A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN-0103-6963) é uma publicação anual da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986.
DIRETORIA (Biênio 2002 - 2004) Presidente: Gilda Neves da Silva Bittencourt (UFRGS) Vice-Presidente: Rita Terezinha Schmidt (UFRGS) Primeira Secretária: Patrícia Lessa Flores da Cunha (UFRGS) Segunda Secretária: Léa Sílvia dos Santos Masina (UFRGS) Primeira Tesoureira: Lúcia Sá Rebello (UFRGS) Segundo Tesoureiro: Pedro Brum Santos (UFSM)
CONSELHO DA ABRALlC Audemaro Taranto Goulart (PUC-MG) Edson Rosa da Silva (UFRJ) Eneida Leal Cunha (UFBA) Evelina de Carvalho Sá Hoisel (UFBA) Maria Eunice Moreira (PUC-RS) Marília Rothier Cardoso (PUC-RJ) Reinaldo Martiniano Marques (UFMG) Sandra Margarida Nitrini (USP) Suplentes: Glaucia Vieira Machado (UFAL) e Sílvia Maria Azevedo (UNESP-Assis)
CONSELHO EDITORIAL Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Dirce Cortes Riedel, Eneida Maria de Souza, Haroldo de Campos, João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa B10ck de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Tania Franco Carvalhal, Yves Chevrel.
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Editoração Eletrônica: Luciane Delani Impressão e acabamento: Gráfica da UFRGS Tiragem: 800 exemplares
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
R349
Revista brasileira de literatura comparada. N.7 (2005) - Porto Alegre: Abralic, 2005 -v. Anual Descrição baseada em: 1\'.6 (2002) ISSN 0103-6963 1. Literatura comparada -Periódicos. I.Associação Brasileira de Literatura Comparada CDD 809.005 CDC 82.091 (05)
Bibliotecários responsáveis: Leonardo Ferreira Scaglioni CRB-IOIl635 Raquel da Rocha Schimitt CRB-l 011138
Apresentação
A Revista Brasileira de Literatura Comparada reúne, neste seu sétimo número, textos relacionadas à temática do IX Congresso Internacional da ABRALIC - Travessias -, realizado em Porto Alegre, em julho de 2004. Inspirado no imaginário de Guimarães Rosa, o tema Travessias se expande e ganha novos contornos, abrangendo uma reflexão ampla sobre os trânsitos da literatura em termos de sua produção, circulação, distribuição e recepção, em espaços desiguais e temporalidades descontínuas que assinalam o atual processo de globalização cultural. Os textos aqui selecionados, produzidos por pesquisadores importantes do comparatismo nacional e internacional, procuram responder a questões cruciais que se impõem, nesse cenário contemporâneo em que as fronteiras se diluem e o próprio estatuto da Literatura Comparada é colocado em xeque. Esta, sob o influxo das correntes teóricas contemporâneas vem gradativamente alargando o espectro de suas reflexões e de suas preocupações, de modo a dar conta da complexidade do literário, em seus contextos múltiplos e em suas tranformações sob condições historicas e culturalmente específicas. Daí porque hoje, a questão discursiva e, particularmente, o loeus de enunciação do sujeito constitui fator relevante para a produção do conhecimento, pois esse não pode mais prescindir de questões de pertencimento, geográfico e histórico, político e cultural, social, racial e sexual. A Revista Brasileira de Literatura Comparada tem atuado como veículo qualificado dessas discussões, uma vez que vem abrigando, em seus vários números, textos que abordam uma diversidade de linhas teóricas e de abordagens inovadoras sobre temas polêmicos e atuais, fornecendo, aos pesquisadores brasileiros e estrangeiros, rico material de pesquisa e propiciando, assim, avanços produtivos no campo de conhecimento do comparatismo literário. Esperamos que este sétimo número desempenhe essa mesma
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ção junto aos Associados da ABRALIC e estudiosos em geral da Literatura Comparada. Gilda Neves da Silva Bitteneourt Presidente da ABRALIC Gestão 2002-2004
Sumário
Caboclas, padroeiras, cravos e rosas. O espaço da história na telenovela brasileira Biagio D 'Angelo (Universidade Católica Sedes Sapientiae - Lima)
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A Literatura Comparada e a Weltanschauung Pós-Moderna Eduardo F Coutinho (UFRJ)
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Heterogeneity and Post-Modemity Ernesto Laclau (University of Essex - UK)
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Paradigmes Litteraires, Paradigmes Culturels et Changements Conceptuels: Pour Une Approche Fonctionnaliste de La Critique Culturelle et Litteraire Contemporaine Jean Bessiere (Université Paris lll-Sorbonne Nouvelle)
51
As veredas crípticas do Grande Sertão: Veredas Josenia Marisa Chisini (UFMS - Campo Grande)
63
Influxos Platinos no Discurso Crítico do Rio Grande do Sul: João Pinto da Silva Léa Masina (UFRGS)
81
Contradictorias aventuras y desventuras de la travesía Lisa Block de Behar (Umiversidad de la República - Montevideo)
91
Literatura Comparada e Tradução: releituras e recriações culturais Patrícia Lessa Flores da Cunha (UFRGS)
103
Alteridade planetária: a reinveção da literatura comparada Rita Terezinha Schmidt (UFRGS)
113
Literaturas latino-americana nas instituições e revistas acadêmicas anglo-americanas Rodolfo A. Franconi (Dartmouth College)
131
Literatura Comparada: diversidades, diferenças e fronteiras de identidades culturais Roland Walter (UFPE)
149
Encontros na Travessia Tania Franco Carvalhal (UFRGS)
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Exterioridadlinterioridad del conocimiento. "Sobre"/ "en" América Latina Zulma Palermo (Universidade Nacional de Salta - Argentina)
183
Narrativa de valores: os novos actantes de Weltliteratur Wladimir Krysinski (Universidade de Montreal - Canadá)
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Caboclas, padroeiras, cravos e rosas. O espaço da história na telenovela brasileira
Biagio D/Angelo Universidade Católica Sedes Sapientiae - Lima
"Abra suas asas Solte suas feras Caia na gandaia Entre nessa festa" (Frenéticas, Dancin' Days)
Ás seis horas da tarde tomaram-se para o telespectador brasileiro (e agora graças à televisão via cabo, não somente brasileiro) um momento de dupla hipnose televisiva: as novelas transmitidas após o assim chamado folheteen se ocupam de história para os que simplesmente apreciam (ou sentem falta de) as épocas pretéritas e para os que lamentam ignorar a história segundo uma preocupação quase infinita com a informação que o processo da globalização trouxe consigo. São novelas de costumes em que os atores que havíamos acompanhado antes no horário nobre com piercing, biquini ou bebidas alcoólicas assumem outro papel, outra imagem que, prodígio da ma qui agem, apresentam um rosto aparentemente novo e que os redime, às vezes, das maldades das personagens das oito. Depois de um período em que a divisão em novelas por gênero e horário havia sido simplificada com uma série de novelas urbanas, nem sempre bem sucedidas, nos últimos três anos se assiste a uma reconsideração da novela histórica: este aspecto, que no mundo midiático está fortemente
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relacionado ao gosto do público, revela curiosos modelos de comportamento, que abrem sempre mais as portas para uma reflexão mais cuidadosa das teorias culturais semi óticas e antropológicas da pós-modernidade. O interesse sobre a produção e a escritura (ou re-escritura, o famoso remake televisivo ou cinematográfico) de novelas históricas, numa época em que a história é fortemente criticada ou posta de lado, constitui um espaço de investigação sobre a cultura de massa e seu nexo paradigmático com a episteme pós-moderna. O regresso à história e a sua busca de significação é uma das principais preocupações da cultura contemporânea. Segundo a leitura de Fredric Jameson, trata-se sempre de uma "história com buracos" ("history with holes"), uma "história perfurada" ("perforated history"), I da qual o homem pede justificação e pode, através de sua valiosa entrada nos "buracos" históricos, indagar sobre aspectos tradicionalmente silenciados ou dissimulados, como a questão racial, os casos de prostituição e de sexo proibido em geral, o nascimento da nação, os povos ou minorias até então evitados. A atenção dada por Jameson à nostalgia para os filmes ("nostalgia film"), para os grandes relatos que demostraram seu fracasso e sua inconsistência frente à crueldade do real, se movem dentro do terreno notadamente latinoamericano do "realismo mágico": deixando de lado a pertinência do realismo mágico no contexto literário pós-colonial, assim como na escritura latino-americana do século XX, tem sido observado que "hallucinatory scenes and events, fantastic/phantasmagoric characters are used ... to indict recent political and cultural perversions",2 da mesma maneira não é equivocado aplicar o conceito de um marco histórico transformado em uma ótica do realismo que, mais que ao passado, pretende tomar contemporâneos os acontecimentos e, sublirninarmente, julgá-los. Lois Zamora e Wendy Faris propõem uma leitura da história que pode ser aplicada ao gênero da novela histórica televisiva:
History is inscribed, often in detail, but in such a way that actual events and existing situations are not always privileged and are certainly not limiting: historical narrative is no longer chronicle but clairvoyance. 3 Um procedimento similar se encontra nas novelas televisivas: a história existe e, além disso, funda um marco indiscutível de referências geopolíticas, mas ela não pode simplesmente "contar uma história" a um público instruído, pós-moderno, esperto, "desconfiado" (mesmo que socialmente diferenciado): a novela histórica indica novas leituras (às vezes paródicas)
1 Fredric Jameson, "On Magic Realism in Film", em Signatures of lhe Visible, New York, Routledge, 1990, p. 130.
, Cfr. Lois Parkinson Zamora Wendy B. Farias, "Introduction", em ZamoraFaris, eds. Magical Realism: TheOty, History, Community, Durham, Duke University Press, 1995, p. 6.
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Ibidem, p. 6.
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de sistemas do presente que se vêem refletidos em um passado que, em definitivo, não é muito passado. Um dos buracos históricos que necessitavam de maior destaque na consciência do povo (e não somente do brasileiro) era voltar a sensibilizar o espectador sobre o problema pós-colonial da escravidão. Homi Bhabha detectou essas novas perspectivas emergentes dessa cultura:
Homi K. Bhabha, "Postcolonial criticism", em Stephen Greenblatt-Giles Gunn, eds., Redrawing the Boundaries: The Transformation of English and American Literary Studies, New York, MLA, 1992, p. 437. O grifo é meu.
[TheyJ emerge from the colonial testimony of Third World countries and the discourses of minorities within the geopolítical divisions of east and west, north and south. They intervene in those ideological discourses of modernity that attempt to give a hegemonic normality to the uneven development and the diJJerential, often disadvantaged, histories of nations, races, communities, peoples. 4 No Brasil dos anos 70, sem dúvida, essa busca ideológica, e não de uma "normalidade hegemônica" de raças e comunidades, se deu "televisivamente", ou seja, massivamente a partir da adaptação de Gilberto Braga (sagaz estudioso de literatura francesa e dos mecanismos dos folhetins) do mediano romance romântico de Bernardo Guimarães, A Escrava Isaura. Essa novela, que estreou em 11 de outubro de 1976 na Globo, se transformou na produção brasileira de maior sucesso no exterior, protagonizada por uma excelente atriz estreante, Lucélia Santos, que personificou a escrava branca do título. A produção foi vendida para mais de 100 países. Numa entrevista ao "Programa do Jô" (Rede Globo, 2003), Lucélia declarou, entusiasmada, que "até os monges do Himalaia já me reconheceram. Ninguém esperava que a novela brasileira chegasse tão longe". A afirmação de Lucélia Santos é significativa. A novela brasileira fala agora com uma linguagem que explora - e talvez transgrida - os limites políticos, ideológicos, ontológicos das nações onde chega. O sucesso na Rússia e na China é indicativo, além disso, de um desejo de compreensão do problema da escravidão em países que, embora não tivessem escravos negros, viveram angustiados pela ausência de liberdade e pelo esquema violento da opressão. Não é fácil explicar esse êxito tão universal: à primeira vista, poderia considerar-se que a história da escrava branca, perseguida pelo mesquinho Leôncio, filho do Comendador Almeida, é uma linda e emocionante trama, bem narrada "televisivamente" (a novela de Bernardo Guimarães peca por excessivo romantismo, típico da época). Além disso, "Isaura", que suspende
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a guerra na Croácia por um breve período, que entusiasma os soviéticos e habitantes da ex DDR em tempos obscuros, que apaixona Fidel Castro e os cubanos, segundo notícias dignas de fé, funciona como a resposta à crise do metarrelato narrativo: no contexto de crise narrativa, que significa, na verdade, crise da "dialética do Espírito, da hermenêutica do significado, da emancipação do racional ou do sujeito atuante, ou a criação de bem-estar", "Isaura" se opõe à pós-modernidade dos intelectuais que manifestam uma declarada "incredulidade a respeito das metanarrativas".5 Noutras palavras, "Isaura" detecta a distância quase abismal entre o pensamento filosófico-intelectual e o complexo processo da cultura de massa que, através das formas semi óticas mais disparatadas (jazz, cine, telenovelas) se coloca em busca de um discurso de prazer cultural e catarse espiritual. Gilberto Braga dá a "Isaura" a dignidade da grande narrativa clássica mediante os recursos televisivos: por exemplo, na novela, Álvaro (Edwin Luisi) aparece somente a partir da metade da novela e, em sua adaptação, Braga inventa um novo personagem, Tobias (Roberto Pirilo), que é assassinado por Leôncio (Rubens de Falco) em um incêndio, no qual encontra a morte também a esposa de Leôncio, Malvina (Norma Blum), erroneamente confudida com a escrava branca. O folhetim se amplia, se dilata, porque esta é a lei da telenovela: seduz o espectador e o coloca no centro da eleição maniqueísta entre bem e mal. "Isaura", que se tem convertido na heroína de muitas gerações a que não faltam os clichés típicos da comédia larmoyante ou do melodrama, é uma novela épica e mítica ao mesmo tempo, e representa para dizer com palavras de Derrida ou de González Echevarría - "a novela fundadora do arquivo" das novelas. Gilberto Braga, inteligente e atento ao fenômeno de "Isaura", apela ao fato que o espectador precisa ver histórias, precisa voltar a se emocionar para que o cerebralismo ou a fria racionalidade não superem a sinceridade dos sentimentos e seu mesmo reconhecimento na vida cotidiana. Assim justifica Braga o êxito da novela histórica:
5 Jean-François Lyotard, The Postmodern Condition. A Report on Knowledge, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1984, pp. XXIII-XXIV.
Numa sociedade escravocrata e machista, as mulheres estão psicologicamente entre a casa e a senzala. Não é só a história de uma escrava em busca de sua liberdade. É a história de uma mulher, por acaso nascida escrava, que procura, auxiliada por outras mulheres, muitas vezes não escravas, encontrar na liberdade o direito da escolha. 6 Cfr. www.geocities.com/ A thens/O lympus/3 5 83/ isaura25anos.htm
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Esse tipo de linguagem que elaborava implicitamente discursos sobre a revanche das mulheres e a aberração, castigada em sua representação filmica, da escravidão e das torturas, foi reutilizado para a novela "Sinhá moça" (1986), de Benedito Ruy Barbosa, que será um dos mestres indiscutidos do gênero histórico na telenovela. "Sinhá moça" é uma adaptação de um romance da escritora e jornalista Maria Camila Dezonne Pacheco Fernandes. É curioso observar que a primeira edição é de 1950. Não se trata, portanto, de um romance da época histórica do abolicionismo e das vítimas da escravidão. A novela, assim como o romance, representou uma releitura da história nacional e da dignidade do patriotismo num período de ausência de valores nacionais próprios. A história parece um remake da "Escrava Isaura", mas com muita probabilidade, a intenção da autora do romance original era destacar uma figura de mulher, salvá-la do oleografismo romântico e apontar para uma fé nos valores da pátria e do amor puro. Sinhá Moça (interpretada pela paladina das heroínas da tevê, Lucélia Santos) e Rodolfo Fontes (um jovem Marcos Paulo) vivem uma história de amor proibida por ela ser a filha do Barão de Araruna (outro escravocrata machista interpretado por outro duplicado do Leôncio de "Isaura", Rubens de Falco) e ele, um apaixonado defensor das idéias abolicionistas. Mas o Barão de Araruna tem um filho com a escrava da fazenda, Maria das Dores (Dudu Moraes), que é um ex-escravo alforriado chamado Dimas, mas cujo nome verdadeiro é Rafao (Raymumdo de Souza). E daqui o folhetim tem os recursos usuais de sedução enganosa para o telespectador... "Sinhá moça" não teve o sucesso esperado: o espectador tinha na mente a dupla Santos-De Falco na versão Isaura-Leôncio, mas pelo menos, mediante a boa fatura do texto do Ruy Barbosa, lembrou para a consciência nacional que o Brasil é "o país mais grande do mUfldo" e que com certeza "Deus é brasileiro" ... Benedito Ruy Barbosa voltará aos grandes dramas históricos com duas novelas que marcaram época: "Pantanal" (1990) da extinta TV Manchete e "Terra Nostra" (1999), uma espécie de continuação da novela Os Imigrantes, exibida na TV Bandeirantes em 1981 e que tratava da imigração italiana, uma das paixões folhetinescas e históricas de Ruy Barbosa. A percepção da história que Benedito Ruy Barbosa propõe ao telespectador é muito clara: para descobrir o Brasil "nacional", é fundamental olhar no UfIiverso da mestiçagem. Além disso, a mistura de personagens, origens, clichês, costumes, falas é tudo o que identifica um povo; mas
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o risco é que, dessa forma, a cultura afro-brasileira, se "folcloriza", criando uma visão romântica e que, nem sempre, apesar da escolha ambivalente do passado histórico, tinha se debatido com situações políticas, históricas, culturais presentes. Essa imagem enganosa é a representação típica do cinema e da novela como ficção que apenas sai da realidade para se tomar imaginário do desejo de fabulação do homem. Muito apropriadamente falando de paradoxos nacionais e locais (que aqui aplicamos às novelas), Leyla Perrone-Moisés pôde declarar, com mordaz ironia, que "LatinAmerica identity is a mestizo identity.... Diversity is our richness!".7 Ruy Barbosa subscreveria essa afirmação: a trama de "Terra Nostra", exibida significativamente no horário nobre da Globo, em 2000, conta, no estilo da melhor saga familiar, as histórias e as aventuras da imigração italiana no Brasil no início do século XX e teve a ideal continuação com "Esperança" (2002). "Esperança" passou infelizmente à história da televisão brasileira como a novela da "barriga", dado que Benedito Ruy Barbosa teve que se licenciar da autoria da novela por problemas pessoais: foi necessária uma quantidade enorme de cenas de jlashbacks que enfatizaram uma história que já tinha começado com a idéia errônea de remake do amor de Mateo e Giuliana. Desde o ponto de vista histórico-nacional brasileiro, não há dúvida de que a faixa histórica procurada pelo autor é a mais interessante e proveitosa para explicar a identidade nacional e deixar no telespectador a curiosidade e o desejo de conhecer a própia origem como povo brasileiro. "Esperança" parte do desespero de 1931, quando o mundo vive as conseqüências da recessão econômica causada pela quebra da Bolsa de Nova York, em 1929. A crise de pobreza assustadora vivida nos Estados Unidos e na Europa teve reflexos sociopolíticos também no Brasil, onde os ricos barões e fazendeiros tiveram que enfrentar grandes problemas econômicos por causa da baixa demanda do "ouro verde", o café. A política de Getúlio Vargas, levado ao poder com a Revolução de 1930, terá como um de seus momentos mais dramáticos a deflagração da Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo. Benedito Ruy Barbosa, sempre declarando-se apaixonado por certos nós históricos do Brasil, dedicou atenção meticulosa às cenas de massa graças à direção poética de Luiz Fernando Carvalho e à pesquisa nos principais arquivos históricos do país. Os momentos marcantes da novela, quando, por exemplo, o protagonista, Toni (Reynaldo Gianecchini), participa ativamente no processo de formação do movimento operário, e a coragem e a busca de libertação da condição feminina, vivida na persona-
7 Leyla Perrone-Moisés, "Paradoxes of Literary Nationalism in Latin America", em Maria Elena de Valdés, Mario Valdés and Richard A. Young, eds., Latin America as Its Literature, Selected Papers of the XIVth Congress of the International Comparative Literature Association, ed. by Council on National Literatures World Report editors, 1995, p. 46.
Caboclas, padroeiras, cravos e rosas
R Cfr. Nestor García Canclini, Culturas híbridas. Estrategias para entrar y sa /ir de la modernidad, México, Grijalbo, 1989.
9 Maria Helena Rueda, "EI dilema de lo popular en las letras latinoamericanas", em Cuadernos de literatura, Número especial "Nuevos y peligrosos: Cultura, literatura y medios en América Latina", coordenado por Jeffrey Cedeno, Jaime García Salcedo, Maite Villoria Nolla, vol. VIII, número 15, Enero-Junio de 2002, Bogotá, ed. Pontifícia Universidad Javeriana, pp. 30-36 (32).
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gem de Nina (Maria Femanda Cândido) dá, sob o manto da ficção novelesca televisiva, a idéia da enorme importância da época e da imigração massiva dos anos 30 até 50. Benedito Ruy Barbosa, com um jeito dos grandes romances e crônicas históricas, coloca muitos estrangeiros, sobretudo italianos, portugueses, espanhóis, alemães, judeus, que fugindo do desemprego e da miséria em seus países chegaram ao Brasil em busca de melhor sorte, para fazer prosperar aqui seus sonhos e ideais. "Esperança" parece a paródia ficcional televisiva do acervo de diferenças e contribuições culturais que se podem encontrar no glorioso monumento nacional do Memorial do Imigrante, sem dúvida, um unicum na história da movimento migratório no mundo. Infelizmente, os problemas causados pelos baixos índices de audiência e o gosto do público das oito, que parece acabar vítima do marketing mundial da globalização, fizeram com que Benedito Ruy Barbosa se afastasse da novela e o rumo dela passasse para as mãos de Walcyr Carrasco, outro expert em novelas históricas, mas que mudou trajetórias, personalidades de personagens e alterou o modelo histórico do roteirista precedente até um desenvolvimento excessivo de cenas de sexo e de suspense que, se de um lado deram à novela um ritmo novo e tipicamente folhetinesco, de outro acabaram com a visão político-intelectual da compreensão do processo histórico crucial do país. Benedito Ruy Barbosa é, sem dúvida, muito consciente das implicações dos meios de comunicação massiva e se coloca perto da definição de "cultura híbrida" que propõe García Canclini ao assinalar que o processo de formação de um novo público (seja leitor ou espectador) se relaciona com uma série de fenômenos político-culturais, como o surgimento da classe média, o boom econômico e industrial, a ampliação das cidades (sempre mais "selvas de pedra"), as campanhas a favor da educação, a expansão de rádio e televisão. 8 Dessa forma, não mudou apenas a imagem do leitor (ou do telespectador), mas a criação literária e cultural, no específico continente latino-americano e no mundo:
Si antes los escritores se habían dirigidos a una élite cuyas expectativas culturales le eran familiares -porque ellos mismos habían contribuido a conformarias -, ahora se enfrentaban a un público que había estado excluido de esa cultura letrada anterior y comenzaban a buscar caminos para enlazar sus obras con la lradición cultural de aquellos sectores medios y populares que serían los nuevos destinatarios de las mismas. 9
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Aqui se pode entrever a importância capital do romance de Mario Vargas Losa, La tía Julia y o escribidor (1977), uma das melhores produções do autor peruano, que pode ser considerada como expressão paradigmática de uma mudança de interesses e mentalidades na assimilação de motivos próprios da cultura latino-americana e da busca de um novo tipo de linguagem que possa acolhê-los e refleti-los:
La fascinación que produce Pedro Camacho en el protagonista de la novela de Mario Vargas Llosa tiene que ver con su capacidad para encantar ai público masivo de sus radioteatros, su habilidad para descubrir sus expectativas y darles respuestas en historias noveladas. Esas masas que habían sido casi inexistentes para la literatura latinoamericana anterior, comenzaban a tener un valor fundamental para los nuevos autores, porque se vislumbraban como un conglomerado de lectores con capacidad para darle a la literatura el mercado que nunca antes había tenido. lO Feitas as devidas diferenças, não estamos longe da percepção que os autores de novela da Globo têm sobre o gênero: seria suficiente pensar em consagrados autores brasileiros, como Dias Gomes, que aproveitaram a criatividade e a difusão da novela para enaltecer um gênero destinado anteriormente a senhoritas choronas e sonhadoras, apaixonadas por homens ricos e melodramas mexicanos. A novela histórica parece regressar ao seu auge por uma necessidade de recolocar-se frente à história do país e do continente, principalmente, através do que María Cristina Pons define como ''uma releitura crítica e desmitificada do passado através da reescritura da história". I I É por isso que a telenovela, apresentando gente comum, anônimos no arquivos documentários da história, ou personagens fictícios representativos de certas classes sociais, culturais ou religiosas, altamente "ficcionalizáveis", propõe uma nova visão mais conflitiva e menos "sentimental" dos nós cruciais do tempo passado. Além disso, recentemente a genial intuição de Maria Adelaide Amaral ao mesclar personagens fictícios e personagens históricos como Yolanda Penteado, Mário de Andrade e Santos Dumont, na minissérie "Um só coração", extraordinariamente ambientada, demonstra uma vez mais o objetivo primordial de "autenticar" a ficção para representar a hibridação de raças, o contato com o estrangeiro e as revoluções culturais.
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Ibidem, p. 32.
J J María Cristina Pons, Memorias do Olvido: Del Paso, García Márquez, Saer y la nueva novela histórica de fines dei sigla xr, México, Siglo XXI, 1996, p. 95.
Caboclas, padroeiras, cravos e rosas
11 Martha Lucía Rubiano, "La reescritura de la Historia en la Nueva Novela Histórica", em Cuadernos de literatura, Número especial "Poéticas y trayectos de la literatura contemporánea: Espana, Hispanoamérica y Co lombia", coordenado por Cristo Figueroa Sánchez, Jeffrey Cedeno, Juan Alberto Blanco Puentes, N ohora Gómez, Catalina Hernández Obregón, vol. VII, Nos. 13 Y 14, EneroJunio, Julio-Diciembre de 200 I, , ed. Pontificia Universidad Javeriana, pp.136142 (139-40).
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En la novela histórica el pasado reconstruido es un tiempo histórico, en el sentido de un pasado contemporaneizado que está en un permanente hacerse y que se conecta con el presente, además que se encuentra en un proceso de cambio. Ello depende de la intención deI autor para elegir el pasado histórico, pues ha establecido un compromiso con la situación actual. 12 Entre o reconhecimento da aceitação dos motivos identitários representativos de um povo e o desejo de marcar a história através das ações de gente comum, coloca-se o núcleo das compridas (215 capítulos) e folhetinescas aventuras de "A Padroeira" de Walcyr Carrasco (2001). Inspirada no romance "As Minas de Prata", de José de Alencar, Carrasco apresenta como trama central um amor de dificil realização no conturbado século XVIII, com a presença de falsos jesuítas, poetas cômicos e ciganas fugidas da inquisição espanhola. Nessa rede, às vezes divertida e caricaturada, de venturas e desventuras, em que entram músicos, cantores, negros e cegos, tem um papel fumdamental o núcleo pobre dos pescadores da cidade de Guaratinguetá. O autor da novela dedica o motor da história à luta para o reconhecimento do culto à Nossa Senhora Aparecida, após sua imagem ter sido encontrada por eles no rio Paraíba do Sul. Os poderosos, que querem levar a ambição até às últimas conseqüências, perdem frente aos milagres acontecidos e às boas conversões com as quais se fecha a história. Também Nossa Senhora Aparecida vira personagem de novela e é assumida, justamente, como signo da identidade do povo brasileiro que, apesar dos seus clichês identitários, não tem só Orixá e candomblé. Uma das novelas das seis mais sofisticadas, marcantes e suntuosas pelo enorme número de figurantes, cenas, figurinos, reprodução precisa de cidade do interior e dos costumes do Brasil do século XIX, foi "Força de um desejo" (1999), inteligente produção de Gilberto Braga e magistralmente interpretado por uma Princesa Sissi brasileira, Malu Mader, e pelo cativante Fábio Assunção. A história, inspirada em três romances de Visconde de Taunay, "A Retirada de Laguna", "Inocência" e "A Mocidade de Trajano", representava o clássico triângulo amoroso com a presença romântica e, ao mesmo tempo, enérgica de uma prostituta, Ester Delamare, que se dividia entre o poderoso barão Henrique Sobral e o filho dele, Inácio. A trama, que explorava todas as possibilidades folhetinescas de um texto adaptado para a televisão, ocupou-se também de problemas da história política e social do Brasil do século XIX. Braga dedicou-se a apresentar a
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decadência dos ricos fazendeiros, com a consequente ascensão de cafeicultores e da burguesia, e o difícil processo de integração do movimento abolicionista, através da figura de Olívia, outra escrava branca, interpretada por uma sensual e ótima Cláudia Abreu. Além disso, a busca do senso da história, que Gilberto Braga manejou com o brilho e a capacidade "tele-ficcional", que também a crítica lhe reconhece, chegou à realização de um grupo de estudos da história nacional com os atores, para que tivessem uma melhor compreensão do Brasil do século XIX. Se é verdadeira a afirmação do cubano José Martí, segundo o qual a história americana é o poema mais triste e bonito que se possa encontrar, 13 então a produção da novela histórica representa, no específico do gênero, o signo mais evidente da necessidade de fazer novelas a partir da busca das próprias raízes e da identidade nacional. Como Antonio Esteves e Heloisa Costa Milton afirmam, a propósito do novo romance latino-americano, a história desse continente reivindica:
Uma vitalidade poética que permite enlaçar fatos da memória com as construções discursivas que, reiteradamente, buscam o passado e formas de reinventá-lo no campo artístico. Nesse sentido, destaca-se o romance como composição que, no tocante à história da literatura, perfaz já uma tradição. 14 Se substituímos "romance" por "telenovela", os signos dessa leitura teórica sobre a nova fase histórica do romance latino americano ficam idênticos: o modelo base do romance não muda a concepção do discurso historiográfico escondido (e ambigüamente mostrado) pela tela pequena. Numa perspectiva de crítica social, Roberto Schwarz mostrou como o liberalismo brasileiro do século XIX justificava a presença dos escravos mediante a idéia mesquinha e presunçosa da "propriedade". 15 Apresentando-se como liberal e escravocrata ao mesmo tempo, a sociedade brasileira mantém, conforme a definição incluída num belo artigo de Antônio Sanseverino, uma "dualidade" histórica que pode se aplicar ao sistema de signos que propõe a novela brasileira das seis, renovando uma visão típica do imaginário coletivo nacional que parece não ter mudado até hoje. O humanismo higienista, como ideologia, aliava o padrão burguês (modernidade brasileira pela europeização dos costumes) e mantinha o liberalismo escravista. A família de elite se transforma, mas exclui o escravo (demônio familiar) contra quem se mantém a lógica punitiva e colonial, pela repres-
Il losé Martí, "As rumas indias", em Letras fieras. Selecção e prólogo de Roberto Fernández Retamar, La Habana, Letras Cubanas, 1985, p. 414.
14 Antonio Roberto Esteves Heloisa Costa Milton, "O Novo Romance Histórico Hispano-americano", em Estudos de Literatura e lingüística, H.Costa Milton-l.M. Sant' Ana Spera, orgs., Assis, FCL-UNESP ed., 2001, pp. 83-117 (83-4).
15 Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas, São Paulo, Duas Cidades, 1988.
Caboclas, padroeiras, cravos e rosas
Antônio Sanseverino, "A impossibilidade da história", em Organon. Revista do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, voI. 15, número 30-31, Porto Alegre, UFRGS, 2001, pp. 87-99 (90). 16
17 Cfr. Sérgio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
I' Para as informações seguintes, utilizou-se a página web: httr:/ I c abocla. globo. comlCabocla/O 18529.VONO-3328147899 OO.html
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são fisica e violenta. Quer dizer, não há de fato passagem de um sistema patriarcal para um liberal, burguês, mas um uso decorativo desse segundo. 16 É justamente o "uso decorativo" que impera nas novelas que mesclam inevitavelmente o problema da terra e da história com o folhetim, na sua natureza mais pura: trata-se de uma responsabilidade que autores como Ruy Barbosa sentem profundamente como uma re-apropriação dos ideais românticos da terra e da origem do povo, como identidade íntima, unidade do homem com a poeira, desejo de transcendência dos confins terrenos. A "disputa" que caracteriza a terra brasileira, segundo o estudo clássico de Sérgio Buarque de Hollanda, 17 entre o grande latifundiário, livre, feliz, rico (tudo isso só aparentemente) e a mão-de-obra escrava, em busca de uma autoridade e de um reconhecimento, configuram as linhas e os mecanismos histórico-sociais que a novela apresenta como conflito folhetinesco e "dualidade" ficcional que engana o telespectador, o qual se deixa ser enganado, na ambivalente relação entre o meio de comunicação e o horizonte de expectativas do público. O atual remake de "Cabocla" (a primera versão é de 1979), escrita por Benedito Ruy Barbosa, e adaptação do delicado romance histórico homônimo de Ribeiro Couto (1931), em primera pessoa, e que lembra, sob certos aspectos temáticos e naturalísticos, o romance nacional colombiano Maria, de Jorge Isaacs, insere-se nessa direção de disputa folhetinesca e dualidade ficcional enganosa. Numa entrevista à própria Rede Globo, na semana de 9 de maio, Ruy Barbosa, satisfeito de ter Tony Ramos, Mauro Mendonça e Patrícia Pillar como paladinos ficcionais da questão da reforma agrária, afirma que a importância de falar dessa problemática é capital para compreender a situação contemporânea do Brasil. Para Ruy Barbosa trata-se de "um problema importantíssimo que, se o Brasil tivesse resolvido há 50 anos, o país estaria hoje no Primeiro Mundo. O Brasil, queira ou não queira, tem vocação para a terra. O país tem terra demais". 18 Uma resposta que denuncia a importância do espaço da história na época da globalização e da cultura de massa, numa direção de respeito e estima pelos brasileiros de qualquer origem. Com orgulho, Benedito Ruy Barbosa sintetiza: A novela conscientiza o povo, ela tem o poder de pôr em discussão temas relevantes. Eu nunca me esqueço de ter lido, certa vez, uma nota no jornal "O Estado de S. Paulo" que dizia que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso havia
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declarado que a novela "O Rei do Gado" [1996, sempre do Benedito, n.d.a.] tinha ensinado mais aos brasileiros sobre reforma agrária, e a necessidade de encarar esse problema, do que qualquer outro meio de comunicação. 19 Segundo Seymour Menton, uma das características básicas do novo romance histórico latino-americano é a presença dos conceitos bakhtinianos de carnavalização e paródia, além de um amplo uso da intertextualidade. 20 A televisão que, como meio de comunicação respira a natureza do texto literário do qual deriva todo um diálogo intersemiótico vivíssimo, não escapa ao uso de imagens carnavalizadas e paródicas, que constituem uma das facetas mais recorrentes da comunicação tout court. A novela histórica das seis não escapa dessa reformulação: a história pode ser re-lida e sua re-Ieitura é bastante irônica em relação aos vícios e virtudes do passado, que se atualiza e permite ver o presente com os olhos desencantados de quem observa sarcasticamente que a história se repete, embora nessas repetições se encontre também o seu fascínio. Um exemplo é a novela de Wa1cyr Carrasco, "O Cravo e a Rosa" (200 I), um sucesso realmente merecido que surpreendeu pela audiência altíssima e pelo tipo de discursos variados que na novela se apresentavam. É notório que a novela é a adaptação televisiva da comédia shakespeariana, A megera domada, mas do texto original o autor mantém apenas alguns núcleos, dedicando-se mais cuidadosamente à exploração de temas modernos que exaltam, sim, questões sociais e econômicas do início do século XX, mas com referências ao presente. O núcleo principal da novela já tem o tema com as suas variações. Catarina Batista, homônima da heroína shakespeariana, interpretada por Adriana Esteves, num papel que revela sua verve cômica, é uma mulher moderna que vive na sociedade paulista da década de 20 e recusa o papel destinado à mulher pela sociedade da época. Julião Petruchio (papel de Eduardo Moscovis) é o típico homem machista que só aceita que a mulher trabalhe em casa e cuide dos filhos. Apesar disso, Petruchio decide conquistar Catarina para salvar sua fazenda de ser leiloada. Os dois acabam se apaixonando, mas com a constante presença de violentas discussões e brigas muito cômicas, como a da inesquecível e original abertura da novela. Os ideais feministas de Catarina chocam-se com os desejos eróticomísticos de Bianca, a doce irmã da megera domada, que vive um curioso conflito sensual já que, por toda a novela, declara gostar do corpo de Heitor
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Ibidem.
20 Seymour Menton, La Nueva Novela Histórica de la América Latina, 19791992, México, FCE, 1993, pp.42-46.
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e da alma do Professor Edmundo (com óbvias referências intertextuais ao popular romance de Rostand, Cyrano de Bergerac). Como já tinha sido feito no caso da novela "Força de um desejo", também ali a Globo conseguiu que o autor Walcyr Carrasco fomentasse um grupo de trabalho sobre a novela com a participação de todos os atores, para que a reconstitução da época toda fosse verossímil e fiel ao mesmo tempo,e-paraoqualfoicoavidado especialmente o professor de história da cultura da USP, Nicolau Sevcenko. Em "O Cravo e a Rosa" é evidente que a telenovela trabalha com os aspectos mais relevantes de um texto mais especificamente literário porque a linguagem, base da mediação fabulatória do gênero, impregna-se de conexões históricas, recuperação da memória e busca da compreensão da ideologia do cotidiano. Por isso, recorrendo ao discurso irônico e paródico, à cumplicidade com o telespectador, às contradições percebidas entre passado e presente, a novela de Walcyr Carrasco enfrenta problemas culturais que são reinterpretados à luz de um sorriso que admite a passagem temporal, mas confirma a estrutura fixa do indivíduo. Assim, Catarina luta contra a idéia de um casamento burguês, que parece a única forma de realização pessoal para uma mulher; recusa a idéia de que ela, como filha mais velha, tem que se casar antes de Bianca; discute a exigência de virginidade, sÍmbolo de moralidade e, portanto, de exemplo de virtude ou de exclusão social (Bianca que "sente formiguinhas" e Candoca que já a perdeu). Mas é sobretudo a força do processo de liberação da mulher, com todos seus tons cômicos e aparentemente banais, que se destacam na novela: as manifestações raivosas da identidade feminina de Catarina (o desejo de dirigir um carro, a escrita de artigos sobre os direitos da mulher, a participação em reuniões do movimento feminista) se juntam e se mesclam com outros personagens "modernos" e rebeldes para a época, como Lourdes (Carla Daniel), uma intelectual furiosamente feminista, amiga de Catarina, orgulhosa de ser virgem e de não ter nunca beijado um homem; Lindinha (Vanessa Gerbelli), a hipócrita que se finge de boa pobretona e que defende o direito a ser má; Kiki (Rejane Arruda), arrasadora femme fatale da época, que fuma de maneira ostentatória e usa apenas originais vestidos à la moda. Uma das cenas mais hilariantes e significativas é aquela em que Heitor (Rodrigo Faro) consegue um emprego na "Revista Feminina", uma revista escrita e dirigida só por homens que tinham que assumir todos os papéis como se fossem mulheres, e se traveste de mulher para poder trabalhar "dignamente" e conquistar seu amor e seu sogro (Mrs. Doubtfire docet...).
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Walcyr Carrasco, que repetiu o sucesso de "O Cravo e a Rosa" com a deliciosa e "romanticona" "Chocolate com Pimenta" (2003), preferiu, dessa vez, se manter no clássico mundo dos folhetins, sem especulações feministas ou excessiva ênfase na crítica social: a única figura mais "moderna" e antecipadora da sensibilidade da mulher independente, a Márcia, brilhantemente vivida por Drica Moraes, termina se casando não com o "senhor prefeito" (sonho de grandeza e riqueza apesar dos repetidos sotaques caipira), mas simplesmente (e um pouco burguesmente) com outro caipira, o Timóteo (Marcelo Novaes), que lhe oferece um amor estável e a salva do apelido de "sirigaita". Como se pode observar, a novela é um fenômeno que merece a atenção dos críticos de literatura: trabalhamos, por isso, com textos quase eminentemente literários e que pouco incursionam no território da semiótica. A produção cultural das novelas propostas pelo colosso brasileiro da Globo dialoga profundamente com questões capitais para a época em que vivemos, como identidade nacional, relação no campo artístico entre realidade e ficção, aproximação ao cotidiano, interagindo com a idéia de temporalidade com que a novela compete, significação e recuperação do patrimônio cultural de um espaço e, sobretudo, da sua memória. É justamente sobre esse último aspecto, o da memória, que fundamentamos nossa conclusão. A novela brasileira pertence à memória coletiva do Brasil e do continente latinoamericano e, como afirma no livro O circo eletrônico o diretor Daniel Filho, " a novela ... é a melhor representação da literatura popular no Brasil..., motivo de aglutinação, a linguagem, as formas de vida, preconceitos, história, a sua narrativa apresentou os brasileiros ao Brasil".21 Sem dúvida, a televisão, apesar dos baixos e modestos reality shows,
" Daniel Filho. O circo eletrônico. Fazendo TV no Brasil, Rio de Janeiro, Jorge Zahar cd., 200 I.
que desprezam os telespectadores incutindo-lhes a falsa idéia de uma vida fácil e sem escolhas reais ou sacrificios, criou um público de leitores de literatura erudita, um público que pode dialogar e que descobre o relacionamento entre cultura erudita e cultura de massa. Com razão, Maria Antonieta Pereira avisa da importância de "preservar tradições" para
construir democracias [. . .} e fortalecer uma auto-imagem afirmativa e crítica, que seja capaz de transformar os acervos culturais em campos de batalhas simbólicas e em redes de trocas efetivas. 22 Esse acervo, que de uma ccrta forma, preserva a memória nacional e intercontinental da América Latina, passa pela defesa do material da
" Maria Antonieta Pereira, "Subdesenvolvimento e Crítica da Razão Dualista", em Margens/Márgel1es, Re\'ista de Cultura, Belo HorizontcBuenos Aires-Mar deI PlataSalvador. n. 2. Dezembro 2002. pp. 56-65 (65).
