênua da narrativa, mas também pela entonação irônico-paródica, na absorção e aproveitamento dos mais diversos meios e materiais. Sobretudo o poder das imagens, sua pregnância na mesma São Paulo oswaldiana do início do século, constitui o núcleo centrífugo de criação discursiva
13 SANTOS, Jair Ferreira. A inexistente arte da decepção. Rio de Janeiro, Agir, 1996, p.98.
Fronteiras na 1iteratura brasileira. ..
14 XAVIER, Valêncio. Minha mãe morrendo e o menino mentido. São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p.IO\.
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e reflexão teórico-existencial. Não é à toa que a primeira novela se conclui com uma impressionante foto de Júlio Covello (segundo os créditos de sua última página) na qual um cartaz escrito com letras desiguais e inexperientes. encostado a um poste de rua, diz: "Senhor liberta-me das imagens". Justamente as indelé\eis fronteiras entre percepção e imaginação ou, em outras pala\Tas. entre imagens materiais e imagens mentais, se encontram problematizadas nestas novelas biográfico-imaginárias em que o escurinho do cinema do início do século constitui o grande útero em que se geram e cruzam as afinidades eletivas entre sonhos. filmes. medos, obsessões e sexo. Daí a incorporação sadiana d' A filo5ojiu !lu alcova, mediante a qual o narrador se identifica com Eugênia. a aplicada aprendiz da perversão, sempre mais afeiçoada aos "des\arios da imaginação". No estreito ambiente paulista provinciano, o "menino mentido" de uma mãe distante e fria - entre a central produtora de culpas do catolicismo, no colégio de padres, e a violência estabelecida da ditadura getulista, no país - só pode conceber sexo, como um corredor e penumbroso e proibido, e amor como uma espécie de ícone incompleto da morte. Este álbum "bricoleur" e melancólico, transitando das figuras às palavras, vai re\ertê-las em desenhos, já que através da recriação de um resistente ludismo, espia as letras como se fossem figuras e recompõe uma \i\ência infantil da escrita como paisagem imaginária ou ainda como "histórias sonhadas todas as noites"14. Mas a melancolia destas memórias infantis da Imaginação, além de tomá-la ao pé da letra como "Imagens em Ação", sintomaticamente, falando do início do século que acaba de findar-se, detecta um mesmo clima, igualmente atuante neste nosso novo século: uma espécie de difuso sadismo, transitando contínuo e contagiante, das relações interpessoais para o espaço público e vice-versa. É justamente este ar violento de um tempo de grandes transformações - captado, no início do século XX, pelas vanguardas estéticas, e vivenciado pelo Brasil provinciano das primeiras décadas, na revolução cultural do Modernismo - que, nos últimos trinta anos, constitui a aura recorrente da criação literária. O peso e a densidade deste endêmico desequilíbrio social e político emolduram uma segunda espécie de realismo, onde avulta o gênero de romance policial e de suspense ou o da sátira de costumes, reiteradamente aproveitados pela obra de Rubem Fonseca, de sua herdeira Patrícia Melo e de Sérgio Sant' Anna, com diferenciados rendimentos críticos. Sem a consistência auto-reflexiva do conjunto anterior, tais romances, nos seus melhores momentos, aliam ao sensacionalismo dos
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temas - sexo, violência, criminalidade - e à intensa comunicabilidade e fluência narrativas, uma lúdica e auto-irônica consciência formal, habitualmente conduzida pela voz de um narrador cínico, intelectualizado e exibicionista. A reiteração deste tipo de solução formal, responsável pela ligação mais ou menos empática com o leitor, termina por gerar uma calejada e previsível autocaricatura que cristaliza o arranjo, esclerosando qualquer virtualidade criativa. Parte da obra de Rubem Fonseca, assim como a de Patrícia Melo, ilustram tal armadilha, cujo bom rendimento anterior sustenta, por exemplo, Bufo & Spallanzani, de 1985, talvez seu melhor romance. Este segundo realismo talvez possa caracterizar-se, ainda, por um tipo de concepção tardo-naturalista da sociedade, a partir da qual personagens, incômodos e/ou violentos, só conseguem escapar ou resistir à banalidade da vida, à falta de perspectivas socioeconômicas ou à indigência simbólica, onde se inserem, através de hábitos, atos ou procedimentos viciosos, doentios ou anti-sociais. Esta deriva determinista atualiza e coloca na ordem do dia a antiga lição libertina sadiana, contra a educação cristã ou o conformismo burguês, em versões mais ou menos autoconscientes, oscilando entre o distanciamento intelectualizado e o cinismo desculpabilizado do bandido. A obra de Sérgio Sant' Anna, pródiga em contaminações experimentais da narrativa com o ensaio, a crítica ou o cinema, oferece inúmeras demonstrações de mestria cínica, na performance deste tipo de narrador, evidentemente, com diversificada qualidade estética. Em seu último romance, Um crime delicado, de 1997, escapa ao desequilíbrio diagnosticado por F. Sussekind, ao configurar uma espécie de engenhoso "blending" em que a trama policial aparece mediada pela voz de um narrador "doublé" de crítico teatral, preocupado em auto-investigar-se, após envolver-se em eventos traumáticos, que terminam por levá-lo a julgamento pela acusação de estupro. Combinando ficção, crítica, uma insinuante retórica de persuasão, este romance, como "peça de natureza quase processual", reelabora o sadismo circulante no ar do tempo, numa estimulante dicção erótico-estética, em que o personagem-narrador, apesar de absolvido por falta de provas, conclui pela própria culpa - "uma culpa visceral e atávica, um verdadeiro pecado original"15. Em sua condição de crítico, assume, com implícito prazer, não só a imputação de "estuprador da arte", como também a de "vampiro", a partir de uma caricatura jornalística que lhe fazem l6 • Ou seja, no caso de um estupro simbólico, a esgrima de um estilo dúbio e controverso, altamente circular e auto-referido em sua tra-
15 SANT' ANNA, André. Sexo. Rio de Janeiro:
Sette Letras, p.118. 16
Idem, p.131.
1999,
Fronteiras na literatura brasileira...
FONSECA, Rubem. Secreções, excreções e desatinos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
17
i8 PÉCORA, AJeir. ratura. Folha de Paulo. Mais! São lo, domingo, 31 2000, p.21.
LiteSão Paudez.
19 SCHWARZ, Roberto. Elefante complexo. Folha de São Paulo. Jornal de Resenhas, São Paulo, 10 fev. 200 I, p.163.
20
BUENO, 1997.
21
SOUSA, 1998.
22 SCHWARZ. Op. cit., p.163.
53
ma exibicionista de conceitos e racionalizações, conforma com justeza o critério de valor que se propõe. Não é absolutamente o que ocorre com o último livro de Rubem Fonseca. Segundo Alcir Pécora, o escatológico Secreções, excreções e desatinosl 7 fica muito longe de uma produção de linguagem que faça jus à radicalidade que pretende assumir:
Nos contos de Rubem Fonseca, o estupro pode eventualmente curar; a tentativa de resolver discursivamente a doença ou a brutalidade, jamais. Essa talvez seja a formulação mais dura a recolher do conjunto dos contos, mas ela em geral não chega a se produzir nessa radicalidade. Todo o horror anunciado, (... ) no mais das vezes (é) articula( do) de maneira previsível e pouco inspirada ( ... ) Aliás, talvez o mais justo com as possibilidades ainda abertas nessa reunião de contos fosse mesmo encará-la como uma recolha precipitada de esquemas de tramas (... ) que, talvez, no cinema, ainda venham (... ) a instruir sobre os piores horrores e os mais humanos do horror homem. Tal como está, contudo, a aplicar-se ao livro o critério único de valor proposto nele, não chega a cheirar 18 nem a feder. Assumindo este clima de violência sádica e revolta impotente contra a circularidade sem escapes do meio social, vale assinalar a macro-narrativa Cidade de Deus, que, em função da perspectiva ficcional que adota e de suas peculiares condições de produção, vem polarizando, desde o lançamento em 1997, um concorrido debate. Ao desenvolver o projeto do livro como bolsista, numa pesquisa antropológica sobre violência urbana, Paulo Lins alia sua condição de estudante universitário à própria experiência de morador da "neofavela" que afinal, constitui o seu grande personagem. Daí "o ponto de vista interno e diferente", saudado por Roberto Schwarz como fundamental esteio de validação do resultado como "aventura artística fora do comum" pela exploração de "possibilidades robustas, que pelo visto existem"19. Entre a justificação dos desequilíbrios internos do relato, em função da própria "deformação" da matéria tratada, e graves restrições que nele apontam "moldura subnaturalista"20 ou "visão naturalista, redutora e antiga"21, o fato é que o "catatau"22 de Paulo Lins tem causado muita e saudável polêmica. Sem dúvida, constitui um eixo substancial de questionamentos sobre o que ouso denominar de a deriva tardonaturalista de nossa produção ficcional.
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Uma obra limítrofe, ao aplicar-se ao determinismo sócio-culturalou ao tardo-naturalismo em pauta, neste segundo grupo - em torno do ar sado-pervertido de nosso tempo - ao mesmo tempo que pratica tais "sintonias perversas"23 com o quadro brasileiro de desmesurada financeirização da vida social, é a do estreante André Sant' Anna. Filho de Sérgio Sant' Anna, este novíssimo escritor - ao contrário do pai que é um grande cronista do Rio de Janeiro - escreve a cidade de São Paulo e seus personagens. Autor de duas novelas, Amor.4 e Sexo 25 , Sant' Anna, sobretudo no segundo livro, coloca em prática a "pornografia terrorista", tal como a profetizava para a literatura brasileira contemporânea, um inesquecível personagem de Rubem Fonseca, o "Autor" do conto "Intestino grosso", de 1975. Exercitando o acento coletivista do gênero anunciado, Sexo opera a crucial conexão entre canibalismo, pornografia e consumo, como sua específica forma de inserção nas relações de produção do Brasil contemporâneo, neoliberal e pós-modernamente encharcado de imagens. Sua técnica conjuga admiravelmente o estilo coletivista do que a dupla Deleuze/Guattari conceitua como "literatura menor"26 com a radicalidade do sexo como tema, leitmotiv, enredo autodesdobrável, situação limite. Com efeito, pelo paradoxo mo vente do sentido entre desperdício, e renovação existencial, desenrola-se a trama de relações sexuais, que, diferentes apenas no grau da escatologia e da perversã0 27 , simultaneamente encenam a mesmice fetichista do corpo como mercadoria - à semelhança da pornografia banal - e encarnam, pela plasmação de sua linguagem, a contrapartida literária às relações de produção na sociedade do simulacro. Cada cena sexual, como campo de provas ou lugar do exercício visceral da fome de cada um, desdobra-se vicária, reversível e perifrástica como metonímia de um estilo e de um mundo. O estilo, propositadamente pobre, inchado de delongas, apostos e paráfrases - em torno do poder centrífugo do consumo - e o mundo, intercambiável e sem alternativas, no qual as perífrases constitutivas dos inúmeros personagens, carentes de nome próprio, apontam sempre para o Olimpo dourado da mídia, boiando como satélites em torno de seu espelho narcísico de aparências e egos-ideais. Por outro lado, se a instabilidade sócio-econômico-cultural brasileira insinua-se na superfluidade destes personagens inabilitados para o nome próprio, acontece, também, um outro tipo de formalização que, nostalgicamente, repropõe uma certa estabilização de parâmetros e procedimentos.
23
SUSSEKIND. Op. cit.,
p.9.
24
SANT' ANNA. Op. cit.
25
Idem.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Trad. Júlio Castai'íon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977. 26
27 FONSECA, Rubem. Intestino grosso. Feliz Ano Novo. Rio de Janeiro: Artenova, 1975. p.140.
Fronteiras na literatura brasileira...
23
SUSSEKIND. Op. cit.,
P 11.
" PERRONE-MOISÉS, Leyla. A cidade flutuante. Folha de São Paulo. Jornal de Resenhas. São Paulo, 12 ago. 2000, p.7. 30
Ibidem.
31
Ibidem.
55
A este respeito, F. Sussekind menciona "a imposição editorial do modelo bem-sucedido da vasta narrativa histórica à prosa brasileira recente", assumido em diversas versões, mais ou menos comerciais ou eruditas, até "o caráter de quase roteiro de Agosto, de Rubem Fonseca" ou "o anedótico de Jô Soares"28. Se, de maneira geral, este historicismo não chega a falar a linguagem da instabilidade atual podendo constituir o terceiro tipo de realismo, mais ou menos compensador - recentemente, o último lançamento de Milton Hatoum veio matizar este tipo de expectativa. Dois irmãos, de acordo com Leyla Perrone-Moisés, "sem ceder a modismos superficiais ( ... ) é, em sua temática e em sua forma, muito atual", j á que, ao assemelhar-se à produção pós-colonial indiana, marca fortemente a diferença em relação ao que "os países ricos cultivam como 'multiculturalismo"'29. Neste sentido, ao apresentar personagens de diversa procedência e etnia, demonstra a muito brasileira sobreposição entre desigualdade social e diferença cultural, quando reproduz "invertida em latitude, a desigualdade Norte-Sul: calor e atraso econômico na Manaus de Omar, frio e desenvolvimento na São Paulo de Yaqub 30 . Além disso, a contrapartida literária para a miscigenação cultural figurada presentifica-se numa linguagem ágil e criativa, capaz de harmonizar "o som de palavras árabes com o som das palavras brasileiras e tupis, sem cair num preciosismo verbal gratuito"3l. Em termos bem esquemáticos, podemos considerar esboçado, com a indicação destas três modalidades de realismo, o panorama atual da prosa de ficção brasileira. Quanto à poesia, evidentemente, as mesmas premissas já mencionadas anteriormente, a partir de F.Sussekind - "crise de escala", "tensão enunciativa" e "geminação entre econômico e social" - vão emoldurar a perspectiva adotada, além de uma discussão de fundo que, em relação ao discurso especificamente poético, radicaliza-se sensivelmente: a questão do estatuto "pós" de nossa época e do que isto pode significar diante de um juízo de valor sobre um presumido estilo pós-moderno. De fato, a questão da originalidade e ou da literatura como prática de mestres e criadores dos grandes estilos - característica do Alto Modernismo - quando se trata da crítica à poesia - pela radicalização da linguagem que põe em jogo, no caráter de "abertura para o mundo", que lhe é peculiar - torna-se mais urgente ou sentida como visceral. Daí, certamente, a polarização dos últimos balanços realizados, recentemente, entre nós, que ora simplesmente aponta "a recuperação do prestígio e da expertise no trabalho formal e técnico
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com a literatura"32 ,sem maiores cogitações valorativas, ora observa, com certa amargura, que: (... ) nesse quadro de desintegração de tradições e de falência do estilo individual, à poesia brasileira têm restado pouca negatividade e baixa invenção. Muita produção, ecletismo de timbres e dicções, em que o caráter diferenciador da obra individual se perde, substituído pela perícia verbal, habilidade técnica e "revisitação" de estilos consagrados - a ponto de autores de diversa inspiração e técnica submergirem numa mesma corrente de requalificação forçada da linguagem poética. 33
De nosso ponto de vista, a busca de um novo viés sobre o estatuto do poético na contemporaneidade pode contemplar a lição de Gianni Vattimo que - para além da nostalgia dos ideais emancipatórios modernistas, ou de sua proverbial negatividade - reconhece a hermenêutica como constitutiva do espírito do tempo, já que: "Provavelmente não existe nenhum aspecto do que é chamado de mundo pósmoderno que não esteja marcado pelo alastrar-se da interpretação"34. Podendo ser citadas, em confirmação, as seguintes constantes: "a difusão dos meios de comunicação de massa"; "a autoconsciência da historiografia, para a qual mesmo a idéia de história é um esquema retórico"; "a palavra de ordem da multiplicidade das culturas, que, (... ) desmentem uma idéia unitária, progressiva, de racionalidade"; "a destruição psicanalítica da fé na "ultimidade" da consciência"35. Talvez se torne produtivo prolongarmos em outras direções os posicionamentos delineados acima, uma vez que o desdobramento da tradição moderna guarda profundas ambiguidades, não precisando ser tomado obrigatoriamente, nem como pauperização criativa, nem como consumação ou definitiva ultrapassagem. Em relação ao que denomina de "reciclagem de dicções modernas prestigiosas (Drummond, Bandeira, Cabral e até mesmo o Concretismo)", Iumna Simon, no artigo citado, enfatiza o lado enfraquecido, ou seja, a margem aviltada da "cópia" e ou da apropriação, distante da plenitude das "ilusões modernas tanto da realização plena da expressão do sujeito quanto do empenho artístico de intervir na construção do país"36. Certamente tal "reciclagem", uma espécie de "ato paródico estrutural de incorporação e síntese"3?, na generalidade com que é mencionada, tanto pode ser vista como "o meio de alguns escritores ( ... ) dominarem e ultrapassarem um precursor influente"38, isto é, como
HOLLANDA. Op. cit., p.35.
32
SIMON, Iumna Maria. Considerações sobre a poesia brasileira em fim de século. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, Cebrap, novo 1999, n. 55, p.27-36, p.35.
33
34 VATTIMO, Gianni. A tentação do Realismo. Trad. Reginaldo Di Piero. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2000, p.26.
35
Ibidem.
SIMON. Op. cit., p.35.
36
HUTCHEON, Linda. Uma Teoria da paródia Ensinamentos das formas de arte do século XX. Trad. Teresa Louro Péres. Lisboa/Rio de Janeiro: Edições 70, 1989, p.122.
37
38
Ibidem.
Fronteiras na literatura brasileira...
19
Idem, p.I23.
'" HOLLANDA. Op. cit., p.20.
41
Idem, p.20.
BENJAMIN, Walter. (1926) Uma profecia de Walter Benjamin. Mallarmé. Trad., org., estudos críticos por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 1974, p.193-4. p.239.
42
43 BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.29.
57
codificação de uma nova forma; ou, ao contrário, como reverência ou "forma de preservar a continuidade na descontinuidade", ou ainda, enquanto "o impulso conservador da paródia"39. Esta indefinição diante do legado modernista, aliás, para o bem ou para o mal, constitui o que Heloisa Buarque caracteriza atualmente como uma "hibridização de formas e fronteiras no campo da produção cultural", onde, ainda, segundo a crítica, "instala-se a complexidade das estéticas contemporâneas 40 . É que a centralidade do avanço tecnológico, nos meios eletrônicos e informáticos de comunicação, contaminando a tradução da herança modernista, termina por gerar o já muito diagnosticado "desgaste das distinções canônicas entre os gêneros, linguagens e territórios políticos"41. O que, por sua vez, converge - em pleno exercício da incerteza contemporânea - para os inusitados relacionismos ou nas disparatadas correspondências formais entre campos culturais e artísticos ou práticas estilísticas, já apontadas por F. Sussekind. No entanto, aqui, na consideração desta "desproporcionalidade sistemática" pretendemos apenas destacar caminhos ou soluções que, a nosso ver, tenham contribuído para uma "com-preensão" crítico-poética de nosso tempo e de nossa circunstância. Passaremos ao largo tanto das elaborações unilateralmente culturalizadas - ou cuja marca identitária negligencie a inserção crítica da obra nas relações de produção contemporâneas - quanto de um tipo de produção exacerbadamente deshistoricizada - ou altamente dominada por uma visão "estetizante" dos "materiais" e "repertórios" como mero objeto de perícia técnica. Neste sentido. uma peculiar consciência histórica do atual resistente à crescente aniquilação do espaço por meio do tempo fulminante dos meios de comunicação - tem conduzido ao que poderíamos encarar como uma remodelagem da estratégia modernista de espacialização do tempo, em pelo menos duas tendências atuantes na poesia contemporânea: o afluxo de uma memória crítica, pela dramatização da memória como espaço material e ou "meio onde se deu a vivência"~::; e a motivação gráfico-sonoro-visual da palavra, herdada da tradição concreta e repotencializada pelas novas tecnologias. Na primeira, a metalinguagem lírica, plasmada pelo legado da madura afirmatividade da voz drummondiana, figura a resistência subjetiva como enraizamento afetivo, localização, ao pressentir que "só o espaço retém o tempo comprimido e por isso, concretiza os belos fósseis da duração"43. Por isso, a gravação poética da memória sensível - pátria do que poderia ter sido, matéria de nervos e sonho - pode resolver-se ou como mitologia lírico-expressiva propriamente dita -
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fundada naquilo que Bachelard denomina de imaginação poéticomaterial - ou como notação crítico-realista do contexto, em que as falas e situações dramatizadas constituem o solo, o espaço comum entre o sujeito lírico e o seu tempo. Dois poetas bem diferentes manifestam uma intensa receptividade na escuta da deriva social brasileira, ao mesmo tempo em que nela se plantam como sujeitos líricos: Paulo Henriques Britto e Francisco Alvim. O primeiro, um racionalista nostálgico sempre às turras com os próprios desajustes - "ao X do problema: as coisas fora de esquadro,! o desajuste entre o desejo e o vegetal! da consciência, complacente, amputada"44 - faz da mescla estilística, a pedra de toque de sua dicção, ao combinar seu neoclassicismo desencantado com o coloquialismo irreverente, certamente comum à geração marginal dos anos 70, quando começa a escrever. Nesta linha, os cinco sonetos da formidável "Até segunda ordem" configuram uma sequência poético-ficcional em que um leque cifrado de falas - pelo negaceio entre a obscuridade do negócio e o contrabando do sentido - sugere o g'rande esquema promíscuo da corrupção brasileira. Para além desta alegoria de "nosso jeitinho brasileiro", é a própria língua falada, em seu à vontade relaxado de todos os dias, tomada como chão compartilhado do sentimento mais íntimo, que provê o meio da exploração poética do nonsense existencial: Alguém reclama: A porta está fechada.! E não é que está mesmo? Antes assim.! Podia ser pior. Alguém comenta:! sempre podia ser muito pior.! Ouviu essa? perguntam. Ouvi, sim. De fato, nada grave. Menos mal.! Quando então ouve-se o comentário: ! A luz está apagada. O outro diz: ! É claro. Senão não estava escuro.! E arremata: Ninguém aqui é , . 45 otano. Em Elefante46 , Francisco Alvim exacerba essa tendência, praticando radicalmente a qualidade que lhe foi atribuída por Cacaso, de "poeta dos outros", ou mais especificamente, de poeta "da peculiaridade brasileira, de nossas falas, relações, ritmos, cumplicidades etc.", na continuação da pesquisa modernista, como bem o reconhece Roberto Schwarz47 . A absorção elíptica e extremamente condensada do "fundo social da língua"48 brasileira ou da "corrente subterrânea coletiva" que, segundo Adorno, "fundamenta toda a lírica individual"49 constitui a sua dicção, enraizada na inteligência sensível das relações sociais brasileiras.
44
BRITTO, Paulo Henriques. Travar claro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.27.
45
Idem, p.55.
ALVIM, F. Elefante. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
46
SCHWARZ. Op. cit., p.1.
47
BACHELARD. Op. cit., p.140.
48
ADORNO, T. Conferência sobre Lírica e Sociedade. Os pensadores. (Seleção de Zeljko Loparié e Otília B.Fiori Arantes). São Paulo: Abril Cultural, XXLVIII, 1975. p.201214. p.297.
49
Fronteiras na literatura brasileira..
la ANDRADE, O. Manifesto antropófago. (1928) G. M. TELES. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas de 1857 até hoje. 7· ed. Petrópolis: Vozes, 1983, p.353-360. p.360.
ALVIM, F. Op. cit., p.53.
li
l2
Idem, p.76.
l3
Idem, p.63.
l4
Idem, p.114.
55
Idem, p.93.
56
Idem, p.76.
59
Assim, o minimalismo construtivista de seus micro-poemas narrativos reelabora nossas falas e situações - transpostas em suas descontinuidades, cortes e subentendidos - , em divergência com o modernismo oswaldiano dos anos 20, já que não promete nenhuma redenção - os "roteiros" antropófagos "contra as sublimações antagônicas trazidas nas caravelas"50 - além do resgate que promove. Nesta linha, a vocação do livro talvez possa ser resumida por dois mínimo-poemas-epítomes de sua fatura crítico-epigramática: "O gênio da línguaJ/ Corno manso/ Bobo alegre"51 e "Quer ver?// Escuta"S2. No primeiro, a estridência entre os substantivos pejorativos reiterados pela força da respectiva adjetivação, em ambos os casos, contraditoriamente positiva - já que "manso" e "alegre", tomados, de per si, conotam agradáveis qualidades, em termos de sociabilidade mas, aqui, nestes casos, enfatizando a negatividade dos respectivos nomes que determinam. Ora, tal dissonância, caracterizada pelo título ("O gênio da língua") como essencial à língua portuguesa, inerente ao seu espírito, estende-se como o solo-matriz e semente de todas as situações e vivências experimentadas na e como linguagem da cultura brasileira: uma espécie de machadiano "sentimento íntimo de seu tempo e país", constantemente implicado em cada fala, gravado como invisível tatuagem. Desde contra-sensos banais - como em "Apetite// O problema do coelho/ é que estava muito bom/ mas/ não tinha carne"S3 - passando por compartilhadas figurações de sofrimento subjetivo - como em "Fundo// No dia seguinte/ tratei ela muito bem/ Ela nem olhou pra minha cara / Não liguei / Mas no fundo"s4 - até as mais enraizadas formas de preconceito e sentimento de superioridade social, tradicionalmente implícitas na sociabilidade estratificada do país, isto é, no convívio travado entre proprietários e o contingente "sem" (terra, teto, educação etc.): "Mas// é limpinha"55. Em todas as falas e causos, impera, soberana, a adversativa "mas". Justamente essa qualidade contrastiva e paradoxal do paradigma sócio-afetivo dominante, absorvida estruturalmente pelos poemas, constitui a matéria do livro definida no segundo mínimo-poema-epítome "Quer ver?// Escuta"S6. As imagens do Brasil contemporâneo, mais que na inundação tecno-midiático-informática de nossos dias, segundo o poeta, devem ser ouvidas na fala de nós todos, em seu ritmo corriqueiro e espontâneo, em seus interditos, elipses e subentendidos, em sua informal constelação de ambiguidades. A dramatização dos paradoxos nacionais, ao gravar poeticamente a construção anônima e comunitária da fala brasileira, desaliena a sua "naturalidade" e, simultaneamente, ao aguçar o exercício da elipse, esboça cenas e paisagens enraizadas
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no mais genuíno cosmopolitismo. Como em "Corpo// Enquanto mijai segura a pasta"57, em que esta ancestral mania urbano-masculinonacional surge encenada no instantâneo-kodak deste Oswald, versão século vinte e um. Aliás, o aliciamento do olhar ou, para usar a expressão de Augusto Massi, "a elegia do olho", constitui a segunda tendência atuante, hoje em dia, voltada para a expressão de uma peculiar consciência histórica. A motivação gráfico-sonoro-visual da palavra não esgota o exercício metacrítico do olhar como resistência à ficcionalização e à desmaterialização da experiência, inerentes às contemporâneas sociedades do espetáculo. O flagrante plástico-visual do cotidiano, na rua, ou no mais íntimo recesso, compõe expressivo contingente de motivos e situações poéticas em que a metamemória de formas, seres e figuras superpostas recorta a consciência da simultaneidade como condição compartilhada. Assim em Heitor Ferraz, no "Poema de 88", o passeio de carro na avenida chuvosa, depois do filme, produzindo o cruzamento das imagens "silenciosas até/ o entorpecer de carne e ossos": Normalmente do carro/ acompanho só a câmera que desprega/ e solta/ entre vidros, a direção,! as gotas, o limpador de parabrisas,! entre os olhos que vão e vêm/ vão e vêm as cenas do filme, de mim,! e do amor/ que costuma ser . 58 perigoso.
Idem, p.135.
57
HOLLANDA. op. cit., p.17l.
58
Ou em Augusto Massi, no belo "Imagem", a vivência íntima da memória do amor processando-se como imaginação material da opacidade do corpo:
o corpo estirado na cama,! esticado até o limite,! solda coisas desiguais. Recolhe no reduzido espaço/ de uma noite, de um quarto,! imagens porosas do passado. E vislumbra, amor maduro,! o peso, o braço, o adubo/ de 59 outro corpo no escuro. A memória do corpo, justamente, consiste numa das mais intensas respostas poéticas à "mercadificação" efêmera das imagens na sociabilidade contemporânea. Contra o "triunfo da superfície sobre a profundidade do desejo"60, o enraizamento do corpo, irrepetível e único é sentido como porto seguro, último refúgio em meio ao "desaparecimento do tempo e do espaço como dimensões materializadas e tangíveis da vida social"61.
59
Idem, p. 87.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. 5. ed. Trad. Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1992, p.263. 60
61
Idem, p.265.
Fronteiras na literatura brasileira...
61
A imaginação material da intimidade como casa, conjugada ao ceticismo irônico de Paulo Henriques Britto, no recorte poético de uma subjetividade intelectualista e anti dramática, ou a "escrita icônica" de Arnaldo Antunes, podem, pela própria heterogeneidade das opções poéticas, dar a medida do ecletismo de faturas implicado no motivo do corpo, tomado como fonte significante e polimorfa de sentidos. Aliás, a versatilidade deste "artista multimidiático e intersemiótico" (Antunes, 1998,4" capa) constitui, uma excelente antologia de visões e versões do corpo. O corpo como lugar-encruzilhada da reversibilidade cósmica e núcleo centrípeto das forças dispersas num universo pregnante e sensual, como em:
HOLLANDA. Op. cit., p.74.
62
o céu lambe a sol a de meus pés através do reflex o na o 62 nd a Ou o corpo desarticulado, incuravelmente disperso numa injunção pós-humana, em que o espelho não devolve mais a Narciso a própria imagem, mas a distorce e fratura, disparatando qualquer vestígio de coerência subjetiva. O fetiche do corpo-mercadoria descentrado de todo eixo dissolve a possibilidade da identificação, como processo constitutivo, transformando o sujeito numa voz estranha a si mesma, "abandonada pelo abandono", vagante num vácuo sem geografia e, por isso, extraviado de qualquer história.
63
Idem, p.71.
o buraco do espelho está fechado/ agora eu tenho que ficar aqui/ com um olho aberto, outro acordado/ no lado de lá onde eu caí pro lado de cá não tem acesso/ mesmo que me chamem pelo nome/ mesmo que admitam meu regresso/ toda vez que eu vou a porta some a janela some na parede! a palavra de água se dissolve! na palavra sede, a boca cede! antes de falar, e não se ouve já tentei dormir a noite inteira/ quatro, cinco, seis da madrugada / vou ficar ali nessa cadeira! uma orelha alerta, outra ligada o buraco do espelho está fechado/ agora eu tenho que ficar agora/ fui pelo abandono abandonado/ aqui dentro do lado 63 de fora.
62
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Ou ainda, o corpo como âncora, raiz, monumento ao indiviso, casa do indivíduo, navegando em meio ao fluir instável do instante"hic et nunc" - que sempre passa. Só eu
nu com meu um bigo
un ido a um ún ico
nun 64 ca Esta consciência radicalmente erótica do corpo, num sentido de Eros como "pulsão de vida", certamente ocorre, sobretudo enquanto espécie de contraponto ao poder sem precedentes da tecnologia. Não é por outro motivo que a própria atividade literária, assim como qualquer outra atividade artística, depende visceralmente das relações de produção que, sem cessar, a Ciência transtorna e atualiza. Já nos anos trinta do século passado, Valéry profetiza que as "grandes inovações científicas transformarão totalmente as técnicas das artes ( ... ) e eventualmente chegarão a mudar o próprio conceito de arte da maneira a mais fantástica"65. Esta implicação do autor como produtor, tão enfatizada por Benjamin, na mesma ocasião - em defesa da "formação politécnica" como pré-requisito à "competência literária" - atualmente persiste num expressivo caudal da poesia brasileira, no prolongamento do experimentalismo concretista dos anos cinquenta. Por isso mesmo, a própria existência da vanguarda, ainda hoje, é defendida por Augusto de Campos, sob a alegação de que "sempre haverá artistas voltados para novas linguagens (inventores, vanguardistas) e outros que trabalham com linguagens já sedimentadas (mestres e diluidores)"66. A exploração de procedimentos heterodoxos e diferentes materiais, no permanente investimento em pesquisa multimidiática de ponta, conduz tais criadores à absorção de vários suportes, tais como o livro-objeto, a holografia, o neon, a animação digital. É bem verdade que como o reconhece o próprio Augusto - artífice da poesia concreta, ao lado do irmão Haroldo, de Décio Pignatari e José Lino Grunewald - "o simples domínio das técnicas digitais não faz de ninguém um grande poeta"67. Entretanto, mesmo para os mais tradicionais, fica
64
Idem, p.78.
VALÉRY apud CAMPOS, Augusto de. Poesia antipoesia antropofagia. São Paulo: Cortez & Morales, 1978, p.88.
65
CAMPOS. Op. cit., p.1.
66
67
Idem, p.l.
Fronteiras na literatura brasileira,
PÉCORA. Op. cit., p.15.
68
69
Ibidem.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Corpo; novos poemas. Rio de Janeiro: Record, 1984, p.95.
70
63
difícil negligenciar, por exemplo, a centralidade do computador. Afinal, segundo constata Alcir Pécora, "das seis etapas de produção de um livro, quatro podem ser feitas num computador caseiro: preparação do texto, revisão, capa e impressão de "laser film", restando apenas o fotolito da capa e a gráfica"68. Na atual deriva multi-tecno-artística se inscrevem inúmeras iniciativas que fazem do hibridismo a marca do próprio vanguardismo. Hoje os poetas têm site na Internet, e os artistas plásticos cada vez mais divulgam seus textos. Poetas - como o já citado Arnaldo Antunes, músico e ex-roqueiro da banda Titãs - lançam livros acoplados com CDs, nos quais declamam as próprias composições. Augusto de Campos, a propósito, continuando a vertente "verbivocovisual" da poesia concreta, no CD Poesia é risco, com música e tratamento sonoro, chega a produzir, com a contribuição do videopoeta Walter Silveira, o que denomina de "performances intermídia". Neste imprevisto horizonte tecno-poético, o antigo grupo concreto reaparece reunido no CD pop-experimental No lago do olho, onde o próprio Augusto, além dos poemas, comparece também como intérprete, tocando gaita de boca69 • E se a espiral da metamorfose tecno-inventiva convive bem com mudanças radicais, tais como a extrema segmentação de mercado ou, em termos formais, a anarquia de gêneros, é bom que não nos esqueçamos do Lembrete de Drummond para afastar o medo e a tendência a fantasiar o futuro com as lentes estéreis do espanto: Se procurar bem, você acaba encontrando não a explicação (duvidosa) da vida, 70 mas a poesia (inexplicável) da vida.
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História e representação literária: um caminho percorrido
Belmira Magalhães Universidade Federal de Alagoas
No momento em que se anuncia o fim das ideologias globalizantes e se enaltece a individualização e a fragmentação social como a forma mais radical de liberdade, pois se estaria permitindo que cada indivíduo e cada sociedade expressassem suas verdadeiras potencialidades, sem nenhum entrave que não o ligado ao desejo e às paixões, percebem-se dois caminhos distintos, que, no entanto, produzem a mesma representação social de negação da necessidade de entendimento das relações sociais e dos sujeitos coletivos. Um dos caminhos é o apelo conservador às tradições, a busca do elo perdido, que, no caso da crítica literária, se exprime através da preocupação de alguns estudiosos com as análises formais, a busca do literato na literatura, sem nenhuma percepção da função da expressão artístico-literária para a humanidade. A outra vertente questiona tudo o que foi realizado e se propõe a reconstruir; a tradição aparece através de uma lente que permite a junção de formas díspares numa colcha de retalhos tricotada pelo artista e pelo receptor, que pode tudo, principalmente destruir o que foi realizado. Por percursos diferentes o lugar de chegada é o mesmo: a des-historização da literatura e a aceitação da realidade, buscando uma adaptação às regras vigentes que têm como cerne a incessante procura da satisfação individual, independente das necessidades sociais. Existe também uma posição anárquica que apóia e contesta, ao mesmo tempo, qualquer expressão artística; tudo é permitido, tudo é
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expressão artística válida. Não há código de avaliação das obras pois estes tenderiam a reprimir a expressividade. Essa atitude, aparentemente libertadora, é, na verdade, uma contribuição à manutenção das regras, pois quando se nega que o cânone existe deixa-se de perceber a realidade como ela realmente é, imputando-lhe um desejo de como deveria ser. Com essa atitude, acaba-se por contribuir para que não haja nenhuma mudança real nas regras estabelecidas. A crítica cultural na representação literária, a meu ver, vem sofrendo desses dois males. Os formalistas se utilizam dela para florear seus textos, que seriam muito mais autênticos se não misturassem autores que nada têm a ver com análises formais, chegando alguns à utilização de autores marxistas, da moda, para dar atualidade a análises formais. A cultura aparece como pano de fundo, como exemplaridade, verificando-se que, muitas vezes por total desconhecimento da realidade que permitiu aquela expressão literária, erros históricos são cometidos. De outro lado, análises culturais minimizam os textos literários em relação às teorias. A literatura passa a ser ilustrativa do referencial teórico que embasa a análise, permitindo que conclusões aberrantes sejam realizadas em nome do feminismo, da psicanálise e da sociologia, da história, por exemplo. Este artigo se propõe a, partindo de um referencial teórico marxiano, percorrer a história e perceber a necessidade de compreensão do momento histórico que deu origem à obra literária. Fazendo referência ao texto de Goldmann 1, podemos afirmar que é praticamente impossível entender o Fausto ou Pandora sem levar em conta a Revolução Francesa ou Napoleão, mas quando se tiver revelado a relação que une essas obras aos eventos históricos que lhes eram contemporâneos, caberá ainda perguntar como Goethe processou isso tudo para produzir suas obras-primas, isto é, como forma e conteúdo se complementam para dar a unidade dessas obras. As condições de produção artística são parte das condições de produção na sociedade e estão relacionadas a elas; o fazer estético é parte do fazer social, ou seja, a forma por excelência encontrada pela humanidade para refletir sobre as possibilidades de elevação da sociabilidade a patamares superiores. Por esse motivo, em épocas de grandes questionamentos sobre os caminhos a ser seguidos, o reflexo estético ganha sempre maior expressão (as tragédias gregas e o Renascimento são exemplos desses períodos históricos). A estética é uma forma de conhecimento humano que, colocada em um nível superior 2 do conhecimento diretamente ligado à práxis imediata da vida cotidiana, no entanto, tem seu fundamento nas relações que acontecem nesse patamar da sociabilidade. A estética, a
I GOLDMANN, Lucien. A Sociologia do romance. 3. ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p.90.
2 Nível superior significa um nível de abstração e de elaboração que extrapola a práxis cotidiana e se dirige à relação da individualidade com a generidade.
História e representação literária: um caminho percorrido
3 LUKÁCS, Georg. Introdução a uma estética marxista. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.161.
, Não se está discutindo, aqui, o papel do leitor, espectador, público etc., mas o momento e o movimento explicitados na obra.
A oposição entre indivíduo e sociedade pode se dar quando a sociabilidade é inibidora da individuação, mas sempre tendo-se como premissa que a escolha de uma sociabilidade opressora é produzida pelas
I
Para o estudo da liberdade do ponto de vista marxiano, ver TONET, Ivo. Mercado e liberdade. Maceió: EDUFAL, 1997.
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Que, de resto, não são resolvidas só pela arte.
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ciência e a prática cotidiana refletem a mesma realidade objetiva. Embora os resultados sejam distintos quanto à forma e ao conteúdo, há relações fecundas e recíprocas entre esses campos que, inclusive, exercem estímulos uns sobre os outros. O reflexo estético se impõe à tarefa de compreender, descobrir e reproduzir com seus meios especíJicos a totalidade da realidade em sua explicitada riqueza de conteúdos e formas 3, provocando modificações qualitativas na imagem reflexa do mundo e, simultaneamente, na subjetividade. A particularidade fixada sob o mundo formal da obra de arte é uma expressão que não poderá ser modificada, sob pena de destruição da própria obra4 • A essência da arte será obtida, então, pela organização artística do mundo, realizada a partir do movimento que carrega todas as tensões e contrastes. Os elementos indispensáveis à concepção e ao momento histórico fixado estão em relações recíprocas com as condições histórico-sociais do gênero e com as artístico-pessoais. A obra de arte não pode confundir-se com a realidade objetiva da qual é um reflexo; ao mesmo tempo, ela é uma realidade que não pode ser modificada a partir das idéias e desejos do receptor, sem levar em consideração a sua própria essencialidade, pois qualquer obra de arte é uma realidade material sensível cuja superação da universalidade e da singularidade na particularidade representa uma conservação que precisa ser apreendida. Paralelamente, toda obra de arte representa uma superação que permite sua recepção em épocas históricas diferentes. Depreende-se dessas afirmações que não há uma oposição ontológica5 entre indivíduo e sociedade, mas sim entre sujeito, ser social genérico e a natureza. Na verdade, a oposição entre natureza e cultura se dá pela intervenção da subjetividade que tem consciência de si e da natureza. Há um nexo entre subjetividade, sociedade e produção das idéias, e nela, a produção artística. A subjetividade elucidará (ou não) os problemas advindos das relações sociais; essa intervenção da subjetividade é o espaço fundador da liberdade humana na medida em que o processo de auto-construção do ser social implica sempre possibilidade de escolha. 6 A arte, a mais elevada das expressões humanas, reflete as relações entre o indivíduo e o gênero, desempenhando papel fundamental no desenvolvimento da subjetividade. A gênese da arte parte de necessidades interiores do indivíduo? em sua existência material concreta e, necessariamente, tem de se deslocar da imediaticidade do cotidiano. Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se afirmar a existência de um conflito interno e insolúvel para a expressão artística:
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nenhuma sociedade pode satisfazer todas as paixões humanas, mas só no espaço social as paixões humanas podem ser realizadas, mesmo que apenas de forma artística. A arte constitui uma expressão privilegiada da subjetividade; o resultado do reflexo artístico e sua recepção são possibilidades concretas de afirmação da personalidade, pois significam o ato de escolha que um sujeito - o artista, ou o receptor - realiza sobre a forma de tratar os conflitos, que estão diretamente ligados à auto-construção humana. Seguindo essa abordagem, afirma-se que nenhuma obra de arte pode ser estudada sem o auxílio da História, pois a verdadeira arte é um fazer história na medida em que é um refletir do ser social sobre sua própria existência. Não é história porque o autor resolveu contar o seu tempo, mas porque ele reflete sobre o seu tempo e as possibilidades de ultrapassá-lo. A arte é uma construção do gênero humano que não está presente no salto ontológico, mas vem acompanhando o desenvolvimento do fazer humano desde épocas remotas. A forma e a objetividade de cada época, expressa nas necessidades humanas de cada período histórico e nas condições objetivas, priorizam aspectos diferentes. Percorrendo a história e a representação literária, sobre ela verificamos que: - o épico nos mostra a necessidade da formação dos povos, a procura pela ancestralidade que permite o presente, a necessidade de se perceberem humanos e, ao mesmo tempo, escolhidos pelos deuses para sobreviverem enquanto sociedade, enquanto povo. - a tragédia clássica discute a forma de um povo já configurado se desvencilhar dos deuses, ou, pelo menos, tentar caminhar sem estar inteiramente à mercê das vontades divinas, e dialeticamente mostra a força da construção sobrenatural sobre os atos humanos. - a arte medieval glorifica não mais uma gama de deuses, mas apenas um, que será o guia da humanidade. A produção artística desse período ultrapassa muito pouco as portas do templo e, nesse sentido, significa um retrocesso no caminhar da humanidade, pois não consegue discutir atos humanos que não estejam vinculados ao poder divino, como, por exemplo, em Antígona, de Sófocles. Resumindo os momentos históricos anteriores à modernidade, temos semideuses buscando a constituição dos povos; homens e mulheres nobres sucumbindo na tentativa de escolher o próprio destino; seres humanos com caminhos previamente marcados, agradecendo a Deus pela existência terrena e a possibilidade de melhorias para além da existência material.
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Só com o renascimento a arte consegue, de forma tênue, começar a se desvincular dos aspectos transcendentais para se transformar numa práxis conscientemente feita e dirigida aos seres humanos. Shakespeare ensaia, em Romeu e Julieta, como pode ser esse homem se conseguir romper com a tradição e se libertar do sobrenome e das obrigações decorrentes dessa agregação: Julieta - Romeu, Romeu, por que há de ser Romeu? Negúe o seu pai, recuse-se esse nome; Ou, se não quer, jure que só me ama E eu não serei mais dos Capuletos (. .. )
É só seu nome que é meu inimigo: Mas você é você, não é Montéquio!
SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.73. É claro que não estamos afirmando que com a modernidade o ser humano passa a prescindir da religião; estamos simplesmente constatando que idealmente, porque efetivamente, se faz possível perceber a religião como produto humano, como uma função social próxima, mas profundamente diferente da arte em suas conseqüências.
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la E de todas as outras formas de refletir a realidade.
Que é Montéquio? Não é pé, nem mão, Nem braço, nem feição, nem parte alguma • 8 De homem algum. Oh! Chame-se outra cOIsa!
Todos sucumbem, ainda não era o tempo. Só com a chegada da modernidade esse ser individual se percebe capaz de exercer uma prá~ tica social desvinculada do transcendentaP Surge, então, a possibilidade da criação das personagens que fazem escolhas e que caminham no interior da obra com os próprios pés. A questão do sujeito só pode ganhar importância na literatura quando a subjetividade se transforma em individualidade, e esse processo tem sua configuração ideária formada a partir do Renascimento, que vai representar o deslocamento consciente das reflexões artísticas 10, do caráter teocêntrico para o antropocêntrico. Antes desse momento histórico, o sujeito aparece na literatura como um ser que tem um papel pré-determinado, sendo os heróis dotados de forças não humanas desde a representação da vontade dos mitos nas tragédias à louvação dos desígnios divinos na Idade Média. Shakespeare mostra-nos o quanto os laços familiares/c1ânicos da feudalidade estavam se tornando impedimento para a realização da individualidade. Só com o desenvolvimento das relações de produção capitalistas e com a necessidade, intrínseca a esse sistema, de homens livres das amarras medievais, e com possibilidades - mesmo que apenas efetivamente essa liberdade se reduzisse ao trabalho para a maioria da população - de tomar suas próprias decisões, surge na literatura a possibilidade de discussão do papel do sujeito no mundo, da individualidade que modifica e intervém na realidade. No Romantismo, a importância do indivíduo alcança, do ponto de vista histórico-literário, seu ponto culminante. Embora não possa
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ser visto como uma correlação direta das condições materiais de existência postas pelo domínio do capital, a sociedade que surge com a ascensão da burguesia ao poder instaura a possibilidade, pela primeira vez na história humana, da conduta consciente do ser social como responsável pelo próprio destino. Surge a possibilidade de instauração da individualidade, que, apesar das amarras do social, se torna capaz de decidir, embora a maioria fique excluída, por força da impossibilidade econômica, do próprio destino. Individualidade contraditória, é verdade, pois expressa, ao mesmo tempo, a necessidade de um sistema baseado na exploração e o cerne de superação de toda a exploração. II Revela-se, então, o interior do indivíduo, sua psicologia refletida no sentimento interior, na ambivalência de ações e emoções, no amor irresolvido. Ambivalência que reflete a imagem imaterial do amor (almas gêmeas platônicas) e sua existência concreta, a partir do desenrolar da suas próprias ações no cotidiano. 12 Álvares de Azevedo, no poema "Minha desgraça", reflete essa ambivalência e a tomada de consciência da relação insolúvel entre individualidade e condições objetivas; ao mesmo tempo, aparece a marca da diferença que torna possível a individuação expressa no poema:
Minha desgraça não é ser poeta ( ... )
Minha desgraça, ó cândida donzela O que faz que meu peito assim blasfeme, é ter para escrever todo o poema . , e nao ter um vzntem para uma ve I a. 13 No Romantismo, só aqueles que são capazes de amar são capazes de - embora a partir de muito sofrimento que pode chegar até à morte - , transformar suas vidas. Em Inocência, do Visconde de Taunay, essa característica está bastante marcada pela atuação da protagonista, que consegue o inadmissível dentro do contexto social que compõe a fábula: a rebeldia em relação à ordem patriarcal. Só o amor é capaz de dar forças à personagem para se rebelar contra o pai e não acatar o casamento previamente estabelecido.
Eu? ( ... ) Casar com o senhor! Antes uma boa morte! Não 14 quero ... Não quero ... Nunca ... Nunca ... Ao mesmo tempo que exalta o individualismo através do amor romântico, o Romantismo traz também a noção de sujeito coletivo, aquele capaz de expressar o conjunto de um grupo social. José de
11 A superação existe como possibilidade pasta, embora, para a maioria da população, a única efetividade seja a exploração. Para desenvolvimento desse tema, ver Marx nos textos ditos filosóficos e em O Capital, (1968).
12 Ver Benedito Nunes. A visão romântica. In: GUINSBURG J. (Org.). O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.
13 AZEVEDO, Álvares de. Poemas Malditas. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p.136-7.
14 TAUNAY, Visconde de. Inocência. São Paulo: Três, 1972, p.168.
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15 As obras de COMTE e DURKHEIM são elucidadoras dessa concepção de mundo advinda com a ideologia e a ciência positi vistas.
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Alencar, em O Guarani (1971), constrói as personagens como representantes das raças em relação. Sujeitos que trazem o peso de culturas diferentes, de hierarquias que mostram a superioridade de um grupo e a inocência primitiva do outro. As personagens, embora vivam suas histórias de amor individuais, são também representantes de grupos sociais diferentes que precisam romper as barreiras de suas culturas para alcançar êxito na vivência de suas paixões. A burguesia havia conquistado o poder e o máximo de individualização possível para toda a população já fora expresso pelo movimento romântico. Cabia agora um refluxo da subjetividade, que não podia mais ser enaltecida indiscriminadamente, sob pena de fomentar enfrentamentos. O idílio da Revolução Francesa já havia sido rompido; as revoltas operárias de 1844/1848 e a Comuna de Paris mostraram quão crítica era a situação dos trabalhadores; e a real possibilidade de perda de poder e lucro, por parte do capital, era inadmissível, precisando ser combatida. Fazia-se necessário conter a ideologia que havia tornado possível a busca incansável pela felicidade individual e coletiva; as doutrinas socialistas alastram-se por toda Europa, as derrotas dos trabalhadores impulsionam novas formas de reivindicação, mas também trazem o ideário de perenidade da situação dada. Não são mais as condições de nascimento, no sentido da nobreza anterior, que passam a regular o ideário das ações dos indivíduos, mas a origem genética, material, no sentido físico, biológico, geográfico e econômico. O Naturalismo tenderá a um apagamento do sujeito, em sua movimentação, dentro das condições objetivas. Pode-se afirmar, sem reducionismo, que o Naturalismo é a expressão romanesca da visão de mundo da burguesia instalada no poder como detentora dos rumos da História, assim como o Positivismo representa o olhar científico de uma classe, que não convive mais com convulsões sociais. Enquanto o Romantismo representa o momento de fazer a história e transformála, o Naturalismo é o momento da conservação da forma já conquistada. As mudanças só serão possíveis para alguns, e, assim mesmo, dentro das normas estabelecidas, tudo o mais podendo ser apenas aperfeiçoado, e não mais ultrapassado. 15 O sujeito do Naturalismo é tipificado, dependendo, para agir, do papel reservado ao grupo étnico/social ao qual está ligado. Não há surpresas para a subjetividade; seu destino já está marcado, não pelo mito, como na tragédia, nem pela mão de Deus, como no medievo, mas pelas condições físicas/genéticas/geográficas/sociais de sua existência. Madame Bovary, de Flaubert (1852), mostra como a personagem pode parecer autônoma, rebelde, mas não consegue fugir ao des-
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tino predeterminado não mais pelos deuses, como na tragédia clássica, mas pelas posições ocupadas no interior da estrutura social, que determinam o papel a ser desempenhado por homens e mulheres nos distintos lugares sociais. Não havia saída para mulheres híbridas como Eva, que também foi a primeira mulher. O amor e a vida, para esses seres, só podem ter um destino medíocre. Ema, como Eva, quis mais e pagou o preço. Da modernidade em diante, o sujeito se complexifica, torna-se contraditório, pois vive sob condições objetivas determinadas mas tem consciência de que pode se mover e interferir nelas. A luta de classes faz parte da história e está posta como uma forma de mudança da sociedade; para isso, precisa de sujeitos individuais e sujeitos coletivos. O herói problemático da modernidade luta e sucumbe, levanta e luta novamente. Esse movimento é o pêndulo que perpassará todas as formas artísticas e terá, no romance, seu locus ideal. Como afirma Lukács:
o romance é a epopéia de um mundo sem deuses: a psicologia do herói romanesco é demoníaca, a objetividade do romance, a viril e madura constatação de que nunca o sentido poderia penetrar de lado a lado a realidade e que portanto, sem ele, esta sucumbiria ao nada e à inessencialidade. 16 Transitando no mesmo sentido de Lukács sobre o herói moderno, Baudelaire mostra a cidade desnuda e se volta contra aqueles que querem negar sua existência, ou, pelo menos, apagar suas vidas. Junta-se aos renegados e a partir deles olha o mundo. É o sujeito crítico, implacável com a contraditoriedade da modernidade, que canta o amor mas produz prostitutas, canta a igualdade e produz desvalidos:
16 LUKÁCS, Georg. Te. oria do romance. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Editorial Presença, [s.d.], p.l00.
Com o coração em repouso subi a cidadela íngreme e vi a cidade como do alto de uma torre hospital, prostíbulos, prisão onde o mal docemente floresce Amo-te sempre, minha cidade infame as prostitutas e os perseguidos têm prazer próprios para dar que o rebanho vulgar 17 não pode perceber.
17 BAUDELAIRE, Charleso As flores do mal. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p.99.
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No Brasil, que sofre a influência econômico/ideológica da Europa e tenta buscar seu próprio caminho artístico, Machado de Assis faz surgir o homem que afirma e nega, realçando a relação entre individual e social. O sujeito se move, se percebe em algum lugar com determinadas relações. Sucumbir ou não a essas contradições são opções possíveis. Não há determinismo, mas olhar consciente sobre a realidade. O sujeito percebe as possibilidades e limites:
·S SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades, 1990, p.64.
São assuntos aliás que colocam as Memórias Póstumas entre as anatomias modernas da vontade e da experiência do tempo, e à margem do território propriamente burguês, 18 marcado pelo dilema do projeto individual.
O olhar exterior e o interior se completam, e o sentido de humanidade passa a ser dado pelo parecer, pelo lugar que se ocupa na sociedade. Desde Maquiavel (1997), que vive o Renascimento mas antecipa a visão moderna para a política, sabemos que ao príncipe que pretende implementar a modernidade na Itália cabe entender que, mais importante que ser, é parecer ser aquilo que os olhos do povo querem ver nos seus dirigentes. A explicação que Machado (1997) faz, no conto "Espelho", dessa característica da modernidade que precisa aliar a individualidade aos preceitos sociais (sem ter por justificativa apelações transcendentais), exemplifica como para países subdesenvolvidos basta uma indumentária para transformar um indivíduo aos olhos alheios e ao próprio olhar. O homem passa a se constituir do cargo, como se este fosse mérito seu, gratificação por uma obra. Não conseguindo perceber-se sem ele, o espelho passa a não refleti-lo sem os adornos de que a ocupação necessita:
o
19 ASSIS, Machado de. Papéis Avulsos lI. São Paulo: Globo, 1997, p.75.
alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade.( ... ) A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra • 19 dlspersou-se no ar e no passado.
Para Lukács [s.d.], essa composição do herói é a única possível na modernidade que não mais pode sustentar na prática, o que clama sua ideologia de igualdade: É então que esse mundo abandonado por Deus se revela de repente como provado de substância, mistura irracional,
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simultaneamente densa e porosa; o que parecia ser o mais firme quebra-se como argila seca sob os golpes do indivíduo possesso do demônio, e a transparência vazia que deixava entrever paisagens de sonho transforma-se bruscamente numa parede de vidro contra a qual, vítimas de uma vã e incompreensível tortura, nos chocamos como a abelha contra o vidro, sem conseguirlurá-lo, sem querer perceber que por aqui não há caminho.
A cisão do indivíduo e do cidadão, tão bem analisada por Marx n' A questão judaica (1991) está aqui expressa por um dos maiores romancistas brasileiros. A característica básica da modernidade é transformar em cidadão que tem todas as garantias da lei o indivíduo real concreto que não possui nada além de sua força de trabalho para oferecer ao mercado. Finalmente, o homem enquanto membro da sociedade burguesa, é considerado como verdadeiro homem, como homme, distinto do citoyen por se tratar do homem em sua existência sensível e individual imediata, ao passo que o homem político é apenas o homem abstrato, artificial, alegórico, moral. O homem real só é reconhecido sob a forma de indivíduo egoísta; e o homem verdadeiro, somente sob a forma de citoyen abstrato. 21
20 LUKÁCS, Georg. Teoria do romance. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Editorial Presença, [s.d.], p.l 03.
21
MARX, 1991, p.50-l.
Também Graciliano Ramos, em Infância (1995), ao referir-se à descoberta da essência que comandava o comportamento do pai, percebe as conexões que constróem os atos humanos e afirma implacável: Meu pai era terrivelmente poderoso, e essencialmente poderoso. Não me ocorria que o poder estivesse fora dele, de repente o abandonasse, deixando-o fraco e normal, um 22 gibão roto sobre a camisa curta.
A perda do gado com a seca mostra ao filho que o poder advinha da propriedade; sem ela, o pai era um ser comum. Mais adiante, o autor constata que a situação de pequeno proprietário o fazia eternamente violento, pois, como afirmava Marx 23 , o camponês, não capitalista, forma uma quase classe porque não pode se sustentar nessa posição, o que o torna isolado e com receio de perder o pouco conseguido. As contradições entre as classes e o comportamento individual perpassado por essas contradições fazem Graciliano perceber e
RAMOS, Graciliano, p.26.
22
23 Para a noção de classe, fração de classe e quase classe, ver MARX (1956) e (1974).
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explicar, nunca perdoar - a impotência e as lágrimas não nos coo tratamento violento do pai:
moviam -
" RAMOS. Infância,
Se ele estivesse embaixo livre de ambições, ou em cima, na prosperidade, eu e o moleque José teríamos vivido em sossego. Mas no meio, receando cair, avançando a custo, perseguido pelo verão, arruinado pela epizootia, indeciso, obediente ao chefe político, à justiça e ao fisco, precisava desabafar, soltar a zanga concentrada. ( ... ) Só não economizava pancadas e repreensões. Éramos repreendidos 24 e batidos.
1995, p.26-7.
Finalmente, no mundo contemporâneo, pós-moderno, desideologizado com a ajuda frenética da mídia, o sujeito volta a perder a força adquirida com a modernidade. Continua consciente, mas se sente sem forças para enfrentar a realidade; vê os fatos, e, no máximo, lhe é concedido o direito de falar sobre eles. O apagamento do sujeito se dá não pela sua ausência, mas pela sua fragmentação. São tantos os sujeitos e tantas as possibilidades que nenhuma se realiza completamente, ou melhor, apenas através do discurso e da perspectiva virtual é que todas se realizam. O individualismo é levado ao extremo, a neutralidade diante da vida é exaltada. O sujeito pós-moderno não tem um projeto para ser executado. Reflete sobre seu tempo e tenta vivê-lo aceitando todas as respostas como verdadeiras, ou sem nenhuma verdade. Cazuza e Frejat expressam exemplarmente essa perplexidade na letra da música Ideologia: Meu partido é um coração partido E as ilusões estão todas perdidas Os meus sonhos foram todos vendidos Tão barato que eu nem acredito ah! Eu nem acredito Que aquele garoto que ia mudar o mundo Mudar o mundo Freqüenta agora as festas do "grand monde" Meus heróis morreram de overdose Meus inimigos estão no poder Ideologia eu quero uma para viver O meu prazer agora é risco de vida Meu Sex and drugs não tem nenhum
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Rock'n roil Eu vou pagar a conta do analista Pra nunca mais ter que saber Quem eu sou saber quem eu sou Pois aquele garoto que ia mudar o mundo Mudar o mundo Agora assiste a tudo em cima do muro Em cima do muro ... Também a análise de O jogo da amarelinha (1994), de Julio Cortazar, pode servir de referência ao entendimento de como o reflexo literário percebe o sujeito pós-moderno: não importa o resultado do jogo, importa só o jogar. O jogo pelo jogo, o jogo da linguagem, como explicita a introdução do livro:
Tabuleiro de Direção
À sua maneira, este livro é muitos livros, mas é, sobretudo, dois livros. O leitor fica convidado a escolher uma das seguintes possibilidades: O primeiro livro deixa-se ler na forma corrente e termina no capítulo 56, ao término do qual aparecem três vistosas estrelinhas que equivalem à palavra Fim. Assim, o leitor prescindirá sem remorsos do que virá depois. O segundo livro deixa-se ler começando pelo capítulo 73 e continua, depois, de acordo com a ordem indicada no final de cada capítulo. Em caso de confusão ou esquecimento, será suficiente consultar a seguinte lista: A consciência da realidade e do emaranhado que se tornou a vida moderna, em contrapartida à pequenez da individualidade, acaba por transformar o sujeito pós-moderno num constatador refinado, com uma forma rebuscada de discurso, que assume a primazia em relação ao fato não pela precisão ou pelo conteúdo de realidade que representa, mas pela própria capacidade que tem de se autodefinir. O conteúdo narrativo é entremeado de uma interdiscursividade que altera a história a cada passo em que é lida-o Há uma aparente liberdade concedida ao leitor para. formar seu próprio texto, o que enaltece a individualidade; no entanto, há um controle absoluto do escritor/narrador sobre sua própria escrita. No Brasil, Sérgio Santana (1989) discute o limite em que é posto o individualismo, no conto "Uma questão de método":
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SANT' ANA, Sérgio. A senhorita Simpson. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Um discurso sobre o método. p.93.