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novela. Sendo um gênero cultural desprezível, segundo as idéias de uma elite tradicionalista e ignorante (porque tradição seria também incorporar o folhetim romântico na produção escrita textual da literatura, como recentemente tinha sido resgatado), muitos capítulos da cumprida e antológica telenovela "Pantanal" (1990), uma das obras primas da TV Manchete e da teledramaturgia brasileira, assinada por Benedito Ruy Barbosa, podem estar se deteriorando, por estarem registrados em VHS e guardados em péssimas condições. Numa declaração ao portal da internet "Terra Brasil", uma das melhores atrizes das últimas décadas, Cássia Kiss, afirmou possuir apenas os 17 primeiros capítulos de "Pantanal", que marca a primeira fase da novela, quando a atriz atuou na trama como Maria Marruá, a mãe da protagonista principal, Juma (Cristiana Oliveira). Apropósito dos 40 anoS de telenovela no país, o jornalista da TV Press, Rodrigo Teixeira relata:
" Essas infonnacÕes assinadas jornalista Rodrigo pelo Teixeira da TV Press foram encontradas nos sites web:< http://www. exclusivo.terra.com.br/internal 0,,01124553EIII18.00.html~
.:shttp://an.uol.com. br/2 003/jul/ 28/0tev.htm~
A perda de uma novela histórica como Pantanal remete ao velho problema da preservação da memória cultural do Brasil e ao hábito das emissoras em reutilizar as fitas para gravar outras produções no lugar. Até 1985, a própria Globo só preservava seis capítulos de todas as suas novelas. Da leva da década de 70, por exemplo, somente 12 tramas foram salvas, como "O Bem Amado ", "Selva de Pedra" e "Escrava Isaura". De "Beto Rockfeller ", que revolucionou o gênero no Brasil e ficou um ano no ar na Tupi, só restaram seis capítulos atualmente locados na Cinemateca de São Paulo. Dos 596 capítulos de "Redenção ", por exemplo, a novela mais longa produzida no Brasil, restou um único capítulo no acervo da Globo. 23 A história da televisão não fica longe da história da cultura e a sua perda representaria uma absurda ausência de compreensão da tradição e da atitude antropológica dos homens num determinado período. A revitalização séria dos estudos sobre telenovela enriquece o debate entre cultura de massa e cultura erudita, entre identidade e memória, entre cânones e marketing, como poucos fenômenos atuais. Resumindo: a história se arquiva também na televisão. Os documentos de transmissão do saber, dos costumes, dos acontecimentos são agora vitalmente conservados na "domesticação" da história que a telinha propõe como boa custódia do passado. Dessa forma, a televisão, meio frio e passi-
vo, segundo a discutida opinião de Marshall Mc Luhan, toma-se um atual acervo de informações fundamentais que garantem a identidade e a histó-
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ria de povos e nações, discutindo e dialogando numa "nova festa barroca da comunicação", como o estudoso italiano Ornar Ca1abrese define a tevê. Por isso, terminamos como cantavam as Frenéticas numa das novelas mais conhecidas no mundo, "Dancin' Days" de Gilberto Braga, no remoto 1978, "Abra suas asas/Solte suas feras/Caia na gandaia/Entre nessa festa".
A literatura comparada e a Weltanschauung pós-moderna
Eduardo F. Coutinho Universidade Federal do Rio de Janeiro - (UFRJ)
Se lançamos um olhar crítico à Literatura Comparada em seu desenvolvimento histórico, não é dificil perceber que a disciplina sofreu, da década de 1970 para o presente, considerável transformação, que poderíamos sintetizar, sem riscos de reducionismo, na passagem de um discurso coeso e unívoco, com forte propensão universalizante, para outro plural e descentrado, situado historicamente e consciente das diferenças que identificam cada corpus literário envolvido no processo da comparação. Marcada no início por uma perspectiva de teor historicista, calcada em princípios científicocausalistas, decorrentes do momento e contexto histórico em que se configurara, e em seguida por uma ótica predominantemente formalista, própria do imanentismo que dominou o meio acadêmico ocidental em meados do século XX, o comparatismo se deixou abalar, de maneira decisiva, pelo influxo das correntes teórico-críticas que passaram a ocupar, na segunda metade do século, o cerne das reflexões sobre o literário, e oscilou significativamente o seu eixo. A atuação dessas correntes sobre o comparatismo, em especial a Desconstrução, a Nova História e os chamados Estudos Culturais e Pós-Coloniais, conferiram à disciplina uma dimensão que se expressa hoje pela multiplicidade de caminhos com que ela dialoga com a obra literária. Voltada cada vez mais para o texto, mas consciente da sua condição de discurso condicionado a uma realidade histórico-cultural de-
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tenninada, e portanto passível de questionamento, a Literatura Comparada vem pondo em xeque seus pressupostos básicos, agora reconhecidamente etnocêntricos, e refonnulando constantemente seus cânones. Dentre os pilares do comparatismo abalados por essa Weltanschauung pós-moderna, expressa por intennédio das correntes mencionadas, é impossível deixar de reconhecer a pretensão de universalidade com que se confundiu o cosmopolitismo dos estudos comparatistas, presente já desde suas primeiras manifestações, e o discurso de apolitização apregoado sobretudo pelos remanescentes da chamada Escola Americana, que dominara a área nos meados do século xx. O primeiro expressava-se pelo anseio de que, a despeito da diversidade e multiplicidade do fenômeno, era possível constituir-se um discurso homogêneo sobre ele e de que a literatura era uma espécie de força enobrecedora da humanidade, que transcendia qualquer barreira; e o segundo se revelava através da idéia de que a literatura existia em uma espécie de "aura", e poderia condensar-se em afinnações como a de que a Literatura Comparada era o estudo da literatura, independentemente de fronteiras lingüísticas, étnicas ou políticas, e que não deveria portanto deixar-se afetar por circunstâncias de ordem econômica, social ou política, entre outras. Embora esses dois tipos de discurso apresentem variações na superficie, no íntimo encerram um forte denominador comum - o teor hegemônico de sua construção -, e foi sobre esse dado fundamental que se baseou grande parte da crítica empreendida a partir de então ao comparatismo tradicional. Em nome de uma pseudodemocracia das letras, que pretendia construir uma História Geral da Literatura ou uma poética universal, desenvolvendo um instrumental comum para a abordagem do fenômeno literário, independentemente de circunstâncias específicas, os comparatistas, provenientes na maioria do contexto euro-norte-americano, o que fizeram, conscientemente ou não, foi estender a outras literaturas os parâmetros instituídos a partir de reflexões desenvolvidas sobre o cânone literário europeu. O resultado inevitável foi a supervalorização de um sistema detenninado e a identificação desse sistema - o europeu - com o universal. Do mesmo modo, a idéia de que a literatura deveria ser abordada por um viés apolítico apenas camuflava uma atitude prepotente de reafirmação da supremacia de um sistema sobre os demais. l O questionamento dessa postura universalizante e a desmitificação da proposta de apolitização, que se tornaram uma tônica da
I Para um maior desenvolvimento dessa questão, ver COUTINHO, Eduardo F. Literatura Comparada lia América Latilla: ellsaios. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
A literatura comparada e a Weltanschauung pós-moderna
, Ver BHABHA, Homi. The Location Df Cu/ture. Londres: Routledge, 1994.
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Literatura Comparada a partir dos anos de 1970, atuaram de modo diferente nos centros hegemônicos e nos focos de estudos comparatistas até então tidos como periféricos, mas em ambos esses contextos verificou-se um fenômeno similar: a aproximação cada vez maior do comparatismo a questões de identidade nacional e cultural. No eixo Europa Ocidentall América do Norte, o cerne das preocupações deslocou-se para os grupos minoritários, de caráter étnico ou sexual, cujas vozes começaram a erguer-se cada vez com mais vigor, buscando foros de debates para formas alternativas de expressão, e nas outras partes do mundo clamava-se um desvio de olhar, com o qual se pudessem enfocar as questões literárias ali surgidas a partir do próprio loeus onde se situava o pesquisador. 2 A preocupação com a Historiografia, a Teoria e a Crítica literárias continuou relevante nos dois contextos mencionados, mas passou a se associar diretamente à práxis política cotidiana. As discussões teóricas voltadas para a busca de universais deixaram de ter sentido e seu lugar foi ocupado por questões localizadas, que começaram a dominar a agenda da disciplina. A crítica ao etnocentrismo, expresso por meio de um discurso pretensarnente liberal, mas que no fundo escondia seu caráter autoritário e totalizante,já se havia iniciado desde os tempos de Wellek e Etiemble, e se lançarmos uma mirada ao espectro de atuação da Literatura Comparada, veremos que ela sempre aflorou de maneira variada ao longo de sua evolução. Contudo, na maioria dos casos, essa crítica se manifestou à base de uma oposição binária, que continuava paradoxalmente tomando como referência o elemento europeu. Conscientes de que não se trata mais de uma simples inversão de modelos, da substituição do que era tido como central pela sua antítese periférica, os comparatistas atuais que questionam a hegemonia das culturas colonizadoras abandonam o paradigma dicotômico e se lançam na exploração da pluralidade de caminhos abertos como resultados do contacto entre colonizador e colonizado. A conseqüência é que se vêem diante de um labirinto, hermético, mas profícuo, gerado pela desierarquização dos elementos envolvidos no processo da comparação, e sua tarefa maior passa a consistir precisamente nessa construção em aberto, nessa viagem de descoberta sem marcos definidos. A busca dos universais e a pretensão de apolitização que povoaram os estudos comparatistas atingiram seu ponto culminante na época de domínio do Estruturalismo, movimento teórico-crítico que, junto às demais correntes imanentistas da primeira metade do século, expressou a visão de
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mundo que, no plano estético-literário, correspondeu à do que se convencionou chamar de Modernismo Anglo-Saxão. Esse movimento, expressão máxima da chamada "modernidade", reagindo à transparência da representação realista da segunda metade do século XIX, associada à ordem social burguesa, instaurou uma crise da representação, marcada pela auto-referencia1idade e por uma defesa da autonomia da obra de arte que lhe conferiram uma perspectiva fortemente elitista e a-histórica. Dissociada de seu contexto histórico e de qualquer preocupação de ordem extra-estética, a obra apresentava, para os modernistas anglo-saxões, um impulso universalizante e totalizador que a inscrevia numa esfera aurática, centra1izadora e hegemônica, calcada num princípio binário hierarquizante, que excluía toda manifestação que não correspondesse aos parâmetros instituídos. É claro que o Modernismo, mesmo em sua versão anglo-americana, nunca foi um fenômeno monolítico - ele incluía, por exemplo, tanto a euforia da modernização, quanto algumas das mais duras críticas a esse processo -, mas a recusa da tradição passadista era um componente fimdamenta1 do movimento, que se colocava lado a lado à utopia da modernização pela via da padronização e da racionalização. Daí os princípios que regiam de modo geral o movimento serem a unidade, o fechamento, a ordem, o anseio de absoluto e a racionalidade. Esse quadro que dominava a produção cultural anglo-americana começou a apresentar sinais de exaustão no período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, quando começaram a pipocar diversas manifestações artísticas de caráter experimental, que passaram a pôr em xeque a hegemonia da arte modernista. No entanto, os termos "pós-modernismo" e seus correlatos, utilizados com referência ao tipo de produção artística que vinha ocupando o cenário, só passaram a integrar o discurso crítico norte-americano em finais da década de 1950, quando Irving Howe e Harry Levin os empregaram para lamentar a queda de nível do movimento modernista, representado por figuras como Yates, E1iot, Pound e Joyce. Este diagnóstico nostálgico foi, não obstante, substituído por uma visão otimista, favorável, no início dos anos de 1960, nos trabalhos de Les1i1e Fied1er, Ihab Hassan e Susan Sontag, que tomaram o cunho pluralista do pós-modernismo como um fator positivo, e chamaram atenção para a ruptura de certas dicotomias dominantes no período anterior, como a que traçava uma barreira entre o erudito e o popular. Ao longo dos anos de 1960, o termo foi freqüentemente associado a diversas manifestações de arte "pop" nos Es-
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3 Ao contrário da suposição corrente de que o termo "pós-modernismo" se originou em Arquitetura, ele foi na realidade importado da Literatura e introduzido na área por Robert Stern e Charles Jencks tardiamente, em 1975. Em Filosofia, cabe a Lyotard a primazia na formulação do conceito. Para maiores informações, ver WELSCH, Wolfgang & SANDBOTHE. "Postmodemity as a Philosophical Concept". In BERTENS, & FOKKEMA, Hans Douwe, orgs. lnternational Postmodernism: Theory and Literary Practice. Amsterdam: John Benjamins, 1997, p. 78.
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tados Unidos, mas foi só nos anos de 1970 que ele ganhou um curso mais geral, passando a ser utilizado primeiro na arquitetura, e, em seguida na dança, no teatro, na pintura, no cinema e na música. 3 Em algum momento, no fim da década de 1970, a expressão "pós-modernismo" migrou para a Europa, tendo sido empregada por Kristeva e Lyotard, na França, e por Habermas, na Alemanha, e dando origem a um dos mais intensos debates sobre a questão - a polêmica entre Lyotard e Habermas. Por essa época, contudo, já os críticos norte-americanos haviam começado a estabelecer relações entre o Pós-Modernismo e o Pós-Estruturalismo francês, máxime em sua versão norte-americana, pressupondo, curiosamente, que a vanguarda no âmbito da teoria deve, de algum modo, ser análoga à vanguarda na literatura e nas artes. Embora essa postura da crítica norte-americana esteja relacionada ao surto da teoria que se verificou no meio intelectual, e mais especificamente acadêmico, dos Estados Unidos nos anos de 1970 e 80 - surto este sem precedentes num país predominantemente voltado para preocupações de ordem mais pragmática -, ela constitui um elemento fundamental para a compreensão do fenômeno pós-moderno, por associar as manifestações artísticas ali surgidas a uma transformação mais ampla na ordem socioeconômica, que vem sendo designada freqüentemente de "pósmodernidade". Daí as observações de Andreas Huyssen, em seu hoje clássico "Mapeando o pós-moderno", de que "no início dos anos 80, a constelação modernismo/ pós-modernismo nas artes e a constelação modernidade/ pós-modernidade na teoria social tinha já se transformado em um dos mais
HUYSSEN, Andreas. "Mapeando o pós-moderno". Trad. Carlos Moreno. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de, org. Pós-Modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 25. 4
5 Ver JAMESON, Fredric. Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalismo Durham: Duke Univ. Press, 1992, p. I-54.
disputados campos da vida intelectual das sociedades ocidentais" e de que "o campo é disputado precisamente porque há muito mais em questão do que a existência ou não de um novo estilo artístico, e bem mais do que simplesmente a "correta" linha teórica".4 O pós-modernismo surge no contexto norte-americano - e é tal vez o primeiro movimento estético de proj eção universal emanado daquele contexto - exatamente porque ali, mais talvez do que em qualquer outro, o processo de modernização tivesse alcançado um estágio que levara à exaustão a literatura do alto Modernismo e tomara aquele contexto permeável a outras formas de produção. Tal contexto, que para uns não passa de uma fase inacabada do processo de modernização e para outros constitui a base de uma nova episteme, é o que Jameson designa de "capitalismo tardio'? ou seja, uma nova fase da sociedade capitalista, marcada pelo domínio de corporações multinacionais e de
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uma mudança da "central idade" da produção para a "centralidade" do consumo. Nessa sociedade de consumo do capitalismo tardio, a mercadoria passa a reger todos os aspectos da cultura: a representação, o conhecimento e a informação se tornam mercadorias, a propaganda se torna um sinal dos tempos e o universo artístico se torna um mercado. 6 O Modernismo anglo-saxão chegara aos Estados Unidos na era dominantemente industrial, num momento em que predominava a ideologia desenvolvimentista, calcada no mito da América como repositório dos princípios ontológicos e valores do Ocidente. Ali, onde os raios do Iluminismo se haviam alastrado até as últimas conseqüências, apoiados pelo discurso da Antropologia americana e pelo mito de uma democracia no fundo voltada para a defesa dos interesses das classes dominantes, que tinham como modelo o "white Anglo-Saxon Protestant", o movimento encontrara terreno fértil para o seu florescimento, apoiado pelo New Criticism então dominante justamente pela sua defesa da autonomia da obra de arte e pela busca de constituição de modelos de cunho universalizante. O Pós-Modernismo, ao contrário, surgira em situação de crise. A década de 1960, quando ele começa realmente a se fazer notar, é um momento em que a estabilidade do poderio americano passa a ser posta em xeque e a construção do grande sonho americano começa a ruir diante dos diversos movimentos de protesto então desencadeados por parte das minorias insatisfeitas e da desilusão com a Guerra do Vietnam. Agora, não há mais lugar para discursos de teor hegemônico e o ideal de um universalismo a-histórico, sustentado pelo mito do caráter autotélico do texto, cede lugar a uma preocupação com o contexto histórico. A obra de arte deixou de ser modelar, questionando veementemente o cânone, e a onda de politização que invadiu então o contexto norte-americano, onde as vozes de todos os excluídos começaram a se fazer ouvir, multiplicou as formas de expressão artística. As novas possibilidades proporcionadas pela mídia assinalou caminhos diversos c a distância entre o erudito e o popular foi decisivamente rompida. A estética pós-moderna, se assim se pode chamar, havia sido associada ao novo panorama político-social, mas carecia ainda de um lastro filosófico que justificasse os embates sofridos pelos ideais remanescentes do humanismo liberal naquele contexto. É só mais tarde, nos anos de 1970 c 80, que a academia norte-americana, mergulhando vorazmente nos escritos dos pós-estruturalistas franceses, encontrará o respaldo necessário para a prática estética que já vinha
6 Ver CARROLL, Noel. "The Concept of Postmodernism from a Philosophical Point of View". In: BERTENS, Hans & FOKKEMA, Douwe, op. cit., p. 76.
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7 Ver LYOTARD, JeanFrançois. La condition postmoderne: rapport sur le savoir. Paris: Minuit, 1979.
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Ver WELSCH, Wolfgang
& SANOBOTHE, Mike.
"Postmdernity as a Phi1osophical Concept". In: BERTENS, Hans & FOKKEMA, Douwe, op. cit., p. 76.
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sendo produzida em grande escala em suas plagas, e, evidentemente, para as lutas políticas que ali se vinham travando por parte dos grupos minoritários, dentre os quais as mulheres, os afro-americanos e os demais grupos étnicos, como os de procedência hispânica. Por esse tempo, no entanto, o PósModernismo já havia chegado à Europa, e encontrara talvez seu mais representativo porta-voz na figura de Lyotard que identifica o que designa de a "condição pós-moderna" com o declínio das chamadas "narrativas mestras" ou "grandes narrativas da modernidade", como o marxismo e o liberalismo, e a liquidação dos traços iluministas do projeto moderno. 7 Reagindo contra toda forma de pensamento hegemônico ou uniforme, que Lyotard aproxima à coerção e ao terror, a nova orientação se caracteriza justamente pela valorização da diferença e da heterogeneidade, expressa precisamente pela abundância de 'jogos de palavras", formas de ação, modos de vida e concepções do conhecimento.8 Daí a polêmica desencadeada com Habermas que, empenhado no resgate do poder emancipatório da razão iluminista, defendia a noção de "consenso" e relacionava os pressupostos pós-modernos com a emergência de tendências políticas e culturais neoconservadoras. Convicto de que toda narrativa ou sistema que acreditasse na possibilidade de se chegar a um acordo público de modo não problemático não tinha mais base de sustentação, Lyotard, ao contrário, via no "consenso" a marca do conservadorismo, e privilegia a noção de "dissenso" como forma de autonomia e liberação do pensamento. A partir dessa polêmica, o termo "pós-modernismo" passou a ser amplamente utilizado com referência a toda ruptura ou afastamento do impulso totalizador e universalizante que norteara a modernidade e da lógica binária que acompanhava tal impulso, em prol, ao contrário, do específico e do local, e de uma lógica outra, possivelmente "aditiva", que permitisse a coexistência de opostos em tensão. Partindo da consciência de sua condição de discurso e do reconhecimento de seu caráter histórico, o pósmoderno põe em xeque princípios como valor, ordem, significado, controle e identidade, que constituíram premissas básicas do liberalismo burguês, e se erige como um fenômeno fundamentalmente contraditório, marcado por traços como o paradoxo, a ambigüidade, a ironia, a indeterminação e a contingência. Desaparece, assim, a segurança ética, ontológica e epistemológica, que a razão garantia ao paradigma moderno e o pós-moderno se insurge como o reino da relatividade. Em virtude de seu cunho contraditório e do fato de operar dentro do próprio sistema que procura
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subverter, o pós-moderno dificilmente pode ser considerado um novo paradigma, porém é inegável que ele sinaliza a arena de emergência de algo novo. Se é verdade que o Modernismo anglo-saxão, e agora referimo-nos ao movimento estético-literário, nos ensinou que a linearidade, a racionalidade, a relação inextricável entre causa e efeito, o ilusionismo, a transparência da linguagem e as convenções de uma moral pequeno-burguesa eram absolutamente insuficientes como elementos da expressão artística, podemos perfeitamente concordar com John Barth, quando afirma, em seu "The Literature ofReplenishment'? que o contrário desses rasgos tampouco satisfaz. A disjunção, a simultaneidade, o irracionalismo, o antiilusionismo, a auto-referencialidade, a noção do "meio como mensagem", e a separação entre o estético e o político, que fizeram a glória dos modernistas anglo-saxões, são traços cuja eficácia hoje na obra depende da relação com outros, muitas vezes seus opostos, e do tratamento, freqüentemente paródico que lhes é conferido. O fenômeno pós-moderno se revela justamente naquelas obras em que se vislumbra uma pluralidade de linguagens, modelos e procedimentos, e onde oposições como entre realismo e irrealismo, formalismo e conteudismo, esteticismo e engajamento político, literatura erudita e popular cedem lugar a uma coexistência em tensão desses mesmos elementos. Utilizando-se da paródia e de outros recursos técnicos desestabilizadores, o Pós-Modernismo desestrutura figuras e vozes narrativas estáveis e problematiza toda a noção tradicional de conhecimento histórico, pondo em questão ao mesmo tempo todas as instituições e sistemas que constituem as fontes básicas de significado e valor da tradição estética ocidental. Não há dúvida de que muitos dos aspectos normalmente apontados como denominadores comuns nas obras consideradas pós-modernas já se achavam presentes na estética modernista, tendo alguns deles chegado mesmo a constituir dados fundamentais daquele movimento, como a autoreferencialidade, a ironia, a paródia, e a fragmentação da narrativa, que são amplamente intensificadas no novo estilo, justificando em parte a posição de alguns críticos que viam no chamado Pós-Modernismo uma simples continuação do estilo precedente. No entanto, os traços de ruptura que se verificam nos textos pós-modernos com relação aos do alto Modernismo são também tão freqüentcs e de tal modo significativos, que a postura oposta se revela ainda mais adequada. Dentre estes, citem-se, a título de
BARTH, John. "The Literature of Rep1enishment". In: . The Friday Book. Essays and Other Non-Fiction.N. York: Putnam's Sons, 1984, p. 193-206. 9
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amostragem, o ecletismo estilístico, o resgate da historicidade ou a revi sita crítica ao passado, a consciência do caráter político da obra, a afirmação de uma subjetividade descentrada, a presença freqüente da mídia e a desierarquização entre o erudito e o popular. Embora essa dialética entre continuidade e ruptura seja uma constante na passagem da dominância de um estilo para outro, ela freqüentou durante largo tempo o debate sobre o pós-moderno, ainda mais acirrado pela diversidade do movimento, que variou muito rapidamente de um momento para outro dentro do próprio contexto de origem, e deste para os demais onde se disseminou. O Pós-Modernismo dos anos de 1960 constituiu um momento de grande contestação e irreverência, marcado pela eclosão de diversos movimentos de arte "pop", que se voltaram contra a institucionalização da arte do Modernismo, realizada em grande parte pelos adeptos do New Criticism. Mas a grande reação desencadeada nessa primeira fase do Pós-Modernismo, sob a forma de happenings, da arte psicodélica, do acid rack, e do teatro alternativo ou de rua, foi contra a assimilação, verificada na década anterior, do Modernismo canônico pelo consenso liberal-conservador da época, que a transformou em arma de propaganda na guerra fria anti comunista. Voltado paradoxalmente para o futuro, mas mais próximo dos movimentos de Vanguarda europeus do início do século, o Pós-Modernismo dos anos de 1960 tentou revitalizar essas vanguardas, dando-lhe, entretanto, um caráter marcadamente norte-americano, e chegou a constituir uma espécie de eixo que ficou conhecido como Duchamp-Cage-Warhol. Some-se a isso a presença marcante da mídia, vista inclusive com certo entusiasmo, o que tornou o momento ainda mais próximo das vanguardas, e lhe conferiu um sentido afirmativo mais tarde criticado pelos teóricos do movimento. A grande diferença entre o Pós-Modernismo dos anos de 1970 e 80 e sua fase anterior é que a retórica do vanguardismo se extinguiu e os gestos iconoclastas dos defensores do pap, do rock e das manifestações de sexo livre pareciam desgastados. O otimismo anterior diante da tecnologia - a televisão, o vídeo, o computador -, da mídia e da cultura popular foi
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HUYSSEN, op. cit., p. 43.
substituído por avaliações mais críticas e a grande divisão que separava o alto modernismo da cultura de massas deixou de ser tão relevante. A situação agora parece caracterizar-se, como afirma Huyssen, "por uma dispersão e disseminação cada vez mais amplas das práticas artísticas, todas operando a partir das ruínas do edifício modernista", 10 e nesse terreno passam
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a desempenhar papel fundamental as diversas fonnas de "alteridade", que adquirem então grande projeção. Foi sobretudo a produção de mulheres e artistas de minorias que, como disse ainda Huyssen, "com sua recuperação de tradições enterradas e mutiladas, sua ênfase na exploração, em produções ou experiências estéticas, de fonnas de subjetividade baseadas em gênero ou raça e sua recusa a ater-se a padrões canonizados",11 acrescentou uma dimensão totalmente nova ao Pós-Modernismo dessa fase.
11
Ibidem, p. 46.
Nos anos de 1990, as tendências principais do Pós-Modernismo de 1970 e 80 continuaram a prevalecer no contexto norte-americano, mas com uma disseminação bastante expressiva da produção dos grupos minoritários e uma ênfase muito acentuada sobre o debate teórico. No plano internacional, além da expansão do movimento em suas versões locais ou regionais, o seu cunho descentralizador e a concepção do sujeito pós-moderno como provisório e plural deram margem, particulannente nos contextos que passaram por processos de colonização, ao desenvolvimento de uma vasta produção que se tomou conhecida como "literatura pós-colonial". Embora os teóricos do Pós-Colonialismo façam questão de distinguir a produção que chamam de "pós-colonial" da pós-modernista, com base sobretudo no caráter político da primeira e no fato de o seu foco recair sobre uma política da representação, seus argumentos perdem sustentação por tomarem como referência para a comparação uma vertente específica do Pós-Modernismo - a norte-americana dos anos de 1970 e 80--, que fora identificada com o Desconstrucionismo. Este pós-modernismo desconstrucionsita, que dominou durante um curto tempo as universidades norte-americanas, e que se baseava na idéia de que a linguagem está fadada à auto-reflexividade, foi um momento apenas de um amplo processo, não podendo absolutamente ser generalizado. 12 Ao contrário desse tipo de pós-modernismo anti-representacionista e auto-referencial, o que predominou, de meados dos anos de 1980 para o presente, foi justamente um pós-modernismo que retomou à questão da representação e do sujeito. Com base nos últimos trabalhos de Foucault sobre o sujeito, seus porta-vozes reconhecem que, na ausência da representação, toma-se mais do que nunca indispensável saber-se quem produziu ou quem controla uma detenninada representação. Se as representações não correspondem ao mundo, elas devem representar algo mais, e, ao fazê-lo, elas serão inevitavelmente políticas, sempre oriundas de um quadro ideológico limitado no tempo e no espaço. A ênfase, como afirma Hans
" Ver, nesse sentido, BERTENS, Hans. "The Debate on Postmodernism". In: & FOKKEMA, Douwe, op. cit., p. 3, 6-7, e HUTCHEON, Linda. "Beginning to Theorize Postmodernism". In: NATOLI, Joseph & HUTCHEON, Linda, orgs. A Postmodern Readel: N. York: State Univ. of New York Press. 1993, p. 257.
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BERTENS, Hans. "The Debate on Postmodernism". [n: & FOKKEMA, Douwe, orgs., op. cit., p. 6.
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14 HUTCHEON, Linda. "Beginning to Theorize Postmodernism". In: NATOLI, Joseph & HUTCHEON, Linda, orgs., op. cit., p. 244.
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Bertens, recai desse modo sobre a idéia de poder. Em suas palavras, "as representações não apenas refletem o poder ou relações de poder; elas são veículos de poder".13 E este pós-modernismo, de que o Orientalismo, de Edward Said é um bom exemplo, funciona para expor e desfazer hierarquias de poder e advogar diferenças, a fim de permitir que as inúmeras vítimas da representação falem por si próprias. É neste sentido que o Pós-Modernismo é, como afirma Linda Hutcheon, um fenômeno "decididamente histórico e inevitavelmente político". 14 Do ponto de vista do elemento histórico a que Hutcheon se refere, o Pós-Modernismo como um todo apresenta uma diferença significativa com relação ao Modernismo anglo-saxão, na medida em que deixa de lado a sua preocupação universalista que negligencia o contexto, passando, ao contrário, a considerá-lo fundamental na produção tanto artística quanto discursiva de modo geral. Essa presença indispensável do passado, que a crítica menciona, não é um retomo nostálgico, mas uma revisita crítica, um diálogo com a tradição da arte e da sociedade em que suas formações são problematizadas pela reflexão crítica do presente, e que se evidencia com clareza quando se pensa, por exemplo, na esfera da Arquitetura. Aqui,
JENCKS, Charles. "Post\!odern Architecture and Time Fusion". In: BERTENS, Hans & FOKKEMA, Douwe, op. cit, m p. 123. 15
HUTCHEON, Linda. A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction. N. York/ Londres: Routledge, 1988.
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Jencks afirma que, entre os diversos males que afetaram a área no período modernista, que se estendeu de 1920 a 1960, o mais grave foi justamente "a perda da consciência histórica";15 daí a reação em defesa da cidade histórica que marcou o início do período considerado pós-moderno. No caso da Literatura, esta reação se verificou, entre outras coisas, através de um tipo de poesia que dialoga o tempo todo com a tradição poética em que ela própria se insere e de ficção que Hutcheon denominou de "metaficção historiográfica".16 Nesse tipo de narrativa, o passado é resgatado não mais como documento portador de verdades incontestáveis, mas como texto, como discurso, e é conscientemente abordado com o olhar do presente. No que diz respeito ao segundo aspecto mencionado por Hutcheon, o político, cabe ainda frisar alguns de seus traços, se não mais pela importância que tiveram no quadro geral do movimento: a incerteza ontológica, oriunda da consciência da ausência de centros, de linguagens privilegiadas ou discursos considerados elevados, e a multiplicidade de identidades decorrente do abandono da noção de uma espécie de "entidade coerente", que tivesse o poder de impor a ordem sobre o seu millieu. Surgido, corno vimos, corno rcação à visão de mundo monolítica e universalizante do Modernismo anglo-saxão, identificada à tradição ontológica pós-iluminista dos
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anos de 1950, e associado desde o início às reivindicações dos grupos minoritários, que começaram a conquistar espaço na década subseqüente, e à visão de mundo difundida pelos filósofos pós-estruturalistas franceses, o Pós-Modernismo se caracterizou justamente pela consciência do valor e significado de se respeitar a diferença e a alteridade. Assim, erguendo-se contra toda sorte de etnocentrismo e logocentrismo e contra todo tipo de identidade unívoca e estática, em favor da diversidade e da pluralidade de caminhos, o movimento não só deu margem a um vasto leque de possibilidades artísticas, como também abriu novos campos de investigação intelectual, social e política. Essa crítica ao logocentrismo, ou à hierarquização dos discursos, que privilegiava os detentores do poder nas sociedades ocidentais, e o combate à noção de identidade unívoca, aproximaram o Pós-Modernismo de outra tendência contemporânea dos estudos universitários que se vinha desenvolvendo em grande escala no contexto anglo-americano e que, nos anos de 1990, alcançou verdadeira voga, os chamados Estudos Culturais. 17 Nessa seara também, assim como na dos Estudos Pós-Coloniais, seus adeptos se recusaram a reconhecer a aproximação com argumentos semelhantes. Contudo, aqui também a reação carece de procedência quando se pensa no sentido político de ambos os movimentos, voltados para a desconstrução das estruturas petrificadas da metafísica ocidental, que hierarquizava o conhecimento, tanto envolvendo numa espécie de aura certos tipos de discurso, como o estético, quanto privilegiando certas culturas e erigindo-as como modelares. Ao lado da contestação efetuada em ambos os casos da noção de um sujeito unificado e coerente, reside evidentemente o questionamento de todo e qualquer sistema homogeneizador. Assim, a idéia de um discurso ou de uma cultura central, uniforme e exemplar, deixa de existir, e o que era periférico, marginal ou ex-cêntrico passa a ocupar o mesmo plano. O local e o regional passam a ser valorizados e o que antes era rejeitado como cultura de massas passa a integrar o circuito dos currículos acadêmicos. Mas a descentralização do sujeito verificada no Pós-Modernismo teve ainda um outro efeito fundamental que contribui enormemente para o seu cunho inequivocamente político: o favorecimento do desenvolvimento da produção oriunda dos grupos marginalizados, seja dentro do próprio eixocentral euro-norte-americano, seja no universo periférico, composto pelo resto do mundo, em particular a Ásia, a África e a América Latina. No
17 Ver, neste sentido, BERTENS, Hans. "The Debate on Postmodernism". In: & FOKKEMA, Douwe, op. cit., p. 3, 6-7 e NATOL!, Joseph& HUTCHEON, Linda, orgs., op. cil., p. viii.
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primeiro caso, ressalte-se a produção das mulheres, ou mais especificamente dos diversos grupos feministas, dos afro-americanos, com suas diferentes formas de expressão, e dos demais grupos étnicos e sexuais minoritários, como os hispânicos e orientais, ou os homossexuais. E no segundo caso, em especial, a produção que vem fazendo parte hoje dos Estudos Pós-Coloniais, marcada em grande parte pelo retomo a tradições e dialetos locais, como resultado do que vem sendo designado de "uma nova sensibilidade ecológica". Em todos esses casos, no entanto, é preciso assinalar também que essa produção se tem feito acompanhar de um discurso crítico bastante poderoso, que lhe vem imprimindo uma marca toda especial. O Pós-Modernismo vem também mostrar que, assim como tantas dicotomias que por largo tempo dominaram a Weltanschauung ocidental, a oposição entre teoria e prática poética não tem tampouco base de sustentação.
Heterogeneity and post-modernity
Ernesto Loclou (University of Essex - UK)
When the theme of post-modernity emerged a few decades ago within our political and philosophical horizon, it was associated with a variety of dimensions. In that sense, it was more the reflection of an epochal new perceptual field than a precise theoretical stand. Theoretical attempts at capturing its meaning did not however take long to come forth. They were many and greatly differ from each other, but one, however, had pride of place from the beginning: I am referring to what, in Lyotard's canonical approach to post-modernity was called 'the crisis of great narratives'. From the Post-Modern Condition to the Differend Lyotard elaborated a theoretical perspective whose central tenet was that, while the founding discourses of modernity had been centred in the postulation of a universal subject and in the notion of an ultimate ground of the social- as epitomized in the classical philosophies of history - the contemporary scene would be characterized by the breaking up of such a subject and such a ground and by the proliferation of a plurality oflanguage games whose interconnections does not lead to any kind of mutual compatibility. Ergo: irreducible difJerends are at the very root of social interaction. Heterogeneity would thus be constitutive. The following reflections have been written in the conviction that, while the dialectic between the homogeneous and the heterogeneous is indeed far more complex than it was conceived in the past - and it is at
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the root of the epochal change which we are referring to -, such a complexity is far from necessarily going in the direction of the pure disposition and multiplicity that main-stream post-modem approaches presuppose.' This means that such dispersion and multiplicity is only one of the developments that the break down of a fundamentalist grounding makes possible. I would even say that to conceive of such a break down in terms ofa 'crisis of the great narratives' is extremely misleading and short-sighted. A widening of the theoretical horizon which makes other possibilities visible becomes necessary. This should break between 'modernity' and 'post-modernity', and even to ask oneself whether the movement from one to the other can still be conceived in terms of 'break'. Let us start from a passage by Frantz Fanon that, prima facie, nobody would associate with post-modernism: 'The lumpenproletariat, once it is constituted, brings all its forces to endanger the "security" of the town, and is the sign of the irrevocable decay, the gangrene ever present at the hear of colonial domination. So the pimps, the hooligans, the unemployed, and the petty criminals ... throw themselves into the struggle like stout working men. These classless idlers will by militant and decisive action discover the path that leads to nationhood ... The prostitutes too, and the maids who are paid two pounds a month, all who tum in circles between suicide and madness, will recover their balance, once more go forward, and march proudly in the great procession of the awakened nation'.2 Apparently, we are in the antipodes of anything resembling postmodernity. There is a strong revolutionary (anti-colonialist) appeal to a will supposed to be the absolute ground of the (new) nation; there is the postulation of a sharp frontier separating that nation from the colonial order; and there is the attempt at creating an absolute subject of the emancipatory project. And, however if we take a careful look at the discursive operations through which those effects are obtained, we immediately see that the worm of post-modernity is already silently eroding the certainties of classical modernity. For what we have in Fanon's text is the attempt at reading emancipation by other than the modern means. There is, firstly, the appeal to an absolute exteriority vis-a-vis the colonial order. He is not appealing to the internal contradictions of colonialist society (to people whose antagonism would result from the inside of that society) but to total outsiders, to people who are uncountable within the order of the city. This means that between 'insiders' and 'outsiders' there is no common measure. So we have a
I These issues are more thoroughly discussed in my forthcoming book, On Populist Reason, London, Verso, 2005.
The , Frantz Fanon, Wretched of rhe Earth, New York, 1968, p130
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difjerend in Lyotard's sense. This shows a sharp differentiation between Fanon's discourse and the 'modern' attempts at conceiving antagonisms as subsumable under the category of' contradiction', which proceeds through dialectical retrievals - ego through the contradiction between forces and relations of production. For the latter there is no radical 'outside' (A is opposed to B, only to be reabsorbed in a new stage, C, in which the antagonism between A and B reveals to have been only the prelude to a higher positivity superseding both). History is here a purely internal affair. So we are within the most classical parameters of the 'modern' project. The true 'outsiders' - the 'peoples without history' of Hegel, the lumpenproletariat of Marx, can be ignored as being purely external to the main line of historical development. For Fanon, on the contrary, to be a total outsider becomes the precondition for the emergence of a revolutionary subjectivity. This is the reason why the lumpenproletariat, unceremoniously brushed aside by Marx and Engels as agent of any possible radical change, becomes, for Fanon, the very axis of the revolutionary process. There are here two aspects worth underlining. The first concerns the very nature of the discursive operation in which Fanon is involved. In order to be a purely internal process, any succession of reversal and retrievals, if it is going to be truly dialectical, has to reduce the opposition between A and B to that between A and nonA, so that 1) the essence ofB is exhausted in its being non-A, and 2) there is in the essence of A everything needed to explain its transition to B as its necessary opposite. Now, in Fanon's argument the opposition colonialism! anticolonialsim has also the external form of a dialectical oppositionAinotA, but with this crucial difference: .that there are not the internal contradictions of the colonial order - the inside of the colonial order - which explain the emergence of the anti-colonial subjects, but the total exteriority of the latter vis-a-vis the former. That is the reason why Fanon has to appeal to total outsiders (hooligans, prostitutes, petty criminals), whose lack of any positive location within the community puts them in a position of total heterogeneity in relation to the latter. For these subj ects, being anti-colonialist is the alpha and omega of their social identity. Thus, this identity becomes fully political. At this point we find a first sense of heterogeneity which is resolutely post-modern: B is heterogeneous vis-i-visA, not because it is the dialectically (and so retrievable) opposite of A but because it is irrepresentable within A. Lacan's radically anti-Hegelian notion of the Real is, perhaps, the clearest
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expression of the logic of this irrepresentability. (Recent attempts to edulcorate the Lacanian notion of the Real by domesticating it through Hegelian dialectics entirely miss the point.) But these is a second aspect that we have to take into consideration. We have approached Fanon's discursive operation to Lyotard's differend. We cannot however do so without making clear that, in the case ofFanon, the radical character of the differend moves in directions which Lyotard would have never recognized as his own. For Lyotard, difJerends are sources of an irreducible plurality, while for Fanon the effect is exactly the opposite: that irreducibility is at the root of a sharp frontier separating the anti-colonial subjects from the colonial order. We are beyond modernity because there is no objective movement which reduces the two poles of the antagonism to a deeper homogeneous logic, but this does not lead to any simple separation between them but, on the contrary, to a close imbrication. This explains the meaning of our assertion, at the beginning of this essay, that the language games which it is possible to play out of the systematic de-grounding associated to the notion of 'post-modernity' are wider and more differentiated than what notions such as 'multiplicity' or 'dispersion' can capture. If there is something inherently post-modem is the displacement in the relation between homogeneity and heterogeneity, not the simple replacement of one by the other. And this displacement is perfectly compatible, as the example of Fanon shows, with the continuity of' great narratives' of a different type. Homogeneity can be achieved, even at the level of global narratives, out of an original heterogeneity. What has changed is that the homogeneous has ceased to be a ground and has become the horizon of a social construction. That is why the notion of 'break' does not adequately apprehend the type of mutation which is involved in this substitution of paradigms. This, however, explains as well why even the heterogeneization of the dialectical operation that Fanon performs cannot be the only game in town within the post-modem horizon. Fanon's rigid opposition can only maintain its sharpness as far as the relationship between the colonial order and the marginals located outside it is one of total exteriority. This, however, can only be achieved by exaggerating out of all proportion the degree of internal coherence of the colonial order. If such an order is, on the contrary, seen as criss-crossed by points of rupture and antagonisms of many types, an externality will emerge within that order, so that the anti-colonialist
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struggle will not be limited to the total marginals (to the lumpenproletariat in the sense given by Fanon to this term). But something more will also happen: the internal fissures of the colonial order will put into question its ability to bring about 'order' tout court. In that case the anti-colonial movement will not only have a confrontational but also a reconstructive dimension. If we incorporate these two additions - expansion of the points of antagonism to the interior of the communitarian space and inherence of the reconstructive dimension to any project of radical change - into the picture, a consequence clearly follows: there is going to be a constitutive contamination between the internal and the external, between the homogeneous and the heterogeneous. Heterogeneity is constitutive as far as it is not a natura naturata emerging out of a homogeneous natura naturans, but the primary terrain within which homogeneizing logics operate. And the latter do not proceed from a terrain different than that of the heterogeneous: as this terrain is essentially uneven, some of the heterogeneous elements will be able, at some point, to carry out hegemonic/ homogeneizing operations. So mereis no fixed frontier dominated by an entirely stable opposition between 'insiders' and 'outsiders', but a displacement of frontiers which constantly renegotiates the relations between internality and externality - a 'war of position' in the Gramscian sense. My 'post-modernity' - providing that we want to stick to the term - is grounded in the constitutive character of this undecidable contaminating game. It rejects both the notion of a homogeneous foundation and its symmetrical opposite: an uncontaminated heterogeneity. The perspective conceflling heterogeneity which we have just outlined has also important consequences for the way we approach the question of the discursive apprehension of collective identities. We can say that, while modernity privileged a predominantly conceptual grasping of the social, we are today moving towards an alternative vision, one that privileges the moment of singularity as that which resists universality and which, thus, cannot be captured by purely conceptual means. The reason for this is clear: conceptual thought moves itself within the terrain of the homogeneous, of that which reduces diversity to an underlying unity. It is important to realise that homogeneization, conceived in this way, is not incompatible with particularism: the only requirement is that the transition between particularities takes place through purely conceptual means, that is that particularities be conceived as part of a wider whole which explains and
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gives sense to all of them. The terrain of homogeneization presupposes, from this point of view, the presence of a unique field of representation. What is specific of essentialism is not uniformity but universal representability through conceptual means. This is the reason why 'singularity' means something entirely different from 'particularism'. Where does this difference lie? In the simple fact that, while the differences constituting particularities can still be conceptually represented as expressions of a universal ground, this does not happen in the case of a true heterogeneity. The heterogeneous demands constituting a chain of equivalences opposed to a repressive power do not spontaneously tend without a political construction - to coalesce with each other; they are not the expression of an aprioristic ground constituting and giving meaning to all of them. Here we have something crucially important: in the same way that true particularism is not incompatible with an essentialist grounding, true heterogeneity is not incompatible with some forms of political totalization. The only thing that the latter requires is that, being the heterogeneous constitutive and irreducible, such a totalization cannot function as a necessary ground. In other terms: the empty signifiers - to use our terminology which totalize and give hegemonic universality to an equivalential chain, cannot consist in a minimal formal content shared by all the links of that chain, a content which, although minimal, would still be conceptually representable. So if it entirely escapes the conceptual, in what does it consist? The answer is: in a name. The name as the ground of the thing, this is the precondition of a true singularity. It is here that contemporary thought has made considerable advances. Let us give one example. For analytic philosophy in its early stages, a name refers to a thing only through the conceptual mediation represented by the descriptive features associated to that name. This is the descriptivist approach to be found, in its most classical expression, in the work of Bertrand Russell. This approach has been decisively undermined in recent years by the antidescriptivist school led by Saul Kripke. Names do not refer to objects through conceptual mediation but constitute primal baptisms. So in naming we are dealing with true singularities. If we are, however, going to associate singularity and heterogeneity, one more step had to be taken, and it was actually taken by Lacan, for whom the unity of the object (of the primal baptism) is only the retroactive effect of the act of naming it. At this point singularity and heterogeneity come together: the name becomes the ground
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of the thing. The equivalential chain is still heterogeneous, but the act of unification is compatible with such a heterogeneity, because it is of a nominal and not of a conceptual nature. The essentialism of the discourse of modernity starts being left behind, but what replaces it is not mere dispersion and fragmentation, but a reconstitution ofcollective identities as singularities. And this singularity is not incompatible with a universalism of a hegemonic type, for which universality is not a ground but a horizon. This transition can be seen clearly reflected, among other traditions, in the history of Marxism. At the beginning, the discourse asserting homogeneity is overwhelmingly dominant. The simplification of social structure under capitalism would eliminate all heterogeneity, and the fmal act of history would be a simple showdown between the capitalist class and the proletariat. On top of that, the general laws of capitalism and the stages associated with them will be repeated in all essential respects in every society. Any singularity is reduced to the epiphenomenal expression of a process which, in all its essential determinations, is fully universal and conceptually apprehensible. The lowest ebb in this curb was the Marxism of the Second International and its two most characteristic thinkers: Kantsky and Plekhanov. Very soon, however, a series of dislocations within this model of historical change started tarnishing its neat outlines: the difficult articulation between workers' political and economic struggles; the evident fact that social structure under capitalism, far from becoming more homogeneous through proletarianization was becoming more heterogeneous and complex every day: and, especially, the phenomena association with combined and uneven development, which made possible all kinds of nonorthodox combinations between agents, stages and political tasks. This leads to consequences for which all our previous analysis has prepared us to understand: any kind of emancipatory subject, being the combination of a heterogeneity of antagonistic positions which no logic of history can explain, has to result from a political articulation and not from an aprioristic objective process preceding and explaining it. That is, that those subjects are singularities, in the sense that we have given to that term. That is why Gramsci gave such a central role to the category of 'hegemony' and spoke of 'collective wills' rather than 'classes' as objective locations. Both Mao and Togliatti called themselves 'communists'. Their obvious political differences, however, should be explained by the fact that the chains of equivalences that the signifier 'communist' tried to unify were entirely
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different in both cases. Thus, the signifier 'communist' does not express a common conceptual content underlying both projects, but functions instead as a name - ie. it constitutes a historical singularity. While the traditional notion of an 'international' - either socialist or communist - was still very much dominated by a 'modem' outlook, the actual history of socialism is nothing but the history of the breaking up of that postulated uniformity in which the various local parties were conceived as sections of a homogeneous international army. The irruption of this irreducible moment of heterogeneity follows point by point the transition from modernity to post-modernity as we have described it. Needless to say, the proliferation of points of rupture and antagonism in a globalized world, makes the heterogeneous nature of social actors even more visible, and also makes any kind of link existing between them increasingly dependent on political articulations. There is another dimension, however, which is important to incorporate into our analysis. Privileging the constitutive nature of heterogeneity and presenting homogeneizing logics as always operating within that primary heterogeneous terrain has led us to invert the traditional relations of priority between concept and name. The name is not the transparent medium through which the concept shows itself but, instead, any concept is only an abstract determination within the more fundamental homogeneization of the heterogeneous that the name brings about. This, however, presents a new problem: which, among the heterogeneous elements, is going to function as the name of the equivalential series? For if we said that it is transcendentally predetermined which this element is going to be, we would be reintroducing through the window what we had expelled through the door: the homogeneous would still be functioning as a ground. If the heterogeneous is really constitutive, the unifying operation carried out by naming can only proceed from the very interiority of the heterogeneous field. This is the point where psychoanalysis shows all its ontological potential. Let us consider the Freudian category of 'overdetermination'. In a process of condensation one element expresses a chain of associations with other elements which are absolutely heterogeneous between themselves. And there is no aprioristic determination of which this element is going to be, only a purely personal history determines it. So we are in the terrain of singularity and naming. In what does this process of (unconscious) privileging one element as the overdetenninedloverdetennining one consist? Freud's answer is clear: in the process of investment that he calls cathexis. But cathexis is something
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J I have discussed this matter in chapter 4 of my previously mentioned book. My discussion is largely inspired by Joan Copjec's book, Imagine
There s No Woman: Ethics and Sublimation, Cam-bridge, Mass, MIT Press, 2003.
4
J Copjec, op cit, p34
'Narcissism, Approach Obliquely', op cit, pp48-82
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belonging to the order of the affect. I will describe in a moment how this logic of cathexislinvestment operates. Before that, however, we should stress the important point that what we have just stated involves that affect is not derivative but constitutive. If the decision giving the overdetermining role to a particular element would be taken a priori, the affective dimension would be entirely derivative: it would not constitute the object but would be a secondary aspect accompanying something which had been fully constituted outside the cathectic investment. But if we assert that cathexis is constitutive, it necessarily determines the very identity of the object. So we have a second inversion of the priorities. The first was that between concept and name; now we have a second, displaying affect from the secondary position to which rationalistic essentialism had relegated it. Both inversions are, actually, dimensions of the same process through which heterogeneity becomes onto logically primary. The psychoanalytic exploration of effect leads us to the same blending of universalism and particularism that we had found in our discussion of the relationship homogeneity/heterogeneity. This can be seen at its most clear in the Lacanian conception of the object petit a. 3 As is well known, the aim of every drive is, for Freud, death, in the sense of a return to a mythical earlier state of inanimation or inertia conceived, by psychoanalysis, in terms of the primordial mother/child dyad. This, however, does not lead to destruction due to the fact, in Copjec's words: '( I) That there is no simple, complete drive, only partial drives, and thus no realizable will to destruction; and (2) the second paradox of the drive, which states that the drive inhibits, as part of its very activity, the achievement of its aim. Some inherent obstacle - the object of the drive - simultaneously brakes the drive and breaks it up, curbs it, thus preventing it from reaching its aim, and divides it into partial drives'.4 So a certain partial object is invested with the role of representing an impossible totality - impossible because it is no more than a retroactive assumption. In other of her essays5 Copjec relates the logic of the object a to that of the close-up in film: the latter is not a part which could simply be added to other parts, but a part which is the whole - ie. It functions as the name of the totality, in the sense in which we have used before the category of name. This point is crucial: not only is affect constitutive of the object - without which we would only have a mere dispersion of heterogeneous elements - but we also find that the homogeneizing role that affect plays operates through a very specific pattern: the investment of an
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object with the role of representing the totality. To put it in Lacan's terms: sublimation consists in elevating an object to the dignity of the Thing. It does not take long to realise that this is what, in political analysis, we have called hegemony: a relation by which a partiality becomes the name of a totality with which it is entirely incommensurable. So the privileging of naming and the relation object a;hegemony constitute two fundamental displacements in the transition from modernity (grounded in the transparency of the conceptual medium and in the fullness of being) to a certain post-modernity. For the latter, the failure of totality in its process of self-constitution does not open the way to mere multiplicity, but to a different way of articulating the particular and the universal - what we have called singularity - by which the totality is very much present as that which is absent, and only shows itself through partial objects which become its actual names. Various other displacements dominate the transition, that we are discussing, but there is one in particular that we should refer to: the elevation of Rhetoric, from the marginal and subordinated role that it occupied within the traditional classification of humanistic disciplines, to a constitutive role within the terrain of a general ontology. The condition for this displacement is the increasing recognition of what, in psychoanalytic terms, has been called the materiality of the signifier and the concomitant enlargement of the field ofoperation of the figural at the expense of the literal. Our discussion on naming already preannounces this displacement. Let us consider the matter carefully. Materiality of the signifier does not mean privileging the phonic over the conceptual substance, simply because linguistic analysis is concerned with form and not with substance. Materiality of the signifier means the interruption of the one to one relationship between signifier and signified and, as a result, the emergence of something which is constitutively unrepresentable within the process of signification. This can happen at various levels: through incompatible equivalential chains which exercise structural pressure on the same signifier and thus cuts its links with any precise signified; through contradictory associative chains operating at the level of what traditionally has been called the signified; through the unevenness of the investments that cathect the various links of the signifying chain, etc. In all cases materiality of the signifier means subversion of the symbolic by the real. Let us just consider the investment involved in the object a. Being the object 'elevated to the dignity of the Thing' and being the 'Thing' only a retrospective illusion, the investment cannot be considered
Heterogeneity and post-modernity
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as a 'normal' process of representation, in which the identities of both representative and represented have a direct form of expression. (Whether there is any process of representation which follows this transparent pattern is something we could doubt, but the discussion of this issue would take us too far away from the main topic of this essay.) The investment of the object a is one in which what is invested is a non-existing fullness, and so the object becomes the name of an absence. In that case, however, what we have is a figural meaning which occupies the place of a non-existing literality. This figural meaning is well known in classical rhetoric: it was called catachresis. Once we reach the conclusion that the logic of the object a - and, in politics, that of hegemony, which is identical- is not a marginal one but is the very condition of objectivity, we immediately see that the categories of a fundamental ontology have necessarily to be rhetorical. This contamination between rhetoric and ontology cannot, of course proceed without producing internal displacements within the categories which had traditional defined their respective terrains. From the point of view of ontology its 'rhetorization' necessarily puts into question any notion of a hard transcendentality - ie. any sharp division between the transcendental and the empirical. What we have said about heterogeneity and naming already makes this crystal clear. The necessary steps, in this change of perspective are, first, the enlargement of the notion of discourse to cover the whole field of objectivity - movement which is possible once linguistic formalism had broken the necessary links oflinguistics with the conceptual and phonic substances. The second is the' ontologization' of the linguistic categories - ie. their generalization as a pure relational logic. The third is the analysis of how the emergence of the unrepresentable within the field of representation alters the system of those relations. This is the point where, finally, ontology meets rhetoric, not as an external addition but as something required by the very logic of the ontological categories. Rhetoric, however, in order to be equal to the task, has also to change its internal structure. To give just one example: if the representation of the unrepresentable is constitutive of objectivity, catachresis cannot be one figure among others, but becomes synonymous with the very principle of rhetoricity. And many other displacements within the rhetorical field become equally necessary. I hope that my argument in this essay makes clear how I see the relationship between modernity and a possible post-modernity: not in terms
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of a break with the pat, but as an enlargement of the terrain within which that past operated. Very few - if any - of the categories of modernity have to be simply abandoned. The task as I see it today is not one of dismissal but of redefining fields of operation. Democracy as conceived within the modem outlook, for instance, should not be dismissed but seen as one among many other forms of democratic arrangement which we see today as possible within our globalized world. Several of the categories of modem metaphysics could be maintained, although their status should be redefined: they no longer function as grounds but as horizons. And, as should be clear, this essay is an argument against any radical opposition between universalism and particularism, although the forms of their combination that we are advocating clearly transcend the horizon of modernity. To put it briefly: a transition governed by displacements, not a sharp cut in which we would function as the gravediggers of modernity.
Paradigmes litteraires, paradigmes culturels et changements conceptuels: pour une approche fonctionna liste de la critique culturelle et litteraire contemporaine
Jean Bessiere Université Paris III-Sorbonne Nouvelle
I.
Les principaux paradigmes de l'analyse littéraire, tels qu'ils se sont constitués depuis une cinquantaine d'années, sont - on le sait largementd'origine européenne et d'une logique qui se définit de manière finalement homogène: ils supposent un pouvoir, que l'on dira souverain, de la littérature. Ces paradigmes ont été abondamment utilisés, réutilisés, transférés, altérés, sans qu'ils soient explicitement défaits. Cette alliance d'une manière d'identité constante et de changement doit se lire comme un repositionnement explicite de ces concepts. Ce repositionnement doit être, lui-même caractérisé doublement, suivant que l'on considère ce que l'on nommera, d'une part, les paradigmes proprement littéraires - ceux qui tendent à une caractérisation de la littérature -, et, d'autre, les paradigmes critiques ceux qui prêtent une fonction critique à la littérature et qui sont très largement d'inspiration marxiste, néo-marxiste, sans que soient négligés les arrièreplans que fournissent à cette critique la déconstruction et la psychanalyse. Cette double caractérisation du positionnement n'est pas dissociable de ce qui doit apparaître comme un paradoxe: sont de l'identité la plus constante
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les paradigmes à fonction critique; sont de l'identité la moins constante les paradigmes qui tendent à une caractérisation de la littérature. On peut lire là une contradiction interne à l'analyse littéraire. Lire une contradiction ferait donc voir les manières dont nous approchons les œuvres et leurs contextes comme disposées suivant des logiques antinomiques: la fonction critique de la littérature, quels que soient les contextes de la littérature, serait définissable de façon relativement stable; l'objet littéraire serait lui-même largement variable - ce qui est certainement vérifié - et commanderait d'abandonner des caractérisations trop uniformes de la littérature. Il faut reconnaître qu'il est possible de lire simultanément ces deux logiques, de les tenir pour opératoires et de les dire opposées. L'argument qui se conclurait alors, serait le suivant: il ne faut pas dire la littérature, mais les littératures qui sont toutes spécifiques; il faut encore dire que les littérature, dans leurs diverses spécificités, sont rapportables à la même fonction critique qu'il convient de définir, très globalement, comme celle d'une levée de l'aliénation. Une telle lecture ne fournit pas cependant les derniers mots, les dernières interprétations de cette dualité qui vient d'être définie: d'une part, une perspective, au total, relativiste sur la caractérisation de la littérature; d'autre part, une perspective universaliste sur la fonction critique de la littérature. Cette dualité doit se lire très exactement. La fonction critique de la littérature est, par ses paradigmes qui sont d'origine européenneil faut répéter le marxisme, le néo-marxisme, le freudisme, la déconstruction - , d'une allure propre européocentriste, quels que soient les lieux les plus extérieurs à l'Europe et à ses extenssions où elle est reconnue. En d'autres termes, l'identification du relativisme culturel ne va sans le retour à un universalisme qui le contredit, quels que soient, par ailleurs, les propriétés ciriques spécifiques prêtées à la littérature dans telle ou telle culture. Il est une manière de passer cette dualité. S'il doit être dit à la fois une perspective relativiste sur les littératures et une fonction criitique constante qui ne soit pas cependant rapportable aux thèses eurocentristes usuelles, il suffit de noter à ce point de manière brève et avant que cela ne soit plus explicitement développé: la littérature a pour fonction constante de figurer les institutions linguistiques et sociales de la réalité et d'inverser eette figuration, autrement dit, d'assurer une manière d'ouverture symbolique - les symboles et représentations sociales, qui sont constitués par les institutions linguistiques
Paradigmes litteraires, paradigmes culturels et changements conceptuels
Sur ce point, nous renvoyons à notre ouvrage, Principes de la théorie littéraire, Paris, PUF, 2005. 1
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et sociales de la réalité, sont comme défaites lors même qu'elles sont identifiées et figurées. 1
II.
n est une façon unique de lire cette dualité des paradigmes de l'analyse littéraire contemporaine: noter que les paradoxes propres que portent les constats du relativisme lorsque celui-ci est lu à partir de la fonction critique prêtée à la littérature, à partir de la caractérisation de la littérature, ne sont pas dissociables des débats également contemporains sur les rapports entre littérature et cultures (au pluriel), littérature et multiculturalisme Le constat du multiculturalisme, compris à la fois comme caractéristique d'une société, d'un Etat spécifiques et comme caractéristique du monde contemporaince monde est un monde de migrations - équivaut à la récusation de toute caractérisation unitaire des littératures. Cette récusation laisse entière la question de l'apparentement des littératures - la question de la manière d'universalité qu'elles font hors de tout notation d'un universalisme. Faire jouer ensemble les divers changements des divers types de paradigmes d'analyse littéraire revient donc à traiter, dans un cadre littéraire, des implications contradictoires des débats qui engagent la reconnaissance du multiculturalisme. On dira les implications contradictoires d'abord au regard de la caractérisation de la fonction critique, puis au regard de la caractérisation de la littérature.
Fonction critique de la littérature. On sait que la fonction critique prêtée à la littérature, est indissociable de la reconnaissance des circonstances, des identités et des buts spécifiques à chaque littérature - il faut ajouter: même à chaque œuvre. Parce que cette fonction est définie Pour une caractérisation de cette notion et pour une définition du paradoxe deI' impérialisme des nations européennes, voir Reinhart Koselleck, L'Expérience de l 'histoire, Paris, GallimardSeuilm 1997. 2
suivant un héritage européen, elle implique cela même qui est la condition de la critique: l'hypothèse du surc1assement des vaincus, 2 elle-même inséparable d'une vision progressiste et universaliste de l'histoire, qui est, on le sait, une vision proprement européenne. En d'autres termes, la reconnaissance et l'affirmation du multiculturalisme, aussi spécifiques qu'elles se veuillent, aussi assertoriques qu'elles soient en termes des identités culturelles et des expressions littéraires qui sont liées à ces identités, impliquent l'universel, qui n'est que d'une formulation européenne. La paradigmes critiques qui soutiennent le multiculturtalisme - celui-même où la critique de l'eurocentrisme trouve sa raison d'être - sont européens. Cela se résume en quelques illustrations tout à fait contemporaines.
Edouard Glissant et la pensée de la créolité. Cette pensée est à la fois
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une pensée de la disparité et de l'universalité, qui suppose le multiculturalisme ainsi que le dit la référence au créole. Elle n'est pas dissociable d'antécédents marxistes et existentialistes lisibles dans la Poétique de la relation. Elle est aussi une revendication identitaire. Elle peut se lire, sans qu'elle renie explicitement ses propres sources, comme une réponse aux impasses historiques d'une politique d'inspiration marxiste et communiste dans les Antilles françaises. Edward Said et l'orientalisme. Le pouvoir aliénant de la pensée européenne est dit particulièrement à propos de l'Orient et de la constitution de l'orientalisme. Toute pensée de soi, de l'identité, de l'autre et du multiculturalisme n'est possible qu'une fois levée une telle aliénation. C'est là retrouver les thèses usuelles de l'aliénation, de la fausse représeentation, venues du marxisme et de la psychanalyse. C'est aussi ignorer, comme l'a dit Juan Goytosolo à Edward Said, que l'orientalisme de l'Europe est antérieur à la colonisation européenne de l'Orient et qu'il doit beaucoup à un métissage, celui du monde islamique et du monde espagnol en Andalousie. 3 Gay tari Chakravorty Spivak et la pensée du "postcolonial."4 La généalogie européenne d'une pensée du multiculturalisme et de la libération est ici explicite. On commence par lire le racisme, le refus des indigènes - Kant -, la caractérisation de l'autre de l'Europe comme une déviation - Hegel - et les débuts du rétablssement d'un droit de l'autre, indigène - Marx -, dans la pensée occidentale. Cette reconnaissance, bien qu'elle soit explicite, n'est pas exempte d'une ambiguïté que Gaytari Chakravorty Spivak identifie rapiidement dans la préface de son ouvrage: elle espère avoir traité du "postcolonial" d'une manière qui ne soit pas américaine, européenne, "métropolitaine". La remarque peut, dans ce cas, se reformuler: est-il possible d'écrire un tel "postcolonialisme"? La réponse doit être, dans ce cas, négative: quelles que soient les circonstances proprement historiques de la démonstration, des études de cas, il est remarquable que le personnage de l'informateur ("informant"), exemple même de la médiation qui engage le métissage, soit finalement caractérisé en termes marxistes. Il ne s'agit pas ici de récuser la pertinence de ces arguments au regard des objets qu'ils se donnent ou leur hOllnêté. Ils devraient être, de fait, définis comme des exposés d'une pragmatique de l'altérité, rapportée à des contextes historiques. Il s'agit plus essentiellement de marquer: la pensée critique, qui se veut une pensée de la libération et du multiculturalisme, n'est qu'improprement une pensée du lieu qu'elle étudie, ainsi qu'elle est
3 A la suite de quoi, Edward Said rédige pour la traduction espagnole d'Orientalism une préface où il reprend l'argument de Juan Goytosolo.
4 Voir Gay tari Chakravorty Spivak, A Critique of Postcolonial Reason. Toward a History of the Vanishing Present, Cambridge, Harvard University Press, 1999.
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Voir sur ce point JeanLoup Amselle, Vers un ?/ulticultralisme français. L 'empire et la coutume, Paris, Champs, Flammariom, 2001 (première édition 1996), p. 69 et suiv.
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improprement une pensée du multiculturalisme: elle reste la pensée de l'application de certains paradigmes européens. Elle est plutôt, en conséquence, la pensée qui entend être une pensée de l'autre, qui peut être une pensée de soi, comme l'illustrent ces trois auteurs, et qui reste cependant une pensée unilatérale, celle de l'eurocentrisme, bien qu'elle entende présenter l'autre côté de cette pensée. Le rapport à l'autre et à soi-même, qu'implique le multiculturalisme, devient l'occasion d'une pensée de survol - cette pensée de toute singularité selon des paradigmes reçus, autrement dit, une pensée de l'autorité et de la maîtrise. Cette pensée traduit moins une approche du multiculturalisme qu'elle n'indique que ces auteurs sont eux-mêmes des exemples parfaits d'acculturation à la pensée européenne, des exemples de multiculturalisme, qui ne fournissent pas cependant des analyses et des caractérisations du multiculturalisme pour lui-même. Ces notations peuvent se reformuler en termes plus généraux: la pensée du multiculturalisme ne se comprend que par référence au concept d'aliénation. L'explicite transfert de la notion d'aliénation à celle de multiculturalisme traduit, de fait, un affaiblissement de la première notion et de la difficulté à la penser et à l'appliquer seule dans un contexte où la notion de classe n'est pas constituée ou a perdu de sa pertinence et où les représentations collectives, celles que telle communauté forme d'elle-même, celles d'ellemême qu'elle reçoit du dehors, sont alors des jeux de miroirs qui exarcerbent l'affirmation identitaire et la question du multiculturalisme. 5 Il faudrait lire dans cette perspective la littérature antillaise de la créolité et particulièrement Glissant et Chamoiseau : l'universalisme du métissage, ici affirmé et illustré par des fictions, est celui d'une représentation du multiculturalisme qui, par l'universalité - fictionnelle - qu'elle se reconnaît, est une réponse comme en double, comme en miroir, aux représentations tenues pour dominantes. Double, en miroir, cela fait explicitement entendre que la critique est de la même identité sémantique que ce qu'elle critique. Littératures et points de vue relativistes. L'hypothèse même d'une fonction critique de la littérature, qui soit différenciée suivant les littératures, commande de défaire tout point de vue universaliste sur les littératures. Il faut répéter le paradoxe qui a été dit: l'implicite universaliste qui caractérise la fonction critique, commande d'accentuer les différences des littératures. C'est aujourd'hui un lieu commun en littérature comparée que de condamner les origines européennes de cette discipline et sa manière, en conséquence européenne, de définir les différences des littératures. Cela peut se formuler
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plus directement suivant un argument qui est également abondamment utilisé: il n'est pas légitime de généraliser une conception des belles lettres, qui est historique et, en termes culturels et géographiques, limitée. Cela équivaut à récuser tout un pan de la théorie littéraire - celle qu'a illustrée René Wellek. Il subsiste cependant un paradoxe: l'affirmation des différences des littératures n'est pas dissociable de l'usage du concept même de littérature - il faut donc écrire le terme au singulier- et d'un constat incontestable: les littératures ou, à tout le moins, certains de leurs témoins, sont composables. Cela explique la généralisation de la notion de texte; cela explique encore que le récit puisse être, de manière indifférenciée, typologiquement identifié dans toutes sortes de récits. Autrement dit, la notation des littératures n'est pas dissociable d'une pensée de la littérature, qui a certainement un caractère universaliste. Cet universalisme est plus implicite qu'explicite. Il ne prend plus les traits manifestes que présentait l'universalisme de la pensée de la littérature, qu'a proposé le romantisme allemand, ou qu'a développé le symbolisme avec l'alliance d'une pensée de la négation et de l'œuvre, ou qu'ont caractérisé les diverses esthétiques réalistes - il y a avait là l'identification de l'universalisme à la reconnaissance du réel, de tout réel, que permettaient les œuvres. Cet universalisme a une source qui se lit dans le jeu même du transfert des notions littéraires issues de théories qu'il faut donc encore dire européennes. Ces théories, qui sont elles-mêmes fort mêlées par leurs origines, par leurs thèses - elles sont liées à la philosophie, aux sciences humaines et sociales, à la linguistique -, ont une condition commune: la littérature est le lieu exemplaire d'un exercice de réflexivitécelui qui s'applique au langage, aux discours, symboles et représentations sociaux et culturels, aux figurations du temps. Les littératures sont reconnues comme composables et comme continues malgré leurs différences et leurs diverses identifications culturelles, dans la seule mesure où elles sont des singularisations de pratiques linguistiques, discursives, représentationnelles, symboliques, et où, par ces singularisations, elles engagent précisément un jeu réflexif. Il serait aisé de montrer que toutes les variantes des corpus contemporains de la théorie littéraire - quel que soit le lieu de cette théorie - caractérisent d'abord les objets littéraires suivant cet exercice de réflexivité. Quelles que soient les limites qui sont mises à la pertinence de tels concepts ou de telles notions, communes en théorie littéraire, la reconnaissance constante aujourd'hui des littératures est indissociable de ce qui justifie la fonction critique de la littérature: celle-ci est un moyen de la
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prise de conscience de ce que sont les pratiques linguistiques, discursives, représentationnelles, syboliques, les figurations du temps. Par quoi, toute œuvre est reconnue comme un exercice d'expression, même si elle ne privilégie pas explicitement l'expression du sujet, et de conscience - cela même qu'implique la réflexivité de la littérature. Même les thèses les plus extrêmes sur les différences des littératures - ces thèses qui lisent la singularisation que les œuvres font des discours, représentations et symboles sociaux et des figurations du temps, comme définitoires de telle littératurene peuvent se défaire de cet implicite. Cela s'illustre aisément. Ces thèses extrêmes tentent de lier singularité et identité, singularisation et origine - en effet, tout rappel d'une identité est rappel d'une origine. Autrement dit, elles essaient d'unir singularité et identification d'une source collective et inaltérable de la singularité. Les thèses relatives aux "travelling literatures", aux "travelling cultures" sont prises dans cette contradiction. Celle-ci s'interprète simplement: elle est possible seulement parce qu'on ignore que le jeu de la singularité et de l'origine est un jeu réflexif sur l'origine - la relativisation même de l'origine et le passage au-delà de l'origine. L'affirmation de la différence selon l'identité est, en littérature, elle-même contradictoire. Elle est, de plus, faut-il ajouter en répétant ce qu'implique ce jeu réflexif, la reconnaissance d'une caractérisation universalitse de la littérature.
III. Il est une manière de reliire les paradoxes qui viennent d'être ditscelui d'une caractérisation du multuculturalisme et des différences culturelles, qui reste entièrement dépendant d'une pensée européenne et particulièrement de la raison ethnologique que cette pensée a exposée; celui d'une caractérisation de la différence des littératures, qui n'est pas dissociable du jeu réflexif de la littérature et de son universalité. Cettte manière consiste, dans le premier cas, à récuser l'universalisme impliqué par la pensée du multiculturalisme en définissant l'universalité spécifique que porte la réalité du multiculturalisme. Cette manière consiste, dans le second cas, à examiner comment le jeu réflexif de la littérature commande une récusation de l'origine et comment il est, par là, l'indication d'une universalité possible - il faut dire universalité possible puisque, par le jeu de la réflexivité, l'œuvre est le passage même des identités qu'elle reconnaît. Il y a, bien évidemment, un lien entre ces deux relectures, un lien selon un chiasme. La première relecture indique: l'universalité que portent
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la différence culturelle et le multiculturalisme, est par la visée d'universalité qu'implique toute différence culturelle - traité dans une perspective strictement ethnologique. La seconde relecture indique: la littérature qui est expression de la différence est récusation de la reconnaissance de la différence pour elle-même. Une pensée de l'universalité, quelle qu'en soient les modalités, échappent alors aux paradigmes européens, que ce soient ceux de la pensée critique, que ce soient de la théorie littéraire. Elle est une pensée de l'universalité selon les différences culturelles et littéraires mêmes. En d'autres termes, on se défait des paradigmes européens, ceux qui fondent la perspective culturelle critique, sans perdre cette fonction critique, si on reconnaît dans ces paradigmes seulement des paradigmes d'interprétation parmi d'autres, qui conduisent, pour chacun d'entre eux, à des interprétations homogènes. En d'auutres termes encore, on rend pleinement fonctionnelle paradoxe de littératures spécifiques qui peuvent être lues de manière continue, si on reconnaît dans les littératures, dans leurs différences, ce qui permet de lire les réorganisations des cadres de telles cultures et les changements des référents de ces cadres lorsque ceuxci apparaissent stables, c'est-à-dire la figuration universelle de la levée de la détermination culturelle. Passer les paradigmes critiques européens. Ces paradigmes sont passées si on s'attache à la lettre des travaux des anthropologues qui s'intéressent explicitement à la notion de multiculturalisme et à sa réalité. La notion de multiculturalisme ne peut être comprise que selon une rupture avec les antécédents de la raison ethnologique ou culturelle, fût-ce celle dont se réclame la pensée critique6 - faute de cette rupture, on reste dans l'ambivalence et la pensée de survol qui a été décrite. La réalité du multiculturalisme ne peut être comprise que selon la production de différences - par rapport aux cultures et aux identités impliquées - dans un contexte historique précis, et selon les effets d'universalisation différenciée que porte cette différence.? Par la notation d'une universalisation différenciée, on ne revient pas au doublet de l'universalisme et du relativisme, de l'universalité et de tels traits culturels, identitaires, qui, considérés en eux-mêmes, sont contingents. A l'inverse, on indique, d'une part, que, dans le cadre du mutliculturalisme, la notation de la différence traduit une visée d'universalisation parce qu'elle est le résultat de données culturelles distinctes qui peuvent porter leurs propres visées d'universalité, et, d'autre part, que cette universalisation est différenciée parce qu'elle est précisément distincte
Pour ce type de récusation, voir Jean-Loup Amselle, Logiques métisses, Paris, Payot, 1996 (première édition, 1990).
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7 Voir Jean-François Bayart. L'Illusion identitaire, Paris. Fayard, 1996, p. 247.
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Nous renvoyons à nouveau sur ce point à Principes de la théorie littéraire.
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de toute universalisation disponible. Parce qu'il est composite, le multiculturalisme est l'invention d'une universalité possible, qui passe les identités et les pensées reçues de l'universalité il est en lui-même critique de ses propres composantes - il n'appelle ni de lui-même, ni nécessaireement le recours aux paradigmes européens d'une pensée critique pour que soit caractérisée cette invention d'une universalité possible. Ces notations conduisent à un paradoxe: on peut poursuivre avec les paradigmes de la raison ethnologique et de l'aliénation à la condition de penser contre les arguments qui se sont développés à partir de la pensée européenne, de ses paradigmes, fussent ceux de la pensée critique. Ainsi, de l'ethnologie, il se conclut à la nécessaire implication de l'autre dans toute construction identitaire et dans toute organisation symbolique. Ainsi, de la psychanalyse, particulièrement dans ses versions ethnographiques, il se conclut à la spécificité des constructions symboliques dans la précise mesure où elles ne se comprennent que selon des contacts avec l'autre, avec tout autre. Ainsi, du marxisme, il se conclut à la fois à un j eu de détermination sociale suivant les inégalités et les déclassements, indissociables de la rencontre et de l'association et des conflits de groupes, et à la dynamique de surclassement alors à l'œuvre et qui participe de la composition d'identités. Caractériser la propriété dujeu réflexif des littératures. 8 Si, donc, toute œuvre est reprise des discours, représentations et symboles culturels et sociaux disponibles, ainsi que des figurations du temps, elle est simultanément leur présentation et leur relativisation suivant l' autopoïesis qui caractérise précisément toute œuvre sans que celle-ci soit nécessairement identifiable à ce que la critique contemporaine a caractérisé comme l'autoréflexivité formelle. En d'autres termes, d'une part, l'œuvre traite ces discours, représentations, symboles et figurations comme des données qui font l'institution linguistique et sociale de la réalité; d'autre part, cette même œuvre, sans qu'on puisse la dire extérieure culturelleement à ces données, les soumet à son propre jeu réflexif. Par là, elle les présente comme privée d'un pouvoir de détemination et en évalue la pertinence plus exactement, elle fait de la question de leur pertinence sa propre question. Il faut là comprendre: l'œuvre est une interrogation sur la validité des représentations collectives. Cette interrogation peut être explicite - c'est cela que fait la littérature qui se veut expressément critique. Cette interrogation peut être implicite - par cet implicite, elle est de toute œuvre. Dans tous les cas, l'œuvre expose une relativisation des représentations sociales et
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culturelles, sans nécessairement proposer des contre-représentations. Par cette relativisation, elle est la figuration d'un point de vue autre qui n'est pas nécessairement exprimé, mais qui implique cela: le discours de l'œuvre est reportable sur d'autres représentations - il est, par là, en lui-même, l'indication d'une visée d'universalité, qui se confond entièrement avec cette œuvre. L'œuvre n'est pas tant une interprétation des discours, représentations, symboles sociaux et culturels et des interprétations qu'ils constituent de tels environnements, que l'interrogation des cadres cognitifs qu'ils constituent, et, en conséquence, l'invitation à d'autres partages collectifs de ces discours, représentations et symboles. L'œuvre est ainsi, par son jeu réflexif, lors même qu'elle n'est pas extérieure à sa propre culture, le moyen d'une métareprésentation - cela qui permet de nous représenter les croyances et les attitudes des autres quand elles diffèrent des nôtres. 9 Elle est l'indication de l'extériorité de sa propre culture, fût-elle une culture composite, multiculturelle. Cela fait la transmissibilité et la recevabilité de l'œuvre en tout contexte. Cela explique les différences des littératures et leur continuité. Une œuvre qui expose l'hétérogénéité culturelle doit être, dans ces conditions, lue comme une allégorisation de ce qui est la propriété de toute œuvre - ainsi, Salman Rushdie peut être vu comme un praticien exemplaire de cette allégorisation.
9 Sur la notion de métareprésentation, voir Dan Sperber, La Contagion des idées, Paris, Odile Jacob, 1996.
IV. Cette recaractérisation de la critique culturelle à partir de la propriété de la seule différence culturelle et cette redéfinition de la fonction de la littérature à partir de sa réflexivité permettent, d'une part, de reconsidérer l'usage de paradigmes européens dans la critique culturelle et dans la critique littéraire et, d'autre part, de préciser encore la propriété de la différence culturelle et littéraire face à cet usage. L'interaction des cultures, aujourd'hui, peut être tenue pour la justification de l'usage de paradigmes européens: cette interaction est entièrement dépendante de l'hégémonie idéologique moderne, qui est, pour l'essentiel une idéologie occidentale, de ses diverses traductions - sociale (Etat-nation), morale (droits de l'homme), opératoire (rationalité instrumentale) ou économique (capitalisme, libre-échange) -, et du trait caractéristique des cultures et de la pensée occidentales - être une culture historique concrète et un moment universel qui se nie comme particulier au nom, note Louis Dumont, de l'existence naturelle de l'individu comme valeur. 10
la
Voir
Louis
Dumont,
L'Idéologie allemande (Homo aequalis II) France-Allemage et retour,
Paris, Gallimard, 1991.
Paradigmes litteraires, paradigmes culturels et changements conceptuels
11 Cette remarque renvoie encore à Louis Dumont.
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Cet usage ne doit pas cependant dispenser de l'analyse précise du multiculturalisme, de l'hybridité, qui consistent en un mélange de modes d'être nouveaux et anciens et qui est, au total, la production d'une différence universalisante. La portée de cette dernière expression peut être précisée. la différence ne peut se penser pour elle-même, mais seulement à un rang intermédiaire entre l'égalité universelle et les particularités factuelles. Il La question de l'interaction culturelle et du multiculturalisme est celle-même de cette contradiction. Cette contradiction n'est pas dissociable du fait que, dans l'interaction, les cultures se mettent en jeu, et que la différence culturelle est, d'une part, une différence insituable ou situable seulement à ce niveau intermédiaire et, d'autre part, une différence qui est selon l'égalité universelle. Autrement dit, la différence culturelle et le multiculturalisme sont, en euxmêmes, par eux-mêmes, hors d'une référence à la pensée critique occidentale, les illustrations d'un particulier qui se nie au nom de l'existence de chaque culture comme valeur. La caractérisation fonctionnelle de la littérature selon son jeu réflexif est entièrement congruente avec cette approche du multiculturalisme et de la différence. Il faudrait lire Edouard Glissant, Edward Saïd, Gaytari Chakravorty Spivak, suivant cette dualité, suivant les faits du multiculturalisme et de la différence, qui sont donc un fait fort commun. Cette remarque vaut pour toute œuvre, pour toute littérature, qui sont issues de contacts culturels et qui portent inévitablement, de façon implicite ou de façon explicite, la même dualité. La perspective propre de telle œuvre, de telle littérature, se comprend alors suivant la plus ou moins nette mise en relief de la différence universalisante et suivant la plus ou moins nette reprise, selon cette différence, des données culturelles, sociales, historiques, en jeu. Ces diverses accentuations sont elles-mêmes traduisibles suivant diverses contradictions. On dira ainsi la contradiction d'Edouard Glissant: affirmer la créolité est explicitement disposer la différence universalisante; la donner pour explicitement universelle revient à la contredire en affirmant le principe de l'égalité universelle des individus qui n'implique pas, de lui-même, en luimême, l'interculturel. On dira ainsi l'effort de Salman Rushdie: noter l'interculturalisme historique de l'Inde, récuser le résultat contemporain de cet interculturalisme -l'acculturation de la modernité, qui a donné le "néohindouisme" - et figurer - on est alors dans l'ordre du pur symbolique - un interculturalisme universalisant. Il faut dire chaque fois la reconnaissance de la propriété universalisante de la différence et le jeu littéraire de la métareprésentation.
As veredas crípticas do Grande Sertão: Veredas
Josenia Marisa Chisini UFMS - Campo Grande-MS
Os sinais de interdição interpretativa anunciam-se na abertura in abrupto do Grande sertão: veredas, na solicitação de um personagem virtual, que se instalará na função de um suposto "senhor", o ouvinte. Os movimentos de interlocução simulada despertam no leitor os sentidos audíveis dos densos ecos provocados pelos estampidos de tiros, quando a percepção sonora dá início ao espetáculo narrativo, indicando o tom épico e belicoso da monumental epopéia roseana. De maneira ampliada os relatos preparam o senhor/ouvinte a deambular pelos acontecimentos que serão expostos, no decorrer da progressão do enredo, insinuando-se às configurações das simbologias deformadoras expressas numa amostra ficcional antecipadora. Intensas descrições colocam-se às informações exibidas em trechos curtos, recortes de discursos que agregam histórias, pontuam temas que prosperarão na moderna epopéia. Na narrativa das primeiras quarenta páginas do Grande sertão: veredas apresentam-se os enigmas ficcionais, os jlashbacks dispostos aos detalhes arranjados de maneira sincopada; rotas que impulsionarão o leitor a peregrinar pelas regiões crípticas do inconsciente e dos infernos. A subjetividade vivencial do narrador guarda as lembranças de inúmeros personagens envolvidos em circunstâncias trágicas, dramáticas e líricas, num conjunto pontual de representações e peripécias romanescas.
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o convite à leitura épica é um ousado atrativo que conta com a cenografia do imenso sertão, sendo o lugar da encenação entrecortado pela profusão de cenários topográficos, recebendo o eco das vozes alheias imersas nos contextos discursivos das múltiplas linguagens do jaguncismo. Filosofia, religiosidade e mitologia unem-se à rede labiríntica dos pensamentos de Riobaldo, que tenta filtrar e destilar teorias, crendices e saberes populares depositados no imaginário das veredas literárias. É dentre essa peregrinação cifrada de códigos desconhecidos que a extensa pesquisa de Francis Utéza, I em A metafísica do grande sertão propicia um suporte de consultas, para que possamos penetrar na tessitura de demandas do narrador/ personagem. A trajetória de Riobaldo realça a atividade perscrutadora numa infatigável curiosidade que tenta desocultar aquilo que se esconde no processo de sondagens emotivas conservadas pela memória. Circunstâncias constituídas de casos e estórias são os artificios diegéticotestemunhais que se agregam à narrativa recriadora, interagindo por meio das imagens tridimensionais, disposições plásticas angulares que conduzem as leituras das três representações emblemáticas de Riobaldo. Assim, estão incorporados os papéis, as vozes e as sensações simbólicas distribuídas pelas significâncias dos codinomes do narrador/personagem/testemunha, expondo-se nos contextos de Tatarana e Urutú Branco. As paronomasias de ordem semântica conferem-se à propagação do exercício iniciático, crivado de mistérios e sinestesias que recobrem uma sabedoria que se oculta na linguagem. A densa epopéia requer do interpretador da obra roseana uma convivência de dimensões intersticiais, porque nela constituem-se urna inquietante e agônica travessia recontada num arrojo vocabular surpreendente, recolhas de falas que vivificam a tradição popular misturada às linguagens eruditas e aos saberes seculares que, no contato regional, hibridizaram valores e documentações transculturais ocorridas no sertão brasileiro. Captar a origem invisível das coisas e do alongamento cósmico são reflexões que se aderem às evocações e às reações sincréticas do brasonamento diabólico. É com esse interesse que se desenvolve a obstinada narrativa de Riobaldo, revivendo a sua experiência de jagunço num mergulho abissal de análises, recordações e levantamentos hipotéticos que se aderem ao mundo fisico, à natureza, aos contornos dos objetos e das emoções -, uma materialidade de inspiração psíquico / espiritual que transcende, e por isso, resulta na metafisica das sensações, que explora os embates duvidosos, os
I São relevantes e contributivas as pesquisas sobre o Grande sertão: veredas, na obra de Francis Utéza, Metafisica do grande sertão, São Paulo, Edusp, 1994. Este extenso trabalho contém um suporte pontual sobre a inserção mítica, os emblemas. as simbologias religiosas e filosóficas, demonstrando as influências das culturas Ocidentais e Orientais na obra de João Guimarães Rosa.