:l
LUKÁCS, p.97.
26
[s.d.J,
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E havia o fato principal de que ele tinha uma só vida para viver, apesar de, paradoxalmente, andar ventilando, nesses últimos momentos, como um exercício, a hipótese de livrarse dela. Diante disso, a sociedade como um todo era uma abstração. Ele estava se tornando agora, sempre vertiginosamente, um individualista. Se tivesse uma arma na mão, talvez houvesse disparado a esmo. Ele não tinha tal arma e só poderia disparar contra si mesmo, em forma de . uma tnsteza pontiagu d a. 25
Diante da possibilidade de uma vida de miséria e da morte, Sérgio Santana transforma seu narrador em um questionador e elaborador de discursos, apresentando, ao final, como alternativa de saída da massificação, a lucidez da loucura. Para Lukács, os limites da loucura não são mais orientados por uma ética global sobre o destino da humanidade, mas individualizados, psicologizados. Pode tratar-se de crime ou de loucura, e os limites que separam o crime do heroísmo positivo, a loucura de uma sageza capaz de dominar a vida, são fronteiras escorregadias, puramente psicológicas, mesmo se o fim, alcançado na terrível clareza de um desvario sem esperança tornado então evidente, se destaca da realidade . 26 costumeira.
A lucidez da personagem do conto é objetiva e fria como a pena de uma caneta-tinteiro molhada que elabora o texto, ou as teclas do computador em dias gélidos de inverno fora do Nordeste. Mas as respostas são sempre de um sujeito individual, cujo máximo de universalidade obtida consiste na poetização do discurso. Mortas as ideologias e os sujeitos coletivos, resta a trivialidade cotidiana e o inferno do desespero cunhado pela solidão de não se sentir mais que o discurso do outro.
27
SANT' ANA. Op. cit.,
p.I05.
o sujeito do corpo de bombeiros - que indiscutivelmente surgia diante de seus olhos como a pessoa de maior autoridade moral, dentre todos, ali - falara numa troca de uniformes no hospital psiquiátrico, do mesmo modo não foi que fizera, a propósito dele, sem titubear, um diagnóstico conferindo preciso: louco. Não havia então por que desconfiar e ele caminhava com uma satisfação até ansiosa para trocar de papel e de equipe. 27
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Procuramos mesclar a história das coisas, caminho do objeto, com a história dos conceitos, caminho do sujeito, para mostrar a indissociabilidade e autonomia das partes na relação sujeit%bjeto. No caso particular do reflexo estético, percebe-se que há um esforço por despertar uma totalidade humana a partir do mundo sensível. Através do processo mimético, o reflexo estético capta uma ampla e ordenada riqueza da realidade e cria um mundo adequado ao homem do seu tempo e à humanidade de uma maneira geral, não um enquadramento ao mundo real, mas no sentido de antever possibilidades de transformação, apontando para novas formas de sociabilidade. Dialeticamente, reflete um momento histórico para transgredi-lo, para ir além.
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Entre tapas e beijos: Peter Hondke e a crítica
Celeste H. M. Ribeiro de Sousa Universidade de São Paulo
I Este romance foi objeto de estudo de uma Dissertação de Mestrado no Brasil. Veja-se: GALEÃO. Celeste Aida de Noronha. Os vespões de Peter Handke: um romance literal. São Paulo. FFLCH-USP. 1981.
Literatura e valor é o grande tema escolhido para dar coesão a esta revista de literatura comparada. Estamos, portanto, em face de três conceitos (literatura, valor, literatura comparada) amplos o suficiente para nos obrigar a fazer um recorte específico a fim de nos encaixarmos neste terreno. Escolhemos, assim, um autor que, hoje, já faz parte da história da literatura de língua alemã, mas que no começo de carreira teve problemas com a avaliação de seus textos por parte dos críticos mais conceituados da época. E, porque acreditamos nos benefícios advindos da perseguição de uma utopia, tal como a proposta por Gadamer, depois retomada por Habermas - a utopia da conversa plena -, ao trazermos à baila um aspecto dessa querela "alemã" de 36 anos atrás, atrevemo-nos a acrescentar-lhe nossa própria perspectiva enviesada pelo Trópico de Capricórnio. Em 1966 Peter Handke, um austríaco de blue jeans, cabelos longos cortados à moda beatle, 24 anos, publica seu primeiro romance Die Hornissen (Os vespões), um romance em que "o narrador assume traços de todos os seus personagens, num crescendo que acaba por confundi-los entre si e com ele, e [em que o] narrador e personagens diluem-se e esvaziam-se em atores e agentes da ação verbal"l. Trata-se de uma novidade para a literatura de língua alemã na época. No mesmo ano o autor leva ao palco do Theater am Tunn em Frankfurt a peça Publikumbeschimpfung (Insulto ao público). um texto que mostra com a maior evidência o fim do teatro aristotélico. Até
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então, muitos escritores haviam testado o sistema da dramaturgia, como Brecht, por exemplo, ao opor ao teatro dramático o seu teatro épico. Mas Handke vai mais além: a sua "peça falada" (Sprechstück) é radicalmente antiaristotélica, é "teatro concreto". O próprio Handke declara que "as peças faladas são espetáculos sem quadros, na medida em que não oferecem nenhum quadro do mundo. Apontam para o mundo, não na forma de quadros, mas na forma de palavras. (... ) As palavras que constituem as peças faladas não oferecem nenhum quadro, mas um conceito de mundo. As peças faladas fazem uso da forma de exteriorização natural do insulto, da autoacusação, da confissão, da declaração, do questionamento, da justificação, do subterfúgio, da profecia, do pedido de socorro. (... ) No teatro, imitam de modo irônico os gestos de todas as exteriorizações naturais. Não pode haver ação nas peças faladas, porque cada ação no palco seria apenas o quadro de uma outra ação. ( ... ) Peças faladas são prólogos emancipados das peças antigas. Não pretendem revolucionar nada, apenas chamar a atenção"2. Os insultos, as confissões etc., são buscados nos gestos observados nos estádios de futebol, nos shows dos Rolling Stones, nos tradutores simultâneos da ONU, nos filmes dos Beatles, nos gestos de astros famosos. Em conversa com Artur Joseph, confessa o autor ter pensado em escrever um panfleto contra o teatro, mas percebe que um texto escrito não seria o veículo apropriado para investir contra o teatro, porque provavelmente seria inócuo. Pensa, assim, no paradoxo de protestar contra o teatro dentro do próprio teatro, não do teatro em si, considerado como um valor absoluto, mas do teatro visto como fenômeno histórico. Realmente, os xingamentos desta peça de Handke atraem uma multidão de espectadores, fascinados pela agressividade, pela negação do habitual, pelo novo ritmo, pelas piadas e pelos jogos de palavras. Quer o escritor que o público reconheça o quanto o indivíduo se repete, o quanto se contradiz, se nega, o quanto é dialético. Para ele, o entorno é um mundo de falas e de palavras. Na peça, a linguagem torna-se um elemento autônomo e, nesse sentido, deixa de ser um meio de comunicação para se tornar um fator essencial da solidariedade humana. O autor não hesita em deixar de lado tudo o que possa perturbar essa autonomia, para poder fazer com que sua tese assente no seguinte tripé: agir, pensar, falar. Esta e outras peças de Handke mostram, realmente, um progressivo esvaziamento da psicologização dos papéis. As personagens não passam de modelos de linguagem3 • Embora pareça, e embora Handke queira colocar e lidar com o mundo a nu, a técnica do xingamento não deixa de ser uma ilusão,
2 HANDKE, Peter. Publikumbeschimpfung und andere Stücke. In: Dialog. Frankfurt a. M., 1966, p.95 e seguintes.
3 SCHARANG, Michael (ed.). Über Peter Handke. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1972.
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4 HONSZA, Norbert Ced.). Zu Peter Handke. Zwischen Experiment und Tradition. Stuttgart: Ernst Klett, 1982.
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como declaram os críticos. Wittgenstein, Benjamin e Rühmkorf já tinham mostrado que linguagem inocente também pode ser expressão de domínio e de luta de classes. Na verdade, os experimentos de Handke deitam raízes nas atividades do chamado "Grupo de Viena", que ele conhecia, mas que até então não tinham merecido o devido interesse da crítica. Mesmo assim, na época, a produção de Peter Handke surge como uma "novidade" e é considerada uma afronta retórica, levantando protestos, que levam o autor a suspender e mesmo a proibir outras apresentações da peça em pauta4 • Ainda neste mesmo ano de 1966, Handke é o pivô de um outro escândalo imenso, envolvendo o "Grupo 47" (BaIl, Celan, Eich, Johnson, Walser, Aichinger, Bachmann, Bobrowski, Grass, Enzensberger). Até então, ou seja, nas duas décadas posteriores à Segunda Grande Guerra, um grupo de intelectuais assim denominado havia se tornado um espaço de ressonância das opiniões dos principais escritores de língua alemã, que também se haviam proposto a reformular a literatura e a língua, a limpá-las dos resíduos nazistas, e haviam desenvolvido uma espécie de identidade intelectual. Em um dos seus costumeiros encontros, em Abril de 1966 em Princeton, Peter Handke, convidado a participar das atividades, irrompe com um discurso agressivo contra o que, segundo ele, tinha acabado por descambar em rotina literária acomodada do Grupo, e manifesta-se a respeito da monotonia e da decadência na representação estética praticada, bem como da impotência para se descrever alguma coisa. A designação de escândalo para o ocorrido dá bem a dimensão das desaprovações e reações por parte de uma determinada ala da assistência, ainda mais porque o jovem se apresenta em público de modo tão iconoclasta. O impacto do discurso é tão demolidor que, após duas décadas de atividades regulares, o Grupo acaba por se dissolver, apesar de duas tentativas posteriores para se recompor, uma em 1972 em Berlim e outra em 1977 em Saulgau. A fama de Peter Handke na mídia, no entanto, vai às alturas. Todo este tumulto atrai a atenção dos editores, ávidos por novidades que lhes possam render bons lucros. A celebridade de Handke provém, assim, num primeiro momento de sua pessoa, ou melhor de sua figura, muito mais do que de sua obra poética, que o público à época mal conhece. Em torno dele, a mídia cria uma espécie de aura associada à politização da vida pública e ao movimento estudantil. O próprio autor assume posições claras e firmes diante de acontecimentos políticos, de modo que passa claramente a ser identificado com a nova esquerda. Handke passa a ser visto como o escritor que se rebela contra a visão de mundo instaurada, que não mais atende às novas necessidades
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do indivíduo, que se vê cada vez mais sufocado. Nas manchetes, aparece como o "queridinho" de uma certa crítica, a figura-chave de sua geração, o mais bem sucedido. É um tempo em que o marxismo é trazido à tona para fazer o indivíduo tomar mão da sua própria história. É um tempo em que as teorias de Freud sobre a identidade, a sexualidade, a estrutura dos desejos, ganham publicidade. É um tempo em que Adorno e Horkheimer nos presenteiam com escritos argutos a respeito do indivíduo contemporâneo e da sociedade de massas. É uma época em que as aulas de Saussure vêm a público, rompendo a concepção de significados precisos e unívocos, dando à linguagem uma função social. É um tempo em que Foucault coloca a questão do poder disciplinar no controle das atividades do indivíduo, mostrando o quanto a individualidade deixa de ser individualidade, e se torna passível de ser observada e descrita. É o tempo do movimento feminista, da contracultura, do movimento em favor dos direitos humanos, dos movimentos revolucionários no chamado terceiro mundo. É a época da fragmentação do sujeito. Daí a urgente necessidade de uma nova linguagem que capte as mudanças. Peter Handke está na crista das mudanças: de um lado, suas obras tornam-se best-sellers entre os jovens de todas as idades; de outro, a crítica ortodoxa não deixa de o ver com desconfiança. Marcel Reich-Ranicki, um desses críticos, que fazia parte do Grupo 47, acusa-o de escrever obras com falta de realismo, e de abusar de jogos formais e experimentais, a que Handke responde com dois ensaios: Ieh bin ein Bewohner des Elfenbeinturms (Sou um habitante da torre de marfim) de 1967 e MareeI Reieh-Ranieki und die Natürliehkeit (Marcel Reich-Ranicki e a naturalidade) de 1968, em que se insurge contra a antítese formalismo/realismo. Na leitura de Ralf SchnelP, Peter Handke parte do seguinte dilema, exposto por Thomas Bernhard em Heldenplatz (Praça dos heróis): a realidade é tão ruim que não pode ser descrita; toma, porém, direção diferente. Suas publicações dos anos 70 falam de uma necessidade de "cura", de simplicidade e de grandeza, de singeleza lingüística e de beleza, já que a realidade receptada, pelo menos na Alemanha Ocidental, é ruim e empedernida, fria, voltada para o consumismo, coberta por uma camada de palavras estranhas, falsas. Em Die Lehre der Sainte Vietoire (Os ensinamentos da Santa Vitória), 1980, por exemplo, diz que nos dias de hoje não há mais lugar para narrativas. Assim, o seu caminho parte da consciência como mundo interior em direção ao exterior que é feito de consciência. Na maioria de seus escritos há o medo de não conseguir narrar, de fracassar diante da possibilidade de abrir uma nova janela para o mundo.
SCHNELl, Ralph. Geschichte der deutschsprachigen Literatur seU 1945. Stuttgart: Metzler, 1999. 5
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HANDKE, Peter. Kindergeschichte. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1981.
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HANDKE, Peter. História de uma infância. Trad. Nicolino Simone Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 7
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A polêmica levantada contra a realidade desprezada leva-o, em 1981, a publicar o romance Kindergeschichte 6, traduzido para o português em 1990 como História de uma infância?, em que mais uma vez procura dar forma a essa nova janela para o mundo. Curiosamente, este romance, segundo ele - o romance do homem pacífico - , é o que menos repercussão obtém junto ao público de língua alemã em seu lançamento. O autor é "acusado" de proceder a uma regressão. Ralf Schnell, contudo, reconhece e afirma posteriormente que a obra de Handke nem é regressiva nem pré-moderna, mas evidencia - na forma de um programa realizado de modo reflexivo - a problemática da Modernidade, da perversidade do mundo, da falência dos sistemas e das teorias e a crise da narratologia. Hoje Peter Handke é um autor internacionalmente reconhecido. E nós, que também fazemos parte de uma certa crítica, uma crítica considerada periférica em muitos sentidos, mas não descartável, pensamos que o romance História de uma infância é um belíssimo texto literário. Trata-se de uma obra curta, de 137 páginas de letras gordas (para crianças?), de onde irradia uma esperança que se havia perdido - a esperança na possibilidade do homem voltar a ser capaz de promover sua individuação. Por aqui já se pode ver, que a aproximação que fazemos do romance é sustentada pelo viés do enfoque junguiano, uma perspectiva não tão freqüente nos meios acadêmicos. Neste âmbito a hegemonia é de Freud e de Lacan. O sujeito do romance é um escritor, um intelectual afeito a reflexões, portanto. De fato, sua história é contada emflashback, embora isto só nos seja comunicado pelo narrador in medias res, à página 12, com o seguinte comentário: "Ainda assim, essas adversidades, mesmo as aflições dolorosas e a imobilidade, só podem ser lembradas aqui deliberadamente, em retrospectiva". Tal estratégia, acompanhada do advérbio de modo "deliberadamente", dá um tom de verossimilhança ou de realismo ao relato e, com isso, arrasta o leitor para dentro da história, quase que obrigando-o a escutar o narrador/personagem numa atitude receptiva, impedindo-o de manter distância do enredo. E, nessa mencionada retrospectiva, são garimpadas as imagens "a que a memória retornava como num triunfo de gratidão, sem propósito glorificador e com a seguinte certeza: 'Esta é minha vida' (... ) esses clarões da lembrança revelavam, portanto, uma energia vital, ininterrupta e contínua". Ao que vemos, o narrador coloca a personagem em postura reflexiva sobre as próprias reflexões, no começo da narrativa. Assim, sua história começa quando ela é ainda adolescente, numa idade, portanto, em que poderia ter escolhido diversos caminhos para o
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seu tornar-se adulta. Se conseguiu ultrapassar a barreira do narcisismo, natural em todas as crianças, é porque ela surge como um exemplo de que isso também é possível aos demais. E, nisto, reside a esperança emanada do livro. Esta personagem, este sujeito, aliás, não tem nome próprio e é identificado na obra ora como o adolescente, ora como o homem, ora como o adulto ou como Mensch (ser humano), ora como a testemunha ou como a testemunha ocular, o que bem caracteriza sua identificação como qualquer um. O romance começa pela seguinte epígrafe: "E assim terminou o verão. No inverno seguinte ... ". Com ela, sem dúvida, é intenção do narrador ajustar o horizonte de expectativas do leitor para o que ele tem a dizer. Tal ajustamento consiste em trazer o leitor para a atmosfera de fim de verão, uma estação do ano caracterizada pela maturidade extrema da natureza, imediatamente antes do começo de um novo ciclo descendente - o outono, e em prepará-lo para o inverno, estação do ano marcada pela retração da natureza ao interior da terra, associada ao recolhimento do homem à sua própria casa, portanto, à introspecção, à reflexão, ao reencontro consigo mesmo. Trata-se, por um lado, de um ajustamento espacial, projetado na paisagem enquanto pano de fundo e, por outro lado, também de um ajuste temporal: depois da maturidade, segue-se o tempo da colheita e da recolha das experiências, das interiorizações e das reflexões. Com este preparo, o narrador inicia o primeiro capítulo, apresentando-nos a um adolescente que tem um grande desejo - o de vir a morar e a viver, no futuro, com uma criança. Essa vivência configura-se em sua imaginação como uma "comunhão implícita", como "trocas de olhares", como o movimento do "agachar-se", como uma "união feliz". É evidente seu desejo de resgatar experiências da própria infância, emolduradas no texto pela atmosfera de um dia de inverno chuvoso, com pouca luz, estando ele de costas para a casa que nunca via com nitidez. Além desse desejo, duas certezas davam forma à sua vida futura: a existência de uma mulher que o destino lhe enviaria e a profissão que lhe garantiria uma liberdade digna. Neste passo, o narrador dá um pulo temporal e leva-nos para o dia do nascimento da criança, pressupondo realizadas as duas certezas do adolescente: a mulher e a profissão. O bebê nasce na manhã ensolarada de um domingo de primavera, portanto numa estação do ano marcada pelo renascimento do vigor e do viço da natureza. A criança funciona como um arauto desse tempo de promessas a serem cumpridas. Ao ser apresentada à criança, uma menina, pelo vidro do berçário, a personagem é alvo de uma série de espelhamentos: 10 não reconhece na criança um bebê, mas já um adulto perfeito. Só posteriormente, em uma foto,
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distingue os traços de recém-nascido. 2° não considera a criança nem como filha, nem como sua descendente, mas apenas como uma criança contente por estar no mundo. 3° a personagem, agora designada como o adulto, vê-se, juntamente com a criança, constituindo um grupo conjurado para sempre. Com a experiência destes três espelhamentos sobrevém a vivência da completude. Mais tarde, o sujeito da história ainda verá esta criança com "o rosto iluminado e onisciente e com olhos serenos e sem idade". O bebê é levado para casa. Trata-se de uma outra etapa na vida do narrador/personagem deste romance. Chega mesmo a ser esclarecido que é como "se o adulto passasse a experimentar uma regressão a uma juventude, em que fora, muitas vezes, um mero guardião de seus irmãos mais novos". Pelo que sabemos até agora é ele quem fica tomando conta da criança em casa. De repente, as mudanças que imaginara para sua vida não são exatamente aquelas a que se vê obrigado. Sente-se preso o dia inteiro aos cuidados para com a criança e, envolvido pelo cotidiano, fica sem imaginação para escrever - escrever vem a ser sua profissão. Isto parece-lhe uma interrupção da vida. Somos, então, informados de que a nossa personagem costumava ter freqüentes desavenças com a mulher, mesmo antes da criança nascer. "Mas foi só com a criança que a discórdia episódica se transformou num afastamento definitivo. Do mesmo modo como nunca [haviam sido] realmente marido e mulher, também não [foram] desde o início pai e mãe. Acudir a criança que se agita durante a noite era, para ele, natural, mas para ela parecia não ser". Nunca virá a entender como uma mãe pode afastar-se, por longo tempo, de um filho, ainda que por motivos profissionais. O casamento parece não trazer ao nosso "herói" a oportunidade de avançar no desenvolvimento de seu ego social, através das trocas potenciais numa união desse tipo. Assistimos, aqui, porém a uma curiosa inversão de papéis que, ao mesmo tempo em que frustra a expectativa do leitor médio, prende sua atenção. Afinal, a criança, ao nascer, longe de unir seus pais, separa-os e cabe ao pai, em vez de à mãe. a tarefa de cuidar dela. A grande queixa da nossa personagem é o fato de que a mulher age de modo racional em relação à criança. E isso o pai não aceita. Ele considera todos os livros de puericultura e afins como "intervenções ilícitas e insolentes no mistério que havia entre ele e a criança". Portanto, a relação pai-filha vai-se pautar pela exploração do lado emocional e intuitivo, o que dentro da tradição também é incomum, pois o normal seria esperar um comportamento racional por parte do homem e um emocional e intuitivo por parte da mulher em relação à criança. Na verdade, o que atrás mencionamos a respeito do casamento da personagem como uma falta de
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oportunidade de avançar no desenvolvimento de seu ego social, através das trocas potenciais numa união desse tipo, não corresponde à verdade, pois que a troca é feita de um modo bem radical: o pai simplesmente substitui a mãe e vivencia in loco e na pele as experiências maternais. O primeiro ano de existência da criança marca na vida do adulto, sobretudo, um resgate da própria infância, porquanto a criança lhe serve de espelho. Assim, o narrador se pronuncia a respeito do que o seu herói pensa: "Aliás, toda imagem interior da vida nesse primeiro ano se refere à criança - que, em compensação, mal aparece pessoalmente em uma delas". A grande revelação desse primeiro ano, veiculada pela criança-espelho é: "a criança podia se alegrar e era sensível", o que significa que o nosso herói redescobre em si a capacidade de se alegrar e de sentir, de ser espontâneo. Depois desta descoberta, inicia-se um segundo momento de vivências, assinalado pela mudança, ou nas palavras do narrador por "como uma emigração definitiva", na primavera, da cidade natal da criança, para um outro país de fala francesa, assiQalado apenas por 2 topônimos: square des Batignoles - designação de um pequeno jardim público na cidade estrangeira perto do litoral do Atlântico - e le Grand Ballon - "uma planície em direção à cadeia de montanhas velada de azul". Ainda que o sujeito da história continue, no começo da emigração, a resgatar a sua infância através da criança, este segundo momento de vivências traz, em seu bojo, o contato com o Outro. Diz o sujeito que esta cidade, em que agora vive, mostra-se completamente diferente daquela que conhecia como turista: as praças parecem agora menores e o bairro residencial passa a ser visto como área particular. Se, por um lado, o narrador, referindo-se a um passeio do adulto com a criança, ainda afirma que "na repetição quase diária desse trajeto, a criança deixa de ser uma carga que se transporta e transforma-se numa parte do corpo daquele que a carrega", por outro lado, consegue já lembrar-se de uma sua própria experiência infantil, "quando, certa vez, apesar de estar com sua mãe no mesmo quarto pequeno, ele a sentiu longe, a uma distância dilacerante e aflita: como aquela mulher, ali, pode ser alguém diferente de mim, aqui?" Trata-se, neste passo, da primeira experiência do Outro, contudo uma experiência vivida, mas não entendida, e ainda assim, armazenada na memória e relegada aos poucos ao inconsciente, de onde volta agora à consciência. É também neste momento da vida do sujeito que a criança lhe aparece, pela primeira vez, "como alguém autônomo, independente do elemento paterno ali parado", e em que se pergunta se a tranqüila severidade que vê no rosto da criança não é antes um sobressalto de
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sua própria consciência, o que anuncia uma primeira conscientização de seu processo de individuação. Depois deste breve momento de conscientização do contato com o Outro que lhe trouxe também um breve momento de intimidade consigo mesmo, tanto a criança quanto o sujeito e sua mulher (momentaneamente juntos) voltam à cidade natal, onde decidiram construir uma casa. A decisão de construir uma casa tem, segundo Bachelard, todo um significado: Este regresso é marcado pela vivência do ar puro e do poder expressar-se na "língua de origem". O problema da língua é, neste momento, ligeiramente levantado como elemento de identificação, de independência, como algo que tem em si bem-estar e felicidade. A questão da língua vai voltar mais tarde, especificamente na vivência do bilingüismo, considerado como "uma cisão dolorosa ( ... ) Em casa, como o homem, a criança nunca fazia uso da língua estrangeira (no máximo só para gracejos) e, em compensação, durante todo o período escolar não ouvia uma única palavra em sua língua materna. ( ... ) O adulto acreditava freqüentemente não conhecer sua própria filha: com o outro idioma ela modificava a voz, alterava a fisionomia e fazia outros gestos. A maneira de falar a língua estrangeira implicava também uma sucessão de movimentos completamente estranhos: tão imitada e artificial uma, quanto autômata a outra - e assim podia-se observar não só o medo mas também um estar já fora de si (o que talvez fosse algo de cotidiano, de muito freqüente e que também só parecesse ter importância em poucos casos ( ... ) voltar para casa ( ... ) para o seu idioma de origem [apresentava-se como] uma descontração sempre renovada, voltando a conversar com gosto, adotando uma postura corporal mais serena e contemplando com maior tranqüilidade as coisas à sua volta". Tais observações possibilitam caracterizar o Outro aos olhos do sujeito enquanto espaço físico e língua: moraram em apartamento, no ambiente poluído da cidade e falaram uma língua estrangeira. Dito de outro modo, a experiência do Outro permite o conhecimento do próprio, caracterizado em contraste pelo ar puro e pelo que é familiar. De regresso à cidade natal, abre-se um terceiro momento na vida do sujeito - o convívio estreito com terceiros (a mulher não conta, pois a relação dos dois é marcada pela indiferença). Até a casa ficar pronta, foram morar com um casal amigo e sem filhos. Esta convivência, a que o sujeito não está acostumado. é classificada por ele, a princípio, como doentia, individualista e natural. No entanto, reconhece que, com ela, aprende não só a "perseguir a marcha do mundo", mas a enfatizar suas exigências para com este mundo. Todavia, a casa não fica pronta no tempo previsto e este fato leva a uma deterioração das
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relações amlgaveis até então vigentes no grupo. Através do espelhamento no outro casal, ele passa a perceber outros níveis de sua própria realidade: vê-se exatamente como o contrário do casal hospedeiro, sem filhos como muitos outros. Os casais sem filhos estavam sempre juntos, investiam sua afetividade um no outro, não precisavam desdobrar-se para criar uma criança. No casal sem filhos, a criança é vista como desmancha-prazeres. Para o sujeito de nosso história, esta opção pelo não desdobramento é uma atitude insensível, pervertida e audaz. Pessoas sem filhos são "aferradas à própria infância e à contínua vida infantil, de perto [revelam-se] monstros crescidos (... ) profetas vaidosos e mesquinhos ( ... ) a escória dos tempos modernos", arvoram-se em profissionais das relações entre pais e filhos, sem terem passado pela experiência, enfim são pessoas narcisistas. Como ele se vê enquanto o oposto delas, logo, não é narcisista e empreende pela vida uma outra rota, uma rota que o leva a uma expansão cada vez maior do ego, no sentido de enriquecê-lo através de experiências que só os Outros, os Diferentes, podem proporcionar. Percebe até que constituir família tira a liberdade, mas reconhece que sua vida sem a filha seria fútil e solitária. Tendo descoberto a criança como um ser autônomo, portanto, diferenciada e não redutível a ele mesmo, suas experiências em sua companhia passam a apresentar um outro teor. O ego avança mais e mais nos domínios alheios à procura de novas experiências e aumentando sua área de conhecimento. A experiência de morar sozinho com a filha, por exemplo, fá-lo descobrir-se "inteiramente composto de" hábitos. Percebe que, isolado no cotidiano doméstico com a criança, perde "a sensibilidade para as cores e as formas, para as distâncias e disposição dos objetos ( ... ) como se fossem espelhos cegos. ( ... ) Era a irrealidade e irrealidade quer dizer: não existe o 'você'. Como conseqüência, a falta de razão, que mal se distingue da loucura. Despojado da razão, já não tinha mais domínio de si mesmo e, mais ainda, o medo o tornava apático". O convívio com a criança possibilita-lhe ainda uma outra experiência - a de ver-se como pessoa má, capaz de dar uma surra e, ao mesmo tempo, o perdão oferecido naturalmente por ela fá-lo perceber, pela primeira vez, a criança enquanto sujeito atuante. A convivência com terceiros estende-se, agora na casa nova, aos vizinhos. Como a criança passa a brincar com outras crianças, logo o sujeito toma a iniciativa de arrumar um espaço apropriado para isso, ou seja, um cômodo vazio na própria casa. Com esta experiência, o sujeito abre-se ainda mais para o mundo e passa a considerar a criança como seu "mestre pessoal". Ao mesmo tempo em que o sujeito
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reflete e se conscientiza da forma como se dá o seu processo de individuação, começa a registrar os fatos que mostram a formação do ego da criança através do embate desta com o mundo. Na verdade esta formação incipiente do ego da criança é, para ele agora, ferramenta extra de seu próprio processo de evolução, ou seja, através da criança resgata a própria infância esquecida e, através da observação da formação do ego na criança, promove sua própria individuação. No choque da criança com as outras crianças da vizinhança, uma outra questão do adulto vem à tona: o problema da identidade. Se, por um lado, a criança se socializa, portanto, passa a fazer parte do grupo que fala a mesma língua, passa a ser uma delas, por outro lado, o adulto observa que há algo que a diferencia das demais. O modo como fala, as palavras que emprega, denunciam suas raízes em outro povo, nunca denominado de maneira direta. O contato com o Outro amplia-se um pouco mais e o ego entra na cultura de um outro povo que não é completamente Outro, mas que finca raízes dentro dele - é preciso trazê-las apenas à luz da consciência. Essa conscientização vai desenvolver-se num espaço geográfico estrangeiro. O sujeito de nossa história e a criança de quase 5 anos voltam a morar na cidade estrangeira de fala francesa. Nesta idade, a criança precisa de uma escola. "Seria o [seu] primeiro de dia de aula. ( ... ) E também coincidiu de a escola ser algo especial. Porque, na realidade, ela estava destinada somente às crianças daquele único povo, que podia ser assim denominado, e sobre o qual, muito antes de sua dispersão por todos os países da terra, se havia dito que continuaria sendo um 'povo' mesmo 'sem profetas', 'sem reis', 'sem príncipes', 'sem vítimas', 'sem ídolos' e até 'sem nomes', e ao qual, segundo palavras de um exegeta posterior, ele deveria recorrer para conhecer 'a tradição': 'a mais antiga e rigorosa lei do mundo'. Era o único povo efetivo a que o adulto desejara sempre pertencer". Trata-se, ao que parece, do povo judeu. Temos, portanto, agora, um ego às voltas com situações históricas complicadas. Este povo e a relação do sujeito com ele são mais adiante também descritos assim: "Sua filha, descendente por nascimento e pela língua daqueles infames, que, no entanto, pareciam condenados até o último de seus membros e até o final dos tempos a vagar de lá para cá, sem alegria nem objetivo, metafisicamente mortos, sua filha experimentaria a tradição vigente ( ... ) que ele, o incapacitado de assumir uma tradição, percebia ( ... )". Desta citação, depreende-se que o ego do sujeito, não se deixa enformar nem dentro dos limites da identidade de um povo, de uma cultura, de uma história, de uma tradição. Ele irrompe além-fronteiras. Essa insatisfação com qualquer tipo de fronteiras e, portanto, essa rebeldia em relação às
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barreiras das convenções que constituem a tradição, revelam-se em múltiplos episódios. A tentativa de resgatar raízes hebraicas através da filha, por exemplo, não dá certo. No semestre seguinte, quando se iniciam aulas de religião na escola judaica, é comunicado em caráter irrevogável ao sujeito que a criança não pode prosseguir, porque vem de uma outra cultura. O sujeito, que com isso se sente "como um proscrito inocente [... como] descendente de um não-povo, o indigno apátrida", é, assim, obrigado a procurar uma outra escola para a filha. Nesta outra escola, ainda no país estrangeiro, porém, através de uma carta anônima, a criança recebe ameaças de morte, ao que tudo indica por parte da comunidade judaica do lugar: "em nome daquele povo único, ameaçavam de morte a criança, na qualidade de descendente de seus piores [perseguidores]". Este incidente leva o sujeito a descobrir o autor da carta, a conversar com ele e a concluir "que nunca serão inimigos, mas tampouco nunca serão próximos (... ) e ali amaldiçoa aquelas insignificâncias existenciais que necessitam da história para seu currículo; ali amaldiçoa também a própria história e a renega por si mesmo; ali se vê, pela primeira vez, sozinho com sua filha, na noite do século e dentro do pavilhão sepulcral do continente - e ao mesmo tempo tudo isso lhe dá a energia para uma liberdade posteriormente moderna". No contato com os outros, durante este período, o sujeito "começou a ouvir, com freqüência cada vez maior, inclusive de suas visitas, que, segundo o modo como vivia e o que fazia, ele estava afastando-se do presente e passando por cima da realidade". No entanto, o que é realidade para os outros, para ele não passa "da vida mentirosa dos 'tempos modernos''', o que o leva a optar por "uma espécie de Idade Média acima das circunstâncias correntes, que talvez nunca tivesse existido assim de fato [... mas que] aparecia-lhe por trás de tudo isso que era o atual". Se a realidade atual é vista desta maneira, os outros, os por ele chamados "encarregados da realidade", aqueles que estão sempre preocupados em mensurar a realidade, aqueles que atribuem ao mundo as dimensões de 1°, 2° e 3°, da mesma maneira como antigamente se calculava uma vitória ou uma derrota após uma batalha, contando cadáveres e ruínas, estes outros são os "cultuantes" ou "caotizadores da realidade". Estes outros que se pretendem objetivos e dentro do real, "geralmente aplacavam uma culpa secreta e, muitas vezes, até uma traição inexpiável: todos eles juntos já haviam cometido muita maldade. (estranhas, então, as lágrimas das máscaras!)". O sujeito, por isso, os considera estranhos, levando uma existência sem sentido. "Era inútil discutir com eles, pois se viam constantemente confirmados pelas catástrofes do dia-a-dia". E, neste momento, o narrador dá voz, pela primeira vez, ao sujeito, permitindo-lhe dizer: "e eu não
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falo com estranhos - fora daqui, com vocês! Eu sou a voz, não vocês". O narrador quebra, aqui, o distanciamento entre ele e o sujeito, até agora cultivado, assinalando, deste modo enfático, um grande avanço no processo de individuação do ego em pauta. O distanciamento, no entanto, logo é retomado num esforço para continuar a auto-análise em retrospectiva que delineia os passos mais significativos da formação deste ego. A criança que, agora, freqüenta uma escola pública plural que acolhe todos os tipos de criança, está feliz. No entanto, por motivos de conjuntura política, a escola é fechada e as crianças precisam ser transferidas para escolas vizinhas. Nestas circunstâncias, o sujeito procura uma outra escola para a filha, só que, aqui - numa escola católica - , a criança não é bem recebida, chega até mesmo a receber agressões verbais, porque é alemã. Ao mesmo tempo em que o adulto sofre por ver a criança isolada, percebe também que não é bem assim: ao cabo de 5 anos neste colégio, "crianças de outros países - na maior parte das vezes, inclusive de outros continentes e de raças distintas" haviam-se tornado amigas de sua filha. A criança, então, pertencia sim a um grupo, "a companhia que lhe era adequada existia". É preciso, portanto, ir adiante e procurar esse grupo fora das fronteiras de qualquer identidade convencional (religiosa, nacional, lingüística, cultural). A pluralidade passa a ser, assim, uma das marcas desse grupo, uma marcajá anunciado na escola anterior que, infelizmente, veio a fechar. Nas férias seguintes, o sujeito deste romance decide separar-se da filha por um ano. Esta volta "ao seu país de origem, para sua cidade natal", onde passa a freqüentar outra escola. Neste ano, que passa no estrangeiro sem a filha, o sujeito chega à conclusão de que "'os tempos modernos', que muitas vezes ele amaldiçoara e repudiara, realmente não existiam; mesmo o 'fim dos tempos' era somente uma quimera: em cada nova consciência tinham início as mesmas possibilidades de sempre, e os olhos das crianças no meio da multidão - prestem atenção neles! - transmitiam o espírito eterno. Pobre de ti, que descuidas desse olhar!" Observemos que, depois de emprestar voz ao sujeito, o narrador agora se identifica com ele e dirige-se diretamente ao leitor, mostrando-lhe suas certezas. Estamos perante mais um avanço no processo de individuação do sujeito, o último que este romance apresenta. Temos, portanto, em mãos um trabalho arqueológico que revela as peças fundamentais à constituição de um ego: a conscientização da infância e o contato com o Outro nas mais diversas formas (na forma de uma filha, de amigos, de vizinhos, de outras crianças, de outra língua, de outra religião, de outro povo
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etc.). Todas estas viagens - exteriores e interiores - necessárias à formação do ego individuado apresentado neste livro talvez permitam dizer que se trata de uma espécie de "atualização" do romance de formação nos anos 80, apontando para um caminho capaz de aglutinar os fragmentos e os estilhaços que caracterizam o homem e a vida do final do século XX, e assim condensado na última frase do texto: "Cantilena: eternizar a plenitude do amor e de toda felicidade apaixonada", bem como no epíteto que encerra o romance - uma citação escrita em grego, retirada da VI ode olímpica de Píndaro que, traduzida para o português, ficaria: "Vem, criança, e segue minha voz para o caminho e objetivo comum a todos". Designada de testemunha ocular, agora no fim do romance, sinalizando a distância/independência adquirida, a personagem que, num jogo de projeções e de espelhamentos, toma consciência de si em profundidade e amplitude, é uma figura que ultrapassa o grupo daqueles "que se vêem constantemente confirmados pelas catástrofes do dia-a-dia", como diz o texto. É uma figura individuada. O próprio Handke diria em entrevista de 25.03.1981 a Krista Fleischmann no programa Welt des Buches (Mundo do livro) da televisão austríaca, que História de uma infância é a história do homem pacífico. Talvez, por este motivo exatamente, esta obra não tenha sido tão bem recebida pela crítica, já acostumada com personagens desesperançadas, desesperadas ou alienadas, quanto suas outras publicações, como dissemos atrás. Nem sempre, porém, foi esta a leitura que fizemos do romance. No começo, fascinava-nos a construção da perspectiva, a magistral técnica que faz a personagem ser simultaneamente narradora e espectadora de si mesma. De há uns anos para cá, no entanto, nossa atenção deslocou-se da construção da perspectiva para a construção da personagem, e nosso prazer com a leitura aumentou. As condições (interiores e exteriores) de interação entre nós e o texto, certamente, se alteraram, ou seja, nosso horizonte de expectativas redefiniu-se. Acreditamos nós, hoje, numa sociedade cada vez mais mundializada, que é de fundamental importância que o indivíduo adquira consciência, reconheça, que só alcança individualidade, só se emancipa das massas, através da interação com essas mesmas massas, com os outros que o espelham e, ao fazê-lo, lhe alargam os horizontes de conhecimento, tornando-o, assim, cada vez mais próximo do essencialmente humano, solapando exclusões e hierarquias, vendo diferenças como riqueza de detalhes. Esta é, hoje, nossa leitura, como dissemos, uma leitura feita a quilômetros de distância da Áustria ou dos outros países
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de língua alemã, num contexto cultural inteiramente diferente. Certamente, deve ser uma leitura partilhada por um determinado círculo de leitores, que deverá valorizar semelhante visão de mundo. Porém, dependendo das circunstâncias em que cada leitura é feita, isto é, dependendo do entorno que presidiu à formação de cada leitor, sua leitura apresentará nuances peculiares que, aos olhos dos outros, poderão ou não ter sentido, mas que jamais deverão ser descartadas, porque, no fundo, são complementares. Acreditamos que, não havendo limite para a imaginação humana, não há limite para a nossa capacidade de refazer leituras, ou seja, não há limite para as possibilidades relacionais a que a linguagem pode dar expressão, nem para os contextos criados por essa linguagem. Assim sendo, cabe apenas perguntar como podem as mais recentes leituras ser entrelaçadas a outras já anteriormente feitas, de forma a ampliar sempre o horizonte de sentido do texto. E poderíamos, com Gadamer e Habermas, também dizer neste contexto que qualquer hierarquização das leituras de uma obra deveria ser substituída pela idéia de uma "conversação livre de injunções" (herrschaftsfrei) infinita, sem barreiras, de modo que um possa fazer uso da leitura do outro, e vice-versa, modificando-a, ampliando-a. Afinal, nas palavras de Gadamer, e voltando a Handke, "o ser que pode ser compreendido é linguagem". Friedrich Holderlin, velho poeta alemão, também já dizia em um de seus versos: "Desde que somos uma conversa ... " (Seit wir ein Gespriich sind ... ). Posto isto, sempre haverá quem pesquise e investigue as inúmeras leituras feitas de uma obra, intercepte nelas elementos comuns e daí tire conclsões/generalizações/va-Iores, que haverão de preencher as páginas das histórias da literatura que, por sua vez, constituirão ponto de partida para outras tantas leituras diferenciadas, e assim sempre por diante, se a obra não cair no esquecimento.
Quando a moeda literária vale 1 99 no mercado clandestino de Clarice Lispector 1
Edgar Cézar Nolasco Universidade Federal de Minas Gerais
Minha aparência me engana. Clarice Lispector. "As aparências enganam"
Antes de mais nada, quero lembrar que o mercado de 1,99 transmigrou da Argentina para o Brasil pela porta dos fundos. De modo geral, encontra-se de tudo nessas "lojinhas", desde bibelôs importados até obras clássicas da literatura brasileira, como as de Machado de Assis e de José de Alencar. Bugigangas e quinquilharias, que têm o seu valor mais em sua apresentação do que em sua feitura, são simulacros perfeitos de parte do mercado brasileiro que se realiza na "esquina" da contramão do mercado oficial. Nesses "bazares" de gosto discutível, encontra-se literalmente de tudo e compra-se a mercadoria mais pelo que ela parece ser do que pelo que realmente vale. Para os clássicos da literatura brasileira, entretanto, a questão que se coloca poderia ser outra: agora podem ser lidos pela grande massa. uma vez que o preço é acessível a todos. Os clássicos, quem diria. vieram até a grande massa e circulam livremente entre produtos descartáveis que são consumidos aleatoriamente. Agora, então. falta pouco: porque só resta comprá-los e levar para casa para serem lidos e descartados. Quem vive o presente, vê!
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Assim, tomando de empréstimo este cenário mercadológico de "lojinhas" sempre parecidas - onde se encontra de tudo e encontrase tudo o que se precisa e às vezes não se encontra justamente o que se precisa no momento - , quero falar da prática pessoal, intransferível e clandestina de Clarice Lispector "montar" sua escrita. Ou seja, com isso, estamos dizendo que sua escrita se cria, artificiosamente, de cópias transplantadas e aborda, geralmente, assuntos banais do dia-a-dia do sujeito. Não vou me deter aqui no primeiro caso, apenas darei um exemplo. Mas adianto que tal prática é recorrente por toda sua produção e é sumamente importante considerá-la para a compreensão da mesma. O exemplo é o seguinte: no capítulo "A pequena família", do livro de estréia Perto do coração selvagem, Clarice copia literalmente trechos e mais trechos do filósofo Spinoza. Mesmo mencionando o nome dele, procura escamotear a cópia textual, pondo o que copia como "fala" do personagem Otávio. Na verdade, o importante não é o gesto de copiar do outro, em Clarice, mas, sim, a constatação de que tal cópia soa deslocada, mal colada dentro da narrativa do romance. Desse modo, se a personagem Otávio colocaria in litteris Spinoza traduzido - "Os corpos se distinguem uns dos outros em relação ao movimento e ao repouso, à velocidade e à lentidão e não em relação à substância"l- Clarice, pelo contrário, por não saber copiar textualmente do outro (Spinoza), acaba atribuindo um valor que a citação alheia (moeda por ela contrabandeada) não tinha até então. Outros exemplos, como esse, são encontrados alicerçando todas as demais narrativas claricianas. Dito isso, detenho-me, agora, no caso que me interessa, ou seja, nos assuntos banais que quase sempre sustentam grande parte dos pequenos textos da autora, sobretudo. Antes de mais nada, é importante dizer que a escritora nega toda e qualquer relação de influência, "esquecendo-se" de copiar o nome do autor do fragmento apropriado e, com isso, rasura a rubrica alheia com a sua própria, que não deixa de soar como falsificada - querendo como que extinguir-se do papel. Sabemos que Clarice, de quando morou em Berna (Suíça), recortava trechos ou frases de escritores que lia no momento, como Kafka, e pregava nas paredes de sua casa. 2 Esta prática de recortar e colar, por escolha e gosto pessoal, simplesmente porque achava tal passagem bonita, ou porque tinha a ver com suas sensações pessoais do momento, é literalmente incorporada ao seu processo mesmo de criação. É por isso que encontramos, e quando menos se espera, palavras, frases ou citações inteiras dependuradas dentro de sua obra, e não meramente ilustrando-a mas, o que é melhor, dando-lhe construtura. De tudo, o que depreendemos é que Clarice desvaloriza o que copia
1 LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem, p. 124. Em tradução de Joaquim Ferreira Gomes, o texto do Lema é o seguinte: "Os corpos distinguem-se uns dos outros em razão do movimento e do repouso, da rapidez e da lentidão, e não em razão da substância". (Spinoza, Benedictus de, 16321677). In: CHAUÍ, Marilena et alii. (SeI. e trad.) 2. ed. Benedictus de Spinoza. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores), p.146.
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995, p.225.
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) Escultor e pintor brasileiro (Amparo, SP, 1933). Primeiro prêmio de escultura no Salão de Arte Moderna do DF (1966) e na Bienal Nacional (Salvador, 1968). Utilizou a linguagem geométrica e uma abordagem construtivista em pinturas, montagens e objetos - esculturas despojadas (objetos conversíveis, madeira pintada, 1965-1969). A partir de 1975 seus trabalhos incorporaram elementos da figura humana e objetos de teor simbólico e fantástico. (Fonte: Larrouse Cultural, Brasil A/Z. São Paulo: Ed. Universo, 1988.) As crônicas "Um pinto", "Os espelhos" e "Esboço de um guardaroupa" aparecem coladas, em seqüência, entre as páginas 77 a 84 do livro Água viva.
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5 LISPECTOR. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 11-12 ..
Vera Bocaiúva Cunha Mindlin, gravadora e pintora brasileira (RJ, 1920-1985). Começou a expor em 1947, no Salão Nacional de Belas Artes (RJ), Bienais de São Paulo (a partir de 1953), Salão Nacional de Arte Moderna (desde 1954). Realizou individuais no Brasil e no exterior. Dedicou-se sobretudo à litografia e à gravura em metal; inicialmente abstrata, retomou a gravura; é notável em sua obra a série Máquinas. (Fonte: Larrouse Cultural. Brasil A/Z. São Paulo: Ed. Universo, 1988.)
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- demandada por um costume de esquecer de copiar o nome do autor do fragmento - para que, mais tarde, tal cópia contrabandeada seja revalorizada dentro de seu país/texto. E, para isso, mistura de tudo. Logo. o que presta e o que não presta, o que tem valor e o que ainda não tem formam seu mercado literário clandestino: quinquilharias textuais como pedaços de cartas, comentários sobre "pintura" e "espelhos". relatos de viagens etc. são somadas de forma que resultem em lucro literário. O pintor descrito na crônica "Um pintor" nada mais é do que referência direta ao pintor e escultor brasileiro Gastão Manuel Henriq ue.' Assim, a linguagem geométrica, que beira a montagem escultural despojada do próprio texto/crônica, é a mesma posta em prática pelo artista em seu trabalho. Logo, os elementos sobre a figura humana e objetos de teor simbólico e fantástico encontram ressonância na própria montagem do texto clariciano. 4 Tudo isso não teria valor nenhum, sobretudo literário, desde que a mercenária escritora não tivesse, a todo custo, retirado/"esquecido", ou melhor, trocado o nome do pintor, que chegou a dar título ao seu texto-comentário, para tão-somente "Um pintor".5 Gesto semelhante acontece com o texto "Os espelhos". Primeiro, este texto chamou-se "Os espelhos de Vera Mindlin" e nada mais era do que um comentário sobre uma possível exposição da pintora brasileira Vera Bocaiúva Cunha Mindlin. 6 Até aí, tudo bem, porque o nome Vera Mindlin aparecia dentro do texto/comentário feito por Clarice, talvez possível conhecida da artista. Já numa outra publicação deste mesmo texto, ocorrem as transformações esperadas por conta da criação clandestina da escritora: agora, o título se resume apenas a "Os espelhos" e o nome da artista é totalmente excluído. Lê-se na crônica: "nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo, não existe espelho quadrangular ou circular: um pedaço mínimo é sempre o espelho todo: tira-se a sua moldura e ele cresce assim como a água se derrama". 7 Quer sejam os espelhos de Vera Mindlin ou não mais, quer seja apenas um pedaço sequer de espelhos, o que não se pode negar mais, diferentemente da escrita que nega de onde vêm suas mercadorias/objetos textuais, é que hoje os encontramos pendurados e dandonos a ilusão de que através deles podemos entrever a obra toda de Clarice, quando, na verdade, assim como os espelhos mesmos, só temos consciência de parte dela ..-\ outra parte monta outras obras das quais ainda não nos foi lícito. talvez. sequer imaginá-las. Corrobora para essa despensa. onde se encontra "quadros" emoldurados e "espelhos" imoldurá\'eis etc .. um "guarda-roupa" objeto que outrora guardara dentro de si a memória de um inseto
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ancestral: "parece penetrável porque tem uma porta. Ao abri-la, vê-se que se adiou o penetrar: pois por dentro é também uma superfície de madeira, como uma porta fechada. Função: conservar no escuro os travestis. Natureza: a da inviolabilidade das coisas".8 Somando-se função e natureza temos a noção de escrita arquivística de Clarice que tem o cuidado de conservar no seu dentro os simulacros para que os mesmos sejam melhor remexidos por sua recepção. Outras sensações, objetos, coisas e imagens esteriotipadas vêmse juntar a essa casa/arquivo da escrita c1ariciana. 9 Pode-se dizer que se encontra pendurada nesse arquivo/bazar uma composição sobre o "Dia da Bandeira": uma "composição tão bonita, mas tão bonita", uma vez que a narradora usou palavras que nem sabia o que queriam dizer. "Bandeira ao vento"IO é o nome do texto que nem de longe rivaliza com a composição infantil que vem se dizer em suas linhas arquitetadas. Mesmo tom infantil, ingênuo é encontrado no texto "A nova natureza, meu bem", II em que o filho, em diálogo com a mãe, descobre que a natureza não é suja, porque a árvore "está toda cheia de cascas e pedaços, e não é suja" - enquanto "o carro, só porque tem poeira, está sujo mesmo". Esta composição, como outras que destacaremos, circula entre uma seriedade textual e "literária" para a qual parece não ter sido pensada. Chegamos agora a um dos textos mais instigantes escritos por Clarice, qual seja, senão este sobre "Brasília" que tem duas partes, como resultados de duas viagens feitas por ela: "Estive em Brasília em 1962. Escrevi sobre ela o que foi agora mesmo lido ['Brasília', primeira parte]. E agora voltei doze anos depois por dois dias. E escrevi também. Aí vai tudo o que eu vomitei."12 ["Brasília: esplendor", segunda parte]. E assim acabou vomitando o que podia e o que não podia, porque, ao mesmo tempo em que nos dá a possibilidade de construir seu retrato e a certeza de suas impressões, dá-nos também a convicção de que tudo se desfaz diante da recepção, tal é o alto grau de simulacro e de representação que seu texto demanda. "Brasília é construída na linha do horizonte" - assim começa o texto. Seu texto também é construído na linha artificial do horizonte, ou seja, sobre uma planura sem superfície. Logo, sem uma possibilidade de compreendêlo; analisá-lo, nem pensar. Uma imagem porém torna-se aos poucos visível: a narradora (penso na escritora) sofre de uma ingenuidade original e, por conta disso, mistura abstrato e concreto e "eu" é o outro não descansando de si mesma por nenhum instante do texto. Daí a falácia sem nexo mas sempre primeva, mesmo depois de morta: "- Mamãe, está bonito ver você em pé com esse capote branco voando.
LISPECTOR. Os espelhos, p.12-13. In: Para não esquecer.
7
LISPECTOR. Esboço de um guarda-roupa, 'p.28. In: Para não esquecer. 8
De modo geral, todos os textos de Fundo de gaveta (hoje, Para não esquecer) podem ser lidos desta perspectiva, por abordarem temáticas as mais variadas possíveis.
9
10 LISPECTOR. Bandeira ao vento, p.31. In: Para não esquecer. 11 LISPECTOR. A nossa natureza, meu bem, p.31. In: Para não es- , quecer.
12 LISPECTOR. Brasília, p.44-63. In: Para não esquecer. Lembro que o tema ganha importância redobrada, dentro da obra da autora, quando dá título ao livro Visão do esplendor: impressões leves, de 1975.
Quando a moeda literária vale 1,99...
:3 LISPECTOR. Brasília, p.42.
14
Idem, ibidem, p.46.
:s
Idem, ibidem, p.46.
16
Idem, ibidem, p.47.
17
Idem, ibidem, p.53.
18 LISPECTOR. A hora da estrela. 7. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p.7.
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(É que morri, meu filho)". 13 Nesse texto - que, aliás, dialoga com o conto "O ovo e a galinha", sobretudo pela forma - a escritora arquiteta um novo valor de escrita, entre o sério e o cômico, o pessoal e o ficcional, o público e o privado, despindo-se de todo pre/conceito e ganhando um lugar de honra que só a literatura lhe pode dar: senti-me como se pudessem me prender ou tirar meus documentos, a minha identidade, a minha veracidade, o meu último hálito íntimo. 14 Sobrepõe-se, no texto, à imagem em miniatura que procura construir da mais nova capital do país, um retrato 3x4 cuidadoso que ela vai fazendo dela mesma. "Brasília é o fracasso do mais espetacular sucesso do mundo. Brasília é uma estrela espatifada" Y Logo em eguida, lê-se: "Não sou importante, sou uma pessoa comum que quer um pouco de anonimato. Detesto dar entrevistas. Ora essa, sou uma mulher simples e um pouquinho sofisticada. Misto de camponesa e de estrela no céu". 16 Enquanto Brasília "é apenas o retrato de si própria", o que existe da narradora/escritora "é um retrato falsificado de um retrato de outro retrato". 17 Porque "a própria já morreu". E morreu "no dia 9 de julho", lê-se no texto. Perguntaríamos, apenas, mas que própria? Onde existe esta propriedade?, se o que temos é uma escrita contraditória que procura registrar o que presta e o que não presta, como forma. talvez, de encontrar-se: "Brasília é o contrário de Bahia. Bahia é nádegas. Ah que saudade da embebida praça de Vendôme. Ah que saudade da praça Maciel Pinheiro em Recife. Santa pobreza de alma. E tu a exigires de mim. Eu, que nada posso." - mas que escreve. que se lembra de sua "antiga pobreza, quando tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta" .18 Por conta de tudo isso. exige respeito de Brasília, "muito Shakespeare", diz a narradora. E escreve seu texto em várias línguas, mistura português com inglês e francês. construindo, assim, um texto babélico na forma e no conteúdo, para se ter ou sentir algum luxo, porque diz precisar. Tudo é paroxismo em seu texto: desde a tradição shakespeariana até o dito popular do nordeste "Virgem Maria" que para ela soa como pessoal, ancestral e histórico. Com cuidado, cabe de tudo nesse texto paradoxal: cabe desde a referência a seu cachorro Ulisses até sua cartomante que antes de tudo previra sua ida a Brasília. Mas também estão presentes críticos proeminentes como José Guilherme Merquior e Affonso Romano de Sant' Anna. É isso que nos interessa aqui, ou seja, essa diversidade em todos os sentidos que quase sempre amarra o texto c1ariciano numa construção ímpar e bela. A resposta, todavia, talvez esteja na explicação que a narradora do texto dá à pergunta: dois e dois são cinco? "É assim: o psicótico diz que dois e dois são
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cinco. O neurótico diz: dois e dois são quatro mas eu simplesmente não agüento."19 O que se segue, quando o assunto é Clarice, ou melhor, quando o assunto é a escrita de Clarice, são "sorrisos e relaxamento". Porque é nesse estado de descontração que acontece a recepção do texto c1ariciano, longe de uma seriedade programada e pragmática. Tal recepção/relação passa p'or umjogo mais descontraído, mais negociável com o texto e com o pensamento da escritora, mais ou menos como ela mesma diz em seu texto "As negociatas". "Depois que descobri em mim mesma como é que se pensa, nunca mais pude acreditar no pensamento dos outros."2°Nesse mundo textual negociável e clandestino, encontramos pedaços de textos que só parecem ter algum valor por seu tom nada sério: "Brasília é uma nota de 500 cruzeiros que ninguém quer trocar. E o centavo número I? esse reivindico para mim. É tão raro. Dá boa sorte. E dá privilégio. Quinhentos cruzeiros me atravessam a garganta." Assim, a narradora/escritora ironiza por meio do valor da nota que vale muito e opta pela menor por seu valor simbólico. Cartomantes, superstições, gnomos, ("Brasília tem gnomos?"), palhaço, anão, Duende, Debussy e tantos outros visitam seu arquivo/ texto constituindo, assim, suas preciosidades literárias. É escusado dizer que não são apenas pedaços de textos, notas, papéis pessoais e alheios que circulam compondo a criação literária de Clarice, mas também retratos e retratos se encenam, multiplicam-se na tentativa insana de ludibriar o outro. Penso, sobretudo, na representação entre vida e ficção na qual a escritora se submete sem medo de perder-se por detrás de uma memória de infância que quase sempre deixa-a sem saída. Este pelo menos parece ser o caso do texto "Domingo, antes de dormir"21 que rememora uma cena familiar que se passara no cais de Recife, em plena infância: "A filha menor quis se sentar num dos bancos, o pai achou graça. E isso era alegre. ( ... ) Foi quando conheceu ovomaltine de bar, nunca antes tal grosso luxo em copo alto, mais alteado pela espuma, o banco alto e incerto, the top of the world". 22 E conclui o texto e sua impressão sobre aquele domingo de sua vida: "Domingo foi sempre aquela noite imensa que gerou todos os outros domingos e gerou navios cargueiros e gerou água oleosa e gerou leite com espuma e gerou a lua e gerou a sombra gigantesca de uma árvore pequena".23 E gerou, sobretudo, textos como esse que ela relata só muito tempo depois. Este arquivo literário aberto ao mundo que resume e diz a obra de Clarice, que desmitifica, inclusive, o que é literatura e aceita de bom grado a presença do paraliterário, não se intimida em provocar naquele que resolve mexer em seus restos um certo mal-estar justamente pelo inesperado, como: "- Moi, madame, j' aime manger juste
19 LISPECTOR. Brasília, p.57.
20 LISPECTOR. As negociatas, p.78. In: Para não esquecer.
LISPECTOR. Domingo, antes de dormir, p.63-64. In: Para não esquecer.
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22 LISPECTOR. Domingo, antes de dormir, p.64. In: Para não esquecer.
LISPECTOR. Domingo, antes de dormir, p.64. In: Para não esquecer.
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" LISPECTOR. A arte de não ser voraz, p.65. In: Para não esquecer.