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quais podemos apreciá-los nestas falas de Riobaldo: "Viver é muito perigoso ( ... ) as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas. Verdade maior- É o que a vida me ensinou" (1980: 16,20,21). Ao se deslindar os elos das influências religiosas que se introjetaram no pensamento de Riobaldo, percebe-se uma rede cultural de fios judaicocristãos que se entrelaçam às crendices, doutrinas e princípios xamânicos recolhidos das travessias feitas pelos sertões. Os efeitos dessa visão conjuntiva demonstram a mestria de um modelo de narrador de casos, que compartilha a sua memória com a recolha de testemunhos, religiosidades impregnadas ao Espiritismo, à Igreja Metodista e ao Catolicismo. Arepercussão de teor ecumênico expõe-se pelos depoimentos de Riobaldo, autorizando-se às marcas de um sujeito letrado, que aprecia os eventos sagrados e a legitimação da moral, conforme os trechos que seguem:
Joào Guimaràes Rosa, Grande sertão: veredas, 14 ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1980, p. 14, 15, 35, 47. 2
Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática ( ..) Em tanto, ponho primazia é na leitura proveitosa vida de santo, virtudes e exemplo ( ..) Eu gosto muito de Moral. ( ..) Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. ( ..) Mas é só muito provisório. ( ..) Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele... ( ..) As vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. 2 Nos fragmentos destas falas, Riobaldo relembra o seu mestre de letras e inclui-se à pertença da religião católica; respeita o kardecismo do compadre Quelemém; reconhece a Igreja Metodista e posiciona-se ao lado de Matias, para ler a Bíblia e cantar os hinos de louvor. Por outro lado, critica a superstição e sugere que o povo procure um lugar apropriado, no meio dos gerais, para que se possa numa espécie de retiro, viver "em altas rezas". Nesse sentido, Riobaldo interpreta a vida sendo um viver "meio provisório", já que o contrário é a vida de Deus, sendo perene e definitiva. Em contraposição, a vivência do demo é instável, porque penetra pelas vias da superstição, que é pequena e limitada.
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o desenrolar da narrativa do Grande sertão: veredas desafia o trabalho interpretativo, resultando a surpreendente textualidade composta pelas inúmeras leituras e decodificações, cujo exemplo inaugural apresenta-se na primeira palavra inscrita no romance: "Nonada". Este sinal instigante é um alerta, pois possibilita a introjeção de um silêncio que se intercala ao vazio interpretativo, posto pelo limiar de urna travessia. A intervalar suspensão discursiva provoca o desejo de instalar o processo das transmutações existenciais, colhidas pelas experiências psíquicas, espirituais e materiais, assinaladas pelo próprio apelo do narrador, ao conclamar: "Deus esteja". Esta saudação religiosa solicita a proteção divina para que o narrador possa dar prosseguimento à ação desocultadora dos elementos que se encontram interditados. Nesse contexto, o herói épico conduzirá o "senhor", o leitor peregrino a se confrontar com a ignorância, com os inúmeros saberes e com os estados provisórios instalados pela própria dúvida existencial. A passagem ritualística parece ter sido absorvida do "Salmo" bíblico de número 101, quando neste presentifica-se a oração de um ser aflito: "Senhor, ouve a minha oração, I e chegue a ti o meu clamor" (Bíblia. Apud, "Salmos", 101,2). Ao iniciar a diegesis de demandas épicas, trágicas e dramáticas, Riobaldo convoca a presença de Deus e com esse interesse cristão a inspiração literária de Guimarães Rosa substitui a musa Calíope, a protetora da poesia lírica e épica da tradição grega pela invocação: "Deus esteja" (1980: 9). A metáfora do Pai celestial hibridiza-se aos vaticínios oraculares que ensejam um ritual de cunho exorcista, mediante o esconjuro do mal e do demônio, isto, antes de dar início ao desenrolar dos acontecimentos romanescos. Percebemos na invocação de "Deus esteja", a oração judaica do Shemá, que fica sugerida no discurso literário, do qual obteremos a associação das significâncias auditivas das invocações judaicas, integradas à palavra "senhor". Tal denominação instala a participação de um pressuposto leitor que escutará os relatos, as confissões e as experiências de Riobaldo. Considerando a interpretação do modelo judaico-religioso é que podemos fazer o uso do empréstimo contrastante da oração emblemática: 'Ouve ó Israel, O Senhor é nosso Deus, O Senhor é um'.3 Os aspectos sagrados, aqui indicados, são agentes poderosos de transformação, porquanto absorvem os vínculos textuais do Velho Testamento, numa atividade exorcizadora que provoca o afastamento das influências satânicas. A remissão contém a tradição cultural judaica, em que O Senhor
Cf. as consultas feitas ao Dicionário judaico de lendas e tradições de Alan Unterman, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, p. 242, onde se lê: Shemá (hebraico, significa 'ouve'. ( ... ) O nome provém da linha de abertura: 'Ouve [Shemá] Ó Israel, o Senhor é nosso Deus, O senhor é um'. O Shemá é uma afirmação doutrinária do monoteísmo que solicita ao homem que ame a Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma e toda a sua força. É se observar que o Shemá é uma recitação feita antes de ir dormir, para que se possa manter afastados os demônios que tocam o corpo c o inconsciente. 3
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livrará o homem do mal, quando este atinge o sono e o corpo imersos aos estados inconscientes.
" Cf. Dicionário judaico de lendas e tradições, de Alan Unterman, obteremos as informações sobre o contexto cultural do "Ídolo de Ouro adorado pelos israelitas enquanto Moisés estava no Monte Sinai recebendo o Decálogo" [As duas tábulas do testemunho das leis de Deus]. A história nos comunica que "Satã havia mostrado ao povo a imagem do caixão de Moisés, para convencê-los de que ele estava morto" (Apud, 1992, p. 49, 50).
Na intencional idade autoral de o Grande sertão: veredas notam-se os efeitos estésicos traduzidos pela ação imagética da anamorfose, em que o monstruoso comparece por meio das formas iconográficas do "bezerro branco erroso, cara de gente, cara de cão, rindo feito pessoa" (1980: 9). Os detalhes proteiformes dessa transfiguração maligna recebem o cinzelamento escultural desfigurador, e por isso demarcam os fenômenos solidificados pela recepção interpretativa, na qual inclui-se a contextualização da significância do "povo prascóvio", aquele que cultivava as crendices de culturas atrasadas e supersticiosas. A representação iconográfica do bezerro evoca a historicidade cultural judaica, que pode ser constatada no exercício intertextual do capítulo 32 do livro do "Êxodos", quando o povo hebreu pecara contra "as duas tábulas das leis" de Deus, que Moisés as consagrara ao devotamento monoteísta, mas que os hebreus tiveram dificuldades de praticá-las, e por conseqüência, retomaram à idolatria do "Bezerro de Ouro"4 (Bíblia. Apud, "Êxodo". Capo 32, 1, 15). Consultando-se a obra O mal um desafio à filosofia e à teologia, de Paul Ricoeur, entraremos em contato com os estudos dedicados à avaliação da incorporação mítica do mal incorporada à arte literária, às absorções religiosas e às superstições que possuem um caráter totêmico, inculcado pelo xamanismo, pois esses rituais estão imbuídos de saberes arcaicos marcados pelas interdições e proibições. Ricoeur evidencia os contatos sacralizadores movidos pelos sentidos ambivalentes, que têm a capacidade de provocar os desejos de profanização, e assim revertem no tremendum fascinosum através das representações figurativas do mal, estendendo-se à sustentação do pensamento das religiões ocidentais, constituídas pela Filosofia e pela Teologia. Logo, explicar o mal é uma tarefa que remonta aos saberes arcaicos, que foram conservados pela ação dos mitos impressos às narrativas cósmicas e lendárias (1988: 26, 27). Conclui-se que, as discussões em tomo do mal permanecem ligadas à vida íntima das pessoas, sobretudo, quando elas se confrontam com as circunstâncias de ignorância e de dúvida em que se apresenta o confronto com a sabedoria, que esconde a verdade. Para demonstrar essa convergência explicativa, Ricoeur utilizou o Livro de Já, cujos relatos bíblicos inserem-se ao entendimento da contextualidade relacionada à experiência do sofrimento, defrontando-se com o poder maligno. A visão interpretada
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pelo pesquisador expõe a posição autoritária de um Deus criador, porém, movido pelos "desejos insondáveis" de um arquiteto divino que utiliza medidas incomensuráveis, não considerando as vicissitudes humanas. Portanto, para Ricoeur, Deus é o "mestre do bem e do mal"5 e compreensível são as referências sobre Deus oferecidas pelo profeta Isaías: "Eu formo a luz crio as trevas". É neste contexto que podemos inserir o pensamento de Riobaldo defrontando-se com um Deus maniqueísta, que operava as deliberações de maneira traiçoeira, visto que realizava o seu poder miraculoso sem que as pessoas pudessem percebê-lo:
Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro - dá gosto! A força dele, quando quer - moço! - me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho - assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza6 Como se constata, os raciocínios filosóficos, teológicos e míticos recaem nos questionamentos sobre os mistérios e os fenômenos que representam as instabilidades existenciais de Riobaldo. No ato de rememoração penetram as ilações hermenêuticas que dialogam com a transitividade vivencial marcada pelas pulsões,? vetores de encontros sinestésicos que se desvelam no contato com a morte, a vida, o bem e o mal. É nessa convergência de pontualidades discursivas de caráter tautológico que deslizam os contextos, os conteúdos provisórios e falsos, elaborações estas que desejam atingir a interpretação da busca da verdadeira sabedoria. O trabalho de desocultamento é permeado pelos estados emotivos errantes -, idas e vindas que Riobaldo percorre entre as estesias de significâncias barrocas, constituídas de dilemas vividos entre as trevas e as iluminações epifânicas. As travessias iniciáticas do personagem / narrador parecem aludir as fimções dos mitos gregos de Alétheia (Verdade) e de Lethe (Esquecimento), contrapondo-se à pulsão de morte, que ora condensa, ora desloca o almejado triunfo da vida sobre a morte. Com esse propósito, a saga existencial de Riobaldo tem semelhanças àquela do poeta Píndaro, que denominou a potência da verdade sendo representada pela Alétheia,8 a filha de Zeus, a musa capaz de iluminar a palavra eficaz desejada pelo poeta. Partindo desse evento de auxílio mítico / divino e poético, o escritor teria a possibilidade de se tomar 'um mestre da verdade'.
5 Cf. Paul Ricoeur, O mal um desafio à filosofia e à teologia, Campinas, Papirus, 1988, p. 30.
6 Cf. Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, 1980, p. 21.
J Jaques Lacan apontou as quatro pulsões: a oral, a anal. a escópica (esta sendo o objeto, o olhar) e a invocadora (sendo o objeto a voz). Portanto, surgem por meio dos objetos as relações com o Outro, conceito este representando a cultura, o desejo do Outro. Cf. Alain Juranville, Lacan e a filosofia, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1987, p.159.
Interessante é consultar a obra de MareeI Detienne, Os mestres da verdade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. 1988, p. 21, 23, onde se obtêm as informações sobre a função da musa Alétheia. sendo uma potência iluminadora para que o poeta pudesse realizar a sua escritura.
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A potencialidade mítica criadora da arte literária pode ser comparada à atividade letrada de Riobaldo, enriquecida à de compositor de canções épicas, quando colhe os versos populares e os agrega à sua criação. Esse lidar artístico revisita um ato interliterário lusíada / camoniano, porque identifica-se aos desafios bélicos e malignos do sertão: "hei-de às armas / fechei trato / nas veredas com o cão. ( ... ) Travessias dos Gerais / tudo com armas na mão ... / O Sertão é a sombra minha / e o rei dele é Capitão!. .. (1980: 350). A invenção literária desdobra-se outras vezes por meio de circunstâncias líricas de uma prosa poética, que Riobaldo enfatiza sinalizando o desafio de se viver no sertão: "Vida é sorte perigosa / passada na obrigação: toda noite é rio-abaixo, / todo dia é escuridão" (1980: 241). O ritmo do cancioneiro popular articula-se à elaboração crítico / reflexiva da consciência estésica, autorizando-se, apenas, em ser aprendiz de poeta, e por isso o narrador confessa estar "descontente", já que os "versos ditos" não expressam um "razoável valor":
• Cf. Grande sertão: veredas, 1980, p. 241, 350.
Versos ditos que foram estes, conforme na memória ainda guardo, descontente de que sejam sem razoável valor: (..) Somente quis, nem podia dizer aos outros o que queria, somente então uns versos dei, que se puxaram os meus seguintes: (..) Arte que cantei, e todas as cachaças. 9 Retomando-se as simbologias elaboradas com auxílio das metáforas sobre o mal e o demoníaco, percebemos a presença de outra vertente interpretativa, quanto ao desempenho acionaI de Riobaldo preocupado em extrair o caráter areopagítico mesclado de um messianismo idealista, ao constatar a "não-existência" do demo. A articulação valorativa ocorre por meio da eficácia da palavra, sendo uma linguagem legítima porque se contrapõe às crenças supersticiosas.
111 Cf. Gral/de sertão: l'eredas, 1980, p. 15.
devia de haver, era de se reunirem-se os sábios, políticos e constituições gradas, fecharem o definitivo a noção - proclamar por uma vez, artes assembléias, que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim, davam tranqüilidade boa à gente. Por que o governo não cuida? fIO Examinando-se os conteúdos expressos pelas confluências holísticas, sociais, políticas e artísticas, constataremos a intensificação dos vínculos da anagllorisis no romance Grande sertão: veredas, mediante uma proposta que demonstra os contrastes das configurações malévolas associa-
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das aos planos subjetivos e físicos. A interpretação pode ser avaliada com a participação do senhor /leitor ao encaminhar os atributos de reconhecimento por meio da função da anagnorisis, que se transmuda com a ajuda do cânone cultural influenciador judaico/cristão. A operacionalização de intervenção teológica fica acompanhada pelo imaginário literário, conforme estas amostras textuais:
Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem - ou é o homem arruinado, ou homem dos avessos. (..) Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. (..) quem sabe, a gente criatura ainda é tão ruim, tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio do diá? Ou que Deus - quando o projeto que ele começa é para muito adiante, a ruindade nativa do homem só é capaz de ver o aproximo de Deus é em figura do Outro?lJ As reflexões de Riobaldo tentam desocultar os códigos demoníacos provindos das espaço-temporalidades fronteiriças, em que a verdade será conhecida com a ajuda de "um ponto de reconhecimento", conceito este que Aristóteles o desenvolvera sob a significância de anagnorisis, cujo exemplo ocorre na obra da Poética, no capítulo décimo primeiro, ao tratar da ação complexa da peripécia que alterna a seqüência dos acontecimentos. O suporte teórico filosófico desse entendimento também nos é fornecido por Northrop Frye, na obra Fábulas de identidade, ao demarcar os aspectos do mal emblcmatizados à figura demoníaca. Essa via de conhecimento pode ser tranSI~.lrtada ao topos temático das "Veredas Mortas"; do críptico espaço do Liso do Sussuarão e das circunstâncias que culminaram na morte de Diadorim, sendo as travessias de momentos infernais. Nas observações teóricas de Northrop Frye apreciamos a allagnorisis ligada à função catártica, ao conceber o encontro com a verdade revestindo-se num episódio de reconhecimento, cujas explicações estão assim indicadas:
Isto é, esperamos um certo ponto perto do fim no qual o suspense linear é resolvido e a configuração unificadora do desenho inteiro fica conceitualmente visível. Esse ponto foi chamado de anagnorisis por Aristóteles, um termo para o qual 'reconhecimento' é uma tradução melhor do que 'descoberta '. (..) O reconhecimento, e a unidade do tema que ele manifesta,
11 Cf. Grande sertão: veredas, 1980, p. 11, 33. Ainda é interessante se observar. que o termo diá indica um contexto cultural grego, que pode ser avaliado conforme o trabalho de pesquisa de Francis Utéza, em Metafisica do grande sertão, São Paulo, Edusp. 1994, p. 57, que assim expõe: "o domínio do Diabo - do grego Diaballein: dividir, fazer mexer-se tudo o que está condensado: mostrando-se no centro do Turbilhão, na origem das mutações, a besta multiforme.
As veredas crípticas do Grande Sertão: Veredas
12 Northrop Frye. Fábulas de identidade, São Paulo, Nova Alexandria, 2000, p. 32, 33.
lJ Cf. João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, 1980, p. 317, 318, 319.
" Cf. Pierre Brunel (Org.), Dicionário de mitos literários, 2" ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1998 p. 813825.
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é freqüentemente simbolizado por algum tipo de objeto emblemático. (. ..) De qualquer modo, o ponto de reconhecimento parece ser também um ponto de identificação, onde uma verdade escondida sobre algo ou alguém vem à tona. J2 Dentre as fonnas evocadoras das funções demoníacas inscrevemse as combinações objetais supersticiosas, conjugadas às nomenclaturas infernais, que o engenho literário de Guimarães Rosa colecionou de maneira sincrética no Grande sertão: veredas. Oferecendo testemunhos dialético / questionadores, a narrativa expõe raciocínios que se apóiam nas circunstâncias toponímicas de representação existencial. Um exemplo de relato é aquele em que Riobaldo situa-se no topos infernal do Liso do Sussuarão, travessia que ilustra o culminante desfecho do pretenso pacto demoníaco:
Quem é que era o Demo, o Sempre-Sério, o Pai da Mentira? (..) Ele tinha que vir, se existisse. Naquela hora, existia. ( ..) Mas em que formas? Chão de encruzilhada (..) o Bode-Preto? O Morcegão? O Xú? E de um lugar - tão longe e perto de mim, as reformas do Inferno (..) Ah, eu queria, eu podia. Carecia. 'Deus ou o demo?'sofri um velho pensar. (..) o Diabo, na rua, no meio do redemunho ... " - ai, eu bramel,. desengu I'In do. (...) 'L'UCl!fier.'L'UCl!fier.... ( ..) 'Ei, Lúcifer! Satanaz, dos meus Infernos!' Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu que é um falso imaginado. /3 Nas caracterizações imagísticas sobre o demônio encontram-se o "Pai da Mentira", o "Bode-Preto", um elenco perifrásico que incorpora as várias metáforas sobre essa entidade metafísica, denominações que Guimarães Rosa utilizou e as impregnou de reflexões malignas, oferecendo uma interpretação de abrangências que expressam crendices e religiosidades. Para essa leitura de teor universal, é interessante se consultar o Dicionário de mitos literários, /4 organizado por Pierre Brunel, obra que reúne infonnações, nomenclaturas, escritores e objetos de arte que lapidaram a temática da demonologia, cujas fontes podem ser contrastadas ao romance roseano. Outra consulta interessante para se obter os conhecimentos sobre as propriedades dos demônios consta da pesquisa de Fernando G. Sampaio,
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em A história do demônio, que pontua a referencialidade de atributos decorrentes de Lúcifer -, o "príncipe dos demônios e das trevas", constituindo-se de um cultivo lento elaborado pelos teólogos. Nessa seqüência de dados desdobraram-se os codinomes: "Príncipe dos Infernos, Satã, Satanás, Diabo e Demônio". Podemos constatar que o processo de significâncias teve a sua origem através da contaminação de culturas, lendas que partiram do Livro de Enoch, relatos que enfatizam a luta mítica entre os anjos bons e os decaídos.1 5 Riobaldo convive com o dilema da incorporação do mal; medita sobre a dificuldade de se instalar o bem, e por isso, integra-se à consciência crítica do escritor e do narrador que confessa: "sofri um velho pensar" (1980: 318). Nas falas do personagem, anteriormente mencionadas, expõem-se as duas confluências demonológicas: a de Satã e a de Lúcifer. É interessante se reparar para as convergências diferenciadas destas deidades malévolas, que estão condicionadas aos contextos religiosos judaicos vivenciados no Cativeiro da Babilônia. Historicamente, sabemos que a cultura em torno do deus Javé remete-se, inicialmente, aos domínios de poder que ficavam determinados tanto sobre o bem como sobre o mal. Entretanto, o povo judeu, abatido pelas desgraças, começou a desacreditar desse deus, quando o judaísmo religioso contaminou-se com a doutrina do Bem e do Mal, de Zoroastro. Por conseqüência, segundo Fernando Sampaio, na origem da palavra Satã, veicularam as significâncias de "adversário e de acusador, cujas atribuições pertenceram ao domínio cultural do Império Persa. Ainda devemos distinguir que essas denominações eram distintas daquela representada pelo funcionário do governo, que desempenhava o papel, o arquétipo dos "Olhos do Rei" (1976: 22). O procedimento dessas absorções trabalhadas por Guimarães Rosa indica um feixe de conexões dialógico/religiosas, intertextos doutrinários de caráter sincrético, que se integram à memória cultural da demonologia. Situando essa compreensão de caráter intertextual, a pesquisa teóricocomparatista de Tania Franco Carvalhal, em O próprio e o alheio, transmite o funcionamento redimensional da leitura literária, expondo-se no processo de absorções: "na trama do que se perde e do que se recupera, na alternância de esquecimento e memória do que se lê que se organiza a continuidade literária, tal como ela se manifesta em cada texto" (2003: p. 75). É sempre próspero retomar às fontes utilizadas por Guimarães Rosa, porque nelas encontramos as origens discursivas e estéticas que serviram
15 São interessantes as pesquisas elaboradas por Fernando Sampaio, coligidas à obra A História do demônio, Porto Alegre, Editor Garatuja, 1976. Podemos ler a formação histórica. mítica, lendária e etimológica das configurações culturais e religiosas de Lúcifer, Satã, Demõnio, Inferno, como também obteremos as informações sob a Demonologia, até os dia, atuais, pontuada às forma, de exorcismo e demonolatria.
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às recriações literárias, e é desse cotejar, que poderemos avaliar o apuro crítico e literário, sobretudo, daqueles elementos filosófico / religiosos recriados no Grande sertão: veredas. A obra reinventa os aspectos temáticos de abrangência multicultural e multidisciplinar, propiciando a visão de um conjunto universal de abordagens, de pontes dialógicas construídas em torno das significâncias do mal, do demoníaco, do bem e de Deus. É de se notar que a arte literária sempre obteve dos críticos e dos estudiosos as avaliações interpretativas voltadas às marcas simbólicas, às revisitações filosóficas e religiosas -, trajetos iniciáticos que foram impressos pela arte literária, atendendo as convergências universais. Considerando as impregnações das fontes e das influências é que o processo de absorções sobre o conhecimento proibido em o Grande sertão: veredas estabelece um trabalho de viés crítico, porque realiza a literariedade dos empréstimos de ordem cultural. Para salientar essa prática teórica nos remetemos aos apoios comparatistas articulados por Tania Carvalhal:
16 Cf. Tania Franco Carvalhal, O próprio e o alheio, Apud, "Memória e discurso de intermediação", São Paulo, Uni sinos, 2003, p. 187.
a universalização do conhecimento e a totalização dos fenômenos por meio do estabelecimento das relações entre eles. Parentescos, afinidades elementos comuns, convenções são, pois, fios perseguidos pelo olhar crítico que não enclausura o objeto analisado em si mesmo, mas quer demarcar sua individualidade no conjunto a que pertence e na mais ampla rede de associações que possa estabelecerJ6 O fragmento teórico acima selecionado vem reforçar a participação da consciência crítica na obra literária, quando presentifica-se a integração de um conhecimento de domínio universal. Desse modo, os elos de parentescos entre as temáticas de cunho universal encontram-se no Grande sertão: veredas, fazendo com que esta obra se integre ao "fundo comum" abrangente das obras-primas, sem que essa visão torne-se um "enc1ausuramento" de caráter teórico acabado, mas sim, uma tentativa que se constitui além dos relevantes estudos de François Jost - Introduction to comparative literature (1974), e desse modo podemos recuperar e atualizar a conceitualidade da Weltanschauung, na qual encontramos a visão cosmológica da linguagem literária. É nessa caminhada originada nas questões primordiais que os relatos das experimentações vivenciais e religiosas de Riobaldo criam a elaboração dialógica da transferência de um aprendizado, que faz o uso da escuta do outro, pontuado pela interlocução do "Se-
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nhor / leitor", exercitando a faculdade da crítica, mediante a decodificação e a interpretação da obra literária. A combinação do narrar com o criticar propicia a efetivação de um recurso ficcional que tem valores e potencialidades elevadas; uma atividade teórica que podemos apreciá-la no ensaio de Luiz Alberto Brandão dos Santos, quando se refere às análises das obras críticas da escritora argentina, Beatriz Sarlo. Com tal referência, teremos a oportunidade sugeridora de efetivar alguns contrastes por intermédio das demandas discursivas da narrativa / descritiva, que exempla formas ritualizadas de reflexões analíticas, já que elas estabelecem protocolos que interagem nas mensagens criativas. As pesquisas de Luiz Alberto B. dos Santos são esclarecedoras para compreendermos os processos analíticos roseanos voltados às atividades reflexivas:
Narrar e criticar ao mesmo tempo pode significar que se recupere certa afirmatividade da narrativa, através do flerte com um tom da parábola. (..)Narrar e criticar ao mesmo tempo também pode acarretar a recíproca atenuação da força dos discursos crítico e literário17 Tem-se nas observações citadas uma elaboração sobre a tendência de artificios discursivos quando estes estão direcionados a executar um conjunto de permeabilidades, tais como "a absorção e a transformação" dos conteúdos, gerados pela atividade crítica convertida em arte literária. Considerando-se a atualização dos entrelaçamentos temático / universais dos intercâmbios absorvidos pelas obras literárias, que conservaram os princípios teóricos da linhagem conceitual goethiana da Weltliteratur, que preconizava a herança comum da espiritualidade, nas obras literárias, é que as análises investigativas da pesquisa extensa de Roger Shattuck, de o Conhecimento proibido, de 1998, nos possibilita reforçar a posição integradora da obra Grande sertão: veredas no espaço difusor de caráter global/mundial. Tal pertença universal deve-se às articulações ficcionais que se alojam às explorações temáticas demoníacas edificadas num topos conceitual particular, que se remete às fontes culturais precursoras. Para reforçar essa linha de pensamento, compartilhamos das valiosas contribuições de Mikhail Bakhtin, especialmente, dos textos organizados na obra Estética da criação verbal (2003), que reúne o trabalho discursivo dialógico interagindo na multiplicidade de absorções culturais. Nessa visão, é que as matérias contextuais e conteudísticas encaixam-se à
17 Cf. Luis Alberto Brandão dos Santos, "Rituais dos discursos crítico e literário: exercícios de hibridização." In: Literaturas em movimento, (Orgs.) Rita Chaves et Tania Macêdo, São Paulo, 2002, Arte e Ciência Editora, p. 82.
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ficcionalidade transfiguradora do sertão brasileiro, ao expor os costumes, as crenças e as gentes, deslocando as fronteiras de épocas históricas. Assim, segundo Bakhtin, "cada época sempre descobre algo de novo nas grandes obras do passado," e por isso, "As obras dissolvem as fronteiras da sua época, vivem nos séculos" (2003: 363,362). Foi com a ajuda das combinações interartísticas que representam as valorações simbólico / míticas universais, que Roger Shattuck desenvolveu uma meticulosa análise histórico/literária sobre a introjeção da gnosis esotérica na trajetória mundial das obras literárias. Examinou a participação de escritores que tiveram acesso às linguagens cifradas por inúmeras tipologias estésicas, e desse modo nutriram-se de conhecimentos tidos como proibidos, ou pelo menos interditados às suas épocas históricas. A pesquisa analisou desde os mitos fundadores de Pandora e Prometeu até as leituras bíblicas, resultando nas investigações que transcorreram na avaliação dos tortuosos meandros da charlatanice, nos quais estiveram registrados os fenômenos de magia negra. Nos trabalhos de Shattuck apresentam-se as leituras, as diversas interpretações sobre o mal, o demoníaco e a dúvida, elementos estes que se presentificaram nos conteúdos das obras-primas, tais como na Divina comédia, de Dante de Alighieri, em que se constata a viagem do peregrino cristão em contato com as significâncias dos quatros elementos discursivos: "conhecimento ou certeza, ignorância, fé e dúvida" (1998: 36). No campo em que se interliga a arte literária com à Filosofia, podemos confirmar aquilo que as palavras de Sócrates anteciparam: "a consciência da própria ignorância constitui o único conhecimento verdadeiro". Esta prolepse aforismática também foi reafirmada pela crítica destemida de Michel de Montaigne (1533-1592), que Shattuck capturou a fim de demonstrar como funcionam os limites da razão humana (1998: 71). Remetendo-nos ao contexto dialógico entre as culturas, toma-se oportuno revisitar o texto fundador, onde encontram-se as proféticas explicações da sacerdotisa Diotima, dirigidas a Sócrates, cujas falas em O Banquete, de Platão, expressam as idéias filosóficas em tomo do amor, da sabedoria e da ignorância, gerando "um tanto longo explicar" (1978: 35), uma doxologia que parece ter oferecido ressonâncias às falas de Riobaldo: "sofri um velho pensar" (1980:318). Retomando-se os estudos de Shattuck, poderemos confirmar a leitura de um vasto repertório de narrativas literárias que misturaram as questões demoníacas com às existenciais, revelando a formação do processo
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de contaminação do demoníaco com as temáticas econômicas e sociais -, é desse encontro que se instala o favorecimento híbrido das artes e das culturas, que ora podemos integrá-las à Weltliteratur na atual idéia de "globalização". De sorte que a multiplicidade de enredos ficcionais, também, esteve recombinada à mitologia lendária faústica originada no século XVI, responsável pelo alongamento histórico / literário visto nas versões das obras artísticas que produziram os conteúdos demoníacos acompanhados dos parâmetros contextuais, tecnológico-científicos do século XX. O tempo histórico / literário do século XVI demonstrou a fusão do mal com o demônio na precursora figura lendária do médico Joahann Faust, envolvido às tramas e às peripécias de um pacto de sangue, com o personagem mensageiro do mal, Mefistófeles. O aparecimento dessa inaugural narrativa consta da impressão de 1587, de autoria de Johann Spiees. Seguindo o curso, estão as publicações literárias de 1593, de Cristopher Marlowe, na obra Doutor Fausto (1998: 87). Esmiuçando os conteúdos das publicações editadas no século XVIII, Roger Shattuck salienta aquela do dramaturgo e critico alemão, Gothold Ephraim Lessing, que concebeu o mito faústico repercutindo nos contextos literários que alcançaram o mundo moderno. Nesse elenco inspirador de abordagens humano / demoníacas surgiram as agregações temáticas de cunho reflexivo-filosófico-existencial das versões teatrais do Fausto, de 1808 e de 1833, produzidas por Johann W. Goethe (1988: 88-100). Devemos, ainda, reparar para as análises das obras editadas no século XX, quando estas abordaram a ficção faústica imersa às recriações satânicas, constituídas de valores tecnológicos e de ambições financeiras, como anteriormente sublinhamos. É preciso se reconhecer a contribuição das relevantes investigações de Shattuck, na obra de John Milton, o Paraíso perdido, pois essa pesquisa tem o mérito de expor os elementos determinantes do referido drama literário, baseado na subjetividade humana e no aguçamento da curiosidade, ao lutar contra a ignorância. Com essa leitura de convergências criticas, históricas e mítico / culturais obteremos o funcionamento dos nexos comparatistas das interpretações dramáticas, que Milton expusera na sua obra, associada aos conflitos espirituais e intelectuais. Partindo dessa focalização multifacetada de temas, é que o deciframento do drama genesíaco e edênico protagonizado por Adão e Eva provoca um retomo à vida psíquica, à vontade, à desonestidade, comportamentos movidos pelo ímpeto da curiosidade, que teria sido o "começo de todos os pecados".
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Nesse rastro de experiências proibidas é que Shattuck se detém, oferecendo as suas análises construídas por meio de "parábolas do conhecimento", cuja exemplaridade procura envolver-se no entendimento sobre a simbologia da "Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal" (1998: 60), circunscrita à obra Paraíso perdido, que reúne de maneira artístico / literária a interpretação sobre os quatro estádios da busca do conhecimento perdido. Este processo precursor tem similitudes àquele proposto pela abordagem filosófico / religiosa de o Grande sertão: veredas, por isso, vejamos as análises de Shattuck:
18 Cf. Roger Shattuck, COnhecimento proibido, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 80, 82, 83.
Milton narra a história secular de um casal legendário, porém muito humano, que percorre quatro estádios de conhecimento: a inocência, fantasia ou sonho, experiência e sabedoria. (..) Milton quase permite a Satã roubar o papel principal e a supremacia da moral (..) Milton deu a seu poema épico dimensões sem precedentes, incorporando a ele dois pares de opostos: conhecimento e ignorância, dúvida e fé. Suas tenazes fecham-se sobre o paradoxo central daquilo a que agora podemos chamar com razão experiência proibida. (..) 'Sê humildemente sábio '.18 Observando as reflexões sobre o transcurso dos quatro "estádios de conhecimento" da obra Paraíso perdido, podemos associá-las à experiência de Riobaldo, que criou nos seus relatos uma atmosfera de fantasia em tomo do demônio, a fim de desconstruir as crendices, as superstições e as religiosidades da sociedade cultural do jaguncismo, de sorte a provocar a legitimação da sabedoria triunfando no verdadeiro conhecimento. Essa trajetória nos vem pelo campo gnóstico do mal, quando se estabelece a interpretação metafisica das significâncias sobre o "Nonada", simbologia inscrita desde a abertura até o epílogo da escritura roseana. A pontual referência literária teve a capacidade de provocar a busca da verdade seguindo os trânsitos que escondiam um saber proibido - o ponto fronteiriço de interdição, quando essa passagem converteu-se num diálogo de abrangência multi cultural, vetorizado pelos campos filosóficos, religiosos e existenciais. Os vazios interpretativos provocados pelas instigantes indagações dos intervalos silenciosos da narrativa abriram o processo discursivo para a participação da alteridade da voz do outro, interagindo com a sensibilidade auditiva do narratário, do Senhor / leitor - ao traduzir o drama espiritual e
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existencial de Riobaldo, inserido ao inconsciente coletivo do jaguncismo. Tanto a peregrinação de Riobaldo pelos sertões como a sua vida psíquica e a função interpretante do Senhor / leitor compartilharam das conclusões iniciático-ficcionais: "o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem". Portanto, compreensível foi a posição do personagem / narrador / testemunha elegendo a pulsão auditiva do ato da leitura, marcado pela participação de um "senhor", que mantivesse valores de posição elevada - "um homem soberano, circunspecto" -, aquele que ouviu com prudência os relatos, e por isso comparticipou da valoração literária conclusiva: "Amigos somos. Nonada. O diabo não há. ( ... ) Existe é homem humano. Travessia" (1980: 11,460).
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Influxos platinos no discurso crítico do Rio Grande do Sul: João Pinto da Silva
Prata. Dra. Léa Masina UFRGS
A crítica literária exercida no Rio Grande do Sul no século XX foi, com
1 COUTINHO, Afrânio. A tradição afortunada (o espírito de nacionalidade na crítica brasileira). Rio de janeiro: José Olympio; São Paulo: EDUSP, 1968.
raras exceções, de tendência lusófona, presa à idéia de que a língua separava o Brasil dos demais países da América Latina. Não se ignorava a origem ibérica comum, imposta como um índice de proximidade entre as culturas. No entanto, essa origem não era considerada suficiente para autorizar a proximidade entre a literatura gaúcha e as literaturas platinas que, não obstante, conviviam nas longas faixas de fronteiras entre os países. Diferentes fatores contribuíram para definir esse posicionamento, destacando-se o receio, dissimulado no gosto pelo purismo lingüístico, de que a literatura gaúcha se afastasse do centro hegemônico do país. A literatura brasileira, por sua vez, vinha sendo estudada, desde o início do século, sob a égide do nacionalismo, noção advinda dos primórdios românticos de XIX. A assunção do constructo teórico do nacional para a legitimação da arte criou, no Brasil, uma verdadeira "tradição afortunada" responsável, no dizer de Afrânio Coutinho) , pela coesão do nosso sistema literário. E ainda que muitos textos críticos destacassem a expressão de idéias que apontavam para um cosmopolitismo particular, a literatura sobre a qual continuouse a escrever durante o século XX acentuava as marcas do local e do nacional confundidos num mesmo conceito. Assim, o discurso crítico, como
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não poderia deixar de ser, perseguiu ideais utópicos, como a visão homogênea de uma cultura brasileira, vivendo a tensa relação de dependência com o pensamento europeu. Essa tradição, com diferentes nuanças, fora dominante no século XIX, quando a trindade crítica brasileira, representada por Sílvio Romero, José Veríssimo e Araripe Jr., buscou "atualizar" o pensamento nacional, trabalhando com os aportes das teorias deterministas e evolucionistas provenientes da Europa. No século XX, porém, os críticos das primeiras décadas dividiam-se, discretamente, entre duas tendências: prosseguir investigando as relações entre história e literatura, ou produzir leituras críticas impressionistas, voltadas para a valorização estética dos textos literários. Essas duas tendências, como bem observa João Alexandre Barbosa,2 conciliavam-se através de propostas historiográficas. A essas incorporaramse, aos poucos, os mecanismos da Sociologia, que aportara no Brasil gra-
2 Leia-se: "A paixão crítica", de João Alexandre Barbosa, em A leitura do intervalo (1990).
ças, entre outros, a os trabalhos de Gilberto Freyre. E já em meados do século, Antonio Candido desponta na crítica literária, apresentando uma visão sistêmica do fato literário, que privilegiava a interação entre autorobra-público. Também, nesse primeiro momento, Afrânio Coutinho publica a coleção A Literatura no Brasil (1959), que idealizou e coordenou, composta por ensaios de natureza monográfica, escrita por diferentes críticos literários e professores de literatura. Na Introdução da obra, o autor antecipa a divisão da matéria literária por eixos históricos, períodos estilísticos que permitiam identificar a projeção das tendências européias, inclusive, na sua denominação .. Tanto Candido quanto Coutinho e outros pensadores da época dedicavam-se ao magistério superior, o que, num certo sentido, justifica o deslocamento da prática crítica, que migra dos periódicos para o âmbito institucional. No Rio Grande do Sul, surgida com o Parthenon Literário, em 1868, a crítica literária confundiu-se com a prática periodística, uma vez que os jornais, sempre abundantes no sul, foram o espaço privilegiado para a circulação das idéias. A formação de opinião e o julgamento estético das obras eram práticas simultâneas que, ainda assim, possibilitaram o surgimento de uma geração de críticos cuja importância no ordenamento da matéria literária foi vital para configurar o que hoje se entende por literatura gaúcha. E muito embora a prática do periodismo literário fosse idêntica ao que ocorria nos países do Prata, com forte impregnação política, conforme acentuou o historiador João Pinto da Silva, em 1924,3 os críticos preocupavam-se em
João Pinto da Silva, História Literária do Rio Grande do Sul. 2.ed. Porto Alegre: Globo, 1930. p. 24. 3
fnfluxos platinos no discurso crítico do Rio Grande do Sul
4 Tratei especificamente esse tema no livro "Alcides Maya, um Sátiro na Terra do Currupira", ressaltando a proximidade entre suas narrativas e as do uruguaio Javier de Viana e do argentino Acevedo Díaz.
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espelhar o que acontecia no centro do país. E isso ocorria, muitas vezes, de forma anacrônica e desvinculada da realidade, quando, por exemplo, questões polêmicas que haviam ocupado a intelectualidade dita "brasileira", aqui repercutiam com visível atraso, enchendo páginas e páginas dos periódicos locais. Exemplo disso lê-se em Alcides Maya, o primeiro crítico literário gaúcho. Ocupado em escrever sobre questões do momento, foi um disseminador da cultura francesa e também do pensamento crítico brasileiro contemporâneo, dedicando-se a comentar, em diversos momentos, as polêmicas que dividiam as opiniões em tomo de José Veríssimo e Sílvio Romero. Do mesmo modo como procurava "atualizar" sua comunidade discursiva, realizando um projeto intelectual propedêutico e "civilizador", Maya inseriu o Rio Grande do Sul no mapa literário do Brasil. Esse desejo de inclusão induz a pensar a questão da identidade do gaúcho e de seu pertencimento a um estado meridional, cuja história fora marcada por guerras de defesa de fronteiras. Isso porque o Rio Grande do Sul, sempre espoliado pela política do governo central, sentia-se paradoxalmente atraído e ameaçado pela proximidade com os países do Prata. Toda a mitologia pampiana, que a literatura acolhe e reitera, aponta para o duplo pertencimento que contempla sentimentos contraditórios, advindos de uma nacionalidade difusa e conflituosa. O conjunto da obra de Maya contém o paradoxo de um discurso crítico anti-separatista, e uma obra literária em tudo próxima às narrativas de escritores uruguaios e argentinos. 4 Muito embora a tendência dominante na primeira metade do século XX, no Rio Grande do Sul, resultasse na negação dos influxos platinos na literatura brasileira, a proximidade e os contágios culturais foram reconhecidos por um número minoritário de críticos e historiadores da literatura. Esse reconhecimento numericamente inexpressivo foi ignorado durante o século XX, eis que a crítica optou sempre por mitigar a diferença regional, acentuando a proximidade temática e periodológica com a literatura dita "brasileira", lida e legitimada no eixo Rio-Minas-São Paulo. O regionalismo literário que irá realizar, na prática narrativa, os postulados das vanguardas modernistas, foi aceito como manifestação de diferenças locais que, tomados de forma aditiva, comporiam um "retrato" vivo do Brasil. Esse seria composto por gaúchos, sertanejos nordestinos, mineiros e baianos, como ficou configurado no romance de 30. Desse modo, o "meu Brasil brasileiro", rimando com Rio de Janeiro, encobriu um rico filão investigativo
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que aponta para o diálogo entre as culturas fronteiriças do Brasil: o Uruguai e a Argentina.