25 LISPECTOR. Saguão do Grajaú, p.65-66. In: Para não esquecer.
26 LISPECTOR. Ad eternitatem, p.97. In: Para não esquecer.
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avant la faim. Ça fait plus distingué."24 Aqui o inesperado acontece pelo fato de encontrar um texto minúsculo em língua estrangeira totalmente misturado a uma pilha de outros em língua portuguesa. Neste caso, quando o visitante/leitor não sabe ler em francês, contribui sobremaneira com a impressão de arquivo clandestino, sem dono e sem lei. Vem juntar-se a essa escrita-arquivo que não pára de escancarar comentários ou fragmentos estranhos, ou melhor dizendo, escatológicos. uma outra cena mais real porque visualizada pela própria narradora. Trata-se, dessa vez, de um harém em Grajaú, no qual a narradora vê no saguão cinco moças de "bocas desbotadas, e sem crueldade ou amor entrego-as à relação natural, não me politizo, não me poetizo. não acho que está certo ou errado: esta é isso mesmo".25 O texto, conseqüentemente, reflete metaforicamente esta falta de política e de poética, ou seja, cria novos valores éticos e estéticos que obrigam a sua recepção, inclusive, a rever-se os próprios valores preestabelecidos. A política e a poética da escrita sendo outra no texto clariciano obrigam que os mesmos valores sejam no mínimo revistos pela leitura. Encontra-se, ainda, desarquivado e a mostra, logo, público e sem nenhuma pudicícia, um texto-telegrama enviado a uma "cozinheira feliz" por um eterno apaixonado: "Eternamente seu apaixonado Edgard. Da Therezinha querida peço-lhe Resposta. Estrada São Luiz, 30-C, Santa Cruz é o meu Endereço" - assim conclui o texto. A grandeza da sinceridade poética do texto só é digna ao amor externado, mesmo que arranjado por uma extremada simplicidade. Somam-se a tal textos outros não menos importantes como "Crônica social", "Crítica leve" e "Crítica pesada", por exemplo. A crônica social se resume em dizer que "cada um é a própria gafe muda". Crítica leve compara e explica a diferença entre o livro de Pelé e um livro inventado, ou seja, literário. Este é mais difícil de fazer, mas o de Pelé é melhor. Já a crítica pesada trata de imitação: o motivo dessa vez para um conto ficcional seria a vida miserável de uma menina mendiga que só lhe resta agora um retrato de sua mãe morta. Nessa galeria de textos discutíveis que não valem menos por valer tão pouco, pelo menos aparentemente, encontra-se o texto "Ad eternitatem" - na forma de diálogo cortado - que ilustra o atual estágio do avanço das coisas e das pessoas neste início de século: "Me disseram que a gente está no século XX, é? - É. - Mamãe, como nós estamos atrasados, meu Deus! "26 A impressão, ou desejo de imperecibilidade das coisas e das pessoas almejado pelo "filho" converte-se, espetacularmente, na impossibilidade de durabilidade, que o próprio diálogo textual oferece. Percebe-se, ainda, neste fragmento de
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um pseudo-diálogo aparentemente insignificante, uma questão atualíssima para o nosso tempo, qual seja, a de que as coisas, sobretudo, não valem mais por seu tempo de duração mas, sim, por sua mera estampa. Também assim os pedaços aleatórios de textos e de conversas que se despregam da parede da escrita desarquivística de Clarice: agora eles reservam seu valor pelo modo como se apresentam, se encenam ao olhar do visitante do arquivo dos restos. São tão-somente em sua aparência, expõem-se ao olhar curioso do outro sem nenhuma preocupação com seu conteúdo. Ou seja, não há mais conteúdo, não há nada do outro lado, tudo se resume em estado de superfície: é o parecer diante do ser. Há gosto para tudo e para todos nesse Bazar/ Arquivo sem fundo que funda e sustenta a criação c1ariciana. Se os textos se oferecem ao olhar dos visitantes, estes, por sua vez, não dizem nada, porque às vezes estão ali só pelo prazer de estar, como nos explica o texto "Entendimento": "Todas as visitações que tive na vida, elas vieram, sentaram-se e não disseram nada" Y Máscaras e personas se dizem e se multiplicam, textos e nãotextos se desfazem e se completam, cópias e retratos se banalizam neste mundo simulado e de simulacros que faz a literatura da autora. Ancorado em seu texto está a própria imagem que Clarice se encarregou de construir para ela e para os outros. Imagem esta que se fragmenta, se parte, se perde, se desfaz e circula aleatoriamente para além de qualquer controle, de qualquer autoria. O texto "Perfil dos seres eleitos"28 ilustra o que dissemos. O ser/personagem do texto, eleito pelos outros, quando se via no retrato que fizeram dele espantava-se; "haviam-no sitiado". Ou melhor, haviam fotografado o ser. Referirse a ele, agora, era referir-se à fotografia. Bastava tão-somente abrir a gaveta e tirar de dentro o retrato. De modo que qualquer um que quisesse conseguia uma cópia do ser. Por bondade aos outros, o ser eleito começou a imitar a fotografia como forma de valorizar o que os outros tinham em mãos. Mas jamais estaria à altura simplificada do retrato. Então só lhe restou um trabalho subterrâneo de destruição da fotografia: e se pôs a fazer coisas oposta a ela, que se eriçava na gaveta. Mas o que aconteceu mesmo foi que tudo o que ele fazia só ia era retocar o retrato. Desse modo, o ser
tornou-se um "mero contribuinte", não importando mais o que ele desse ou não, porque tudo agora, até mesmo morrer, enfeitava a fotografia. Assim, tomando de empréstimo o que sucedera com o ser eleito pelos outros, pode-se dizer que o mesmo acontece não só com os textos de Clarice, que acabam se rivalizando com sua própria cópia, mas com a imagem da escritora - que jamais será a própria imagem -,
27 LISPECTOR. Entendimento, p.97. In: Para não esquecer.
28 LISPECTOR. Perfil dos seres eleitos, p.98101. In: Para não esquecer.
Quando a moeda literária vale 1,99...
29 LISPECTOR. Por enquanto, p.53-56. In: A via crucis do corpo.
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criada "pensadamente" por Clarice, que se multiplica com os retratos esborroados que sua escrita se encarrega de compor e de apagar simultaneamente. Escrita-arquivo que põe tudo em circulação: textos alheios e pessoais se completam, cópias sobrepõem-se aos modelos, aspas ancoram fragmentos sob suspeita autoral, ficção e não-ficção se misturam formando o texto clariciano que se apresenta burlando seu próprio valor. Dissemos, de início, que obras clássicas da literatura brasileira, como as de Machado de Assis e de José de Alencar, encontram-se, hoje, nas "lojinhas" de 1,99 espalhadas por todos os cantos do país: lá estão elas em meio a quinquilharias de gosto e valor os mais variados possíveis. Na verdade, encontra-se de tudo nesse mercado clandestino, que nem clandestino é, mas que mantém ao olhar cuidadoso (crítico) uma apresentação sob suspeita, ou seja, de impressão de coisa simulada. Nesse sentido, diríamos que é semelhante o contexto no qual Clarice faz referência aos dois escritores: "De vez em quando eu fico meio machadiana. Por falar em Machado de Assis, estou com saudade dele. Parece mentira mas não tenho nenhum livro dele em minha estante. José de Alencar, eu nem me lembro se li alguma coisa" .29 Para o nosso gáudio, a escrita-arquivo da Clarice acaba desmentindo a autora, sobretudo quando constatamos que sua escrita se arquiteta enquanto escrita na função de desarquivar e pôr em circulação fragmentos pessoais, anônimos e alheios sem nenhum "pre-conceito" no mercado clandestino das letras.
Referências bibliográficas CHAUÍ, Marilena et alii. (SeI. e trad.) 2. ed. Benedictus de Spinoza. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores) GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995. LAROUSE CULTURAL. Brasil A/Z. São Paulo: Editora Universo, 1988. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 7. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Transformações do romance na América Latina e no Caribe
Eurídice Figueiredo Universidade Federal Fluminense
Tanto las teorizaciones indigenistas peruanas, como las negristas que se conocieron en la zona antillana coetáneamente ( ... ) como el Primer Congreso Regionalista de Recife, indican el desarrollo de fuerzas autónomas capaces de oponerse a la dominación homogeneizadora de las ciudades dinámicas o de sus calores extranjeros. Ángel Rama
Antonio Candido, em seu artigo "Literatura e subdesenvolvimento", afirma que as literaturas das Américas têm um "vínculo placentário" com as literaturas européias, como galhos de uma mesma árvore, já que não criaram novas "formas literárias", assim como nào foram escritas em novas línguas. O máximo que se pode contabilizar é que foram conseguidos "resultados por vezes originais no plano da realização expressiva". o que não elimina a dependência. Tal fato, segundo ele, nunca foi realmente contestado pelos diferentes nativismos, porque parece a todos uma decorrência natural do processo de formação
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do continente americano na medida em que pertencemos ao mesmo "universo cultural"l da Europa. Sem pretender aprofundar todos os desdobramentos de tal afirmação, este texto propõe uma leitura sobre os processos de transformação do romance na América Latina e no Caribe a partir de vários conceitos: entre-Iugar2 , super-regionalism0 3 , transculturação narrativa 4 , heterogeneidade5 e crioulizaçã0 6 • Silviano Santiago concebe o lugar em que se situa o escritor latino-americano como um espaço intervalar, um entre-lugar, que o coloca entre a Europa e a América: de um lado, uma visão européia que exotiza a América e, de outro lado, a exuberância do país que é por ele vivenciada. Deste confronto corrosivo surge "um produto impuro, mas este é afirmativo, positivo da nacionalidade".7 Na transplantação do gênero narrativo para a América as transformações começam a se fazer notar desde o século XIX mas surgem com maior ímpeto no século XX, sobretudo a partir dos movimentos das vanguardas. Para mapear o trânsito dos conceitos e sua aplicabilidade a diferentes narrativas, vou tomar como exemplos paradigmáticos três países, de três línguas diferentes: o Brasil, o Peru e o Haiti. No início do século, pode-se perceber a simultaneidade de dois indigenismos (no Haiti e no Peru) com outras formas de regionalismos (como o do nordeste brasileiro), os quais buscam inspiração em elementos das culturas populares. O conceito de indigenismo que aparece com as vanguardas, tanto no Peru, com José Carlos Mariátegui, quanto no Haiti, com o precursor Jean Price-Mars, tendo como um de seus expoentes o escritor Jacques Roumain, busca incorporar à literatura as tradições populares. O indigenismo é um projeto nacional que visa a articular o político e o cultural, separados por um vazio, já que as práticas culturais da maioria da população estavam rasuradas por um século de alienação (bovarysme), em que as elites tinham os olhos voltados para as antigas metrópoles.
A revolta indigenista tem suas raízes nesta forma de perversão: a exclusão sistemática da cultura popular dos locais formais do Estado e da totalidade das instituições da sociedade civil no Haiti, desde 1804 até a tragédia da ocupação americana. ( ... ) O crioulo, nossas danças, nossos cantos, os contos, as práticas culinárias (também) e diversos outros costumes foram muito tempo afastados do espaço 8 político em proveito de um outro local de cultura.
'CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: MORENO, César Fernández. América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, p. 343362. 1979. p. 353. SANTIAGO, Silviano. entre-lugar do discurso latino-americano. In: SANTIAGO, Silviano. Uma literatura no trópico. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 11-28. 3 CANDIDO, op. cit.
° 2
RAMA, A. Transculturación narrativa en América Latina. Mexico: Siglo Veintiuno, 1987. POLAR, Antonio Cornejo. Escribir en el aire. Ensayo sobre la heterogeneidad sociocultural en las literaturas andinas. Lima: Ed. Horizonte, 1994. 6
GLISSANT, 1991.
SANTIAGO, Silviano. Liderança e hierarquia em Alencar. In: SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 89-115. p. 110.
7
BUTEAU, Pierre. Une problématique de I' identité. Conjonction. Port-au-Prince (Haitil, n. 198, avril-mai-juin, 1993, p. 11-35,. p. 13. 8
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o indigenismo peruano é um movimento similar pois também ali
MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. Trad. Salvador Obiol de Freitas, Caetano Lagastra, São Paulo: Alfa-Ômega, 1975, p. 253.
9
10 MARIÁTEGUI, op. cit., p. 257.
" RAMA, Angel. Os processos de transculturação na narrativa latino-americana apud AGUIAR, F. VASCONCELOS, S. G. T. (orgs). Ángel Rama. Literatura e cultura na América Latina. Trad. Rachei La Corte dos Santos, Elza Gaspa-rotto, São Paulo: EDUSP, 2001, p. 220. p. 220.
havia uma alienação das elites crioulas, na aristocrática Lima, sede do vice-reinado na época colonial: os índios, menosprezados e isolados na serra, encontravam-se alijados do espaço público e sua cultura era negada. José Carlos Mariátegui toma consciência da situação na Europa. onde permanece de 1919 a 1923. Ele afirma ter partido para o estrangeiro "à procura do segredo de nós mesmos, e não do segredo dos outros" ;. para concluir que é "pelos caminhos universais, ecumênicos, que ( ... ) vamos nos aproximando, cada vez mais, de nós mesmos"!o. Como se pode depreender do confronto destes dois indigenismos, trata-se de uma revalorização e uma reapropriação pela literatura das culturas populares do negro (no Caribe) e do índio (no Peru), em dois locais de heterogeneidade máxima. De maneira implícita ou explícita, pode-se vislumbrar dois tipos de visão utópica concernente à origem: no Peru, Mariátegui constrói uma certa utopia no tempo, no passado, com uma busca identitária baseada na autoctonia, portanto, nas tradições incaicas, enquanto o indigenismo haitiano e os vários negrismos/ negritude procuram uma identificação utópica com um espaço, a África, a terra mater. O escritor de classe média, pertencente às elites letradas, que adere ao indigenismo nos anos 20 e 30, quer resgatar valores culturais dos índios falantes de quéchua (Peru) e dos negros falantes do crioulo e praticantes do vodu (Haiti), apesar de pertencer ao mundo ocidental por sua cultura. Neste entre-lugar em que se situa, o escritor vai se inserir no sistema literário ocidental, com seus modelos de romance, mas buscando dar conta de um mundo heterogêneo, que não pode ser expresso só pelos meios convencionais do romance europeu. Deste conflito nascem formas narrativas bastante inovadoras, fruto de alguns movimentos vanguardistas. Na narrativa que se faz no Haiti ou no Peru, nota-se esta adoção da ótica do oprimido, até porque a influência do marxismo é determinante nesta geração. Cornejo Polar percebe com grande acuidade que o escritor precisa fazer um esforço consciente de linguagem por causa do hiato existente entre ele, oriundo da camada culta, e o povo sobre o qual escreve. Como aponta Ángel Rama, o autor dos anos 1930 "se reintegra na própria comunidade lingüística, falando a partir dela, com uso desembaraçado de seus recursos idiomáticos"!!, ou seja, não cria uma dicotomia entre a linguagem do narrador e a linguagem dos personagens, salpicada de irregularidades, crioulismos, formas dialetais. Entretanto isto não se dá de forma tão rápida e simples em toda a América Latina, pois muitos dos romances regionalistas
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canônicos produzidos nas décadas de 1920 e 1930 ainda têm soluções bastante primárias para marcar a fala dos personagens, que foge à norma lingüística. Bastaria citar Dona Bárbara de Romulo Gallegos (1929), Don Segundo Sombra de Ricardo Güiraldes (1926), La vorágine de José Eustasio Rivera (1924) e Écue-yamba-ó de Alejo Carpentier (1933). José Carlos Mariátegui alertava para a necessidade de se criar um aparato teórico para analisar a literatura latino-americana, que não constituía um sistema de literatura nacional tal como era praticado na Europa, sobretudo em regiões como o Peru, cujo dualismo quéchuaespanhol marcava a sociedade, tornando-a heterogênea. O conceito de heterogeneidade é desenvolvido posteriormente por Antonio Cornejo Polar, que lê alguns textos da literatura peruana através desta categoria de análise, e em especial a obra de José Maria Arguedas. Uma forma de tematizar o heterogêneo é, segundo Cornejo Polar, através do personagem migrante, em geral índio ou mestiço, na literatura andina. No caso do migrante, há um descolamento entre ele e a cidade em que chega; ele não adere totalmente ao novo espaço, já que a memória do outro lugar (outros hábitos, outros elos) está sempre presente. Neste sentido, o sujeito migrante situa-se no espaço do dialogismo, ocupando sempre um lugar aberto e poli valente. A figura que o caracteriza será a da metonímia pois cada elemento evoca um outro todo, um outro lugar; sua condição migrante funciona como locus enunciativo, gerando um uso diferenciado da linguagem pois cada espaço está associado a uma língua diferente. Cornejo Polar assinala que esta heterogeneidade não é específica da literatura andina, apontando, como Rama na citação em epígrafe, para a existência de uma matriz cultural de que surgem "sistemas literários como a gauchesca, o indigenismo, o negrismo, o romance do nordeste brasileiro, o realismo mágico, o testemunho". 12 Gouverneurs de la rosée de Jacques Roumain (1944) é um romance que se passa na zona rural, com a terra ressecada e a comunidade dividida por conflitos de família; a cidade está distante, como local de venda dos parcos recursos e sobretudo como local perigoso. Manuel, o personagem migrante, encontra-se em seu caminho de volta ao Haiti, depois de ter passado 15 anos nos canaviais de Cuba. Sua experiência passada emerge através da memória: solitário, estrangeiro, o desejo de volta ao lar o impulsiona, mesmo correndo o risco de chegar e ficar decepcionado diante da cruel realidade - o que já era ruim está ainda pior por causa da seca. Manuel, com novas idéias aprendidas em sua experiência de exílio e vida sindical, vai conscientizar os seus companheiros e, como um novo Messias, será imolado, lutando
12 POLAR, Antonio Cornejo. O condor voa; literatura e cultura latino americanas. Org. Mario Vai dez. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, p. 146.
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13 ROUMAIN, Jacques. Gouverneurs de la rosée. Paris: Les Editeurs Réunis, 1946. p. 13.
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para unir os camponeses. Esta vivência em outro lugar, em outra língua, também se enuncia na linguagem do romance através da inclusão de termos em espanhol, que dão conta da familiaridade que ele tem com a língua falada durante 15 anos (compadre, huelga, qué pasa) e também do preconceito contra os haitianos: Haitiano de mierda, Matar a un Haitiano o a un perro é a mesma coisa. Manuel enfrenta, como todos os oprimidos do mundo, a autoridade policial, que representa o governo; enfrenta também a passividade, o fatalismo e as divisões internas dos camponeses. O romance de Jacques Roumain tem algumas características de grande parte dos romances indigenistas e regionalistas, que procuram mostrar de forma crítica a situação social dos pobres. Para isto, a paisagem tem uma funcionalidade: não se trata nem de uma moldura romântica, nem de uma relação positivista unívoca entre espaço físico e tipo social, à maneira dos naturalistas. Tanto o espaço físico quanto o social são marcados pela heterogeneidade, vistos pela ótica privilegiada do personagem, um sujeito consciente e crítico, marginal porque não totalmente integrado ao sistema. Não se trata de um romance regional (não há uma região com características próprias) mas de um romance rural e social, com forte apelo utópico, sem ser tão programático quanto os romances de Jorge Amado da primeira fase. Ao integrar o vodu, há uma superação do realismo, sem entretanto chegar ao realismo maravilhoso, que surgirá um pouco mais tarde. Este romance de fundação vai colocar as balizas da literatura haitiana, suscitando todo o debate sobre a irrupção do crioulo ou do francês crioulizado no texto literário, debate que prossegue até os dias de hoje, tanto no Haiti quanto nas Pequenas Antilhas (Martinica e Guadalupe). No entanto, o uso do crioulo no romance é episódico: pequenas expressões que surgem, muitas delas com notas explicativas de pé-de-página já que se supõe que o leitor (francês) não as compreenda. O francês crioulizado aparece de forma paródica, imitando o camponês que tenta falar français-français para impressionar a namorada, tornando-se risível. O narrador incorpora alguns elementos, evitando assim o hiato entre a linguagem do narrador e a linguagem dos personagens. Assumindo a voz do personagem em discurso indireto livre, o narrador de Roumain permite a emergência de um francês contaminado pelo crioulo: elle appelle le bon Dieu. Mais c'est inutile, parce qu 'il y a si tellement beaucoup de pauvres créatures qui helent le bon Dieu de fouf leur courage que ça fait un grand bruit ennuyant 13 • Pode-se perceber aí a hipérbole do falar popular (si tellement beaucoup). como aponta Bakhtine na análise do realismo grotesco de Rabelais. Pode-se também notar o deslizamento semântico
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no uso do verbo héler. Estes procedimentos serão desenvolvidos por outros escritores do Caribe francófono, criando-se uma nova linguagem, porosa à contribuição do universo crioulo. O desejo de inscrever o elemento popular na literatura também se dá através da inserção do vodu, considerado até então uma superstição, uma magia primitiva, e que é alçado à condição de religião pelos indigenistas. O autor insere os cantos afro-haitianos na descrição da cerimônia de vodu, da qual participa toda a comunidade. Associando a lógica racional ocidental, com ênfase no pensamento marxista, o autor admite a lógica religiosa do vodu, criando um personagem híbrido, que tem consciência da luta de classes mas que não despreza a religião de seus ancestrais. Do ponto de vista racial, Haiti e Brasil têm situações diferentes porém análogas. No Haiti, depois da revolução pela independência empreendida por negros (1804), e de um curto período de tempo em que eles ficaram à frente do governo, os mulatos, que representam a elite econômica, assumem o poder político. A alienação cultural, representada pelo culto à França, persiste ao longo do século XIX até o momento das vanguardas. O Brasil, com suas elites pseudo-brancas ou quasebrancas, sofre da mesma francofilia que o restante da América Latina e do Caribe. A vanguarda dos anos 1920 também significou uma ruptura estética, com a apropriação de uma linguagem mais simples e mais popular, assim como uma reavaliação crítica, muitas vezes paródica, da nacionalidade, já desenhada pelos românticos. O mentor deste movimento, Oswald de Andrade, criador do Manifesto Antropófago (1928), também redescobre sua brasilidade em Paris, como afirma Paulo Prado: Oswald de Andrade, "numa viagem a Paris, do alto da Place Clichy umbigo do mundo - descobriu deslumbrado a sua própria terra. A volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia" .14 À Semana de Arte Moderna (1922), realizada em São Paulo, detonador do modernismo brasileiro, com suas revistas, manifestos e obras canônicas, se segue como oposição mas também como complemento, o Congresso Regionalista de Recife (1926), em torno de Gilberto Freyre. Embora a redação e a publicação do Manifesto Regionalista sejam tardias, as principais idéias aí presentes foram apresentadas neste congresso, conforme se pode constatar pelas notícias publicadas na imprensa da época. Gilberto Freyre, que acabava de chegar dos Estados Unidos, onde fora fazer seu doutorado, apesar de reivindicar as tradições nordestinas, está afinado com as novas idéias das ciências sociais, e igualmente com as rupturas estéticas das vanguardas. José Lins do Rego é o romancista regionalista mais próximo de Freyre e o mais prolífico também, tendo escrito, além do ciclo canavieiro, um ciclo do sertão.
14 PRADO, Paulo apud COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959. vol. 1, tomo 1, p. 461.
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RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 30. 15
16
Idem, ibidem, p. 33.
17
Idem, ibidem, p. 34.
18
Idem, ibidem, p. 49.
lO
Idem, ibidem, p. 50.
20
Idem, ibidem, p. 82.
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Graciliano Ramos escreveu um único romance regionalista, Vidas secas (1938), mas, para a leitura que este texto propõe, é o mais pertinente devido ao tratamento dado à linguagem e à questão do sujeito migrante. O personagem deste romance, Fabiano, é o sertanejo nordestino expulso pela seca, que está constantemente inferiorizado, seja no campo, explorado pelo patrão. seja na cidade, humilhado pelo soldado amarelo. Constrangido em suas roupas "de cidade", temendo ser enganado por todos, Fabiano tem dois movimentos: se bebe uma pinga, liberta-se e acaba arrumando encrenca; se não bebe, fica acabrunhado pela opressão. Apesar de se comparar aos animais, de se considerar um deles, Fabiano tem sua humanidade realçada pela consciência que tem de suas carências (não sabe falar, não sabe escrever nem fazer comas). Tem respeito e admiração por seu Tomás da bolandeira, que lia livros e sabia falar bonito. O grande feito de Graciliano Ramos foi ter dado voz, ainda que de forma indireta, a um personagem que não sabe falar. Seus pensamentos são filtrados pelo narrador, que assume o papel de Fabiano e dos outros membros da família, inclusive da cachorra Baleia. Graciliano não faz concessões a uma língua desleixada pretensamente popular; ao contrário, é um clássico na exigência de uma linguagem concisa, tem um português depurado e dá conta do mundo sertanejo sobretudo através do uso de um léxico popular, que, lido no sul do país, é referencializado como linguagem nordestina, como por exemplo: "Por mor de uma peste daquela, maltratava-se um pai de família"l5; "Quem não ficaria azuretado com semelhante despropósito?"l6; "E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e da cachorra Baleia"l7; "Este capeta anda leso"l8; "Trepado na ribanceira, o coração aos baques, o menino esperava"l9; "Torcia-se para satisfazer uma precisão"20. No entanto, esta linguagem nordestina não parece se descolar da linguagem culta do narrador; ao contrário, o narrador, adotando a ótica do retirante, entrando nele para falar com/por ele, tem toda sua linguagem impregnada pelo mundo sertanejo. Não se trata mais de uma dicotomia entre narrador culto e personagem inculto, falando linguagens diferentes, nem da adoção um pouco ingênua da fala popular usada por naturalistas do século XIX, como Oliveira Paiva, autor de Dona Guidinha do Poço (1891), que não obstante usa procedimentos engenhosos para assimilar a linguagem popular na trama da voz narrativa. Graciliano se destaca no panorama brasileiro. com uma linguagem conscientemente modulada pelo contexto nordestino. fugindo ao estilo mais simples dos contadores de histórias como José Lins do Rego e Jorge Amado. Ao criar um romance em quadros, nos quais muitas vezes se adota a perspectiva de um personagem (Fabiano, o menino mais velho, o menino mais novo, Baleia) o narrador se funde, amalgamado-se a
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seus personagens. Como já foi destacado pela crítica, devido a esta estruturação do foco narrativo, o romance de Graciliano se aproxima da narrativa norte-americana dos anos 1920. Há diferenças notáveis, entretanto: Faulkner em Enquanto agonizo, por exemplo, dá a palavra a cada um dos personagens, abolindo totalmente o narrador onisciente, procedimento que será recorrente na literatura a partir de Faulkner. Graciliano não faz exatamente isso porque a voz narrativa se funde na voz dos personagens, o que demonstra que se está longe do narrador onisciente tradicional. A arquitetura cíclica de Vidas secas encontra correspondência na temática do ciclo da seca e das chuvas, como demonstra o crítico americano Frederick G. Williams: cada capítulo espelha um outro: o I é correlato ao XIII, o 11 ao XII, o 111 ao XI e assim por diante, sendo que o centro (cap. VII) é ocupado pelas chuvas21 • O par raça/classe, tal como ele aparece neste romance, é significativo da situação social do Brasil. Fabiano é descrito como sendo ruivo, de olhos azuis mas paradoxalmente diz que é um "cabra", ou seja, um mulato, que só faz receber ordens dos "brancos". Pode-se constatar assim que a categoria de raça/cor não é definidora da pertença social: é branco quem é rico e tem poder, todos os demais são "cabras". Numa sociedade heterogênea como a brasileira, cuja história é sobredeterminada pela escravidão, o patrão é branco, mesmo se, em termos puramente genéticos, se tratar de um mestiço. O personagem Amleto de Viva o povo brasileiro (1984) de João Ubaldo Ribeiro é um bom exemplo do chamado processo de embranquecimento da sociedade brasileira: mulato, filho de mãe negra (que ele esconde de sua genealogia), à medida que se enriquece vai-se tornando branco, até ser visto, por seus descendentes, que consultam documentos escritos e fotografias, como um verdadeiro inglês. A questão da linguagem no caso brasileiro é diferente da situação nas Antilhas Francesas e no Peru, países onde existe o fenômeno da diglossia, ou seja, a coexistência de duas línguas, uma ágrafa, outra escrita, com estatutos distintos: a escrita, ocidental, é considerada superior, enquanto a outra tem um estatuto subalterno, embora seja a língua da intimidade, da família, portanto das emoções mais vivas. No Brasil, como em outros países hispano-americanos, há formas populares e dialetais, que fogem ao padrão culto da língua, que foram aproveitados por certos escritores regionalistas de uma maneira por vezes um pouco simplista. O indigenismo vai evoluir para uma tomada de consciência da nacionalidade, reatando, no Peru, com tradições incaicas dos tempos coloniais e no Haiti com as tradições africanas ou de origem africana. No Brasil, o "caráter nacional" da literatura já se encontrava mais bem definido, desde os românticos indianistas do século XIX; no momento
WILLIAMS, F. G. apud Almeida, J. M. G. de. A tradição regionalista no romance brasileiro. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981, p. 248.
21
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22 CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: Moreno, C. F. América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, p. 343-362, 1979. p. 361.
CANDIDO, op. cit. p. 361.
23
RAMA apud AGUIAR, F. VASCONCELOS, S. G. T. (orgs). Ángel Rama. Literatura e cultura na América Latina. Trad. Rachei La Corte dos Santos, Elza Gasparotto, São Paulo: EDUSP, 2001. p. 219. 24
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das vanguardas (modernismo brasileiro), retoma-se o diálogo crítico com esses ideais ··nacionais". seja através de seus representantes mais urbanos e cosmopolitas, como Oswald de Andrade, em São Paulo, seja através do regionalismo nordestino, concebido por Gilberto Freyre. Interessa agora detectar as características que apontam transformações do romance regionalista dos anos 1930 (ainda que o romance de Roumain sejajá da década seguinte) para outras formas narrativas subseqüentes. Não há uma ruptura como houve no momento das vanguardas; há, antes, uma lenta evolução, com o surgimento, segundo Antonio Candido, de "uma florada novelística marcada pelo refinamento técnico, graças ao qual as regiões se transfiguram e os seus contornos humanos se subvertem, levando os traços antes pitorescos a se descamarem e adquirirem universalidade""". Para designar esta nova forma de narrativa, que descarta o sentimentalismo, se nutre de elementos não-realistas e de técnicas antinaturalistas, "como o monólogo interior, a visão simultânea, o escorço, a elipse"23, ele prefere falar de super-regionalismo, colocando como exemplos maiores Guimarães Rosa e Juan Rulfo. Os dois escritores citados são os exemplos maiores da narrativa transcultural na análise de Ángel Rama, cujo estudo se concentra, entretanto, na obra de José Maria Arguedas. Rama constata que, ao contrário dos regionalistas, os transculturadores registram "a perda do uso das linguagens dialetais, rurais ou urbanas, e, claro, das línguas indígenas, e mesmo no campo lexicográfico abandonam muitos termos com os quais os 'crioulistas' salpicavam seus escritos, limitando-se às palavras de uso corrente que designam objetos concretos ou aos neologismos amplamente aceitos. Compensam isso com uma ampliação significativa do campo semântico regional e da ordem sintática"24. Assim estes escritores moldam uma linguagem especial, artificial até certo ponto, em que se usa o sistema da língua para transgredi-la, com formas sintáticas peculiares, em alguns casos pela imbricação de duas línguas (o quéchua e o espanhol, no caso de Arguedas). ~o caso brasileiro, Rama considera tanto Graciliano quanto Guimarães Rosa como transculturadores, apesar de serem de gerações literárias diferentes: aquele publica seu primeiro romance, Caetés, em 1933, enquanto que este só publica seu primeiro livro (de contos), Sagarana, em 19'+6. Realmente ambos têm uma linguagem que assume a dicção regional. com a diferença que Graciliano se aproxima do ideal clássico da concisão ao passo que Guimarães tem um estilo barroquizante. Além disso, pode-se dizer que a linguagem de Guimarães é mais artificial, fruto de sua criação e. neste sentido, original e único.
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Os personagens de Guimarães são os cangaceiros, os vaqueiros, as beatas, os loucos, os que fazem pacto com o diabo, em suma, elementos populares dos sertões das Gerais, todos mais ou menos à margem da sociedade urbana e capitalista, embora haja também os fazendeiros, cujos princípios éticos não se distinguem muito dos dos peões e jagunços e cuja linguagem também é similar. A cidade (mais uma vila que uma cidade) está referida, inclusive às vezes a própria cidade grande (São Paulo), mas esta só aparece como um espaço de fora do palco da narrativa. As viagens pelos sertões são permeadas de lendas, mitos, histórias fantásticas. O barroco da narrativa se caracteriza por esse amálgama de elementos heteróclitos, saídos de diferentes culturas, de diferentes tradições. José Maria Arguedas, em suas várias narrativas, todas mais ou menos autobiográficas, coloca-se também como um viajante, um migrante, que vê o mundo dos pueblos por que passa sempre a partir da margem. Como abordar uma vila sem conhecer ninguém, sem referências na geografia local? Em Los rios profundos (publicado em 1958), pode-se detectar uma necessidade do narrador-criança de inventariar todo o espaço físico, nomeando as árvores, descrevendo os rios, perscrutando as montanhas, em busca de uma comunhão com a paisagem. O pai, para fazer o reconhecimento do terreno ao chegar numa vila, procura os músicos locais, ou seja, para identificar um pueblo é preciso conhecer as canções que os habitantes cantam. "A mi padre le gustaba oír huaynos; no sabía cantar, bailaba mal, pero recordaba a qué pueblo, a qué comunidad, a qué valle pertenecía talo cual canto"25. Adotando a cosmovisão das comunidades indígenas, conhecendo tanto o castelhano quanto o quéchua, Arguedas reelabora uma linguagem especial a partir da incorporação de cantos e contos indígenas. Rama encontra três dicções na narrativa de Arguedas, que se harmonizam de modo gradativo: 1. A narração realista do narrador; 2. O recitativo dos diálogos dos índios, numa língua artificial forjada com o espanhol, usada tanto nos diálogos como na própria narração; 3. A canção, citada na narrativa, e que representaria o ponto mais alto desta tonalidade, arrematando o conjunto e dandolhe um aspecto de "ópera fabulosa"26. Ángel Rama considera que Arguedas se apropria muito bem dos cantos mas não dos contos populares, creditando este fracasso à dificuldade em misturar dois gêneros tão diferentes, já que a narrativa ocidental resiste a essa incorporação, embora Rama reconheça que não haja "incompatibilidade essencial"27. É justamente esta a proposta dos romancistas antilhanos francófonos, que não só citam os contos
25 ARGUEDAS, J. M. Los rios profundos. In: ARGUEDAS, J. M. Un mundo de monstruos y de fuego. Lima: Fondo de Cultura Económica, 1993. p. 87.
26
RAMA, op. cit., p. 216.
27
Idem, ibidem, p. 217.
Transformações do romance na América Latina e no Caribe
"GLISSANT, E. Le discours antillais. Paris: Seuil, 1981, p. 237.
29
GLISSANT, E. lntroduction à une poétique du diverso Paris: Gallimard, 1996, p.
121.
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folclóricos da mesma maneira que Arguedas cita os cantos indígenas, mas também tentam adotar uma rítmica da linguagem oral própria dos contadores de histórias. Edouard Glissant chama de crioulização este processo de transformação da linguagem na narrativa antilhana, que se nutre dos contos crioulos e que adota a economia da língua crioula no interior da língua francesa. "É preciso abrir caminho através da língua em direção de uma linguagem que não reside talvez na lógica interna dessa língua. A poética forçada nasce da consciência dessa oposição entre uma língua de que se serve e uma linguagem da qual se precisa"28. Se no romance de Roumain ainda se inicia este processo de crioulização, os romances do próprio Glissant e de outros antilhanos, como Patrick Chamoiseau e Raphael Confiant, fazem uma transmutação formidável do romance ocidental ao mesmo tempo que transgridem a língua francesa, através de procedimentos que se poderiam chamar de crioulismos, tais como: uso de neologismos (criados pelos meios tradicionais de sufixação ou prefixação ou, no caso de nomes compostos, pela justaposição de dois substantivos existentes); emprego de arcaísmos que subsistiam no crioulo; deslizamentos semânticos (com o emprego de uma palavra francesa com o sentido que ela tem em crioulo). A crioulização, entretanto, não se restringe a essas transgressões:
Para mim a crioulização não é o crioulismo; é, por exemplo, engendrar uma linguagem que teça as poéticas, talvez opostas, da língua crioula e da língua francesa. O que eu chamo de poética? O contador de histórias crioulo se serve de procedimentos que não pertencem ao espírito da língua francesa, que lhe são mesmo opostos: os procedimentos da repetição, reduplicação, insistência, circularidade. As práticas da listagem (... ) que esboço em muitos de meus textos, essas listas que tentam esgotar o real não numa fórmula mas numa acumulação, a acumulação precisamente como procedimento retórico, tudo isso me parece muito mais importante do ponto de vista da definição de uma linguagem nm'a, mas muito menos visível. ( ... ) A acumulação de parênteses, por exemplo, ou de incisos, que é lima técnica, 29 não interl'ém de maneira decisiva no discurso francês. Edouard Glissant considera que esta é a forma de se fugir do que ele chama o "universalismo desenraizado", ou seja, aquele Universal imposto pelo Ocidente. que não corresponde às necessidades dos povos colonizados. Para atingir a universalidade é preciso (d)escrever o seu mundo específico, pois "só há universalidade quando,
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do recinto particular, a voz profunda grita"30. Nestes termos ele propõe a superação da velha dicotomia entre universalismo (modernidade) e regionalismo (arcaísmo) pois na América não há como não ser moderno. Sem cair numa forma de cosmopolitismo alienado e alienante, mas incorporando todas as contribuições estéticas e filosóficas modernas, o escritor latino-americano e caribenho pode falar de sua região, sem usar fórmulas envelhecidas que dão uma visão exótica e folclórica. Silviano Santiago está muito próximo da reflexão de Glissant ao sugerir uma diferenciação entre a universalidade como "um jogo colonizador, em que se consegue pouco a pouco a uniformização ocidental do mundo", e um outro tipo de universalidade, "um jogo diferencial em que as culturas, mesmo as em situação econômica inferior, se exercitam dentro de um espaço maior, para que se acentuem os choques das ações de dominação e das reações de dominados".3' Assim, o que se pode depreender deste percurso é a coincidência de algumas análises destes críticos, que chegaram às mesmas conclusões sem conhecer o trabalho uns dos outros. O romance evoluiu na América Latina e no Caribe, atingindo níveis bastante consideráveis de transformação em relação ao cânone ocidental. O que vale ressaltar é que as diferentes literaturas nacionais foram-se consolidando, criando um sistema, uma tradição nacional, como Cândido já apontava na Formação da literatura brasileira. Já estamos longe da "influência" das literaturas européias sobre as periféricas. A literatura hispano-americana do boom atingiu muito mais o mercado internacional que a literatura brasileira, mas é certo que também ela foi lida e absorvida por muitos escritores que estão produzindo hoje, mormente na África de língua portuguesa. Como assinala Cândido, uma maneira de superar a dependência é a "causalidade interna"32, ou seja, os escritores brasileiros dos anos 1950 são leitores de seus predecessores nacionais e não só dos estrangeiros. Pode-se estender esta consideração aos dois outros universos lingüísticos: tanto os hispano-americanos quanto os caribenhos francófonos são leitores dos autores de sua área, continuadores de seus predecessores, num movimento de "causalidade interna". Os conceitos de super-regionalismo (Candido), transculturação narrativa (Rama) e crioulização (Glissant) dão conta de processos semelhantes, que buscam expressar as transformações que se operam no romance ocidental transplantado na América Latina e no Caribe, ao se apropriar de elementos populares de cultura, sobretudo ao transgredir as línguas ocidentais pelo contato com línguas indígenas ou crioulos.
30
GLISSANT, E. Poétique de la Relation. Paris: Gallimard, 1990, p. 88.
SANTIAGO, Silviano. Apesar de dependente, universal. In: SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. Rio de J aneiro: Paz e Terra, 1982, p. 89-115. p. 23. 31
CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: Moreno, C. F. América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva 1979, p. 343-362. p. 354.
32
1 CARPEAUX, Olto Maria. Períodos da história literária brasileira. In: CARPEAUX, Olto Maria. Obras reunidas. Rio de Janeiro: UniverCidadel Topbooks, 1999. p. 727.
A solução do compromisso proposta no volume III de A literatura no Brasil, dirigida por Afrânio Coutinho, de substituir o rótulo de Tristão de Athayde pelos de "sincretismo", "penumbrismo" e "impressionismo" só veio colocar mais pedras no sapato periodológico. Cf. PAES, José Carlos. Gregos e baianos. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 64.
Resenhando O momento literário, de João do Rio
Gilda Vilela Brandão LEM - Universidade Federal de Alagoas
2
Mantemos o termo "inquérito", utilizado à época. Porém nada nos impede de empregar, também, o termo "enquete" ou, ainda, o termo moderno "entrevista". Para Magalhães Jr., os inquéritos de João do Rio foram publicados n' A Gazeta de Notícias, em 1905. A edição contratada pela Garnier, em 21 de junho de 1907, aparece sem indicação de data, talvez porque o jornalista não quisesse evidenciar a defasagem entre sua publicação no jornal e a impressão em 3
Poucos períodos da historiografia literária brasileira parecem tão enigmáticos, irregulares e desiguais quanto os dois primeiros decênios de nosso século, em que o olhar crítico parece se perder em meio a certas marcas estilísticas prenunciadoras do Modernismo e a poéticas vinculadas a estéticas do passado (o Parnasianismo e o Simbolismo). Se de um lado, tal complexidade demonstra que o abandono daquelas formas literárias não ocorreu de modo imediato - pelo contrário, alongou-se aproximadamente por cinco décadas, em etapas marcadas por crises de idéias e de sentimentos, de outro, o acúmulo e a diversidade de idéias literárias implicaram o confinamento do período ao termo generalizante "pré-modernismo", cunhado em torno de 1930 por Tristão de Athayde, "cômodo conceito coletivo, lembra Quo Maria Carpeaux 1, em que cabem Afonso Arinos e Graça Aranha assim como Lima Barreto e Monteiro Lobato", o qual, acrescido de outras denominações, sugeridas por Afrânio Coutinho, só viria - é José Carlos Paes quem afirma - colocar mais pedras no sapato periodológico de nossa historiografia. 2 Porém é sobre essa crise de escolhas, que é também uma crise de valores culturais, que João do Rio irá se debruçar. quando organiza, sob a forma de um inquérito~, o \"olume O momento literário, livro que traz, tanto no título quanto na técnica composicional empregada (a entrevista literária). a moti\ação interna qUe o gerou.
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Em primeiro lugar aponta o livro para a matéria-prima com que aquele jornalista iniciante (tinha, à época, vinte e três anos e apenas um livro de crônicas publicado, As religiões no Ri0 4 ) vai trabalhar: informações extraídas de um círculo de escritores (trinta e seis) viabilizadas ora por escrito ora verbalmente, fora, portanto, da percepção da história literária à qual estamos habituados. Em segundo lugar traz à luz uma constelação de idéias que possuem um inestimável valor documental, já que, nelas, se encontra um certo número de posicionamentos acerca do lugar da literatura brasileira naquele conturbado período. Esse caráter instântaneo e de valor documental coadunava-se com a personalidade apressada 5 do jornalista que se deslocava da redação d' A Gazeta de Notícias para outros pontos da cidade ("Há - dizia a Júlia de Almeida - na fornalha [do Rio de Janeiro] uma outra fornalha que me espera - o jornal"6), à cata das respostas a seu questionário, por ele próprio caracterizado como uma curiosidade de verão. Não se busque, pois, aí, adverte ao leitor na seção intitulada "Antes", uma certeza. Porém algo que é passageiro, momentâneo, em estado de suspensão. - Uma curiosidade que desaparecerá como os figos e as mangas? - Não ria. Todo o povo razoavelmente bem constituído tem duas curiosidades intermitentes e de ordem extraprática: saber em que deuses crêem seus profetas e o que realmente pensam. Essas curiosidades aparecem quanda a Câmara fecha. A imprensa que fala de toda a gente, só não falou dos literatos. Entretanto nós somos um país de poetas! ( ... ) Seria interessante fixar o que pensam ou que não pensam os caros ídolos de nossa arte. (p. 6) Em função dessa demanda explícita, e nos passos de Jules Huret7, resolve, então, indagar a todos: "parnasianos, líricos, decadentes, clássicos, naturistas, sociológos, ocultistas, anarquistas, impassíveis, humoristas, simbolistas, nefelibatas" (p.7), sobre as suas preferências literárias, sobre a arte que praticavam e, desse modo, levá-los a manifestar idéias claras sobre seu tempo. Enfim, fazer a história do "momento literário", como ele próprio confessa a um interlocutor anônimoS, é o problema que, no final das contas, o apaixona. Um sentimento de qualquer natureza impele-o a se jogar, de corpo e alma, nessa tarefa. Chegar, através daquele momento,
livro. V. JR., Magalhães. A vida vertiginosa de João do Rio. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p. 46. Segundo João Carlos Rodrigues, foram publicados na Gazeta vinte e oito entrevistas e nove foram acrescentadas ao livro, perfazendo um total de trinta e sete. RODRIGUES, João Carlos. João do Rio: uma biografia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 55. De nossa edição, não consta a entrevista individual de Filinto de Almeida, esposo de Júlia de Almeida. Esse livro de crônicas é um exemplário dos cultos africanos e de suas manifestações na vida urbana. 'Segundo João Carlos Rodrigues, recebeu o seguinte parecer da Comissão de História do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: "Não é um livro, nem o autor se propôs a fazê-lo, de alta indagação crítica ou histórica sobre credos e teologia ( ... ). mas um apanhado em flagrante de várias crenças confessionais existentes nesta Capital, nas suas práticas culturais. RODRIGUES, op. cit,. p. 52.
4
5 Consubstancializado sobretudo na crônica "A pressa de acabar", o epíteto deve ser interpretado no âmbito da experiência do repórter e do cronista, ávido em captar os efeitos produzidos pela dinâmica da vida moderna. RIO, João do. Cinematógrafo. Crônicas Cariocas. Porto: Chardron, 1909, p. 383-390. p. 6.
Resenhando O momento literário, de João do Rio
RIO, João do. O momento literário Rio de Janeiro: Edições do Departamento Nacional do Livro/Fundação biblioteca Nacional, 1994, p. 37. A fim de evitar remissões exaustivas à obra, em todas as citações indicaremos apenas o número da página desta edição. 7 Em torno de 1891, Jules Huret (a quem, conforme assegura Antoine Adam, Mallarmé confiaria a célebre boutade "le monde est fait pour aboutir à un beau livre"), inaugurava, no "L' Echo de Paris", a moda dos inquéritos literários. Diante de um naturalismo agonizante, diante do silêncio de Zola (os 31 volumes de Les R ougon -M a cq ua rt, histoire naturelle et sociale d' une famille sous le Second Empire foram escritos entre 1871-1891), Jules Huret inquiririu escritores e artistas sobre os rumos da literatura em seu país. Cf. ADAM, Antoine. Histoire de la Littérature Française. Paris, Larousse, 1972, v.2, p.133 e 148.
6
João do Rio cria um interlocutor virtual que tanto pode ser Medeiros e Albuquerque, a quem dedica o livro, quanto ele próprio, o que vem a ser uma citação de si mesmo. Para Alfredo Bosi, Medeiros foi um "materialista e republicano cuja função histórica foi divulgar algumas novidades da ciência européia do princípio do século. Dado a resenhas literárias, revelou-se 8
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a uma cartografia do pensamento literário de seu tempo era, de fato, sua intenção. Uma vaga conjectura de seu espírito.
2 Examinemos as cinco questões formuladas (as perguntas foram as mesmas para todos), vendo-as a partir da indagação inicial anteriormente assinalada, central para o entendimento da obra. Observe-se que se elas podem parecer, à primeira vista, de uma banalidade sem par, tinham, à época, a virtude de uma patente atualidade. 1. Para sua fórmação literária, quais os autores que mais contribuíram? 2. Das suas obras. qual a que prefere? Especificando mais ainda: quais, dentre os seus trabalhos, as cenas ou capítulos, quais os contos, quais as poesias que prefere? 3. Lembrando, separadamente, a prosa e a poesia contemporâneas, parece-lhe que, no momento atual, no Brasil, atravessamos um período estacionário, há novas escolas (romance social, poesia de ação etc.) ou há luta entre antigas e modernas? Neste último caso, quais são elas? Quais os escritores que as representam? Qual a que julga predestinada a predominar? 4. O desenvolvimento dos Centros Literários dos Estados tenderá a criar literaturas à parte? 5. O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a literatura? A primeira e a segunda (das quais a terceira é o rescaldo) apresentam o mesmo foco de interesse. Totalmente distintas uma da outra, em uma primeira observação, revelam, contudo, o olho clínico e a perspicácia do permanente questionador de idéias que foi João do Rio. No que cabe, principalmente, aos poetas e aos ficcionistas e não àqueles que, iniciando-se na prosa ou na poesia, logo adentrariam a crítica literária, os estudos da língua e diversas áreas da cultura nacional (Clóvis Beviláqua, Nestor Vítor, Sílvio Romero, João Ribeiro, Augusto Franco, Rodrigo Otávio, Afonso Celso, Afrânio Peixoto [Júlio Afrânio], dentre outros), trata-se de saber se criação literária e formação literária (expressão que para o padre Severiano de Resende "parece querer indicar pretensiosamente o que quer que seja que se assemelhe verbi gratia a [sic] colação de grau", p.133), formam um par indissolúvel. Mediante a formação literária Uulgava João do Rio). poder-se-ia chegar a um jogo de combinações onde seria possível discernir, no processo de criação, certas afinidades com as obras lidas. Recai-se, alterando-o, no velho adágio: dize-me o que tu lês [com quem andas] e eu te direi quem és.
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A terceira contém as últimas peças do quebra-cabeças, que, enfim, reunidas, configurariam o estado presente e o futuro de nossa literatura. Pois mostra, em seus vários desdobramentos e nos closes que encerra, as diferentes querelas internas (transpostas para a vida literária nas conhecidas coteries) que - uma vez clarificadas nas respostas - poderiam indicar a(s) tendência(s) com maior valor de prestígio, que viriam predominar. Com isso, vai incidir na luta pelo campo literário - ferramenta conceitual rica em conseqüências para Pierre Bourdieu e sobre a qual paira, aliás, um ar fin de siecle tipicamente francês 9 • Para José Veríssimo, no entanto, que considerara a feitura do livro como uma simples veiculação do nome e da imagem dos escritores, 10 a questão não é merecedora de interesse crítico, opinião da qual, mais próximo de nós, discorda Qtto Maria Carpeaux.
Não há certamente maior puerilidade que esta nossa preocupação de escolas literárias que no fim de contas nos levaria a estabelecer um padrão único para a obra de arte, contra o que protestam não só o bom senso mas a mesma história do espírito humano. 11 Não lamento a existência de partidos literários, cuja luta incessante não significa a anarquia: a estagnação dessas lutas de cafés, de livrarias e de revistas, o apaziguamento da letras teria o fim vergonhoso de todos os apaziguamentos. Não, o que lamento são certos processos de propaganda 12 intelectual. Passando pelo desejo de Franklin Távora (1842-1888) de que "a literatura de sua região se diferenciasse [da literatura do Sul] sobre uma base de realidade local"l3, a quarta pergunta contém a mesma dimensão "oracular" da anterior. Refere-se aos cenáculos e aos grêmios literários em franca proliferação do norte ao sul do País, provocando o receio - hoje, anacrônico - de que uma literatura, que até então se mantivera coesa, pudesse ser abalada, no dizer de Medeiros e Albuquerque, por "[efêmeros] grupinhos estaduais que são forçados ao elogio mútuo e exagerado pela estrutura do meio e pela dificuldade de serem conhecidos no resto do País" (p.69), ou, ainda, como sugere João Luso, por "esses brilhantes rapazes [de Curitiba] [que] se fizeram esoteristas, simbolistas, cabalistas, impossibilistas" (p.132). A quinta, da qual não trataremos neste trabalho, focaliza as potencialidades do jornal enquanto canal de divulgação da literatura, ante vindo o advento da crônica como gênero literário a ser consignado
entre sensualão e parnasiano, pejorativamente 'mundano' e acadêmico, a ponto de chamar Cruz e Sousa de 'metrificador sonoro e ôco'''. BOSI, Alfredo. O pré-modernismo. São Paulo: Cultrix, MCMLXIX, p. 144. 9 Com uma técnica em que está sempre presente um certo ar de galhofa, Paul Guth afirma que "na liquidação geral do fim do século acotovelam-se os espíritos os mais heteróclitos, em um torvelinho semelhante àquele das mulheres nas lojas de soldos, no final da estação; (00')' Dans la liquidation générale de la fin-de-siecle se coudoient les esprits les plus hétéroclites, dans un tohu-bohu pareil à celui des femmes aux magasins de soldes, en fin de saison". OUTR, Paul. Histoire de la littérature jrançaise. Paris: Fayard, 1972, p. 716. Tradução nossa. Para Pierre Bourdieu, a luta pelo campo literário remete às práticas e aos discursos literários forjados na pluralidade de ideologias antagônicas. BOURDIEU, Pierre. "Le Champ littéraire" Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Paris: Editions de Minuit, setembro 1991, n. 89, pp.4-46. 10 Na seção in ti tulada "Os que não responderam", João do Rio escreve: "José Veríssimo, o conhecido crítico, não gostou do inquérito e numa roda chegou a dizer que era esse o processo de fazer livro à custa dos outros". RIO, João do. Op. cit., p. 290.
Resenhando O momento literário, de João do Rio
11 Apud LINS, Álvaro. "Um crítico literário: atualidade 50 anos depois". In: LINS, Álvaro. Jornal de Crítica. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1968, p. 110.
CARPEAUX, Otto Maria. Op. cit, p. 458.
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no espaço fronteiriço entre ficção e não-ficção, status com que João do Rio certamente sonhava e que só seria legitimado décadas mais tarde.
3
12
CANDIDO, Antonio & CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura brasileira: do Romantismo ao Simbolismo: São Paulo: Difel, 1976, p. 74. 13
14 A vasta e heterogênea produção simbolista foi alvo de acurado estudo de Cassiana Lacerda Carollo. A autora insere Cavaleiro do luar, assim como outras outras, na "categoria de raridades bibliográficas, caracterizadas também pelo luxo da impressão". CAROLLO, Cassiana Lacerda. Decadismo e Simbolismo no Brasil. Crítica e Poética. Brasília: INL, 1980, v. I, p. XVII.
15 BRAYNER, Sonia. Labirinto do espaço romanesco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/ INL, 1979, p. 244.
Passamos, agora, a tecer alguns comentários, sempre passíveis de argumentações mais profundas, sobre as respostas dadas por alguns dos trinta e seis escritores, independentemente da atitude que, eventualmente, possam ter assumido em outros textos, e do lugar e da importância que ocupam atualmente no quadro de nossas letras. Isso porque, embora muitos tenham caído na anonimidade, à espera de estudos que analisem os altos e baixos de suas obras (se é que, porventura, mereçam essa avaliação), eram nomes de maior ou menor prestígio nas ciências jurídicas, na literatura e no jornalismo. E aqui abro um parênteses para dizer que, dentre os escritores que trafegam pelo Momento e que hoje se encontram relegados ao esquecimento, figuram: Félix Pacheco, autor de Via crucis, e que, segundo João do Rio, "foi quase um sacerdote de uma igreja que tinha por Deus Cruz e Souza" (p.152); Rodrigo Otávio, advogado, membro da Academia Brasileira de Letras, autor de "Aristo", uma novela, conforme afirma, que "ninguém leu nem conhece"; Lima Campos, autor d' O confessor supremo; Gustavo Santiago, autor de O cavaleiro do luar l 4, "mal acolhido pela crítica indígena" (p.263), de "Pássaros brancos" e de "Saudades", este último coletânea de poemas publicado, em 1892, em Coimbra; Mário Pederneiras, cujo livro de estréia - Agonia - sofreu "os maus tratos da veneranda crítica indígena" (p.201), autor, ainda, de Rondas noturnas, elogiado, segundo diz, por José Veríssimo, e de Histórias de meu casal (em fase de publicação), "história da minha vida solitária de hoje, inspirada na delicadeza de um convívio docemente sentimental das Árvores e do Mar e do Amor e de meus Filhos" (p.204); Alberto Ramos (Ode do Campeonato); João Luso (Prosa); Curvelo de Mendonça, que se mostra consciente da nulidade literária de seu romance Regeneração e Rocha Pombo, cujo romance No hospício (1905) Sonia Brayner considera, junto com Mocidade morta e Horto das mágoas, de Gonzaga Duque. "um dos mais representativos exemplos de uma visão ora impressionista ora transfigurada que se instala na ficção simbolista". t5 Para maior clareza de nossa exposição, devemos dizer que nossos comentários incidem sobre as três perguntas iniciais. podendo se reportar. subsidiariamente, à quarta.
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Assim, sobre a relação existente entre gênese de leituras e formalização, é possível afirmar que muitos escritores (alguns, até com a convicção, como Mário Pederneiras, de quem assina um testemunho para a posteridade) aproveitaram a trama deixada em aberto pela primeira pergunta para, utilizando as palavras de Raimundo Correia, "[remexerem fundo] nas cinzas frias, esquecidas a um canto da memória" (p.285). Aliás, dirigindo-se aos leitores (ou a Medeiros e Albuquerque), o próprio João do Rio, na seção intitulada "Depois", confirmaria esse pendor com as seguintes palavras: "Os escritores consultados, quase na sua totalidade, contaram com especial prazer a própria vida. Tem v., para sempre, um livro de consulta biográfica" (p.295). Porém, nesse veio memorialístico, largamente explorado por João Ribeiro, Artur Orlando, Clóvis Beviláqua, Luís Edmundo, Medeiros e Albuquerque ("esta resposta está degenerando em autobiografia", diz) há recompensas inesperadas, definidoras do perfil sentimental de dois escritores com atuações diferenciadas: Coelho Neto, na ficção, e Sílvio Romero, na crítica literária, ambos guardando as marcas da paixão que nutriam pelo ambiente rural em que viveram. São recordações de um passado ancestral radicado na natureza, ora no limiar dos mitos e das lendas que excitam a imaginação (Coelho Neto), Para minha formação não contribuíram autores, contribuíram pessoas. Até hoje, sofro a influência do primeiro período da minha infância no sertão. Foram as histórias, as lendas, os contos ouvidos em criança, histórias de negros cheias de pavores, lendas de caboclos palpitando encantamentos, contos de homens brancos, a fantasia do sol, o perfume das florestas, os sonhos dos civilizados ... A minha fantasia é o resultado da alma dos negros, dos caboclos e dos brancos. É do choque permanente entre esse fundo complexo e a cultura literária que decorre toda minha obra e daí Baladilhas, Rapsódias, livros de uma fatura 16 absolutamente especial. (p.53) ora buscado em um ambiente marcado por perdas familiares, em que ganham relevo imagens ternas e lembranças melódicas (Sílvio Romero). Deixando perceber, nas entrelinhas, um certo espírito de submissão caracterizador do ideologema da mestiçagem, e que parece servir de anteparo às análises interpretativas que lhe concederam um prestígio sem paralelo de representante das idéias deterministas no Brasil, o crítico literário afirma:
16 Autor de um dos primeiros romances policiais brasileiros (O mistério), publicado em capítulos no jornal A Folha, de Medeiros e Albuquerque, Coelho Neto foi considerado, pela Semana de 22, o mais subestimado dos escritores. Morreu descontente com a vida literária. Com cinquenta volumes publicados àquela altura (chegaria a cento e trinta), Coelho Neto reflete, n' O momento literário, sobre sua condição de "trapista do trabalho", imagem que Herman Lima, citando Paulo Dantas, abaixo reproduz: " [Eu] saía uma vez por semana, às pressas, para não perder tempo. As horas soavam-me no mealheiro doméstico e uma, que eu perdesse na cidade, farme-ia falta no fim do mês(".). Quando vencido de fadiga, sentia os olhos obscurecerem-me em onubilações, ou doerme o dorso da longa curvatura em que o forçava, saía a espairecer um pouco no jardim, fumando um cigarro, à sombra das árvores ou di vertindome com a correria da criançada. Logo, porém, tornava ao trabalho, passando da novela à crônica, esboçando um tema dramático ou encadeando cenas de romance." LIMA, Herman. In: Coelho Netto: as duas faces do espelho. In: Coelho Netto. Obra seleta. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958, p. 17.
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Quando os bois e os cavalos eram bem mansos, eu também trepava na almanjarra e ajudava a cantar a alguns tangedores.( ... ) Tudo o que sinto do povo brasileiro, todo meu brasileirismo, todo meu nativismo vem principalmente daí. Nunca mais pude arrancar d' alma, por mais que depois viesse a conhecer os defeitos de nossa gente, que são também os meus defeitos. Outra coisa me ficou incrustada no espírito, e com tanta tenacidade que nunca mais houve crítica ou ciência que dali ma extirpasse: a religião. Devo isso à mucama de estimação, a quem foram, em casa de meus avós, encarregados os desvelos de minha meninice. Ainda hoje, existe, nonagenária, no Lagarto, ao lado de minha mãe, essa adorada Antônia, a quem me acostumei a chamar também de mãe. É um dos meus ídolos, dos mais recatados e mais queridos. Nunca vi criatura tão meiga e nunca vi rezar tanto. (p.4i)
17 João Ribeiro referese aos Novos. Em Notas de um estudante, dedica páginas a Raimundo Correia. V. "A arte de emendar em Raimundo Correia". In: RIBEIRO, João. Motas de um estudante. São Paulo: Monteiro Lobato & C.s/d. pp.4350. Sobre Ribeiro, v. também "O exemplo do velho". In: FARIAS, Marcos de (org.) . João Ribeiro, o polígrafo polimorfo. Sergipe: Secretaria de Educação e Cultura, s.d.
l8 RODRIGUES, João Carlos. Op. cit., p. 55.
Passando ao largo dessas lembranças, entrecortadas de imagens afetivas, alguns conferem um estatuto improvisado, pontuado de ressonâncias familiares, às suas leituras. Alegando, em tom de blague, que "[preferia] ler um anúncio de leilão a um soneto"1? (p. 24), João Ribeiro, mais calmo ("Arriscaria a dizer que me recebeu com três pedras na mão se não tivesse a certeza de que era muito maior o número delas", afirma o jornalista) faz uso de sua ironia costumeira: [Da biblioteca de meu avô] (... ) [que embirrava com padres e frades], o que me atraía era uma magnífica coleção do Panorama e a do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro; se a estes se ajuntar o Manuel Enciclopédico de Emílio Aquiles Monteverde, que eu lia na escola, terá v. o gênesis de todas as minhas letras, ciências e artes daquela quadra. Confesso que não aumentei de um centil aquele patrimônio, e em muitas coisas o dissipei e diminuí. (p.2i) Outros, sem o estofo intelectual de João Ribeiro apegam-se a uma instrução caseira como Magnus Sondhal, "o escritor complicado, cheio de palavras exóticas" (p.223), autor de um livro (inédito), intitulado Assimfalou Si-nu r, "ex-colaborador de A Cidade do Rio ( ... ), esotérico, precursor do Naturismo em nosso país"18. Ajustando o tom de acordo com a personalidade dos escritores pessoalmente entrevistados, João do Rio transcreve o depoimento de Sondhal em páginas de um delicioso sarcasmo:
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- No entanto sou obrigado a dizê-lo (. .. ) que sou puramente um CRIADOR, tendo posto fora toda a minha velha Erudição, como Bagagem inútil e incômoda .. Começa o assombro. Curvo-me. O Mago continua: - A minha formação literária, artística e filosófica foi, em rigor, o resultado de uma excepcional Educação, fornecida por minha Mãe, um tipo superior- uma Poetisa ilustrada. (p.223) Porém, o que se lê, n' O momento, é a indisfarçavel predileção por romancistas e poetas estrangeiros e, para falar com Machado de Assis, "não se fazendo aqui livros de filosofia, de lingüística (... ), de crítica literária, de alta política e outras assim"19 por outras figuras (filósofos e sociólogos) consagradas do pensamento europeu: franceses, sobretudo; ingleses, alemães, espanhóis, russos, italianos e portugueses, em menor número. Considerando a influência da cultura francesa na elite brasileira, conforme têm enfocado estudos críticos ou de caráter histórico-cultural abalizados, seria lícito esperar que os escritores selecionados por João do Rio (não nos cabe, aqui, julgar seus critérios de escolha),20 não buscassem um claro sentido de observação, ou seja, um quadro de referências, um conjunto de expectativas e de teorias, em nossa realidade. Ainda assim, ao buscarmos as linhagens literárias de origem, surpreendeu-nos o inacreditável acervo de obras estrangeiras, lidas, provavelmente em grande parte, no original,21 o que nos leva a crer que possuíam um amplo domínio das línguas francesa, inglesa, alemã, espanhola, russa e italiana. Lê-se com desenvoltura - a relação é longa, além dos poetas e dramaturgos greco-latinos (Sousa Bandeira lamenta ter lido Homero, Aristófanes, Sófocles, Ésquilo, Horácio e Plauto através de traduções), Montaigne, Rabelais, Victor Hugo (Os miseráveis e Nossa Senhora de Paris são os mais citados), Eugene Sue, Richepin, Alexandre Dumas, Renan, Taine, Augusto Comte, Moliere, Anatole France, Zola, os Goncourt, Ribot, Paul Bourget, Lecomte de Lisle, Amiel, Maupassant, Michelet, Voltaire, Jules Verne, Musset, Chateaubriand, Mme. De Stael, Lamartine, Diderot, Mirabeau, Montesquieu, D'Holbach, Théophile Gautier, Sully Prudhomme, Baudelaire, Verlaine, Flaubert (Júlia de Almeida leu Flaubert aconselhada pelo marido, Filinto de Almeida), Heredia, George Sand; Shakespeare, Byron, Shelley, Stuart Mill, Darwin; Schiller, Heine, Nietzsche, Kant, Shopenhauer, Goethe, Max Stirner; Cervantes; D' Annunzio, Dante, Petrarca; Tolstoi e Dostoievsky; Camões, Frei Luís de Sousa, Antero de Quental, Fialho, Herculano, Garret, Ortigão, Eça de Queirós, Camilo Castello Branco, e, finalmente, Maeterlinck, poeta belga. 22
ASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade. In:ASSIS, Machado de. Crítica literária. Rio de Janeiro! São Paulo! Porto Alegre: Jackson INC., 1951, p. 141. 19
Além de José Verissimo, desse universo estão ausentes, por motivo de viagem ou outros, Graça Aranha, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Artur Azevedo, Alberto de Oliveira, Gonzaga Duque e Emílio de Menezes. Lima Barreto e Monteiro Lobato ainda não haviam iniciado suas carreiras literárias. De todo modo, teriam sérias divergências com João do Rio. "Por falar em semelhante paquiderme" (João do Rio), diz Lima Barreto ( ... ), "eu tenho notícias de que já não se tem conta de homem de letras, senão para arranjar propinas com os ministros e presidentes de Estado ou senão para receber sorrisos das moças brancas botafoganas daqui - muitas das quais, como ele, escondem a mãe e o pai". CAVALHEIRO, Edgar. A correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. Os Cadernos de Cultura, 1955, p. 22. 20
Pouco podemos dizer sobre uma "história" das traduções no Brasil. Em meio a condições laboriosas e dificeis, Maria Lígia Coelho Prado surpreende-se com o fato de que a Junta Administrativa da
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então denominada Impressão Régia, inicialmente ocupada com a tradução de compêndios e de manuais das ciências médicas e exatas, tenha liberado a tradução de novelas, de conteúdo desviante aos bons costumes, supostamente destinadas a um público feminino. PRADO, Maria Lígia Coelho. "Lendo novelas no Brasil Joanino". In: PRADO, Maria Lígia Coelho. América Latina no século XIX. Tramas, Telas e Textos. São Paulo: EDUSP, 1999, p. 119-149. 22 A relação não se encontra periodizada. Excluímos uma grande quantidade de escritores citados quase que exclusivamente por Sílvio Romero e Medeiros e Albuquerque Conforme assinala Antonio Candido, lê-se também bastante no plano nacional, estritamente falando. Entre 1875 e 1922, mais ou menos, estende-se um período rico e diversificado, o primeiro, em nossa literatura, que apresenta um panorama completo da vida literária, com todos os gêneros florescendo, com as instituições culturais se multiplicando, com periódicos numerosos e relativamente lidos. Candido, Antonio. Op. cit., p. 89.
23 "Ninguém ousou dizer o nome maldito de Wilde", diz Rodrigues. RODRIGUES, João Carlos. Op cit., p.56. Wilde, de quem João do Rio iria publicar, provavelmente da versão francesa, Salomé, faleceu em 1900. De Profundis surge, postumamente, em 1905.
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o largo espaço e o altíssimo valor conferido a romancistas, e a poetas estrangeiros merecem alguns comentários esclarecedores. Em primeiro lugar. trata-se, como se vê, de um amplo repertório de leituras que, se bem atentarmos, origina-se no período renascentista (Rabelais e Montaigne) e. à exceção de Jean Richepin (1849-1926) e Théodule Ribot (este último com bom trânsito no "Prefácio Interessantíssimo" marioandradino)_ parece estacionar em torno de 1880. 23 É possível, então. deduzir que ainda não aportavam por aqui os sinais avantCOllrellrs da yanguarda. européia, que já começavam a acontecer no interior do cenário artístico de Paris, para onde afluíam escritores e artistas vindos tanto das proyíncias quanto de países próximos, imbuídos da necessidade de promover uma renovação radical na arte. Em segundo lugar, não se nota, principalmente nos escritores que citam à exaustão autores estrangeiros, qualquer procedimento crítico, qualquer rigor analítico, breve porém penetrante, qualquer menção estética que possa vir esclarecer a "certeza" da influência, ou que pelo menos justifique quais os impulsos que os moveram a escolher seus escritores prediletos, muitos dos quais apresentam convicções artísticas conflitantes com aquelas que, se imagina, os escritores entrevistados pareciam professar. Não se intenta aqui comparar suas preferências à corrente literária por eles perfilhada (parnasianismo, nefelibatismo, naturalismo etc.) mesmo porque desconhecemos grande parte de suas produções integrais, dificilmente encontráveis no mercado editorial. Trata-se apenas de sublinhar, mesmo no que concerne a escritores mais conhecidos, que elas não se expressam de forma organizada. Citamos quatro exemplos ilustrativos, retirados respectivamente de Inglês de Sousa, Garcia Redondo, Raimundo Correia e João Luso: Os autores que mais contribuiram para minha formação
literária, diz Inglês de Sousa, foram Erckmann-Chatrian, Balzac, Dickens, Flaubert e Daudet. (p.2I2) Não quero fazer uma autobiografia, mas posso agora, resumindo, dizer que os escritores que mais influência exerceram para minha formação literária foram: Gonçalves Crespo, João Penha, Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Alencar, Edgar Poe, Henri Heine, Th. Gautier, Guy de Maupassant, Vitor Hugo, Bartrina, Byron, Shelley, e De Amicis. (Garcia Redondo, p.I69) Por muito tempo oscilei entre [Hugo e Gautier]. Se um parecia desobrigar-me de ter maior fôlego, o outro parecia desculpar-me de não ser menos imperfeito. Não me pude gabar nunca de lhes conhecer
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a obra inteira; mas do pouco que fiz muito lhes devo. (Raimundo Correia, p.286) Quais os autores que mais influíram na minha formação Zola, Flaubert, Maupasant, Eça de Queirós e muitos outros. (p.191)
Em terceiro lugar, registre-se a presença menor de escritores portugueses, citados por poucos e com parcimônia, o que parece indicar sua magra acolhida dentro do pensamento literário brasileiro (dava o Brasil um leve aceno de despedida às amarras portuguesas?). E, nessa ordem de idéias, foi possível também observar a pouca circulação de escritores brasileiros, apenas limitada à geração romântica, e sempre lembrados por aqueles que preferiam se manter à distância dos Novos, para bem longe das abstrações nefelibatas ou por aqueles mais voltados para uma investigação crítica de nossa literatura: Júlia de Almeida, Clóvis Beviláqua, Nestor Vitor, Lima Campos, padre Severiano Ribeiro (a ausência de Bilac desta relação deve-se ao fato d' "A Musa Perfeita", como o chama João do Rio, ter, como autores prediletos, Renan e Cervantes). Na trilha dos comentários anteriores, é possível já levantar a hipótese, a crer na fiabilidade das respostas, de que ao escolherem, de forma radical, seus escritores preferidos no âmbito das literaturas de línguas estrangeiras, com a quase exclusão da literatura portuguesa, procuravam ascender à posição de homens cultos, intelectualmente preparados, bem informados, antenados com as idéias importadas dos grandes centros universais europeus. Se, por um lado, tais preferências denotam, positivamente, o interesse de pôr-se em dia com o circuito internacional de produção intelectual, por outro, há o risco de desvalorizar a sociedade em que se vive. Pois, em sentido inverso, o Brasil quando é nomeado, aparece como uma cultura inarrredavelmente atrasada, uma "botoculândia", segundo Félix Pacheco, ou, conforme afirma João Ribeiro, ao aludir às coteries, àquele espírito sectário caracterizador do período, como "uma sociedade primitiva e guerreira (... ) em que a regra é eliminar os discordantes. (p.25, grifo de João do Rio). Retoma-se, ainda, os termos assinalados no princípio deste trabalho, altamente depreciativos com que se refere à crítica literária brasileira, classificada de "indígena", sinônimo de não-européia, nãocivilizada, portanto inferior. Inserido nesse contexto Elísio de Carvalho parece confirmar sua complicàda trajetória intelectual, ou, nas palavras de Antonio Candido, "a grande salada, [sua] estranha evoluçã0 24 ":
24 o próprio Elísio se declarou anarquista de um anarquismo passageiro e confuso , ligado em parte à sua adesão à escola poética francesa chamada Naturismo ( ... ). Mas como (ainda a exemplo da moda francesa) sofreu também a influência de Stirner e Nietzsche, misturou-o a um anarquismo aristocrático e individualista, que associado a seu este ti cismo recalcado acabou desandando num esnobismo de diletante e, mais tarde, num nacionalismo reacionário, afidalgado e racista. Grande salada, estranha evolução, como se vê. CANDIDO,
Antonio. "Radicais de ocasião". In: CANDIDO, Antonio. Teresina etc. Rio de Ianeiro: Paz e Terra, 1980, p. 87.
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Li e leio continuamente as máximas de Epíteto, Helvetius,
Chamfort e La Rochefoucauld. Conheço muito superficialmente a literatura clássica. Zola, escritor que eu detestava e combatia ... sem nunca o ter lido, empolgou-me de emoção ( ... ). Zola ( ... ) foi um dos espíritos que mais influiram na minha primeira formação intelectual, mas essa influência não persiste. Prefiro Mirbeau e Anatole France, os mestres admiráveis do romance moderno ( ... ). Os escritos de Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Machay, Tucker, Réclus, etc. fizeram de mim um anarquista convicto; e Buchner, Spencer, d' Holbach, Lange, Diderot, etc., converteram-me num ateu convicto. (p.233-34-35) 25 Arroni Prado mostra como a postura de Elísio de Carvalho indica um certo descomprometimento com a problemática brasileira: Mas esse "rebelde por instinto, por temperamento, por pessoal vontade de vida", como sempre fez questão de definir-se, nunca deixou de ser o erudito d' "A Meridional", a ponto de autoexcluir-se da literatura brasileira por entender que todas as suas influências o qualificavam como um espírito europeu. PRADO, Antonio Arnoni. Itinerário de uma falsa vanguarda. Os dissidentes, a Semana e o Integralismo. São Paulo : Brasiliense, 1983, p. 16.
Em seguida, confirmando a tese de Antonio Arnoni Prad0 2s , conclui: "Como vistes, não citei nenhum escritor brasileiro entre os que mais influíram na minha formação literária e isto muito naturalmente, crede com sinceridade, porque não sofri a influência de nenhum deles". (p.239) É fácil, porém, perceber, agregados, Nestor Vítor, Artur Orlando e Sousa Bandeira, pela disposição de tornarem suas notações um pouco mais precisas. O primeiro, descrito por João do Rio como uma temperamento irrequieto que os ares de Paris apaziguou, ressalta os poetas românticos brasileiros e sua dedicação a Cruz e Sousa ("Quando nos encontramos, as minhas tendências já se achavam definidas". p.109); o segundo discerne, em Cervantes, a função do riso, abominado pela Escola ("O professor, por força da disciplina, capricha em não rir". p.126) e o terceiro "em carta longa e brilhante" (p.248) procura resumir estilos e apontar nuanças. Se, presuntivamente, todo escritor começa por um processo de resignificação de seus modelos, foi bastante um primeiro relance para se perceber que, n' O momento, a gênese de leituras não foi bebida nem saciada em fontes literárias brasileiras, ao contrário, por exemplo, do que ocorreu com uma literatura ancestral como a francesa, onde as mudanças estilísticas atendem, em parte, ao que já foi anteriormente conseguido, e estão sempre prontas a receber acréscimos ou a projetar o término daquilo que faltou ou do que ficou subentendido.
4 Poder-se-ia imaginar, muito coerentemente, que, das leituras feitas, fossem extraídas idéias originais e produtivas para que se pudesse examinar, de mais perto. o local. síntese espontânea da assimilação e
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da transformação de tendências e estilos gestados alhures. Tristão de Athayde mostra como a história das idéias estéticas no Brasil foi subsidiária.
Considerada em bloco, e sem penetrarmos em sua realidade essencial e efetiva, que é sempre o indivíduo, é certo que não tivemos em nossa historia uma literatura espontânea, que viesse a lume naturalmente, como produto do solo em que nascia e como frutificação natural da civilização em marcha. Tivemos, pelo contrário, e à semelhança das 26 instituições sociais, uma literatura transplantada. Em termos genéricos, é possível afirmar que uma literatura transplantada procura manter, tanto quanto possível intacto, o centro do qual ela depende e que, consequentemente, não ocupa um posto proeminente em equilíbrio com outros centros; não aponta erros nem preconceitos sem que observe como os centros se comportam; não consegue erguer antecipações, para ela infundadas. Desse modo, podese chegar a entender por que as respostas dadas à terceira e à quarta questões são tratadas sem muita diversidade de matizes. Além de sua dimensão "oracular", o que as une é o fato de abrangerem uma visão crítica da literatura brasileira naquele período, delas fazendo emergir, para retomar as palavras já ditas anteriormente por João do Rio, o que pensavam ou não pensavam os caros ídolos de nossa arte. As marcas desses matizes aparecem, ora mais nítidas, ora menos, mas sempre compondo um todo coerente: 1) Na atmosfera do elogio mútuo entre pares ou, inversamente, nas ofensas dirigidas aos adversários ( "Nunca o Brasil intelectual, diz acertadamente Gustavo Santiago, andou um quarto de hora mais belicoso". p.265); na defesa, generalizada, da unidade nacional e, paradoxalmente, no truísmo de que somos uma "raça" (termo tainiano), uma nacionalidade em formação, argumento que conduz fatalmente ao enaltecimento das letras estrangeiras, especificamente francesas; numa prolixidade generalizada que contrasta com a clareza e a elegância do dizer em Coelho Neto ou na pura e simples indecisão como bem frisa, em tom sincero, Artur Orlando, expressando-a em pouquíssimas palavras e em francês (nada mais natural do que ter um estilo chiquemente afrancesado): "Tenho minhas simpatias mas entre umas e outras, mon coeur balance ( ... ). Estou como o burro de Buridan, o mais filósofo dos burros: não sei para que lado me vire". (p.127) O essencial a reter nesse ponto é que esse conjunto de matizes ocultava naquela ocasião uma definição conceitual da literatura brasileira.
26 ATAHYDE, Tristão de. "Antecedentes e analogias". In: ATAHYDE, Tristão de. Afonso Arinos. Rio de Janeirol Lisboa 1 Porto: Anuário do Brasil 1 Seara Nova 1 Renascença, 1922, capo VI, p. 113. Sobre o crítico, v. LAFETÁ, João Luiz. 1930: A crítica e o modernismo. São Paulo: Ed. 341 Duas Cidades, 2000.
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Assim, no terreno das injúrias e dos encômios mútuos que, em diferentes lugares, perpassam os textos, não há lugar para muitas descobertas. Apenas sua leitura torna-se extremamente divertida e agradável. Pois não se vêem argumentos sólidos que acenem para o comprometimento com a "formação literária". Desse modo, exceções feitas a Nestor Vitor, Fábio Luso, Olav Bilac, Coelho Neto, Luís Edmundo, as respostas à terceira questão caem nos inevitáveis juízos valorativos de cunho impressionista, sujeitos às emoções do gostar e do não gostar e que, quando dirigidos nominalmente aos opositores, demonstram pouca ou nenhuma preocupação ética. Júlio Afrânio (Afrânio Peixoto) e Silva Ramos, "[cujo] bigode branco [lembrava] o de Edmond Goncourt e [cuja] voz [ganhava] um sonoro sotaque alfacinha" (p. 161) - nas notações personalíssimas de João do Rio - não são, de modo algum, além de Gustavo Santiago, os únicos exemplos ilustrativos do clima de rivalidade existente.
Respeito a luta entre novos e definitivos, nada há a dizer de novo, porque isso é já definitivo: os que chegaram e venceram estão senhores da situação; os que chegam e os agridem desejam aquela vitória e esta situação. Isto se faz as (sic) vezes com talento, mas, entretanto, com pouco espírito e muito insulto. (p. 271, grifas do autor.) Demais, brigas de literatos poderá havê-las, lutas de escolas é que não; por muitíssimas razões, das quais apontarei apenas a primeira; é que no Brasil não há escolas. Se polêmicas houvesse, é claro que a razão estaria com certeza da parte dos que pensam como eu, e que seriam eles os vencedores; porque há muito que estou convencido desta verdade profundíssima, que constitui o princípio fundamental da crítica entre nós: os nossos amigos são uns gênios, os outros gênios, os outros são todos uns alardes. (p.162)
o ponto chave da discussão está, contudo, em situar nacionalismo e regionalismo em posições extremadas, vendo esse últirpo como um enclave na construção da unidade nacional. Entenda-se, porém, que o regionalismo, de que se falava, estava restrito à voz de Frankilin Távora, conforme já mostrado, que clamava por uma literatura tendente à representação e à ilustração de espaços regionais, social e culturalmente diferenciados. E, apesar de os cenáculos e os grêmios literários não constituírem, aos olhos de hoje, ameaças sérias - na medida em que não operavam uma renovação dos princípios da criação literária em voga - a questão angariou foros de discussão, em virtude de apontar para uma eventual cissiparidade da literatura brasileira.
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Para Antonio Candido, a figuração regionalista desenvolvida no período não possuía uma precisão artística convincente, apenas atingida por Simões Lopes Neto. Pouco depois [do Romantismo} surgiu o regionalismo na ficção, assinalando as peculiaridades locais e mostrando cada uma delas como outras tantas maneiras de ser brasileiro. ( ... ) Essa linhagem especificadora percorre a história da nossa literatura com momentos de maior ou menor significado. No século XIX teve um importante sentido social de reconhecimento do País. No começo do século XX, sob o nome de "literatura sertaneja" tornou-se na maioria dos casos uma subliteratura vulgar, explorando o pitoresco conforme o ângulo duvidoso do exotismo, paternalista, patrioteiro e sentimental. Creio que apenas Simões Lopes Neto fez ficção realmente boa dentro desse enquadramento comprometido, porque soube, entre outras coisas, escolher os ângulos narrativos corretos, que identificavam o narrador com a personagem e, assim, suprimiam a distância paternalista e a dicotomia entre o discurso direto ("popular") 27 e o indireto ("culto").
Ainda assim, não era possível, para o pensamento intelectual da época, lidar com nossas diferenças, ou seja, conceber uma literatura verdadeiramente nacional constituída de formas expressivas que, de modo complexo, se articulam com diversos estratos socioculturais, no interior de uma mesma sociedade. Arnoni Prado mostra-nos como as noções de nacionalismo e de cosmopolitismo eram manipuladas por uma "falsa vanguarda", de forma a camuflar as contradições do País. Da perspectiva em que venho alinhando a questão, acrescento que nacionalismo e cosmopolitismo combinamse aí [nesse período} como duas forças de um mesmo processo de contenção: pelo primeiro, legitimava-se o interesse das elites em anular os vários desequilíbrios regionais, para diluí-los no projeto ideológico de um novo tempo da unidade nacional; pelo segundo, retomava-se o cacoete europeizante da burguesia ilustrada em as censo, para impor às reformas um modo de ruptura que não chegava • 28 ao antagonismo.
CANDIDO, Antonio. "Os brasileiros e a literatura latino-americana". São Paulo: Novos Estudos CEBRAP, dez. 1981, v.l.1, p. 61. Grifo do Autor.
27
PRADO, Antonio Arnoni. Op. cit., p.9.
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Trazendo a questão para o plano da literatura, um ponto importante, mas analiticamente frágil, reside na maneira de dar formulações abstratas a um conceito tão amplo quanto o de nacionalismo literário, posto em termos tais que não é possível buscar nele incursões estéticas propriamente ditas, acoplado, como está, à idéia de que somos "uma raça em formação", em processo de conhecimento. Assim, n' O momento, a solução para se eliminar as vertentes regionais vai ser buscada na idéia de que "tudo é um", argumento que decerto conotava, para nosso nascente país republicano, a afirmação de que ele compunha um sistema coeso, um bloco único, uma unidade completa. Dentre as trinta e três respostas contrárias às chamadas "literaturas estaduais" - todas dignas de serem citadas - seleciono apenas, em bloco e de maneira resumida, quatro. Respectivamente, a de Sílvio Romero, que, anteriormente, em rápidas pinceladas verbais, já havia definido seu temperamento "regional" ("Palavra de tabaréu não volta atrás", p.38; "Desculpe a rude franqueza de nortista", p.48); a de Curvelo de Mendonça, enaltecendo sentimentos cívicos; de Elísio de Carvalho; de Medeiros e Albuquerque e, finalmente, de Pedro Couto.
A função das províncias (... ) é a de produzirem a variedada na unidade e forneceram à Capital os seus melhores talentos. (p.49 )
A formosa língua de Camões e o sentimento inato da unidade nacional, que todo bom brasileiro em regra possui, salvamnos dessas veleidades ridículas de literaturas estaduais. (p.148)
Não acredito que a obra literária que se faz nos Estados venha a criar literatura à parte.( ... ) Mas nem S. Paulo, nem Pernambuco, nem Paraná, (sic) apresentam elementos capazes de delimitar-se da grande corrente central do Rio. (p.246-47)
De fato, não creio que os Estados possam criar literatura sua. Isto admitir seria desconhecer a influência que a Capital Federal exerce intensamente nos vários departamentos do Brasil, em todos os ramos de atividade. É ela que, como intermediária, lança aos Estados, mais ou menos modificados, os frutos do meio literário europeu, sobretudo francês. (p.119)
Relacionando o enunciado da 311 pergunta com a resposta dada por Pedro Couto, percebe-se uma rede de significações culturais em que o Rio de Janeiro, sempre tido como o centro de incremento artísti-
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co-literário que foi, é também o difusor das modas européias. Junto vem a idéia de que não havia sinais, horizontes, para a literatura brasileira senão aqueles hauridos em padrões literários vindos de Paris: "Estamos à espera", diz Mário Pederneiras, "que a Idéia Nova nos chegue pelos próximos transatlânticos franceses". (p.204)29. Ressalto apenas, a verve ferina de Afrânio Peixoto, o posicionamento de Guimarães Passos e as colocações de Medeiros e Albuquerque, por anunciar, em um universo cheio de repetições, o advento de uma nova era, na qual nos situamos, gerada pelo acelerado desenvolvimento dos meios de comunicação.
Não creio que o desenvolvimento dos centros literários dos Estados possam criar literaturas à parte; a identidade da língua, a uniformidade dos costumes, a mesma tendência imitadora dos defeitos franceses bastam para assegurar a unidade literária do Brasil. (p.271- 72 ) O Brasil atravessa um período absolutamente estacionário. Não há luta de escolas, não há mesmo escolas novas, poesia de ação e outras histórias. Ainda estamos com (sic) que os traquinas de café chamam os velhos - Aluísio Azevedo no romance, Bilac e Alberto de Oliveira no verso. ( ... ) Coelho Neto, por exemplo, é um admirável artista, mas não é um romancista; Aluísio não tem um romance verdadeiramente romance com a nota individual; Araripe Júnior anda a ler tanto que acaba não sabendo como escrever. A impressão da França esmaga tudo. (p.138)
(... ) Creio que se pode afirmar que não temos propriamente uma literatura nacional, embora haja livros escritos em excelente português por bons poetas e bons prosadores brasileiros. Não há, também, literaturas regionais nos Estados. Nenhum deles é um foco civilização à parte, bastante forte a autônomo, para sustentar uma escola. Quando, pela difusão geral da cultura, nós passarmos a ter uma literatura brasileira e ( ... ) a nacionalidade brasileira se tiver constituído, também os meios de comunicação já serão tão ativos e constantes que a literatura brasileira será apenas o reflexo no Brasil de idéias universais, sem nada de muito característico. (p. 71) Olavo Bilac, que, "todo vestido de linho branco, a camisa alva com punhos e colarinhos duros" (p.lI), recebeu João do Rio em sua
29 Avesso a influências estrangeiras, Monteiro Lobato, em carta a Alberto Rangel, diz: "Manda-me notícias desse Paris mirabolante e fantástico que nunca verei ... nem tenho desejos de ver". Apud BROCA, Brito. A vida literária no Brasil 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960, 2 ed., p. 100.
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10 Segundo Magalhães Jr., essa descrição, aqui apenas resumida, surpreenderia Olavo Bilac: "Onde ele foi achar tanto luxo?" JR, Magalhães. Op. cit. p. 49. Contudo ela deve estar de acordo com a fidalguia que parece caracterizar o poeta e que, certo modo, de transparece em recente estudo de Antonio Dimas em que contrapõe a concepção dicotômica natureza x civilização, em Bilac: "( ... ) quero ver despenhadeiros e alcantis, rios e capoeirões: - mas quero ver tudo isso sem incômodo, debruçado a uma janela, de dentro de uma sala que haja poltronas, e livros e tapetes, e copos de cristal. .. ". Apud DIMAS, Antonio. "Bilac entre Rio e Canudos". AGUIAR, Flávio et aIli (org.). Gêneros de fronteira. São Paulo: Xamã, 1997, p. 29.
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residência - excelente ocasião, aliás, para que o jornalista tecesse comentários personalíssimos acerca de seus entrevistados e do ambiente em que vivia, cujas paredes estavam revestidas de "caquemonos do Japão, colchas de seda cor d' ouro velho ( ... ), tendo "ao centro a mesa em que escreve o poeta, muito limpa e qQase muito pequena, de canela preta" (p.ll)3ü. Reconhece, com amargura (é João do Rio quem primeiro anota), mas sem uma consciência de "revolta", a fragilidade de nossa literatura. Note-se como os preceitos artísticos franceses são aceitos e endossados a ponto de adquirirem um caráter dogmatizador.
- Que queres tu, meu amigo? Nós nunca tivemos propriamente uma literatura. Temos imitações, cópias, reflexos. Onde o escritor que não recorde outro escritor estrangeiro, onde a escola que seja nossa? Eu amo entre os poetas brasileiros Gonçalves Dias e Alberto de Oliveira, a quem copiei muito em criança, mas não poderei garantir que eles não sejam produtos de outro meio. Há de resto explicações para o fato. Somos uma raça em formação, na qual lutam pela supremacia diversos elementos étnicos. Não pode haver uma literatura original, sem que a raça esteja formada (... ). Nós nos regulamos pela França. A França não tem agora lutas de escola, nós também não; a França tem alguns moços extravagantes, nós também; há uma tendência mais forte, a tendência humanitária, nós começamos a fazer livros socialistas. Esta última corrente arrasta, no mundo, todos quantos se apercebem da angústia dos pobres e do sofrimento dos humildes. (p.14-15) Contudo, é Fábio Luz que lança, utilizando umjogo de palavras, uma luz sobre problema da apropriação de nossas formas artísticas. Sem fazer quase uso de amplificações retóricas e de citações exdrúxulas, assim se expressa:
Acredito, entretanto, que um vigoroso movimento, seno e consciente, se vai fazendo para dar à arte um cunho social e humano, que há de predominar, abandonados os requintes da perfeição manual e mecânica, tão em voga, bem caracterizados pela modelagem perfeita das estátuas de nossas praças, sem um sopro de inspiração artística na concepção, nem como símbolos, nem como verdade, pela falta absoluta de sinceridade, incapazes de provocar sensações
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fortes e duradouras e sentimentos elevados. Arte de filigrana - bela para ver e inteiramente inútil - boa arrumação de palavras, paisagens sem figuras, figuras sem a iluminação do olhar. (p. 188)
É preciso ver, ainda, nesse contexto, a figura de Machado de Assis, que se esquivou de responder ao inquérito: ("- Perdes o tempo, o Machado não responde ... ", p.289). Situado em um patamar que só um escritor livre de todas as coerções estilísticas externas poderia alcançar, Machado, "o homem mais frio deste mundo, o tipo de vinho extra-dry, champanhe regelado e ultra-sêco"31, recebe parcas menções. Sua perfeição técnica, tão sinistramente tortuosa, com a qual já mostrou Roberto Schwarz 32 - respondeu às contradições históricas de sua época, é um enigma da autonomia literária. Um equívoco estético. Ainda assim, Afrânio Peixoto reserva-o, junto com Anatole France e Eça de Queirós, para "a intimidade de todas as horas", à exceção dos "dias festivos, dedicados a d' Annunzio e a Maeterlinck (p.269); Clóvis Beviláqua cita-o conforme vimos apressadamente (p.l02); Sousa Bandeira fixa-o apenas como um poeta que
pagou o seu tributo ao simbolismo sem a forma enigmática dos epígonos, atravessou todas as escolas e todas as épocas sem perder a originalidade, por assim dizer casta do seu espírito e chegou até nós com toda a força de um (sic) pujante individualidade, servido por uma linguagem simples, lídima sem gramatiquices, o qual faz dele um verdadeiro escritor clássico. (p.253) Mas é o obscuro padre Severiano de Resende, "o nosso Huysmans", como diz João do Rio (p.128), que apreende algumas de suas marcas estilísticas inovadoras:
Há Machado de Assis: a gente o lê confiantemente, a sua psicologia calma calça uma forma elegante, e a sua linguagem, que é dele, podia ter por divisa o in medi o consistit virtus, que, se não entusiasma, não escandaliza. É o único prosador honesto que temos e o único observador de almas que possuímos. Mas não é um profundo. Aluísio Azevedo zolaizou assaz, num estilo em que eu reconheço o relampejo de um estro real. (p.131)
Ninguém compartilhou, como é sabido, a convivência de Machado de Assis. A citação é trazida por Raimundo de Menezes, que reproduz as palavras de José Maria Martins Fontes, rememorando uma noite em que, no salão do "Jornal do Comércio", Olavo Bilac recitou, à perfeição, "O Corvo", de Poe ( provavelmente na tradução do próprio Machado) e foi, por ele, cumprimentado. MENEZES, Raimundo de. Bastos Tigre e la belle époque. São Paulo: EDART, 1966, p. 186. 31
32 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2 ed., 1981.
Resenhando O momento literário, de João do Rio
BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo brasileiro. Antecedentes da arte moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974, 4 ed., p.21-22. 33
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Notável pela capacidade de captar, sinteticamente, a falta de rumos definidos para a literatura brasileira, João do Rio, esperando formulações mais ambiciosas que dessem sustentação a seu projeto individual, não mascara sua decepção: "A verdade é que cada um cuida de si. A época é de um individualismo hiperestésico. Há a estagnação dos corrilhos literários, mas a fúria de aparecer só - é prodigiosa." (p.296) Percebeu, no fundo, que não havia inferências instigadas pelos novos tempos, conforme palavras de Mário da Silva Brito: "A Musa perfeita, encarnada em Bilac, e a Musa Mística, representada por Alphonsus de Guimarães, empalideciam. É que outros tempos chegavam e, com eles, outros desejos estéticos, outra sociedade se estruturava e outras artes dela nasceriam"33. Nota-se, n' O momento literário, um encurralamento da literatura brasileira, em face da literatura hegemônica européia, o que impede os escritores entrevistados, com poucas exceções, explicitar a natureza de nossas formas literárias, e, em decorrência, atribuir-lhe um papel conceitual. Opera-se com idéias que funcionam como posições dogmáticas. O que sobressai, com afinco e poucas variações em quase todas as respostas, são as rivalidades internas, essenciais ao conjunto da análise, mas que, no fundo, apenas concorreram para manter inalterados procedimentos estéticos epigonais, pois não se nota o ensejo de se buscar uma renovação formal autenticamente criadora. Por outro lado, há, não é possível negar, a consciência de que, historicamente, nossa literatura não havia sido construída. Os intrincados caminhos das respostas fornecidas por um número excessivo de escritores entrevistados, ainda estão para ser descobertos. Salvam-nos, enfim, as palavras de Raimundo Correia, fechando, podemos dizer, propositalmente, o volume. Ai tem v., meu caro, as respostas que aos seus quesitos eu posso dar. Se não prestam, acabou-se. Estou salvo ao menos pela boa intenção que tive de lhe ser agradável. Vivo muito ocupado agora e as minhas ocupações não me dão lugar para mais e melhor. (p.287) São palavras que nos servem, em última análise, de consolo. Restou-nos, pois, o caminho da indagação, caminho trilhado por João do Rio, a que só, mais tarde, outros, mais unidos, iriam responder.
o custo e o preço do desleixo: trabalho e produção n A hora da estrela I
Hermenegildo José Bastos Universidade de Brasília
Onde caberia um galo a cocoricar naquelas paragens ressequidas de artigos por atacado de exportação e importação? A hora da estrela, p.30 A Rádio Relógio diz que dá a hora certa, cultura e anúncios. Que quer dizer cultura? A hora da estrela, p.50
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o poder de argumentação da voz narrativa põe em ação doutrinas filosóficas e morais e concepções estéticas. Contradizendo o imenso esforço desprendido na argumentação, o texto diz pretender uma pura entrega ao inefável ou, enredando-se ainda mais no conflito, exibe-se como parte do reino da banalização da indústria da cultura.
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o narrador se apega, de modo agônico, à tradição da alta cultura, convoca-a como elemento de identificação, mas deve conviver com a cultura de massa de cujo mundo brota a personagem. Isso não seria tão relevante se de fato a alta cultura e a cultura de massa estivessem nitidamente separadas, e o narrador pudesse demarcar os seus espaços. Mas as fronteiras foram invadidas. O narrador também vive na órbita da cultura de massa, respira o seu ar sufocante. A cultura de massa não é apenas um assunto externo à sua narrativa, a atividade de narrar é contaminada por ela. O inefável e a banalidade confluem? Essas contradições e paradoxos não cessam de atuar, não apenas, repito, como elementos externos aos quais a obra fizesse referência, mas como elementos do texto e de sua produção. A hora da estrela é uma poderosa máquina argumentativa. O significado propriamente literário disso tem sido assinalado há tempo: a obra se autoquestiona, problematiza a representação literária, debate-se contra os seus próprios limites. Onde estarão esses limites? Talvez não sejam tanto os da essência da literatura, mas os de algo menos nobre - esses que circundam a personagem, mas também o narrador, e que se manifestam na Rádio Relógio, na cartomante, na indústria cultural enfim. Seguindo o fio da voz narrativa, ouvimos que à literatura opõese a poesia, ou melhor, a música. Esta seria uma escrita mais que escrita, porque sem palavras, sem significados e conceitos, é o puro reino do inefável: "Eu medito sem palavras e sobre o nada. O que me atrapalha a vida é escrever." 1 Mas escreve. Enquanto escreve, o narrador insiste, hipocritamente sem dúvida, em dividir com o leitor o desconforto e o tormento que lhe advêm do trabalho da escrita. A hipocrisia é a de quem sabe aonde tudo isso vai levar, ou já levou, uma vez que a progressão narrativa é aparente. O narrador pondera: "Só não inicio pelo fim que justificaria o começo - como a morte parece dizer sobre a vida - porque preciso registrar os fatos antecedentes" (p. 12). O trabalho desconfortável e tormentoso da obra é vivido como improdutivo. Metonímia dele é Macabéa, pois é "incompetente para a vida" (p. 24) e tem "pequenos óvulos tão murchos" (p. 33). Quanto ao autor-narrador, ele escreve "por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens" (p. 21). Macabéa, que é datilografa, sofre também as dores da escrita: ela deve copiar a escrita alheia, chocando-se contra o limite da palavra, contra o indizível, o inexprimível. Macabéa é frágil, mas sua fragilidade é como uma reserva de força, e é nisso que se diferencia de Olímpico. Olímpico, embora
I LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 10. Doravante, no corpo do texto, indicaremos, entre parênteses, o número da página citada.
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explorado, é um conquistador, e termina, dessa forma, por reforçar o horizonte da exploração, uma vez que luta por conquistar um lugar no meio dela. Ao contrário dele, Macabéa se retira da contenda. Contudo, ela talvez não seja tão improdutiva quanto parece, afinal ela ativa a máquina mercantilista da sedução e da conquista encarnada nos demais personagens, especialmente na cartomante, e, mais do que tudo, na própria autora. Como criatura de ficção "inventada" pelo autor-narrador, Macabéa ativa também a máquina de sedução que é a literatura, isto é, a forma de trabalho que aí dá vida a todas as outras. Ressalve-se que a identificação, assimétrica é verdade, entre a personagem (improdutiva) e o autor-narrador (produtivo, pois produz, embora com profundo mal-estar, a obra) pode conter uma inesperada simetria. A extensa e até mesmo prolixa retórica contamina o leitor. Se este inicia a leitura esperando encontrar um libelo contra a sociedade injusta e sobre sua vítima - Macabéa - , vai aos poucos percebendo o esvaziamento da luta social, do social como um todo. Macabéa é a pura impossibilidade, inexprimível socialmente: "Pois reduzira-se a si." (p. 18). Mudaram-se as regras do jogo, as antigas lutas que definiam o horizonte da modernidade perderam a razão de ser? O esvaziamento da modernidade é agravado pelo fato de que isso está ocorrendo em país obrigado a encenar de encomenda a modernidade pra inglês ver. N' A hora da estrela, como em tantas outras obras brasileiras, narra-se a coexistência de dois tempos diferentes - o moderno e o pré-moderno, isto é, narra-se o esvaziamento da modernidade numa sociedade que não cumpriu integralmente o seu ciclo histórico, o esgotamento de algo antes da sua implantação real. N' A hora da estrela, uma sensibilidade pré-moderna, a de Macabéa, é jogada num mundo para além do moderno, um mundo de imagens, em que tudo foi convertido em espetáculo. Em uma narrativa tão previsível (ao menos para o narrador), a cartomante está no início, não no fim. É aqui então que a obra, paradoxalmente, e diferentemente da narrativa, impõe o seu ritmo e progressão: publicada em 1977, A hora da estrela muda o foco de visão estética e política trazendo à cena, como problema central, a indústria cultural e o espetáculo. Macabéa é imagem: "É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina" (p.12). Embora procure se desqualificar a cada passo, a obra se realiza como literatura, e o faz enquanto representação de um novo momento da história nacional. É o momento em que a indústria cultural vem substituir as baionetas e os tanques como arma de domínio e opressão.
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Tudo ocorre em meio a uma reflexão metafísica sobre o homem e o universo, com uma boa dose de determinismo. O repertório metafísico vem em socorro do escritor, oferecendo-lhe, se não uma resposta, ao menos o quase conforto que reside em saber que, se nenhuma resposta é possível, não há chance também para qualquer pergunta. Esta sintaxe não é nova. Temos presente na lembrança a teia em que nos enredara um tal de Brás Cubas. Perguntas inúteis, jogos de cena. O mesmo determinismo. A humanitas. 2 Também uma imensa autopiedade. É do escritor, então, que se trata aí, da representação da sua condição, o que transforma a autora em narrador e personagem. Escritora e nordestina são as duas personagens que contracenam no espaço da escrita. O personagem-narrador é homem, porque, do contrário, poderia "lacrimejar piegas". Bem observado, porém, o livro "lacrimeja piegas". Mas isso não diz muito: dizer que o autor-narrador exibe a sua culpa não avança muito na análise da obra. É preciso dizer o porquê da exibição, qual o seu significado histórico-literário. A cultivada auto-piedade do autornarrador é nossa velha conhecida na história literária enquanto fermento cruel de produção de obras de qualidade. A questão está em entender a sua evolução como categoria estético-literária e, por aí, procurar situar o escritor, suas contradições, a evolução das contradições, no sistema literário brasileiro.
2 Lúcia Helena (O coração grosso: migração das almas e dos sentidos. Niterói: XVI Encontro Nacional da ANPOLL, 2000. p. 65) aproxima o egoísmo e a escamoteação presente na fala do narrador de A hora da estrela da hipocrisia do narrador machadiano.
2 Ao determinismo e rigor metafísico contrapõe-se uma certa displicência que o narrador também insiste em escancarar. No trabalho de construção da obra faltaria rigor. Já na "dedicatória do autor", a obra é chamada de "esta coisa aí". Em seguida, alude-se à indústria cultural, a voz narrativa comenta que o seu trabalho conta com "o patrocínio do refrigerante mais popular do mundo e que nem por isso me paga nada ... ". (p. 23) Mais adiante diz-nos que a "história não tem nenhuma técnica, nem de estilo, ela é ao deus-dará" (p.36). Em ensaio sobre Clarice, Maria Angélica Guimarães Lopes 3 estuda a "estética do malfeito". Na mesma linha de outros estudiosos de Clarice, Lopes vê em Fundo de gaveta, segunda parte de A Legião estrangeira, a "arte poética" ou o "testamento poético" de Lispector. O malfeito é visto, então, como uma condição necessária à existência da obra. A criação consiste em transformar a matéria bruta
LOPES, Maria Angélica Guimarães. A estética do malfeito: Clarice Lispector e A legião estrangeira. In: A coreografia do desejo. Cem anos de ficção brasileira. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
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LOPES, op. cit., p. 169. Idem, p. 170.
A estética kantiana define a arte estética como livre por oposição à arte mercenária .. Na obra de Arte, o espírito deve se satisfazer sem visar a qualquer objetivo e independentemente de salário. (KANT, Immanuel. Crítica Del juicio. Buenos Aires: Editorial Losada, 1961. p. 165). Derrida observa, porém, que, em Kant, a arte liberal se opõe à arte mercenária como o espírito ao corpo, e o espírito depende, na sua liberdade, daquilo que ele subordina, da força da estrutura mecânica. (Derrida, J acques. Economimesis. In: Agacinski, Sylviane, Derrida, J acques, et alli. Mímesis des articulations. Paris: Flammarion, 1975. p. 64)
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no "ouro final" que é a obra4 • O fundo de gaveta seria o local de depósito do malfeito, mas também um "local precioso, de virtualidade e pujança sacrais"5. Mas o erro pode não ser apenas um estágio a ser superado, pode ser irreversível e, neste caso, configuraria uma derrota. Essa condição é desejável, porque na perfeição estética não há grandeza. O erro é, portanto, essencial. O erro, o malfeito, a derrota se contrapõem, como próprios da escrita feminina, à decisão e à certeza de quem busca a perfeição estética. Entendo, porém, que a duplicidade de sentido contida no desleixo enquanto maneira de produzir está em que é ao mesmo tempo marca e questionamento da indústria cultural- trabalho e produção. Não apenas Macabéa, que ouve o rádio e vive na sua dependência direta, é presa da indústria cultural. Outros momentos da obra falam de "grand finale" e tecnicolor. Estamos no horizonte do espetacular. Macabéa não entende o significado de palavras difíceis como "cultura" e "eletrônico". A Rádio Relógio, porém, não é o lugar da dúvida, pois assegura a veracidade daquilo que diz: a hora é certa, também a cultura e os anúncios. A condição de Macabéa é também a do narrador e, em última instância, de Clarice Lispector. A pergunta "Que quer dizer cultura?" é também do escritor envolvido pela forma-mercadoria. É nesse sentido que se deve entender a outra pergunta de Macabéa sobre a palavra "( ... ) meio esquisita: mimetismo" (p.55). A produção e o mimetismo repugnam, por imorais (p.55). A reação de Olímpico consiste em reprovar a pergunta por considerá-la imprópria para uma virgem. No Mangue (que é um lugar ruim) estão as mulheres que fazem perguntas demais. O discurso sedutor constrói a verossimilhança de que Macabéa necessita para se sentir possuidora de (e possuída por) um destino. Cabe à cartomante esse papel. A cartomante é a feiticeira, cujo papel de sedução consiste em descortinar para a personagem todo um mundo espetacular de sucesso e realização. Mas o espetáculo a que assistiremos é o da morte da personagem. O espetáculo é ferramenta de manutenção da ordem. O discurso reificado é o da indústria cultural, mas não é de todo estranho à literatura. A literatura deveria ir além do mimetismo reificado da indústria cultural, mas parece estar envolvido por ele. Afinal a história tem a sua própria lógica, independente do escritor. A história da história, a história dos fatos ("são palavras ditas pelo mundo"), ultrapassa o escritor. Ele não precisa ser pago pelo refrigerante para estar envolvido pela forma-mercadoria. O escritor é que deve pagar um alto preço para exercer sua atividade. 6 A essa idéia de alto preço parece então se contrapor a de baixo custo (desleixo, displicência). É verdade
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que a história é um coágulo e leva o autor e a personagem à morte. O perigo ronda a literatura. Se a morte é o preço, o custo é a banalidade: "Glória, querendo compensar o roubo do namorado da outra, convidou-a para tomar lanche de tarde, domingo, na sua casa. Soprar depois de morder? (Ah que história banal, mal agüento escrevê-la.)" (p.66) O autor-narrador é impelido a produzir e reflete sobre esse imperativo. Ele está absolutamente cansado de literatura. Quer a mudez. O trabalho literário é o de datilografar (copiar) o que já está dado. A escrita choca-se com a sua própria impossibilidade. A displicência resulta da desilusão que o escritor sofreu com os altos códigos que elaborara. Ele aprendeu que os códigos de estilo e gênero, que lhe possibilitavam a realização do modelo literário, já foram "superados" pela realidade, isto é, já não dão conta da complexidade real. Os códigos terminaram reificados, captados pela indústria cultural. A alta cultura invadida pelo espetáculo. O escritor olha com desconfiança para a literatura institucionalizada. Quanto mais ele labora para aprimorar os instrumentos de percepção única e estranhada da realidade, mais é surpreendido pela plasticidade do mundo, pela capacidade infinita de assimilação e neutralização da indústria cultural. O escritor escreve por "motivo grave de 'força maior'" (p. 18). Sua força está na solidão, ele é "o escuro da noite" (p. 18). Ele se recusa a "enfeitar a palavra". A conversa se estende, parece interminável, mas já sabemos que, com ela, ele visa a convencer o leitor: "concordais?", pergunta ele. Afinal, na condição de escritor pouco se pode fazer (ainda que palavra seja ação). Nada se pode fazer por Macabéa, nem por Rodrigo S.M e, o que é pior, por Clarice Lispector, um dos nomes desse escritor cujo tormento aí se narra.
3 Como quem desqualifica toda procura pelo significado, o narrador alerta que "A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique." (p.lI) O campo por onde passa toda essa discussão e que leva o narrador a argumentar e a argumentar cada vez mais é o da representação. De fato, se a verdade é tão interior e se nenhuma palavra a pode significar, estamos no terreno do irrepresentável. Pouco antes, porém, o narrador afirmara: "Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever" (p.lI).
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Mais do que assinalar a impossibilidade de representação, a obra se esmera em discuti-la. Macabéa é imagem que o narrador capta nas ruas. Se ele a inventa, é como num trabalho de montagem, porém. Acontece que esse trabalho, que é o da literatura, não é inocente, está comprometido. Segundo Lúcia Helena, é essa discussão que faz com que A hora da estrela seja a obra
7
HELENA, 1997, p. 75.
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Idem, p. 63.
HELENA, Lúcia. Nem musa, nem medusa. Itinerários da escrita em Clarice Lispector. Niterói: EDUFF, 1997.
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HELENA, 1999, p. 6.
em que Lispector, com a sabedoria dos grandes narradores, consiga o equilíbrio tenso e magnífico entre a mímesis da representação, que acredita poder representar o mundo tal qual, e a mímesis da produção, ~ue tenta criar o mundo, o seu mundo, no reino da palavra. A discussão inclui um diálogo com o romance de 30, como observa também Lúcia Helena 8 • Em outro artig0 9 , a ensaísta descreve esse diálogo especificamente com Graciliano Ramos. Diz ela: "No discurso clariceano amplia-se o pio da coruja, metáfora de Graciliano Ramos"lo. Em São Bernardo, são palavras ainda de Lúcia Helena, tematizam-se duas formas de escrever: aquela que se realiza pela divisão do trabalho e outra que, "sob a égide d'o pio da coruja", faz do narrador "o autor de um texto em que se investiga o sentido da existência". Aí, entretanto, onde se localizaria a descontinuidade - a escrita como alusão à divisão de trabalho - talvez se possa rastrear uma continuidade entre Graciliano e Clarice capaz de explicar a outra continuidade que a ensaísta assinala: o pio da coruja pode referir-se à divisão do trabalho. Em Clarice, a referência já não é ao fordismo, forma de divisão de trabalho, ao seu tempo moderna e atual, a que Paulo Honório procura se adequar. O fracasso do livro planejado a várias mãos é ao mesmo tempo a porta de saída por onde a literatura - a produção literária - escapa. Escapa libertando-se, porque é dessa forma que se realiza, mas também escravizando-se, porque não pode se contrapor efetivamente a nada. Essa consciência dilacerada é tanto de Paulo Honório quanto de Rodrigo S.M. Ao tentar escapar, a obra se debate contra os seus próprios limites. O choque é mortal, e a perplexidade de Paulo Honório (que não é propriamente um escritor, o que também deve ser salientado) resulta da contemplação inesperada da obra como limite, da ruína da obra. O par mímesis da representação / mímesis da produção está em Aristóteles: a obra é ao mesmo tempo representação de uma ação e ação de representar. Por um lado, ela aponta para algo que existe fora
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dela, por outro ela aponta para si mesma, enquanto mundo criado. Contrapor as duas formas de representação ("a natureza potência da obra à natureza modelo de figuração")11 foi o passo decisivo para a autonomização da obra. A literatura que privilegia a si própria como auto-representação se bate contra os dados figurativos. Ela se mostra fazendo-se. Exibe-se e alegoriza-se. A obra é, assim, alegoria da obra.
11 Sobre isso, cf. RANCIERE, Jacques. Le partage du sensible. Esthétique et politique. Paris: La Fabriqueéditions, 2000.
4 Macabéa não é a pura impossibilidade, como disse no início, mas uma certa invisibilidade, aquela de que fala Jacques Ranciere: o que define o fato de alguém ser visível e dotado de uma palavra comum é a condição de partilhar do sensível, a condição que deve ter alguém de se consagrar a outra coisa que não o seu trabalh0 12 . A exclusão de Macabéa é primeiramente uma exclusão estética, no sentido de que ela não compartilha o sensível. Ranciere define "partilha do sensível" como a constituição estética que dá forma à comunidade. Partilha quer dizer, primeiro, a participação em um conjunto comum e, segundo, a distribuição dos quinhões:
12 RANCIERE, 2000, p. 13.
Antes de ser um sistema de formas constitucionais ou de relações de poder, uma ordem política é uma certa divisão das ocupações, a qual se inscreve, por sua vez, em uma configuração do sensível: em uma relação entre os modos do fazer, os modos do ser e do dizer; entre a distribuição dos corpos de acordo com suas atribuições e finalidades e a circulacão do sentido; entre a ordem do visível e a do " I J3 d IZlve.
É por ser estética que a exclusão é política: um mundo comum "É sempre uma distribuição polêmica das maneiras de ser e das ocupações num espaço de possibilidades"14. Porque antes de mais nada lhe é negada a simples existência - o que deve ser entendido nos termos do regime ficcional, Macabéa põe em questão (ou, ainda mais, arruína) a partilha do sensível. Daí também o desconforto e o tormento do autor-narrador por ter de construir e destruir a sua personagem. É por aí, então, que retornamos à questão da representação. Observa Ranciere que Platão, no terceiro livro da República, condena o imitador porque ele pode fazer duas coisas ao mesmo tempo. O princípio da sociedade bem organizada é que cada um faça apenas a
J3 RANCIERE, 1995, p. 7-8.
14 RANCIERE, 2000, p. 13.
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15 RANCIERE, 2000, p. 67.
16 CHIAPPINI, Lígia. Pelas ruas da cidade, uma mulher precisa andar. Leitura de Clarice Lispector. Literatura e sociedade, I, 1996. p. 60-80.p. 67). Chiappini aproxima Macabéa de outras personagens de Clarice, todas mulheres pobres e perdidas na grande cidade. De maneira brilhante, assinala a presença, escamoteada, da luta de classes entre autor-narrador e personagem, não só em A hora da estrela, mas também em A paixão segundo GH.
17 RANCIERE, 2000, p. 71.
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sua coisa, aquela a que sua natureza lhe destinais. A idéia de trabalho é, assim, a de uma partilha do sensível - a impossibilidade de fazer outra coisa, dada a falta de tempo para tal. Esta impossibilidade coloca o trabalho como o confinamento do trabalhador ao espaço privado de sua ocupação, sua exclusão da participação no comum. Porém, o imitador é um trabalhador que faz duas coisas ao mesmo tempo. Ele dá ao sentido privado do trabalho uma cena pública. Aquilo que deveria determinar o confinamento de cada um a seu lugar passa a constituir, indesejavelmente, uma cena comum. Daí a nocividade do mimetismo. "~a Rádio Relógio disseram uma palavra que achei meio esquisita: mimetismo." (p. 55) Difícil é penetrar nesta frase. Inicialmente, porque a palavra dita é, por si mesma, ao mesmo tempo mimética e não-mimética. Dizer é produzir signos que substituem coisas, mas é também projetar o mundo da linguagem como auto-referência, donde uma primeira perturbação. Em segundo lugar porque a palavra dita é exatamente "mimetismo", isto é, o dizer enuncia a si próprio ao enunciar o que não é ele. Num terceiro momento, ainda, porque o enunciador da palavra é duplamente indeterminado - tanto porque não pode ser definido, quanto porque se origina na e da Rádio Relógio, meio de comunicação impessoal. O contexto imediato da frase é o universo textual da obra. Como numa identificação de realismo exacerbado da obra com a vida, o mundo da obra em que Macabéa existe é o mesmo mundo real. A questão da personagem é a de ser mera representação: da sociedade que não lhe permite ocupar um lugar próprio, do autor-narrador que anseia alcançar a palavra que valesse por si própria e não por aquilo que reproduz, mas que sucumbe perante a realidade que lhe ultrapassa. A questão do autor-narrador não é outra, é a mesma, embora vista de outro ângulo: a sua questão é não poder, como assinala Ligia Chiappini, "entrar na pele de seu outro de classe" ou "outra de classe", é estar cercado por seus limites intransponíveis 16. Os limites de classe não são transpostos: para se pôr ao nível da nordestina, o narrador "deveria vestir-se com roupa velha rasgada". No entanto, ele sabe que talvez "tivesse que me apresentar de modo mais convincente às sociedades que muito reclamam de quem está neste instante mesmo batendo à máquina". (p.19-20) Ele se declara um trabalhador manual (p.19), do mesmo modo que Macabéa, acrescento. A prática artística não é o exterior do trabalho, mas sua forma de visibilidade deslocada. A arte é produção, isto é, identidade de um processo de fabricação material com a sua apresentação no seio da comunidade. Produzir, diz Ranciere l7 , une dois atos - o de fabricar e
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o de definir uma relação nova entre o fazer e o ver. Transformação da matéria sensível em apresentação da comunidade a si mesma. Ao escancarar sua pobreza extrema, A hora da estrela evidencia a extrema pobreza da indústria cultural em cujo universo fomos destinados a viver, como já nos vinha alertando aquele insistente "pio da coruja".
Referências bibliográficas CHIAPPINI, Lígia. Pelas ruas da cidade, uma mulher precisa andar. Leitura de Clarice Lispector. Literatura e sociedade, 1, 1996. p. 60-80. DERRIDA, Jacques. Economimesis. In: Agacinski, Sylviane, Derrida, Jacques, et alli. Mímesis des articulations. Paris: Flammarion, 1975. HELENA, Lúcia. Nem musa, nem medusa. Itinerários da escrita em Clarice Lispector. Niterói: EDUFF, 1997. HELENA, Lúcia. O coração grosso: migração das almas e dos sentidos. Niterói: XVI Encontro Nacional da ANPOLL, 2000. KANT, Immanuel. Crítica Deljuicio. Buenos Aires: Editorial Losada, 1961. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. LOPES, Maria Angélica Guimarães. A estética do malfeito: Clarice Lispector eA legião estrangeira. In: A coreografia do desejo. Cem anos de ficção brasileira. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. RANCIERE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. RANCIERE, Jacques. Le partage du sensible. Esthétique et politique. Paris: La Fabrique éditions, 2000.
Literatura e autoritarismo em Georg Lukács
Jaime Ginzburg UFSM
o
objetivo deste artigo é estudar os fundamentos dos critérios de valorização estética em Georg Lukács, tendo em vista as relações entre esses critérios e o contexto opressor dos regimes autoritários na Europa. A hipótese de trabalho consiste em que as condições de determinação dos juízos de Lukács, que constantemente causaram polêmica nos estudos literários, estão diretamente articuladas com um esforço de resistência intelectual. Elas sofrem transformações ao longo de sua produção, que dialogam com mudanças importantes no ambiente histórico-cultural europeu. O trabalho é orientado principalmente pela leitura de dois livros, História e consciência de classe e A destruição da razão, que servem como referência para reflexão sobre trabalhos de Lukács voltados para a teoria da literatura e a crítica literária.