João Pinto da Silva Em 1924, João Pinto da Silva, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em Porto Alegre, instituição privada de grande importância para o fomento aos estudos da cultura regional, publicou a sua História Literária do Rio Grande do Sul. O autor, jornalista e autodidata, chegou a ocupar cargos diplomáticos durante a chamada Era Vargas. Infonnam fontes bibliográficas ter-se exonerado cargo que exercia logo após a Revolução de 30, porque se opunha à privação da liberdade da imprensa. Por esse tempo, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul reunia, dentre seus membros, algumas figuras de proa da intelectualidade loIcal, dentre as quais destacava-se, por sua liderança intelectual, Moysés Vellinho. Autor de diversos livros de ensaios, Vel1inho defendia abertamente a idéia de predomínio da cultura de origem portuguesa no estado. Pesquisador sério e bem articulado, publicou Letras da Província (1944) e Capitania D 'El Rei: aspectos polêmicos da fonnação rio-grandense (1963). Nessas obras, o ensaísta deixa clara sua preferência pela vertente lusitanista; afinnando uma "fidelidade de raiz ao idioma que as forças da tradição nos legaram".5 Nesse sentido, sempre que examina as relações do Rio Grande com o Prata, o faz para acentuar o reconhecimento de um "antagonismo atávico", decorrente de injunções políticas e ideológicas da época. Essas acentuavam o entendimento de que as guerras de fronteira motivariam a separação indesejada do Rio Grande do Sul com relação ao resto do Brasil. A essa época, temia-se também que se repetissem antigas disputas coloniais com relação à faixa territorial que corresponde ao estado fora antiga Colônia do Sacramento, pertencente ao Uruguai. Essas disputas foram, mais tarde, representadas ficcionalmente por Erico Veríssimo que, no primeiro volume de O Continente, parte inicial da trilogia O tempo e o vento, recupera a história da fonnação da identidade gaúcha. Para tanto, Érico recria o embate entre espanhóis, índios, portugueses que disputam os Sete Povos das Missões, cujo pertencimento era objeto de acordos e tratados estabelecidos entre as coroas de Espanha e Portugal. No entanto, como hoje se reconhece, as culturas de fronteira não dependem de acordos, limites administrativos ou vontades políticas: elas são penneáveis e, portanto, atravessadas por representações simbólicas
5 VELLINHO, Moysés. A fronteira e a língua. In: _ ' Capitania D'EI Rei.(1964), p.228.
Influxos platinas no discurso crítico do Rio Grande do Sul
6Id. Ibidem, p.143.
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comuns. Além disso, existe um modo de viver fronteiriço que, no caso, encontra-se representado pela vida nas campanhas, as guerras, a porosidade cultural e a tensão permanente. No entanto, as hostilidades cotidianas comuns aos tempos de demarcação dos limites das nações nunca impediram o fluir dos contatos humanos, criando semelhanças e convergências inevitáveis entre culturas que se desenvolveram num mesmo espaço geográfico e sob condições sócio-históricas semelhantes. Em muitas ocasiões, Moysés Vellinho posicionou-se contrário à proximidade platina e ao reconhecimento de seus influxos, chegando mesmo a considerar sua identificação como "grossos erros de interpretação".6 Evitando o que considerava um "paralelo fácil" entre diferentes culturas vizinhas, Vellinho firmou uma posição que se tomou dominante no século XX, e que, de certa forma, impediu o desenvolvimento de outros aportes, assim excluídos ou obscurecidos. Em decorrência dessa visão dominante, foram poucos os críticos de meados de XX que, em suas obras, registram a proximidade entre as culturas platinas e a brasileira. Dentre esses, podem-se citar e João Pinto da Silva, Manuelito de Omellas e Sílvio Júlio. Num segundo momento, aliamse a esses Rubens de Barcellos, Augusto Meyer e Guilhermino César. Como se pretende, em trabalhos futuros, aprofundar o estudo desses confrontos, muitas vezes transformados em polêmicas, importa registrar o pensamento dominante na intelligentsia gaúcha para, na contramão dessa tendência, destacar a contribuição do historiador e crítico João Pinto da Silva, autor da História da Literatura do Rio Grande do Sul (1924) e de A Província de São Pedro (1930), dentre outros ensaios. Historiador literário das primeiras décadas de XX, João Pinto da Silva é valorizado por sua contribuição para definir as características da literatura do Rio Grande do Sul, o que alcançou ao estudar, de modo pioneiro, as manifestações do regionalismo sulino. Ao lado disso, porém, Pinto da Silva, ao escrever a primeira história da literatura do Rio Grande do Sul, construiu um arcabouço teórico com paradigmas recolhidos às obras de escritores, críticos e ensaístas platinos, como Zum F elde, uruguaio, e Ricardo Rojas, argentino. Lida numa perspectiva contemporânea, sua História da
Literatura resulta num exercício de crítica e historiografia comparatista, eis que o olhar crítico se desloca constantemente do Brasil para o Prata, em busca de informação e legitimação. Ele reconhece, desde o primeiro momento, as vagarosas infiltrações culturais que adentravam as fronteiras
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meridionais do Brasil, embora fossem essas impermeabilizadas pelas guerras. E deplora a ausência de "cultura literária" na província gaúcha, ao contrário do que ocorria em outros estados brasileiros, ágeis na importação de professores e literatos europeus. Seguindo esse rumo, enfrenta a questão do folclore regional, comparando o sul do Brasil, com o Uruguai e a Argentina, para concluir que o brasileiro era, em todo, avesso à épica, eis que colhido em meio a condições sociais inóspitas, como as revoluções 1835 e 1893. Para construir esse raciocínio crítico, articula-se ao pensamento de Alberto Zum Felde, expresso na Critica de la literatura uruguaya, buscando, assim, os parâmetros para pensar a produção literária do Rio Grande do Sul. E conclui que nem os "cie1itos", do uruguaio Hidalgo, nem "la produccion maestra deI genero, el Martín Fi erro", encontram correspondência no subjetivismo lírico e sentimental da poesia brasileira. Sem encontrar em Zum Felde, sequer no Processo histórico Del Uruguay, um maior desenvolvimento do tema, Pinto da Silva recorre a Ricardo Rojas, autor da Historia de La Literatura Argentina, para concluir que na Argentina "é tão freqüente como entre nós a tepidez sentimental, aquele suave calor corazonero de que fala o poeta". 7 Veja-se que Pinto da Silva não procura referenciais na trindade crítica brasileira - Romero, Veríssimo, Araripe - , aliás, bastante lida no sul do Brasil, eis que a obra dos referidos críticos fora objeto de ensaios e artigos críticos publicados sistematicamente por Alcides Maya nos principais jornais da época. João Pinto da Silva também não se louva, de modo dominante, na cultura européia, muito embora refira os cânones da época, como Walt Whitman, Emerson, Edgar AlIan Poe, Marx Nordeau e outros. São os platinos que, nas três primeiras décadas do século XX, mobilizam a opinião de um jornalista, político e diplomata, cujos demais acertos críticos são, até hoje, fartamente louvados e reconhecidos por sua pertinência. Não importam as conclusões a que João Pinto da Silva chega nesses momentos: quer-se somente pontuar uma prática crítica que não criava parâmetros a partir do centro nacional ou do cânone europeu. Como se lerá na História da Literatura do Rio Grande do Sul, quando estuda o regionalismo e seus principais autores, e também quando descreve e analisa as manifestações teatrais, o exercício da crítica, o periodismo cultural e político, Pinto da Silva sempre argumenta através da comparação sistemática com as culturas platinas, denotando no seu discurso crítico o diálogo interliterário e intercultural.
7
SILVA, João Pinto da.
(I 924) p. 23.
Influxos platinos no discurso crítico do Rio Grande do Sul
• o grupo tomou-se assim conhecido porque os escritores gravitavam em tomo da Livraria do Globo, em Porto Alegre.
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Em 1930, João Pinto da Silva publica um livro intitulado A Província de S.Pedro: interpretação da história do Rio Grande. O título repete o nome da coleção de revistas dirigida por Moysés Vellinho, cujos principais ensaios virão a ser publicados em livro, compondo o conjunto também denominado "Coleção Província". A insistência em nomear assim a produção literária de proa, escrita e publicada pelos intelectuais que formavam a Geração da Globo,8 parece ter uma intenção ambivalente, irônica e sobranceira. O livro, porém, inicia situando a questão geográfica e histórica do Rio Grande, lendo-se já no primeiro capítulo:
O Rio Grande é uma região sui-generis, ponto de contacto, ou intersecção de dois climas, zona intermédia de diferenciação botânico-zoológica. Ainda não é o Prata e já não é, tampouco, o Brasil. (p.16) Essa fronteira que é, segundo o naturalista citado, Elisee Réclus, também uma fronteira zoológica apresenta, para Pinto da Silva, grande permeabilidade. Para ele, flora e fauna são oriundas de permutas e tipicamente decorrem de transição. Essa dualidade, também sob o ponto de vista climático, não resulta em determinismo mesológico, como ocorreu longamente na passagem do século XIX para o XX. Embora refira Taine e sua teoria do meio, raça e momento, o historiador e crítico afirma, com segurança, que na formação do caráter sul-rio-grandense, a geografia
fisica influiu muito menos do que a geografia política (1930: 26). E ainda que o Rio Grande do Sul se lhe parecesse, geograficamente, quase uma ilha (1930:29), a situação histórica e política de região fronteiriça seria responsável pela caracterização cultural do gaúcho. A defesa das fronteiras, a atividade guerreira e de permanente guerrilha fez do gaúcho um soldado permanente. A desoladora impressão de deserto, transmitida pelos naturalistas europeus, Nicolau Dreys e Herbert Smith, explicaria, pela lógica, as atitudes dos colonizadores portugueses e espanhóis, ora interessados na fronteira marítima de São Pedro do Sul, ora dela esquecidos. A preferência por Maldonado, no Uruguai, e não por Rio Grande, no Brasil, definiu o ato fundador de José da Silva Paes quando, em 1737, precisou descer até a barra do Rio Grande para ocupar a raia oceânica. João Pinto da Silva encerra a primeira parte do seu livro, comentando:
Mais em contato com o Prata do que com a Guanabara, trabalhado, enfim, por elementos vários de desagregação, o Rio
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Grande, de cuja população exigia o Brasil tantos e tão ásperos sacrificios, teria, talvez, em oportunidades várias, todo ele, e não apenas a minoria, como em 35, pensado em se tornar autônomo, se a dolorosa experiência democrática do Uruguai e o expansionismo expectante da Argentina lhe não houvessem feito compreender que, em face das desvantagens do caudilhismo iminente e dos riscos de anexação por parte de Buenos Aires, o mais acertado ainda era permanecer fiel aos governos longínquos e, muita vez, retrógrados do Rio de Janeiro. 9 Assim, tanto pela vertente da história regional, ligada à geografia física e política, quanto pela vertente do pensamento, João Pinto da Silva registrou sempre a dominância do caráter fronteiriço do Rio Grande do Sul. Em decorrência disso, acentuou, muitas vezes, em sua obra, a proximidade tentacular de uma grande metrópole, de vida intensa e trepidante, como Buenos Aires (1924:128) apontada como elemento de distinção entre a cultura próxima ao Uruguai àquela mais chegada à Argentina. Essas diferenças, como não poderiam deixar de ser, manifestam-se nas nuanças fronteiriças. O modo como se articulam, desde o início da colonização, essas culturas foi o grande legado do primeiro historiador literário do Rio Grande do Sul.
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Influxos platinos no discurso crítico do Rio Grande do Sul
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Contradictorias aventuras y desventuras de la troves
Lisa Block de Behar . Universidad de la República - Montevideo
A Silvia Sanchez, a la sabiduría exploratoria de sus valiosas travesias que cruzan bibliotecas infinitas, reales e inciertas.
La preocupación por el espacio, por superarlo o atravesarlo, y por conocerlo, ha sido, desde los principios del pensamiento, una de las constantes que sigue dando lugar a los ejercicios de la imaginación y de la reflexión más variados. En la actualidad, esa preocupación se ha convertido en uno de los tópicos -en todos los sentidos del término- más interesantes, donde se cruzan la ficción, la ciencia, la tecnología, y las distintas especulaciones que analizan y teorizan sobre el espacio según las diferentes realizaciones artísticas y las disciplinas específicas que las consideran. Son numerosos los cambios que derivan de la crisis plural de un espacio insólito, que no llega a definirse, oscilando entre dimensiones extremas que suscitan profundas resonancias en quienes piensan el presente, la presencia, y sus ambiguas representaciones. Me interesa, en esta oportunidad, observar los movimientos que 10 atraviesan, desde una perspectiva predominantemente literaria y a
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partir de un discurso inusual, que privilegia la comparación como uno de los procedimientos epistemológicos prioritarios. Las aventuras del conocimiento atraviesan ese espacio complejo y problemático, llevando a cabo travesías que llegan a emblematizar una época de cambios, de deslizamientos disciplinarios y realizaciones que cuestionan el espacio, a la par que 10 determinan. El tema que propone ABRALIC para este noveno Congreso es tan pertinente como ilimitado. Intentaré abordarlo a la luz de varios pensadores que coinciden en meditar sobre el cruce de fronteras reales y textuales, donde se configura un espacio de tránsito y donde el tiempo, efimero, también transcurre; sobre la traducción que, en una publicación reciente es considerada como un milagro; sobre el rescate y la pérdida que esos movimientos y transformaciones implican; sobre la necesidad de entablarlos por medio de comparaciones que, alternativamente, duplican la escritura, que es una forma de dualidad, y padecen su duelo, que es otra. Desde las audacias náuticas y las crónicas de aventuras que las registran, hasta las vertiginosas y sedentarias navegaciones en intemet, la travesía puede abarcar todo lo que nos interesa o incumbe. No solo los diferentes planteos sobre los que se concentra la reflexión contemporánea -y que están mencionados en el programa- sino el acontecimiento de la totalidad en sí que (en el sentido que le asigna Maurice Blanchot al término), dada la extensa variedad de los aspectos involucrados, no le es tampoco ajena. En parte, Roland Barthes preveía, al definir la noción de "Texto", las dimensiones colosales de esa sustancia inasible y en movimiento: "Le Texte ne s'éprouve que dan s un travail, une production. 11 s'ensuit que le Texte ne peut s'arreter (par exemple, a un rayon de bibliotheque) ; son mouvement constitutif est la traversée (il peut notamment traveser I'reuvre, plusieurs reuvres)." Si, en el pasado, quienes pensaron las diferencias hicieron de las oposiciones su razón ideal de hacer; si esas diferencias lograron "cambiar, incluso, las propias condiciones de nuestro pensamiento", llegando a cuestionar el estatuto de la realidad y de sus confines, esa visión ideal no solo alteró el orden disciplinario y los límites epistemológicos. Si son conocidas, asimismo, las coincidencias y rivalidades entre los límites del lenguaje y los límites del mundo, no lo han sido menos los deslizamientos metalépticos multiplicados en las obras literarias o artísticas, donde la ficción penetra, como en un sueño, lo que no lo es. No es difícil advertir que un
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cuestionamiento transgresivo ha dejado en suspenso los márgenes de la filosofia y, en consecuencia, siguen vacilando los umbrales del conocimiento y sus teorías, propiciando cambios que los atraviesan, como flechas disparadas en distintos sentidos. Una experiencia consecutiva, esta vez sin límites, encuentra en las indefiniciones de la travesía, en la metáfora del pasaje, del transporte, del tránsito, de la transferencia, de la traducción y transposición, del traslado y la estadía -que no se oponen-, tanto el cambio como la permanencia que la definen. En tanto que se perfila como una figura del discurso, travesía vale asimismo como metáfora literal (si se admite la ambición retórica de incluir tanto su sentido figurado como el más literal) pero retuerce, además, la cuerda de la llamada "metáphore filante", un adjetivo que no sabría traducir pero que entiendo como la posibilidad de observar la continuidad de una figura a través de un texto y la felicidad de detectar un hilo retórico que conduce el motivo, atravesando tema y tela en todas direcciones -que son sentidos-, para consolidarlo en una trama mayor. Ya se ha adelantado, en primer término, que, una vez más, una obra magistral, en este caso Grande Sertao, Veredas, y un gran autor, como es Guimaraes Rosa, dan lugar a disquisiciones que no solo justificaron el 11 Coloquio (el "Encontro intermediario, de julho 2003", en Porto Alegre, como se informa en el programa preliminar) sino justifican las dimensiones institucionales y las derivaciones temáticas del presente Congreso. Más aún, si "la metáfora poética gestada no imaginario rosiano", como ahí se dice, propicia las especulaciones y comparaciones de este encuentro académico, el monólogo interminable de Riobaldo, su soledad en las desolaciones del Grande sertao, como motivo específico de la reflexión crítica, dan lugar no solo a una dicción nacional sino a la investigación sobre una de las más arcaicas o arcanas relaciones entre el discurso y el desierto. En este contexto, en consecuencia, no sería desacertado volver a identificar palabra y desierto en una misma raíz, más mágica y mística que etimológica. Mancomunados en el hebreo original, ilimitables, ambos términos aparecieron unidos en el Génesis, y continúan desde entonces esa unión, como si la palabra solitaria no solo fuera una voz en el desierto sino el desierto mismo. Resulta curioso comprobar que, a pesar del vaivén de las doctrinas, de las oscilaciones y vacilaciones que las fundamentan o cuestionan, de las iniciativas en que el devenir disciplinario arriesga sus verdades, nuestro
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pensamiento siga manteniendo la lógica de una misma estrategia ancestral, instalada desde el pretérito más remoto hasta hoy, según la cual se estima una obra literaria y maestra como punto de partida, como si no fuera posible empezar a pensar y actuar sino a partir de esa totalidad en ciernes que reservan las grandes realizaciones literarias (la Biblia, los poemas homéricos, las tragedias clásicas) consagradas por sus valores poéticos y por el mero hecho de una posteridad que las prolonga. El procedimiento es tan natural que ni se llega a percibir ese doble movimiento de aproximación y alejamiento que forma parte de la literatura, que parte y se aparta de ella, "dejando a la epopeya un episodio, luna fábula al tiempo", precipitando el conocimiento de una época y de su épica, a la par. Tanto las premisas de la filosofia básica, aquellas a las que se remonta la iniciación del discurso teórico-crítico y que establecieron las bases del pensamiento occidental, como las que preceden a tiempos por venir, determinaron las hipótesis del comienzo, de las que aún preferimos no alejamos demasiado, concertándolas con las derivaciones que promueven otros usos más fugaces e intereses menos poéticos que la actualidad elabora. De la misma manera que hace años, en un célebre ensayo, Maurice Blanchot se preguntaba "Ou va la littérature ?", ahora, un reciente libro de la UNESCO estructura una pregunta similar: "OU vont les valeurs? Paul Ricreur, que colabora en ese libro, propone modificarle su título para preguntarse: "Par ou vont les valeurs?" Le importa más hablar de los trayectos y las posibles errancias, de las rutas atravesadas según orientaciones imprevisibles, que limitarse a hablar sobre un "lugar" en particular. Más que el interés por un espacio dado, le pesa que esa finalidad sea una fatalidad, un destino. Para evitar las confusiones y los "impasses" que llevan a caminos sin salida, orienta el itinerario de ese deambular según "dos polos":
D 'un cóté, le fait de la pluralité: il y a des cultures, des langues, des nations, des religions, et nous ne pouvons pas projeter l'état de l'humanité qui ne serait plus soumis el la condition de la pluralité. Pero agrega:
Mais, d'autre part, nous avons un horizon qui est l'humanité, mot au singulier, alors que les cultures sont au pluriel.
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Es dificil sustraerse a hábitos de pensamiento demasiado afianzados o a automatismos de nociones tan arraigadas, sobre todo cuando no se advierten como tales. Sin embargo, a pesar de reconocer la legitimidad de fronteras definidas, necesarias para que se distingan las particularidades propias o rivales y se habiliten los intercambios culturales, Ricreur propone sustituirlas por la idea de rayonnement, por esa irradiación que los centros culturales crean, capaces de provocar otras tantas respuestas de centros diferentes, no ya condicionados por la soberanía de algún Estado-nación sino por la definición y el esclarecimiento de sus vínculos interculturales. El aura prevalece sobre el lugar, la irradiación sobre la radicación. A pesar de las ambiciosas dimensiones del planteo, a pesar de la escasa significación de las partículas gramaticales, esos aspectos, que son los que más le importan, podrían resumirse en la partícula por: por esa partícula pasan la travesía, las rutas, el intercambio y los movimientos, la necesidad de optar entre distintos caminos o métodos, todo eso condensado en una sílaba y una precaria función gramatical. Por menor que sea su mención, en esa preposición resuenan aún las especulaciones que hace veinte años formulaba Derrida en Montevideo, a propósito, precisamente, de la "invención del otro". Por cifra una clave de iniciación en ambos pensadores. Empezando por citar el poema de Francis Ponge, "Fable", Derrida partía de la misma preposición, ya que el primer verso de "Fable" empieza por por. Repetida, la preposición repercute en el poema, como un golpe, como más de uno. Parece que la repetición machacara el verso, haciendo oír el ruido de la fractura que quiebra no solo el espejo y la fortuna sino la naturaleza ambivalente de la palabra que, aún en las medidas reducidas de la preposición, contrae los dos polos de que hablaba Ricreur:
Par le mot par eommenee done ce texte Contundente, la aseveración se muestra, está ahí, a la vista, reflejada en una línea de la página como en la superficie de un cristal. El mínimo régimen semántico de la preposición ya dice bastante: por no solo indica el desplazamiento de un término por otro sino que es signo de una multiplicación e imprime un movimiento hacia un espacio diferente. En el verso de Ponge se menciona, en primer término, el uso concreto y particular de la preposición. Invocada en segundo término, la preposición cambia de estatuto. Repetida, es origen de una dualidad especiosa que podría denominarse "el efecto de espejo": reflejo y reflexión, imagen y pensamiento, en uso y desuso, coinciden
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en la misma voz, en el mismo horizonte de universalidad que Ricreur trazaba para asegurar la universalidad de las pluralidades culturales que están en juego, aun en la expresión más mínima. Formulado en términos de oportuna actualidad, el cambio de nombres no alcanza a disimular las renuncias ni deroga los debates, que se vuelven a encender, entre la postulación de la universalidad y sus querellas o quimeras, entre el infinito y los fines, que no lo niegan, o la finalidad que presumiblemente se procura. Tal vez atisbe en esa pluralidad de fines y finales su especie de eternidad, que oscila entre la historia y la poesía, entre la apariencia y la verdad, entre la observación cautelosa de los límites y las transgresiones más o menos intrépidas que los impugnan. Solidarios, los términos -que también denotan un fin- se requieren recíprocos. Pero no solo para Ricreur la posibilidad del mayor traslado de valores culturales se produce gracias a la traducción. Dirigida en uno y otro sentido, evitando un "sens unique", que le quitaría la pluralidad de sentidos a una interacción que interesa en tanto facilite esa ida y vuelta, la traducción hace posible el tránsito de una cultura a otra cultura:
La traduction, c'est la médiation entre la pluralité des cultures et l'unité de l'humanité. En ce sens, je parlerai du miracle de la lraduction el de la valeur emblématique des lraductions. (. ..) La lraduction ne se réduit pas el une technique pratiquée spontanément par des voyageurs, des marchands, des ambassadeurs, des passeurs, des traftres et, en discipline professionnelle, par les traducteurs et les interpretes : elle constitue un paradigme pour tous les échanges, non seulemenl de langue el langue, mais aussi de culture el culture. La traduction ouvre sur des universels concrels, el non pas du tout sur un universel abstrait, coupé de l'histoire. De un espacio a otro, sin límites y sin tiempo, la promesa de eternidad no es ajena, sin embargo, al horror de la historia ni a las tempestades que asombran al angelus novus, estupefacto ante las vicisitudes que otros llaman progreso. Por eso, la tarea del traductor asume, en el pensamiento de W. Benjamin, una función mesiánica y anticipa, asimismo, en la calamidad, la trascendencia. Por los trámites de la traducción, Benjamin vislumbraba la lengua del Paraíso, una prelengua, anterior e interior, pura y perfecta, más allá de los pasajes y sus parajes, de los tránsitos y sus trances: la revelación. Es en ese espacio informe, entre lenguas, donde radica la inmanencia de un paisaje primordial.
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Similar a "O idiomatemo, o a duras penas, o em outros tempos, o ainda um dia? - Ar.", es aire aural de Haroldo de Campos, quien supo hacer de ese aliento fundacional y familiar, de la concepción de Benjamin, su idioma poético y precursora su prédica teórica. De la misma manera, Ricreur advierte, en los beneficios de ese traslado, el daño, el "transporte" y, en las aventuras de la traducción, la desventura. Si bien no menciona a Benjamin, o no lo tiene presente, Ricreur alude a una pérdida similar y también previene, en las alegrías de la reciprocidad, la parte del duelo. Son sus palabras:
Ce que la traduction peut produire (. ..) c'est l'idée d'acceptation de la perte, l'idée du deuU. Nous avons déja le deuil de la traduction parfaite. Il n'y a pas de traduction parfaite, on peut retraduire toujours, et la traduction est toujours en marche. le voudrais étendre l'idée de perte et de deuU au rapport des cultures entre elles. A pesar de las tentativas por superar las oposiciones y la tentación a suspender las categorías, en los planteos de Ricreur se vuelve a insinuar el conflicto entre la Idea perfecta y las variaciones de las realidades que ampara, entre la aspiración a las generalidades de la reflexión filosófica y las impostergables eventualidades de la historia, entre lo universal y lo accidental. Rivales y afines, se nutren de las tradiciones propias y ajenas, de la reivindicación y la renuncia. Entre la apropiación y la enajenación, entre la conservación y la pérdida, se conserva la memoria tanto como los olvidos, inevitables e inextricables los dos. Inherentes a la suerte de los hombres, están ahí apuntando hacia una misma meta:
Le cruel XXe siecle européen impose cette prise en compte. La capacité a faire le deuil doit étre sans cesse apprise et réapprise. Il faut accepter dans nos échanges culturels qu'il y ait de l'indéchiffrable dans nos histoires de vie, de l'irréconciliable dans nos d({férends, de l'irréparable dans les dommages subis et infligés.
a
Quand on a admis cette part de deuil, on peut se confier une mémoire apaisée, au feu croisé entre foyers de cultures dispersés, et a la réinterprétation mutuelle de nos histoires et au travail a jamais inachevé de traduction d'une culture dans une autre.
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¿Es la misma parte, esa parte del duelo que preocupa a Ricreur, la parte del fuego de la que hablaba Blanchot hace más de medio siglo? Fuego y duelo asociados, a través del tiempo, por desapariciones y tragedias que no cesan. ¿Es el mismo duelo el pesar que aflige a ambos pensadores en circunstancias bastante distantes y distintas? ¿Son diferentes las parcialidades de esa hazaña que Benjamin denomina "la tarea del traductor" y que, según el propio Benjamin, es tanto acción como renuncia? Si los criterios taxonómicos que clasifican las obras literarias según sus atributos ya no son de mayor interés, si la categorización de los géneros tradicionales ha sido desplazada por otros géneros más previsibles o más visibles, se presume más que una transformación sustancial del pensamiento, la instalación de un aparato inestable, itinerante, nómada, que privilegia la travesía como el mejor sitio o situación. Sin embargo, ese tránsito es jurisdicción de la muerte ya que "le nouveau toujours nouveau dissimule une autre expérience, beaucoup plus douloureuse : la traversée de la mort. " Tal vez Blanchot estaba en lo cierto cuando no le concedía a la literatura el derecho a considerarse ilegítima, ya que el hecho mismo de cuestionarse la legitimaba: "La littérature n'a peut-etre pas le droit de se tenir pour illegitime." Realización y negación, como ellenguaj e que revela y releva a la vez, la literatura se construye sobre sus propias ruinas, como un templo sobre los escombros de otro templo o de otros tiempos. Es el propio Blanchot quien se adelanta a denunciar el lugar común de esta paradoja. Ya no se intenta ajustar la obra literaria a códigos que pretendían revelar una verdad o adecuarla a las limitaciones de modelos establecidos o describirla según técnicas restrictivas procurando, de esa manera, dejar de lado tanto una visión esencialista como la aporía de los límites. Aunque desde otra perspectiva, no demasiado diferente, Derrida apunta una situación igualmente paradójica:
Pour aborder un texte, il faudrait que celui-ci eút un bord. La question du texte, cel/e qui s'élabore ou se transforme depuis une douzaine d'années, n'a pas seulement touché au bord (scandaleuseument, comme "On a touché au vers", anno1U;ait Mal/armé), a toutes ces limites qui forment la bordure courante de ce qu'on appelait un texte, de ce qu'on croyait pouvoir identifier sous ce mot (. ..) Blanchot intenta sustraerse a las vicisitudes de la historia, a la inmediatez de las situaciones compartidas, a la "coincidencia" de
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compromisos ocasionales, a la compasión, abogando por un derecho paradójico y fatal: "La littérature et le droit ala mort", es el capítulo final y doloroso donde medita sobre un sacrificio que supera la pérdida porque el texto queda a salvo, aun cuando el conocimiento literario se construya sobre su aniquilamiento. El libro de Blanchot se titula La part du feu y, si bien ya no le interesa reivindicar el poder de la literatura, es apenas el poder seguir existiendo de la literatura el que está enjuego. El derecho del lenguaje valida "le droit a la mort", la potestad de hacer aparecer y desaparecer le fue conferida, no ya como dos instantes diversos, sino como una misma forma de acción o dicción: la instancia en que el gran desierto las identifica en las consonancias de una misma voz. La asociación entre pasaje y silencio, entre mutación y mutismo no se verifica solo por la atrocidad de los transportes y deportaciones cometidos por el nacional-socialismo y los desmanes de los colaboracionistas en el siglo XX sino que cuenta desde los orígenes de la imaginación y las palabras que la articulan. Si hablo de un territorio literario, ese territorio es una utopía, la negación de un lugar; el nombre consagra la desterritorialización, que es su naturaleza. Si hablo de quien se arriesga a las aventuras para volver a su patria, es Nadie, alguien que niega como un solo nombre porque "Nadie es la patria". Si hablo de un tiempo, de un lugar, de un hombre, es porque ya no están, explicaría Raymond Queneau. Si en una palabra está todo el río, es el Nilo, y así la nihilización sigue su marcha verbal y mortal. "A chaque etre son Non, a chaque bien son mal." "Que peut un auteur ? Tout, d'abord tout", y es precisamente en esa negación, que es global y total, que "niega la negación del tiempo, niega la negación de los límites." Esa doble negación, que es condición de la literatura, porque fue previamente la de la palabra, es, según Blanchot, la libertad del escritor que se arroga esa potestad de intervenir en el mundo:
L'injluence de l'écrivain est liée el ce privilege d'étre maftre de tout. Mais il n 'est maftre que de tout, il ne possede que l'infini, le fini lui manque, la limite lui échappe. Ol~ on n'agit pas dans l'infini, on n'accomplit rien dans l'i/limité ... Blanchot reconoce en el escritor ese movimiento que va, sans arret
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y, casi sin intennediario, pasa de nada a todo, un passage du rien tout, casi insignificante. Si una obra puede cambiar el curso del mundo, tal vez no sería demasiado exagerado afirmar que también una palabra puede cambiar el discur-
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so del mundo o el discurso, tout court. Y, en esta situación de hoy, esa palabra sería travesía o los movimientos que su acción implica. Ambivalente o contradictorio, el término no puede sustraerse a ciertas duplicidades lexicológicas que no eluden los pliegues, que no ocultan una significación excéntrica -o varias- que se presta a la preferencia de un estatuto literario privilegiado y que la pluralidad del diccionario avala. No solo en travesía se traza ese itinerario lateral y sesgado del viaje. El pasaje, que es devenir, coincide con el espacio de la escritura que permanece. Derrotero es camino en español, una ruta, un itinerario en el mar, pero es también el libro que contiene esos caminos, que son también derrotas. Un tiempo transcurre pero, concomitante, ocurre la fij ación en el espacio que le da lugar; es un pasaje que, traducido, es en inglés passage, travesías. El término contrae las dos coordenadas en una: pasaje y paraje, el pasaje es las dos cosas, espacio y tiempo, un pasaje como los que recorrió y celebró Benjamin en Paris, la capital du XIXe siecle, una construcción o un término fetiche que hace de la ambigüedad su desconcertante certeza: ni exterior ni interior, ni público ni privado, ni calle ni casa, sino todo a la vez. Ese devenir todo favorece la comparación que entabla las diferencias tanto como las afinidades para delimitar un lugar compartido, comparado, común. Pasajes, para Benjamin; parajes para Derrida, partes del duelo o del fuego. Según Ricreur
Quand on a admis cette part de deuil, on peut se confier a une mémoire apaisée, au jeu croisé entre joyers de cultures dispersés, et a la réinterprétation mutuelle de nos histoires et au travail ajamais inachevé de traduction d'une culture dans une autre. Tal vez Benjamin sabía que los pasajes de la ciudad no diferían de los pasajes textuales y, por eso, ni elude las citas que los quiebran ni sorprende que ambos se nombren con el mismo vocablo. El pasaje o el paseante atraviesan el edificio como el texto se desplaza y atraviesa otros textos en fragmentos. La comprensión o la traducción habilitan una especie de espacio en movimiento, metáfora del traslado, de transportes, de aviones, ferrocarriles, autos donde el usuario, como en internet, pennanece sedentario, pero como si estuviera quieto y arrebatado por la velocidad, sin moverse y acelerado, estático y avanzando a una velocidad pasmosa. Los pasajcs de Benjamin no son solo los de París, son también el cruce de las fronteras que quiere atravesar huyendo, de una persecución a
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otra, hasta el trágico fin que a todos nos pesa y monumentalizó Dani Karavan en Passages. Así se denomina la instalación de un Memorial dedicado a Benjamin en Portbou, para emplazar la aspiración de pasar de la violencia a la libertad, de un país a otro país, o de este mundo al más allá, de pasar y no pasar. Parece justo que, siguiendo los pasos de Benjamin, Karavan haya pensado en instalar su obra en un paraje cerca del cementerio donde Benjamin no está enterrado. Erige un "monumento" del pasaje, del lugar y el movimiento, del deseo de abandonar Francia y Europa, para salvarse y salvar más que un manuscrito; es memoria de la vida y la travesía en igual condena. Tampoco deja de ser extraño que, precisamente, quien hizo de los pasajes de una ciudad ajena un lugar mítico, haya sucumbido en un pasaje que no realizó. Desde las contraseñas bíblicas al contradictorio mot-depasse que invoca Paul Celan: No pasarán, sentencian los ritos de la palabra y el pasaje: unjudío sacrificado, dos, incontables. Antes de la guerra y aún continúa. El mismo totalitarismo los convierte, a Benjamin y a Celan, a ambos, en víctimas de sí mismos, al extremo que apresuraron en su muerte dos penas, confundiendo "la plaie et le couteau", la herida y el cuchillo. Parte del fuego (para Blanchot) o parte del duelo (para Ricreur), partes de un naufragio por el que se espera restituir, por el sacrificio, la ofrenda; en la historia inconstante, la de todos, suspendiendo la violencia del enfrentamiento porque aplaza el "reconocimiento mutuo de culturas" que se creen diferentes e ignora, por demasiado semejantes, sus coincidencias.
Literatura comparada e tradução: releituras e recriações culturais
Patrícia Lessa Flores da Cunha PPG Letras - UFRGS
Ás relações entre os estudos de Literatura Comparada e Tradução sempre foram das mais estreitas, a ponto de alguns teórico-críticos, ao final do século XX - sendo, talvez, dentre eles, a mais conhecida Susan Bassnettespecularem sobre a possível substituição de uma pela outra, enquanto áreas de conhecimento específico. Isso porque a recepção do estrangeiro, motivação instigante para o exercício da atividade literária, sempre se constituiu numa fecunda área de investigação da Literatura Comparada, realizando-se, na prática, através de estudos sobre literatura de viagem, fortuna crítica de obras e autores e, especialmente, traduções. A propósito, a indagação, já convenientemente fonnulada por Itamar Even Zohar e os subseqüentes estudos da Escola de Tel Aviv, de qual seja o papel desempenhado pelas traduções nas relações culturais entre dois ou mais sistemas literários, em períodos detenninados, em níveis de desenvolvimento diferenciados, de certo continua a instigar e promover investigações producentes. Em publicação mais recente, George Steiner, tentando responder à onipresente indagação "O que é Literatura Comparada?", manifesta sua militância comparatista ao explicitar,já no início de sua exposição, que "todo ato de recepção em linguagem, em arte e música é um ato comparativo ...
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procurando entender, 'situar' o objeto que temos diante de nós - seja ele o texto, a pintura, ou a sonata - dando-lhe um contexto inteligível e informativo de experiências prévias a ele relacionadas." Afinando o seu ponto de vista, Steiner acrescenta: "lingüisticamente falando, apossamo-nos das palavras e delas fazemos uso de maneira diacrítica, ou seja, tomando por base o que diferencia aquelas palavras das demais". E conclui: "O processo semântico é um processo de comparação. Ler é comparar". Não perdendo de vista a caracterização da disciplina, Steiner define:
"Para mim, a Literatura Comparada é, na melhor das hipóteses, uma arte de ler rigorosa e exigente, um estilo de ouvir ou ler atos de linguagem que privilegiam certos componentes desse ato. Esses componentes não são negligenciados em qualquer modo de estudo literário, porém na literatura comparada eles são privilegiados". 1 Entre esses, estaria o estudo da(s) linguagem(ns), em suas fontes históricas e lingüísticas, o que leva a literatura comparada a rejubilar-se "na diversidade de Babel". Isso aponta para a questão da tradução, fundamental na sua realização disseminada através do tempo e do espaço. Nessas circunstâncias, readquire significado e valor o trabalho de se ir às fontes e a questão da influência, não mais vista como herança atávica, mas como diálogo intrínseco, necessário para pôr idéias em relação. Não deixa de ser interessante constatar que, para Steiner, às vésperas do novo século e milênio, ainda são "o envolvimento continuado com diferentes línguas, o interesse pela recepção e pela influência de textos e a atenção a analogias e variações temáticas" os fatores que determinam a especificidade dos estudos literários comparatistas. Se pensarmos, todavia, como Jorge Luis Borges, que literatura é tradução, essa metáfora delimita um território nevrálgico e amplo de especulações filosóficas. Na verdade, pode-se dizer que a questão da tradução está na raiz do problema do conhecimento, pois na esteira do pensamento de Lévi-Strauss, "significar" implica a possibilidade de qualquer tipo de infonnação ser traduzida para uma linguagem diferente. A prática da tradução, em sua revelação do novo, do outro, das alteridades, toma-se instmmento para o próprio ato de conhecer, explicitando, de modo singular, o que Morin denominou "construção tradutora" do conhecimento. 2 Inversamente, conceber o conhecimento como tradução ne-
I STEINER, G. o Que é Literatura Comparada? In:
Nenhuma paixão desperdiçada. Rio de Janeiro: Editora Record. 2001.
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, BARBOSA, E S. Conhecimento e Significado como Tradução. Cadernos de Tradução, Porto Alegre, Instituto de Letras/UFRGS. n.ll. jul-se1.2000, p.7-18.
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J PAZ, O . TradllCciófI: literatllra y literalidad. Bar-
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MAN, P. de. "Conclusions": Walter Benjamin's "The Task of the Translator". In: _ . The resistance to theory. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993. p. 73-105. 4
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cessariamente implica abertura dos horizontes intelectuais e disponibilidade para experimentar o exótico, o diferente, o desconhecido. Por outro lado, o ato de recriar a linguagem, em clara utilização de sua função metalingüística e a partir da interpretação idiossincrática acionada por um processo de leitura, constitui, em si, uma das possibilidades da tradução. Dessa forma, cada tradução conota seu original; o original denota suas traduções, a refletirem as múltiplas maneiras de se considerar e interpretar o mundo. Não sem razão, Octavio Paz remete novamente o ato tradutório ao mito de Babel: a tradução lida não só com a pluralidade das línguas, também com a diversidade das sociedades. Sendo cada civilização um mundo, cada linguagem traduzida é uma visão de mundo. 3 A tradução do que é estrangeiro/estranho para nós, em outras línguas, permite-nos, portanto, explorar e formular emoções e conceitos que, de outra forma, não vivenciaríamos nem experimentaríamos: o ato tradutório continuamente amplia as fronteiras lingüísticas e culturais das linguagens de cada um. Em si mesma, a tradução passa a ser uma forma revitalizada e revitalizadora da linguagem e do significado com suas formas de expressão. Tais considerações nos levam à tradução como ato de formulação crítica, enquanto poderoso instrumento de indagação textual. Uma vez que traduzir envolve leitura (recepção), interpretação (decodificação) e produção (reescritura), realiza-se enquanto crítica, porque pressupõe reflexão, com subseqüente rearranjo do reflexo da realidade. A esse respeito, convém lembrar a posição referendada de Paul de Man,4 no ensaio sobre Benjamin, para quem a tradução literária, enquanto atividade intelectual, assemelhava-se muito mais à crítica do que à criação literária propriamente dita. Para Benjamin, apud de Man, tanto a crítica como a tradução têm uma feição de ironia, no sentido de que ambas desestabilizam o original, à medida em que o re-canonizam através da tradução ou da teorização. Não deixam de ser atividades parodísticas, procedimentos paralelos e hermenêuticos, substantivos para o entendimento do objeto literário. De outra forma, Haroldo de Campos, em "Tradução como Criação e como Crítica", retomando a questão da intraduzibilidade da "informação estética" propugnada por Max Bense (1958), recorre ao ensaísta Albert Fabri (1958) quando afirma que toda tradução é crítica, pois "não se traduz o que é linguagem num texto, mas o que é não-linguagem". A partir dessas idéias, reflete o próprio Haroldo: "A tradução de poesia - ou prosa que a ela se equivalha em problematicidade -, é antes de
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tudo urna vivência interior do mundo e da técnica do traduzido. Corno que se desmonta e se remonta a máquina da criação, aquela fragílima beleza aparentemente intangível que nos oferece o produto acabado numa língua estranha (não há corno obliterar aqui o eco derridiano: tradução é desconstrução, em sua "Carta a um Amigo Japonês") ... Os móveis primeiros do tradutor, que seja também poeta ou prosador, são a configuração de urna tradição ativa ... um exercício de intelecção, e através dele, urna operação de crítica ao vivo. Que disso tudo nasça urna pedagogia, não morta e obsoleta, em pose de contrição e defunção, mas fecunda e estimulante, em ação, é urna de suas mais importantes conseqüências". 5 Para Haroldo de Campos, conseqüentemente, traduzir toma-se então a maneira mais aberta de ler e interpretar. Os aportes teóricos mais recentes advindos das teorias desconstrutivistas e da recepção, da leitura e da produtividade do texto, bem corno as relevantes contribuições da pesquisa lingüística, nas suas variantes discursivas e semióticas, ao lado dos novos enfoques da história e geografia das culturas, têm agudizado questionamentos e reflexões que permitem a inserção das questões de tradução nas vertentes das práticas interdisciplinares dos estudos culturais. Tradicionalmente vista corno urna atividade mimética, a tradução agora transcende as noções formais da equivalência, da literalidade e da fidedignidade para, na esfera da cultura, estabelecer relações dialéticas entre espaço e tempo, entre nós e eles. Nesse contexto expansivo, avulta o reconhecimento dos processos de diferença cultural, em que reside o "espaço do novo", intersticial, que, na visão descentrada de Homi Bhabha e Edward Said, entre outros, elide as transações impostas por fronteiras e limites convencionais. Bem a propósito, Susan Bassnett denominou essa mudança de ênfase- da base essencialmente lingüística para a da relação contextual- corno a "vez do cultural" nos atuais Estudos de Tradução. 6 A noção cada vez mais incontestada de que o valor - seja estético ou material- é determinado pela cultura toma-se particularmente relevante se percebermos que tanto os estudos de tradução quanto os estudos culturais se inter-relacionam no tocante às discussões contemporâneas sobre poder e modos de produção. Entre outras particularidades, ambos reconhecem a importância dos processos de manipulação a que se atrela a produção textual, encarada agora em seu sentido mais amplo; ambos se configu-
5 CAMPOS, H. Da Tradução como Criação e como Crítica. In: . Metalinguagem & outras metas. Ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 1992. p.31-48.