1. Irracionalismo e nazismo
o livro A destruição da razão, de Georg Lukács, causa impacLUKÁCS, Georg. The destruction of reason. London: The Merlin Press, 1980. I
to em muitos sentidos. Redigido em 1952, tem como assunto central a formação de condições na Alemanha para a ascensão do nazismo l . O autor acredita que a forte presença de irracionalismo na intelectualidade alemã está relacionada diretamente a essas condições.
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Para defender a tese, propõe uma articulação entre filosofia e história. O livro leva à percepção de que a humanidade, ao permitir a destruição de valores referentes à sustentação do pensamento racional, cria condições para sua própria aniquilação. A destruição da razão é um livro sobre a destruição que a humanidade impõe a si mesma. Nada parece importar mais a Lukács nesse livro escrito com rigor e preocupação, que a possibilidade de distinguir verdade e mentira, bem e mal, sem hibridismos ou meias palavras. Nada importa mais do que a construção de uma pauta ética capaz de distinguir critérios de validação na formulação de idéias 2 • Escrito em momento bem posterior ao consagrado Teoria do romance (1920) e ao controverso História e consciência de classe (1923), A destruição da razão é um livro fundamental para compreender a contribuição de Georg Lukács às Ciências Humanas, à Estética e à Teoria da Literatura. Não apenas porque revela amadurecimento profundo de problemáticas formuladas anteriormente, mas também porque estabelece com clareza uma das linhas condutoras do pensador: a aposta, inabalável, na possibilidade de mudança do processo histórico, através da compreensão da realidade, não por parte apenas dos intelectuais ou dos líderes políticos, mas dos homens comuns. A filosofia da história inerente à produção de Lukács, de base marxista, que propõe a possibilidade de transformação da realidade, acionada pela tomada de consciência por parte dos homens, a respeito de suas condições de existência, desmontando os mecanismos de repressão e reificação, está associada diretamente à sua estética. A associação é sustentada pelo materialismo histórico dialético, que defende a possibilidade de articulação entre sujeito e objeto, entre o movimento de percepção da consciência, capaz de despertar de um estado de passividade, e o movimento da dinâmica social, das ações coletivas. Uma das motivações mais importantes para o longo questionamento de Lukács no denso volume é a combinação de inteligência elevada e irracionalismo. Os pontos mais fortes de sua argumentação estão centrados no propósito de comprovar que grandes nomes de evidência do pensamento alemão estiveram deliberadamente interessados no irracionalismo. E atribui a esse interesse força de influência e legitimação para ações de Adolf Hitler. O empreendimento pode soar arrogante e arriscado. Abalar nomes de prestígio da filosofia ocidental, conduzindo a leitura para mostrar suas inconsistências, é um desafio forte. Mostrar elos de continuidade pouco perceptíveis entre eles, através de analogias rigorosas, é ainda mais difícil. Remontar o processo do século XIX até o momento presente à escrita é tarefa enciclopédica. Contextualizar, no
2 HELLER, Agnes. Lukács y la Sagrada Familia. In: FEHÉR, F. et alii. Dialéctica de las formas. EI pensamiento de la escuela de Budapest. Barcelona: Península, 1987. p.186-7.
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3 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Porto: Escor-
pião, 1974. p.132.
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capítulo I, as bases na história alemã que levaram a sociedade e a elite intelectual a serem como são, sem dúvida, é um empenho digno de polêmica. No entanto, Lukács tem a inteligência de incorporar ao próprio texto os sinais de limitações de sua reflexão, os riscos de erro, as estratégias seletivas e as possibilidades de generalização a evitar. Guia o leitor em seus movimentos de recuo e avanço reflexivo explicitamente e discute o conhecimento prévio que dele espera. Isso cria para o leitor a exigência de um esforço duplo - respeitar a linha argumentativa, para permitir avaliar sua consistência, e ao mesmo tempo prever, entre capítulos e entre períodos, possibilidades de pontos lacunares com relação aos quais já foi alertado, mas com que não está necessariamente preparado para lidar. Ao falar em irracionalismo, Lukács abarca uma série diversificada de elementos. Em algumas passagens do livro faz definições de seus critérios para caracterizar um discurso irracional, que estão dispersas e devem ser articuladas pelo leitor. Inicialmente, fala em arbitrariedade, contradições, argumentos sofísticos e sem substância. Mais adiante, vão sendo expostos outros componentes, de variadas naturezas. Futilidade, glorificação acrítica da intuição, epistemologia aristocrática, rejeição do desenvolvimento sócio-histórico, criação de mitos, obscuridade, introspecção, resistência intencional à possibilidade de responder problemas, e um princípio bergsoniano que, em Lukács, se torna lema conservador, a proposição de que, por trás da aparência de mobilidade da experiência, na verdade há uma realidade estática. Ele adverte existe uma função básica para a filosofia irracionalista, considerada em geral: prover ao homem conforto filosófico, sensação de liberdade e de vigor intelectual, e ilusão de autonomia pessoal. Ao fazer isso, diz Lukács, são mantidas a dominação da burguesia reacionária e a submissão a ela da população. O trabalho filosófico do irracionalismo, para o autor, contém objetivamente a possibilidade de uma ideologia fascista e agressivamente reacionária. Em História e consciência de classe, Lukács havia formulado o seguinte: "o problema da irracionalidade conduz ao problema impenetrabilidade de qualquer dado por conceitos do entendimento", e à impossibilidade de aplicação de conceitos 3 . Na perspectiva do materialismo dialético, o autor defende aqui um dos princípios básicos para A destruição da razão, a necessidade de utilizar o racionalismo como método para perceber os dados objetivos como um sistema inteligível. Levantando os antecedentes do irracionalismo desde a Antigüidade e a Idade Média, Lukács se ocupa da formação das idéias modernas desde a Renascença, comenta conflitos de filósofos com a tradição religiosa, examina autores como Pascal, mas está centralmente
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interessado no que ocorre a partir da Revolução Francesa. Para ele, há um vínculo fundamental entre os passos de ascensão do capitalismo europeu e o estabelecimento de uma forma específica, moderna, de irracionalismo. É desenvolvida no final do século XVIII uma forma nova de economia capitalista, em que é decisiva a relação entre a ciência, a tecnologia e as forças produtivas, com conseqüências sociais sem equivalentes no pré-capitalismo e na economia feudal. O emprego da ciência na formação de tecnologia industrial muda os paradigmas econômicos. Essa mudança qualitativa das relações entre conhecimento e produção de riqueza será decisiva para Lukács. Logo no início do livro fica clara a associação entre a crítica do irracionalismo e a crítica do capitalismo, ao fulminar William James, responsável pelas bases da ideologia do self-made man norte-americano. Segundo Lukács, James, como outros irracionalistas, propõe mitos como verdades, e rejeita a realidade objetiva e sua observabilidade racional. Importa para Lukács que, diferentemente de situações historicamente anteriores, no capitalismo moderno, em especial a partir da Revolução Industrial, pela primeira vez, em sua opinião, uma classe oprimida - o proletariado - tem capacidade potencial de assimilar o modo de pensar de seus opressores, com um ponto de vista e uma visão de mundo independentes. Discutir a história da filosofia e problemas de teoria do conhecimento, nesse sentido, pressupõe uma possibilidade real de transformação histórica, conduzida pela classe oprimida. A destruição da razão investiga as condições em que, dentro da Alemanha, o pensamento conservador burguês construiu suas próprias resistências à formulação e aceitação coletiva da possibilidade de conhecimento e transformação da realidade. Ao fazer isso, o livro examina os mecanismos de auto-legitimação dos grupos dominantes, e a ausência de senso democrático da intelectualidade prestigiada. A valorização do irracionalismo consistiria em uma estratégia ao mesmo tempo epistemológica e política de sustentação da burguesia. O livro não comporta qualquer ingenuidade quanto ao projeto iluminista. Com senso de concretude temporal e espacial na condução da reflexão sobre fatos e textos, Lukács lamenta as diferenças entre a formação do pensamento filosófico na França e na Alemanha, atribuindo à primeira condições mais favoráveis para o estabelecimento de uma política democrática4 • Lukács deixa claras em A destruição da razão várias marcas de indignação com pensadores prestigiados, como Schelling, que teria sido o primeiro a fortemente romper com o racionalismo cartesiano,
Esse assunto já havia interessado Lukács no estudo de 1907 sobre a filosofia romântica de vida. Conforme LUKÁCS, Georg. On the romantic philosophy of !ife. In: LUKÁCS, Georg. Soul and formo London: Merlin Press, 1974. p.42.
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5 Na página 17. Bergson é apontado como uma das principais inspirações de Mussolini na Itália fascista.
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Bergson 5, Schopenhauer e Nietzsche, em razão das adesões destes à irracionalidade. Sua proposição não é de que tenha havido influência direta desses pensadores sobre o povo, como se a população pobre alemã fosse avidamente consumidora de textos de Nietzsche. Acredita que tenha ocorrido popularização demagógica de tópicos intelectuais. Lukács se vale de estratégias como a noção de vínculos subterrâneos entre ideologias valorizadas e doutrinas difundidas pela política (p.84). Um dos núcleos da argumentação consiste em que a condução das massas ao fascismo é viabilizada por sua fácil adesão a discursos irracionais que se apresentam com valor de verdade, com aparência de sustentação firme. Esses discursos, na perspectiva de Lukács, não resistem à análise filosófica rigorosa, mostrando inconsistências, formulações vagas, indeterminações que colocam em risco a possibilidade de distinguir verdade e mentira. Lukács vê a Alemanha como um "centro de hostilidade à razão", mapeia seus movimentos de declínio intelectual, assinalando suas repercussões sociais, e quer, nessa perspectiva, investigar as conexões profundas entre a história das idéias e a conduta política dos segmentos da sociedade alemã. Para ele, o irracionalismo adotado pelos pensadores se converte, na difusão ideológica, em base para submissão ao autoritarismo. Para explicar como a Alemanha teria se tornado esse centro irracional, Lukács remonta às origens da formação social do país. Sem pretender retomar linearmente toda sua narração, cabe ressaltar alguns aspectos fundamentais. O pensador recua ao século XVI e estabelece uma perspectiva, desde o início, contrastiva. A Alemanha teria uma singularidade em meio ao contexto europeu, e em particular diferenciação com relação à França e à Inglaterra. No processo de mudanças ocorridas posteriormente ao declínio do feudalismo na Idade Média, estas duas nações teriam conseguido constituir muito antes da Alemanha uma burguesia moderna. Entre os fatores que teriam prejudicado a nação alemã, estariam conflitos de guerra no século XVI e as mudanças econômicas decorrentes da ocupação das Américas e da Índia. Comparada com a França, a Alemanha tinha condições muito precárias de vida. Estas eram comandadas por uma burocracia ineficiente. O luteranismo teria cumprido o papel de desenvolver na população uma postura servil e submissa. Em termos gerais, do século XVI ao XIX, o que Lukács vê na Alemanha é, em escala única na Europa, uma enorme fragmentação social e ideológica, constituída objetivamente pela dispersão geográfica e política, que impedia qualquer senso de consciência da sociedade como um conjunto articulado.
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França e Inglaterra teriam constituído condições de estabelecimento, com bases políticas e ideológicas, de unidade nacional, enquanto Alemanha e Itália padeciam de problemas estruturais internos. A Alemanha não tinha, como a França, um centro político e cultural ativo como Paris. O resultado da fragmentação era o despreparo da sociedade para a compreensão de suas próprias demandas e perspectivas. Lukács explica que a população era facilmente influenciável por propagandas, estava despreparada em termos de formação educacional para pensar sua condição de existência, e não tinha condições de lutar por seus próprios interesses. No contexto histórico do período romântico, desorientada, a população assimilava a difusão de concepções da história alemã mistificadas, pautadas na "essência alemã" que teria tido um desenvolvimento glorioso. A história era apresentada e divulgada de modo falsificado e irracional. A unidade nacional foi imposta de cima para baixo, com conflitos pesados. A política de Bismarck teria contribuído de modo decisivo para o irracionalismo, estando em sintonia com pensadores voltados para a atitude reacionária. A partir da instauração do Reich, na Alemanha teria se desenvolvido o capitalismo fortemente. Cria-se, então, na perspectiva de Lukács, uma terrível contradição entre economia e política. Enquanto a primeira se moderniza geometricamente, a segunda fortalece seu conservadorismo. A entrada no imperialismo leva a uma expansão econômica sem precedentes, e a Alemanha se torna a nação européia cujo capitalismo é, para Lukács, depois de séculos de precariedade, o mais voraz do continente. Enquanto isso ocorria, intelectuais continuavam produzindo concepções históricas e sociológicas sobre a Alemanha, difundidas e propagadas, mantendo a noção da "essência alemã". Para Lukács as massas democraticamente não educadas assumiam memórias não democráticas como suas, desprezando por isso a democracia, e incorporando simpaticamente o interesse pelo nacional-socialismo nos anos 20 deste século. Foi cultivada uma atmosfera de desespero, de pessimismo, de dependência social que tornava atraente o apelo à consolidação de um Estado autoritário. Desenvolvendo receptividade a doutrinas vinculadas a Nietzsche e Spengler, a população combina atribuição de verdade e desorientação irracional na vida real, segundo Lukács, em sintonia com princípios dos prestigiados autores. Padrões de conduta foram manipulados, graças às ideologias difundidas a partir de interesses da elite dominante. Nisso Lukács vê com convicção o efeito subterrâneo nas massas das ideologias que analisa no livro.
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Filósofos teriam conseguido estabelecer premissas convincentes para discursos dedicados à resignação perante a realidade. O pessimismo irracional, defendido por intelectuais prestigiados, seria adotado por Hitler nas ruas. Sobretudo desde Nietzsche, a defesa da intenção de compreender o mundo racionalmente teria sido agredi da e sucumbido ao desprezo. Um fator importante para a ascensão do nazismo, segundo Lukács, seria o fato de que, ambiguamente, o partido nacional-socialista se apresentava ao mesmo tempo como dotado de legitimidade por valores dominantes (conservador, portanto) e revolucionário. A aceitação do evidente paradoxo é plausível em um contexto de desespero, em que as superstições proliferam. O misticismo foi adotado em âmbitos educados e cultos, e estes contribuíram para a difusão entre a população. Como as superstições podem motivar inseguranças, e o desespero pôde ser fartamente explorado, Lukács vê nessa associação de elementos uma sólida base para a ascensão do nazismo e a hostilidade à razão na Alemanha, sempre salientando a convergência do processo político e da linha de conduta na história das idéias. Lukács defende que o conhecimento não pode ter neutralidade política ou pairar acima da vida social. Não é possível compreender a diferença entre racionalidade e irracionalidade em termos puramente imanentes, fora de uma perspectiva social. Os critérios de verdade teórica deveriam estar associados à práxis, como define o materialismo dialético. Essas preocupações remontam à sua reflexão na década de 20 sobre os modelos científicos. Quando se apresentam fechados, sem considerar as condições materiais em que são propostos, explica em História e consciência de classe, renunciam a compreender a realidade. A ele incomoda particularmente que debates acadêmicos sérios sejam substituídos por distorções de fatos, calúnias e demagogias voltadas a polêmicas inócuas. São fundamentais para Lukács as escolhas que fazemos sobre as condições de conhecimento da realidade. Com relação a esse aspecto, no livro, o primeiro pensador a ser examinado de maneira mais demorada é Schelling. Para Lukács, ele seria o responsável pela proporção que o idealismo conservador tomou na Alemanha (p.142). A proposição fundamental de Schelling seria a valorização da intuição como forma de conhecimento. Schelling propõe que para chegar ao conhecimento não são provas concretas, meditações sobre conceitos, etapas para chegar a conclusões. O mundo é um fluxo amorfo apreendido pela intuição. Nesse fluxo, em que vida e morte se indistinguem, o conhecimento da essência só é possível para os que dispõem da capacidade de intuição. Esses, interpreta Lukács, são como escolhidos dotados de um traço
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especial, para quem intuição e fluxo discursivo se misturam. Lukács localiza as raízes medievais da idéia, e atribui à posição de Schelling uma aristocracia epistemológica, pois o conhecimento só é dado a poucos. Nesse sentido, por contraste, elogia Hegel, que acreditava ser a dialética um princípio assimilável por todos. De acordo com Nicholas Tertulian, neste ponto, existe firme concordância entre Lukács e Theodor Adorno: ambos valorizam Hegel em detrimento de Schelling, com convicção vigorosa 6 • Quando a burguesia se consolida na Alemanha, encontra sua expressão filosófica em Schopenhauer. Segundo Lukács, é com ele que a ação individual se desvincula claramente da base social. O indivíduo propõe a si como auto-suficiente, absoluto em si mesmo. O egoÍsmo burguês é formulado como atributo do homem em geral. A associação entre individualismo radical e pessimismo em Schopenhauer resulta em uma abstenção de interesse por toda atividade social, e por qualquer esforço em mudar a sociedade, sendo toda atividade política nesse sentido vã. O caráter radicalmente conservador de sua filosofia teria tornado o autor, conforme a interpretação de Lukács, o melhor suporte ideológico para o imperialismo alemão. O individualismo desenfreado das lideranças e da elite estaria inteiramente legitimado. Schelling e Schopenhauer não se comparam a Nietzsche, nem em complexidade, nem em repercussão internacional. Testemunha do nascimento do Reich, Nietzsche tem uma produção que se altera ao longo dos anos e, para Lukács, é difícil captar sua unidade. Entre os traços que ressalta em obras de Nietzsche, estão: a opção pelo pensamento em aforismos, que permite, pela forma breve das unidades e pela multiplicidade, a manipulação de idéias de acordo com interesses contingentes de associação entre elas: a contrariedade a qualquer sistematização (em especial a hegeliana); a idéia de super-poder, associada a valores militares, com a determinação de que a ascensão do estado militar é a condição para sustentar a tradição e ter no horizonte um homem elevado e forte; a convicção de que existe refinamento cultural e moral em exercer brutalidade e crueldade contra os "alienígenas", isto é, os diferentes, aqueles a quem se quer oprimir; a necessidade de, na alta civilização, haver trabalho livre para uns e trabalho forçado para outros; e a crítica da noção, defendida na Inglaterra, de representação popular na vida política. Lukács escolhe a dedo as citações comprobatórias de seus juízos, estabelecendo um fio condutor de reconhecimento do caráter autoritário das idéias nietzscheanas. Depois de acompanhar a metódica crítica conceitual que Lukács faz de pensadores consagrados, passando pela discussão do darwinismo social, de teorias racistas, e de outras ideologias em circulação na
TERTULIAN, Nicholas. Lukács, Adorno et la philosophie classique allemande. Archives de philosophie. Paris: Centre National de Recherche Scientifique, 1984. TA7. C.2. p.189. 6
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Alemanha, o leitor vai sendo aproximado, pouco a pouco, do passado mais recente, e encontra Adolf Hitler. Lukács não apenas demonstra a interiorização direta e indireta nas lideranças nazistas de idéias que foram produzidas por intelectuais de renome anteriormente estudados, como seleciona passagens de textos do próprio líder nazista para submeter à avaliação de sua irracionalidade. Lukács contextualiza o assunto com rigor, e estabelece a diferença entre o discurso filosófico e o discurso político. Embora o segundo seja constantemente alimentado por motivos retóricos e estratégias persuasivas procuradas no primeiro, Lukács deixa claro que, para Hitler, não se tratava de modo algum de defender adesão a uma concepção de conhecimento ou de mundo, mas de definir o uso político que poderia ser feito de uma ou outra concepção. Tendo estudado demagogia anti-semita, o líder nazista encontrou nas ideologias raciais um meio atrativo de conquistar as massas e sustentar um imperialismo destrutivo, dedicado à aniquilação de outros povos. Lukács resgata declarações de Hitler, das quais extrai observações fundamentais. O líder alemão acreditava que era importante ter um inimigo concreto, como forma de sustentação de poder. Desprezava manifestações emocionais do povo, preferindo a sobriedade, e considerando a conduta emocional "feminina". O estabelecimento de sua autoridade resultava de uma combinação demagógica de uma abordagem intuitiva da questão racial com uma formação ideológica anti-semita, e uma determinação de que na alta civilização existem ainda homens considerados inferiores, tudo isso sendo disseminado por técnicas de propaganda cuidadosamente planejada. O super homem e a crueldade legítima de Nietzsche, a intuição de Schelling, o egoísmo de Schopenhauer encontram de fato certas afinidades, ressonâncias diretas ou indiretas nas manifestações do líder nazista. Mantendo sempre a fidelidade ao marxismo, declarando fortemente sua indignação com o pensamento que se recusa a aceitar a dialética, Lukács procura desvendar as condições através das quais poderia dar visibilidade a uma experiência alternativa em que todo homem fosse capaz de compreender a realidade à sua volta e ser capaz de transformá-la. Logo depois de Hitler ser derrotado, e dentro da Guerra Fria, Lukács vai encontrar no romantismo, especificamente em suas tensões com o iluminismo, e em Schelling, especificamente em sua oposição ao pensamento dialético, as bases de um processo de constituição de uma sociedade suscetível a mitos, a dominações perversas e a lideranças assassinas. A tese de Lukács é humanista, minuciosamente construída, detalhada e encadeada. A destruição da razão é um trabalho erudito de
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elevadíssimo fôlego, trabalhado com coesão interna e minúcia rigorosa. Porém, o livro é incompreensível se não for percebido que sua trama de articulações é elaborada a partir de uma perspectiva contingente, que sinaliza a impossibilidade de compreender a enorme perda humana representada pela experiência da segunda guerra. George Steiner assim caracteriza o texto: É a tentativa de um filósofo de resolver o mistério que Thomas Mann dramatizou em Doktor Faustus. Como se desencadeou a maré de negror na alma alemã? Lukács traça as origens do desastre até o irracionalismo de Schelling. Mas, ao mesmo tempo, insistiu na integridade e força vital dos valores 7 humanitários.
Steiner discorda da interpretação que Lukács faz dos filósofos, considerando que a condenação de Kierkegaard e Nietzsche ao "inferno espiritual do pré-fascismo" são "falhas de visão" que "enfeiam" o texto; a causa dessas falhas seria a vontade inflexível de encontrar culpados, por sua crença na necessidade histórica. O argumento exige a aceitação de uma premissa passível de questionamento - a linha de continuidade. Schelling jamais poderia prever, em seus escritos filosóficos, entrando em conflito com Hegel, que sua defesa da intuição seria reelaborada por pensadores sociais racistas, e que estes serviriam de instrumento para um líder alemão ordenar massacres. Schopenhauer, por mais conservador que fosse, nunca teve intenções militares similares às de Hitler. Mesmo no caso de Nietzsche, o próprio Lukács admite ser tão grande a variação interna de posições ao longo de sua produção que seria imprudente desconsiderar suas contradições caracterizando seu perfil apenas em função das afinidades com o discurso fascista. Era preciso encontrar elos de causalidade que levassem à verdade objetiva8 • A destruição da razão é um livro que, mesmo com a força metálica da reflexão racional de um Lukács maduro e erudito, cede constantemente à melancolia inconformada. O autor quer explicar, com o rastreamento no passado, as origens do horror que no passado recente tinha dominado a Alemanha. A melancolia é percebida de modo mais claro justamente nos sinais de limitações de sua reflexão, mencionados anteriormente, na explicitação dos riscos de erro, de que foram utilizadas estratégias seletivas, de que há possibilidades de generalização a evitar, nos movimentos avisados ao leitor de recuo eavanço reflexivo.
STEINER, George. Georg Lukács e o seu pacto com o demônio. In: STEINER, George. Linguagem e silêncio. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.291.
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Idem, p.298. Com outros parâmetros, também Michael Lowy apresenta fortes restrições ao livro. Considera que Lukács elaborou uma concepção estreita do romantismo em A destruição da razão, tendo mantido uma relação muito ambígua com o movimento. Para Lowy, o livro apresenta a história do pensamento alemão desde Schelling como um imenso esforço de contrariedade à razão, tratando as correntes românticas como responsáveis por uma "irracionalização geral da história" e posteriormente pela ideologia fascista. LOWY, Michael. Romantismo e messianismo. São Paulo: Perspectiva, 1990. Conforme p.32-33 e 71-72. 8
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2. A literatura contra o irracionalismo
LUKÁCS, Georg. Teoria do romance. Lisboa: Presença, s.d. p.109-110.
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Idem, p.50.
11
Idem, p.98-103.
12 LUKÁCS, Georg. Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels. In: LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p.31-2.
o contexto de A destruição da razão tem afinidade de concepção com as condições de produção do gênero romance, em que um herói problemático busca sentido em um mundo desestruturado, conforme exposto na Teoria do romance escrita por Lukács 9 • Tal como no caso do romance, não há uma transcendência capaz de ordenar tudo, como no idealizado universo da épica grega IO . No mundo moderno, o indivíduo é reduzido à condição reificada e o sentido de sua existência é dolorosamente posto em dúvida II . Enquanto em 1920 o indivíduo em questão é um personagem de ficção, em 1952 o problema da dificuldade de estabelecimento de sentido para a existência é um problema propriamente histórico, de dimensões coletivas e políticas ostensivas. Enquanto o primeiro livro foi escrito no contexto da Primeira Guerra Mundial, o segundo elabora a experiência alemã após a derrota do nazismo. Longe de estar seguro, o livro deixa clara a possibilidade de renovação das forças autoritárias, e se propõe a buscar explicações para a constituição dessa experiência. No entanto, não há convicções suficientes ou determinismo. Embora dotado de longo fôlego de reflexão e extremamente meticuloso, A destruição da razão não aponta caminho seguro algum. Nenhuma frase do livro acentua que, se a razão tivesse prevalecido sobre a irracionalidade na história das idéias alemãs, não teria ocorrido o nazismo. Nenhuma ingenuidade o faz crer que na França, em que o iluminismo teve desenvolvimento diferente e alcances de influência mais amplos, estaria excluída a possibilidade de desigualdade social ou de irracionalismo. Ao condensar uma avaliação sistemática de documentos filosóficos e uma narração sintética da história da Alemanha, estabelecendo vínculos insuspeitados entre intelectuais e sociedade, Lukács faz um trabalho que não se distancia do historiador, calcado no materialismo dialético, que quer compreender a luta de classes. Confrontos entre grupos estão presentes em A destruição, apontados em datas e locais. Agradava a Lukács que o escritor realista agisse como "historiador"I2. No entanto, não há no fio condutor da obra personagens ficcionais configurados como heróis problemáticos, mas a própria massa de alemães destituídos de educação digna, perdidos entre alternativas duvidosas de futuro. Uma passagem do livro Teoria do romance deve ser recordada neste momento. No capítulo dedicado ao livro de Goethe Wilhelm Meister, Lukács explica o que há de original na forma do romance, em contraste com o universo da epopéia grega. Para explicar a importância da ironia no livro, Lukács aponta que é preciso considerar
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um elemento novo - "a hierarquia irracional e não racionalizável das estruturas sociais e das suas diversas camadas, conforme são mais ou menos permeáveis ao sentido"13. Longe de ser casual, a adjetivação "irracional e não racionalizável" chama a atenção para a necessidade formal, no romance, de formular as condições de funcionamento da sociedade tendo em conta sua irracionalidade estrutural e, mais do que isso, adequando a forma a essa irracionalidade. O período a que se vincula Wilhelm Meister, em termos de contextualização histórica, está muito próximo do mesmo em que Schelling formula a sua filosofia voltada para a intuição. A valorização de Goethe por conseguir encontrar, através da ironia do romance, uma maneira de representar a irracionalidade das estruturas, é inteiramente complementar e coerente com relação ao ataque a Schelling. O modo de formular o problema, por parte do Lukács, não apenas acentua que o problema, em termos literários, parte de um desafio das próprias estruturas sociais, que não permitem racionalização, como aponta a dificuldade de atribuir sentido ao que é representado. Na Teoria do romance, mais especificamente na leitura de Goethe, portanto, Lukács vai formular sua percepção de uma irracionalidade inerente à sociedade alemã, o que consiste em um ponto importante de continuidade em seu exercício de reflexão. Em 1938, Lukács escreveu o ensaio Marx e o problema da decadência ideológica. Nesse texto, encontramos a seguinte reflexão:
o irracionalismo como concepção do mundo fixa esta vacuidade da alma humana de qualquer conteúdo social, contrapondo-a rígida e exclusivamente ao esvaziamento, igualmente mistificado, do mundo do intelecto. Assim, o irracionalismo não se limita a ser a expressão filosófica de cada vez mais intensa barbarização da vida sentimental do homem, mas a promove diretamente. Paralelamente à decadência do capitalismo e à agudização das lutas de classe em decorrência de sua crise, o irracionalismo apela - sempre mais intensamente - aos piores instintos humanos, às reservas de animalidade e de bestialidade que necessariamente se acumulam no homem em regime capitalista. Se as mentirosas fórmulas demagógicas do fascismo, invocadoras do "sangue e do solo" puderam encontrar uma tão rápida difusão nas massas pequenoburguesas seduzidas pelo fascismo, é grande a responsabilidade que recai objetivamente sobre a filosofia e a literatura da decadência, que evocam estes instintos nos leitores e contribuem de fato para os cultivar, se bem que,
13 LUKÁCS, Georg. Teoria do romance. op.cit. p.162-3.
Literatura e autoritarismo em Georg Lukács
14 LUKÁCS, Georg. Marx e o problema da decadência ideológica. In: LUKÁCS, Georg. Marxismo e teoria da literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p.69.
15 LUKÁCS, Georg. Trata-se do realismo! In: BARRENTO, João, org. Realismo, materialismo, utopia. Lisboa: Moraes, 1978. p.44.
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na maioria dos casos, não pensassem sequer longinquamente nas aplicações práticas que deles faria o fascismo, e inclusive - muito freqüentemente - chegassem mesmo a rechaçá-las 14 com indignação. Encontramos na passagem a antecipação de alguns dos pontos fundamentais de A destruição da razão. O autor defende que o irracionalismo afasta o indivíduo da base social da experiência (problema aprofundado no estudo sobre Schopenhauer) e promove a degradação humana. Associa irracionalidade e capitalismo (como faz nos comentários sobre William James). Está convicto de que o pensamento irracional está associado à persuasão que fascistas conseguem ter na comunicação com as massas, tal como no seu capítulo dedicado a Hitler no livro de 1952. Coerentemente, estabelece o conceito de luta de classes e os referenciais marxistas como base para formulação do problema. O ponto a enfatizar é "a responsabilidade que recai objetivamente sobre a filosofia e a literatura da decadência". Em A destruição da razão, Lukács está dedicado a trabalhar com história da filosofia, e a literatura, embora não esteja ausente da reflexão, não a centraliza. Pode-se perceber que para o autor, em 1938, a filosofia e a literatura estão colocadas lado a lado, como tendo um peso equivalente de responsabilidade na difusão do fascismo. A data do texto, no caso, é fundamental. O autor ainda não tinha conhecido os horrores de que Adolf Hitler viria a ser capaz nos anos 40. Mesmo assim, já fala com convicção sobre a conexão entre a intelectualidade e o impacto do fascismo nas massas, como se sondasse no espaço à sua volta um movimento de crescente barbárie. É importante ressaltar que, quando Lukács escreve A destruição da razão, ele mesmo já tinha se tornado parte da história das idéias, ele mesmo já tinha entrado em conflito direto com outros pensadores. Assim, seu empreendimento é ao mesmo tempo teoria e aplicação, exposição conceitual e trabalho reflexivo, em coerência - ele defende dentro do livro que os critérios de formulação da racionalidade devam ser examinados em perspectiva social, e é isso que põe em prática em seu próprio trabalho. A respeito da condição intelectual necessária para a postura crítica, o autor expõe que, se queremos nos tornar aptos a entender o modo como idéias reacionárias invadem nossas mentes, e se queremos tomar distanciamento crítico de preconceitos, isso somente pode ser conseguido com "um trabalho duro, um abandonar e um ultrapassar da imediaticidade, um pesar e medir de todas as vivências subjetivas ( ... ) tomando como referência a realidade social, um prescrutar mais profundo da realidade"15.
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Salta aos olhos, sobretudo nos dois capítulos finais, a enorme importância que o momento presente tem para que ele estabeleça seus próprios critérios de valor. Depois de passar meticulosamente pela análise de filósofos consagrados, Lukács se detém na abordagem de discursos estritamente políticos. O propósito é explícito e justo, indicar a linha de continuidade entre posturas filosóficas e construções ideológicas. É inevitável, porém, o abalo diante do vigor de determinação em propor vínculos lógicos entre termos originalmente muito distantes entre si. Um estranhamento é suscitado pela escrita de Lukács, que utiliza procedimentos de crítica e pautas de valores similares para falar do filósofo romântico Schelling e do líder do nazismo Adolf Hitler. Longe de ser uma falha ou um excesso, esse choque é a culminância de intenções profundas do livro, e a vertigem que o unifica. Não há final feliz na estória narrada por Lukács. A leitura do capítulo de Schelling, em razão da preocupação calculada do autor em manter textos e contextos articulados, é bem marcada pela visualização de uma Alemanha diferente daquela em que Lukács vivia. A seqüência de capítulos vai aproximando aos poucos o leitor do momento presente para o autor, início dos anos 50, pouco tempo depois da segunda guerra mundial. Lukács se revela não apenas um intérprete agudo da experiência recente da Alemanha, como está convicto de que o irracionalismo mantém sua permanência, como ameaça insuspeita. O título então se mostra não como uma hipótese, mas como, ao mesmo tempo, uma constatação de uma realidade em processo e um alerta quanto às possibilidades de futuro. Lukács estava particularmente preocupado com a Guerra Fria e a iminência do retorno da convulsão internacional. A irracionalidade a que atribuía responsabilidade por desumanização no passado estava à sua volta. Comparando o texto de 1938 com o de 1952, é possível observar a continuidade argumentativa franca. No primeiro caso, o autor via o fascismo se consolidando; no segundo, lamenta os horrores que dele resultaram na segunda guerra. O problema básico permanece o mesmo - os danos causados pela difusão de idéias irracionais. Em 1938, no mesmo ensaio sobre Marx, Lukács comenta a respeito do papel dos escritores. Seus juízos de valor são claros. O autor se indigna com Rainer Maria Rilke e elogia Daniel Defoe. Logo após a passagem anteriormente transcrita, temos uma análise de um poema de Rainer Maria Rilke do Livro das imagens, sobre o estado de solidão de Carlos XII, rei da Suécia, em meio à vida guerreira. Lukács atribui ao poema de Rilke bestialidade e mediocridade, e ao autor a fraqueza de ter sido atingido pelo irracionalismo l6 . Quanto a Defoe, pelo contrário, defende:
16 LUKÁCS, Georg. Marx e o problema da decadência ideológica. op.cit. p.70-1.
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17
Idem. p.89.
18 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. op.eit. p.18.
19
Idem, p.66.
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Que se recordem os horrores da época da acumulação capitalista na Inglaterra. Defoe, grande realista, descreveu, com amplo e profundo realismo, no admirável MoU Flanders, a vida dos homens triturados por este processo. O seu realismo traz o calor do seu grande amor pelo homem; a têmpera indomável de sua contraditória mas heróica protagonista só poderia nascer de um similar amor pela vida, que não se 17 deixa ofuscar pelos horrores da sociedade. O artigo Marx e o problema da decadência ideológica, examinado sob essa perspectiva, permite a formulação de uma chave de compreensão dos juízos do pensador. O valor negativo de Rilke está em seu irracionalismo; o valor positivo de Defoe, em seu realismo. Os dois termos se opõem, como polaridades inconciliáveis. Enquanto Rilke contribuiria para a degradação, Defoe, pelo contrário, ao descrever conseqüências nefastas do capitalismo, realiza uma obra admirável. Por essa ótica, todo o vigoroso ataque ao irracionalismo em A destruição da razão corresponderia coerentemente à valorização do realismo como concepção de arte. Embora não confunda nunca arte com filosofia ou ciência, tanto nas suas reflexões sobre as possibilidades do conhecimento filosófico e do conhecimento científico como nas suas reflexões estéticas, Lukács se debate com um ponto constante - a capacidade de compreensão da realidade por parte do homem. Em História e consciência de classe, esse problema é um dos principais fios condutores da reflexão geral. O autor quer encontrar um caminho intelectual para permitir, na perspectiva do materialismo dialético, a compreensão da realidade, não com um fim em sim mesma, mas com o objetivo de transformá-la - "para o método dialético, a transformação da realidade constitui o problema central'''8. Em sua opinião, o estudo válido se daria com orientação marxista, contra o pensamento burguês, e procuraria examinar a sociedade como totalidade concreta. Isso depende de construir "uma situação efetiva" em que seja "possível desmascarar realmente a ilusão e penetrar até a conexão com a totalidade"19. É importante ressaltar de que ilusão Lukács está falando. Em sua percepção, em uma sociedade com luta de classes, a maioria oprimida pela classe dominante não tem consciência lúcida a respeito de sua condição oprimida. A ausência dessa consciência apresenta como evidência natural ou irreversível uma condição que na verdade é resultado, para o marxismo, de conflitos econômicos e políticos, e estabelecimentos de hierarquias de poder. Desfazer a ilusão consiste em trazer ao homem a lucidez com relação aos mecanismos que constituem sua própria condição de existência.
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Nesse aspecto, é fundamental o conceito marxista de reificação. Em História e consciência de classe, Lukács transcreve termos do próprio Marx, de O Capital, para defini-lo.
O caráter misterioso da forma mercantil consiste pois, simplesmente, no fato de ela revelar aos homens as características sociais de seu próprio trabalho como propriedades sociais naturais dessas coisas e, por conseguinte, também a relação social entre os produtores e o conjunto do seu trabalho, como relação exterior a eles, relação entre objetos. Por este qüiproquó, os produtos do trabalho tornam-se mercadorias (. .. ) e não é senão a relação social determinada dos próprios homens que para eles reveste aqui 20 a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas.
20
Idem, p.lOO.
Desfazer a falsa percepção de que situações resultantes de relações sociais são situações naturais é tarefa do conhecimento racional da realidade. Enquanto as forças defensoras do capitalismo procuram manter os esquemas de dominação em favor de seus próprios interesses, caberia criar condições para desfazer esses esquemas, a partir de uma compreensão racional de como o sistema se constitui e funciona. Na literatura, o problema seria formulado do seguinte modo. Em um artigo intitulado Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels, de 1945, ano de mudanças e renovações, com o fim da Segunda Guerra Mundial, Lukács se dedica, com empenho vigoroso, a explicar a especificidade e a importância dos escritores realistas. A concepção marxista do realismo é a do realismo da essência artisticamente representada. Ela representa a aplicação dialética da teoria do reflexo ao campo da estética. E não é acidental que o conceito de tipo seja aquele que com maior clareza evidencia tal peculiaridade da estética marxista. (. .. ) Essa determinação marxista do realismo prolonga a linha que grandes mestres do realismo, como Fielding, adotaram na sua prática artística; esses mestres se intitulavam historiadores da vida burguesa, historiadores da vida privada. 21
o artigo, embora se apresente como tendo o propósito de expor idéias de Marx e Engels no campo da estética, se converte em um dos textos em que, de modo mais sintético, Lukács estabelece determinações conceituais quanto à sua concepção de valor literário e suas prioridades na compreensão de textos. O termo essência se opõe no artigo à
LUKÁCS, Georg. Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels. op.cit. p.31-2. 21
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aparência, indicando que a realidade a ser representada não é considerada em sua superfície, mas nas leis mais profundas de seu modo de funcionamento. Por essa razão, Lukács combate o naturalismo, que se ocuparia com a superfície, em detrimento da essência.
3. Critérios de valorização estética e função social Além de combater o naturalismo, Lukács se opôs às vanguardas de virada de século, e de modo geral a todo o processo de fragmentação que percorreu a arte moderna. O juízo de valor sobre essas formas se distingue do emitido por autores que ele cita na Estética Walter Benjamin, Hugo Friedrich - e por Ernst Bloch, a quem respondeu minuciosamente em um artigo publicado em 1938, em que claramente propõe a discussão de teoria literária como discussão política. Ao defender o realismo, Lukács sustenta que
" LUKÁCS, Georg. Trata-se do realismo! op.cit. p.62.
" IHA, Prabhakara. Pour une sociologie du romano D'apres Lukács, Bakhtin et quelques autres. Diogene. Paris: Gallimard, jan-mars 1985. n.129. p.67. " LUKÁCS, Georg. Cuestiones lilljinares de lo estético. In: LUKÁCS, Georg. Estética. Barcelona: Grijalbo, 1966. V.I. p.381.
( ... ) mediante a compreensão das grandes épocas progressistas e democráticas na evolução da humanidade, que a obra de arte realista nos proporciona, é preparado, no íntimo das grandes massas, um solo fértil para a democracia revolucionária (... ) Quanto mais enraizada neste solo se encontra a literatura de combate antifascista, tanto mais profundamente alicerçados serão os tipos exemplares e odiosos que ela cria - tanto maior será a sua ressonância . do povo. 22 no selO Em James Joyce e outros representantes da vanguarda literária, é preciso que o leitor tenha uma certa senha, segundo Lukács, para entender o "jogo" proposto pelo texto. Indignado, o autor declara: "a maioria das pessoas não pode aprender nada com a literatura de vanguarda". A argumentação do autor, ao longo do artigo, prioriza a democratização do acesso à compreensão da realidade. De acordo com Prabhakara Jha, existe em Lukács uma indignação contra o crescimento desenfreado do capitalismo, fazendo aumentar uma sociedade de massas sem acesso à cultura erudita, misturando de modo confuso civilização e barbárie. 23 Na Estética Lukács recorre à Poética de Aristóteles, e associa a teoria do reflexo ao conceito de catarse. A interpretação do texto grego leva Lukács a defender que "a força pedagógica social da arte nasce de sua própria fruição estética"24. Na perspectiva do materialismo
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dialético com que trabalha, a Estética encontra na catarse uma mediação argumentativa importante. O momento de tomada de consciência do leitor de uma obra realista, que, na perspectiva dialética, permitirá desfazer o efeito danificador da reificação mercantil, abrindo condições para compreensão da realidade, é análogo ao momento de catarse. Guardadas as proporções entre os universos conceituais, a analogia se vincula ao papellibertário que Lukács quer atribuir à arte. Mais do que isso, uma função "pedagógica", uma tomada de consciência como acesso a uma aprendizagem. Para Agnes Heller, Lukács priorizou um método que permitisse uma ligação firme entre a arte superior e o cotidiano, em que uma "recepção catártica" estimularia nos homens uma capacidade de intervir criativamente no âmbito das suas ações 25 . Se em A destruição da razão, como foi exposto anteriormente, Lukács defende a necessidade de utilizar o racionalismo como método para perceber os dados objetivos da realidade como um sistema inteligível, na Estética, o autor propõe: "A fidelidade à realidade objetiva não pode ser, pois, a fidelidade às singularidades; estas teriam que se generalizar, pelo contrário, energicamente, para poder se ordenar em um sistema", sendo que este não deve nunca abandonar o terreno da vida concreta26 . Tanto para o racionalismo na filosofia, como para o realismo na arte e na literatura, é fundamental a percepção da realidade como um sistema, compreendido a partir de pressupostos dialéticos que ultrapassam a percepção superficial. A teoria do reflexo, em que sustenta a valorização do realismo, é explicada detalhadamente no texto Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels. Para formulá-la, Lukács remonta à concepção de mimese em Aristóteles e à ação em Hamlet, de Shakespeare, em que uma peça é encenada dentro de uma peça. É preciso, para ele, evitar "qualquer tendência presa à reprodução fotográfica da superfície imediatamente perceptível do mundo exterior"27. Segundo ele, "ocultos sob a capa dos fenômenos", estão "momentos essenciais", cabendo ao artista representar a dialética entre o fenômeno exposto à percepção direta e a essência, encontrada em um nível mais profundo:
Tal dialética atravessa toda a realidade, de modo que, numa relação desse tipo, relativizam-se aparência e realidade ( ... ) A verdadeira arte visa o maior aprofundamento e a máxima compreensão ( ... ) A verdadeira arte, portanto, fornece sempre um quadro de conjunto da vida humana, 28 representando-a no seu movimento. O conceito de tipo é fundamental para a sustentação da teoria do reflexo. Em uma obra de ficção, um personagem pode ser caracterizado
25 HELLER, Agnes. Lukács y la Sagrada Familia. op.cit. p.186.
26 LUKÁCS, Georg. La categoria de la parti cularidad. In: LUKÁCS, Georg. Estética. Barcelona: Grijalbo, 1966. v.I. p.240.
LUKÁCS, Georg. Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels. op.cit. p.26-7. 27
28
Idem, p.29.
Literatura e autoritarismo em Georg Lukács
SARLO, Beatriz & ALTAMIRANO, Carlos. Conceptos de sociologia literária. Buenos Aires: CEAL, 1993. p.136-7. 29
LUKÁCS, Georg. Nota sobre o romance. In: LUKÁCS, Georg. Sociologia. São Paulo: Ática, 1981. p.181.
30
LUKÁCS, Georg. Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels. op.cit. p.37. 31
32
Idem, p.39.
33
Idem, p.4I.
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como um tipo se nele for configurada não uma singularidade individual definida de modo gratuito, mas uma unidade dinâmica em que as contradições sociais, morais e psicológicas de uma época estão articulados. De acordo com Beatriz Sarlo e Carlos Altamirano, a tipificação não deve ser entendida como transcrição passiva de dados da realidade, nem representação de um termo abstrato médio, de uma caricatura. A construção de um tipo é uma operação que permite apresentar uma referência significativa, capaz de esclarecer os traços principais "de uma totalidade social e histórica determinada"29. Nos termos de Lukács, "nos grandes romancistas, nem na ação nem na representação, o típico não significa a média; ao contrário, o típico se alcança pelo desvelamento enérgico das contradições que aparecem nos caracteres excessivos e nas situações extremas"30. Os escritores de ficção são tratados por Lukács como "historiadores da vida privada". Hoje essa expressão, no âmbito acadêmico, tem estatuto disciplinar, e contempla uma área de conhecimento. Em Lukács, a expressão remete a procedimentos de elaboração ficcional que está valorizando prioritariamente. O assunto das obras realistas deve ser referente ao processo histórico-social - agradam a Lukács narrativas com relação às quais a atenção às personagens permita compreender com lucidez contradições e problemas referentes aos princípios de funcionamento da sociedade representada. Seu interesse recai sobre estórias em que a realidade é exposta não apenas em sua superfície, mas em seus elementos essenciais. Em sua argumentação, o escritor francês Balzac é apresentado como modelo de excelência literária. Sua obra consistiria em uma "defesa da integridade do homem durante a ascensão capitalista iniciada em França na época da Restauração"3l. Lukács analisa em Balzac efeitos contraditórios do capitalismo. Por um lado, a superação do feudalismo; por outro, uma dilaceração do homem. Ao apontar a contradição, dando visibilidade a tensões que não são compreendidas com facilidade por homens que a vivem, Balzac contribui para uma "corrente progressista da evolução humana". E sintetiza: "Grandeza artística, realismo autêntico e humanismo são sempre indissoluvelmente conexos "32. Nesse artigo de 1945, Lukács propõe a articulação entre arte e história em perspectiva epistemológica: "O humanismo socialista torna possível à estética marxista a unificação do conhecimento histórico e do conhecimento artístico, a contínua convergência na direção de um ponto focal do juízo histórico e do juízo estético"33. De acordo com essa formulação, o valor atribuído a uma obra de arte não se dissocia nunca do conhecimento histórico. Portanto, essa formulação serve de
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ponto de ligação entre termos que estão disseminados na produção de Lukács. "A crítica deve ser baseada, de todo modo, em um acurado e profundo conhecimento das realidades da história"34. Julgar Defoe superior a Rilke, além de supor conhecimento sobre literatura, supõe necessariamente contextualização histórica e, mais do que isso, juízo histórico, o que implica uma capacidade de interpretação da história social com base em uma pauta de valores. Necessariamente, em decorrência disso, a compreensão das obras literárias deve levar em conta uma consciência sobre qual é essa pauta. Essa premissa terá desdobramentos fundamentais na Estética de Lukács. Na parte dedicada à autoconsciência do gênero humano, o autor explica que para que um indivíduo compreenda sua própria condição deve ter em conta, seguindo a orientação marxista, a vida social. Por isso, a consciência individual é obtida por um processo de articulação dialética entre singularidade e generalização, em que as atividades individuais são observadas em sua natureza material e sociaPs. Essa dialética pode ser obtida através do reflexo artístico das obras realistas. A passagem da superfície à essência exige recursos estéticos elaborados, como o emprego do tipo, anteriormente mencionado. O personagem típico, tal como Lukács definiu em 1945, elabora essa dialética entre singularidade e generalidade. O leitor pode perceber, em um personagem típico bem construído (Moll Flanders foi indicada como exemplo em 1938) contradições da sociedade observada em seu conjunto. Ele próprio, leitor, faz parte da sociedade cuja constituição é representada na obra. A tomada de consciência sobre sua opressão ocorre, portanto, no momento em que o processo dialético ocorre. Conforme na própria recuperação do pensamento de Hegel proposta por Lukács, ocorrem preservação, negação e passagem. O leitor toma conhecimento a respeito de como se caracterizará a realidade, estabelece a negação concebendo a possibilidade de uma diferenciação do sistema e faz a passagem a uma nova compreensão de sua própria condição, em que estão implicadas contradições do sistema que, antes de ler a obra, ele não teria percebido. Como explica Lukács, o processo não é mecânico, imediato ou superficial. "Naturalmente, também aqui não se trata de cotejar, por meio de um procedimento mecanicamente fotográfico, os detalhes singulares observados antes na vida e depois na arte." Espera-se "quando se produz a eficácia", que "nasça freqüentemente uma luta entre experiências passadas e novas impressões provocadas pela arte"36. Lukács explica que o resultado do processo de interação com a obra é uma "unidade orgânica da interioridade do homem com seu mundo externo, ao dar forma a uma unidade da personalidade humana
34 LUKÁCS, Georg. Trata-se do realismo! op.cit. p.63.
LUKÁCS, Georg. Problemas de la mimesis. In: LUKÁCS, Georg. Estética. Barcelona: Grijalbo, 1966. V.I. p.249. 35
LUKÁCS, Georg. A arte como autoconsciência do desenvolvimento da humanidade. In: LUKÁCS, Georg. Sociologia. São Paulo: Ática, 1981. p.199. 36
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J7 LUKÁCS, Georg. La categoria de la particularidad. op.cit.p.235. O grifo na palavra "humanidade" é do próprio autor.
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com seu destino no mundo, se produz a superação desses dois extremos em um mundo do homem, da humanidade"3? Entre o sujeito humano e o mundo objetivo à sua volta, se estabelece uma relação que, para ser compreendida pelo primeiro, exige necessariamente o esforço de passagem da superfície à essência, e da singularidade à generalização, com a percepção do funcionamento do sistema.
4. Totalidade e resistência crítica
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. op.cit. p.87-8.
38
JAMESON, Fredric. Em defesa de Georg Lukács. In: JAMESON, Fredric. Marxismo e forma. São Paulo: Hucitec, 1985. p.144-6.
39
LUKÁCS, Georg. Problemas de la mimesis. op.cit. p.209.
40
41 LOWY, Michael. Romantismo e messianismo. op.cit. p.129.
Colocando o problema em termos coletivos, uma classe proletária capaz de tomar consciência de sua opressão através da leitura de obras literárias realistas, obtendo através do reflexo o desmascaramento da ilusão imposta no processo mercantil e a motivação da possibilidade de superação de limites, poderia perceber a si mesma como classe em uma nova condição, subvertendo as orientações opressoras do sistema. Nesse sentido, afastar a classe proletária desse horizonte libertário é prioridade para a elite dominante. É preciso evitar, do ponto de vista burguês reacionário, que o reflexo ocorra, que a catarse aconteça, que a história se mostre como resultado da ação de homens. O processo de transformação social exige, como prerrogativa, a passagem do dado imediato, da percepção da superfície, à queda das "falsas máscaras", convulsionando a sociedade com a força da ação consciente de confront038 - esse é um ponto determinante da sustentação dos argumentos de História e consciência de classe. Conforme Jameson, o conceito definido no título se refere à diferença de condições de conhecimento da realidade exterior, dependendo de qual a classe a que o indivíduo pertence, a burguesia ou o proletariado. O processo de transformação social é possível justamente na medida em que houver consciência de que o capitalismo é um fenômeno histórico que pode ser mudado desde seu interior, por ação de forças históricas 39 • A credibilidade da argumentação de Lukács depende de uma categoria fundamental, que comparece freqüentemente ao longo de sua produção. Trata-se da noção de totalidade. Na Estética, o autor defende seu valor para a teoria do reflex0 40 • Essa noção é herdada de Hegel, e na Teoria do romance já aparece como referência fundamental para pensar a integração entre imanência e transcendência, no estudo da epopéia. De acordo com Michael Lowy, nessa categoria estaria localizada a contribuição maior de Lukács, capaz de estabelecer "a relação entre as obras culturais e as correntes subterrâneas da realidade social"41. Terry Eagleton, ao comentar a teoria do reflexo, explica:
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Numa sociedade em que o geral e o particular, o conceptual e o sensual, o social e o individual são cada vez mais dissociados pelas alienações do capitalismo, o grande escritor une-os dialeticamente numa totalidade complexa. A sua ficção espelha assim, de forma microcósmica, a totalidade complexa da própria sociedade. Fazendo isto, a grande arte combate a alienação e fragmentação da sociedade capitalista, projetando uma imagem rica e multifacetada da integridade 42 humana. Lukács chama a essa arte "realismo" (... ) Em História e consciência de classe a categoria vai ser exposta com maior intenção de aprofundamento e concentração. Lukács propõe uma "concepção dialética da totalidade" que "se afasta da realidade imediata". Para o pensamento legítimo, "a totalidade concreta é, pois, a categoria fundamental da realidade"43.
( ... ) a categoria da totalidade não vai, pois, abolir os seus momentos constitutivos numa unidade indiferenciada, numa identidade; (... ) eles (... ) se deixam apreender como momentos dialéticos e dinâmicos de um todo (00') Esta permanente transformação das formas de objetividade de todos os fenômenos sociais na sua ação recíproca dialética contínua, a origem da inteligibilidade de um objeto a partir de sua função na totalidade determinada em que funciona, fazem com que a concepção dialética da totalidade seja a única a compreender a realidade como devir social. Somente nesta perspectiva as formas fetichistas de objetividade, geradas necessariamente 44 pela produção capitalista, são dissolvidas ( ... ) A totalidade é uma categoria imprescindível na teoria do conhecimento de Lukács pois ela permite compreender relações internas dentro de um conjunto. Sem a noção de totalidade dinâmica, não seria possível, nessa perspectiva, compreender as possibilidades de mudanças históricas na vida concreta, pois se os indivíduos forem elementos estanques uns em relação aos outros não é possível ponderar racionalmente resultados de empreendimentos conscientes nas relações que mantêm entre si, efeitos de ações individuais sobre a coletividade, de ações coletivas sobre cada indivíduo, sobre a coletividade como um todo, de um indivíduo de uma classe sobre outra classe, e assim por diante. Se a totalidade fosse estática, e não dinâmica, uma unidade indiferenciada seria tida como estável e não sujeita à transformação. O horizonte de viabilização de ações políticas transformadoras depende fundamentalmente da concepção de totalidade. É imprescindível a
EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária. Porto: Afrontamento, 1978. p.43.
42
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. op.cit. p.24-25.
43
44
Idem, p.28-29.
Literatura e autoritarismo em Georg Lukács
45
Idem, p.38.
LUKÁCS, Georg. Trata-se do realismo! op.cil. p.39.
46
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noção de "realidade como devir social", passível de interferências e alterações, o que só é permitido se ocorrer ruptura com a força de reificação do capitalismo, que naturaliza as relações de dominação. O movimento operário, para Lukács, teria como finalidade última a "relação com a totalidade ( ... ) considerada como processo", sendo cada passo da luta de classes dotado de sentido 45 . A definição de sociedade, a rigor, deve ser de uma totalidade concreta. Em uma resposta a uma crítica de Ernst Bloch, Lukács declarou que a categoria totalidade deveria ser entendida fundamentalmente em termos históricos, e que a expansão do capitalismo - escrevia ele em 1938 - apenas confirmava a necessidade de pensar o funcionamento do mercado em seu conjunt0 46 .
5. Ética e História
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. op.cil. p.238. Segundo Michael Lowy, em 1919, alguns anos antes, Lukács estava convencido de que a revolução proletária ia conduzir rapidamente "ao paraíso na Terra". LOWY, Michael. Redenção e utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.129.
47
LUKÁCS, Georg. Cuestiones liminares de lo estético. op.cil. p.566.
48
Retomando as reflexões de A destruição de razão, é possível observar um aspecto importante. As expectativas de Lukács de capacidade de conhecimento e integração aos movimentos de transformação social dos indivíduos oprimidos formuladas em 1923 estão em confronto direto com as premissas do pensamento irracionalista que analisa em 1952. O egoísmo burguês atribuído à filosofia de Schopenhauer contraria totalmente o movimento de tomada de consciência do indivíduo de fazer parte de uma totalidade e de estar em relações desiguais com outros homens, dentro dessa totalidade. A valorização do pensamento fragmentário por Nietzsche e sua crítica aos sistemas filosóficos contrariam completamente o princípio básico do conceito lukacsiano. A atitude de Nietzsche de críticar a noção, defendida na Inglaterra, de representação popular na vida política é antítese exemplar das intenções de Lukács. O autor declara em 1923, em História e consciência de classe, entusiasmado com as perspectivas do socialismo: "O proletariado alcançou a vitória na luta de classe não apenas na esfera de poder, mas ao mesmo tempo nesta luta pela consciência social, desagregando progressivamente, a partir dos últimos cinqüenta ou sessenta anos, a ideologia burguesa, e desenvolvendo a sua própria consciência até fazer dela a única consciência social de futuro decisiva"47. Esse entusiasmo cede lugar, décadas depois, à crítica da experiência política de Stalin. Na Estética, publicada em 1962, Lukács se esforça por distinguir firmemente Marx e Stalin, apontando no segundo discrepâncias de concepções políticas com relação ao primeiro 48 .
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Nesse ponto encontramos o resultado de um trabalho dialético do próprio Lukács. Tendo defendido a ascensão do socialismo ao poder com veemência, e encontrado na experiência stalinista a negação dos princípios com que pressupunha inicialmente prever os benefícios políticos dessa ascensão, Lukács faz a passagem dialética para um momento mais amadurecido, de valorização da Marx com ponderações referentes à possibilidade de distorções na manipulação de suas formulações. É fundamental, nesse sentido, compreender a Estética como momento de prioridades bem diferentes das apresentadas em História e consciência de classe. A ambição revolucionária que atravessa o livro de 1923 não é repetida em sua forma veemente e convicta. Em uma passagem da Estética em que analisa Goethe, encontramos uma declaração de princípios importante: ( ... ) as exigências da ética se apresentam sempre como exigências do dia, do instante, da decisão, da eleição. Nestes atos a personalidade se constitui, se forma, se produz para a completude ou para a fragmentação e a ruína. ( ... ) sua representação possível de sua própria personalidade se baseia em experiências passadas e em sua generalização, e casualmente também em desejos, sonhos, etc. ainda não submetidos a uma prática. Se o ato de sua decisão se orientara diretamente a uma preservação e confirmação, à promoção da personalidade com que ele mesmo se representa, poderia facilmente ignorar o essencialmente novo de sua decisão, e inibir ou até deformar a evolução de sua personalidade. (. .. ) Seguramente é mais valioso eticamente e mais favorável à completude do homem que faça simplesmente em uma situação dada o que se exige dele (... ) A ação ética é prática (. .. ) Por isso a relação dos atos singulares com a realização última tem que ser (... ) mediada dialeticamente (... ) a prática ética se trata de uma autêntica 49 realização da completude (... ) Muito pouco nos termos dessa passagem lembra o Lukács de História e consciência de classe. As transformações do ser humano, passando de uma condição negativa (fragmentada, em ruína) para uma condição positiva (completa) dependem de suas decisões. Encontramos aqui a preferência de Lukács pela totalidade em detrimento da fragmentação, encontramos a noção de que o plano de ações transformadoras deve ser mediado eticamente, e encontramos a importância da ação
LUKÁCS, Georg. La categoria de la parti cularidad. op.cit. p.242-4.
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Literatura e autoritarismo em Georg Lukács
HELLER, Agnes. Lukács y la Sagrada Familia. op.cit. p.187.
50
LUKÁCS, Georg. Nota sobre o romance. op.cit. p.186.
51
52 STEINER, George. Georg Lukács e o seu pacto com o demônio. op.cit. p.300.
Nota do autor: este trabalho foi realizado a partir de debates promovidos pelo Grupo de Pesquisa Teorias da Literatura do Século XX. da PUC-RS, no ano de 2001. Esses debates tiveram como responsáveis as Professoras Maria da Glória Bordini e Regina Zilberman, e como membros os Professores Antonio Sanseverino, Claudia Perrone, Nea Setúbal Castro e Rejane Pivetta Oliveira.
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para a melhoria das condições de vida. No entanto, a ênfase dada na passagem não é de modo algum vinculada à luta de classes. Ao centrar o foco de sua abordagem de Goethe na ética, Lukács muda radicalmente a condução da reflexão, em termos de estabelecimento de prioridades, com relação ao que defendia em 1923. E para entender isso é imprescindível considerar A destruição da razão. Para Heller, Lukács investia na verdade em uma "ética baseada na esperança marxista da total desalienação"so, de impossível conciliação com práticas políticas que conheceu, em um contexto de "crescente penetração da barbárie na cultura"sl. Lukács percebeu, pela experiência de Stalin, que a ascensão de representantes de ideais socialistas ao poder não corresponde ao atendimento de expectativas de Marx ou à realização concreta de valores humanistas. Mais ainda, percebeu, através do horror da segunda guerra, que as possibilidades de difusão do irracionalismo superam as condições de sustentação da razão, fato que se vincula ao título do livro. As experiências do autoritarismo foram responsáveis por uma mudança de modo de formulação de convicções. "Lukács sempre se julgou responsável perante a história"s2. Porém, nada garante, como a ele a história provou, que o proletariado tenha na mudança do sistema uma base de integridade plena. Nada garante, também, que em um ambiente culto e rico, como a Alemanha imperialista no período de Nietzsche, não sejam difundidas idéias irracionais, destituídas de senso de interesse coletivo. Mais ainda, nada garante que a leitura de obras realistas seja capaz, em si mesma, de levar a ações justas. Uma percepção que ajuda a compreender a razão dessa ausência de garantias é precisamente a apresentada nessa passagem da Estética. O indivíduo é dotado de arbítrio. Ele pode tomar decisões, de acordo com diversos fatores, e nem todos os fatores podem ser efetivamente relevantes, nem todas as decisões serão necessariamente úteis para que o homem evite a ruína e busque a sua plenitude. A Estética porta no seu interior, além da permanência e confirmação de fundamentos conceituais que Lukács defende desde seus primeiros trabalhos, a consciência de que as coisas mudaram, e uma valorização das exigências da ética como forma de emancipação humana. Influenciado por Engels, em História e consciência de classe, Lukács vai legitimar a violência como parte necessária do processo de transformação social. Entendia que a violência representava um modo de o proletariado suprimir a si mesmo, isto é, suprimir a representação de si como grupo dominado, escravizado pela reificação, na economia capitalista. Nada na Estética, nem em A destruição da razão, nem de longe, lembra essa posição.
De leitor a turista na Ilhéus de Jorge Amado
Maria de Lourdes Netto Simões DLA - Universidade Estadual de Santa Cruz - UFBa
Por mares nunca dantes navegados Camões Eu vim de longe, vim ver Gabriela Jorge Amado
Considerações iniciais
I CANCLINI, Nestor Garcia. Imaginários urbanos. Buenos Aires: EUDEBA, 1997.
Vivenciando novas concepções de espaço, o leitor destes tempos mais recentes não traz no seu repertório imagens como aquelas de outrora. Deixaram de existir as experiências que as cidades oportunizavam: o apreciar as ruas, o sentar-se na praça, o caminhar a esmo. o perder-se nos bairros. No cotidiano das metrópoles. as pessoas não mais convivem com a cidade enquanto elemento de intimidade, lazer, cumplicidade. Elas (as cidades) tomaram-se sinônimo de insegurança e violência. O mundo globalizado elegeu os shoppings como os centros de comércio, lazer. ponto de encontro e deslumbramentos. Como bem observa Canc1ini '. perdeu-se a experiência do conjunto. A cidade deixa de ser centralizada. para ser multifocal. Mudou a concepção do urbano, atrelada que está às questões da globalização.
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Nesse contexto, habita o leitor que, ao interpretar o imaginado ficcional tem a sua curiosidade aguçada para conhecer um mundo não familiar. Movido pela vontade de ver a paisagem que inspirou o texto literário, "passeia" pela cidade que a ficção oferece. Assim nasce o leitor-turista. Não satisfeito, porém, com a mobilidade ficcional somente, ele quer "ler"/ver, ao vivo e a cores, os locais reais tomados pela ficção. De leitor a turista é um passo: aquele que a mobilidade e o trânsito permitem. Torna-se turista-leitor, viajando para re-conhecer e observar as re-significações daquelas cidades, antes "visitadas" através da leitura. Certamente, além da curiosidade instigada por aquela interpretação, move, também, esse leitor especial o sentimento mais recente de desterritorialização (provocado pelas interações globais) e, ainda, a valorização do regional, do local. Ou, mesmo, ele vê a cidade como densidade histórica 2 • Realizo essas considerações iniciais para sustentar a idéia de que a leitura de textos ficcionais contribui para o fluxo turístico de cidades ficcionalizadas. Nesse raciocínio, o efeito 3 do texto sobre o leitor instiga-o a se tornar um leitor-turista, que "passeia" pela cidade-ficção, através das páginas que o livro lhe oferece; posteriormente, os passeios imaginados não mais o satisfazem e o turista, que existe nesse leitor, assume-se em turista-leitor, quando viaja, deslocando-se para conhecer a cidade real, inspiradora daquela ficcionalizada. Para desenvolver esse raciocínio, foco Ilhéus, cidade situada no litoral sul baiano, centro do palco da saga cacaueira de Jorge Amado, como sabemos, escritor brasileiro mais divulgado, traduzido e lido no exterior. Inicialmente, observo a relação entre a sua obra (percurso produtivo) e o leitor. Depois, progressivamente, ocupo-me das incursões realizadas pelo leitor-turista e pelo turista-leitor. Finalmente, analiso as reconfigurações, inclusive aquelas provocadas pelas interações entre o turista-leitor e o habitante do local.
1. A obra e o leitor É mais que sabido que Jorge Amado ultrapassa fronteiras nacionais e ocupa o mundo com a sua obra. Os livros Cacau, Terras do Sem-fim, Gabriela, cravo e canela, São Jorge dos Ilhéus, Tocaia grande, por vieses diferentes, fazem povoar o imaginário de leitores de imagens das terras do Cacau da Bahia, sua cultura, sua gente. Contam ficcionalmente a história da vigorosa nação grapiúna, que habita
2
CANCLINI, op. cil.
3 ISER, Wo1fgang. El Aclo de Leer. Madrid: Taurus, 1987.
De leitor a turista na Ilhéus de Jorge Amado
SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. A Civilização das Terras de Jorge Amado. In: Colóquio letras, 127/128. Lisboa, pp. 260-4, jan.jun, 1993. 4
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as terras de São Jorge dos Ilhéus. Valendo-se da sua memória e das vivências do menino grapiúna que foi, Jorge Amado pintou o seu universo, deu perfil e ambientou os seus personagens, fazendo o contraponto com a História da Região. Se a obra amadiana tem vários momentos e fases, o seu leitor caminha com elas. Primeiro, sob um foco neo-realista (anos 30), que concretiza sentidos centrados na problemática social, na relação de classe; depois, atentos ao relato fácil e agradável do contador, a movimentação da cidade de Ilhéus, a sua sociedade, os seus costumes; a seguir, buscando, na obra, o entendimento da cultura, das questões étnicas, da história e formação da nação grapiúna. Puderam os leitores acompanhar as injustiças sociais, a prepotência dos coronéis, a servidão dos trabalhadores rurais, em Cacau, em 1932; a conquista feudal (Terras do Sem-fim, 1942), a conquista imperialista dos exportadores (São Jorge dos Ilhéus, 1944), a demonstração da força política (Grabiela, cravo e canela, 1958). Quarenta anos depois, esses mesmos leitores (e outros mais) têm a oportunidade de conhecer outra ótica do acontecido quando, em Tocaia grande (1983), recebem a versão não-oficial da saga do cacau, atra\"és da visão daqueles que foram esquecidos, injustiçados - a face obscura (segundo o próprio Jorge Amado), através do olhar de sergipanos, prostitutas, comerciantes, jagunços ... 4 Assim é que aquele mesmo leitor que leu os livros produzidos nos anos 30, que se deparou com a época da conquista das terras, da luta de classes (coronel x trabalhador rural), a ação dos jagunços (ajudando os coronéis a enriquecerem pela força da sua ambição), também divertiu-se com as noitadas do Bataclan, deliciou-se com os bolinhos da Gabriela, acompanhou as negociações políticas da mudança do porto de Ilhéus, a exportação do cacau, a sua comercialização. Depois, acompanhou a formação dessa civilização grapiúna já por outra ótica, que foca a identidade, reconhece sergipanos, negros e turcos como elementos formadores dessa cultura. Mostra como as classes menos aquinhoadas contribuíram e enriqueceram o panorama cultural local. Conhecem a história contada por outro viés.
2. O leitor-turista Devido ao alcance da recepção da sua obra, Jorge Amado ganha leitores de múltiplas nacionalidades que, estando em locais os mais diversos, "visitam" a cidade de Ilhéus, apresentada nas páginas dos vários livros da saga cacaueira.
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Tal recepção aumenta expressivamente devido às várias adaptações do texto literário para o cinema, teatro, televisão, rádio e, até mesmo, para a história em quadrinhos. Assim é que o leitor-turista, mais recentemente, realiza a "viagem", também, através das novelas, dos filmes exibidos na televisão e no cinema. Esses vários apelos somam-se e instigam o turista que existe no leitor, quando a obra ultrapassa a arte literária e ganha a tela do cinema e da televisão (Gabriela) ou inspira novelas (Gabriela, Porto dos Milagres, Renascer), fazendo espectadores-turistas nos vários cantos do país e do exterior. O interesse por Ilhéus toma novas cores. Aguça-lhes a curiosidade de conhecer a cidade palco de tantos interesses, de tantas lutas, tanta vida, tanta miscigenação cultural. Se, num primeiro momento, o leitor é tomado pelo contato com o espaço (as ruas, as praças, as fazendas, e a trama que é urdida nesse cenário), depois, além do espaço, suscitam o seu interesse outras questões mais políticas e de exigências culturais, de discussão identitária, relacionadas principalmente à formação da nação grapiúna: a presença do sergipano, a influência do negro, as raízes turcas 5 . Instigado pelas ressignificações literárias, o leitor-turista é impulsionado a visitar o local, conviver com a gente, perceber a cultura; poder sentir, da sua perspectiva de leitor, aquela realidade ficcionalizada.
3. O turista-leitor Passando de leitor a turista, o tomado turista-leitor desloca-se em busca de reconhecer a região das páginas de Jorge Amado. Se o fluxo turístico da cidade de Ilhéus cresce devido à ação da obra sobre o leitor - que, como eu disse, depois de realizar "viagens" através do livro é movido a visitar o local palco da ficção - esse mesmo fluxo turístico aumenta quando a repercussão e aceitação da obra amadiana toma-se alvo de maior atenção nacional e internacional. Dessa forma, a obra do escritor grapiúna tem trazido às terras dos "frutos de ouro" um turista-leitor ávido por re-conhecer a Gabriela, o Vesúvio, o Bataclan ... Provar o fruto do cacau, o bolinho da Gabriela. Sentar na praça da catedral, ou andar nas ruas estreitas da cidade por onde passavam Malvina e Gerusa. Ansioso por "ler" a cidade como texto cultural. De todos os livros, Gabriela, cravo e canela é, sem dúvida, o maior responsável pelo fluxo do turista-leitor à Ilhéus. Vindo das várias partes do Brasil e do exterior, ele chega à cidade com exigências
SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. A literatura da região cacaueira baiana: questões identitárias. In: Revista do centro de es· tudos portugueses Hé· lia Simões. Ilhéus: Editus. p. 119-127. Republicado em Águas do Almada -Cultural. Ago. 1999.
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pontuais, relacionando as suas concretizações de sentido à realidade encontrada na paisagem real. Evidentemente essa cidade alvo da curiosidade turística, não é aquela pintada pelo narrador de Gabriela. Nem a Gabriela, figura da sociedade ilheense, é a Gabriela de Jorge Amado. Inspiradora do contador de estórias, sim. Tal distância se, por vezes, surpreende o turista que quer re-conhecer, no real, o que imaginou através da leitura ficcional; por outras. chegou mesmo, num tempo, a criar constrangimentos locais. quando alguém da comunidade se reconhecia em alguns dos personagens ou era procurado por turistas-leitores curiosos em aproximarem a ficção da realidade. Para muitos, não adianta a explicação de que o imaginário apenas capta as suas idéias da realidade, processa-as e as torna em fingimento. \fentira? Não. Pelo menos não na sua concepção corriqueira. Mas realidade imaginada, aquela capturada do vivido e constituída em sentido - ou seja, ficcionalizada. É claro que isso nada mais é do que o processo do fazer literário, que nem sempre interessa ao turista. Mas se de tanto imaginar não tivesse Jorge Amado escrito as suas estórias. como poderia ter dado o "salto" do olhar e enxergado a mesma terra e a mesma gente por outro viés, aquele da face obscura? Um outro lado da expectativa do turista-leitor é encontrar naquela cidade pacata, aquela dos olhos de Jorge Amado, como que parada no tempo. O turista foge dos grandes centros, da mesmice dos shopping centers globalizados e busca a cidade viva, não artificializada. Busca o centro da cidade, a pracinha, a paisagem peculiar que não existem nas metrópolis. Surpreende-se quando não mais encontra cavalos nas ruas, coronéis com seus chapéus de aba larga, burros com caçuás, levando o cacau para o porto, moças nas janelas, o Bataclan fervilhando de mulheres, o mar lambendo a praia da avenida Soares Lopes, a praia do Pontal cheia de banhistas ... Tudo mudou. O tempo é outro. Não somente porque a ótica é diferente, também porque o lugar-tempo do olhar está deslocado. Sabemos que o tempo e os homens operaram a reconfiguração da região do cacau. Itabuna, o antigo arruado entreposto de vendas e distrito de Ilhéus, não é mais a Tabocas dos sergipanos e dos turcos comerciantes; e Ilhéus não é mais a Ilhéus do Gabriela, cravo e canela, apesar de a catedral estar no mesmo lugar. Até mesmo as disputas entre as cidades arrefeceram, cada uma assumindo o seu perfil: do lugar de "papa-jaca" (Itabuna) e "papa-caranguejo" (Ilhéus), para o de centro comercial (inclusive com shopping center), a primeira; de centro turístico, a segunda.
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4. Reconfigurações Agora, o turista-leitor encontra um Bataclan restaurado fisicamente e reconfigurado culturalmente, para atrair o turista. Um Vesúvio transformado em restaurante, um porto virado Centro de vendas de artesanato. O teatro, a catedral, restaurados. Não mais jagunços, não mais pelejas. São outras as pelejas. A decadência da lavoura atingiu a cidade. Os palacetes dos coronéis estão desabitados ou transformad"os. Enquanto o turista busca o reconhecimento, a presença da obra amadiana se faz, para o local, reconfigurada em exploração turística. Pousadas, restaurantes, baianas de acarajés. O signo Gabriela está por toda a parte. Ônibus urbanos, lanchonetes, pousadas ... Tipos de sanduíche, sorvetes ... O símbolo da Gabriela atrai pela beleza, sensualidade, cheiro (de cravo e canela), instituindo o "tipo" Gabriela Mas a expectativa do turista-leitor não se descola do imaginado. Ele teimosamente se reporta à sua leitura do texto ficcional, procurando locais, hábitos, tipos, culinária. Estranha não encontrar, em Ilhéus, a cidade lida na ficção. Os costumes mudaram. A cidade tomou novos ares. O porto é outro: agora, o maior em mar aberto da América Latina; construído em espigão adentrando o mar, provocou impactos ambientais, fazendo a praia da Avenida Soares Lopes crescer, com o recuo do mar. O Vesúvio e o Bataclan, restaurados agora, fazem outro tipo de convite. Desconfiguraram-se alguns traços identitários. Reconfiguraram-se outros. Mas o turista-leitor busca na cidade as respostas para as suas perguntas. É mesmo como diz Calvino, em Cidades invisíveis, pela boca do seu personagem Marco Pólo, "de uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas"6. Por sua vez, o habitante local (também leitor), sentindo-se um tanto dono da "marca", busca explorar o que a obra produziu. Faz a sua cidade re-Ier a obra através de apelos semióticos. Estabelece "pontes" entre o imaginado e o real. Assim, passa a acontecer uma relação entre os turistas e os locais; relação essa que tem, como intersecção, a obra amadiana. Os locais procuram traduzir isso para os turistas, na maneira de receber, de comer, de viver. Assim a cidade é tornada texto, re-lida. Dessa forma, Jorge Amado transformou-se em ícone e a sua obra torna-se estratégia para sustentabilidade e desenvolvimento local, através do turismo - é ressignificada em mercadoria. A relação entre locais e turistas contribui para a construção da cidadania cultural local. Isto porque esse tipo de aproximação - como observa Canclini referindo-se à construção da cidadania cultural -
CALVINO, halo. (1972). As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 35.
6
De leitor a turista na Ilhéus de Jorge Amado
CANCLINI, p. 96.
7
Op.
cit.,
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"não se organiza somente sobre princípios políticos, segundo a participação "real" ( ... ) mas também de uma cultura formada nos atos e interações cotidianos, e em projeção imaginária desses atos em mapas mentais da vida urbana"? Assim, se o turista vem à região movido pela leitura de Jorge Amado, os habitantes locais exploram essas leituras para receber 'amadianamente' o turista. Textos sobre textos. A literatura provocando a vida. A cidade revisitada, agora ela, vida, sugere uma outra visitação à obra literária. Outros leitores surgem ... outros turistas ...
Referências bibliográficas CALVINO, Italo. (1972). As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras,
1990. CANCLINI, Nestor Garcia. Imaginários urbanos. Buenos Aires: EUDEBA, 1997. ISER, Wolfgang. El Acto de Leer. Madrid: Taurus, 1987. SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. A literatura da região cacaueira baiana: questões identitárias. In: Revista do centro de estudos portugueses Hélio Simões. Ilhéus: Editus. p. 119-127. Republicado emÁguas do Almada-Cultural. Ago.
1999. SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. A Civilização das Terras de Jorge Amado. In: Colóquio letras, 127/128, Lisboa, pp. 260-4,jan.-jun, 1993.
Biografia e valor literário
Marília Rothier Cardoso Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
o
modelo da crítica biográfica, em análise de Borges
I BORGES, Jorge Luís. Boswell - a arte da biografia. "Mais", Folha de S. Paulo, 24/12/2000. (Publicado na série "Borges professor")
BONNET, Jean-Claude. Le fantasme de lécrivain. Poétique. 63, Paris, sept. 1985. p.271, 272.
2
Em dezembro de 2000, a Folha de S. Paulo publicou, no caderno "Mais", um texto de Jorge Luís Borges sobre a biografia do Dr. J onhson, escrita por J ames BoswelP. O interesse de um veículo de massa pelo modelo biográfico da cultura moderna - resgatado através da palavra de um refinado ficcionista, famoso por seu jogo de burla com o discurso histórico-crítico - sugere algumas considerações sobre o papel contemporâneo da biografia na atribuição do valor literário. Durante o século XVIII, quando a arte e a literatura, desamparadas do mecenato, ingressaram como mercadorias no espaço público recém-instaurado, a função autoral tornou-se imprescindível para o controle jurídico-econômico da circulação das obras. Essa conjuntura atualizou a construção biográfica2 (representada por auto-retratos e perfis plásticos e verbais) para servir de instrumento legitimador do produto artístico. A coerência e a excepcionalidade do sujeito-artista, demonstradas pelos traços de sua fisionomia ou por sua trajetória de vida, passaram tanto a garantir a qualidade da obra sob sua assinatura, quanto a assegurar que, no futuro, a mesma permanecesse íntegra e fosse divulgada. Na virada do século XX para o XXI, o mercado globalizado desconhece, calculadamente, a distância entre artista e obra, transformando ambos em imagens lucrativas, reproduzidas, em maior ou menor escala, na forma de videoclipes, exposições e espetáculos de
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feição fictício-biográfica. Por seu turno, a crítica acadêmica, reavaliando o velho espaço público burguês de onde proveio, na abertura da modernidade, procura a estratégia mais eficiente de contraporse ao mercado. Deve formular critérios de raciocínio conceitual e valorativo, livres da utopia democratizante ou da nostalgia elitista, para a formulação de um estatuto da arte, que corresponda à noção antropológica de cultura, sem privilégios econômico-políticos ou genéricoraciais. Para aplicar e transformar convenientemente a herança moderna recebida, cabe o contraponto entre a crise atual e a anterior, velha de dois séculos. A prática da biografia, responsável pela canonização de Johnson e de Goethe, exacerbada e depois rejeitada como expediente crítico, revela-se, então, um caminho possível para o difícil reajuste dos parâmetros avaliativos. Borges apresenta seus comentários sobre a escrita biográfica de Boswell, à maneira despretenciosa de anotações para uma aula (datadas de 07/11/1966), onde cabem suposições e digressões. A marca híbrida de seu estilo, que combina ficção com ensaísmo e oralidade tradicional com técnica escrituraI subversora, está presente nas observações (ora eruditas, ora banais), cujo alcance amplia o significado do trabalho de Boswell, tanto quanto abre outras dimensões para a tarefa biográfico-crítica na contemporaneidade. De início, Borges menciona a consideração irônica de Thomas Carlyle sobre Samuel Johnson: este, interessado em ver fantasmas, não se teria dado conta de que ele próprio, assim como as multidões humanas nas ruas de sua amada Londres, não passavam de fantasmas. Com esse toque de humor negro, aparentemente descartável, indica-se, como o estatuto mais adequado ao do sujeito biografado, o estatuto fantasmático. Ainda que por caminhos diversos, a afirmativa de Carlyle, destacada por Borges, coincide com as teses da "morte do autor"3, evidenciando a insustentabilidade da noção de sujeito soberano, enquanto princípio apreensível do caráter superior e íntegro de uma obra. Mostrando que a referência ao autor biografado como fantasma não é gratuita, Borges segue descrevendo a estratégia, empregada por Boswell, para apresentá-lo, através de comparações com a técnica de caracterização ficcional. Como forma de destaque do raciocínio brilhante de seu biografado, o biógrafo Boswell, além de enfatizar o teor epigramático e engenhoso das falas de Johnson, teria delineado seu próprio perfil, nos diálogos com o mestre, através de atitudes tolas, ingênuas e até ridículas, a exemplo das de Sancho ou de Watson - personagens romanescas assim construídas para dar o devido realce aos heróis, Quixote e Sherlock Holmes. O tratamento paralelo, dispensado por Borges, a biógrafo e biografado, explicitando a qualidade fantasmático-fictícia do relato (auto )biográfico,
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: brasiliense, 1988.
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desenvolve-se em direção ainda mais interessante, quando inclui a máxima de uma filosofia hindu do século V que, ao descrever os homens como espectadores de seus próprios atos, apresenta o sujeito como duplo: o eu observa-se como outro, identificando-se com o mesmo e, simultaneamente, distanciando-se dele. Com o expediente exótico de invocar a antiga filosofia hindu, Borges rejeita a base unitária da convenção biográfica, ao mesmo tempo que, passando a considerar a duplicidade do sujeito, aponta (embora sem desdobramentos) o caráter também múltiplo da obra - conjunto de traços identitários diferentes, correspondentes a forças em constante tensão. Esse caráter múltiplo ou polifônico melhor Se reHla quando a construção biográfica boswelliana é tratada como obra dramática, onde intervêm várias personagens. Através dos aspectos, que certamente passaram despercebidos no século XVIII, mas são apontados pela leitura (pode-se dizer pós-moderna) de Borges, ressaltam-se as estratégias da crítica biográfica moderna para estabelecer o valor literário - as marcas do discurso (escrito e publicado ou ouvido em conversas) do autor-objeto são enfatizadas e contrastadas com outros discursos, propositalmente caricaturados ou mininimizados. Assim se legitima a obra (ou o estilo literário) do biografado e garante-se sua circulação no mercado cultural. A noção de valor intelectual e estético de uma obra, que explica (o que hoje se chamaria) seu sucesso de crítica e público, acha-se configurada, de forma modelar, na biografia do Dr Johnson, construída, há dois séculos, por Boswell. No entanto, nos dias atuais, essa noção de valor não mais se sustenta, porque a crítica vê-se obrigada a considerar os mais diversos critérios avaliativos, correspondentes a poderes diferentes, em constante conflito, num espaço cultural, onde o mercado globaliza para massificar e os interesses minoritários (correntes universitárias de pensamento, grupos étnicos ou genéricos, movimentos de descolonização) lutam pela fragmentação e pelo reforço das diferenças. Uma vez que a biografia é uma forma narrativa ainda sedutora seja para a maioria seja para as minorias, o resgate sistemático da crítica biográfica pode promover oportunidades iluminadoras para o debate teórico-prático sobre o valor, na área da cultura. Veiculando uma produção artística a uma trajetória intelectual, a biografia de escritor historiciza as formas estéticas, indicando o nexo necessário entre julgamento valorativo e circunstâncias sócio-político-econômicas. O trabalho de construção biográfica, conforme ficou dito acima, aproxima-se do expediente de conjurar fantasmas. Assim, descreve um processo de subjetivação, onde, em meio ao choque de forças do momento histórico, produz-se um saber de efeito singularizador, resultante de voluntária e saudável operação que consegue (nos termos
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neo-nietzscheanos de Foucault e Deleuze4 ) "dobrar" as forças, fazer com que se afetem a si mesmas, para furtar-se a elas. Tal processo de subjetivação vai-se conformando em vida e obra paralelamente estetizadas. Como a tarefa, em questão, é infinita, as marcas, que identificam escritor e escritura, mostram-se em conflito, delineando a feição dupla ou múltipla do (auto)biografado, tanto quanto a estrutura dramática da biografia - aspectos enfatizados por Borges. Se o fascínio pelo biográfico resulta de toda essa complexidade, fica claro que seu papel crítico-avaliativo é exercido na dispersão das diversas tradições representadas e das contraditórias referências de raça, gênero ou classe necessariamente aí envolvidas. Por isso mesmo, o valor artístico/literário proposto pela biografia não satisfaz plenamente às expectativas de nenhum dos circuitos culturais (o midiático, o acadêmico, os alternativos), mas atende a uma parcela das exigências diferentes de cada um deles. Para medir a produção de um fantasma, configurada em bela forma híbrida, o valor não pode deixar de corresponder a uma economia instável e heterogênea.
DELEUZE, Gilles. A vida como obra de arte. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart, Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p. 122-124.
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A subversão do modelo crítico-biográfico Se a leitura desconstrutora de Borges evidencia as transformações por que vem passando o critério valorativo, ancorado no suporte biográfico, o exame de um exemplo contemporâneo de biografia nãocanônica tem o propósito da identificação de alternativas tanto para a escolha das personagens a serem biografadas, quanto para o método de traçar-lhes o perfil. O encontro entre Bandeira e Sinhô, estudo de André GardeP, faz, justamente, um uso produtivo desses caminhos alternativos. Quando tematiza os contatos sócio-estéticos entre o poeta e o sambista, subverte as referências avaliativas (sejam as tradicionais, sejam as da vanguarda), pois desconsidera as barreiras entre o gosto erudito e o popular. Para realizar seu propósito de exercício crítico transgressor, combina técnicas hermenêuticas de disciplinas e correntes diversas, explicitando o trânsito das marcas identitárias diversas entre as classes, etnias, espaços urbanos e comportamentos artísticos e/ou profissionais. A análise temático-estilística do texto poético e do conjunto semiótico formado por letra e música constitui a base de sua reflexão, motivada pelas afinidades - apesar das diferenças irredutíveis - entre as artes de Bandeira e Sinhô. Mas tal trabalho de análise só pode ter resultado interpretativo, através de fundamento metodológico (no caso, fornecido pelo conceito bakhtiniano de "carnavalização"6),
OARDEL, André. O encontro entre Bandeira e Sinhô. Rio de janeiro: Secr. Municipal de Cultura, DODIC-DE, 1996. (Trata-se de uma tese de Mestrado, defendida na UFRJ e incluída na coleção "Biblioteca carioca".) 5
BAKHTINE, Mikhail. La poétique de Dostoievski. Trad. Isabelle Kolitcheff. Paris: Seul, 1970. p. 169-180. 6
Biografia e valor literário
GUINZBURG, Carla. O queijo e os vermes. Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 17.
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8 GARDEL, André. Op. cit. p. 26.
SOUZA, Eneida Maria de. Notas sobre a crítica biográfica. In: PEREIRA, Maria Antonieta & REIS, Eliana Lourenço de Corg.). Literatura e estudos culturais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2000. p.48. 9
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que interrelacione texto e contexto, tradição literária e rito social. As conclusões histórico-sociológicas são apropriadas, na qualidade de dados emblemáticos de uma conjuntura, onde, por aparente acaso, oferecem-se à leitura tensões, acomodações e desdobramentos de um longo processo de transculturação. Seguindo as considerações de Carlo Ginzburg, pode-se dizer que tal conjuntura possibilita, ao trabalho intelectual, tornar produtivas "a consciência pesada do colonialismo e a consciência pesada da opressão de classe"? , com o resgate da herança cultural mestiça e da incipiente indústria do entretenimento, enquanto forma de profissionalização das camadas pobres (até então duplamente desqualificadas). No estudo de André Gardel, a montagem teórico-metodológica não chega a produzir propriamente uma biografia; seu escopo, propositalmente, não comporta longos percursos, pois deseja o recorte - e o enfoque ampliado - de determinado comportamento, num instante iluminador. Enquanto morou na ladeira do Curvelo, em Santa Teresa, o poeta Manuel Bandeira escreveu crônicas jornalísticas e freqüentou a Lapa boêmia, onde aconteceu encontrar-se, um (possível) par de vezes, com o sambista Sinhô. Não se incluem os antecedentes de ambos, nem os desdobramentos de suas vidas, mas apenas esse fragmento de trajetórias que se tocaram. O livro define seu objeto, nos seguintes termos: o encontro entre o poeta e cronista e o compositor de música popular parte de situações factuais para se realizar aqui enquanto representação simbólica, numa abordagem de 8 cunho histórico-li terá rio-musical. Se o estudo dos "laços de amizade literária entre os autores"9 (na formulação de Eneida Souza) tem sido uma tática dos biógrafoscríticos para evitar os julgamentos simplificadores (correspondentes às relações convencionais e hierarquizantes, metaforizadas no parentesco e descendência), o enfoque de um "encontro" serve de modelo em miniatura para a avaliação consistente da troca entre culturas, sem nostalgia nem preconceito. A temática do "encontro" parece uma alternativa rentável para a narrativa biográfica contemporânea, que já quebrou a "ilusão" de verdade e plenitude, tanto quanto abriu mão do modelo de uma identidade subjetiva integrada. O "encontro" serve à retomada da biografia crítica, porque privilegia o intercâmbio dos indivíduos, através dos aspectos informais da sociabilidade. No texto de André Gardel, o primeiro contato entre Bandeira e Sinhô dá-se, sintomaticamente, num velório. Pode-se emblematizar, nesse rito sócio-religioso, a morte do autor genial
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e a reunião de amigos - vindos de formações culturais, classes e interesses diferentes - para, como quer Gardel, operar a "carnavalização" do enterro no retomo da festa, que é tanto diversão quanto trabalho. Do ponto de vista do novo crítico-biógrafo, não interessa nem a carreira de poeta, cronista e professor de Manuel Bandeira, nem o caminho de exceção, onde o vadio mestiço, José Barbosa da Silva, profissionalizou-se e ascendeu como o músico Sinhô. Interessa o momento de encontro, menos enquanto contato cordial Uá que as trocas culturais não são equilibradas, nem democráticas) e mais como "plágio" não consentido, através do qual a poética de um rouba a dicção do outro. André Gardel não se fez biógrafo por ter testemunhado (ou reconstituído documentalmente) um encontro real entre Bandeira e Sinhô. A importância estratégica de seu trabalho reside na exploração sistemática de um sintoma de contágio. No retrato da bandeiriana "Estrela da manhã" delineiam-se os perfis superpostos do ritmista mestiço e do incipiente comunicador de massa. A visada crítica contemporânea sobre a poética modernista brasileira não pode mais prescindir da mediação de produtos artísticos (como a canção "Jura" de Sinhô) que condensam e coletivizam, no registro fonográfico, as dissonâncias da vanguarda, as memórias sonoras africanas e as cadências escolares de uma épica clássica - tudo finalizado graças à interferência técnica.
Biografia e cânone literário brasileiro o contraponto entre o texto modelar da crítica biográfica e uma amostra das várias mudanças, que o mesmo tem sofrido, desde a instauração da estética iluminista até a busca contemporânea de matrizes avaliadoras estético-políticas, que façam jus às diferenças culturais, revela a inescapável aliança entre o critério artístico e as instâncias de controle socioeconômico. Qualquer reflexão, que escamoteie essa aliança, toma-se falseadora e inútil. É necessário, então, considerá-la, tanto pelo viés do saber especializado, que confere prestígio a textos e autores, quanto pelo viés das operações mercadológicas, através das quais se garante a circulação e permanência dos mesmos no panorama cultural da sociedade. O cânone literário brasileiro oferece material interessante para se refletir na direção proposta, mostrando a presença dos traços biográficos de escritores como estratégia da divulgação de sua obra e figura para massa e como referência privilegiada na fortuna crítica, que lhe coube.
Biografia e valor literário
10 WERNECK, Maria Helena. O homem encadernado. Machado de Assis na escrita das biografias. Rio de janeiro: Ed. UERJ,
1996. p. 17-30.
11 GALVÃO, Walnice Nogueira. Gatos de outro saco. São Paulo: Brasiliense, 1981.
p.65, 66. 12 VENTURA, Roberto. Texto introdutório a Os sertões. In: SANTIAGO, Silviano, org. Intérpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. V.l, p. 175.
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No ensaio O homem encadernado, Maria Helena Werneck opera a desconstrução das mais conhecidas biografias de Machado de Assis, considerando a escrita das mesmas em paralelo com outros rituais de consagração pública do escritor. Tendo tomado de empréstimo a Nietzsche os parâmetros para "um pensar saudável sobre biografias" 10, contextualiza cada relato num momento da história da cultura brasileira. Assim, revelando os nexos de interdependência entre as (supostas) verdades biográficas e o discurso hegemônico da época, restitui ao velho Machado sua condição espectral, capaz de assombrar, com a peculiaridade de seu texto melacólico-galhofeiro, leitores do presente e do futuro. Machado de Assis, no entanto, embora oficialmente guindado ao topo de nosso cânone literário, não representa matéria apropriada à redação de biografias para a massa. Se quisermos observar, no panorama nacional, uma figura de escritor, que inspirou dos mais eruditos estudos crítico-biográficos aos mais populares seriados televisivos, encontraremos Euclides da Cunha - já famoso, em vida, por tematizar um episódio controverso de nossa história e imediatamente consagrado, em seguida a uma morte violenta. O processo de canonização do autor de Os sertões incluiu variados ritos, iniciativas e produções artístico-intelectuais, nas primeiras décadas do século XX, quando a sociedade brasileira buscava um tipo de progresso ilustrado, conforme os ideais positivistas. Além dessa circunstância, o que também explica sua transformação em foco de interesse, tanto da intelectualidade quanto da mídia, é o fato de, desde jovem, Euclides ter-se identificado como figura pública, ora no papel de jornalista, ora no de notícia. Segundo Walnice Nogueira Galvão, professora que vem dedicando anos de pesquisa aos escritos e às idéias políticas de Euclides, a primeira vez que este "chama a atenção pública" é através de um gesto adolescente, quando, "em sinal de protesto contra a monarquia, atira ao chão seu sabre, no momento em que o Ministro da Guerra visitava a Escola Militar"ll. Outro dos pesquisadores universitários dedicados à vida e obra euclidiana, Roberto Ventura, mostra como aquele "protesto trouxe notoriedade a Euclides, que foi convidado por Júlio de Mesquita para escrever em A Província de São Paulo, hoje O Estado de São Paulo."l2Foi assim que, paralelo à carreira de engenheiro militar e civil, Euclides da Cunha exerceu a profissão de jornalista. No início de 1897, quando as atenções do país se concentravam nas várias tentativas do exército de debelar a revolta sertaneja de Canudos, Euclides publicou, sobre o assunto, dois artigos de retórica republicana retumbante. Estes lhe valeram convite para cobrir a luta, no sertão baiano, como repórter de O Estado de São Paulo. De volta da missão - bastante impressionado com o isolamento da
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pobreza sertaneja e com a energia dos fanáticos do Conselheiro - , o repórter retomou suas tarefas de engenharia, enquanto se dedicava, durante cerca de quatro anos, à pesquisa acurada e à reflexão interpretativa sobre sua experiência de observador da guerra. Daí, surge seu primeiro livro, Os sertões. Nas palavras do professor Roberto Ventura, foi "fulminante" o sucesso do livro, que mereceu comentários elogiosos dos críticos mais respeitáveis da época, com destaque para José Veríssimo l3 • Em conseqüência da aceitação entusiástica de seu trabalho, Euclides elegeu-se para a Academia Brasileira de Letras. Pouco depois, em 1904, o escritor escolheu lançar-se a nova aventura pelo interior, dessa vez na Amazônia, quando chefiou a Comissão de Reconhecimento do Alto Purus e recolheu matéria para outros ensaios, mais curtos e menos famosos que Os sertões. Como autor, Euclides da Cunha assume posições polêmicas, buscando explicar a história pela ciência positiva e estilizando, em arte expressionista, as geografias selvagens e as personagens heróicas. Ainda assim, ou por isso mesmo, Os sertões continua, até hoje, sendo sucessivamente reeditado. Trata-se de um caso raro, no panorama brasileiro, de "escritor difícil", transformado em signo de status, como avalia a sempre atenta Walnice Galvão: "Nos lares brasileiros de um certo nível sócio-cultural, é de rigor um exemplar d'Os sertões na estante, o que não implica em que ele jamais tenha sido aberto." Estimada, embora quase desconhecida, a principal obra de Euclides, pelo número de edições, que atingiu, "constitui um recorde para a literatura erudita no Brasil", enquanto seu autor "ficou mesmo mais conhecido por seu destino trágico"14. Em sua especificidade contraditória, o legado de Euclides tem sido reclamado por duas ordens de herdeiros (contemporâneos e pósteros): os que - à esquerda ou à direita - sustentam um discurso político e/ou acadêmico, preocupado com a construção da identidade brasileira, e os que detêm um discurso midiático, dirigido a um tipo de entretenimento educativo, cuja matéria básica constitui-se de artistas metamorfoseados em personagens sedutoras.
Fortuna crítica e estereótipo biográfico Assassinado, em plena maturidade produtiva, pelo amante de sua mulher, Euclides torna-se ocupante simbólico daquele mesmo espaço habitado pelos sertanejos da caatinga e do Amazonas - os despossuídos do Brasil, cuja dignidade, insistentemente, procurou resgatar pela força de sua palavra. Nessa circunstância, a conjuração do
13
Ibidem. p. 172.
14 GALV ÃO, Walnice Nogueira. Saco de gatos. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1976. p. 87, 88.
Biografia e valor literário
" Cf. DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Trad. Anamaria Skinner. Rio de janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 61.
16 PONTES, Eloy. A vida dramática de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 341.
17
Ibidem. p. 154.
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fantasma do escritor ganha aquele sentido de alistamento solene de conspiradores 15 em proveito fie uma causa nacional. Ainda que homens da cidade e do conforto civilizado, os amigos e admiradores do defensor (recém-desaparecido) dos sertanejos empenham-se no trabalho do luto, reunindo seu espólio intelectual (cartas, manuscritos, artigos) e cuidando da divulgação de sua obra. São os membros do Grêmio Euclides da Cunha, que, liderados por Francisco Venâncio Filho e Edgar Süssekind de Mendonça, editaram, anualmente, entre 1914 e 1939, a Revista do Grêmio Euclides da Cunha, sempre com a data da morte do escritor, 15 de agosto. À atividade desenvolvida por esse grupo carioca de admiradores de Euclides, filia-se a biografia de Eloy Pontes, significativamente intitulada A vida dramática de Euclides da Cunha e incluída na prestigiosa "Coleção Documentos Brasileiros" da Editora José Olympio, em 1938. Indicando sua participação no trabalho do luto, que se desdobra em ritos de canonização do escritor, Eloy Pontes acrescenta, como apêndice de seu liuo, o discurso que proferiu, "em 1936, à beira do túmulo de Euclides da Cunha". ~essa oportunidade, exalta o escritor, porque
só depois dele se conheceram os problemas supremos do Brasil. Até então os sertanejos. vivendo como párias, expostos aos castigos da fome e do crime, eram ignorados de todos. Euclides da Cunha foi quem os trouxe para os debates, expondo-os aos olhos do país estarrecido. 16 Há quase só emulação na biografia de Eloy Pontes. Embora resulte de extensa pesquisa, não indica fontes; o objetivo evidente do trabalho é contagiar o leitor com seu entusiasmo pelo biografado. O estilo narrativo, que desenvolve, parece querer imitar os períodos ritmados e incisivos de Os sertões. É assim que descreve Euclides, em seu regresso do interior baiano: "A sorte dos sertanejos domina-lhe todos os sentidos. Volta quase jagunço também. Identificara-se com os fanáticos, compreendendo os sacrifícios a que estavam expostos."17Mais ainda que imitar, a escrita de Eloy Pontes entremeia seus parágrafos com longas citações de Euclides e apropria-se de expressões euclidianas para compor suas frases. Trata-se, é certo, da proposital confusão entre fantasma e conjurador, de modo a atrair para este a glória daquele. Embora empregando o léxico e a sintaxe de um erudito, o biógrafo, membro do Grêmio Euclides da Cunha, adota o tom retórico do tribuno e o comportamento do jornalista. Usa documentos e depoimentos como verdades indiscutíveis. Busca convencer e não fazer refletir.
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Os protocolos de consagração de um artista apoiam-se na aparência secreta do objeto admirado. Por sua vez, cabe, ao estudioso, o trabalho hermenêutico, diante do "enigma da grandeza da obra, de sua novidade, enigma de seu autor, do seu sentido ou de sua origem."18 Como Derrida adverte, em Os espectros de Marx, toda herança é heterogênea, contraditória. "Se a legibilidade de um legado fosse dada, natural, transparente, unívoca, se ela não pedisse e não desafiasse ao mesmo tempo a interpretação, não se teria nunca o que herdar." 19 0 grande potencial crítico-biografável de Euclides - tanto quanto a dificuldade de poder-se tornar seu herdeiro - reside, justamente, no enigma, que sua obra e vida representam. Destacando essa característica, Walnice Galvão observa a fortuna crítica do autor, "sempre marcada pela controvérsia". 20 Como parece não admitir dúvidas e ambigüidades, nem dar-se ao trabalho de seleção e escolha, Eloy Pontes, dificilmente, pode ser considerado um herdeiro de Euclides - herdeiro do impulso analítico-interpretativo diante da diferença perturbadora -, mesmo que sua biografia tenha contribuído para a glória do escritor. Já Olímpio de Sousa Andrade, que se apresenta como biógrafocrítico, em seu História e interpretação de Os sertões, de 1960, procura, ainda meio canhestramente, estudar as faces contraditórias do enigma, representado pela herança, de que deseja se apropriar. Nascido em São José do Rio Pardo, Olímpio Andrade pertence a uma outra vertente da atividade consagradora, desenvolvida em torno da memória de Euclides da Cunha. Foi na cidade paulista de Rio Pardo, entre 1898 e 1902, que Euclides escreveu Os sertões, durante a construção de uma ponte, que supervisionou. É o próprio Olímpio Andrade, que se encarrega de descrever a roda de amigos, formada em torno do escritor pelos homens mais cultos da região. Esses amigos, sob a liderança do bibliófilo Francisco Escobar, estiveram sempre prontos a apoiar Euclides, com empréstimo de livros, recolha de dados, sugestões de leitura dos clássicos e, principalmente, atenção e estímulo. 21 Não é de se estranhar, portanto, que os eruditos de Rio Pardo, sentindo-se colaboradores da obra famosa, desejassem, depois da morte de Euclides, participar também da sua glória. Paralelamente às ações cariocas do Grêmio, as autoridades riopardenses instituíram a Semana Euclidiana (realizada anualmente), reuniram peças do acervo do escritor na Casa de Euclides da Cunha (para onde, depois, se transferiu o arquivo do Grêmio) e ainda cuidaram de preservar a cabana de zinco, à beira do rio, onde o escritor-engenheiro teria redigido partes de seu livro. Transformada em signo-fetiche do complexo trabalho escrituraI de Euclides, a cabana tornou-se ponto turístico de Rio Pardo, recoberta por uma proteção de vidro. Hoje, a principal página sobre Euclides da Cunha,
18 WERNECK, op. cit., p. 73.
19 DE.RRIDA, op. cit., p. 33.
20
GALV ÃO, op. cit. p. 88.
21 ANDRADE, Olímpio de Souza. História e interpretação de Os sertões. São Paulo: Edart, 1960. p. 160-175.
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na internet, é um misto de orientação para estudantes secundaristas, guia de turismo regional e noticiário da Semana Euclidiana. Publicado, há quarenta anos, mas ainda bastante citado na atual fortuna crítica do escritor, o estudo de Olímpio de Sousa Andrade apresenta um método de composição, em tudo, oposto ao de Eloy Pontes. Meticuloso nas notas, indica todas as suas fontes de informação (documentos ou depoimentos) e vai arrolando e discutindo os pontos de vista de todos os seus antecessores, na análise de Os sertões. Seu estilo, simples e direto, obediente aos protocolos acadêmicos, afastase, explicitamente, da ousada forma ensaística do objeto de sua interpretação. Esta baseia-se no relacionamento de três linhas de trabalho - a análise estilística de passagens destacadas da obra (incluindo o confronto entre duas versões do trecho antológico sobre o "estouro da boiada"), o paralelo da biografia do autor (com destaque para suas referências geográfico-afetivas da infância) com uma espécie de genealogia da composição da obra e o contraponto entre as discutíveis referências científicas da virada do século e os cuidados artesanais do poeta com seu texto.
22
Ibidem, p. 214.
Nesse homem, que aliava à paixão pelo estudo e ao amor pela exatidão a paciência de estilista que suprimia, transferia e alterava trechos, quantas vezes fosse preciso, o estudo da História teria de ser feito de maneira perfeita, integrandose no conjunto do seu revolucionário livro de estréia, que conduz a todos os caminhos, sem, a rigor, nos fazer perdernos em nenhum, porque, acima de tudo, o que naquelas páginas nos guia são olhos de poeta e de profeta. 22 O raciocínio interpretativo de Olímpio Andrade não assume mas também não disfarça - o interesse de acertar contas com a glória de Euclides, indicando, ponto a ponto, a dívida deste com a paisagem, o ambiente sócio-econômico-moral e o círculo de colaboradores esclarecidos de São José do Rio Pardo. Em troca de a cidade paulista ter-lhe permitido exercer plenamente sua poesia profética, caberia integrar a abertura revolucionária de Os sertões à herança cultural dos riopardenses, presentes e futuros. Não se trata, no entanto, de provincianismo estreito, mas de uma espécie de insegurança do conjurador, diante do poder atribuído ao espectro invocado. Como não se apresenta enquanto poeta - mas apenas um erudito da poesia nem, muito menos, profeta - apenas um intérprete das palavras opacas dos profetas - , Olímpio Andrade limita suas exegeses ao consenso dentre seus pares:
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acentuou que um estudo amplo sobre o Brasil (... ) exigia a preliminar definição da nossa psicologia em função do meio e dos componentes étnicos, assim como dos traços mais vivos da nossa formação histórica, o que, evidentemente, é ,. l 23 esquema d e seu propno ivro.
23
Ibidem, p. 204.
24
Ibidem, p. 177.
Também limita sua nota de intervenção política à mediania do modelo liberal:
Chegando ao vale, junto ao esqueleto da ponte de aço (... ), seus operários de várias nacionalidades (... ) revelam-lhe a grandeza do trabalho livre a construir uma história mais . , 2 4 bela e maIs humana que a do Vale do Paralba escravocrata. Apesar desses limites, o trabalho de Olímpio Andrade não perde de vista o caráter fantasmático de sua personagem; não confunde nunca o perfil de Euclides, que desenha, com a (suposta) objetividade histórica do escritor.
Interdisciplinaridade renovadora da biografia crítica No que diz respeito aos estudos biográficos de Euclides da Cunha, entre os equívocos grandiloqüentes de Eloy Pontes e as qualidades discretas de Olímpio de Souza Andrade, avulta o ensaio interpretativo de Gilberto Freyre, também grandiloqüente - embora algo desabusado - mas dotado de qualidades destacáveis, na ousadia de sua formulação. Esse ensaio (datado, como o de Pontes, de 1938) serve de comentário introdutório à edição de textos de Euclides, anteriores a Os sertões, reunidos pela mesma "Coleção Documentos Brasileiros" da José Olympio, sob o título Canudos (Diário de uma expedição). Foi, mais tarde, revisto e incluído em diferentes coletâneas de ensaios gilbertianos, na companhia de outro ensaio do mesmo teor, sobre a obra e a trajetória de Euclides da Cunha. Para quem conhece um pouco as questões acerca da cultura brasileira, que constituíram a busca obsessiva do autor de Casa-grande e senzala, fica evidente seu desejo de apropriar-se da herança de Euclides - apropriar-se a sua maneira peculiar - , para fazer de Euclides o pai adequado à rebeldia do filho personalíssimo, mas preservador do legado de sua linhagem. Atormentado, como seu precursor escolhido, pelo espectro da mestiçagem - espectro freqüentemente confundido com
Biografia e valor literário
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e paz. Casa-grande e senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos trinta. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. p. 46, 47. 25
26 Os ensaios gilbertianos sobre Euclides foram revistos e publicados também em: Perfil de Euclides e outros perfis (José Olympio, 1944).
FREYRE, Gilberto. Euclides da Cunha: sua interpretação do Brasil. In: FREYRE, Gilberto. Vida, forma e cor. Rio de Janeiro, José Olympio, 1962. p. 142.
27
28
29
Ibidem, p.139.
Ibidem, p.139, 140.
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um estigma - , Gilberto Freyre desenvolve um método de acolher contradições em seu raciocínio reconstrutor da história. Assim, desobrigado de resolver ambigüidades, desvenda a trama das mediações, que garantiriam a "plasticidade"25 de uma etnia híbrida e uma cultura heterogênea. Seguro de sua paridade intelectual com o biografado, Gilberto enfrenta, sem medo, o poder e o perigo da aparição espectral, que conjura. Certo de que seus conhecimentos científicos servem a sua vocação de escritor, mostra-se disposto ao diálogo com fantasmas. Quando delineia, criticamente, seu "perfil de Euclides"26, sabe dosar o emprego, bastante grosseiro, da teoria psicanalítica de Freud com o exercício, delicado e persistente, da faculdade proustiana da memória; justapõe sua própria imagem ao espectro euclidiano para produzir, através das afinidades e diferenças ressaltadas, referências identificadoras da brasilidade. Como antropólogo, que escolheu pesquisar a privacidade das gerações anteriores e seu próprio passado íntimo, para construir uma história interpretativa da formação cultural do país, Gilberto Freyre só poderia empreender a crítica da obra euclidiana a partir do enfoque biográfico. Sem se obrigar a um relato cronológico da trajetória do escritor, vai considerando aspectos de seu estilo reflexivo-escrituraI, através de um paralelo - às vezes cuidadosamente nuançado, às vezes lugar-comum - com as atitudes impulsivas e os gestos dramáticos daquele que "já entortara uma espada num instante de fúria".27 Assim, começa negando à paisagem, descrita em Os sertões, o significado de "um simples capítulo de geografia física e humana do Brasil". Ao contrário, tal paisagem passa definir-se como "aquela que a personalidade angustiada de Euclides da Cunha precisou exagerar para completar-se e exprimir-se nela"28. Num lance estratégico de valorização da peculiaridade de seu objeto de estudo, Gilberto ressalta sua disparidade promissora com o panorama literário da belle époque:
O Euclides que em 1897 se defrontava com os sertões era ainda um adolescente no incompleto da personalidade, no indeciso das atitudes. Um adolescente que vinha do litoral e de sua civilização, cheio de mãos esquerdas diante dos homens já feitos e das cidades já maduras da beira do Atlântico. Precisando do deserto para acabar de formar-se no meio do inacabado da colonização pastoril, sem se sentir olhado, observado ou criticado pelos escritores convencionais do Rio de Janeiro. 29
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A disparidade, que, à primeira vista, desqualificaria o aspirante a escritor ("cheio de mãos esquerdas"), revela-se, antes, a condição necessária à ruptura com o ambiente afrancesado - ou, pior ainda, helenizado - da cultura hegemônica. Inassimilável ao modelo intelectual de seu tempo, Euclides ter-se-ia, no raciocínio interpretativo de Gilberto, deixado impregnar pelo "exótico regional" (sertanejo e amazonense) e conseguido "fazer desse aparente exotismo novo centro da própria nacionalidade."30 Ora, essa síntese da trajetória literária de Euclides da Cunha compõe-se, sob medida, para autolegitimar a obra gilbertiana, que se afastou, de propósito, do modernismo paulista, fugindo à sedução das vanguardas européias, assim, construiu-se de forma tão produtivamente revolucionária quanto a de Euclides - a partir da leitura revalorizadora da tradição regional nordestina. Ao apontar o narcisismo fértil de Euclides 3' , Gilberto Freyre revela e justifica seu próprio processo de trabalho. Na mão de um biógrafo-crítico, esse procedimento é interessante e arriscado. Para bem invocar o espectro, que ronda suas preocupações, Gilberto se fantasmatiza - isto é, projeta-se como a imagem de seu desejo de ter construído uma identidade brasileira mestiça, respeitável e respeitada. É através dessa imagem fantasmática de sua obra que se aproxima da obra de Euclides para ler, em suas entrelinhas, o sonho de heroísmo, que a impulsionou e lhe deu a forma grandiosa. Se, por um lado, assim se garante a abertura teórica do biógrafo e se assegura seu lugar de herdeiro; por outro lado, a condensação dos sonhos dificulta o despertar. Empatizado com seu objeto, o estudo de Gilberto perde parte de sua radicalidade crítica. Logo que percebidos, os equívocos da ciência de Euclides são descontados em seu saldo de realizações poéticas e proféticas - onde se inclui o "tropicalismo" avant la lettre, atribuído ao pensamento euclidiano. A atividade biográfica, entendida como conjuração de fantasmas, é aquela que leva em conta o "trabalho" desempenhado pelos mesmos, isto é, sua "potência de transformação"32. Biografar deixa, portanto, de ser um registro do passado, para voltar-se para o futuro. Tanto o que doa, quanto o que recebe a herança (do conhecimento e do poder, daí resultante) fazem parte da construção do porvir33 . Nesse sentido, o ensaio crítico-biográfico de Gilberto Freyre é exemplar. Não só resgata o profetismo da obra de Euclides da Cunha, como levanta a pergunta: "Se tivesse hoje vinte, trinta ou quarenta nos, qual seria a posição de Euclides na vida brasileira e diante dos problemas do nosso tempo?"3 4 Mesmo quando propõe uma resposta excessivamente moderada - atribuindo, ao Euclides dos anos trinta, uma posição de "esquerda" avessa à socialização internacionalizante - , seu ato de
FREYRE, Gilberto. Euclides da Cunha, tropicalista. In: - - o op. cit., p.I78. 30
31
Ibidem, p.I76.
32 VALÉRY, Paul. Lettre sur la societé des esprits, apud DERRIDA, Jacques. op. cit., p.25.
33 Cf. DERRIDA, op. cit., p. 28.
FREYRE, Gilberto. op. cit. p.150, 151.
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Biografia e valor literário
Disponível em http:// berran te. no. sapo. ptl S emana_Eucl idiana/ sesjrp.htm.
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conjurar o espectro euclidiano mantém-lhe atuante a "potência de transformação". Este não é, no entanto, o caso das imagens do escritor Euclides da Cunha, que as instituições culturais, a imprensa, a televisão e a internet vêm divulgando, para o grande público, ao longo de um século de sucessivas reedições de Os sertões. Desde os artigos jornalísticos e romarias, incentivados pelo Grêmio Euclides da Cunha, nos anos vinte, até a criação, em rede virtual, do Coletivo Euclidiano - uma e-ong - , em 2001, houve um crescente progresso tecnológico, mas o teor retórico do discurso, ao contrário, permanece o mesmo: dedicação "à memória eterna do glorioso Euclides da Cunha". 35
Mídia e academia -
espaços em conflito produtivo
No espaço público brasileiro, hoje, observa-se uma situação paradoxal: o "escritor difícil" Euclides da Cunha, além de integrar projetos de pesquisa acadêmica, está presente, de maneira constante, em vários dos veículos da comunicação de massa; mas a capacidade de intervenção sócio-política de seu pensamento perdeu-se por completo. N as imagens biográficas e nos eventos, que levam seu nome, apenas se revisita, nostalgicamente, uma glória literária passada ou se reafirmam velhos motivos de orgulho do país ou da região. É claro que o discurso intelectual, sustentado, no âmbito universitário, por biógrafos críticos - como Walnice Nogueira Galvão e Roberto Ventura - dedica-se, com insistência, a uma leitura em perspectiva contemporânea. Sirva de exemplo a passagem em que Walnice destaca o impacto da guerra de Canudos - impacto renovado a cada leitura do texto "irritante" de Os sertões:
GALV ÃO. op. cit.. p.82.
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Como não ficar traumatizado para sempre, se foi ali que se descobriu o Brasil, em que pela primeira vez se foi ao encontro da plebe miserável que até hoje constitui a maioria da população brasileira, e uma plebe cujas ações são de . , L.?36 natureza zncompreenSlve
. No entanto, o impacto buscado pela mídia desloca qualquer tipo de denúncia quanto à miséria - passada e presente - da plebe rural. Seu interesse no teor biografável da figura de Euclides da Cunha reduz-se aos lances dramáticos da vida doméstica do engenheiro. Há cerca de dez anos, a Rede Globo de Televisão levou ao ar, com grande sucesso, a mini-série Desejo, cujo argumento centrou-se no triângulo
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amoroso formado por Euclides, Anna (Saninha), sua mulher, e o jovem cadete, Dilermando de Assis, que se tornou amante dela. O papel de Euclides, desempenhado por um galã televisivo, correspondeu ao do marido, preocupado em resgatar a honra com sangue. O seu trabalho de escritor e o choque intelectual, produzido pela publicação de seu principal livro, ficaram, praticamente, esquecidos. Mas não são só as biografias áudio-visuais que obliteram a dimensão política da figura de Euclides da Cunha; também os relatos, em livro, que alcançam vendagem significativa, exploram as características machistas de seu comportamento, tornado público. Uma das fontes da mini-série televisiva foi Anna de Assis, o depoimento de uma das filhas de Saninha e Dilermando, feito ao escritor-jornalista, Jeferson de Andrade. Em narrativa romanceada, mas repleta de documentos, conta-se "a história de um trágico amor", com o objetivo de desfazer "os equívocos sobre a morte de Euclides da Cunha"3? O livro foi um best-seller: publicado em 1987, no ano seguinte, já estava na sétima edição. Seu sucesso deveu-se, certamente, à forma jornalístico-ficcional de levantar uma (duvidosa) bandeira feminista, revelando uma grande mulher oprimida e ofuscada pelo casamento insatisfatório com um homem famoso. A cada capítulo, reitera-se o propósito de restabelecer a (suposta) verdade sobre a vida matrimonial de um homem, independentemente de sua condição de escritor. Mas essa pretendida neutralidade sobre os escritos de Euclides é desmentida pela insistência de Anna e seus filhos em reivindicar os direitos autorais da obra euclidiana e denunciar, em nome daqueles, "sujeitos que nem conheceram Euclides [e] tornaram-se seus defensores ... em causa própria."38 Se, na programação das grandes redes televisivas e em bestsellers, Euclides da Cunha continua presente, embora no papel secundário - convencionalmente vergonhoso ou ridículo - do marido traído, as páginas da internet sobre o escritor são bastante numerosas e informativas (comparadas a outros temas, considerados como da alta cultura). Berrante, um endereço na internet, é um misto de jornal cultural e propaganda turística de São José do Rio Pardo. Textos histórico-biográficos, notícias, fotografias e mapas organizam-se em função da Semana Euclidiana, que se realiza, desde 1912: A primeira manifestação pública ocorre quando um grupo de admiradores e amigos de Euclides da Cunha ("POR PROTESTO E ADORAÇÃO", como diz Alberto Rangel) desloca-se até a cabana de zinco e sarrafos, às margens do Rio Pardo, ali prestando uma homenagem ao amigo ausente, no dia 15 de agosto. 39
37 ANDRADE, Jeferson de (depoimentos de Judith Ribeiro de Assis). Anna de Assis. História de um trágico amor. 7. ed. Rio de Janeiro: AM Produções LiteráriaS,1988. (A frase citada consta da capa do livro.)