BASSNETT, S. & LEVEFERE, A. Constructing cu/fures. Essays 011 litera/y translation. Clevedon: Cromwell Press. 1998.
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7 CARBONELL I CORTÉS, O. Traducir aI otro. Traducción, exotismo, poscolonialismo. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla - La Mancha, 1997.
, CAMPOS, H. de. Tradução e Reconfiguração do Imaginário: o Tradutor como Transfingidor. In: COULTHARD, M. & CALDAS-COULTHARD, C. R. (orgs.). Tradução: teoria e Florianópolis: pratica. EDUFSC, 1991. p. 17-31.
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ram como campos de investigação precipuamente interdisciplinares, instalados de modo fecundo no escopo dos chamados estudos pós-coloniais. É nessa dimensão que os propalados conceitos de "tradução cultural" e/ou "transferência intercultural" e, em certa medida, "tradução como reescritura", apresentam-se sobremodo operacionais e instigantes, na medida em que eventualmente se preocupam com o modo de ser de outras culturas naquilo que lhes é íntriseco e original, e assim lêem e expressam o que, muitas vezes, nelas está implícito. O fato de privilegiar as fronteiras entre o traduzível e o intraduzível, o dito e o não-dito, na consecução de sua peculiar experiência, transforma a tradução em paradigma, agora essencial, à tentativa de explicar os processos de apropriação, integração, deformação, assimilação do Outro, expresso nas suas múltiplas e variadas ocorrências. Não obstante, esse empreendimento não raro se frustra por estratégias sutis que ou tomam estranho o familiar, ou domesticam/familiarizam o exótico. Se ler outras culturas equivale a ler o que está subtendido na cultura estrangeira, a "tradução cultural" supõe a construção de um texto paradoxalmente (sub )vertido -"a força dessa tradução radica no fato de que a descoberta do implícito se leva a cabo não apenas no texto de origem como no de destino".7 Nesse sentido, entende-se também a afirmação singular de Haroldo de Campos, quando propõe substancialmente repensar a tradução literária como fantasia, como ficção, ao especular: "Se o poeta é um fingidor, o tradutor é um transfingidor". 8 Pois é através das possibilidades da transcriação artística, na sua maneira de lidar com as perdas e danos intrínsecos ao ato tradutório, que se viabiliza a permanência do texto literário, em sua condição de traduzibilidade. Iluminados por essas idéias, podemos examinar o papel da tradução na obra de escritores brasileiros e latino-americanos, sob a perspectiva de uma relação transcultural que lhe é inerente, decorrente de sua intrínseca capacidade intertextual. Assim, cabe aqui lembrar a observação oportuna de Tania Carvalhal:
"Não há dúvida de que a tradução alimenta a criação literária. Isso ocorre tanto na perspectiva de que as traduções literárias enriquecem os sistemas que integram como também o trabalho individual do escritor. Àndré Gide dizia que todo escritor deveria traduzir pelo menos uma obra de literatura estrangeira para sua própria literatura, uma obra com a qual
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seu talento e seu temperamento tivessem particular afinidade, com objetivo de enriquecer o sistema literário a que pertencesse. Octavio Paz se refere a 'uma contínua e mútua fecundação' entre escritor e obra traduzida, citando os casos de Baudelaire e de Pound. //9 Na realização de seu empreendimento ficcional, o escritor-tradutor, pois, atualiza mais que nunca a percepção crítica presente na atividade tradutória, na medida em que também revela outros e novos enfoques sobre as mesmas realidades. Três escritores, verdadeiros case studies, ilustram essa possibilidade. O primeiro deles é o canônico Machado de Assis. IO A capacidade de recriação de Machado de Assis desenvolvida em atividade tradutória acha-se definitivamente exposta na tradução que fez do poema "O Corvo", escrito por Edgar A. Poe, incluída no livro Ocidentais (1901) de suas Poesias Completas, coletânea resultante de apurado trabalho de seleção levado a cabo pelo próprio Machado. Nesse poema, sobejamente analisado, o que se evidencia é uma assumida transgressão e definitiva transformação em relação ao texto-fonte. Machado de Assis já não faz uma tradução de Poe, no sentido "ortodoxo" do termo, de resguardar uma eventual fidelidade do inglês para o português, preservando as características intrínsecas do poema, em termos de ritmo, métrica e rima, como mais tarde o faria em trabalho reconhecido Fernando Pessoa. Através de alterações que se fazem sistemáticas do sentido das palavras e dos padrões sonoros que compunham originalmente o poema "The Raven", Machado faz uma "transcriação" do primeiro texto, possibilitando leituras e interpretações mais ao gosto do leitor de hoje, "tropicalizando", como afirmou Sérgio Bellei, o corvo de Poe. II Em nossa hipótese, essa idéia de apropriação e sutil deformação, para lembrarmos Antonio Candido, entendida como elemento intrínseco e sistemático, fundamental na produção literária extremamente intertextual de Machado de Assis, apresenta-se como forma de traduzir que reflete uma concepção epistemológica da própria atividade. RecolTentes e reconhecidas figuras machadianas, que pontuam a construção de seu texto crítico-ficcional, podem elucidar a dimensão dessa concepção, como é o caso das chamadas "metáforas digestivas". Tal perspectiva, a nosso ver, permeia a obra ficcional do escritor fluminense. Na contística de Machado de Assis, sobretudo, a tradução apa-
9 CARVALHAL, T. Tradu· ção e Recepção na Prática Comparatista. In: _ . O próprio e o alheio. Ensaios de literatura comparada. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2003. p.217· 259.
10 FLORES DA CUNHA, P. L. Machado de Assis, um escritor na capital dos trópicos. Porto Alegre: IELI UNISINOS, 1998. 218p.
11 BELLEI, S.L.P. O Coro Tropical de Edgar A . Poe In: . Nacionalidade e literatura. Os caminhos da alteridade. Florianópolis: EDUFSC,1992. p. 77-90.
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rece, não em sua modalidade stricto sensu, como, aliás, também não fora o caso das traduções de poesia, mas ao IItraduzir " idéias, temas, personagens e fonnas de composição, apropriando-se do material estrangeiro para a recriação e a redisposição em matéria singular de seu projeto literário, Machado traduz efetivamente em sua dicção própria o universo da literatura ocidental contemporâneo ao leitor brasileiro que então se fonnava. É assim, por exemplo, que podemos ler as traduções de Shakespeare que, mais explícitas, se evidenciam nos textos machadianos- por exemplo, em liA Cartomante ll (Várias Histórias,1896), onde a citação de Hamlet, convenientemente modificada, já de início alerta para a estória de dúvida, traição e morte que se avizinha. Ou, ainda, em lICurta História ll (1886), em a tragédia dos apaixonados Romeu e Julieta se reconfigura no envolvimento I' FLORES DA CUNHA, P. L. Sobre Intermediação: O Papel da Tradução na Construção do Texto Literário. Uma Perspectiva Epistemológica. In: Anais do VIII Congresso Internacional ABRALIC 2002. Belo Horizonte: UFMG, 2002. CD Rom.
amoroso canhestro, quase cômico, entre Cecília e Juvêncio. 12 Erico Verissimo, notável escritor gaúcho, é outro exemplo singular em que artifícios ficcionais construídos a partir de uma atividade tradutória podem ser detectados talvez mais pontualmente. Como é sabido, Erico iniciou a sua atividade como tradutor da antiga Livraria do Globo, em Porto Alegre, entidade editorial responsável por notáveis publicações nas décadas de 40 e 50, sobretudo, e com a qual manteve estreitos vínculos profissionais até sua morte. Graças a ele, autores como Aldous Huxley e Katherine Mansfie1d, entre outros, passaram a conviver com o leitor nacional. Ao mesmo tempo, ensaiava-se como escritor, revelando o seu talento a um público que se tomaria cada vez mais crescente e
11 FLORES DA CUNHA, P. L. A Tradição e o Talento Individual: Erico Veríssimo. leitor de Aldous Huxley. In: APPEL, M.B. & MASINA, L. (orgs). A geração de 30 no Rio Grande do Sul. Literatura e artes plásticas. Porto Alegre: PPG Letras, EDUFRGS, 2000. p. 169-
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sempre fiel (em um certo momento, foi o escritor nacional mais traduzido no exterior, juntamente com Jorge Amado). 13 Hoje, à luz das recentes contribuições teóricas já referidas, não seria exagero afirmar que a atividade tradutória de Erico Veríssimo em muito contribuiu para o papelllconsolidador" exercido pela configuração do chamado romance nacional de 30, mérito a ele atribuído na apreeiação crítica de Wilson Martins. Da mesma fonna, Antonio Candido singulariza-o dentro dessa corrente, a partir da sua manifesta oposição latente entre o belo estático e a realidade social, a influir Ilporventura na sua escolha a elaboração da técnica contraponto, que pennite os panoramas sociais e o retrato complexo dos grupoSll. Ao traduzir, em 1933, o romance Point Counter Point, do hoje cult Aldous Huxley, segundo Hélio Pólvora, "numa época em que a formação intelectual brasileira ainda dependia em grande parte das letras francesas e quando o nosso romance espelhava o modelo do romance francês, Erico
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Verissimo ofereceu uma abertura para a (influência da) novelística de língua inglesa". 14 Especialmente na obra-prima do escritor gaúcho, O tempo e o vento, muitas dessas marcas estão sinalizadas, convenientemente transformadas (senão domesticadas) e enriquecidas pelo talento local da criação literária. O arquétipo das personagens femininas, extremamente telúricas, de Veríssimo, de Ana Terra a Bibiana e Maria Valéria, passando pela "teiniguá" Luzia, está esboçado na caracterização urbana e sofisticada de Lucy Tantamount. Da mesma forma, o recurso do contraponto e o uso do flashback, inovações supostamente introduzidas por Aldous Huxley em suas narrativas para obter o efeito da simultaneidade de ações e o resgate da memória ao longo do eixo temporal, são plena e exitosamente utilizados na trilogia, que se corporifica e se desenvolve em tomo das idas e vindas temporais, sublinhando o comportamento das inúmeras personagens diante dos fatos. O terceiro caso a ser aqui referido, exemplo máxime da contemporaneidade de todas essas especulações, é a ficção de Jorge Luis Borges, que realiza a literatura como tradução- "la traducción es consubstanciaI con las letras y con su modesto misterio".15 Para muitos de seus críticos, raramente Borges se apresenta em seus relatos como o inventor de uma estória; antes, recebe-a, escuta-a, ou a lê, como se fora dela o destinatário. Sua narração implica certa idéia de "adoção tardia", em que toma para si o encargo de uma estória alheia, estrangeira, recuperando-a, no entanto, com todas as suas marcas de alteridade. A poética borgeana preserva assim o espírito da translatio: fazer ficção é transportar de seu contexto um material já existente para inseri-lo em outro, diferente, novo. Nesse movimento, considera o parasitismo e a subordinação, a leitura e sua glosa, a desestabilização das hierarquias e sistematizações, a relação entre o mesmo e o outro, a repetição e a diferença, o próprio e o alheio; para Borges, a literatura só tem sentido quando se move, se desenraiza, coloca em risco sua integridade. Através desta breve discussão sobre idéias que alimentam um trabalho de pesquisa e reflexão, consubstancia-se, então, toda uma visão do processo de tradução como reescritura, numa acepção particular do termo atualizado por André Lefevere. Verifica-se que as sucessivas mudanças de tom detectadas nos textos ficcionais estudados, que resultam em textos diferenciados per se, não raro são introduzidas nas escrituras em decorrên-
14 FLORES DA CUNHA, P. L. Erico Verissimo e Aldous Huxley: um caso de literaPorto tura comparada. Alegre: CPG Letras/UFRGS, 1984. 178p. Diss. mestrado.
15 HELFT, N. & PAULS, A . Segunda Mano. In: _ . EI factor Borges. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 2000. p.103124.
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cia de uma atividade tradutória, vista como ato radicalmente epistemológicocomo ato de (re)leitura e (re)criação de um conhecimento visceralmente apreendido. Isso garante, de um lado, a individualidade de cada texto literário, redimensionando, sob outro viés, as relações entre texto-fonte e texto-alvo, re-elaborando, de forma irredutível, as noções de fidelidade e originalidade sempre presentes nos debates sobre os estudos da tradução. Por outro lado, instauram-se premissas e condições de análise que permitem, sob diversos enfoques, perscrutar a visibilidade cultural do caso do escritortradutor e a efetiva contribuição de seu texto ficcional, solertemente "traduzido", para a constituição do sistema literário a que permanentemente se agrega Essas especulações, embora aqui esboçadas de maneira incompleta, reafirmam nossa convicção de que a literatura posta em relação -locus privilegiado da leitura e da tradução, instrumento de hermenêutica e reflexão crítica - não é mais tão somente um campo de investigação acadêmica particular, circunscrito a uma metodologia específica de análise. Configura-se, sobretudo, como epistemologia contemporânea e vigorosa, maneira aberta e consistentemente fecunda, de interrogar e apre( e)nder o mundo que se revela, mais uma vez, admirável e novo, neste início do século XXI.
Alteridade planetária: a reinvenção da literatura comparada
Rita Terezinha Schmidt Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Communication with the other can be transcendent only as a dangerous life, a fine risk to be run. - Emmanuel Levinas, Otherwise than being.
A literatura comparada está morta. A literatura comparada ainda está por I New York, Columbia University Press. 2003
A abertura ao outro como razão de ser da metodologia comparatista não é certamente uma tese nova na área, como comprova o texto de Pierrc Brunel e Yves Précis de Lilléralure Comparée (Paris, PUF, 1989). Spivak redimensiona a questão dando-lhe uma moldura mais abrangente, do ponto de vista filosófico e político. 2
vir. É jogando com o paradoxo gerado na relação entre essas afirmações axiomáticas que Gayatri Spivak em seu Death of a Disciplinei desenvolve uma reflexão retrospectiva e prospectiva da Literatura Comparada. Se, por um lado, Spivack interpela oCa) leitor(a) a ler seu livro como o último sopro de uma disciplina agonizante segundo os parâmetros de uma tradição cuja genealogia se construiu por afiliações intelectuais no eixo Europa/Estados Unidos e que fomentou o colonialismo de línguas nacionais de pertencimento europeu, por outro, projeta a premência de seu futuro como uma nova literatura comparada, comprometida com a humanização do ensino via o treinamento da imaginação em direção a outridade. 2 Ao afirmar a capacidade heurística pressuposta no comparatismo literário, Spivak confere a esse um estatuto pedagógico, com vistas ao aprendizado e a interpretação da língua do outro, um posicionamento que deriva sua
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pertinência da compreensão humanista do valor das línguas e da competência lingüística e que se coloca claramente na contramão da redução dessa língua a mero instrumento de trabalho na transformação do outro em objeto de conhecimento, prática observada em várias disciplinas das Ciências Sociais e Humanas. Apresentado inicialmente no prestigiado Ciclo de Conferências da Biblioteca René Welleck, promovido anualmente pelo Instituto de Teoria Crítica da Universidade da Califórnia em maio de 2000, o conteúdo de Death of a Discipline cobre um espectro amplo de questões, desde questões gerais como o papel do ensino superior, a importância central das Humanidades no mundo da contemporaneidade, a necessidade de se desenvolver competências lingüísticas e literárias, inclusive sob o ponto de vista de uma prática de tradução culturaP que resiste ao apagamento e à apropriação pelos poderes dominantes, a questões mais pontuais, tais como as transformações do comparatismo literário, sua evolução no contexto norteamericano e seu diferencial crítico com relação aos estudos culturais e pós-coloniais, os investimentos no conceito de fronteiras - territoriais, demográficas e virtuais - no cenário globalizado e a necessidade de questionar o culturalismo acrítico presente na formulação de coletividades sintomáticas produzidas no âmbito dos produtores e consumidores daqueles estudos. 4 Evidentemente que Spivak não postula simplesmente uma reforma ou revitalização da área nos termos que recorrem com freqüência no contexto norte-americano desde os anos 60, que são a interdisciplinaridade e a abertura da literatura comparada para objetos não definidos convencionalmente como literários. 5 Reivindica sim, sua reconfiguração, tendo em vista a potencialidade de um campo de conhecimento no qual o literário constitui o ponto de articulação com a imaginação e a invenção de uma coletividade humana ainda por vir, não redutível à coletividade hegemônica projetada pelos processos de globalização e de seu sistema de trocas e para muito além da imaginada comunidade híbrida encenada no âmbito do intelectual migrante. Desse ponto de vista, Spivak desvia propositadamente dos debates em torno de conceitos operatórios e procedimentos metodológicos que assegurariam uma suposta identidade à literatura comparada, tópica de longos debates e contendas no contexto brasileiro, para se ater ao que concebe como a missão intelectual da disciplina, alicerçada no princípio da alteridade não derivativa e irredutível e na concepção do trabalho da leitura e da imaginação como meio de instrução e de iniciação
3 Sobre o conceito de tradução cultural, ver seu "Translation as Culture", Parallax, vol. 6, no. I, 2000, 13-24.
4 Na visão de Spivack, essa questão não foi devidamente examinada pelo relatório Bernheimer, tal como é chamada a coletânea editada por Charles Bernheimer intitulada Compara tive Literature in the Age of MulticultllralislIl (Baltimore, The Johns Hopkins Univer-sity Press, 1995).
5 Cabe referir ao texto clássico de Henry H. H. Remak, publicado em 1961, "Comparative Literature: its definition and function". In Comparalive Lilerature: method and fllnction (Southern Illinois Press, 1961 ).
Alteridade planetária: a reinvenção da literatura comparada
Refiro-me ao seu Entre nós: ensaios sobre a alteridade (Petrópolis, Vozes, 1997) e ao Ética e infinito: diálogos com Philippe Nemo (Lisboa, Edições 70, 1988).
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ao performativo das culturas. A partir desses fundamentos, a literatura comparada pode efetivar a travessia não somente da fronteira resistente norte/sul que divide o planeta em dois hemisférios e dois mundos, mas também de outras fronteiras - raciais, de classe e de gênero - de modo a intervir nos modos de produção e circulação de imaginários locais/ globais que impossibilitam aos povos periféricos/sujeitos subalternos (incluindo os assim constituídos como margens no próprio centro - as mulheres, por exemplo) as condições de acesso à universalidade e aos direitos humanos. Seria essa tarefa uma impossibilidade? Impossível, mas necessária, aí mesmo reside o posicionamento de Spivak ao propor uma mudança epistêmica radical a ser imaginada por um comparatismo responsável. Nos termos em que essa mudança é reivindicada, identifica-se a forte influência do filósofo Emmanuel Levinas, 6 para quem a ética de uma responsabilidade performativa reside num movimento mais fundamental do que a liberdade, pois remete à relação com o exterior infinito que é o outro, uma exterioridade impossível de ser integrada ao mesmo. Essa responsabilidade é retomada via Derrida, na referência ao seu Politics of friendship (..)1 am not advocating the politicization of the discipline. 1 am advocating a depoliticization of the politics of hostility toward a politics offriendship to come, and thinking of the role of Compara tive Literature in such a responsible effort "(p.13). Dificil senão impossível dar conta, com a justiça devida, da complexidade das questões e, particularmente, da forma como são encaminhadas em Death of a Discipline, nos limites desse texto. Primeiro porque a legibilidade do discurso crítico de Spivak não é dada, mas implica um processo de adução e de reconhecimento de estratégias retóricas através das quais o estilo processa diferentes afiliações teóricas, costura vários lugares enunciativos e se desloca por entre diversas disciplinas a partir de um ponto de observação específico que é rigorosamente dialógico e desconstrutivo. Suas referências são, não raro, marcadas pela opacidade pós-estruturalista, e seus argumentos desprovidos do caráter descritivo/explicativo associado a verificabilidade, o que provoca lacunas ou vazios cujo efeito é o de um pensamento que se movimenta aos saltos e que, por isso mesmo, exige um exercício de abstração metacrítica e de comparação interpretativa de parte doe a) leitor(a). E em segundo lugar, porque não tenho a pretensão (ou veleidade) e nem esse é o objetivo aqui, de retomar o leque de questões I
abordadas por Spivak e discuti-lo exaustivamente, do ponto de vista teóri-
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co-crítico e metodológico, Interessa, tão somente, pontuar alguns momentos de seu texto, sublinhando aspectos relevantes, seja em termos de reflexões com relação ao contexto norte-americano, sobre o qual tem circulado, entre nós, noções generalistas ou parciais e que, por essa razão, são reflexões que contribuem tanto para o nosso conhecimento desse outro quanto para as discussões e avaliações sobre o que é efetivamente inovador no modo comparatista brasileiro, seja para tecer considerações sobre o ponto substantivo de sua proposta sobre o papel do novo comparatismo à luz da prática crítica que constitui o terceiro e último capítulo de Death of a discipline. Como desdobramento - ou efeito transferencial da minha leitura da proposta de Spivak - tratarei do romance de Azar Nafisi, Lendo Lolita em Teerã: uma memória nos livros, publicado nos Estados Unidos, em 2003, Por entender que a referida narrativa articula uma curiosa cumplicidade com o texto de Spivak, tento mostrar como noções norte adoras de sua proposta como a imaginação, o outro, o gênero, a identidade e a coletividade são trabalhadas de forma a constei ar uma figura aporética em tomo da qual a textualidade engendra suas (im)possibiliddes,
Quem se declina como 'humano' do 'humanismo '? A constatação de que a literatura comparada busca obsessivamente uma renovação desde os anos 80, tendo que competir, nesse período, com a forte institucionalização dos estudos culturais, étnicos e pós-coloniais, sem dizer dos influentes estudos de área, estabelecidos após o fim da 11 Guerra como fonna de assegurar o poder norte-americano durante a guerra fria, leva Spivak a desenvolver uma leitura política do que observa serem as distinções das práticas desses estudos, num quadro institucional marcado por confluêneias históricas de forças produtivas e poderes hegemônieos que sustentaram velhos imperialismos e hoje viabilizam o novo império,7 Assim, lembra a "origem" do comparatismo norte-americano, com a chegada de intelectuais em fuga de regimes totalitários europeus, tais como Erich Auerbaeh, Leo Spitzer, René Welleck, Renato PoggioJi e Cláudio Guillén, para afinnar o quanto o seu desenvolvimento foi condicionado pela sombra de uma hospitalidade inter-européia, ou, nas palavras de Mary Louise Pratt,de como se tomou o braço continentalista do estudo literário no lugar chamado Ocidente, R o que responderia ao questionamento de Earl Miner
o termo império, tal como utilizado por Spivak, não diz respeito exclusivamente à constituição de hegemonia política e econômica de uma nação sobre as demais e, muito menos, à relação governo estado e ocupação, numa relação desdobrada em ricos e pobres, ocidente e oriente, mas a um sistema hierarquicamente estruturado do capitalismo global. 7
x Em "Compara tive literature as a cultural praetice". Pro[essioll 86, Modem Language Association of América, 1986.
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Conforme seu Compara/ive poetics: an in/ercu/tura/ essay on /heories of /itera-ture (New Jersey, Princeton University Press). Cumpre assinalar aqui que se trata de um texto marcado pela passagem de fronteiras _. lingüísticas, estéticas, étnicas, históricas, culturais. Foi traduzido para o português como Poética comparada (Trad. de Ângela Gasparin. Brasília, Editora UNB, 1996).
em 1990,9 sobre as razões da "nossa" literatura comparada omitir os hemisférios oriental e sul. Se esse cenário tem se modificado significativamente nessa última década, as mudanças não escapam à ironia lúcida de Spivak ao criticar a corrida do mercado editorial norte-americano na organização de antologias e de textos literários provenientes do Terceiro Mundo em tradução, domesticando-os para consumo cultural, o que não contribui em nada para o conhecimento do outro muito embora esse outro seja constantemente invocado. A postura de Spivak, contrária a esse "empacotamento",
Ver, nesse sentido, o texto de Humphrey Tonkin, "Specular humanism: the role of foreign languages in general education". Profession 86, PMLA, e o texto de Mary Louise Pratt, Presidential Address 2003: Languages, liberties, waves, and wcbs - engaging lhe present. PMLA, 2004_ Conforme Prat!, há um movimento no Congresso Norte-Americano para passar o Foreign Language for National Secu-rity Act, que definiria quais a línguas de interesse para a segurança nacional e exerceria vigilância sobre o ensino de língua estrangeira no país. lO
Vista como subjetivista e reducionaista, essa política congela as diferenças, aprisionando-as num esscncialismo que, freqüentemente, obscurece mais do que ilumina as diferenças entre grupos ou segmentos sociais, impedindo o reconhecimento da realidade de identidades múltiplas e superpostas. Pautada em experiências individualizadas, nào se rcvela penneável â análise teófica.
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12 Spivak remete aqui ao texto de Pease, "US imperialism: ~Iobal dominance without ~olonies."ln: A companion lo fiOs/colonial s/udies, Sangeeta Ray e Henry Schwarz. eds. (Oxford, Blackwell, 2000).
se deve menos à noção de que a tradução, nessas circunstâncias, permite uma permeabilidade cultural muito restrita das outras culturas do que no seu inconformismo diante da redução do ensino de língua estrangeira no país, fato contra o qual os pesquisadores têm se manifestado veementemente desde os anos 80, particularmente em fóruns como o da Modem Language Association of América. 10
É sob o ângulo do monolinguismo que Spivak dirige sua crítica aos Estudos Culturais, segundo ela um fenômeno metropolitano e gerado nas margens radicais dos departamentos de língua nacional, portanto monolítico, narcisista e inteiramente voltado ao presente, isto é, sem densidade crítica ou histórica e cujas estratégias giram em tomo da afirmação de uma política de identidade I I que passa ao largo da acuidade de leitura necessária até mesmo para compreender que a língua mãe já é dividida. Os estudos póscoloniais não são tampouco poupados, já que estão confinados a um nacionalismo multicultural metropolitano, em reação ao colonialismo, o que não deixa de ser uma versão do tema do excepcionalismo norte-americano (Destino Manifesto) que tem transformado o país num asilo para o resto do mundo, posição creditada ao crítico norte-americano Donald E. Pease. 12 Por sua vez, o vigor e a qualidade dos estudos de área - teoria política, sociologia, antropologia, história - estariam, até certo ponto, comprometidos pelas relações de poder que permeiam as relações dos pesquisadores com a elite dominante dos países estudados e pela objetificação do outro via o idioma, considerado apenas um instrumento de transcodificação, o que implica uma total deslexicalização da língua, equivalente ao uso que faz dela qualquer turista. O ponto convergente da crítica reside na forma como esses estudos pecam ao conceber o outro a partir da ideologia dominante
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da academia que é a da "autoridade da experiência"l3 a qual, segundo Spivak, nos colocaria in danger 01 seeking the community as no more
than a col/ectíon 010urselves(p.47).14 Embora questione sua política conservadora, Spivak admite interfaces produtivas dos estudos de área com a literatura comparada, sem abrir mão, todavia, do princípio de que a literatura comparada não só é ela própria mediada pela diversidade de línguas e linguagens, mas também é atravessada pela consciência das muitas dimensões da textualidade - lingüística, estética, histórica, cultural - o que faz dela uma disciplina com aportes singulares para acessar e compreender a diversidade e a alteridade da cultura humana. A prática da literatura comparada pressupõe que se faça a pergunta, cada vez mais complexa e necessária, "quem somos nós?", uma pergunta que, segundo Spivak, precisa ser feita a respeito da formação de coletividades, sem conteúdos pré-fabricados, pois é desses que se nutre a violência no imaginário multiforme global. Os efeitos da globalização são sentidos em todo o lugar, até mesmo nas vilas do Nepal através das antenas parabólicas, mas o contrário não é verdadeiro, essas vilas não existem para o Primeiro Mundo, pois o detalhe cultural da vida cotidiana, condição e efeito da sedimentação do idioma cultural, não chega aos países donos dos satélites. O fato é que, para Spivak, existe uma imensa heterogeneidade de línguas subalternas e culturas periféricas que não se comunicam e não se conhecem, e a literatura comparada não pode se omitir de seu papel nesse cenário. Esse papel seria suplementar não somente em relação às ciências sociais com seus informantes locais, mas também à toda engenharia transnacional de benevolência social, desde a instituição dos Médicos Sem Fronteiras à cultura das ONGs, que não tem condições de acessar a densidade misteriosa dos idiomas e das linguagens dos povos que buscam ajudar. Ordinariamente, diz Spivak, assumimos a idéia de coletividade a partir de sua base da cultura quando, na realidade, essa sequência inscreve uma falácia lógica, a de afirmar uma premissa que está por ser provada, ou seja, uma forma de metalepse que substitui a causa pelo efeito. Se o conceito de cultura, na perspectiva da passagem de fronteiras, é o que coloca em demanda uma idéia de coletividade, essa coletividade que se pressupõe ser condição e efeito do humanismo é a própria família humana. Mas como família humana, essa coletividade não está posta como dada e, nesse sen-
13 Esse posicionamento, objeto de muito debate na academia norte-americana, tem seu derivativo na chamada política da experiência, considerada conservadora, pois alicerçada na manutenção de constructos ideológicos tradicionais não reconhecidos como tais, mas tomados como o "real". Ver, nesse sentido, Alice Jardine Gynesis: configuralions of womall and modernity (Ithaca. ComeU University Press. 1985).A clássica desnaturalização do conceito via processos semi óticos é empreendida por Teresa de Lauretis em Alice doesn 'I (Bloomington, Indiana University Press, 1984). Elspeth Probyn, em Sexing lhe self gendered positions in cultll' ral sludies (New York. Routledge, 1993), propõe uma teoria e prática da significação a partir da distinção da categoria no plano onto· lógico e no plano epistemológico. 14
O conceito de experiência
é aqui retomado a partir do
texto da historiadora Joan Scott "Experience". In: Feminists theorize lhe political, Judith Butler e Joan Scott, eds. ( New York: Routledge, 1991)
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I; O tenno 'planetário' já aparecera na década de 80, particularmente na obra de Etiemble Ouvel'-tul'e(s) SUl' um com-paratisme plané-teil'e (Paris, Bourgois, 1988). Contudo, o sentido que Spivak empresta ao termo vai além do sentido atribuído por Etriemble que o empregou no contexto restrito de uma poética comparada.
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tido, se inscreve no horizonte da indecidibilidade afirmativa, do que permanece como algo por vir, para as futuras gerações. Portanto, se a literatura comparada pressupõe a noção de coletividades que atravessam fronteiras - de linguagens e povos - ela tem condições de prefigurar o sentido de sujeitos planetários, 15 em lugar de continental, global ou mundial, mas, para tanto, precisa se direcionar para além de gestos tímidos e mitigativos, tanto quanto superar a arrogância de uma leitura cartográfica de literatura mundial em tradução, que é o estilo ainda dominante da literatura comparada
made in lhe Us. Evidentemente que Spivak não quer dizer que, para ser um comparatista, é preciso aprender todas as línguas subalternas, mas afirma, isso sim, a necessidade de resgatar o melhor do comparatismo que é a arte de ler no original, sabendo, não obstante, que a tradução floresce denVer, nesse sentido, o capítulo "Politics of translation" de seu Oulside in lhe leaching machine (New York, Routledge, 1993).
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tro do paradoxo que é o da impossibilidade necessária. 16 Sem qualquer preocupação conceitual com a identidade do literário ou mesmo com a sua obsolescência, que marca a base ideológica de grande parte das práticas do comparatismo brasileiro, o pensamento da literatura que percorre as páginas de Death of a discipline valida o literário como dado constante e variável da história cultural dos povos onde o trabalho da imaginação criativa se desdobra no jogo da textual idade com os simbólicos culturais. Nessa perspectiva, o texto literário não se reduz a repositório de informação cultural, mas é tecido na relação grafia/enxerto, língua/linguagem, como resultado de um fazer imaginativo que, paradoxalmente, pelo distanciamento do referencial de pertencimento, produz contradições performativas, a teleopoiesis derrideana, apropriada por Spivak. Dessa forma, ler e interpretar são operações imperativas para o conhecimento de como o sistema retórico de um texto perturba a lógica da linguagem, abrindo para contingências aleatórias que revertem o seu valor. Ler com cuidado, o que na ótica de Spivak nós esquecemos, implica apreender a lógica dos deslocamentos telepoiéticos, o que é trabalhado de forma brilhante nas densas análises de textos de Joseph Conrad, Mahasweta Devi, Tayeb Salih e Virginia Woolf. Com relação ao texto conhecido de Woolf
Um teto só seu, a crítica mordaz de Spivak recai no como o texto tem sido ensinado: como um chamamento à androgenia, um quarto privado e 500 libras. Tal redução combina com o feminismo high-tech transnacional que trabalha com generalizações para constituir fatos, com vistas à definição de um equivalente geral do signo "mulher" para bancos de dados e
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políticas públicas, e que assume para si a prerrogativa de treinar as mulheres de "outros lugares" a serem mulheres. Segundo ela, o engajamento da literatura comparada com o feminismo precisa manter esse impulso sob rasura, pois a generalização é contrária às coletividades textualizadas prefiguradas pelo poder da ficção.É nesse quadro que a defesa de Spivak do hábito da leitura e da escrita como alegorias de saber e fazer, no sentido suplementar com relação às políticas oriundas do saber das ciências sociais, põe em evidência as imbricações das afinidades eletivas - teóricas e afetivas - que alimentam a sua formulação de coletividade humana: Why have I
written largely of women to launch the question of the recognition of ceaselessly collectivities in our disciplinary practice? Because women are not a special case, but can represent the human, with the asymmetries attendant upon such representation. As simple as that (p. 70). O comparatismo ativista de Spivak é fortemente comprometido com a conexão entre o trabalho cultural na instituição acadêmica e a responsabilidade política fora da instituição e, desse modo, orienta-se por um
desideratum ético de reverter e deslocar a direção progressista da racionalidade política e institucional que impõe a decidibilidade como parâmetro de desenvolvimento de um mundo no qual são niveladas as di\ersidades. Segundo o crítico Timothy Brennan, I 7 os discursos metropolitanos sempre se colocaram ideologicamente como em casa no mundo, como se estivéssemos numa a aldeia global. Spivack inverte essa lógica apropriando-se dos conceitos freudianos de Heimlich/Unheimlich, para definir o exercício disciplinar da literatura comparada: a necessidade de pensar o mundo como estranho, ou melhor, de pensar em que circunstâncias o familiar se toma estranho, o que implica perturbar a pretensão inscrita na idéia do mundo como nossa casa. Por esse viés, segundo ela, a iniciação na explicação cultural começa com o treinamento para uma leitura capaz de dis-figurar a figura indetenninada do estranho que se enrosca nos interstícios do sistema retórico de um texto. Dis-figurar significa aqui, apreender sua lógica de forma a traduzi-la em uma literalidade responsável, uma estratégia interpretativa para além do hibridismo, do relativismo e da especularidade e que se quer como desafio à unifonnização do irredutível num universalismo de função normalizadora. Poucos questionariam a relevância de uma perspectiva da literatura que investe no esforço utópico de reverter a
17 Segundo seu AI home in lhe world: cosmopolilarism 110W (Harvard University Press, 1997).
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globalização na concepção de coletividade que ainda está por vir ou na imaginação de uma universalidade humana como alteridade planetária, uma figura impossível só acessível na telepoiesis.
Death of a discipline é insistente no papel da leitura e do ensino em sala de aula, lugar privilegiado da estréia da formação de coletividades e que justamente, nessa condição, oferece resistência à cultura da literalidade cibernética e à cultura do pragmatismo à qual está hoje submetida a universidade na condição de prestadora de serviços. Tal compromisso implica reafirmar que o que se aprende - não o que se conhece - nas Humanidades, é sempre vago, iterativo e não-verificável, por isso mesmo é o que escapa ao sistema e ao monologismo do capital global. É por essa razão que a concepção de Spivak de um comparatismo responsável, não é compatível com o mero reconhecimento sociológico do multiculturalismo ou da diversidade, mas configura um ato afirmativo irredutível, aparentemente impossível, em direção a um outro futuro, a um outro ato. Isso significa dizer que a subjetividade performativa que se desdobra ao longo de seu texto não se define como um jogo livre ou uma auto-representação teatralizada, mas como um lugar que se encena na e como resposta ao chamado do outro, o que deixa o fundamento do sujeito sempre receptivo a um outro chamado ou resposta performativa. Por isso, suas palavras: Of
course, the literary is not a blueprint to be followed in unmediated social action. But if as teachers of literature we teach reading, literature can be our teacher as well as our object of investigation. (. ..) Our own undecidable meaning is in the irreducible figure that stands in for the eye of the other. This is the ejJortfit! tllsk: to displace the fear of our faceless students, behind whom are ,li, . \,'.1 ol the global others (p. 23).
Quem somos nós? Expliquei que a maioria das grandes obras da imaginação procurava nos fazer sentir como estrangeiros em nossa própria pátria. A melhor ficção sempre nos força a questionar o que não damos importância, porque damos como certo. Ela questiona as tradições e as expectativas, quando parecem tão imutáveis. Disse aos meus alunos que queria que eles lessenl e analisassem de que maneiras essas obras os perturbaram, produziram desconforto, fizeram com que olhassem o
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mundo a sua volta, como Alice nos país das maravilhas, com olhos diferentes. 18 O excerto é da história narrada em Lendo Lolita em Teerã, o romance autobiográfico no qual a iraniana, Asar Nafisi relata sua história de 18 anos de docência, primeiramente na Universidade de Teerã de onde foi expurgada, em seguida na Universidade Allameh Tabatabai de onde se demitiu por pressões institucionais e, finalmente, em sua própria casa onde reuniu semanalmente, de 1995 a 1997, e às escondidas das patrulhas ideológicas do regime, um grupo de sete alunas para discutir literatura persa e autores canônicos ocidentais tais como Nabokov, Henry James, Jane Austen e Scott Fitzgerald, entre outros. As referências aos acontecimentos do período de grande turbulência e de transformações sociopolíticas que deram nascimento e consolidaram a República Islâmica do Irã, como perseguições, prisões e assassinatos sumários de secularistas e liberais que se opunham ao poder clerical, a radicalização de práticas sociais tais como a segregação de homens e mulheres nos espaços públicos, inclusive nas salas de aula, a guerra contra as mulheres, a perseguição às minorias nos anos de guerra com o Iraque, imbricam o testemunho de uma história pessoal com um devir coletivo em que o confronto de idéias, os conflitos e punições, as aflições, cumplicidades e afetos distanciam e aproximam a professora de seus pares e de seus alunos. A universidade foi o último reduto a ser conquistado pelo novo regime, lugar onde se travaram as mais disputadas batalhas ideológicas sobre questões de poder, política e moralidade ética. Nesse período, a literatura estrangeira, tanto a européia quanto a estadunidense, era considerada um veneno para a juventude, signo da chamada ocidentalização burguesa e decadente, daí a razão pela qual as disciplinas foram pouco a pouco banidas dos currículos acadêmicos no período de consolidação da revolução islâmica. A obstinada paixão da professora em manter o seu programa de leituras foi uma forma de resistência à imposição da ideologia a serviço da trama política de um cstado tcocrático e autoritário para o qual o confisco da imaginação c do accsso ao conhecimento do outro havia se tomado uma condição sil1e qua 11011 para a reinvenção de uma identidade nacional regulada pelo fundamcntalismo religioso e sua concepção de purismo cultural. Como o fechamcnto simbólico das fronteiras nacionais/culturais pela
18 Nafisi, Azar. Lendo Lalire em Teerã. Tradução Tuca Magalhães. São Paulo, A Giraf~ Editora, 2004, p.141.
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revolução iraniana foi uma reação à agressão cultural e econômica perpetrada pelos interesses ocidentais, o ensino de literatura estrangeira se torNão se pode esquecer aqui as circunstâncias históricas que geraram as condições de possibilidade para a efetivação do processo revolucionário, principalmente a intervenção norte-americana na deposição do governo nacionalista de Mossadegh em 1953, quando o Xá foi reinstituído no poder. O processo de modernização capitalista desencadeado pela dinastia Pahlevi era considerado subserviência ao ocidente e, de modo especial, aos Estados Unidos. 19
Utilizo aqui o termo "perverso" para evitar analogias com o caráter do movimento que a territorialização pressupõe, ou seja, a constelação de laços primordiais de afinidades e de solidariedade que sustentam uma dada comunidade como parte de uma dinâmica de mobilização em torno de agendas políticas reivindicatórias. Como Foucault observa, a prática da liberação nem sempre define a prática da liberdade necessária para que um povo ou segmento venha a se auto-definir em formas acei táveis de existência como sociedade política. Ver seu História da sexualidade 3 - o cuidado de si. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque (Rio de Janeiro, Graal, 1985). 10
nou uma empresa arriscada, senão impossível. Afinal, qual a Revolução que não tenha levantado sua cruzada contra esse outro que é a literatura? No caso do Irã, a luta pela libertação do colonialismo ocidental, particularmente do imperialismo estadunidense,19 descambou numa perversa reterritorialização,20 uma forma de neocolonialismo pautado num pensamento único e centralizador que erradicou qualquer concessão ao que vinha de fora. É nesse contexto que a luta pelo ensino da literatura estrangeira assume uma dimensão agonística, pois ao possibilitar o acesso dos alunos à figurações de outros mundos possíveis, abre as comportas para o embate interpretativo, colocando em cena as ligações perigosas entre os sentidos da violência ficcional e os da violência institucional e epistemológica perpetrada pelo reducionismo ético do pensamento único. Como a narradora observa: havia sempre a sombra de outro mundo, somente atingível
por meio da ficção(p.57). Mas a relação ficção/realidade não se dá simplesmente pela identificação e análise das estruturas de violência, inscritas em grau e densidade variáveis em obras de autores como Nabocov, Fitzgerald, Henry James e até mesmo Jane Austen, mas da capacidade interpretativa para chegar à epifania da verdade (p.17), a qual opera nos interstícios da textualidade, potencializando a irrredutibilidade do sentido da experiência do outro justamente ao problematizar o seu processo de construção. Evidentemente que o sentido desse "Outro", reapropriado dialogicamente no contexto da sala de aula onde os alunos ocupam posicionalidades diversas, desliza no processo contínuo das mediações entre a realidade e o exercício da interpretação/tradução cultural. Mas é justamente esse deslize que possibilita a professora intervir estrategicamente e jogar com a ambivalência do phármakon, ou seja, o que é considerado veneno contém o antídoto, uma potência benéfica, a subversão da verdade institucionalizada, a descolonização do conhecimento, não pela identificação com o outro, ou seja, pelo viés da identidade, mas pela irredutibilidade da diferença. Com o engajamento dos alunos na leitura rigorosa e atenta ao poder da ficção, Nafisi constitui a sala de aula como espaço de deslocamento dos binarismos fora/dentro, eu/outro, mal/bem, que fundamenta toda
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perspectiva autoritária e seu discurso da verdade. Dessa forma, o diálogo com os alunos, tanto os receptivos quanto os resistentes, não é neutro nem desinteressado, pois se assim o fosse seria como negar a história, a estrutura e o lugar situado dos sujeitos nos contextos de suas vivências locais. Trata-se de um diálogo amparado na ética do conhecimento interessado, aquele que busca a produção de seres humanos, o que implica assumir, na mediação entre textos e leitores, a responsabilidade de interromper a lógica da diferença e da exclusão e sua codificação de valor na ficção e na esfera do real para escancarar a sua instrumentalidade na esfera do poder. Resta examinar como nesse diálogo, emerge a problemática em tomo da identidade das mulheres. O eixo principal do relato, desdobrado em várias cenas ou episódios intercalados, é constituído pelos encontros semanais com um grupo de sete alunas, todas provenientes de classes distintas, com formações diferenciadas e até antagônicas, do ponto de vista pessoal, social e religioso, mas motivadas por um objetivo em comum, o exercício da percepção crítica e imaginativa diante da produtividade da literatura em sua "liberdade ilimitada "(p. 45), uma referência ao espaço singular de conhecimento operado pela poiesis aristotélica, em sua diferença ao conhecimento gerado pela istoria Para a leitura dessa cena, inscrita na diferença sexual e na contingência do gênero, a narradora convoca oCa) leitor(a) a participar do processo de sua textualização/ficcionalização (p.2I), implicando-oCa) no treinamento da imaginação para o conhecimento do outro e prefigurando um jogo de relações complexas entre seres reais e imaginados, localizados em lugares diferenciados no espectro do processo de escritura/leitura: temos os autores de ficção, as alunas, a escritora/narradora e os(as) possíveis leitores(ras) reais, de forma que a oposição ficção/realidade não é o que importa aqui, mas sim a rede de cumplicidade entre diferentes atores. O espaço em que se desenrola a cena é precisamente o espaço restrito da vida doméstica - a sala de jantar - convencionalmente o espaço codificado como feminino e aqui o único possível para uma reunião de mulheres com idéias "fora da lei", dentre elas a pretensão de se auto-representarem e de articularem livremente suas posições a respeito da "literatura do mal". Como refúgio e santuário, a sala é um espaço só nosso como Manna, uma das alunas sugere, ao que a narradora acrescenta uma espécie de versão
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comunitária de Um teto só seu, de Virginia Woolf (p.29). Essa invocação de coletividade pela voz da narradora ao referir-se ao texto de Woolf é significativa se atentannos à gênese do referido ensaio, isto é, a proibição de circular, sem um acompanhante do sexo masculino, pela biblioteca da Universidade de Oxbridge - referência às tradicionais Universidades de Oxford e Cambridge - onde Woolf pretendia fazer uma pesquisa sobre mulher e literatura. Portanto, sem homens, sem privilégios, é o comentário irônico que faz uma das alunas sobre as restrições a livre circulação de mulheres em espaços públicos em Teerã, numa clara alusão à situação vivenciada pela própria Woolf. Nesse entrelaçamento de afiliações, não é fortuito o fato de que a primeira obra discutida pela professora e suas alunas é As mil e uma noites, pois se trata também, de uma narrativa onde a voz feminina intervém no ciclo de violência institucionalizada contra as mulheres perpetrada pela autoridade absoluta do estado. Na analogia com esse contexto de mulheres aprisionadas, Nafisi se alinha a geração de narradoras que lutam pela sobrevivência - literal, simbólica, cultural - através de manobras discursivas onde o signo 'mulher' rasura e infiltra o espaço entre ficção e realidade, entre o específico individual e o geral coletivo, tomando acessíveis as intuições do feminismo que interrompem a circulação da substância puramente literária. O que é, portanto, negociado na sua estratégia de ensino é justamente a relação, nem opositiva nem contínua, entre o outro da ficção e o eu/nós de uma história pessoal e social que inscreve a mulher num espaço vazio. Daí a (im)pertinência de suas explicações: Formulei certas questões para que analisassem, entre as quais a mais importante foi como essas grandes obras de imaginação poderiam nos ajudar na nossa situação dificil e cheia de armadilhas, como mulheres. Não estávamos procurando por planos, projetos, por uma solução fácil, mas tínhamos a esperança de encontrar um elo entre os espaços abertos que os romances ofereciam e os espaços vazios em que estávamos confinadas (p.39). O tenno "vazio" não se refere, evidentemente, ao espaço doméstico, pois se trata de uma catacrese, um tenno usado na falta de um outro mais adequado para veicular a dimensão existencial/cultural/política da condição do ser de mulheres que, tendo suas vidas confiscadas sob a vigência das
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Leis da Sharia, se tomaram a fantasia dos sonhos dos outros. Esse sentido catacrético que sinaliza algo em falta permeia a figuração da coletividade de mulheres que atravessa o texto na medida em que a pergunta "Quem somos nós?" não pode ser respondida e permanece como um excesso, em falta nas imagens registrados em duas fotografias tiradas no último dia de aula e descrita pela narradora em dois momentos:
(..) vejo os dois retratos na minha frente. No primeiro, há sete mulheres de pé contra uma parede branca. Exceto pelo oval dos rostos e das mãos, elas estão completamente cobertas de acordo com as leis do país, trajadas com túnicas pretas e, sobre suas cabeças, lenços pretos. No segundo retrato, o mesmo grupo, na mesma posição, contra a mesma parede branca. Só que, neste, elas tiraram as túnicas negras e os véus. Manchas coloridas as separam uma das outras (p.18). Ao olhar para a segunda foto, a narradora se identifica na imagem do grupo ao acrescentar:
As duas fotografias deveriam ser colocadas lado a lado. Ambas incorporam a "irrealidade frágil" - para citar Nabokov sobre sua própria condição de exilado - de nossa existência na República Islâmica do Irã. Uma anula a outra e, ainda assim, sem uma, a outra é incompleta. Na primeira fotografia, diante da parede com nossas túnicas e véus pretos, somos como que modeladas pelos sonhos de outra pessoa. Na segunda, parecemo-nos como nos imaginamos. Não nos sentimos completamente confortáveis em nenhuma delas (p.46). Para avaliar a importância dessas imagens e de como a política da diferença sexual se inscreve no núeleo da problemática identitária e da história da mulher, tal como é vivida pelo grupo de mulheres e dramatizada pela narradora, é necessário considerá-las na sua seqüência de causa e efeito para tomá-las como guia na leitura da figura de coletividade que emerge no romance. Na primeira foto, a narradora observa o grupo vestido de acordo com as leis islâmicas. O véu, desvirtuado de seu sentido religioso, é transformado em instrumento de poder de um estado vigilante na medida em que sua obrigatoriedade torna o corpo feminino um lugar de produção de ideologia, incompatível com os direitos das mulheres, o que é reiterado pela narradora (págs 155, 166,279).21 Na lógica do estado patriarcal, o argu-
" Estudos antropológicos sobre o fundamentalismo islâmico têm examinado a manipulação política do uso do véu ou chador, ou seja, freqüentemente, atitudes patriarcais arraigadas em tradições culturais sào dissimuladas como normas religiosas. Nesse sentido, ver o estudo de Elizabeth Zechenter. "In the name Df culture: cultural relativism and the abuse Df the individual" Journal of Anthropologica Research 53 (3).
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mentoé de que o véu é a proteção das mulheres, mas essa é a estrategia retórica do nacionalismo fundamentalista que visa essencializar o sujeito feminino a partir de sua exterioridade, como se fosse um corpo esvaziado de seu sólido (p. 244), metáfora do corpo invisível e não subjetivado instituído em favor do privilégio masculino, o paraíso de um homem, como lamenta a alunaYassi (p.480). O olhar que incide sobre a segunda foto já arrasta consigo o efeito produzido pela primeira, isto é, a percepção do eu já está atravessada pelo traço da mulher como o ideal do outro - um ideal de mim como mulher muçulmana - conforme a narradora (p.240), daí a razão do desconforto e do fracasso da (auto)identificação, pois ela mesma compreende que uma foto não deixa de ser um espelho da outra, ou seja, o desejo de se reconhecer para além do lugar do Outro que a cultura patriarcal lhe destina não passa de uma ilusão que lhe devolve a repetição do mesmo. No espaço entre as duas fotos, uma com a imagem real de uma identidade subalterna instituída como resposta ao ideal do outro e a outra, com uma imagem de identidade ideal e imaginária, cifrada num desejo em expectativa do sujeito que olha, escreve e se (des)reconhece, há um espaço vazio por onde se insinua a possibilidade da alteridade feminina como algo adiado, uma imagem espectral, vaga e indeterminada. É assim que as fotos, tiradas no recesso do espaço doméstico para onde a professora e alunas se refugiam para escapar da prisão que é o espaço público, constituem um único significante da história traumática das mulheres, que é pessoal e psíquica, coletiva e social, e que dilata as fronteiras do espaço privado para revelar o quanto ele não é o casulo protetor (p.48), mas é desde sempre estranho, uma estrutura em contigüidade com o estado patriarcal do mundo lá fora. O texto de Nafisi não configura nenhuma solução à problemática da identidade das mulheres, nenhuma resposta à pergunta "Quem somos?". Se nem antes ou depois da diáspora - travessia oriente/ocidente - há uma origem identitária, uma unicidade ou uma autenticidade primordial a ser resgatada há, contudo, algo a ser afirmado, de forma que a figura que emerge do texto sinaliza um paradoxo, ou uma contradição performativa. O texto deixa muito claro que as mulheres sabem o que significa exílio, tanto em seu próprio país quanto em sua própria casa. E é justamente essa consciência de exílio - experiência compartilhada de estranhamento e falta de si - que molda as intimidades entre a professora e suas alunas, jogandoas em cumplicidades inesperadas no confronto com a realidade social con-
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tingente de suas existências políticas. Essa é a condição paradigmática da história das mulheres no contexto da colonização e da descolonização de gênero, e é o que faz com que elas constituam um contingente humano cujos direitos não são meras questões individualistas e burguesas, conforme quer a revolução e suas normas jurídicas. Nesse sentido, pode-se dizer que o texto não sustenta um relativismo cultural cuja forma absoluta tem um efeito paralisante com relação a qualquer proteção dos direitos das mulheres como direitos humanos, mas prefigura, mesmo diante da experiência histórica do deslocamento e da emigração, uma coletividade de mulheres como índice de uma comunidade humana por vir. A ficção, tanto no contexto do ensino quanto no contexto do próprio fazer de Nafisi, não oferece nenhuma garantia contra a agressão a esses direitos, não desperta a consciência feminista do grupo de mulheres em termos de modelos préestabelecidos de intervenção ou ativismo político, muito menos oferece certezas para diminuir as inquietações e os medos diante de escolhas necessárias e inadiáveis, tais como a decisão de deixar o país em busca de outra vida, que é o que a professora e a maioria do grupo de alunas fazem. A ficção oferece o trabalho da imaginação como um instrumento que as coloca sob o olhar dos outros, através do qual são forçadas a confrontar as verdades supostamente prontas e fixas, mediante cuja experiência ficam expostas a estruturas indefinidas de possibilidades que interpelam seus sonhos, suas esperanças e sua humanidade. No Epílogo do romance, a narradora interrompe a sua narrativa no penúltimo parágrafo, utiliza dois pontos para, supostamente, colar o texto enviado por uma de suas alunas, Manna, a que havia permanecido no Irã. Após um espaçamento duplo, inicia o último parágrafo, com a presença desse "eu" que escreve c sc dcscreve como aquela que coloca o véu diante do espelho para sair à rua, mas que afirma conhecer também o seu outro "eu", aquele que se desnudou nas páginas de um livro. O uso dos pronomes pessoais no singular e no plural, a referência ao desnudamento no livro e a interpelação direta aos leitores, no final, geram uma ambigüidade, pois não há certeza sobre se quem narra é quem escreve, em outras palavras, há algo indecidível sobre o status narratológico da voz. Portanto, a interrupção do relato da narradora e a inclusão desse parágrafo eomo fechamento de sua narrativa pode ser considerada uma performatividade narrativa cujo efeito é de deliberadamente textualizar um cruzamento um cruzamento de vozes/subjetividades/linguagens/lugares para inscrever projeções de
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" o local da cultura (Belo Horizonte, Editora UFMG, 1998), p. 27.
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alteridades, reconhecimentos recíprocos, historicamente emoldurados pela experiência da imaginação e, assim encenar um profundo reencontro de mulheres que falam, não do Irã ou dos Estados Unidos, mas do entre-lugar entre uma e outra. Essa é a imagem teleopoiética de coletividade a ser imaginada na encruzilhada entre história e literatura a qual pode, como diria Homi Bhabha, tocar o futuro do lado de cá. 22 O fazer imaginativo - teleopoiesis - involve copiar e colar, o que para Spivack seria parte da técnica de uma nova literatura comparada. Na perspectiva do fazer ficcional de Nafisi e do fazer teórico de Spivak, muitos elementos convergem, conforme procurei apontar. E no quadro desse imbricamento e cumplicidade de vozes, é pertinente, a título de conclusão, colar Spivak que cola Derrida:
If we
seek to supplement gender training and human rights intervention by expanding the scope of Compara tive Literature, the proper study of literature may give us entry to the performativity of cultures as instantiated in narrative. Here we stand outside, but not as anthopologist; we stand rather as reader with imagination ready for the ejJort of othering, however imperfectly, as an end in itself. lt is a peculiar end, for "It cannot be motivated ... except in the requirement for an increase or a supplement ofjustice ( ... )"(p. 13). Para aqueles quepensam que a colagem é apenas uma técnica de duplicação pela repetição, é importante lembrar o que Asar Nafisi, em seu Lendo Lolita em Teerã, ensinara a suas alunas: os personagens mais corajosos são os que possuem imaginação (p.361).
Literaturas latino-americanas nas instituições e revistas acadêmicas anglo-americanas
Rodolfo A. Franconi Dartmouth College
Há quase um século ...
I Espinosa, Aurelio M. "The term Latin American", in Hispania, vol. I, n. 3, (Setembro, 1918), 135-143.
Menos de um ano passado da criação da AmericanAssociation ofTeachers of Spanish, no número correspondente ao terceiro trimestre da revista da Associação, Hispania, de setembro de 1918, Aurelio M. Espinosa, da Stanford University, e editor da revista, discute os termos "LatinAmérica" e "Latin American" num artigo intitulado exatamente "The Term Latin América",l argumentando que o novo termo, na verdade cunhado pelos franceses no século XVIII, nunca havia sido usado até o final do século XIX. Contudo, nos últimos dez anos, isto é, mais ou menos a partir de 1998, começaram a aparecer os termos "Ibero America", "Ibero American" e "LatinAmérica", "LatinAmerican" ao lado do termo próprio, segundo ele, "Spanish América", "Spanish American". Nos quatro últimos séculos, explica, desde o Descobrimento até o final do século XIX: "no writer, historian, or philologist of importance used the terms
Latin America, Latin American". Os franceses usaram por quatro séculos o termo "Amérique Espagnole", os ingleses e os norte-americanos o termo "Spanish America", os italianos, "America Spagnuola", etc. "We
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[entenda-se "os americanos" ou "nos Estados Unidos"] have always said and still say The Spanish Peninsula". O novo termo "Latin America", portanto, é um intruso e, para existir, deve provar seu direito de existir. (E spinosa 135) Continua o articulista argüindo que o termo "Latin American" foi introduzido pensando-se no Brasil, mas que isso é uma falácia, pois o Brasil é de origem portuguesa tanto na cultura como na língua, e vem de Portugal, "an integral part of the Spanish peninsula, Hispania, Spain; and therefore Hispanic America includes Brazil as well as Argentina and other South American countries". E justifica-o acrescentando que "every schoolboy knows that South America was discovered, colonized, civilized, and developed by Spain (including Portugal), in the same way as the region now known as the United States was for the most part discovered, colonized, and civilized by England or peoples coming from England (including Scotland and Wales)". Concluindo ratifica que os termos que têm sido usados nos últimos quatro séculos: "Spanish America, Spanish American, are, therefore, correct", e termina o parágrafo com a seguinte pergunta "where and why the necessity of adopting the new and incorrect terms?". (Espinosa 135-136) No mesmo artigo, Espinosa faz menção a uma nota na revista InterAmerica, em abril de 1918, página 195, sobre artigo do renomado Menéndez Pidal, onde o editor do periódico comenta que "the writer (Menéndez Pidal) undertakes to show that it is not only improper but inadmissible [the new term]; and he offers certain substitutes, which he considers irreproachable". No entanto, Espinosa argumenta que Menéndez Pidal não estava oferecendo substitutos, senão "defending the well-known, traditional, and scientifically correct terms. The term Latin America is in fact the substitute which has been recently introduced". Em seguida esclarece que, segundo seu melhor entendimento, o primeiro a protestar contra os novos e impróprios termos foi o notável hispanista J. C. Cebrián, de San Francisco, Califórnia. Em carta publicada em Las Novedades (Nova Iorque, 2 de março de 1916), Cebrián se expressa clara e enfaticamente sobre o tema:
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2 Cebrián, J. C. in Espinosa, Aurélio M. "The term Latin American", ibidem 136-137.
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AI recorrer las páginas de Las Novedades noto con placer el espíritu de espanolismo que las anima; y esto me inspira confianza para some ter a la consideración de ustedes una cuestión vitalísima para nuestra Espafia, y es el nuevo nombre, o apodo, que algunos están usando ahora con nuestros pueblos hermanos, con las repúblicas hispano-americanas, que ahora quieren bautizar 'la América Latina '. i Y con qué razón? Con ninguna: porque América Latina significa un producto o derivado latino; y latino hoy día significa lo francés, italiano, espanol y português. Ahora bien, esos países son hijos legítimos de Espana, sin intervención de Francia ni de Italia: Espana, sola, derramó su sangre, perdió sus hijos e hijas, gastó sus caudales e inteligencia, empleó sus métodos propios (y a menudo vituperados, sin razón sea dicho), para conquistar, civilizar, y crear esos países; (..) Espana, sola, los dotó con su idioma, sus leyes, usos y costumbres, vicios y virtudes; Espana transplantó a esos países su civilización propia, completa, sin ayuda alguna. (. . .) Así vemos que después de haber sido colonias espanolas, todo el mundo ha continuado llamando aquellos países por su propio apellido, que es: espanol; y hasta hace cinco anos han sido conocidos como países hispano-americanos, repúblicas hispano-americanas, América espanola o hispana; 'Spanish America ' han dicho siempre los yanquis; y cuando un hispano-americano de cualquier zona anda por los Estados Unidos todo el mundo, doctos e indoctos, grandes o chicos, los han llamado y llaman Spanish; jamás se les ocurre decir: he or she is Latin. Véanse los escritos e impresos de los Estados Unidos anteriores a 1910, Y siempre se hallarán los apelativos Spanish, Spanish American, Spanish America, the Spanish Republics: y lo mismo en Francia antes de 1910, en todos los periódicos y libros han impreso les pays hispano-américains, les hispano-américains, l' Amérique espagnole. 2 Quase num estertor político, no sentido de defender o que foi a supremacia espanhola na América - lembremos que o apologista está escrevendo há pouco menos de duas décadas do Tratado de Paz entre Espanha e os Estados Unidos, quando aquela perde Cuba, a ilha de Porto Rico e as demais, que estavam sob sua soberania nas Índias Ocidentais, a ilha de Guam, no arquipélago das Marianas ou Ladrões, e igualmente cede aos
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Estados Unidos o arquipélago conhecido como Ilhas Filipinas _,3 o argumento de Cebrián, de tom nacionalista e ressentido, reivindica a permanência da palavra "espanhola" ou "hispana" na adjetivação da América que
Tratado de Paris. 10112/1 898. http://www.lexjuris.com LEXLEX/lexotras, lextratadoparis.htm Consultado em 2/7/2004. J
entende ter sido literalmente criada pela Espanha: "Espana, sola, los amamantó, los crió, los guió maternalmente, sin ayuda de Francia o Itália (más bien censurada por estas dos latinas), y los protegió contra otras naciones invidiosas: (... )". Contudo, como situar a "outra latina", a portuguesa? Portugal é cuidadosamente evitado até o parágrafo em que o Autor terá, inevitavelmente, que tratar do Brasil. O argumento, para derrubar de vez o insultante termo "América Latina", apóia-se no termo, na época, largamente aplicado a toda a Península Ibérica: "Hispania", assim como o adjetivo "Hispanic", que era usado para a progênie ibérica na América. 4 Apesar da presença - em nada insignificante em território e população -, de um país de "idioma, leis, usos e costumes, vícios e virtudes" portugueses na América - para ficarmos com a mesma retórica da "criação dos países" neste continente - de nenhum modo isso justifica o uso do termo "latina", uma vez que Portugal também é "hispano" por estar na Ibéria, ou, como se dizia, "Hispania":
Además de las 18 repúblicas espano las, tenemos el Brasil, creado por Portugal, en donde se habla portugués, y se rije por leyes, usos y costumbres portugueses. Pero hay que notar que ese país es también hispano, porque Hispania, como Iberia, comprendía Portugal y Espana, y nada más. De suerte que el apelativo hispano-americano comprende todo lo que proviene de Portugal y de Espana. Y ahí va un ejemplo: los yanquis, que tienen fama de inteligentes, lógicos, justicieros, fundaron en Nueva York una Sociedad para el estudio de la Historia Americana relacionada con Espana y Portugal, y escogieran por nombre The Hispanic Society of América: no eligieron el titulo Latin Society of América, porque hubiera sido un equívoco, una falsedad, un errar craso, como lo es aplicar el apelativo latino a nuestras naciones hispánicas, hispanas o espanolas (que no descienden ni de Francia ni de Italia).5 E, num ato falho, esquecendo-se da História do México, do Sul dos Estados Unidos, do Caribe, e da desastrosa perda das colônias espanholas para os seus "inteligentes, lógicos y justicieros yanquis", conclui que" [el]
Ellison, Fred P. "Portuguese in the First Fifty Years of the AATSP". Hispania, Vol. 50. N.o 4, Fiftieth Anniversar~ Number. (Dezembro, 19671 860-861.
4
Cebrián, J. C. in Espinosa, Aurélio M. "The term Latm American", ibidem 137-138.
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Idem ibidem 138.
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poderío de Francia en América nunca tuvo lugar en los países hispanos; se ejerció en terrenos que hoy pertenecen a los Estados Unidos o aI Canadá: que trate de introducir el apelativo latino en esas regiones".6 As longas citações aqui trazidas sobre a discussão do uso do termo "América Latina" ocorrida nas primeiras décadas do século XX nos Estados Unidos entre os hispanistas é fundamental para entendermos em que alicerces se assentaram os estudos latino-americanos e, mais tarde, os de literatura latino-americana nesse país.
Nos dias de hoje Que se entende por "Latin American studies? Esta pergunta, que parece levar a uma resposta simples, implica, desde o lugar onde é formulada, diferentes conceitos. Na academia norte-americana se oferecem cursos de língua espanhola tanto nas escolas de nível médio como em quase todas as universidades. Nestas, além dos cursos de língua, que vão do nível básico ao avançado, a maioria oferece cursos de cultura e literatura dos países de língua espanhola. Imaginemos, para melhor situar a forma como se percebe "América Latina" na academia norte-americana, a seguinte situação: Faz-se a pergunta acima no primeiro dia de aula de um curso oferecido, em inglês, por um programa ou departamento de "Latin American Studies'. Muito provavelmente todos os estudantes terão uma resposta coincidente. O professor, então, poderá demorar-se nos vários aspectos do que todos entenderão ser enfoques dos "Latin American studies". Partindo da História para chegar, digamos, à Ecologia, nenhum aluno estranhará que o professor comece sua exposição apresentando casos da exploração da Amazônia brasileira e não tenha começado pela equatoriana, peruana, boliviana, colombiana ou venezuelana. O mesmo acontecerá com qualquer outra disciplina de um programa ou departamento onde "América Latina" se entende como parte de um continente ou continentes cujo nome conceitual é precisamente "América Latina". O mesmo ocorrerá se a exposição se der num congresso, conferência, simpósio, encontro, seminário, etc. sobre "Latin American Studies". Entretanto, não é exatamente assim que se percebe "América Lati-
na" quando o objeto de estudo é "Latin American literature". Para aqueles
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mesmos estudantes que se matricularam no hipotético programa ou departamento acima referido, ouvir o professor começar sua aula mencionando obras do Brasil pode não causar tanto espanto; porém, para estudantes matriculados num curso de "Latin American literature", digamos, sobre o Romantismo, causará grande espanto o professor pedir-lhes que leiam entre os romances fundadores da nacionalidade "americana", O guarani, de José de Alencar. A surpresa ocorre por uma simples razão: nos "Latin American Studies" tudo se lê em inglês, enquanto na grande maioria dos cursos de literatura lêem-se os textos na língua original. Sob esse aspecto, América Latina e latino-americano tomam-se termos tradicionalmente associados à língua espanhola, excluindo o português. O que se tem, portanto, é "Latin American literature" em oposição a "Luso-Brazilian literature", entendendo-se que esta é em português e aquela em espanhol. Desse modo, ainda hoje, o lugar do Brasil nos estudos de literatura latino-americana continua fora da América Latina. Se não lograram os hispanistas, nas primeiras décadas do século passado, manter o adjetivo "espanhola" ou "hispânica" ao lado de "América", tampouco o abrangente adjetivo "latina", que vingou e se impôs sobre os demais, incluiu as "otras latinas" das Américas, a portuguesa e muito menos a francesa, que tanto os angustiava. O estudo da literatura francófona das Américas normalmente se configura nos "Caribbean Studies"7 (Haiti), não raro integrados aos "African andAfrican-American Studies" ou "African Diaspora Studies", ou, como os estudos quebequenses, fica atrelado aos estudos de literatura francesa, ministrados em francês, ou literaturas francófonas, termo que borra o cunho da nacionalidade. Curioso, ainda, é observar o que comumente se entende por "Latin American and Caribbean literatures".8 Pode-se, assim, aferir que a terminologia que define algumas das áreas do conhecimento aqui apresentadas é, ainda hoje, além de imprecisa, pouco questionada na academia estadunidense. O que deveria causar certo pasmo, considerando-se a precisão e, sobretudo, o cuidado com que essa mesma academia observa vocabulário, conceitos e definições.
Sempre o passado_ .. As terminologias que se desenvolveram nos Estados Unidos para especificar os estudos que abarcam a literatura de língua portuguesa e a de
7 Veja-se o site "VICS -The Virtual Institute of Caribbean Studies" (http://owl.netcom.coml-hhenke). Consultado em 2/7/2004.
No site das Duke University Libraries, por exemplo, encontra-se a seguinte classificação: "Spanish, Latin American, Brazilian and Caribbean Literature", onde, tanto literatura brasileira como literatura caribenha (e o Caribe hispanófono?) não fazem parte da literatura latino-americana. (http:Uwww lib.duke.edu/ ias/latamer/lit.htm). Consultado em 2/7/2004.
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9 Maro Beath Jones editou [nnocência, de Taunay (Boston: D. C. Heath Co., 1923). O primeiro tipo de "textbook 'reader"'a ser publicado no século passado. No artigo "Portuguese in the First Fifty Years of the AATSP", Fred P. Ellison comenta: "Because of the widespread ignorance of Portuguese, he appended an outline of grammar, and for the benefit of students of Spanish who might wish to compare the language with Portuguese, a tabulation of lusitanislIlos. He also furnished an extensive introduction to nineteenth-century Brazilian literature. [n 1927, Professor Jones contributed another article of pedagogical interest, "Suggestions for the Study of Portuguese," which reveals that except for the edition of [llllOcência, only one other textbook was published in the U.S., A Por/lIgllese Grallllllar (Boston: D.C. Heath & Co., 1925) by E. C. Hills, J. D. M. Ford, and 1. de Siqueira Coutinho. Other textbooks had to be imported (X, 265-69)". !lI Hispania, Vol. 50, N.o 4, Fiftieth Anniversary Number. (Dezembro, 1967),
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língua espanhola da América Latina atestam a trajetória dos estudos literários sobre essas literaturas na academia norte-americana. No primeiro encontro da American Association of Teachers of Spanish and Portuguese, aAATSP, em 29 de dezembro de 1917, a palavra "Portuguese" não constava no nome da Associação. Somente se incluiu o português na Associação em 1944, acrescentado-se "Portuguese" ao seu nome em dezembro do mesmo ano, com muita pouca atenção em Hispania, a revista da Associação. Já em 1919, John Casper Branon, reitor emérito da Stanford University, havia publicado um artigo intitulado "The Importance of the Study of the Portuguese Language" (Hispania, VoI. 11, 1919.87-93), onde apoiava seu argumento no valor comercial da língua e fazia um pedido para o reconhecimento do português pela Association of Teachers of Spanish. Outras propostas foram feitas em anos sucessivos para a inclusão do português. Em 1922, no Sexto Encontro Anual da Associação, Maro Beath Jones, de Pomona College, um dos verdadeiros pioneiros do ensino do português nos EE. Uu., pergunta "if there were not some way whereby the Association might signify an interest in the study of Portuguese", o que incorreu na aprovação de uma resolução, que incentivava o estudo da língua e literatura portuguesa. É importante notar que, no texto em inglês, lê-se "the study of Portuguese language and literature"; contudo, "Portuguese" incluía "Brazilian", como se pode averiguar facilmente na leitura dos referidos artigos. 9 Em 1938, aparece em Hispania (VoI. XXII, 381-389) "ASelective Bib1iography ofPortuguese Literature, 1922-1937", da autoria de Me1issa A. Cilley, da Agnes Scott College, e Aubrey F. G. Be1I. Em 1941, Eunice Joiner Gates publica o artigo "Prob1ems in Research Dealing with Portuguese and Brazilian Studies" (Hispania, VoI. XXV, 151-157) e Edwin B. Williams, eminente lusitanista da University of Pennsylvania, publica "Portuguese and Brazilian Spelling" (Hispania, VoI. XXV, 189-193). Em 1943, Richard M. Perdew, da "Division of Inter-American Educational Re1ations" do Ministério de Educação dos Estados Unidos publica o relatório "Portuguese Courses in the Colleges and Universities in the United States" (Hispania, VoI. XXVI, 100-106), onde aparecem 52 instituições oferecendo cursos de português. Outros artigos como "Portuguese Courses in the Colleges and Universities in the United States, 1943-1944" (Hispania, VoI. XXVII, 351-355), do especialista em português Charles T. Stuart, também da "Division of Inter-American Educational Relations" do Ministério de
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Educação dos Estados Unidos, que apresenta um significativo aumento de instituições oferecendo cursos de português, de 52 no primeiro relatório para 92 no segundo, reforçaram a idéia da inclusão do português na Associação, que, em 1944, apenas necessitou ser ratificada. 10
Idealismos à parte, ideologías adentro A partir dos anos 1920 começaram a aparecer cursos de pós-graduação em escolas como Harvard e similares, os "Iberian Studies" e, nos anos 30, os "LatinAmerican Studies". Basicamente se estudam História e Literatura até a Segunda Guerra Mundial, quando a elas se juntam as Ciências Políticas. A partir da Segunda Guerra há grande interesse dos Estados Unidos pelo Brasil, sendo que, terminada a Guerra, a Fundação Ford vai ao Brasil. O interesse, vale dizer, é de ambos os lados: do Brasil e dos Estados Unidos. Com a crescente preocupação dos Estados Unidos frente à constante ameaça comunista na América Latina, os "Latin American Studies" vão interessando cada vez mais os círculos acadêmicos, pondo a língua espanhola na base mesma da pirâmide para uma compreensão "desde adentro" do que passa na América Latina. Os programas e departamentos a nível graduado, onde se ensinam línguas, vão incorporando a seus currículos novos cursos em literatura e, nesse momento, a diferença vai-se fazendo clara: "Spanish Literature" versus "Latin American Literature". Da mesma forma vão estruturar-se os "majors", ou "concentrações" disciplinares, e assim por diante. Quando o português começa a participar dos programas graduados, somente se oferecem cursos de língua. Pouco a pouco incorporam-se cursos de literatura e, então, a questão das terminologias se complica. Falar de "Latin American literature" já significa literatura em espanhol: o termo, portanto, que vai diferençar a literatura produzida em espanhol ou em português na América Latina, é simplesmente "Brazilian literature" ou "LusoBrazilian literature". Por outro lado, muitos dos estudantes, se não todos, que estudam português já sabem ou estudam espanhol. Seus "majors" podem aparecer genericamente como "Latin American Literature" e contarão com alguns cursos em português e literatura brasileira ou luso-brasileira. Em certos casos, vêem-se "majors" em "LatinAmerican Literature" e "minors" em "Portuguese".
10 Leavitt, Sturgis E. "The American Association of Teachers of Spanish and Portuguese: A History", in Hispania, Vol. 50, N.o 4, 813814. Para uma visão mais completa do assunto, leia-se o artigo já mencionado de Fred P. Ellison, páginas 860 a 871.
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Acertando o passo no compasso do outro A impropriedade de termos, como se pode notar, cresce. A solução - e sempre estamos falando do que é estudar América Latina nos Estados Unidos -poderia, no campo da literatura, ser simples: apenas o acréscimo de um "s" à palavra "literature": "LatinAmerican literatures", como ocorre com "Hispanic Literatures" ou "lberian Literatures". Contudo, essa terminologia pluralizada não necessariamente inclui o português. É uma terminologia genérica, resguardada, prevenida, onde a concentração de disciplinas - especialmente quando se trata do título que será atribuído a um mestrado ou doutorado (em "Latin American literatures", "Hispanic Studies", "Iberian and Latin American Literatures", "Hispanic literatures", "Romance Languages and Literatures", etc.) - que é o que vai determinar se esses estudos foram principalmente em literatura portuguesa, espanhola, brasileira, hispano-americana, ibero-americana, etc. Está claro que poderiam incluir a catalã, a galega ... mas aí já entramos no mundo das "exquisiteces". O que significa, em última instância, que quem estuda nos Estados Unidos poderá sempre, dependendo do que oferecem os departamentos de estudos graduados, fazer uma concentração em "Iberian literture(s)" sem
11 Vale lembrar que o outro país de língua inglesa com um departamento exclusivamente dedicado ao português é a Inglaterra, o Department of Portuguese and Brazilian Sludies do King's College, University of London.
ou com português, e o mesmo em "Latin American Literature(s) sem ou com português. Por outro lado, claro, pode escolher-se somente uma das literaturas, com total concentração na literatura eleita, por exemplo "Spanish literature" ou LatinAmerican literature", onde se estuda a literatura daAmérica Latina de língua espanhola como um todo, etc. No caso do português, quer dizer, somente "Portuguese Literature", "Losophone African Literature(s)" e "Brazilian" ou "Luso-Brazilian Literature(s)", bem menos departamentos oferecem tais "majors" ou "minors". Com exceção de dois casos, em que os departamento estão devotados exclusivamente ao estudo da língua, literatura, história e cultura do "Portuguese-speaking world" - o Department ofPortuguese and Brazilian Studies da Brown University e o Department of Portuguese da University of Massachusetts Dartmouth - o português ou está com o espanhol num Department ofSpanish and Portuguese, ou com outras línguas: românicas, modernas, etc. 11 De qualquer modo interessa notar que, para simplificar, passa-se a usar a língua, e não mais as regiões e suas literaturas, como diferenciador.
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A história das relações geográficas, sociais e migratórias dos países latino-americanos de fala espanhola com os Estados Unidos é absolutamente predominante. O Brasil somente começa a aparecer no mapa humano dos Estados Unidos a partir dos anos 1980, com a diáspora inédita de brasileiros - um país de imigrantes que repentinamente se vê emigrando devido ao estertor cultural e econômico produzido pela ditadura militar, pelos altos e baixos do governo Sarney e, finalmente, pelo desastre do governo Collor. Nada mais natural que os emigrantes brasileiros, por razões lingüísticas e culturais, busquem a proximidade dos portugueses já por gerações estabelecidos principalmente em Massachusetts, New Jersey e Califórnia, e igualmente se acerquem das comunidades hispânicas de Miami e New York. Portanto, se levarmos em conta esse fator, a presença da língua portuguesa nos Estados Unidos, em termos concretos, é muito pequena. Quanto à presença do português em relação ao espanhol nas universidades estadunidenses, é outra a perspectiva a se considerar. Com exceção dos anos pós-guerra, em que os Estados Unidos investe nas relações de boa-vizinhança com o Brasil e demais países da América Latina e, dos anos 1960, após o êxito da Revolução de Cuba em 1958, quando intensificam seu apoio aos movimentos de direita para salvaguardar outros países latino-americanos de seguir o exemplo cubano, nunca o interesse pelo estudo do português, e do Brasil, foi significativo. Não deve, portanto, surpreender o resultado das estatísticas da Modem Language Association -MLA em 2000: em todo o país, somente 0,8% dos estudantes universitários estudam português, contra mais de 50% de estudantes do espanhol.
Diálogos, (,si los hay? Como anda a troca de figurinhas literárias hispano-americanas, lusoamericanas e anglo-americanas na academia anglo-americana? Nada melhor para responder a essa pergunta que dar uma volta pelas revistas acadêmicas que se dedicam a essa labor.
F ilhas da casa Hispania, a revista oficial da Association of Teachers of Spanish and Portuguese, que usei como paradigma para este ensaio, continua incluindo artigos sobre pedagogia, literatura, língua, lingüística teórica e aplica-
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Hispania:
http://
www.hispaniajournall org/
IJ Latin American Research Review - LARR: http:// larr.lanic. utexas edul
14 LARR-On-Iine: http:// larr.lanic.utexas.edul online.htm
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da, mais, novidade dos tempos, "techno10gy-assisted 1anguage instruction", mídia e computadores, relacionados aos Hispanic and Luso-Brazi/ian worlds. Publica-se trimestralmente - março, maio, setembro, dezembro - e aceita artigos nas três línguas: espanhol, português e inglês. Encoraja os autores a submeter seus textos em espanhol e português; porém a realidade contraria esse incentivo (talvez por isso mesmo esse "encorajamento" conste do "guia para autores"), já que a maioria dos textos tem sido publicado em inglês. 12 Daquela discussão inicial, nos idos de 1918, se impôs o Hispanic, embora sem o esperado êxito de abarcar Portugal e Brasil. No composto conciliador, dois pecados: um taxinômico e outro político: onde o "African", e o "Asian", do mundo de fala portuguesa? Na esperança de atenta correção, talvez vejamos em breve Hispanophone and Lusophone worlds. A revista também atua como forum de discussões pertinentes à profissão, ocupando, sem competidores, o espaço que a caracteriza. Desde seu início foi pensada como uma publicação acadêmica de primeira classe e também como fonte de auxílio ao exercício da docência secundária e universitária. Contudo, o número de afiliados daAATSP que se dedica aos estudos em língua portuguesa é bastante reduzido, especialmente se comparado ao número de profissionais atuantes nessa área na atualidade. A AATSP, ignorando 1usitanistas e brasilianistas por vinte e sete anos (19171944), não parece ainda ter conseguido efetivamente atraí-los nos sessenta anos que se seguem (1944-2004). Latin American Research Review (LARR) é uma revista acadêmica interdisciplinar e publica artigos relacionados com a América Latina e o Caribe. F oi fundada em 1965 por um consórcio de universidades estadunidenses. Ao criar-se a Latin American Studies Association - LASA no ano seguinte, a LARR e a LASA se unem, tomando-se o periódico acadêmico oficial da Associação. 13 Como Hispania, a revista encoraja a submissão de artigos e relatórios em espanhol, português e inglês; enfatizando que não traduz artigos e prefere publicá-los na língua original. A LASA é a maior associação de estudos latino-americanos do planeta, com mais de 5.000 associados, entre indivíduos e instituições. A LARR, que está incluída na afiliação, conseqüentemente não só iguala esse número em tiragem como o ultrapassa, pois a revista pode ser adquirida independentemente da afiliação à LASA. Os associados igualmente têm acesso à edição on-fine, LARR-On-line,'4
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assim como à base de dados eletrônica de artigos de texto completo, da revista inglesa Bulletin of Latin American Research - BLAR, 15 publicada pela Blackwell Publishing em nome da Society for LatinAmerican Studies - SLAS. 16 Durante o qüinqüênio de 2002-2006 o periódico ficou sediado na University ofTexas atAustin. A função principal da universidade é responsabilizar-se pela edição e pela publicação da revista três vezes ao ano (fevereiro, junho, outubro). Entre várias metas da LARR nesses cinco anos estão: dar continuidade à publicação de artigos nas três línguas; melhorar a acessibilidade da LARR-On-line por meio de uma versão trilíngüe da "website"; promover o uso da LARR-On-line e o acesso e a disponibilidade da LARR nas bibliotecas e universidades da América Latina. Como se constata, a LASA e seu porta-voz oficial a LARR tem muito claramente definido o objetivo de intensificar o diálogo entre a academia latino-americana e a estadunidense. Na Conferência da LASA de 1992, em Los Ângeles, um grupo entre trinta e quarenta acadêmicos anunciaram formalmente a idéia de criar uma associação que promovesse tanto os estudos brasileiros como continuasse a manter fortes laços entre os que estudam o Brasil e outras partes da América Latina. Desse modo, o primeiro congresso internacional da nova associação, intitulada BRASA - Brazilian Studies Association, teve lugar em Atlanta, Geórgia, em conjunção com a conferência da LASA em março de 1994. A BRASA, contudo, até o presente não dispõe de um periódico que a represente. As comunicações apresentadas durante seus congressos encontram-se disponíveis on-line, para os associados. Publicou o boletim Fagulha, hoje transformado em "BRASAnotes". Oferece o "Brasa-net", um listserv semanal com notícias e eventos a qualquer indivíduo interessado nos estudos brasileiros. 17 Embora não constem na "webpage" da Associação as línguas em que as comunicações devam ser apresentadas, basta examinar as Atas dos congressos para ver-se que as línguas empregadas são o português e o inglês. No momento a sede da BRASA encontra-se na Vanderbilt University. Atualmente possui mais de 600 associados, principalmente entre acadêmicos atuando nos Estados Unidos e no Brasil.
15
Bulletin of Latin American
Research - BLAR: http:// www.slas.org.uklblar.shtml
16 Society for Latin American Studies - SLAS: http:// www.slas.org.ukl
17 Brazilian Studies Association - BRASA: http://sitemason. vanderbi It.edu/site/gll macl index
Literaturas latino-americanas nas instituições...