38
Ibidem, p. 252.
http://berrante.no.sapo.ptl Semana_Euclidiana/ sesjrp.htm
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Biografia e valor literário
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Salta à vista o contraste entre a sofisticação do veículo e o simplismo convencional com que é usado. Em seu orgulho localista, os responsáveis pela versão virtual da Semana Euclidiana, embora listem, como conferencistas recentes do evento, os professores mais atualizados no assunto, continuam a usar o mesmo tom encomiástico e a mesma perspectiva acrítica do biógrafoglorificador, Eloy Pontes. As três amostras, aqui comentadas, do perfil de Euclides na mídia, mostram que o discurso biográfico para a massa restringe-se a exaltar ou desqualificar. Desconhece alternativas a esse maniqueísmo, não se aventura em raciocínios críticos. Na circunstância pós-moderna, que pulverizou as grandes narrativas e abalou as bases de universalização e legitimação do conhecimento, resta examinar as múltiplas pequenas narrativas setoriais, descartáveis ou limitadas ao âmbito do indivíduo, classificá-las e selecionar as que apresentam, mesmo momentaneamente, maior produtividade epistêmico-política. Por um lado, os relatos da mídia, que reivindicam a verdade dos fatos como sua própria matéria, resultam fantasmáticos, em sentido negativo, isto é, ilusórios, ultrapassados, reacionários. Por outro lado, o discurso intelectual consegue, de modo suavemente revolucionário, aproximar o passado do presente, lançando-se na direção do futuro. Mas só atinge tal resultado quando se estrutura com suficiente flexibilidade de critérios e conceitos, para admitir o trabalho de fantasmas, nas fissuras da consciência rememorativa e raciocinante. Diante desse contraponto, propõe-se retornar às reflexões anteriores, quando se examinaram os ensaios crítico-biográficos de Gilberto Freyre sobre Euclides da Cunha. Mesmo considerando sua complexidade, os textos gilbertianos sugerem algumas estratégias comunicativas, que, se transferidas para o discurso midiático, poderiam ampliar o grau de democratização do saber, preservando sua capacidade de intervenção crítico-política. O traço oralizante da escrita de Gilberto Freyre serve ao propósito de manter a proximidade com o leitor e emprestar sedução e suspense ao desenvolvimento de temas áridos. A forma ensaística - que ele procura herdar de Euclides, selecionando a estilização da ciência e rejeitando a rigidez oratória presta-se à ficcionalização do documento. E é, justamente, esse tratamento ficcional dos registros, pesquisados nos arquivos, que vai tornar explícito e fascinante - para qualquer público - o efeito de real, produzido pela aparição precária mas efetiva do fantasma conjurado.
Museu de tudo (e depois?)
Sergio Mota Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Este museu de tudo é museu como qualquer outro reunido; como museu, tanto pode ser caixão de lixo ou arquivo.. Assim, não chega ao vertebrado que deve entranhar qualquer livro: é depósito do que aí está, se fez sem risca ou risco. João Cabral de Melo Neto, "O museu de tudo"
N a tentativa de se obterem efeitos revolucionários com a imagem, a estratégia de lançamento no Brasil, com publicidade na TV e distribuição de um CD-ROM, do automóvel "Citroen Xsara Picasso" pode suscitar importantes reflexões a respeito da nova pedagogia que vem transformando o conceito de museu contemporâneo e das relações que se estabelecem entre arte e mercado. No comercial veiculado na TV, um visitante se encontra no Museu Picasso e se aproxima do quadro As banhistas com a intenção de tocar o seio da figura representada na
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tela. Diante disso, a segurança do Museu é acionada e o ousado visitante é expulso do pavimento. Resignado, mas frustrado, o jovem é interpelado na saída por um vendedor que sugere a compra de um automóvel "Citroen Xsara Picasso", sublinhando que, com a máquina oferecida (na saída do Museu, quase que na lojinha de lembranças, é preciso repetir), não haverá imposições, interditos ou limites para qualquer fantasia que se queira executar com a genialidade do veículo. Dessa forma, a "reprodução" da obra ou a transferência da assinatura do quadro para a lataria reluzente do automóvel vai redescobrindo novas intensidades de uma suposta história da pintura contemporânea. Aspecto figurativo esse que não tem nada a ver com imitação, mas que retrabalha imagens do mundo para ritornelizá-Ias em um registro novo e inusitado. O possível comprador, sujeito que consome a mercadoria através da aquisição do veículo de US $20.000, rende-se ao assédio permanente que as mídias engendram à saída do museu. À exclusão de um prazer, paga-se com a inclusão em outro. Virtual por excelência, a ergonomia do carro privilegia o futuro tecnológico, na tentativa de fazer esse futuro chegar em condições que permitam a sua apropriação concreta. l Qual o valor da obra de arte? Substituir a fruição da obra de arte ou o lúbrico (e proibido) toque na superfície do quadro pela legitimação da assinatura na pintura metálica do carro significa recombinar os valores através da "capitalização do virtual", ou do que se assemelha ao virtual. No CD-ROM de lançamento do automóvel há vários vídeos em tecnologia digital que revelam a perfeita combinação do automóvel com os lugares afetivos da cidade do Rio de Janeiro. De início, a imensa quantidade de informações, hipertextos, interfaces, banners e links prejudica a visualização do produto anunciado e obriga o espectador a uma simultaneidade de atitudes, o que provoca uma cegueira visual, inevitável no acesso das informações. De tempos em tempos, o slogan do automóvel é repetido pelo locutor de voz inconfundível: "Citroen Xsara Picasso, o carro que continua levando arte aos centros urbanos". Transformado em museu móvel, o automóvel que trafega pelos pontos turísticos da cidade exibe a assinatura (antes na tela) sobre a lataria reluzente do carro, legitimando máquina e rubrica em um único conjunto. Finalmente, o espectador-consumidor pode ver materializado o ato de dirigir (e tocar) o imponente veículo, arremedo de obra de arte. Valor e valores estão irmanados em um único e imponente produto que se concretiza na emergência do tato e na iminente atitude infantil de tocar tudo o que vê. Um indignado artigo de Jean Clair, diretor do Museu Picasso, que descreve, também, o comercial veiculado na TV, discute, com ponderações bastante prováveis, a forma com que "o artista e seu nome
1 Diz o folheto que anuncia o automóvel: "O Citroen Xsara Picasso apresenta tecnologia, vanguarda e talento em todos os detalhes. Motor 2.0 16V de última geração com excelente performance. Possui 4 air bags e oferece todo conforto, além de ser o único carro nacional com dois sistemas de arcondicionado independentes. Essas e outras características fazem do Xsara Picasso um carro genial".
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próprio se transformaram em grife que a indústria afixa no produto para melhor vendê-lo". O texto tem como centro a discussão do fetiche da assinatura e de como a rubrica de um artista tem valor imediato, mesmo que a obra ainda esteja em produção ou, simplesmente, não exista:
CLAIR, Jean. O fenômeno "X sara Picasso" e o fetiche da assinatura. "Mais", Folha de São Paulo, 27 de fevereiro de 2000, p. 11. 2
o fetichismo da assinatura, isolada da obra, se torna o pivô em torno do qual é organizada a discussão do preço. Grafia é o artifício técnico, a multiplicação industrial da assinatura que permite obter uma mais-valia, permitindo empurrar uma mais-valia em direção ao bem vendido. Toda uma temática pré-industrial se lê no gesto de assinar: é a produção em série de um objeto fetichizado, declinado ao infinito, de tal maneira que seu estoque se renova e seu mercado permanece constante. Assim, na sociedade do terceiro milênio, se dirá "um Picasso" para designar um automóvel, assim como hoje se diz "une poubelie" (uma lata de lixo), nome comum que 2 tem sua origem no nome próprio do prefeito Poubelle. Monumento que ganha as ruas da cidade, esse museu móvel, com seu ponto cego indefinido, pois não é nem pintura nem automóvel, é só a reprodução técnica e fetichizada da assinatura do "genial" Picasso, pode ser o emblema para estudar a transformação do conceito de museologia e a monumentalidade arquitetônica exigida por esse novo paradigma. Comprar o automóvel com a assinatura Picasso significa evitar a simples visitação contemplativa de um museu (onde as sensações lúbricas não são recomendáveis) para, o mais importante, estar inserido no que é exibido, exatamente o que acontece em relação às exposições-espetáculos que preenchem o novo espaço da arte. Cego pela ilegibilidade do que não vê, o espectador entende (ou não) que o virtual que invade o museu nada mais é do que um território onde a realidade existe apenas como desvio ou projeção, cujo acesso é intuitivo, mas profundamente palpável, instrumental, como O automóvel Picasso que substitui a possibilidade do lúbrico gesto na obra de assinatura intocável. Thomas Krens, o presidente da Fundação Guggenheim, em polêmica entrevista ao jornal Los Angeles Times, afirma que está tentando reinventar os museus como "plataformas de cultura" e compara esses espaços de arte a parques temáticos. "Você precisa de cinco divertimentos". Entre esses cinco pontos, ele inclui a arte ("grandes coleções permanentes" e "grandes exposições especiais" são os dois primeiros divertimentos), a noção de edificação museológica e a monumentalidade como aspecto emergente na arquitetura grandiosa
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deste fim de século ("grande arquitetura") e dois conceitos de shopping center ("oportunidades para comer" e "oportunidades de fazer compras"). Na época em que foi contratado pelo Guggenheim, em 1988, Krens já havia desenvolvido a filosofia de que os museus se apegavam demais à "a idéia do século XVIII" (de que estes grandes palácios deviam ser como "uma enciclopédia, oferecendo um exemplar de tudo dentro de uma caixa do século XIX"). Argumenta ele, na mesma entrevista, que os museus necessitavam encontrar as histórias "não contadas. E quem disse que tinham que ser quadros, tinham que ser esculturas 7"3 Na verdade, as exposições nesse novo espaço se transformam em eventos que, na maioria das vezes, reúnem características esquizofrênicas, posto que pretendem reunir em um mesmo espaço mostra histórica e museológica com um olhar múltiplo, de caráter prospectivo, em equilíbrio precário entre harmonia e coerência. A ditadura da instalação, que congrega trabalhos de artistas plásticos, designers e arquitetos, desorganiza a atenção do espectador, que não compreende se a obra é uma investigação plástica ou um comentário arquitetônico, o que vem confirmar, conforme a entrevista de Krens, que categorias como essa importam cada vez menos na realidade desses novos espaços. A polêmica revelada na inauguração da mostra "50 anos da Bienal", em que artistas paulistas atacaram as instalações de arquitetos na exposição "Rede de tensão", cuja curadoria tematizava a experiência urbana, confirma esta mudança de tendência na arte contemporânea. Segundo matéria publicada na Folha de São Paulo, inexistia sinalização divisória entre as três áreas de criação (artes plásticas, arquitetura e designer) e o arranjo labiríntico das obras produzia a sensação de um conjunto contínuo. De caráter multidisciplinar, como todas essas exposições, a polêmica sublinhava a incapacidade de propor embate estético em uma falsa ancoragem à realidade das metrópoles. Diz a matéria: "É um lixo. Patética. Amadora. Constrangedora. Os adjetivos eram sussurados como se as pessoas não acreditassem no que estavam vendo. O que elas estavam vendo era uma tentativa de mesclar arte e design para debater o caos das cidades. Não eram exatamente instalações porque não propunham embate estético algum, pareciam ilustrações". 4 Se, no passado, a cenografia ocupava posição irrelevante na ambientação dos objetos artísticos expostos no museu, agora, ela rivaliza com a obra ou, em um sentido mais amplo, é a própria obra. Na verdade, em alguns momentos, o conceito de ambientação do espaço do museu vai sendo ampliado e se transforma em instalações que reduzem a obra em exposição a objetos menores dentro dessa cenografia
A íntegra da entrevista foi publicada e traduzida pelo jornal O Estado de São Paulo, acompanhada da matéria assinada pela jornalista Tonica Chagas: "Guggenheim homenageia o designer". "O Estado de São Paulo", Caderno 2, 20 de novembro de 2000.
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CARVALHO, Mario Cesar. "Crítica e preconceito: artistas atacam as instalações de arquitetos na mostra 50 anos da Bienal; reação é conservadora, rebate o presidente da fundação". "Ilustrada", Folha de São Paulo, 30 de maio de 2000. O comentário da escultora Márcia Pastore, em um box na matéria, merece a transcrição: "Foi a pior mostra que já vi na Bienal. A tecnologia ficou acima da arte. Parece o Hopi Hari, um parque de diversões, e arte exige um outro tipo de clima. Não há espaço para a leitura de cada obra, e o resultado é o empastelamento de idéias. É ótimo misturar arte, arquitetura e design desde que haja arte, arquitetura e design, e não pastiche de arte, de arquitetura e de design".
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Trabalho, aqui, com uma versão menor e traduzida do ensaio de Barber, "Dislocaciones dei tiempo y nuevas topografias de la memoria", publicado em "O Globo, 28 de outubro de 2000. O ensaio completo encontra-se em: HOLLANDA, Heloísa Buarque & REZENDE, Beatriz (org.). Artelatina: cultura, globalização e identidades cosmopolitas. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
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desprovida de ação dramática. No novo conceito de museu (que atinge também os espaços ditos tradicionais), a cenografia perde a sua função de suporte, organização e introdução e divide as atenções com a obra. Característica principal da produção contemporânea, a curadoria insiste em negar a contemplação à obra de arte e transformála em uma contemplação ativa que prescinde do envolvimento do espectador na representação visual e sensorial que se executa diante dele. Em outro prisma, o próprio conceito de curadoria é modificado, já que ele se torna referência inconteste nessa modalidade que surge e cresce vertiginosamente: a de idealizador de exposições-espetáculos, eventos organizados em amplos espaços que atraem um grande público, seduzido pelos recursos de multimídia. Trata-se, em outras palavras, da utilização da sensibilidade em espetáculos grandiosos que são responsáveis por um setor cultural (o da representação visual e sensorial) que determina os diversos níveis de entretenimento. Em "Deslocações do tempo e novas topografias da memória", palestra apresentada no seminário "Artelatina", realizado no Museu de Arte Moderna em novembro passado, o professor de Comunicação Jésus Martín-Barbero discute em que medida o espaço do museu se encontra hoje deslocado, transformando-se, na lógica das indústrias culturais, em espaço das diversas temporalidades do mundo e das inúmeras possibilidades de memória. Para o professor colombiano, o espaço do museu "transborda os museus-edifícios por mil lados" , indicando uma nova percepção que rompe o museu como "caixa-forte das tradições" e o converte "em espaço de diálogo com as culturas do presente e do mundo". Nesse transbordamento se faz visível a nebulosidade que apresenta a fronteira entre museu e exposição, que aproxima o museu do mundo da feira popular, fazendo com que o curador passe de 'guardião de coleções' a alguém capaz de mobilizá-las, de juntar o pôr em cena com o pôr em ação".5 Na verdade, a eficiente reflexão de Barbero parte de três modelos de política cultural. Profundamente conservador, o primeiro modelo é um modelo compensatório que atrelaria a idéia de museu (ou de toda cultura) à de um "oásis": "o museu está aí para nos tirar deste louco mundo e nos permitir um remanso de calma e de profundidade". Dentro dessa primeira perspectiva, portanto, o museu é convertido em "compensação pela perda da capacidade de decisão da política nacional". O segundo modelo, por sua vez, parte do conceito de simulacro na teoria baudrillardiana e reconhece o museu como uma espécie de "máquina de simulação" que veicula "imagens nas quais não haveria nada para ver", provocando, assim, uma cegueira inevitável, de matriz subjetiva, ou, na formulação de Martin-Barbero, um "colapso da visibilidade".
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Profundamente influenciado pela indústria tecnológica do cinema contemporâneo, este modelo preconiza a impossibilidade "em que está a sociedade atual de distinguir o real de sua simulação, reforçando uma certa tentação apocalíptica do fatalismo". Por fim, o terceiro modelo atrela-se à idéia de política cultural que, fugindo da idéia de apaziguamento, busca fazer do museu um lugar "de mobilização e estremecimento", de "choque da memória", na formulação de Walter Benjamim, lembrado pelo estudioso em seu ensaio. Em outras palavras, é o enfrentamento de um certo establishment da arte, presente nas propostas polêmicas do museu mundializado que é (ou que pretende ser) o Guggenheim. Portanto, a partir dessa concepção traçada por Barbero, o espectador das exposições desse novo museu é estimulado a sentir emoção e a identificar claramente onde está e o porquê. Na concepção de exposição-espetáculo, todos os sentidos (daí a idéia de acervo sensorial) devem estar atiçados quando se entra no espaço destinado à realização, provocando, por interferência virtual, a "sensação" de que o público não está em um museu ortodoxo, em que os objetos estão expostos de forma tradicional e onde apenas se visite e se observe. Referência imediata para esse tipo de exposição, o arquiteto e cenógrafo suíço François Confino dá a medida dessa relação: "é importante mergulhar o visitante de forma que ele fique dentro do assunto da exposição; ele está dentro de outro mundo e, durante o tempo da visita, deve sentir-se em outro lugar, como em um sonho. De forma alguma ele deve ser acordado pela realidade que está lá fora. Trata-se de algo similar ao cinema. Durante duas horas de ação, você se esquece da realidade - a não ser que o filme seja entediante ou sua poltrona seja muito desconfortável". 6 Assim, o uso da categoria de espaço no conceito do novo museu constitui uma estrutura díptica divergente ao da perspectiva, porque constrói espaços próprios de ausência virtual da realidade. Estrutura essa que se contamina pelo espaço ao redor a partir do momento que a obra age de maneira ativa nesse entorno. Em O espaço moderno, Alberto Tassinari pontua essa distinção e procura entender como se deu a passagem da arte moderna para a arte contemporânea. Para definir com precisão o que são os dois momentos, o autor enfrenta uma dificuldade inicial, já que não se trata de dois tipos de manifestação unívoca. Tanto nas obras modernas como nas contemporâneas é difícil encontrar um princípio que as unifique. É na noção de espaço que Tassinari encontra não apenas o que singulariza cada momento, mas um viés privilegiado para observar como se deu a passagem de um para outro. Dessa forma, a arte contemporânea "se coloca no
o arquiteto e cenógrafo foi o curador da exposição "Genoma ao vivo", em cartaz em São Paulo, no Ibirapuera. Sua afirmação está em uma longa entrevista sobre a exposição, concedida ao jornal "O Estado de São Paulo". BRASIL, Ubiratan. "Público terá a sensação de um sonho". "Caderno 2", 6 de junho de 2001.
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TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac&Naify, 2001, p. 34.
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8 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 2001.
Em "O cinema dos fotogramas que se bifurcam", primeiro texto em que comecei a me debruçar sobre essas questões, apresentado no seminário da Cátedra Padre Antônio Vieira, da PUC-RJ, em outubro de 2000, mencionei diversas exposições que davam conta desse novo estado do espaço museológico. Apesar do foco central desse texto ter sido a discussão em torno do Guggenheim e sua proposta de museu internacional e mundializado, trabalhei com di versos exemplos: "Os exemplos são inúmeros, mas basta lembrar da polêmica na exposição do redescobrimento, no módulo "Imagens do Barroco - arte dos séculos 17 e 18, cena grafado pela diretora teatral Bia Lessa as famosas flores amarelas e roxas. No Rio de Janeiro, a polêmica ficou esvaziada porque os módulos estacam fragmentados e descentralizados e o espaço do MNBA era menor que em São Paulo; a exposição "Paisagem carioca" (2000), no MAM, que conjugava objetos que tinham o Rio como tema, filmes, sons de tiro, trânsito caótico, sonorização especial e até um visorama, desenvolvido 9
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mundo e utiliza seus sinais como índices puramente objetivos do que se estrutura nos trabalhos, como construções inteiramente secularizadas, de uma espacialidade que não precisa mais se estabelecer. Essa interpretação talvez encerre a tensão modernista de seu período de formação e seja responsável por uma riqueza ímpar". 7 Os teóricos da pós-modernidade e da globalização, entre eles Frederic Jameson e Zygmunt Bauman, já apontavam que a realidade mostra uma face "acelerada", em "tempo real", de supressão das distâncias físicas e de interconexão em redes cada vez mais amplas. Assim, o imperativo teórico que comanda a "exposição que é evento" estaria ligado a uma nova natureza do tempo e do espaço, em que a percepção também é feita de velocidade. Som, luz, sucessão de imagens e mensagens produzem uma intuição que funciona como "princípio da velocidade", para usar uma expressão cara a Bauman em Modernidade líquida. Nesse livro, o teórico da globalização menciona o filme "Berlin-Cinema", de Samira Gloor-Fadel, que apresenta uma leitura multidimensional capaz de articular a arquitetura e o espaço público com a memória e o acontecimento. Bauman afirma que "cinema e espaço urbano seriam dois registros que comportam a interrogação do Outro: o que será que eles querem? Aqui é relevante o espaço em branco entre duas imagens, pois neste 'entre imagens' se configura o lugar onde a paisagem contemporânea efetivamente se constitui, com intenso significado e singular beleza, e onde o vazio se transforma em lugar significante". 8 Versão da espetacularização da cultura, esses novos espaços do museu com suas exposições-eventos 9 aglutinam várias disciplinas artísticas para escrever a museologia do século XXI, em que os espaços se tornam centros de espetáculos e a entrada no virtual é acionada por uma cenografia nada didática que abre mão do museu como espaço reflexivo. Dirigida à consecução de uma consciência de visão de mundo diferente, essa interferência virtual e tecnológica no novo espaço do museu aponta para uma idéia de não permanência que trabalha a obsessão do homem e da sociedade moderna com o controle e a mensuração cronológica. Em esclarecedor artigo publicado em O Estado de São Paulo, Roberto Teixeira da Costa, atual presidente do Conselho Deliberativo do MAM de São Paulo, discute sua participação em um painel no "World Economic Forum" , em Davos, cujo tema era "O museu do futuro;'. Três questões relevantes faziam parte da pauta de discussões: "1. Como os museus, basicamente criações do século 19, irão sobreviver no século 21? 2. Será que seu papel estará reservado a fazer parte da indústria do entretenimento? 3. Será que a extraordinária arquitetura
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dos museus de hoje vai ofuscar seu conteúdo?"1O Segundo o artigo, especialistas detectaram uma gradual mudança no conceito dos museus norte-americanos. Primeiro surgiram os circunspectos, longos corredores cercados por pinturas ou plantas e animais mortos. Depois aqueles que mais pareciam "cercadinhos para crianças, preocupados com a tendência infantil em tocar em tudo, designers criaram museus com exibições interativas e displays táteis. Agora, há os museus de Ralph Appelbaum, que tornam a história real, estimulam a imaginação, criam emoções e, mais importante, expandem a inteligência". Teixeira da Costa lembra o caso do Museu do Holocausto de Washington, uma das mais famosas criações de Appelbaum, em que cartões de identidade permitem que os visitantes sigam, ao longo das instalações, o destino de uma vítima ou um sobrevivente. As experiências individuais são narradas a partir dos objetos rotineiros, como canecas em que judeus da resistência escondiam material que documentava o holocausto. Nesse sentido, as opiniões de Thomas Krens, presidente da Fundação Guggenheim, sobre o museu do futuro e de como ele será delineado fundamentalmente pela arquitetura e pela tecnologia, merecem a longa transcrição:
Na visualização desses museus, ele [Krens] usou a imagem de um triângulo que teria no seu topo as exibições. Abaixo, 10 vezes maior, estaria o catálogo, contendo informações adicionais que não podem ser apresentadas. O bloco abaixo, novamente 10 vezes maior, irá conter os instrumentos e a tecnologia que permitirá aos usuários acessar todas as informações relacionadas com a exibição. Ainda abaixo desse bloco, estará a internet, 10 vezes de novo maior, com um potencial ilimitado para mostrar continuamente vídeos, textos, fotografias e informações de arquivo. Perguntado se isto não substituiria o objeto atual no conceito de museu do século XIX, sua resposta foi um categórico "Não"! Krens não acha que a arquitetura vá ofuscar o conteúdo. A função do museu é criar uma situação tal que o público não se sinta tiranizado. Ele comentou dois casos clássicos, extremos, da arquitetura de museus: o labiríntico, onde os visitantes, uma vez dentro, têm enorme dificuldade de encontrara a saída; e outro do tipo atrium, cheio de luz, que mostra aos visitantes que eles estão a alguns passos de qualquer exibição. A arquitetura, na sua opinião, deve ressaltar a experiência JJ coletiva.
elo núcleo de computação da UFRJ, que permitia ver a evolução da cidade em três tempos; a exposição "De El Greco a Velásquez", no MNBA, cenografada por Daniela Thomas, onde cada sala foi pintada de uma cor forte e diferente, com luz incidental sobre os quadros e as salas às escuras; a série "a imagem do som", cujo curador é Felipe Taborda, que conjugava obras que liam (num sentido bastante amplo e profundamente conceitual) musIcas que são sorteadas entre os artistas - Caetano Veloso, Chico Buarque e, a última, Gilberto Gil. Ao mesmo tempo que se vê a obra, pode-se ou vir a . música em aparelhos de cd individuais; a exposição sobre cidades virtuais, no CCBB, www.mycity.com.br. que podia ser acessada de qualquer computador pessoal, cuja proposta era transformar em websites os olhares de vários artistas sobre suas cidades e conectá-los à rede mundial de computadores, revelando a figura do webdesigner; as exposições pioneiras nessa linha, no CCBB, de Roland Barthes e Clarice Lispector, a primeira com curadoria de Silviano Santiago. Sem contar a mostra "50 anos de TV e mais, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, que reuniu em uma oca projetada por Oscar Niemeyer, uma parafernália tecnológica para contar os 50 anos da TV brasileira. No projeto cenotécnico, havia um tubo de imagem,
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totalmente construído em vidro, que promovia a passagem do mundo externo para o interior da midiaesfera que é a oca de Niemeyer, com direito, segundo descrição de O Estado de São Paulo, "a um corredor sinuoso formado por telas transparentes e 'paredes de luz negra' que permitem ao visitante ter a sensação de estar no interior de um tubo de imagem". Inclusive, a matéria publicada no mesmo jornal tinha o sugestivo título de: "Esqueça tudo o que você já sabia sobre os museus". 10 COSTA, Roberto Teixeira da. "O museu do futuro e o futuro dos
museus", "Caderno 2", O Estado de São Pau-
lo, 25 de março de 2001. 11 COSTA, Roberto Teixeira. Idem, p. 2. 12 HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, p. 25.
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É importante mencionar que não se fala, ainda, em termos de "um museu virtual", ou da "webart", que cria salas de visitação real com trabalhos de artistas realizados para a rede. Por mais que se esteja tangenciando esse novo recurso, ele não está em evidência aqui. É um outro aspecto essa questão do fechamento do indivíduo em uma espécie de tecnosfera artística ou de cápsula tecnológica que é a internet. Importa aqui, em um primeiro momento, a transformação do museu em algo cibernético, de uma dimensão virtual que é da ordem do simulacro. Um museu que é também cinema e se realiza como tal. Ao discutir a questão do nascimento de uma cultura e de uma possível política da memória em expansão global a partir da queda do Muro de Berlim, do fim das ditaduras latino americanas e do apartheid na África do Sul, o professor Andreas Huyssen, em Seduzidos pela memória - arquitetura, monumentos, mídia, observa a relevância que o imaginário urbano e as memórias traumáticas possuem nas novas configurações do espaço contemporâneo. A leitura desses atuais fenômenos da cultura permite explorar as construções de cenários urbanos e de espaços virtuais, na tentativa de responder que novos sentidos têm a memória histórica no novo conceito de museologia. Assim, os estudos de Huyssen vão questionar o lugar que ocupa essa memória nas experiências de espaço e tempo e a influência, ultrapassando o legado da modernidade, que a globalização exerce sobre o espaço público contemporâneo. Se a modernidade estava preocupada em assegurar o futuro, associando-o ao universalismo e à razão, importa agora, nas sociedades midiatizadas ocidentais, controlar uma certa "epidemia da memória". "Assegurar o passado não é uma tarefa menos arriscada do que assegurar o futuro". 12 Na verdade, dar conta deste privilégio em relação à memória permite questionar, em sentido mais amplo, uma espécie de pedagogia do "novo museu" na organização de um repertório de imagens da história e na reconfiguração dos conceitos de documento e arquivo. Discutir o conceito de arquivo, portanto, no acervo virtual construído para a cenografia-espetáculo do novo museu, significa chamar atenção para o aspecto descartável (porque desmontável) dessas linguagens que vão se anti-hierarquizando pelo espaço do museu e produzindo arquivos voláteis e irrecuperáveis na essência. Influenciado pelo relativismo da cultura e pela estética do hipertexto, esse acervo tecnológico (que não chega a se transformar em arquivo) se mistura na contigüidade das linguagens e na visão inevitavelmente prospectiva do hipertexto. Na impossibilidade de estabelecer as fronteiras e áreas de atuação entre as diversas linguagens artísticas, ocorre uma espécie
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de acumulo pelo excesso, acúmulo esse descriteriado de imagens e mensagens. O que pertence por direito ao universo das artes visuais? Bricabraque museológico, o percurso nesse espaço escreve o texto, mas não é capaz de lê-lo. Em "Andando na cidade" Michel de Certeau reflete sobre os caminhantes que executam traçados urbanos, fazendo "uso de espaços que não podem ser vistos; o conhecimento que têm destes é tão cego quanto o dos amantes abraçados. As trilhas que correspondem a esses poemas entrelaçados, irreconhecíveis, em que cada corpo é um elemento assinado por muitos outros, furta-se à legibilidade. É como se as práticas que organizam uma cidade febril se caracterizasse pela cegueira". 13 Executando percurso semelhante aos voyeurs e caminhantes de Certeau, o espectador do museu leva em conta a velocidade imposta pela tecnologia digital e considera um distanciamento dinâmico, cujo tempo não é necessariamente linear, mas topológico. Desorientado em seus sentidos, ele desenha o começo de um novo paradigma, cuja seqüência não é linear. Ou seja, o paradigma computacional não pretende uma fixação espaço-temporal como o perspectívico (o do museu do século XIX), ao contrário, o novo modelo é baseado na velocidade, na saturação e na possibilidade de mudança de ofertas e alternativas que são oferecidas ao longo do percurso. Cego pela ilegibilidade do que não vê, o espectador entende (ou não) que o virtual que invade o museu nada mais é do que um território onde o real existe apenas como projeção ou desvio, cujo acesso é intuitivo, mas profundamente palpável, instrumental, como o automóvel Picasso que substitui a possibilidade do lúbrico gesto na obra de assinatura intocável.
Referências bibliográficas BARBERO, Jesus Martin. O novo museu, espaço das diversas temporal idades do mundo. Segundo Caderno, O Globo, 28 de outubro de 2000. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 2001. CAIAFA, Janice. Nosso século XXI: notas sobre arte, técnica e poderes. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. CHAGAS, Tonica. Guggenheim homenageia o designer. Caderno 2, O Estado de São Paulo, 20 de novembro de 2000. FRIDMAN, Luis Carlos. Vertigens pós-modernas: configurações institucionais contemporâneas. Rio de janeiro: Relume Dumará, 2000. GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
13 CERTEAU, Michel de . .. Andando na cidade". Revista do Patrimônio Histórico Nacional, na 23/1994: Cidade, p. 23.
Museu de tudo (e depois?)
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Um poema duas invenções l
Socorro de Fátima P. Vilar Universidade Federal da Paraíba
1. Inventa-se um poeta I Este trabalho reproduz com algumas modificações o capítulo Misticismo e Memória, da tese de doutorado que defendemos na USP, com o título de A invenção de uma escrita: Anchieta, os jesuítas e suas histórias.
2 Esta perspectiva de análise vem sendo desenvolvida no Brasil, por João Adolfo Hansen e Aicir Pécora. A formulação sobre os estudos sincrônicos e diacrônicos encontram-se em "Ler & Ver: pressupostos da representação colonial". www.fourtunecity.com
Começo este ensaio 1 com uma pergunta: é o poema em Louvor à Virgem Maria, atribuído ao jesuíta Anchieta, um texto literário, digno de qualquer estudo que não seja o religioso? A pergunta tenta dar conta do lugar que esse texto vem ocupando no cânone da literatura brasileira, desde o século XIX, quando os românticos deram-lhe o estatuto de obra literária menor, evidentemente, e ao jesuíta a condição de poeta. Muito embora não o houvessem lido, pelo que, suponho serem os motivos óbvios - o poema em Louvor à Virgem não diz dos temas que lhes foram caros, além disso foi escrito em latim - , a produção do texto de Anchieta contribuiu entre outras coisas, com a formação de certas representações da nacionalidade brasileira. Dizendo de outro modo, esse poema raramente lido, muitíssimo citado e sem "valor literário", não pára de significar. O que proponho como estudo é, primeiro, uma leitura diacrônica do poema, analisando as suas apropriações e o valor de uso, principalmente no século XIX, quando se sedimenta uma certa representação do poeta e do poema; segundo, uma leitura sincrônica, que buscará os preceitos e as condições de sua produção, segundo as categorias retóricas, teológicas e políticas que o formularam 2 • Isso significa dizer que a forma genérica "poema", irreconhecível na prescrição retórica, será reconduzido à condição de prática historicamente determinada, submetido às regras retóricas de composição de discursos. No caso específico
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do "poema" de Anchieta, isto inclui também as regras e normas para composição de textos, elaborados segundo as Constituições da Companhia de Jesus, o Ratio studiorium e os Exercícios espirituais. Comecemos por localizar historicamente a devoção a Maria no século XVI, garantindo-se, antecipadamente, a tentativa de não associála, de forma anacrônica, à figura do sujeito Anchieta, lugar-comum da historiografia da literatura brasileira. Desde que foi fundado, a princípio pela tradição patrística, o misticismo mariano compete com os dogmas fundamentais do cristianismo, garantindo à Virgem Maria lugar de destaque na devoção católica. A posição que ocupou por longos séculos, no seio da Igreja Católica, quando, assim como essa, era tida como Virgem e Mãe, conforme as escrituras. Tanto que, a ambas poderiam ser aplicadas as mesmas expressões: "Uma e outra são mães, uma e outra são virgens. Uma e outra dão a Deus-Pai uma posteridade: Maria dá ao Corpo a sua Cabeça, a Igreja dá a esta Cabeça um Corpo. Uma e outras são mães de Cristo, mas nenhuma O dá à luz completo sem a outra"3. No século XX, com o Concílio Vaticano 11, ela perderá a prerrogativa de Cabeça do Corpo Místico da Igreja Católica e assumirá a posição de membro da Igreja, muito embora continue sendo "membro eminente, a ponto de ser Modelo e Mãe". O Concílio aproveita para dispor sobre a função intermediadora de Maria, não através dos privilégios de mãe, como acreditavam os homens do século XVI, "mas sob a moção do Espírito": "pela Sua intercessão e pela Sua ação, Ela não cessa de unir os membros à cabeça"4. O louvor a Maria foi duramente atingido pelos reformadores protestantes que, a despeito de manterem a doutrina da Imaculada Conceição, aboliram de seus preceitos a sua santidade. Quando para os católicos a diversidade de representações traduzia-se como inegável poder da Virgem, para os protestantes, pelo contrário, era motivo de indignação, visto não se saber qual dentre tantas imagens seria a da verdadeira mãe de Deus. Na acusação que faziam às práticas oficiais da Igreja Católica, como sobrevivências pré-cristãs, eles argumentavam ser o culto à Virgem o mesmo que era feito a Vênus. Na verdade, a condição ao mesmo tempo humana e divina da figura de Maria sempre foi revestida de ambigüidade. Coube aos dominicanos a divulgação de imagens da Virgem amamentando uma criança, num sinal claro de sua "natureza humana"s. Esta humanização de Maria, representada por sua imagem amamentando o menino, também pode ser lida no poema em seu louvor, atribuído a Anchieta, como uma sobrevivência aos expurgos tridentinos. "Vem pois, ó filho belo ... (e ao dizê-lo o soergues/em mantilhas o pões, e a boca aos seios lhe
CAZELEES, H. et all. Dicionário Mariano. Porto: EPS, 1988. p. 83.
3
4
Idem, p. 182.
5 BOSSY, John. A cristandade no Ocidente. 1400 - 1700. Trad. Maria Amélia Melo. Lisboa: Edições 70, 1990. p. 17.
Um poema, duas invenções
ANCHIETA, José de. Poema da bem-aventurada virgem Maria, mãe de Deus. Trad. org. Pe Armando Cardoso. S. 1. São Paulo: Loyola; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1982. 2V. p. 49.
6
7
Idem, 63.
8 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Portugália; Rio de J aneiro: Civilização Brasileira, 1938. V.2. p.339.
9 HOORNAERT, Eduardo et alI. História da Igreja no Brasil. Ensaio de interpretação a partir do povo. 4.ed. São Paulo: Paulinas; Petrópolis: Vozes, 1992. p. 347. 10 FRANCA, Leonel. (Org.) O método pedagógico dos jesuítas. Rio de Janeiro: Agir, 1952. p.137.
11
Idem, Ibidem, p. 181-2.
12 SPENCE, Jonathan. O palácio da memória de Matteo Ricci. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 247260.
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ergues)" /Toma pois, belo infante, os meus túrgidos seios / bebe, santo menino, em meus maternos veios"6. Noutra passagem do poema são referidas as partes íntimas da Virgem, imagem completamente fora do decoro teológico dos tempos atuais - "Pois único gerado em teu seio, ele acata, /sem lesar, o canal da virgindade intata 7 • A medida exata do prestígio da Virgem na Companhia de Jesus e no Brasil pode ser dimensionada pelo número de Igrejas construídas pelos jesuítas que levavam o seu nome: Nossa Senhora da Ajuda, da Assunção, da Conceição, da Graça, da Esperança, da Escada, da Paz, do Rosários. Aliás, segundo Eduardo Hoornaert, poderíamos escrever uma história do Brasil através dos significados que a imagem de "Nossa Senhora" apresentou ao longo desta época. Neste sentido, no Brasil, a devoção a Maria seria uma marca característica do tempo, uma vez que era invocada tanto para marcar as épocas do ano, como para as horas do dia9 • Além do que prescreviam os Exercícios espirituais, havia no Ratio studiorium regras estabelecendo a devoção à Virgem. Elas previam a disseminação do culto do Reitor aos alunos das classes inferiores. Ao Reitor era recomendado introduzir no seu colégio a Congregação de Nossa Senhora da Anunciação. A pena para aquele que não se inscrevesse era não ser admitido na academia em que se praticavam exercícios literários 10. Os alunos das Classe Inferiores eram obrigados, aos sábados à tarde, a rezar nas aulas as ladainhas de "Nossa Senhora". Aos professores, por sua vez, sugeria-se que aconselhassem aos seus discípulos "com empenho a devoção à mesma Virgem e ao Anjo da Guarda". Recomendava-se também que exortassem "principalmente os alunos à oração quotidiana a Deus, de modo particular à recitação diária do terço ou do ofício de Nossa Senhora"ll. Outro poderosíssimo veículo de consagração à Virgem se deu através das Congregações Marianas. A primeira delas surgiu no Colégio de Roma, fundada pelo jesuíta Jan Leunis, em 1563. Estas congregações tiveram como objetivo estimular a união entre os estudantes, através de ações comuns, tais como visitar as prisões, auxiliar espiritualmente os condenados à morte, intermediar disputas entre pessoas de uma mesma cidade, casar virgens e cuidar dos doentes mentais l2 . Embora não tenha sido o seu primeiro objetivo, as congregações foram importantes na preparação dos jovens jesuítas para as missões ultramarinas. O sucesso das congregações motivou a sua expansão a todos os recantos onde houvesse um jesuíta. No Brasil, a primeira Congregação, erigida canonicamente, foi a do Colégio da Bahia, instituída em 1586. Entretanto, desde 1584 já "se assinalam Confrarias de Nossa Senhora nas Aldeias da Baía". Segundo Serafim Leite entre outros
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objetivos dessas instituições encontra-se o de "purificar e elevar os costumes" da Colônia. Essa afirmação é significativa porque identifica os dois elementos que forjaram a moral do primeiro século da Colônia, De um lado, a presença onipresente da Virgem Maria - cuja visibilidade se materializava através das Confrarias e das Igrejas - , regrando os costumes, se contrapondo à prática sexual dos portugueses e dos nativos em que, julgavam os padres, se revelava a presença incontestável do Demônio; de outro, as práticas moralizantes dos jesuítas, louvadas e para sempre perpetuadas através dos seus próprios escritos, Neste sentido, à Virgem Maria e à escrita dos jesuítas podem se adequar as palavras de Louis Marin quando afirma que o poder das imagens e sua eficácia advêm do fato de que "ils sont transformés en une forme, une espece (species) de visibilité" 13. Nesse caso específico, a imagem de Anchieta escrevendo o seu poema à Virgem nas areias de Iperui seria a "visibilidade" desse discurso, que passa a representar o papel "civilizador" da Companhia de Jesus no Brasil do século XVI. Daí nasce a sua força e a sua pujança. Considerando o que afirma Louis Marin, "representar" deve ser compreendido como "presenter à noveau (dans la modalité du temps) ou à la place de .. , (dans celle de l'espace)", nesse caso, o prefixo re "importe dans le terme la valeur de substitution"14, Nesse sentido, vale ressaltar que essa imagem de Anchieta, escrevendo o seu poema nas areias de Iperuí, com que o século XIX o consagrou, transformando-o na representação da moral, da virtude e da castidade dos primeiros anos da Colônia, foi construída e valorizada no momento em que a Companhia se encontrava ausente do cenário nacional, passando então a representá-la, contribuindo para a sua reabilitação, De tão eficaz, essa "enunciação poderosa de uma ausência" prescindiu até mesmo do instrumento que a forjou, ou seja, do próprio texto, haja vista, que o Poema da bem-aventurada Virgem Maria nunca foi "lido" no século XIX. Diante do exposto, parece no mínimo, injustificado julgar que a devoção à Virgem fosse uma prerrogativa de Anchieta, que passou a ser nomeado com o epíteto de "poeta de Nossa Senhora". A relação de Anchieta com a Virgem também possibilitou vários desdobramentos entre os quais o mais importante é o que está relacionado à castidade "exemplar" defendida pelos jesuítas. Além disso, quando os seus contemporâneos anunciavam o episódio em que se consagrara à Virgem, como o momento inicial da vida religiosa do jesuíta, o faziam porque esse "nascimento" era sob todos os aspectos verossímil em relação à legenda que começava a ser escrita e o mais adequado quando se tratava de um membro da Companhia. Evidente-
13 MARIN, Louis. De pouvoirs de "image. Gloses. Paris: Éditions du SeuiJ, 1993. p. 9.
14
Ibidem, p. 10 - 11.
Um poema, duas invenções
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mente, o Poema da Virgem Maria garantiu-lhe o privilégio dessa devoção, que é referida por seus biógrafos como uma prática forjada na e, ao mesmo tempo, pela sua santidade, uma vez que os versos tomados numa perspectiva autobiográfica passaram a ser sinônimo da sua propalada e decantada castidade. A partir dessa perspectiva, esse louvor vem sendo utilizado, com os mais diferentes propósitos, principalmente pelos próprios jesuítas. Hélio Viotti, na consagradíssima biografia de Anchieta, articula a devoção ao topos da origem, dando-a como fonte do "lar paterno e [de] sua pátria" o berço dessa "extraordinária devoção", valendo-se de versos do poema para construir tal assertiva. Esse lugar-comum construído a partir dos sentidos que os padres vão atribuindo ao texto, para melhor representar o exemplum, transforma-se em fato inquestionável e é repetido em biografia recentíssima do beato:
15 LUIS, José G. José de Anchieta. poeta, humanista y apóstol de América. Publicaciones dei Ayuntamiento de San Cristóbal de La Laguna, 1998.p. 126.
La devoción de Anchieta a la Virgen María comenzó desde su más tierna infacia, pues él estaba convencido de que gracias a la Madre de Dios logró la verdadera fe: "La fe verdadera creció conmigo desde mis primeros anos porque me la dio el Hijo y su dulce Madre" confiesa él mismo en 15 unos versos de este poema. Tal construção, porque não questiona a produção do discurso que a forjou, permite confundir os preceitos do gênero epidítico, articulando indiscriminadamente o "valor estético" do poema à filiação clássica do jesuíta. Ora, na construção das narrativas chamadas Vida, pertencentes ao gênero demonstrativo, estava previsto, no caso de louvor, associar o topos da origem à certa "nobreza". Como se tratava de um jesuíta, essa ascendência nobre era a cristã, evidenciada no tronco familiar dos Anchieta, que teria deixado de herança não só o fervor cristão, mas também os "dotes literários". De forma anacrônica, Hélio Viotti se refere a um suposto parente, João de Anchieta, maestro da capela real, para informar que, assim como Anchieta, ele compôs "versos e vilancetes de fé" e um cântico em louvor da "honra de Nossa Senhora", articulando os "dotes literários" à fé em uma leitura que, apesar de anacrônica, se constitui como discurso eficientíssimo na constituição de um Anchieta poeta. Retomando as condições de produção do discurso, lembremos que os votos de castidade de Anchieta, reproduzem tão somente a prescrição dos Exercícios espirituais, nos quais o exercitante deve rogar a "Nossa Senhora" para que alcance "estas três graças de seu Filho e Senhor":
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r) que sinta interno conhecimento de meus pecados e abor-
recimento deles; 2 a) que sinta a desordem das minhas ações, a fim de que, aborrecendo-a, emende-me e me ordene; 3 a) pedir conhecimento do mundo, para que, aborrecendo-o, /6 aparte de mim as coisas mundanas e vãs. Coube a Pero Rodrigues, na sua Vida do Padre José de Anchieta, incluir os votos de "virgindade perpétua" de Anchieta como uma das virtudes fundamentais ao papel que iria desempenhar na Companhia de Jesus no Brasil. a autor tenta ser verossímil com a vida que narrava, uma vez que seu compromisso é com a história escrita através do exemplum, matéria do gênero hagiográfico. Assim, considerando que a devoção à Virgem constitui a grande virtude de Anchieta, Pero Rodrigues estabeleceu esse momento como aquele em que Deus Nosso Senhor começou por sua parte, a plantar em sua alma as virtudes, das quais, crescendo depois com a divina graça, haviam os fiéis e gentios de recolher muito fruto espiritual, como a experiência mostrou 17 • Do ponto de vista do gênero hagiográfico, esse gesto é verossímil posto que se estabelece como um prognóstico da vida virtuosa que será narrada. A menção desse episódio, dentre tantos outros, tem origem em um daqueles muitos testemunhos "dignos de memória", que foram motivados pela decisão do Provincial Fernando Cardim de escrever a sua vida e registrar os seus feitos heróicos, posto que a memória assegura imortalidade aos mortais, tornando os seus feitos exemplos, dignos de serem lembrados e, principalmente, repetidos no presente. Para os jesuítas do século XVI a história, como definia Cícero, era magistra vitae. No entanto, o certo é que, após a menção desse episódio na Vida do padre por Pero Rodrigues, tem início a prática de uma leitura que busca associar certas passagens do Poema à Virgem Maria a fatos relacionados à biografia do autor. a problema desse tipo de abordagem se dá quando o eu do poema, uma convenção retórica, se afasta da imagem virtuosa do bemaventurado. É o que ocorre com a passagem, intitulada "Lamentação da virgindade perdida na presença da Virgem", na qual o eu se investe como "alma conspícua" para melhor exaltar a virgindade de Maria. Nela se encontram contraditoriamente, do ponto de vista de quem confunde o eu do poeta com a pessoa do jesuíta, tanto o suposto voto de perpétua virgindade, como também a "lamentação da virgindade que foi perdida" pelo afastamento do eu do poema da imitação da Virgem, deixando-se entregar à "terrível escória"18.
16
LOYOLA, p. 52.
17 RODRIGUES, Pero. Vida do venerável padre José de Anchieta. (1609) São Paulo: Loyola, 1988. p. 61.
18 ANCHIETA, op. cit., p. 135-7, V.I.
Um poema, duas invenções
19 CURTIUS, Ernest. Literatura Européia e Idade Média Latina.
2.ed Trad. Teodoro Cabral. Brasília: INL, 1979. p. 166. lO
Idem, Ibidem., p.169.
21
BARTHES, Roland.
Sade, Loyola e Fourier.
Caracas: Monte Avila, 1977.
22
LOYOLA, p.SO.
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Entre as várias convenções que respeita, o trecho reproduz um lugar-comum da época, quando todo jovem que optava pela vida religiosa o fazia movido por um "chamado", cuja voz dominante era sempre a da Virgem Maria. A "sinceridade" com que reveste sua alma de pecadora é retórica e se relaciona ao topos do inexprimíveF9, que, nesse caso, diz respeito a uma incapacidade não apenas inventiva, como sugere a retórica, mas principalmente teológica. O eu do poema é tanto mais indigna de narrar a vida da Virgem quanto mais maculada é a sua alma. Esse efeito de sentido é prescrito por "uma forma especial de comparar", denominada "exageração"20, e tem como objetivo realçar as qualidade únicas do exaltado, no caso absolutamente único da mãe de Jesus, que concebeu sem pecado. Por último, tem-se a prescrição teológica sobre o emprego das faculdades da alma na contemplação, também informada pelos Exercícios espirituais, como vemos a seguir: 1°) a memória é acionada na recordação dos fatos evangélicos; 2°) a inteligência é a responsável pelo exame de fatos "vários e proveitosos"; 3°) a vontade que executa a aplicação dos fatos proveitosos "à própria pessoa para utilidade espiritual". Além disso, se consideramos o que afirma Roland Barthes, a linguagem inaciana pratica de modo incansável essa forma "exasperada deI binarismo que es la antítesis", entre as quais podem ser incluídas a pureza de Maria e a impureza do eu do poema. Segundo Barthes, para o exercitante, "toda sefial de excelencia determina indefectiblemente el hueco en que él se apoya estructuralmente para significar: la sabiduría de Dios y mi ignorancia, su omnipotencia y mi debilidad, sujusticia y mi iniquidade, su bondad y mi malicia, parejas paradigmáticas"21. Ademais, a representação do eu do poema é exemplo da natureza corrompida do homem, assunto tratado por Inácio de Loyola nos Exercícios espirituais - Segundo exercício" que prescreve a "Meditação dos pecados" da seguinte forma: Olharei quem sou eu, diminuindo-me por meio de comparações. 1°) Que sou eu em comparação com todos os homens? 2°) Que são os homens em comparação com todos os anjos e santos do Paraíso? 3°) Que são todas as criaturas em comparação com Deus? e eu só, que posso ser? 4°) Considerarei toda a minha corrupção e miséria do meu corpo. 5°) Ver-meei como uma chaga e tumor de onde saíram tantos pecados e tantas maldades e venenos tão hediondos"22. Como nos Exercícios, o eu do poema pode e deve "materializar" esses conceitos, representando a si mesmo nesse "teatro". Entretanto, para o jesuíta Armando Cardoso, que busca no poema pistas e sinais do homem Anchieta, a "modelização" da persona só será tomada no sentido histórico, na medida em que confirme os fatos
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que ilustram a sua vida de bem-aventurado. Do contrário, o poema assume o sentido figurado, como se observa nas inúmeras justificativas que o padre Armando Cardoso estabelece para o episódio "Lamentação da virgindade perdida na presença da Virgem". Podemos começar ilustrando a passagem em que o tradutor e comentador identifica, nos versos abaixo citados, aquele momento, já comentado, em que o jovem jesuíta se consagra à Virgem:
Mal do paterno umbral sai teu rosto divino, coa pela cidade aroma peregrino. Senti, ou cri senti-lo, e lancei-me à corrida, sorvendo a estrada, a tanto ardor oferecida. Num momento, dum salto, ao vencer a distância, vi, nos degraus do templo, aquela meiga infância. Vi e morto caí: uma seta me vara: prendeste meu olhar no teu, Ó virgem cara. Com que ardor mistérios invadiu minha cela do coração o amor da virgindade bela! Resolvi resguardar a candura com chaves e firmar seus portais com sempiternas traves, E em passo venturoso ir em tua piu~ada, feliz de te imitar, virgem imaculada. 3 Armando Cardoso classifica a cena como "viva imaginação", atribuindo-lhe uma subjetividade que os outros trechos, em sua maioria paráfrases de textos religiosos da tradição hagiográfica, não comportariam. Seu objetivo é interpretar o episódio como "tradução poética de um fato histórico da sua adolescência em Coimbra", em uma perspectiva biográfica e psicológica, uma ficção enfim: "Uma procissão talvez em que se carregou o andor de N.S. da Conceição, à qual Anchieta correu a tomar parte, e na qual se comoveu profundamente, concebendo então o propósito de consagrar por voto a Maria sua virgindade na vida religiosa"24 . A representação verossímil da sua "individualidade" mobiliza significados que tentam apagá-la, a partir da mesma perspectiva "psicologizante". A "Lamentação ... ", no sentido pessoal de que é investido, teria como motivo, segundo Armando Cardoso, a sua "tardança em executar o voto de virgindade perpétua". É interessante observar que a leitura do poema estabelece arbitrariamente sentidos próprios e figurados, desde que resguardem a "pessoa" de Anchieta. É assim que a virgindade perdida deixa de ser tomada em sentido literal, para adquirir um sentido "poético", traduzido pelo crítico jesuíta como:
ANCHIETA, op. cit., p. 135.
23
24
In: ANCHIETA, op.
cit., p. 252.
Um poema, duas invenções
25
Ibidem. (Grifos nossos)
223
A Lamentação, no sentido pessoal, teria então como objeto sua tardança em executar propósito, infidelidade que apareceria a seus olhos como uma monstruosidade, ou de que de fato o teria arrastado a graves perigos e levado à beira do abismo, em que todavia não caiu por um milagre da intercessão . 25 de Mana. Túmulo tautológico, o poema seria, na concepção de Armando Cardoso, um exemplo de uma vida exemplar. Sua interpretação busca principalmente duplicar, ratificar o texto de virtudes que é a vida de Anchieta, adivinhando e preenchendo com virtudes absolutamente generalizáveis, um sentido que já foi preestabelecido, ou seja, o da sua santidade:
26
27
CARDOSO, p. 27.
Idem, Ibidem, p. 21.
Mas não foi só para si que Anchieta escreveu seu poema. Sua alma de apóstolo não consentia essa espécie de egoísmo espiritual. Em tudo o que compunha pensava também, e muito, nos outros e em todos os outros, pois seu amor, quando mais se fazia espiritual, mais universal e intenso se tornava. Assim, quando mais lugubremente se expande a lira penitenciai desse rapaz, que teve a intuição da beleza da castidade, descobrimos facilmente que não são os pecados próprios que ele chora, mas depreendemos que seus sentimentos são ecos compassivos da corrupção em que ia caindo a juventude universitária no seu tempo, atraída pelo canto das sereias renascentista. É mais no sentido parenético 26 que os explora no poema. Esse trecho, particularmente, reproduz de forma bastante verossímil o seu voto de castidade. Entretanto, considerando o novo sentido que lhe será atribuído, de exemplo de humanismo cristão, Armando Cardoso vê no episódio as conseqüências dos "perigos morais por que passara em Coimbra num ambiente que a Renascença corrompia, quando contrafeito ouvia de seus mestres o comentário da Heróides de Ovídio". O trecho "encaixado" no poema à Virgem significa, para Armando Cardoso, a visibilidade que "assinala a vitória do estudante contra o ambiente deletério do humanismo bordelense da universidade, de cujas ciladas escapou o casto jovenzinho de além-mar, ao ouvir a voz de Maria que o livrou de perigos e o colocou no caminho seguro da pureza"27. Essa interpretação, tem como objetivo garantir verossimilhança ao "valor de uso" que o padre Armando Cardoso construiu para o poema à Virgem, quando valoriza noções como "originalidade",
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"humanismo" e "talento artístico". Valores alheios à produção jesuítica do século XVI, inventados para se adequar a uma valorização do poema, construída a partir de sua filiação "clássica" e humanista. Esse novo sentido do poema é, para falar como Louis Marin, a "visibilité" do discurso inventado pelos historiadores do século XIX, que atribuíam aos jesuítas a responsabilidade pela "civilização" na Colônia. Para eles, o conteúdo do poema nunca teve qualquer "significado", uma vez que não era escrito em português, não se referia à natureza e não "documentava", como as cartas e outros textos, a "fundação da nacionalidade". Por isso, valoriza-se a imagem do poeta escrevendo na areia, não um poema em louvor à Virgem, mas a Escrita fundadora da história dessa Nação civilizadamente católica. Foi o historiador da Companhia de Jesus, Serafim Leite - cujo principal objetivo, no que se refere a Anchieta, era, como dizia, despojar a sua figura de toda e qualquer idealização - quem primeiro outorgou ao poema o caráter de obra fundadora da literatura no Brasil, ao afirmar que o De beata dei Matre Maria "é o primeiro grande poema literário escrito no Brasil"28. Estaria acrescentando, dessa forma, mais um campo sobre o qual repousaria a participação dos jesuítas na fundação do Brasil: o campo da literatura, que se aliará aos valores já consagrados da ética/moral, da política e da educação, todos guiados pelo desejo de servir à Igreja e ao reino português. Para isso, empenha-se o historiador em salvaguardar as suas afirmações validando-as pelas minúcias dos manuscritos e documentos; empenhando-se em exaurir "todas as possibilidades do arquivo histórico"29, em desfazer os equívocos e os exageros inventados pelos "historiadores piedosos" do século XVI, movidos que estavam pela "devota parcialidade". Em 1940, quando desloca o poema da posição de apêndice das obras de Simão de Vasconcelos e o elege à condição de "monumento nacional", Armando Cardoso endossa o ponto de vista corrente na história do Brasil. Assim, considerando o país religiosamente dividido entre corpo e alma, o corpo, a parte menos nobre, teria a sua matéria elaborada pela "ocupação político-militar-econômica portuguesa", a porção "leiga" e a alma, "que humaniza, enobrece e eleva" foi "doada por Deus por intermédio da Igreja católica"30. Dessa forma, julgavam os jesuítas que lhes cabia, com as suas letras, o papel de instrumentos desse nascimento sagrado. Graças sobretudo, a efeitos de sentido responsáveis pela elaboração de uma história do Brasil que, embora substancializada pelo veio religioso, se "disfarçou" com o manto da historiografia positivista, garantindo a credibilidade necessária à historicidade. Como conseqüência, observa Baêta Neves, os historiadores sempre confundiram a história da Companhia de Jesus no Brasil- ao invés de parte da história da religião - , com a história do Brasil.
LEITE, op. p. 533, V.2.
28
cit.,
29 NEVES, Luiz Felipe Baêta. "Continuidade, totalidade, periodizações, cortes. Sobre a historiografia da religião no Brasil-Colônia". In Vieira e a imaginação social jesuítica. Rio de Janeiro: Topbooks, 199. p. 45.
30
NEVES, op. cit., p.46.
Um poema, duas invenções
225
Nesse sentido, o poema à Virgem adquire, para a Companhia de Jesus e, por extensão, para o quadro da Literatura brasileira, o estatuto de síntese do humanismo católico. Por isso, os jesuítas passaram a salientar e valorizar no poema a sua filiação latina, buscada em cada verso, em cada dístico. Os textos de Virgílio e Ovídio, salientam sempre os historiadores jesuítas, foram a fonte de onde Anchieta foi buscar o seu modelo poético. Contudo, embora essa interpretação não seja de todo falsa, pois é possível identificar passagens de Ovídio, de Virgílio e de outros clássicos no poema, ela torna-se anacrônica na medida em que não estabelece as circunstâncias dessas citações, elaboradas no século XVI, nas hostes da Companhia de Jesus. Omite-se que o "humanismo" jesuíta era de segunda mão. Primeiramente, seria legítimo informar o fato de que, como afirma João Adolfo Hansen, embora se continuasse "a considerar a auctoritas das obras retórico-poéticas antigas," elas passaram a ser "reinterpretadas pela teologia" . A retórica se tornou, para a teologia, "um instrumento de adequações ortodoxas". Entre elas estão as adaptações, os expurgos, até mesmo a substituição integral de trechos de Virgílio e Ovídio ou citações de Sêneca e Tácito, como podemos observar no Ratio studiorium. Tomemos como exemplo os trechos dos poetas indicados aos alunos, para o primeiro semestre do curso do que chamavam de "leitura", nas "Regras do professor da classe superior de gramática" do Ratio studiorum, ou Método pedagógico dos jesuítas:
31
FRANCA, p. 204.
Dos poetas, no primeiros semestre algumas elegias ou Epístolas de Ovídio, escolhidas e expurgadas; no segundo, trechos, também escolhidos e expurgados, de Catulo, Tibulo, Propércio e das Éclogas de Virgílio, ou ainda, do mesmo Virgílio, os livros mais fáceis como o 4° da Geórgicas, o 5° e o r da Eneida; dos autores gregos, S. João Crisóstomo, 3/ Esopo, Agapetos e outros semelhantes. Além disso, nem Serafim Leite, nem qualquer outro jesuíta que ressalte a formação "clássica" dos padres, informa que esse "convívio" com a latinidade se fazia, muitas vezes, de segunda mão, através de compêndios, principalmente a Arte retórica - três livros extraídos sobretudo de Aristóteles, Cícero e Quintiliano, (1562) de Cipriano Soares, modelo de um método de estudo difuso e fragmentado, que consistia em utilizar os autores clássicos, não ipis verbis, como afirma um seu estudioso, mas através de apropriações santamente expurgadas. Sabe-se também que na Companhia de Jesus, desde 1564 - incluindo o Brasil-, os padres tinham licença do Cardeal Infante e do Inquisidor
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Geral "para emendar os livros e todo o mais que é defesso no catálogo do sagrado concílio Tridentino e no nosso, sendo em cousas da dita Companhia somente, e do que assim se emendar se poderá usar"32. No século XVI, a noção de arte compreendia um despojamento de valores estéticos, psicológicos e subjetivos fundados que estavam na idéia soberana de imitação. À fantasia obediente só restava a perfeita imitação do estilo dos clássicos: para os jesuítas, de preferência Cícero, nos discursos, e Horácio na poética. Um bom exemplo dessa "banalização" da poesia greco-latina e do uso, digamos assim, pouco "nobre" - da perspectiva da originalidade e subjetividade românticas - pode ser observado no Método pedagógico dos jesuítas, na formulação dos exercícios dos alunos de retórica:
(... ) imitar um trecho de algum orador ou poeta; fazer uma descrição, por exemplo, de um jardim, de uma igreja, de uma tempestade ou co usa assim; variar a mesma frase de diferentes modos; traduzir um trecho de prosa grega em latim, ou vice-versa; exprimir em prosa latina ou grega os versos de um poeta; passar uma forma poética para outra; compor epigramas, inscrições, epitáfios; re spigar frases gregas ou latinas de bons oradores e poetas; adaptar certos assuntos ou figuras de retórica; tirar dos tópicos e lugares retóricos vários argumentos para um determinado assunto; ou fazer outros trabalhos deste gênero. 33 Entre os exercícios dos jesuítas se incluía também "recompor poesias que tenham sido desarticuladas", parafrasear os poemas em prosa, além de compor trabalhos coletivos, "contribuindo cada qual com a sua sentença sobre um assunto proposto"34. O engenho do jesuíta era treinado com o objetivo de uma "formação perfeita para eloquência", arte que "abraça as duas mais altas faculdades, a oratória e a poética", visando atender "não só ao que é útil senão também à beleza da expressão". Sendo assim, "Instruir e deleitar" eram, aliás, os critérios de "validade estética" (se é que podemos falar assim), considerados em qualquer texto, seja em verso ou prosa. A opinião de Baltazar Teles, na sua Crônica da Companhia de Jesus em Portugal, sobre o poema à Virgem, de 1647, ilustra com propriedade quais os valores levados em consideração quando se apreciava um texto e qual o verdadeiro significado do poema para a sua época:
Bem se vê nestes dísticos a facilidade, a elegância, a piedade, clareza, suavidade e generosidade do estilo deste sublime cisne, que juntamente teve engenho para cantar versos, e
LEITE, op. p. 544, V.2.
32
cil.,
FRANCA, op. cil., p. 194.
33
FRANCA, op. cil., p. 228.
34
Um poema, duas invenções
35 TELES apud CARDOSO, p. 44.
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teve devoção para os santificar. E ainda que esta sua poesia parece fácil e mui ordinária, e posto que se persuada alguém que logo a fará melhor: Contudo nem por isso deixa de ser muito excelente, antes fica tendo a propriedade de um legítimo poema, o qual, conforme a doutrina que nos ensinou o menestrel dela (Horácio), há de ser tal que quem lhe ler os versos espere fazê-lo tão bons, mas no cabo há de 35 suar muito e trabalhar de balde. Por outras palavras, afirma Baltasar Teles que Anchieta soube cumprir a doutrina que ensinava o aluno a não descuidar da "elegância e imitação dos clássicos". Na sua opinião, o poema vale, principalmente, porque o engenho é colocado a serviço da devoção, objetivo último de qualquer texto jesuíta. No ano seguinte à morte de Anchieta, Quirício Caxa já salientava a perícia dele em colocar sua memória e engenho a serviço da Palavra:
CAXA, Quirício. Breve relação da vida e morte do padre José de Anchieta. São Paulo: Loyola, 1988. p. 27. 36
Da Escritura Sagrada teve muita notícia, e a trazia freqüentemente em suas pregações e mui a propósito por ter felicíssima memória. Aconteceu-lhe, desejando reduzir a um que se tinha saído da companhia, por ter muito boas partes para ela, escrever-lhe uma carta toda de autoridades da Sagrada Escritura, sem misturar palavra sua, mas tão travadas e encadeadas e tão a propósito umas doutras, e tão acomodadas ao que pretendia, que não parecia senão carta feita de próprios conceitos. Esta mesma notícia da Escritura e uso dela se via bem na vida que fez de Na. sa em 36 ' versos eI egzacos. Como se observa pelos seus comentários, a vida que fez da Virgem vale pela habilidade que demonstra no uso da Sagrada Escritura. No entanto, o maior elogio de Caxa é feito às habilidades oratórias, fim último de todo o saber dos jesuítas. Insistindo na "validade estética" do poema, Serafim Leite e Armando Cardoso, anacronicamente, desprezam esse e outros dados fundamentais, como o treinamento da memória, por exemplo, método que foi severamente criticado pelos humanistas. Dessa forma, todo o empenho dos jesuítas se faz no sentido de construir significados que contribuam para a "demolição" do que acreditaram ser o "caráter fantasioso do poema", que o desacreditava no âmbito da "literatura brasileira": aquele sentido lendário que celebrava o feito de o poeta tê-lo escrito, nas areias de Iperuí, e memorizado todos os seus quase cinco mil versos, transpondo-os posteriormente para o papel.
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Na opinião desses historiadores, o fato histórico necessitava de um "documento" que o comprovasse e atestasse a sua veracidade. Sendo assim, Serafim Leite, cioso da verdade documental, justifica o episódio e a sua "verdade histórica", lembrando que na famosa carta em que trata do "exfiio" Anchieta refere-se ao fato de ter deixado em Iperui "os li vros com algumas coisinhas na caixa, como penhor da minha tornada", instrumentos que desmentiriam a lenda, autorizando uma escrita "verdadeira" do poema. Dessa forma, "aparando" os "exageros", Serafim Leite torna inquestionável a sua autoria, além de garantir ao texto a prerrogativa de "primeiro grande poema literário escrito no Brasil". Outro dado que importa na leitura "moderna" do poema, inaugurada por Serafim Leite e Armando Cardoso, diz respeito às fontes teológicas do poema e ao uso do latim. Tratemos primeiro das "fontes". Para afastá-lo da pecha de "poesia de caráter popular", os jesuítas, além dos autores clássicos já citados, ressaltam o uso de textos da Bíblia e dos pais da Patrística. Também aqui, observamos que a informação é dada na perspectiva de uma melhor adequação à imagem de poesia "universal". Armando Cardoso afirma que, para compor os "traços biográficos" de Maria, Anchieta teria percorrido os Evangelhos e a Tradição. Essa fonte, chamada Tradição, "chegou até Anchieta de três modos, ao que parece: o Breviário e o Missal, a Vita Christi, de Ludolfo da Saxônia, e leituras diretas de Santos Padres"37. Hélio Viotti, por sua vez, para demonstrar os "dotes de artista [de Anchieta] e a capacidade para ombrear com os representantes da literatura universal", faz questão de citar o primeiro canto do poema, no qual se trata a "Conceição de Maria", assinalando a paráfrase que o texto faz do Livro dos Provérbios (VII, 22-30), passagem aproveitada pela Igreja nos textos litúrgicos da festa da Imaculada Conceição"38. Nenhum dos jesuítas, no entanto, menciona como fonte o livro mais lido do século XVI, inclusive por Inácio de Loyola, A legenda dourada de Jacques de Voragine. Originalmente, o poema Da bem-aventurada Virgem Maria, mãe de Deus foi concebido no gênero vida, sendo nomeado pelos seus contemporâneos como Vida da Senhora. Essa é uma primeira razão para que se possa sugerir uma aproximação como livro mais importante sobre vida de santos. Além disso, há no poema estrofes que parafraseiam A legenda dourada. Citemos um exemplo, entre vários. Refere-se o livro dos santos ao pitoresco encontro de Maria com Isabel, após a anunciação do anjo, quando ela "se rendit sur la montagne, aupres d'Elisabeth; et comme elle la saluait, l'enfant saint Jean bondit de joie dans le ventre de sa mere"39. O encontro é assim concebido pelo autor do poema, que mantém a idéia original:
37 In: ANCHIETA, op. cit., p.57.
38 VIOTTI, Hélio. Anchieta, o apóstolo do Brasil. São Paulo: Loyola, 1966. p.l08.
39
VORAGINE, p. 195.
Um poema, duas invenções
40
ANCHIETA, op. cit.,
229
Pressurosa no lar entras de Zacarias, e saúdas a anciã ao som de melodias. O pequenino escuta e mil júbilos sente, enquanto tua voz retine meigamente. Ouve e salta João: inda que o seio o encove, exulta de alegria e seus membrinhos move. De joelhos adora o seu Deus que o visita, . d eI e, d espe a sua no' d ' 40 e, a, vIsta oa aVIta.
p.29.
Como tudo o que se refere a Anchieta, que não cabe no papel consagrado de humanista cristão, Armando Cardoso prefere atribuir o texto à piedade e ingenuidade medieval, entendida aqui como tradição oral e popular. É interessante observar a compreensão que Serafim Leite tem do uso da língua latina no poema. A despeito de sua condição de historiador religioso, o jesuíta não o compreende da perspectiva de ser o latim uma das línguas autorizadas para a manifestação da Palavra: a língua revestida desde os primeiros tempos da Substância, aquela que, como o grego e o hebraico, figuram a representação do Um, e pela qual Ele fala. Omite-se, pois, a universalidade do latim como instrumento da universalidade da Igreja católica. É o que se verifica, por exemplo, na observação que faz sobre o estudo do latim, no século XVI, cujo sentido vai de encontro à perspectiva substancialista da língua:
LEITE, op. cit., p. 73, V.l.
41
Ao estudo 'do latim, juntou-se no Renascimento, o da língua grega, igualmente clássica. O latim, [sic} guardou, porém, evidente predomínio. Nele estavam escritas ou traduzidas todas as grandes obras da antigüidade e nele se escreviam ainda todos os documentos científicos do tempo. Os pedagogos do século XVI davam importância decisiva ao estudo do latim, e defendiam-no por todas as vias possíveis. Herman conta os casos de Melancton, que proscrevia a língua alemã dos programas do Saxe; e a reforma da Universidade de Paris eliminava o francês. Por toda a parte, o latim. O legislador da Universidade de Estraburgo, J. Sturm, mandava punir quem usasse outra língua que' não · 41 fiosse a Iatma. Inaugurada por Serafim Leite, essa interpretação se dissemina entre os historiadores laicos, que passam a valorizar o latim da mesma perspectiva que os jesuítas, como podemos observar pelas palavras de Eduardo Vilhena, em nota introdutória ao poema, que arrola, entre todos os motivos pelos quais se faz necessário o estudo do poema: "o caráter
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de universalidade do idioma em que foi escrito - o latim, língua morta chamada, ao invés de imortal, será o poema da Virgem, em nossa terra, como os versos de Horácio em todo o mundo, um monumento mais duradouro que o bronze. Vindo de muitos séculos, chegou até nós sem acidente"42.
ANCHIETA, op. cit., p. 8.
42
2. Inventa-se um poema Esses aspectos ressaltam o valor não piedoso do poema que, para melhor se adequar às novas funções com que fora consagrado, ganha nas mãos do padre Armando Cardoso origem plausível, novo formato - transforma-se quase em outro poema - , novos títulos e divisões e suas filiações clássicas e teológicas são diligentemente esquadrinhadas. Enfim, no dizer do próprio Armando Cardoso a edição que hoje se tem do poema - edição utilizada neste trabalho - "retoma as partes da de 1940, refundindo-as por vezes completamente e fazendo delas quase uma obra nova"43. A partir dessa perspectiva "histórica", a primeira matéria a ser estabelecida é a que trata da "autoria" do poema: é o momento de ratificá-la. Nesse caso, Armando Cardoso irá se valer do mesmo argumento utilizado por Pero Rodrigues, em 1601, quando atribui a Anchieta a autoria do poema, a partir da "epístola dedicatória" que consta no fim: "Eis, ó mãe toda santa, o que outrora eu em verso/ te prometi com voto, entre o gentio adverso.!/ ( ... )teu favor me acolheu com afeto tão caro/ que alma e corpo guardou, sem culpa, teu amparo". Armando Cardoso se vale também do fato de Pero Rodrigues ser contemporâneo de Anchieta para afirmar que, por isso, teria tomado em suas mãos o texto autógrafo, "original anchietano", como ele o chama. Armando Cardoso não dá relevância ao fato de que a falta do autógrafo - sugerido pela citação da dedicatória que comprovaria tratar-se do poema referido por Anchieta - já revela que esse dado não se fazia necessário naquele tempo. Tanto que, naquela época, nos colégios da Companhia, as composições "poéticas" se faziam como exercícios em que eram testados os conhecimentos de retórica dos alunos; muitas dessas composições foram feitas coletivamente, não havendo, portanto, a idéia de autoria, tão valorizada atualmente. Por isso, o antiquíssimo manuscrito, "providencialmente", encontrado em Algorta, em 1934, de posse da família de Anchieta é efusivamente celebrado como o texto autógrafo na edição que Armando Cardoso faz em 1940, época em que se afirma a autenticidade do
ANCHIETA, op. cit., p.72.
43
Um poema, duas invenções
231
poema. Mesmo que algum tempo depois o jesuíta viesse a desmentir as suas hipóteses, a suposta autenticidade atribuída a Anchieta já fora sacramentada. Assim, estabelecida a autoria do poema todo o "rigor histórico" do padre Armando Cardoso será o de tentar justificar as imprecisões com relação ao número de versos, o desacerto no que se refere às variadas transcrições - sempre tomadas como "erro" dos copistas -, a falta de algumas passagens no manuscrito de Algorta, entre elas aquela dedicatória registrada desde Pero Rodrigues, como sendo a "prova" que atestava a elaboração do poema por Anchieta:
In: ANCHIETA, op. eit., p. 39.
44
Que a dedicatória não se encontre no manuscrito de Algorta (MA) não invalida o que dissemos, pois é certo que ela é autêntica, porque se achava no autógrafo anchietano, donde a transcreveu Pero Rodrigues na Vido do Apóstolo do Brasil, poucos anos depois da morte de seu biografado. Vem na cópia do pe. Luís de Anchieta, transcrita de um manuscrito de 1625, ou anterior, que ele chama supositiciamente autógrafo. Encontrava-se noutras transcrições antigas, de que tiraram as duas primeiras edições impressas de 44 Vasconcelos.
Como esse, todos os argumentos de Armando Cardoso foram fundados numa perspectiva anacrônica, cuja preocupação central é a de atestar uma suposta edição autógrafa, da qual os contemporâneos de Anchieta e Simão de Vasconcelos - que imprimiu o texto na "íntegra" pela primeira vez - teriam tomado conhecimento. Essa tendência do padre Armando Cardoso, de querer esgotar "todas as possibilidades do arquivo", ajuda a perceber que esse poema se revestiu, ao longo dos anos, de várias passagens, textos e "autores" que imprimiram, através da sua leitura e das inúmeras interpretações várias significações ao que hoje se conhece como o poema da Virgem Maria. O "túmulo tautológico", sobre o qual repousam as leituras anacrônicas que buscam respostas plausíveis e até "científicas" para a sua elaboração, é aquele que desconhece que nos séculos XVI e XVII o que tornava um texto religioso valioso e significativo era o fato de ele carregar em si um conteúdo sagrado, que fora anunciado antes mesmo de sua redação. É o que revelam as palavras do padre Pero Leitão, discípulo de Anchieta, que as deu por escrito a Quirício Caxa, quando da elaboração da vida do jesuíta, após a sua morte, em 1598. Depoimento Quramento) repetido a Fernão Cardim, bem como no processo de 1619, instaurado na Bahia para beatificação do jesuíta, que vai a seguir transcrito:
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o
dito Pe. José narrou à testemunha [Pe. Pero Leitão] que uma vez os mencionados índios [Tamoios] se preparavam com seus costumados ritos e cerimônias para o matarem e comerem. Então lhe disseram que se preparasse e se fartasse de ver o sol, porque em tal dia o haviam de matar. Então o dito Padre lhes respondeu que eles não o matariam, porque não tinha chegado ainda a sua hora. Neste passo perguntoulhe a testemunha ao dito Pe. José: "Com que certeza respondia assim?" E o sobredito Pe. José lhe disse: "Com a certeza da Mãe de Deus, que não queria deixasse ele este mundo, sem antes lhe ter escrito a vida", a qual ele aliás já tinha composto de cabera e retido só de memória, e em verso, passeando pela praia. 5
4S
apud
CARDOSO,
p. 41.
o testemunho do padre Pero Leitão garante aos da Companhia a "prova" de que houve um poema à Virgem e que deve ser atribuído a Anchieta. Considerando-se as preceptivas retóricas e teológicas da época, pode-se afirmar que o padre Leitão valoriza menos a habilidade da memória do que o exílio em si, prodígio que constitui um dos sinais da vontade divina, que necessitava ser decifrado. Anchieta, antes de ser escolhido por Nóbrega para ir se meter entre os Tamoios, foi eleito por Deus, que manifesta essa eleição através da escrita do poema. É por isso que essa escrita não pode ser "normal": ela precisa ser acompanhada dos inúmeros sinais reveladores dessa Presença, que vão desde o fato de ter escapado ileso às ameaças dos Tamoio à avezinha que, segundo Simão de Vasconcelos, o teria acompanhado no momento em que escrevia os versos nas areias da praia, tornando-se signo da presença da Virgem, "era o dom de confirmação da [sua] pureza" (p.97). A memória, nesse caso, não é algo que possa ser lido, na atualidade, como digno de louvor ou de chacota, muito menos diz respeito, como julgam muitos, a um prodígio. A memória, para os da Companhia de Jesus, se configurava enquanto uma das exigências institucionais para "ajuda das almas". As Constituições da Companhia de Jesus exigiam do candidato à Companhia que entre as faculdades da inteligência e da vontade fosse incluída a memória como "a capacidade de aprender e fidelidade para reter o que se aprende"46. Aliás, entre os próprios jesuítas tem-se o caso de Matteo Ricci, que dizia ter percorrido casualmente uma relação de quatrocentos a quinhentos ideogramas chineses, chegando a repeti-los, segundo depoimento de amigos, em ordem inversa. A mesma técnica foi utilizada para memorizar livros inteiros dos clássicos chineses. Tal façanha, contudo, nem era digna de espanto, pois sabe-se do famoso florentino Francesco Panigarola
LOYOLA, op. cit., p. 81.
46
Um poema, duas invenções
47
SPENCE,
p.2?
Op.
cit.,
233
que era "capaz de passear por entre cem mil imagens mnemônicas, cada uma delas no seu espaço próprio delimitado"47. Considerando-se pois a elaboração de um texto como o Poema da bem-aventurada Maria, cuja natureza obedece a uma seqüência rígida de imagens a serem colocadas em seus "lugares" - a série cronológica de episódios que compõem a sua vida, entre os quais a sua concepção, o seu nascimento, a apresentação no templo, a sua vida no templo, a anunciação, o nascimento de Jesus etc. - , da qual independe a quantidade de versos a serem "passados para o papel". Há uma "sintaxe" retórica e teológica a ser obedecida, que supõe para cada passagem evocada o que Inácio de Loyola chamou, nos Exercícios espirituais, de "composição do lugar", "adaptação" à prática religiosa dos simulacros prescritos pela Retórica. A memória artificial se compõe de imagens e lugares, cujo método, capaz de construir verdadeiros "palácios da memória", pode ser entrevisto no exemplo a seguir, retirado de Cipriano Soares - compilado, conforme já se assinalou, de Quintiliano e Cícero - retor oficial da Companhia de Jesus:
o artifício da memória transmitido pelos antigos consta de lugares e imagens. Assim aqueles que exercitam esta parte do talento, primeiro devem fixar no espírito muitos lugares espaçosos, marcados com muita variedade, ilustres, desdobrados em pequenos espaços, quase como divisões de grandes edifícios ou dum outro edifício. Estes espaços devem ser diligentemente fixados no espírito, para que, sem dúvidas e demora, o pensamento possa por ordem percorrer todas as suas partes. Mais que firme, deve ser uma memória que ajude uma outra memória. Depois aquilo que tiver sido escrito ou compreendido pelo pensamento, deve associar-se por ordem a estes lugares, por sinais que marcados incitem a sua memória. Assim, acontece que as coisas são guardadas por ordem. Por exemplo, se houver de se falar da navegação, de assuntos militares e da agricultura a imagem pode ser uma âncora de navegação, uma espada ou um dardo militar, a espiga da agricultura ou algo semelhante. Estas imagens devem ser confiadas, por ordem, aos lugares acima mencionados. Depois, quando a memória tiver que ser usada, começarás do princípio a passar em revista os lugares e exigirás o que tiveres associado a cada um. Com efeito, uma imagem de alguma idéia, avisará como são muitas, ainda que numerosas,
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de que é necessário lembrar-se; as idéias estejam ligadas uma a uma como um coro. Assim acontece que a ordem dos lugares conservará a ordem das idéias e as imagens assinalam as próprias idéias. Devem usar-se porém imagens eficazes, marcadas com conceitos significativos, que possam ocorrer velozmente e emocionar o espírito. Os lugares que tiveres tomado convirá marcá-los dum modo distinto e apropriado, para que possam ficar fixos para sempre. As imagens devem mudar-se freqüentemente segundo a 48 variedade dos assuntos, mas os lugares devem permanecer.
É a partir da prescrição dessas regras que Pero Rodrigues articula, pela primeira vez, a relação entre o poema e a virgindade preservada, atualizando na sua escrita o elogio da virtude como "um dos maiores bens do espírito" que se manifesta pela "ciência ou pela ação", tópico prescrito pela Arte retórica, do jesuíta Cipriano Soares. Nesse caso, a manifestação da virtude pela ciência, ou pela sabedoria, vê-se demonstrada pela composição do poema. A virtude, ordenava o manual de retórica, também se manifestava na ação, cujo louvor se faz através de exemplos, que demonstrem a "moderação dos prazeres, e domínio sobre as paixões do espírito"49. Nesse sentido, o tempo do "cativeiro" é importantíssimo na medida em que confere verossimilhança à tópica retórica, uma vez que se trata de um episódio proficuamente "registrado" através da escrita e disseminado por vários testemunhos, entre os quais, acredita Pero Rodrigues do próprio Anchieta - que neles atualiza os preceitos da "bondade" e da "moderação", previstos na retórica, quando, sem se vangloriar vale-se de uma maneira indireta de contar o que teria ocorrido. Algumas vezes, Anchieta teria ilustrado, com esse exemplo, a luta empreendida contra as tentações a que esteve submetido entre os Tamoios, bem como a eleição que a Virgem lhe confere. A primeira, como foi visto, na "dedicatória" do poema; a outra motivada pelas queixas de um padre que era "perseguido de importunos e feios pensamentos" e por isso pediu ao jesuíta que "o encomendasse a Deus": não peçais a Deus que vos tire a guerra, porque disso tem ele cuidado, e sabe o que há de fazer de vós, e em que ocasiões nos há-de manter. Mas pedi-lhe que vos ajude, porque esta petição lhe é mui agradável, e ainda nesta vida dá o prêmio. E acrescentou mais falando de si (como se deixa ver) [infere Pero Rodrigues]: "como aconteceu, ao que no meio de assaz
48 SOARES, Cipriano. Arte retórica - três livros extraídos sobretudo de Aristóteles, Cícero e Quintiliano. (1562). Introd. e Notas de BENEDITO, Silvério Augusto. Dissertação de Mestrado em Literatura Latina da Faculdade de Letras da Universidade Católica de Lisboa, 1995. (Mimeografada). p. 142-3.
49
Idem., ibidem, p. 32.
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'0 RODRIGUES, op. cit., p. 78.
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forçosa e contínua ocasião, com ajuda do Filho e da Mãe, não somente não caiu, mas antes foi certificado de ambos, que nunca mais semelhantes ocasiões lhe seriam causa de 50 caída." E bem se vê que fala deste tempo de seu cativeiro. A resposta que, segundo Pera Rodrigues, Anchieta teria dado ao discípulo, bem como a maneira de o biógrafo interpretá-la, representa com fidelidade a crença da época na prefiguração da história e numa concepção da Palavra como texto alegórico, que esconde sentidos ocultos, como se a fala do bem-aventurado constituísse, como as Escrituras, outro texto sagrado. Esse é pois o sentido do terceiro testemunho com relação à obra, aquele, já citado anteriormente, no qual Anchieta acreditava que não morreria sem primeiro escrever a vida da Virgem que ele houvera composto, enquanto passeava pela praia. Todos esses testemunhos são "sinais" evidentes de que os versos elegíacos feitos em honra da Mãe de Deus foram ditados por Ele. No século XX, a necessidade de estabelecer para o poema uma identidade forjada principalmente na paternidade da obra, leva Armando Cardoso a se valer de outros "indícios" - revelados fundamentalmente pelo "eu" do poema fonte da qual emana toda a significação do texto - , que garantam a Anchieta a sua autoria, como é o caso de reconhecer ser o seu autor
" Ibidem.
um religioso da Companhia de Jesus (vv. 905-9) unido a Deus pelos três votos de pobreza, castidade e obediência (vv.31636), que mesmo antes de entrar na vida religiosa fizera voto de castidade (vv. 629-32), que se achou nesse exílio dos índios em gravíssimos perigos de corpo e alma(vv. 381728), que nutrira sempre uma indomável ânsia de martírio(vv. 4709-14, 5699_703).5/ Um a um, esses "sinais" que apontam para Anchieta como autor do poema são totalmente generalizáveis a qualquer um dos jesuítas que esteve no Brasil no século XVI, e os assuntos - exílio entre índios, a manutenção da castidade e o desejo de martírio - se constituem lugares-comuns das cartas que escreveram. É justamente uma carta e o que ela não afirma o que leva Armando Cardoso a sugerir que exista uma "fonte" capaz de legitimar e confirmar essa autoria. Trata-se da famosa Carta escrita ao Geral Diogo Lainez, em 1565, em que conta o ocorrido em Iperui. O jesuíta entende que o fato de Anchieta não mencionar o poema na carta é, entre outros aspectos, fruto de um "pudor natural", bem como de sua "profunda humildade", prevendo para as
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cartas um "espontaneísmo" que as tornaria isentas de qualquer regra ou "intenção" que não fosse a de edificar, tomando a sua escrita como uma reprodução fiel da realidade, confundindo pois, a humildade retórica, prevista em vários manuais, com a humildade pessoal de Anchieta. João Adolfo Hansen identifica, nas cartas de Nóbrega, o que pode ser generalizado à correspondência desses padres de uma maneira geral,
(... ) o estilo duplamente ordenado da sublimitas in humilitate produz o contraste contínuo das ações isoladas e o drama universal da Redenção, em que a toda ação humana se absorve, numa prefiguração profética da realização do reino de Deus no mundo e de sua atualização nas terras do Brasil. Nelas, toda enunciação se faz como semelhança diferida do seu Destinador essencial, o que de imediato implica a não existência de "psicologia", como "expressão". Uma vez que, em cada segmento do discurso, o "eu" ocupa um lugar prefixado como participação figurada retoricamente, segundo a oposição finito/infinito, define-se na similitude • • 52 que o fundamenta como um tIpO humIlde. Assim, a interpretação do padre Armando Cardoso reivindica para o poema uma individualidade e uma "psicologia" inconcebíveis numa composição poética do século XVI português, elaborada no seio da Companhia de Jesus. Pergunto, como João Adolfo Hansen, como pode haver manifestação de um "eu" "num tempo em que a história é teológica e providencialista", tempo em que "a pessoa é definida como emanação de Deus, em que a desigualdade é natural e a liberdade se define como subordinação ao rei e ao papa?" Como supor uma individualidade no interior de uma ordem que da mesma forma que prescrevia modelos de comportamentos para disciplinar as "afeições desordenadas", determinava regras de composição, incluindo um elenco de imagens permitidas, limitando a maioria delas às extraídas dos textos sagrados e dos livros de hagiografia.
HANSEN, João Adolfo. o nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega - 1549 1558. Revista do IEB, São Paulo, n038, p. 87119, 1995. p. 94.
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Um poema, duas invenções
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Cânone e liberdade
Susana Scramim Universidade Federal de Santa Catarina
o
problema do cânone desdobra-se em outros: problemas de mercado, problemas culturais, problemas institucionais. Este texto irá tratar da relação que se estabelece entre a perspectiva cultural na revisão da tradição literária e os imperativos da instituição, especialmente da instituição universitária com os críticos literários que dela fazem parte. A discussão sobre o cânone diz respeito à recepção da arte, no entanto, ela atua também na conformação de certas tradições nacionais. No momento em que esse debate é desencadeado dentro da instituição universitária ocorre uma tomada de posição, por parte dos pesquisadores, cujo movimento caracteriza-se por uma oscilação entre a ousadia e o temor. Dessa forma, o debate acerca do valor dentro da instituição poderia ser melhor compreendido se a reflexão utilizasse as categorias do medo, ou melhor, medo do cânone, medo de perder o direito de errar, bem como com as do medo e do desejo de abandonar o projeto moderno. Uma postura libertária frente ao cânone pôde ser observada com mais freqüência depois das vanguardas do início do século XX, uma vez que se institui a lógica da ruptura. Esse direito à liberdade, esse direito de romper e instituir práticas individuais de leitura e criação artística, já foi reivindicado por Mário de Andrade, em 1921, no Prefácio Interessantíssimo: "Minhas reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso. Sei embridá-las nas minhas verdades filosóficas e religiosas; porque verdades filosóficas, religiosas, não são convencionais como a Arte, são verdades. Tanto não abuso! Não pretendo obrigar ninguém a seguir-me.
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Costumo andar sozinho."l A ênfase recai no uso da liberdade e não no seu abuso. A liberdade, em se tratando de arte, não estaria, desse modo, relacionada ao exercício de alguma política sociallibertária nem mesmo a uma ontologia da liberdade. A liberdade a que se refere o Prefácio ainda não está relacionada a liberdades civis. Refere-se, no entanto, ao direito de usar com liberdade a palavra, de exercer-se numa poética livre. E pergunto-me, livre de quê? De que Mário quer se ver livre, e até que ponto ele realmente quer estar livre? A resposta encontra-se nos pressupostos que fizeram com que Mário de Andrade escrevesse o Prefácio: quer estar livre para discorrer sobre questões relativas a um regime estético, e em primeiríssima mão, pois o texto possui tom de manifesto, e de fato foi um dos manifestos pioneiros do Modernismo brasileiro. Para tanto, lista um grande número de intelectuais e artistas de todos os tempos, desde a antiguidade (Homero, Virgílio) até o século XX (Cocteau, Epstein, Anita Malfati, Marinetti, entre tantos outros). O autor do Prefácio Interessantíssimo, ao selecionar um passado que se assemelha e se diferencia dele, evoca um cânone que é um substitutivo do cânone parnasiano, cria uma nova lista de referências, uma dívida para com o passado e uma promessa de futuro. No entanto, o efeito que o Prefácio de paulicéia desvairada gera no âmbito literário poderia ser definido como um movimento dispersivo no sentido de que não deseja nem uma revisão do passado e tampouco a formação de um conjunto unificado de idéias e autores com a finalidade específica de criar uma escola. A dívida e a promessa permanecem efetivamente enquanto dívida e promessa. Mário de Andrade não deseja criar uma escola de autores, porém não abdicará de seu pendão de educador e disseminador dos valores do humanismo para a formação de novas gerações de artistas e intelectuais. No Prefácio de Paulicéia Desvairada ele se nega a .exercer-se como mentor ou guru: "Não pretendo obrigar ninguém a seguir-me. Costumo andar sozinho( ... ) Você está reparando de que maneira costumo andar sozinho ( ... ) E não quero discípulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade dum SÓ"2. Sendo assim, por que o Prefácio? Mesmo declarando a inutilidade de seu texto, já nas primeiras linhas, "Este prefácio, apesar de interessante, inútil"3, por que escrevê-lo? Isso nos remete a uma questão bastante pertinente para a discussão das relações entre o valor e a instituição universitária. Que tipo de interesse o cânone pode despertar hoje nos estudos que a universidade desenvolve sobre a literatura, ou que tipo de interesse ele pode despertar na própria produção literária contemporânea, sendo que a própria postulação de um cânone já é uma atitude antimoderna?
1 ANDRADE, Mário. Prefácio Interessantíssimo, em Paulicéia desvairada. Poesias completas IMário de Andrade; edição crítica de Diléia Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993, p. 67.
2
Idem, p.67, 73 e 77.
3
Idem, p. 59.
Cânone e liberdade
4
Idem, p.60.
5
Idem, p.67.
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o paradoxo não é somente nosso. Mário de Andrade, professando credo modernista no Prefácio, ou seja, mesmo professando uma postura antidogmática, ainda assim elege e postula um cânone. Contudo, o critério para fundar o valor estava pautado em uma leitura individual, familiar, do passado. Digo leitura familiar do passado, porque o autor do Prefácio diz que "não se pode libertar (grifo meu) de uma só vez das teorias-avós que bebeu"4. A tradição é compreendida como uma família dentre tantas outras famílias que compõem o universo da cultura. Valer-se das noções de família ou de clã como possibilidade de avaliar a arte, em 1921, não deixa de ser uma outra paradoxal postura antimoderna no coração da própria modernidade. Isso poderia ser compreendido como um sintoma de medo ou de desejo de abandonar o projeto moderno; ou, ainda, do medo e do desejo de abandoná-lo. Esta segunda opção não implicaria abandonar o projeto moderno, mas abanálo, no sentido que lhe confere Nietzsche ao falar da necessidade de "abanar a verdade". O paradoxal que emerge dessa questão resulta de que a literatura está envolvida em temas que estão para lá da arte, como os temas da verdade e da dúvida. A liberdade reivindicada por Mário de Andrade embrida-se nas suas verdades filosóficas e religiosas, e afirma: "porque verdades filosóficas, religiosas, não são convencionais como a Arte, são verdades"s. Entretanto, se nos enredamos com o termo liberdade, consequentemente, estamos enredados ao termo dogma. O paradoxo surge justamente nessa lacuna que se cria entre liberdade e dogma, entre verdade e dúvida, entre contigente e eterno. Isso talvez seja tributário do fato de que Mário de Andrade também desempenhou o papel de educador. A postura paradoxal está longe de ser entendida como atitude conservadora. Trata-se de interrogar se deveríamos ensinar algo da categoria da dúvida ou da verdade. Ou talvez trate-se de uma outra interrogação: a de como escapar a essa alternativa? A que Mário de Andrade responde com a lição de que devemos usar a liberdade não para destruir o dogma, mas para abaná-lo, para que outras vozes possam ser liberadas. É antes de tudo uma atitude de quem possui responsabilidades teóricas e sociais frente à literatura. Veja que Mário de Andrade não faz a imposição de uma lista de favoritos, não impõe um cânone à maneira de um neoc1assicismo parnasiano, mas põe em prática uma política familiar de leitura da tradição, bem como reivindica liberdade de poder criar mais tradição. Um outro educador, este, por sua vez, um desconstrutor e não um disseminador dos valores do humanismo, mas que, nem por isso, deixou de exercer seu papel na formação de filósofos para uma nova filosofia, também elaborou uma reflexão sobre o passado. Estou me referindo a Nietzsche. (Parece que os educadores e os formadores de
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opinião possuem em comum uma preocupação constante com o passado, com a herança de sua época.) Em Crepúsculo dos ídolos, obra escrita em 1888, que possui o subtítulo "Como filosofar com o martelo", o filósofo nega o cânone grego, o cânone neoclássico da filosofia das últimas décadas do século XIX. No entanto, isso não quer dizer que o passado não interessava. Num dos fragmentos deste mesmo livro, "O que devo aos antigos", Nietzsche revela que tinha uma dívida para com o passado, porém a um certo passado. Diz que devia muito mais às leituras de bons franceses como Fontanelle do que à "dialética assustadoramente autocomplacente e infantil de Platão"6; que tinha apreendido muito mais com os romanos e com Maquiavel do que com a decadente filosofia grega. Todavia, há um valor nessa cultura que faz com que Nietzsche estude a tragédia grega. Esse valor Nietzsche o encontra na vontade de vida produzida pela cultura helênica. Dessa maneira, o valor não se apresentaria, não estaria dado a priori. Nietzsche o elabora partindo de uma análise cultural. "( ... ) as cidades se trucidavam entre si, para que os cidadãos de cada uma delas encontrassem tranqüilidade diante de si mesmos. Tinha-se necessidade de ser forte: o perigo estava perto, espreitava por toda parte. A esplêndida flexibilidade corporal, o temerário realismo e imoralismo, que é próprio dos helenos eram uma necessidade, não uma natureza"7. Nessa essa análise, Nietzsche afirma que os filósofos alemães, inclusive Goethe, fundamentados na leitura de Platão, compreenderam maIos gregos. Com o texto "O que devo aos antigos" Nietzsche revê as verdades do passado grego para acrescentar-lhes novas leituras; ele propõe-se a rever uma tradição, reavaliar um cânone, atribuir um novo valor para elementos já consolidados de uma cultura, e isto não seria o que caracteriza uma formação? No entanto, se há no texto de Nietzsche algum apelo à formação, com certeza, não é o mesmo apelo contido na tradição da Bildung, pensada por Herder como essência nacional, pelo próprio Goethe como unidade literária e cultural, e por Wilhelm von Humboldt como essência lingüística. Se há algum resquício formador no filósofo Nietzsche, esse não é o da Bildung, da alma nacional unívoca e romântica. A formação com a qual Nietzsche está preocupado é justamente a formação para o exercício da plena liberdade. E o que é a liberdade para Nietzsche? "Ter vontade de responsabilidade própria.( ... ) O tipo mais forte de homens livres teria de ser procurado ali onde constantemente é superada a mais alta resistência: a cinco passos da tirania, rente ao limiar do perigo da servidão. (... ) entendo a palavra liberdade: como algo que se tem e não se tem, que se quer, e se conquista ... "g E disto se segue toda a hostilidade de Nietzsche para com tudo o que é
NIETZSCHE. Friedrich. O que devo aos antigos. In: Crepúsculo dos ídolos, tradução Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 2000. p. 113.
7
Idem, p. 114.
NIETZSCHE, Friedrich. Meu conceito de liberdade. In: Crepúsculo dos ídolos. Op. cit., p. 96.
Cânone e liberdade
Andrade, Mário. Prefácio Interessantíssimo. In: Poesias Completas. Op. cit., p. 77.
9
10 NIETZSCHE, Friedrich. Liberdade que me és cara. In: Crepúsculo dos ídolos. Op. cit., p. 99.
11 SOUZA, Eneida Maria. "Nostalgias do cânone", em Babel: re-
vista de poesia, tradução e crítica, Santos, n° 3, setembro-dezembro, 2000. p. 92.
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conciliável e compatível, contra a falsa solda do contemporâneo em sua extemporaneidade. É sintomática a proximidade entre as concepções de liberdade dos dois autores que esta reflexão sobre o cânone recorta. Volto às últimas frases do Prefácio de Mário de Andrade: "Poderia ter citado Gorch Fock. Evita o Prefácio Interessantíssimo. 'Toda canção de liberdade vem do cárcere"'9. No entanto, a estabilização tipicamente moderna da reivindicação por instituições liberais, ou por critérios liberais nas instituições não permite que o paradoxo se dissolva. O próprio Nietzsche irá definir o "moderno como a autocontradição fisiológica" ( ... ) "o moderno conceito de liberdade é uma prova a mais de degeneração dos instintos"lO. Entretanto a instituição busca saídas para esse impasse: ou atua com base na fé de que poderá simplesmente represar esse movimento, e assim permanece no nível da fé, ou obstrui esse movimento para acumular a própria degeneração, tornado-a mais súbita. Optando pela segunda alternativa, valeria a pena ousar uma conclusão: em arte, ou em literatura, um autor deve saber a hora de morrer, a hora de parar, antes que o movimento degenerativo se perca numa continuidade banal. Voltemos a Mário de Andrade, voltemos especificamente ao ponto em que encontramos nesse escritor um pendão formativo, ou seja, o pendão de uma continuidade estabilizadora. A missiva de Mário de Andrade foi utilizada inúmeras vezes para o exercício do seu papel de formador de novas gerações. Eneida Maria de Souza, em texto sobre o cânone, escrito para revista Babel n. 3, lembrava que as orientações e conselhos veiculados nas cartas "seguiam à risca o projeto moderno, a ponto de o escritor censurar a produção daqueles que não rezavam a mesma cartilha ( ... ) o cânone se legitima, torna-se moeda corrente da troca literária, meio eficaz para os futuros leitores identificarem autores, criarem linhagens ( ... )"11. No Prefácio Interessantíssimo Mário de Andrade reivindica a liberdade de exercer-se mais como criador de uma outra tradição do que como transmissor da mesma. Já em outro texto, esse de 1941, "A elegia de abril", exerce com plenitude o papel de escritor transmissor, aquele que deve introduzir as novas gerações num tipo de economia da tradição moderna. Escreve esse texto motivado por um convite muito especial. Antonio Candido, Decio de Almeida Prado e Alfredo Mesquita, jovens intelectuais da época, lhe pedem um texto-balanço, uma espécie de inventário, cujo valor poderia ser oferecido como penhor para a revista Clima, que aparecia com seu primeiro número, em abril de 1941. O texto-balanço que Mário de Andrade escreve possui um outro valor diferente daquele que o Prefácio possuía. Há aqui uma substituição do valor de uso, que tem a ver com a estrutura material do objeto, por um valor de troca, que não se define a
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partir dos objetos, mas a partir de seu intercâmbio. No entanto, é o próprio Nietzsche que acrescenta algo mais a esta máxima de Marx: O valor de uma coisa não está às vezes naquilo que se alcança com ela, mas naquilo que por ela se paga - no que ela nos custa"l2. A modernidade de Mário de Andrade irá custar-lhe a modificação do valor da sua escritura: de uso para o de troca. Sua reivindicação à liberdade de criar uma outra tradição resulta em ser conseqüentemente um transmissor dessa mesma tradição. No texto-balanço, declara, entre outras coisas, que as poucas vezes em que fora chamado a servir publicamente só o preparo das coletividades em mais alto nivelamento o preocupou. Sendo assim, o rompimento com os dogmas, a reivindicação por um sistema de criação liberal, implica a existência de uma força degenerativa, porque os instintos se contradizem, se atrapalham e se destroem uns aos outros e, finalmente, se estabilizam. A luta pela liberdade em arte, e isso vale para a política também, é um sintoma de decadência. Contudo, há outras variantes, outros movimentos. Vejam que para descrever o movimento do cânone na perspectiva desses dois escritores preocupados com o problema da formação na cultura, Mário de Andrade e Nietzsche, foram discutidos alguns termos como os de liberdade, institucionalização, passado, leitura. Se quisermos ensaiar um outro movimento para analisar o fenômeno do cânone na contemporaneidade, teríamos que levar em consideração que os próprios termos com os quais se definem os contornos de um cânone possuem diferentes valores de uso e de troca em momentos históricos específicos. O valor que a idéia de liberdade de criação tinha para Mário de Andrade poderia ser definido como um valor de uso, no entanto, gastou-se, e hoje não há mais a necessidade de artistas e escritores reivindicarem algum tipo de liberdade de criação. Em Nietzsche a idéia de espírito livre já pode ser um pouco mais complexa, há nele uma denúncia, cujo valor ainda não se esgotou, dos falsos espíritos livres, chamados de diluidores do gosto democrático e das idéias modernas. Segundo o filósofo de Para além do bem e do mal, os espíritos livres "são, justamente, não-livres e ridiculamente superficiais, sobretudo com sua propensão fundamental a ver nas formas da velha sociedade que existiu até agora mais ou menos a causa de toda a miséria e fracasso dos homens: com que a verdade vem ficar de ponta cabeça!"l3. Sendo assim, como refletir acerca do cânone e seus delineadores: o valor, o passado, a instituição e a liberdade no presente? Como pensar o valor do passado, a liberdade, a instituição depois de Nietzsche, depois de Mário de Andrade? Há um ponto que une as reflexões acerca do valor em torno de um mesmo eixo, quer seja, o cânone e seu problema
12 NIETZSCHE, Friedrich. Meu conceito de liberdade. In: Crepúsculo dos ídolos. op. cit.. p 94.
13 NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal, tradução Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras. § 44.
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despertam interesse nas pessoas envolvidas em projetos educacionais, nos formadores de opinião; motivam professores, críticos literários, editores e escritores engajados nessa missão. Mas as diferenças históricas não anulam as semelhanças de postura desses formadores de opinião. Se ontem estabelecer o cânone fortalecia a instituição formadora, corroborava uma certa tradição e punha a nu todo o processo de decadência que o promovia, hoje, estabelecer cânones continua alicerçando as instituições formadoras, ratifica tradições, edifica ainda mais o mercado editorial, e como não poderia deixar de ser, continua trazendo à tona o processo de degeneração que o promove. A novidade é que as instituições com seus agentes, sejam eles professores, críticos ou editores, podem flexionar o cânone no plural e a noção de vazio e degeneração torna-se mais palatável e menos indigesta. Nesse sentido, podemos formular: o problema do cânone tornou-se, no século XX, algo exterior a si mesmo, ou seja, o valor de um texto não está mais no seu valor de uso. Diz respeito a políticas, diz respeito a economias, porque esse valor é marcado pela possibilidade de intercâmbio. Com isso quero dizer que a postura política da literatura na "alta modernidade", ou seja, como instituição ocidental e moderna que reivindicou e, conseqüentemente, adquiriu a liberdade de tudo dizer e de não explicitar nada, tornando-se inseparável da promessa de uma "democracia vindoura", permitiu a degeneração, no sentido que lhe confere Nietzsche, do próprio conceito do que fosse literatura. E é justamente esse direito teoricamente assegurado que gerou o problema do cânone, porque antes o cânone não era um problema, era uma solução para a implantação e fortalecimento das instituições. No momento em que a literatura reivindica a possibilidade de negar a si mesma, a discussão em torno do valor literário estendeu-se até mesmo para o questionamento do que venha a ser literatura, especialmente se considerarmos o ataque ao caráter essencialista da instituição literária feito pela crítica cultural nas últimas décadas. Algumas das últimas reuniões da Associação Brasileira de Literatura Comparada, composta na sua grande maioria de professores, têm sido dedicadas a discutir e a problematizar aquilo que já desde o alto modernismo é um grande problema: como lidar com as liberdades políticas conquistadas pela literatura? Desde 1996, no Rio de Janeiro, no 5° Congresso da Abralic até a mais recente reunião da associação, em agosto de 2001, em Belo Horizonte, cujo debate acerca do valor passou pelos campos da arte, do mercado e da política, as discussões têm revelado o grau da preocupação com o assunto. Na reunião de 1996, propunha-se como grande tema de discussão "a desconstrução dos cânones literários tradicionais e a necessidade de revisão e
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contextualização de todo e qualquer instrumento de reflexão críticoteórica" 14 • Numa das mesas semiplenárias a professora e crítica literária Leyla Perrone-Moisés discorreu acerca do papel da crítica frente ao cânone. O texto soa como o balanço de uma época. Tempo esse em que os estudos culturais conquistaram um certo relevo no âmbito da disciplina literatura. Investida de uma dupla função formadora, a de professora e a de crítica literária, afirma que "a principal discussão teórica da atualidade se trava em torno do cânone"15 , e fundamenta essa sua afirmação no levantamento da produção teórica das últimas décadas e no levantamento dos temas dos últimos congressos literários. No entanto, como vimos acima, na análise da postura dos dois educadores frente ao cânone, essa questão não é exclusiva das últimas décadas do século XX, é um problema da modernidade que assola a instituição desde há muito com sucessivos desmoronamentos. O impasse detectado por Leyla Perrone-Moisés entre "estudos culturais" x "altas literaturas" é mais sintoma desses momentos de perda contra os quais nada podemos: a decadência é um processo inerente ao moderno. É impossível recriar, conforme gostaria a professores Leyla Perrone, um "forte conceito de literatura tal como houve durante os dois últimos séculos e como ainda havia na alta Modernídade"16. Não é mais possível pensar um sujeito cognitivo universal como um valor a ser retomado do alto modernismo, quer seja, aquele que sabe distinguir entre o bem e o mal, se a própria produção literária desse mesmo alto modernismo tratou de desconstruir essa noção de sujeito. Nessa mesma reunião da associação, o professor Luiz Costa Lima afirmava que "a crise do comparatismo poderia ser resolvida pelos próprios professores/pesquisadores" 17. A afirmação do professor carrega consigo o paradoxo do qual falava Nietzsche, ou seja, de que forma esses pesquisadores contribuiriam para resolver a crise do comparatismo, que é uma crise da literatura, segundo Luiz Costa Lima, se eles mesmos investem, por meio de seu trabalho, no estabelecimento do valor literário, da literatura como área privilegiada para a formação do sujeito crítico, e, em conseqüência disso, no estabelecimento da literatura como disciplina a ser ensinada? A seu modo, diante do quadro da crise gerada pela exteriorização do valor na literatura, ou seja, pela transferência do valor de uso para o de troca, Luiz Costa Lima, com argumentos diferentes, mas imbuído de um mesmo objetivo que Leyla Perrone-Moisés, aponta como saída para a crise uma retomada das rédeas da situação pelos professores que, como quer Luiz Costa Lima, "precisam quebrar o jejum de pensar"18. Com isso, estamos de volta ao começo, retomando preocupações e soluções que mantiveram o impasse: no paradoxo da modernidade.
14 COUTINHO, Eduardo. Sessão de abertura, em 5° Congresso da ABRALlC. Cânones & contextos; Anais - Rio de Janeiro: ABRALIC,1997, p. 16.
IS PERRONE-MOISÉS, Leyla. "A crítica literária hoje", em 5° Congresso da ABRALlC. Cânones & contextos; Anais. Op. cit., p. 87.
16
Idem, p. 88.
17 LIMA, Luiz Costa. "O comparatismo hoje", em 5° Congresso da ABRALlC. Cânones & contextos; Anais. Op. cit., p. 83.
18
Idem.
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19 MORICONI, Ítalo. "Qualquer coisa fora do tempo e do espaço (poesia, literatura, pedagogia da barbárie)", Leituras do Ciclo, org. Ana Luiza Andrade, Maria Lúcia B. Camargo, Raúl Antelo. Florianópolis: ABRALIC, 1999, p. 83.
20
Idem.
21
Idem.
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Continuaram incomodados professores e críticos - afinal, essa deve ser a postura dos pesquisadores - e as reuniões das associações continuaram a falar do impasse. Voltou-se a ele no Colóquio Internacional "Declínio da arte/ ascensão da cultura", em março de 1997, promovido pelo Núcleo de Estudos Literários e Culturais, da Universidade Federal de Santa Catarina, bem como foi tema, em 1998, da VI reunião da Abralic. No entanto, nessas últimas reuniões que enumerei, não havia mais resquícios de intenções restauradoras. O estabelecimento do tema do encontro partia de uma avaliação das abordagens horizontais, quer dizer, de texto a texto, como práticas ultrapassadas, e aceitava, como tendência, a opção pelos estudos culturais e suas abordagens verticais que vinculam o local e o global, porque entendia que era preciso questionar hierarquias e mediações, acumulações diferenciais de poder e prestígios, linguagens e valores. Nesse congresso, Ítalo Moriconi, também professor e crítico literário apresentou uma reflexão que inseria o problema do valor e do cânone literário no âmbito da escola e da formação das novas gerações de professores. É muito interessante o perfil que ele traça da tendência retroativa dentro das universidades. Para a pergunta que geralmente a aposta no literário como reação se faz, quer seja: "O que fazer para deter o avanço da barbárie no próprio coração das instituições encarregadas de manter e reproduzir o seu opostO?"19, Ítalo Moriconi expõe algumas das várias respostas/propostas dos próprios defensores da reação literária, entre elas está: "A defesa de um ensino favorável ao desenvolvimento de alto grau de alfabetização, no sentido, operacional, não no sentido quantitativo ou sociológico"20. E a este conservadorismo cultural observado no contexto universitário brasileiro que aposta numa alfabetização modernista ou "hiper-estética", Ítalo Moriconi sobrepõe um outro método de alfabetização: o que objetive como produto final um leitor que possua ainda qualidades como a sutileza para julgar e optar pela adesão ou não ao jogo de referências do alto modernismo, para analisar os novos tipos de dificuldades textuais, como por exemplo: "questões do hipertexto, da poliglossia, dos bilingüismos e multilingüismos, e de todo o universo de novos relacionamentos entre oralidade e escritura instituídos pela mídia das infovias"21. Veja que a proposta de Ítalo Moriconi ainda se situa na esfera da alfabetização em massa, do julgamento de valor, ou de valores, ou seja, no espaço de professores e críticos em meio a processos de estabilização. E será difícil abdicar disso, basta pensarmos que Ítalo Moriconi é autor de duas recentes e polêmicas antologias, Os cem melhores contos do século XX (2000) e Os cem melhores poemas do século XX (2001). Ítalo Moriconi escolheu 200 entre tantos outros autores da literatura brasileira. No entanto, nos
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seus prefácios às antologias, ele se assume como tal, como autor das escolhas, e que escolheu entre o que era e o que, segundo ele, não era representativo do conto e da poesia brasileira do século XX e, usando a mesma expressão que o próprio Moriconi se valeu para caraterizar a postura de Leyla Perrone-Moisés 22 , isso é algo tão high modernist. E a questão nietzscheana novamente se coloca: como dizer adeus ao moderno, como se despedir de um tempo que se caracteriza pela sensação de perda e constatação da escassez? Essa condição provoca a necessidade da criação de alternativas. E a busca por estas alternativas influencia as políticas acadêmicas de produção crítica e de ensino da literatura, influencia igualmente políticas editoriais, corporativas etc. Tais políticas operam atualizações e reautalizações no contexto literário. O que eqüivale a dizer que elas apresentam outras formulações para o que deverá ou não ser considerado como valor, no entanto, ainda são formulações de cânones. Resta pensar se essas políticas formuladoras de cânones são necessárias, resta pensar se o cânone não é dispensável enquanto idéia. Como exemplo disso, retomo um dos textos que motivaram minha reflexão: o Prefácio, de Pau/icéia Desvairada, o próprio Mário de Andrade duvida de sua necessidade: "Este prefácio, apesar de interessante, inútil"23. Apesar de toda a reflexão que operamos no que respeita à importância do cânone para a instituição formadora, bem como para a nossa ciência da apropriação que a indústria cultural faz dele, será que o cânone apesar de toda a importância que a ele delegamos, não seria inútil como aquele prefácio interessante? Foi motivada por essa sensação de despedida que a revista Babel, exercendo também o papel de formação que as revistas literárias assumem na modernidade, no seu terceiro número propôs ampliar a discussão sobre o valor na poesia. Convidou a se manifestarem alguns poucos professores, e deu preferência à manifestação de editores e de poetas. As questões propostas por Babel tinham o propósito de desdobrar outras. Como por exemplo: se o cânone é espaço político e todo o político é passível de ser desinstalado, ele não se sustentaria, seu fundamento seria frágil e não haveria como lhe garantir o direito universal de existência (para não esquecer a pretensão universalizante dos diversos cânones). Babel, na sua intenção em participar do espaço agônico da arena literária, enquanto luta contra a gania, isto é, resistência frente à origem, à descendência e à degeneração investiu na proposição de um campo heterogêneo e no qual políticas particulares possam ser apresentadas. Neste sentido, foram sugeridas algumas questões que não indicavam necessariamente a afirmação daquilo que elas questionavam, mas simplesmente iniciavam um feixe de possibilidades a ser retomado ou
Ítalo Moriconi usa o termo pedagogia high modernist para caracterizar a posição de Leyla Perrone-Moisés na defesa que a crítica faz do cânone alto-modernista fundamentada na possibilidade de formação de um indivíduo capaz de distinguir entre o que é esteticamente bom ou ruim. 22
23 ANDRADE, Mário. "Prefácio Interessantíssimo", em Poesias completas. Op. cit., p. 59.
Cãnone e liberdade
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não, ampliado ou limitado, pelos convidados a pensarem o cânone e o canônico. As questões propostas foram as seguintes: "Seria possível, hoje, falarmos em um cânone (nacional, internacional, ocidental...) em poesia - seria possível (re)estabelecer um cânone? Neste sentido, haveria alguma inclinação na poesia brasileira de hoje para as formas convencionais ou, por outro lado, para o gráfico-visual? Seria o cânone uma questão de gosto: cânone =recorte individual? Qual a relação entre cânone e mercado; cânone e mídia? Seria a pluralidade uma nova forma de sobredeterminação 'pasteurizante', isto é, seria o plural reacionário?" Foram convidados: Augusto Massi e Carlito Azevedo, editores das revistas Ficções e Inimigo Rumor; Ricardo Corona, Rodrigo Garcia Lopes e Ademir Assunção, editores da revista Medusa; Aleilton Fonseca, editor da revista Iararana; Manuel da Costa Pinto, editor da revista Cult; Sérgio Cohn, editor da revista Azougue; Anelito de Oliveira, editor do Suplemento Literário de Minas Gerais; Guido Bilharinho, editor da revista Dimensão; e Tarso de Melo, editor da revista Monturo; Jurema Barreto de Souza e Zhô Bertholini, editores de A Cigarra. E mais Cleber Teixeira, Flora Süssekind, Ítalo Moriconi, Maria Lucia de Barros Camargo, Raul Antelo, Eneida Maria de Souza, Luiz Costa Lima, Paulo Henriques Britto, entre outros. Por motivos diversos nem todos aceitaram o convite. E, de maneira geral, as respostas oscilaram entre a salvação incondicional e a abjuração pouco refletida do cânone moderno, o que dá no mesmo. Entretanto, um dos textos-resposta, o de Raul Antelo, justamente a voz de um professor e crítico literário, vem falar do poema pela via de um gesto, o gesto do adeus, não propriamente ao poema, mas à poesia e ao cânone como produtos da abstração e da metafísica. E o mesmo gesto que dá adeus ao cânone e à poesia saúda o poema-gesto, aquele que mudou sua relação com a Lei porque agora ele também poderá inventar uma nova dimensão universal- que se situa entre o abstrato e o concreto, entre a hierarquia e a autonomia - onde a ética e democracia possam estar presentes. Outra voz, a da professora e crítica literária Eneida Maria de Souza, acrescenta, sem ingenuidade, que o "critério comparativo serve para discernir preconceitos, mas é preciso levar em conta como se produzem os discursos de legitimação, quem os legisla e quais vozes atuam em of!'. Na mesma direção, o poeta Paulo Henriques de Britto desmistifica o cânone modemista na poesia brasileira destinando-lhe a função de acervo de recursos formais sem a intenção de nenhum resgate, desse modo, permitindo a perfomatividade do poema e da palavra poética. A razão da educação na modernidade trabalha no sentido de substituição de um sistema metafísico por outro, da substituição de um
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indivíduo cognitivo universal por outro, e, desse modo, expõe o processo de decadência próprio do moderno. No entanto, é preciso saber a hora de morrer, é preciso saber a hora de parar e recomeçar, estamos carentes dessa mudança. Toda época de crise é um tempo de escassez, de poupança, de comedimentos. Se não é possível mais avalizar o julgamento de valor depois da crítica política dos valores, se não é possível mais falar de um cânone a ser substituído, ensinado, portanto, reproduzido, nos resta apostar na fartura e na exuberância. Se quisermos um sistema de formação no qual o acesso ao saber não seja verticalizado, mas aconteça num espaço onde "os problemas são discutidos no interior de uma rede complexa de lideranças compostas por professores e pesquisadores que produzem conclusões epistemológicas e éticas as quais se internalizam como consciência histórica de processos de subjetivação grupal e individual"24, ou seja, se realmente quisermos "a pedagogia da barbárie", conforme lembrava-nos Ítalo Moriconi, em' 1999, devemos apostar não somente na nova instrumentalização das análises, ainda que ela seja necessária, mas, antes, na proliferação de textos, real promotora da abundância. Assim não teremos mais a necessidade de institucionalizar cânones famélicos que opõem o antigo ao novo, a boa poesia à ruim, o modernismo ao concretismo e à poesia marginal, cânones que nos dizem o que deve ser poupado, conservado como paradigma de uma época em declínio.
Moriconi, Ítalo. "Qualquer coisa fora do tempo e do espaço", em Leituras do ciclo. Op. cit., p. 85-86.
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