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Rijas de alIá Revista Iberoamericana, a mais antiga das transladadas aos Estados Unidos, desde seu nascimento esteve vinculada ao Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana - IIU, fundado em 1938 na Cidade do México. A partir de então, durante quase sete décadas e sem interrupções, o IIU se dedicou à tarefa de difundir internacionalmente a literatura, a cultura e a crítica literária latino-americanas através de seus Congressos, da Revista Iberoamericana e de suas linhas editoriais. A Revista teve três épocas: a da Universidade Nacional do México, 1939-1956; a de Alfredo Roggiani, University of lowa e University of Pittsburgh, 1956-1991, completada por Keith McDuffie, 1991-1996; a de Mabel Morafia, University ofPittsburgh, desde 1996. Na primeira e segunda épocas a Revista oferece um misto de crítica literária, pensamento latino-americano, e reflexões sobre a identidade latino-americana e as relações interamericanas. A partir de 1992, depois de Roggiani, num período de
18 Martin, Gerald. "EI Instituto Internacional de Literatura lberoamericana y la Revista lberoamericana: Breve relato de una ya larga historia", in Revista lberoamericana, Vol. LXVIll, N.o 2000, e disponível na "homepage" do nu sob "Acerca deI nu": http:// www.pitt edu/-hispan/iilil ArtMartin html
acelerada interação entre a América Latina e os Estados Unidos, sob a égide da "globalização pós-moderna", a Revista oferece um amálgama francamente híbrido de crítica literária (especialmente "teoria"), estudos culturais e novas reflexões sobre a identidade (agora "multi cultural") latinoamericana, interamericana, inclusive intranorteamericana (a identidade e a cultura dos chamados "latinos" nos Estados Unidos.)18 No primeiro congresso do IIU, em agosto de 1938, seu presidente, Julio Jiménez Rueda, no discurso inaugural, assim se expressa: "de todas las manifestaciones de la cultura de Iberoamérica, la literatura es la que ha llegado a ser más conocida y apreciada en el mundo. Los poetas desde el siglo pasado, los novelistas en el presente, son leídos y comentados ya en su lengua original, ya en las traducciones que por fortuna se multiplican más cada día". No prefácio à Memória do Primeiro Congresso, publicado dois anos depois, Manuel Pedro González pontua que o propósito fundamental do IIU é "luchar por el mejoramiento de las relaciones culturales entre los países iberos de América así como entre éstos y la América anglosajona", "estudiar los medios de mejorar la técnica de la enseiíanza de nuestra literatura y buscar el procedimiento más adecuado y eficaz para divulgar su conocimiento fuera de los respectivos países en que se produce", e enfatiza: "Esta Revista, como habrá podido verse en sus primeras entregas, aspira a
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ser índice y a la vez aglutinante de la literatura americana, incluyendo la deI Brasil".'9
19
Idem ibidem
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Idem ibidem
21
Idem ibidem
Na primeira e segunda épocas, apesar da referência permanente à literatura ibero-americana, interessa salientar a missão das duas entidades,
a ILLI e a RI: A diferencia de otras asociaciones o revistas, a nuestras dos instituciones les interesa, no Espana, no Francia, ni siquiera Estados Unidos (después deI panamericanismo un poco tibio y siempre ambivalente de los primeros anos, animado casi exclusivamente por Carlos García-Prada), sino América Latina, con todos sus nombres - Latinoamérica, Iberoamérica, Indoamérica, Hispanoamérica-y-Brasil, América Hispana, América Hispánica, etc. Es significativo que la Organización de Estados Americanos, fundada en abril de 1948, casi nunca se menciona en las páginas de la RI, mientras que la Unesco aparece en ellas con cierta frecuencia. Se trata entonces de un instituto globalmente "internacional" - de allí su nombre - antes que panamericano, en el que latinomericanos y norteamericanos colaboran para sistematizar e institucionalizar el estudio de la literatura latinomericana. 2o Na terceira época, a de Mabel Morana, houve um notável impulso nas linhas de publicação. Aos quatro números anuais da RI se somaram as seguintes séries: a) Críticas, destinada à releitura e atualização de críticos latino-americanos; b) Nuevo Siglo, dedicada a obras mono gráficas de um único autor; c) aSerieACP (sigla que se refere ao nome de Antonio Comejo Polar, ilustre ex-presidente do Instituto), que representa, de certo modo, a continuação e adaptação da série "Clásicos de América", iniciada há seis décadas e que publicará livros coletivos sobre autores canônicos latinoamericanos; d) continuação e renovação da série Tres Ríos para a publicação de trabalhos apresentados em congressos; e) Biblioteca de América, volumes coletivos sobre temas críticos variados. 21 O IIU tem na atualidade o maior número de associados e a RI o maior número de assinantes de toda sua história. Sediados na University ofPittsburgh, a Revista 1beroamericana somente publica em espanhol e português. 22
Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, cria-se em Lima, em 1973, no seio de conversações sobre teorias da literatura latino-ameri-
Revista Iberoamericana: http://www.pitt.edu/-hispanl iili/ 22
Literaturas latino-americanas nas instituições...
" Bueno-Chávez, Raúl. "Breve Historia de la RCLL", in "Historia de la RCLL", na "homepage" da Revista de Crítica Literaria Latinoamericana: http://www.dartmouth.edu/-rclll ediciones.htm
14
25
Idem ibidem
Idem ibidem
", Revista de Critica Literaria Latinoamericana: http:// www.dartmouth.edu/-rcll/
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cana auspiciadas pela Universidade de São Marcos e nucleadas por seu diretor-fundador Antonio Cornejo Polar. Nasce como uma alternativa de crítica própria, atenta à matéria textual porém cultural e socialmente contextualizada, que quer ajustar-se à especificidade das literaturas latinoamericanas sem cair na falácia sociológica (crer que a realidade literária é a realidade social) ou a imanentista (crer que o texto fornece tudo para sua cabal compreensão). A relação entre literatura e cultura se mantém essencial a seu projeto crítico, mas sem subordinar a primeira à segunda. Em qualquer caso, a história social é sempre o terreno onde a crítica que a Revista promove se funda e acha cabal explicação. 23 Nasce também para acompanhar com material crítico a revista de teoria Problemas de Literatura, fundada um ano antes em Valparaiso por Nelson Osorio e Helmy Giacoman. Silenciada no final do mesmo ano pela ditadura, o projeto da revista peruana assume parte da agenda cancelada no Chile. 24 O primeiro número da Revista, que alguns consideram histórico, sai em outubro de 1975 editado pela lnti Sol e inclui textos que gravitariam notavelmente no latino-americanismo posterior: "Algunos problemas teóricos de la literatura hispanoamericana", de Roberto Fernández Retamar, e "Los sistemas literarios como instituciones sociales enAmérica Latina", de Alejandro Losada. A partir do segundo número passa a ser editada por Latinoamericana Editores, exclusivamente dedicada a manter a Revista. A partir do N.O 26 a revista passa a ser subvencionada pela University of Pittsburgh, onde Antonio Cornejo Polar foi professor titular; com sua mudança para a University ofCalifornia Berkeley, esta a subvenciona do N.O 39 ao 48, e, após seu falecimento, do N. ° 49 em diante está em Dartmouth College sob a direção de Raúl Bueno-Chávez. 25 A RCLL é publicada duas vezes ao ano, em espanhol e português. Na página eletrônica da RCLL incluem-se os índices dos números sob sua nova administração. As resenhas e alguns de seus textos (os que aparecem assinalados) podem ser livremente consultados. 26 Na posição que me foi honrada ocupar nesta mesa-redonda intitulada
Discursos e Diálogos Inter-americanos, das sessões semiplenárias deste Congresso da Abralic, de 2004 em que o Prof. Raúl Bueno-Chávez infelizmente não pôde estar presente, relatarei, como coordenador da área de literatura brasileira da RCLL, que me foi proposto ser a partir do n!! 47, e como admirador da obra de Antonio Cornejo Polar e de seu mais insigne
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seguidor, meu colega de Departamento e atual diretor da Revista, parte de um diálogo interativo que tivemos ele e eu sobre a orientação da RCLL, já há anos sediada nos EE. UU, frente o momento atual dos estudos latinoamericanos produzidos pela academia latino-americana e os elaborados pela academia anglo-americana sobre a América Latina. Assim se expressou o Prof. Bueno-Chávez: EI sentido de la RCLL: Conecta literatura con cultura y el contexto histórico-social. La literatura no sólo refleja la cultura y la situación enunciativa, sino que se inscribe en ellas, es parte irrenunciable de ellas. Fuera de la cultura y los contextos histórico-sociales que le otorgan sentido, la literatura carece de real significación y aun de función. Como la moneda que está fuera de su tiempo y su lugar de circulación. La literatura es una manera de responder a la cultura, a la historia social, a la vez que es parte de ellas. No se trabaja la literatura per se. La literatura está relacionada con la cultura. Nos interesa si la literatura se funda en un contexto, si muestra sus relaciones con el contexto. Relaciones entre literatura, crítica y teoría literaria: La revista es de crítica. Los artículos/ la crítica que nos interesa es la que da cuenta, que puede ofrecer modelos de fenómenos sem ejan tes. Es la crítica que tiene valor teórico. Metodología (cómo trabajamos): Elfoco tiene que estar "aliá ", en América Latina. La producción crítica debe ser básicamente latinoamericana. Nos interesa la "logosfera" deI articulista, sus referencias, sus puntos de partida. Quanto a nós, profissionais da palavra voltados às questões literárias desta América, como estabelecer, primeiramente, um efetivo diálogo entre nós, latino-americanos? Eis sua resposta:
Entiendo que el diálogo entre las literaturas de América Latina, deben incluir también los problemas culturales de América Latina y, por lo tanto, deben cada vez más basarse en textos de amp/io espectro producidos en ese subcontinente, no solamente en los /iterarios. La razón es simple: la literatura no es un tejido aislado de las otras series discursivas dei área, sino un sistema íntimamente trabado COIl (ligado a) las esferas intelectuales expresadas en textos tales como los
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de la ley, los acuerdos internacionales, los proyectos de integración, las bibliotecas transnacionales (la serie de 'Casa de las Américas' y la 'Biblioteca Ayacucho', por ejemplo), la literatura científica y científico-social sobre la flora, la fauna, el poblador, las migraciones, etc. etc. Por eso se trata de trascender lo meramente estético-literario para alargar el estudio comparativo a asuntos los más variados posibles, teniendo en cuenta su correspondencia entre los diversos países de América Latina. Por ejemplo: temas como la explotación de los recursos forestales (dei caucho en la era de los lores de la goma-Perú, Colombia, Brasilj, la conquista dei 'desierto', la incorporación dei indígena a las fuerzas productivas de la nación, los proyectos modernizadores dei área, los distintos acuerdos de integración (pacto Andino, Mercosur, ALALC, NAFTA, etc.) y aun actividades en apariencia privadas (como los cultivos de cana de azúcar, algodón, o café, que redisenan el panorama natural y cultural de grandes sectores de América Latina, caracterizados por el sistema denominado 'plantación ') no sólo tienen repercusiones !iterarias en estas tierras, sino que organizan un denso tramado de textos que discuten la cultura dei área. Entender la lectura de los textos en su sentido más amplio, no apenas el restricto campo de la producción literaria. En otras palabras: estamos entrenados en leer textos, comprenderlos, buscarles su sentido muchas veces oculto, disimulado. Estamos, pues, capacitados para salir dei reducto de la literatura ficcional para entrar en los de la cultura. A través de las herramientas que dominamos debemos ensanchar nuestro horizonte y contextualizar el asunto que estamos investigando no a solamente una realidad o cultura en América Latina, sino averiguar las diferentes manifestaciones dei tema elegido en dzferentes culturas, realidades, épocas distintas, etc. El material que el investigador puede incorporar a su estudio pasa, de una comparación entre dos novelas y sus adaptaciones a otras "midias ", a una efectiva investigación de los modos cómo se hacen las cosas en dos países de América Latina, siempre considerando el propósito de ese investigador que busca acercar el mundo de habla portuguesa aI de habla espanoh Esa sería, según mi punto de vista, una forma mucho más productiva de entender esta nuestra América Latina.
Literatura Comparada: diversidades, diferenças e fronteiras de identidades culturais Roland Walter Universidade Federal de Pernambuco
A
destruição vergonhosa do World Trade Center e de uma parte do Pentágono no 11 de setembro de 2001 levou a uma guerra que o atual presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, chama de "Guerra contra o Terrorismo". Ao iniciar uma guerra "preventiva" contra o Iraque sem mandato da ONU no dia 20 de março de 2003, os Estados Unidos e os seus aliados ingleses violaram o direito internacional, deram pontapés nos princípios básicos da organização mundial, colocaram-se fora do direito internacional comum e cometeram uma agressão. Esse crime contra a idéia nllldamental do direito internacional abala de maneira duradoura o sistema de valores políticos, criando uma nova ordem mundial baseada num vácuo ético. Os Estados Unidos justificaram suas operações no Afeganistão e no Iraque como "legítima defesa" e "medidas preventivas" contra a rede internacional do terrorismo, ou seja, contra o mal. A meu ver, esta nova ordem é baseada numa mundividência ingênua e perigosa: a história do mundo e a dos Estados Unidos se fi.mdem - o que é bom para os Estados Unidos também é bom para o resto do mundo. E no caso de os interesses do mundo e dos Estados Unidos não serem congruentes, aqueles dos Estados Unidos devem ter precedência - o que em caso de necessidade deve
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ser efetuado por força. Na realização das suas pretensões hegemônicas, o governo Bush aparentemente não tem uma consciência má: não é que ele luta para o bem e contra o mal? O mundo não é dividido em aqueles que "estão conosco" (with us) e os outros que "estão contra nós" (against us), aqueles evi/-doers ou rogue states que cometem ou fomentam crimes contra a humanidade "civilizada"? Assim é que o governo Bush luta com boa consciência para "a justiça infinita" (infinite justice) - o lema da "cruzada contra o terrorismo" - e um mundo "mais seguro e melhor". Com base nos relatórios anuais de 2003, 2004 e 2005 de Amnesty International, é obvio que, pelo contrário, o mundo toma-se cada vez mais inseguro em virtude desta criação de um novo quadro geopolítico. I Para muitos pensadores estes desenvolvimentos fazem parte dos chamados "fim da história" e "choque de civilizações." No início dos anos 90, o teórico americano Francis Fukuyama, em vista da queda do muro de Berlim e do fim da União Soviética, lançou a tese do "fim da história", ou seja, a vitória definitiva do liberalismo ocidental destinado a se estender por todo o planeta. Em 1993, o professor americano Samuel Huntington popularizou o "choque das civilizações". Segundo Huntington, "no mundo novo os conflitos não terão necessariamente por origem a ideologia ou a economia. As grandes causas de divisões da humanidade e as principais fontes de conflitos serão culturais ..... O choque das civilizações dominará a política mundial".2 Sem concordar com visões maniqueístas que dividem o mundo em o bom e o mal, gostaria de sublinhar que questões de cultura desempenham um papel importante nos nossos tempos de globalização neoliberal e mundialização cultural. Sabe-se que discursos imbuídos de ideologia influenciam não somente a epistéme, o ethos e a cosmovisão das sociedades como também as ações dos indivíduos. Assim, por exemplo, as crônicas do chamado "descobrimento", as teorias sobre raça, mestiçagem, antropofagia, transculturação, civilização e barbárie, e especialmente os romances escritos nas Américas exerceram uma função importante na busca de identidade e na criação de uma memória coletiva e consciência nacional. Uma das questões principais dos chamados 'Estudos Culturais' tem sido de problematizar a função da literatura na fonnação da identidade cultural. Com o objetivo de examinar a ligação entre literatura, crítica literária e identidade cultural na nossa contemporaneidade global, este ensaio primeiro focaliza o conceito de identidade para depois analisar alguns aspectos específicos da identidade cultu-
I Disponível em httpJ web.amnesty.org. Para uma análise dos efeitos políticoeconômicos e oulturais desta criação nos Estados Unidos. ver WALTER, Roland. "Rosto colado: O contraditório processo de significação nos Estados Unidos." In: Norte e Sul /lO Novo Milênio: Brasil e Estados Unidos. Org. Marcos Guedes. Recife: Ed. UFPE, 2004. p.209-31. Ver também RAMONET, 19nacio. Irak. Histoire d '1111 désastre. Paris: Galilée, 2005
, HUNTINGTON, Samuel P Le choc des civilisatiolls. Paris: Odile Jacob, 1997. p. 23 Todas as traduçôes de obras estrangeiras para o português são de minha autoria.
Literatura Comparada: diversidades...
3 CLIFFORD, James. Routes: Travei and Translation in the Late Twentieth Century. Cambridge: Harvard UP, 1997. p. I.
4APPADURAI, Arjun. Modernity at Large: Cultural DilIlensions Df Globa/i;;ation. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996. p. 33-36, 43.
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ral em romances de Maryse Condé, Toni Morrison e Conceição Evaristo. A análise é guiada pelas seguintes perguntas: como a identidade é constituída, produzida e vivida num mundo caracterizado por fluxos conjuntivos e disjuntivos de objetos e pessoas - fluxos alimentados pela complementaridade contraditória de desterritorialização e reterritorialização, rotas e raízes, origens quebradas e chegadas diferidas? Como é que personagens lidam com uma existência dentro, entre e através de fronteiras geográficas e psicológicas quando formas identitárias de opressão como (neo )colonialismo, racismo e sexismo, entre outros, negam ou delimitam a negociação e compreensão dos significados de identidade? Como é que a diferença cultural designa o outro? Como é que as fronteiras desta diferença são constituídas, mantidas e desconstruídas? Segundo James Clifford estamos vivendo numa "nova ordem mundial de mobilidade, de histórias sem raízes".3 O movimento entre e dentro de comunidades, regiões, nações e continentes não é uma novidade. O que é novo nos nossos tempos de globalização e mundialização aceleradas é o aumento da mobilidade cibernética e geográfica: milhões de pessoas se comunicam via o World Wide Web e/ou viajam/migram em busca de trabalho, bem-estar ou divertimento em mercados globais dinâmicos. Ademais, como Arjun Appadurai problematizou de maneira sagaz, os nossos tempos são caracterizados por crescentes fluxos de objetos, idéias, ideologias, mensagens, imagens e produtos - fluxos, estes, constituídos por e constituindo uma complexa rede de relações conjuntivas e disjuntivas. Este estado pósnacional do mundo, caracterizado por migração, estadias efêmeras, exílio e diáspora - "comunidades imaginadas" além de origens comuns, tradições locais e fronteiras geográficas e lingüísticas - cria novas formas de pertença, "formas culturais moldadas de maneira fractal" que minam noções fixas da nação e do sujeito auto-suficiente. 4 Por outro lado, este também é um mundo de estruturas, organizações e outras formas sociais estáveis, ou, como no caso do Estado-nação, relativamente estáveis. Enquanto o papel e a organização das instituições da nação e do Estado (e portanto as noções implícitas de soberania e território) mudaram em conseqüência de fenômenos transnacionais, os processos globais operam e se materializam (pelo menos parcialmente) em e através de territórios nacionais e instituições do Estado-nação. Ou seja, a globalização e mundialização tardias são caracterizadas por relações conjuntivas e disjuntivas entre os vários fluxos globais e as formas e práti-
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cas locais mais estáveis criando uma encruzilhada onde os elementos culturais se entrelaçam, se chocam, se sobrepõem, se apropriam e se reapropriam mutuamente dentro de uma estrutura hierárquica e de um processo de dominação e subordinação e desta forma aceleram vários tipos de problemas e fricções: subsistência, justiça, governo, epistéme e identidade, entre outros. Este encontro de entidades culturais, na qual as diferenças culturais são vistas como identidades enraizadas e específicas em termos de comunidade, região, nação e civilização e como espaços transculturais caracterizados por sobreposições, justaposições e misturas de fragmentos culturais faz necessário: 1) que como críticos literários reconsideremos a representação do relacionamento cultural e identitário e 2) reflitamos sobre os caminhos e meios de como analisarmos esta representação. Em seguida, gostaria de brevemente enfocar estes dois assuntos. Identidades culturais são determinadas pela cosmologia e cosmogonia de um povo-nação/grupo étnico dentro de um processo histórico. Assim, a posição do sujeito é "designada" dentro da rede de relações de poder e de ideologia. 5 Esta designação identitária, porém, fixa a identidade num lugar de maneira meramente temporária. Primeiro, porque a inter-relação entre as forças, práticas e elementos "residuais" e "emergentes" de uma cultura constituem a dinâmica epistêmica da ordem de saber dos sujeitos. 6 Segundo, porque os sujeitos mediante suas experiências reinventam suas identidades por razões subjetivas complexas em relação com suas posições sociais - ou seja, raça, etnicidade, idade, gênero, sexualidade, classe, trabalho, etc. Identidades, portanto, se recriam continuamente num complexo e entrelaçado processo de "being" e "becoming", ou seja, de "ser" e "estar".7 Isto significa que identidades tanto condicionam como são condicionadas pelos indivíduos. Ademais, a identidade é constituída de diferença no sentido de que sua significação depende da sua relação com, isto é sua diferença de outras identidades. Aquele que designamos ao dizer "eu" não é o próprio locutor. O olhar e a declaração do "eu", sendo refratados nos olhos, na imaginação e fala dos outros, mina as fronteiras (e ordens) fixas que separam o "eu" dos outros. Neste processo, as fronteiras (e ordens) são abertas para seus espaços fronteiriços adjacentes onde o self se cruza com outros contra e mediante aquilo que o constitui. Isto significa que o self é intimamente ligado com e cedendo aos seus outros e vice versa. Portanto, a identidade cultural se origina e é imbuída de suas múltiplas diferenças. A diferença cultural, pOlianto, não é estruturada por oposições binárias (o
5 FOUCAULT, Michel. The Archaeology of Knowledge and the Discourse 011 Language. London: Tavistock, 1972. p.
96. 6 WILLIAMS, Raymond. Problems in Materialism and Culture. London: Verso, 1997. p. 40-42.
HALL. Stuar!. "Cultural Identity and Diaspora". In: Diaspora and Visual Cu/turc. Org. Nicholas Mirzoeff. LondonlNew York: Routledge. 2000. p. 23. 7
Literatura Comparada: diversidades...
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'um' e o 'outro', o mesmo e o diferente, etc.) mas por relações heterogêneas; é espaço migratório de posições e posicionamentos dinâmicos, conflituosos e complementares. Nem o 'um', nem o 'outro'; nem 'aqui' nem 'lá', mas movendo-se
8 GROSSBERG, Lawrence. "Identity and Cultural Studies - Is That Ali There Is7" In: Questiolls of Cultural Identity. Org. Stuar! Hall e Paul du Gay. London: Sage, 1996. p. 103.
entre os dois, a identidade-em-processo oscila entre rotas e raízes. Este conceito de diferença cultural implica a pertença não "sem identidade", como alega Grossberg,8 mas entre, dentro e através de múltiplas identificações - um processo de negociações híbridas que atravessa as diferenças para uma compreensão parcial e temporária. Ter uma identidade, portanto, significa ser situado num lugar aberto e dinâmico, respeitando e compartilhando a diversidade das nossas diferenças. Identidades, portanto, são tanto imaginadas (em termos lingüísticos, políticos, sociais e teóricos) como vividas, ou seja, moldadas por estruturas, forças e práticas socioeconômicas e sociopolíticas. Isto significa, em última análise, que o que temos que transcender não é a diferença per se mas a noção de diferença enquanto separação e exclusão insuperável. A noção da diferença cultural enquanto processo híbrido e transcultural de compartilhamento implica a confluência de diferenças sem a sublimação dos seus diversos elementos num todo coerente: um reconhecimento da sobreposição e/ou justaposição dos diversos outros constituindo o self Neste sentido, a identidade e a cultura envolvem diferenças mutuamente refratadas. Gostaria de afirmar que isto é a base na qual deve-se pensar a alteridade cultural num contexto global. Seguindo os pensamentos de Antonio Gramsci e Raymond Williams, que definiram a hegemonia como um processo dinâmico de negociação entre diferentes grupos e discursos hegemônicos e contra-hegemônicos, entendo a cultura como negociação entre discursos oficiais e dissidentes. A tensão que liga estes discursos é a fonte do desenvolvimento criativo da cultura. Negligenciar, negar e/ou suprimir esta agitação cultural e pensar que exista uma homogeneidade completa entre cultura, identidade, idioma e território significa desconhecer os elementos vitais e fecundos que os constituem, desconstroem e reconstroem num contínuo processo de apropriação e reapropriação. Para poder examinar estes processos de negociação que constituem a diversidade cultural temos de mapear os espaços, lugares e esferas de sua existência: entre-lugares, passagens, fronteiras geográficas, psicológicas, corporais, sexuais e de gênero e seus espaços fronteiriços, movimen-
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tos transregionais, transnacionais e de diáspora. Gostaria de reafirmar de uma maneira sucinta o que examinei detalhadamente no meu livro Narrative Identities: (Inter)Cultural In-Betweenness in the Americas: é mediante a dinâmica transculturalltransnacional na encruzilhada de trocas, lugares caracterizados por um espaço-tempo heterotópico e múltiplos processos de continuidade e ruptura, síntese e simbiose, coerência e fragmentação, utopia e distopia, consenso e incomensurabilidade, que podemos mapear e avaliar a ambigüidade inerente à tradução da diferença e diversidade cultural enquanto formas, forças e práticas totalizantes repressivas bem como libertadoras expressivas. Só por meio da análise do fluxo aleatório dos elementos culturais que constituem a diferença como processos de dominação/subjugação e de libertação nas zonas intersticiais, a fusão e a ruptura cultural enquanto entrelaçamento imprevisível deles, é possível analisar a dinâmica das formas culturais moldadas de maneira fractal, ou seja sua natureza transcultural. Édouard Glissant, filósofo e escritor martiniquenho, diferencia entre "o mundo universal da Mesmice cultural" e "um padrão da Diversidade fragmentada". Para Glissant, a diversidade significa "o esforço do espírito humano para efeituar uma relação intercultural, sem transcendência universalista .... A mesmice requer Ser. A diversidade estabelece Estar ... A mesmice é diferença sublimada; a diversidade é diferença aceitada" que leva ao "contato cultural".9 A diversidade, portanto, é o conceito-chave do pensamento glissantiano sobre relações culturais rizomáticas que constituem le tout monde - mundo este no qual cada identidade é continuamente constituída e reconstituída mediante a interação de "enraizamento e errância", uma complementaridade de elementos contrários inerente aos estilos e cosmovisões barrocos do Novo Mundo. José Lezama Lima descreveu este barroco como "protoplasma incorporativo", isto é, uma "contraconquista" caracterizada por "voracidacf'.lo Uma voracidade que enquanto característica desta construção, desconstrução e reconstrução identitária sugere a violência inerente ao processo da condição pan-americana: a violência de histórias, paisagens, mentes e corpos violentados que continua escrevendo novos capítulos desde os morros mortais do Brasil, da Colômbia, do Haiti e de Chiapas até o deserto mortal de Sonora-Yuma entre o México e os Estados Unidos, a situação econômica estranguladora da Argentina e da Bolívia, o conflito racial e o genocídio dos Ameríndios nas Américas. O que Glissant delineia como interação de "enraizamento e errância" é descrito
GLISSANT, Édouard. Caribbeall Discol/l'se. Charlottesville: University Press of Virginia, 1992. p. 97-98.
9
111 LEZAMA LIMA, José. La expresión americana. Mexico D.F: Fondo de Cultura Económica, 1993. p.80,
177.
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\I CORNEJO-POLAR, Antonio. O Condor Voa: Literatura e Cultura Lati1lo-Americanas. Belo Horizonte: EdUFMG, 2000. p. 304.
12 BRAND, Dionne. A Map to the Doar oJ No Retum: Notes to Se/ol/gil/g. Toronto: Vintage, 2002. p. 18, 20, 29, 49, 150.
Ll CONDÉ. Maryse. Crossil/g the Mal/grave. New York: Anchor, 1995. p. 158.
14 Agradeço a poeta e doutoranda Tãnia Lima por ter me instigado a pensar sobre a representação do mangue na literatura.
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pelo crítico peruano António Comejo Polar como "diversas vivências", que, consideradas como um "fluido itinerário através de diversos tempos e espaços ... podem tramar narrativas bifrontes e até ... esquizofrênicas" .11 A escritora afro-canadense Dionne Brand, cujos personagens ficcionais fazem caminhadas esquizofrênicas dentro e através dos "interstícios úmidos e famintos" deste mundo, escreve que "viver na Diáspora negra é .. viver como uma ficção - uma criação de impérios e também uma auto-criação. É uma existência ao mesmo tempo fora e dentro de si mesmo .... Há uma sensação na mente de não estar aqui ou lá, de não ter nem saída nem entrada .... vivemos na Diáspora, no mar intervalar.... neste espaço inexplicável ... dominados pela persistência do espectro do cativeiro". Prisioneiros dentro de um espaço intermediário os negros da diáspora "estão sempre no meio de uma viagem", à deriva "sem destino". 12 Gostaria de propor um símbolo destas diferentes formas de inbetweenness cultural e identitário e da dinâmica dos seus elementos: o mangue. No seu romance Crossing the Mangrove, a escritora guadalupense Maryse Condé recria a sociedade desta ilha caribenha durante o velório de Francis Sancher, um estrangeiro amado por uns e difamado por outros. Ao chegar e oferecer seus pêsames, os habitantes do vilarejo Riviere au SeI revelam, ou em forma de diálogo ou monólogo interior, pedaços de mistério ofuscando ou a vida e morte de Sancher ou seu próprio relacionamento com o defunto. Num certo ponto da trama, Vilma alega que é impossível cruzar ou dominar o mangue: "Não se pode cruzar o mangue. As raízes do manguezal espetariam uma pessoa. A lama salobra a sugaria, sufocando-a".13 Mas os manguezais são constituídos por fronteiras que separam L' II!,!am diversos elementos: água, raízes, lama, caranguejos, réptis, moluscos, peixes, insetos, pássaros, plantas, flores e líquen, entre outroS.1 4 Como ecossistema incorporativo os manguezais constituem um espaço de trânsito composto de um sem-número de lugares (e tipos) de troca onde processos de enraizamento e desenraizamento temporários se alimentam mutuamente. No mangue existem limites enquanto categorias permeáveis que contêm e soltam: um processo pelo qual a dIferença enquanto separação entre o interior e o exterior é suplementada pela diversidade enquanto relação. A maré dentro e atavés do sistema rizomático das raízes do manguezal constitui um espaço indômito e transgressivo de metamorfose constante, um espaço intervalar caracterizado tanto por deslizamento e interpenetração inextricável como por passagens e escoamentos comple-
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xos. Em contraposição à declaração de Vilma no romance de Maryse Condé, o cruzamento do mangue pelos personagens - seus relacionamentos rizomáticos com Francis Sancher - toma-se um trampolim para novas fases cheias de acontecimentos nas suas vidas estagnantes. Na década 90, Recife tomou-se o palco do Movimento Manguebeat. Inspirado pelo livro Homens e Caranguejos (1966) de Josué de Castro, Chico Science e a banda Nação Zumbi (entre outros) recriaram Recife como Manguetown onde a lama e os caranguejos se fundem com a população indigente da cidade. Aqueles que ganham sua vida escassa como catadores de caranguejo são a lama que invade a metrópole do mangue. É uma invasão subalterna de homens-caranguejos lamacentos cujas antenas movem de maneira psicodélica entre o local e o global, o passado, o presente e o futuro, as atitudes e os pensamentos pré-modernos e a cibernética pós-moderna. Enquanto resposta à nossa era de mobilidade e transitoriedade, o mangue toma-se o símbolo de um labirinto urbano transcultural vivido de maneira caótica onde uma extrema pobreza e um luxo suntuoso, diferentes tempos e espaços, matutos e cosmopolitas, migrantes, artistas e funcionários se encontram e deixam sua marca. A música do Movimento, o Manguebeat, manifesta o processo glocal dinâmico ao entrelaçar ritmos de culturas diferentes: rap, funk, dub, reggae e hip hop são misturados com ritmos nordestinos como a embolada, o maracatu, o coco e a ciranda.ls Mensageiros de encontros e fluxos transculturais, Chico Science e a Nação Zumbi foram capazes de capturar as múltiplas entoações e implicações da experiência fluida nos interstícios caracterizados por fluxos cruzados para atuar, cantar, decifrar e viver uma significação de identidade e cultura interamericana infinitamente proliferativa. Neste processo, recriaram o mangue como símbolo e espaço utópico concreto de formação identitária baseada em outridade inclusiva mediante a ligação de elementos antagonistas. 16 Assim, acho que deveriamos ver o espaço do mangue não somente em termos de "inextricabilidade", como o faz Édouard Glissant. 17 Ao meu ver, a maré, alimentando um complexo ciclo de vida e morte, o fato de que os espaços de mangue serviram como refúgio para indígenas e negros e o recente Movimento Manguebeat fundamentam a natureza tanto inextricável como destrinçável do espaço de mangue. 18 Neste sentido, gostaria de formular a hipótese dos manguezais enquanto signo-
IS Ver DE MELO NETO , Moisés M. Chico Science, Zeroqualro & Faces do Subúrbio. Recife: Ed. Livro Rápido, 2004.
16 Sobre a distinção entre a utopia abstrata e concreta, ver Ernst Bloch.
17 GLISSANT, Édouard. Traité du tout-mol/de. Paris: Gallimard, 1997. p. 240.
IR Isto também é valido pela ville mal/grove de Patrick Chamoiseau, o espaço de mangue urbano intersticial no seu romanceTexaco .
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WALKER, Alice. Now Is the Time to Open Your Heart. New York: Random House, 2004. p. 203, 211. I.
MINH-HA, Trinh. Framer Framed. New York: Routledge, 1991. p. 122.
20
21 Isto incluiria o que Patrick Imbert em Trajectoires culturelles transaméricaines: médias. publicité. Iittérature et mondialisation (Ottawa: Les Presses de 1'Université d'Ouawa, 2004, p. 38) chama de "caméléonage [cuIturelle l, la capacité à se fondre temporairement dans un milieu bigarré".
22 BRAH, Avtar. Cartographies of Diaspora: COIltestillg Identities. London/New York: Routledge, 1996: p. 208.
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símbolo novo-mundista de cruzamento marcando a travessia de identificações serpeantes e entrelaçadas. Porém, como é possível cruzar o labirinto do mangue onde as raízes e as rotas de identificação criam o terreno rizomático da formação identitária? Para Alice Walker a solução é abrir os nossas corações para aquilo que é "completamente fora do círculo da boa vontade". Para superar as barreiras da alteridade abjeta que nos aliena de nós mesmos e dos outros, deveriamos nos "[t]ornar amigos dos [nossos] medo[s]".'9 Tomar-se amigo dos nossos medos significa, em última análise, aceitar e respeitar as múltiplas identificações que constituem o processo aberto de formação identitária, ou, nas palavras memoráveis de Trinh Minh-ha, que "não existe um "eu" que representa a mim mesmo. O que existe é o "eu". Tem que existir; mas existe enquanto lugar onde todos os outros "eus" podem entrar e se cruzam".20 Esta abertura perante outras pessoas, outros povos e culturas e a inerente disposição de apreciar elementos culturais do outro, gostaria de enfatizar, não deveria ser vista como celebração en vogue tanto de um cosmopolitismo híbrido - um mover entre o local e o global que envolve a capacidade de viver no local e no global, no aqui e no lá, ao mesmo temp021 - quanto de um hibridismo como resistência no qual a, impuridade" racista é reinscrita como multiplicidade subversiva e atuação progressista; ou seja, a substituição do outro difamado pela valorização eufórica do subalterno que atua nos espaços intersticiais. O que está em jogo, porém, são, os mútiplos processos de fissura e fusão culturais que sustentam as formas contemporâneas de identidades transculturais".22 Em seguida gostaria de justapor dois destes "processos de fissura e fusão" transculturais, um nos Estados Unidos e outro no Brasil. Trata-se de analisar em dois diferentes contextos culturais a representação da transculturalidade negra em sua dinâmica interamericana. Primeiro focalizarei dois trechos em Amada (1987) e Paraíso (1998) da escritora afroamericana Toni Morrison. Depois examinarei alguns aspectos específicos em Ponciá Vicêncio da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo. Em Amada, romance que narra a vivência traumática da escravidão e a rememorização desta pelos ex-escravos, entre eles Sethe e Paul D, a confluência das culturas africanas e ocidentais é o solo fértil de onde nascem as consciências e atuações individuais e coletivas. Isto é ilustrado de maneira mais impressionante na reintegração ritual de Sethe na comunidade.
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Iniciada pela decisão da filha de Sethe, Denver, de procurar trabalho na comunidade que condenou a casa e as pessoas de 124 Bluestone Road ao ostracismo desde o infanticídio de Sethe há dezoito anos, a reagregação de Sethe continua com o reconhecimento coletivo de crros passados que ameaçam cngolfar o presente. A decisão das mulheres de marchar em direção à casa de Sethe para exorcizar Amada é ao mesmo tempo uma medida para expiar a culpa da comunidade por (1) ser parcialmente responsável pelo ato violento de Sethe na medida em que não avisaram Baby Suggs e Sethe da chegada dos caçadores de escravos, (2) projetar a vergonha das suas próprias experiências sobre Sethe e (3) adotar o sistema de valores brancos para avaliar o assassinato cometido por Sethe, como Stamp Paid que lê um artigo de jornal sobre o caso a Paul D sem analisar criticamente o uso de linguagem e a ideologia branca que encadeia Sethe à posição perpétua de assassina. O exorcismo em si começa com os gritos de EUa em frente da casa de 124 Bluestone Road - um som que evoca os sermões de Baby Suggs na clareira, intimando os afro-americanos a se amarem e perdoarem-se mutuamente e a si mesmos. Unindo-se a EUa, as mulheres "pararam de rezar e voltaram ao começo. No começo não houvera palavras. No começo houvera apenas o som, e todas elas sabiam o que era o som".23 Essas vozes femininas "procura[ ndo] a combinação certa, a chave, o códi-
" MORRISON, Toni. Amada. São Paulo: Círculo do Livro, 1994. p. 302.
go, o som que falava mais do que palavras", por fim constituem, "a onda de som atingindo o fundo das águas" e iniciando a purificação da comunidade da sua desecração e culpa mútua, do trauma da escravidão e suas conseqüêneias. 24 Enquanto em Song of Solomon e Tar Baby Morrison
24
Ibidem. p. 305. Grifo meu.
usa uma forma híbrida de mito como contra-memória para desconstruir o discurso histórico dominante, em Amada ela enfoca mais explicitamente o ato necessário de desarticulação e rearticulação no processo de traduzir a memória traumática pela linguagem do opressor. O que ecoa mais intensamente no som das mulheres (e na obra de Morrison) é o conselho admoestador de Baby Suggs que a recriação do eu envolve uma reimaginação do eu não tão-somente via amor, mas também via linguagem: E mais: eles não gostam de nossa boca. Lá fora, irão quebrá-la e quebrá-la de novo. Jamais vão dar atenção às palavras c aos gritos que saem dela .... Não, eles não gostam de nossa boca. Vocês é que devem amá-Ia"Y A
25 Ibidem. p. 107. Ênfase no original. A tradutora omitiu a última frase. Tomei a liberdade de acrescentá-Ia. baseandomc na versão inglesa, Beloved (New York: Signet Book, 1989, p. 108).
Literatura Comparada: diversidades .. ,
" Descrita por Henry Louis Gates, Jr. em The Signijj'il1g MOllkey: A TheO/y of AfricanAmerican Literary CriticislIl (New York: Oxford ur, 1989, p, 22, 44-47) como uma "revisão formal que em todos os pontos é marcada por uma voz dupla .. , uma relação de diferença inscrita dentro da relação de identidade" cujo objetivo é criticar "a natureza do signi ficado (branco)" e desafiar "o significado do significado mediante uma crítica literal do signo",
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ação de guerrilha"26 performática das mulheres transforma o ato de relembrança numa travessia intervalar onde o levantamento do véu que cobre o não-dito, o não-ouvido, o distorcido e/ou o reprimido atraca-se com a mímica cultural resultante da consciência dupla, ou seja, a internalização dos valores dominantes, É nesse sentido que a enunciação performática das mulheres ao mesmo tempo suplementa e subverte o poder da linguagem escrita: os sons, os compassos, os ritmos e os movimentos afro-americanos abrem uma entre-zona onde uma forma oral de narrar é implantada na forma escrita de narrar, um hífen enquanto fissura e fusão - uma différance - libertando Sethe da sua posição aprisionada no sistema da significação branca - o discurso de um artigo de jornal que a define por meio de uma categoria de falta e deshumanidade, Nesse episódio, que inicia a reintegração de Sethe na comunidade, "o som" da vida, da liberdade e da resistência quebra a espinha das "palavras" da escravidão e da morte, Na e mediante a escrita morrisoniana, portanto, a memória subalterna, colocada entre a voz (a palavra vocalizada, o som dos ancestrais) e a letra (a palavra escrita), efetua um embate transcultural de ambos pelo qual a história homogênea despedaça-se nas suas contradições heterogêneas, suplementárias e uma mudança epistémica é iniciada, A oralização da memória mediante som, movimento, gesto, dança e ritual - som, este, que ecoa na reminiscência performática do corpo - não somente recria a ligação entre os ancestrais, os vivos e as gerações futuras. Dentro e através deste cronotopo contínuo, fluido, esta oralização da memória também efeitua uma apropriação epistémica dos vazios resultantes da vivência de subjugação e dominação subalterna. O ato de encher estes vazios com significações religiosas, estéticas, cognitivas e expressivas afro-descendentes contribui para a sedimentação da memória coletiva e, portanto, para a recriação da identidade cultural num processo histórico. Uma identidade transculturada que negocia entre diferentes ordens de saber como Morrison delineia metaforicamente em Paraíso. Enquanto em Amada a figura da amada conota a rememoração de todos aqueles que morreram no holocausto da chamada Middle Passage e do sistema econômico de plantação, em Paraíso ela recebe mais uma significação: uma saudade utópica concreta de um relacionamento intercultural cuja essência é marcada não por qualquer ordem hierárquica mas por uma
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vontade individual e coletiva de aceitar, respeitar e alimentar as nossas múltiplas diferenças como diversidade-em-relação. Nesse sentido, o final de Paraíso abre um caminho na medida em que delineia uma solução simbiótica ao dilema étnico-racial dos Estados Unidos e do mundo. Sugerida de maneira críptica pela visão da "porta" e da "janela" que Richard e Anna têm no local do massacre das mulheres do convento e pela simbiose das diferentes cores ("ela equilibrando os ovos escuros e o pano branco nas mãos, ele parecendo ter dedos duplicados com as compridas pimentas, verdes, vermelhas e negro-avermelhadas nas mãos",27 e misteriosamente evocada pela ressurreição mágico-realista das mulheres assassinadas que exige dos leitores irem além de um pensamento binário e harmonizar as
27 MORRISON, Toni. Paraiso. São Paulo. Companhia das Letras, 1997. p. 350.
diferenças sem anular os seus elementos constitutivos). esta solução simbiótica é traçada na última imagem do romance quando Piedade, negra como carvão", segura a cabeça de uma outra mulher em seu colo, em cujo rosto se misturam "todas as cores de conchas, areia, rosa, pérola". Duas mulheres que descansam enquanto observam outros, "perdidos e salvos", desembarcando de um navio; duas mulheres que repousam "antes de enfrentar o trabalho sem fim que foram criados para fazer aqui, no paraíso".28 Nesses trechos, Morrison descreve uma convivência sem fronteiras raciais onde diferentes cores não constituem mundos separados mas múltiplas presenças entrelaçadas de maneira desprivilegiada. O paraíso terreno é o espaço utópico concreto de Morrison onde a liberdade e a sobrevivência são baseadas antes em contato intercultural do que em separação e isolação. Se, como Nada Elia observou recentemente, "escritoras da diáspora africana são mediadoras .. , funcionando de maneira intervalar",29 então Morrison, situada no hífen que entrelaça o africano e o americano, é uma mediadora transcultural dos laços tensivos que seguram a relação dos dois. No romance Ponciá Vicêncio a escritora afro-brasileira Conceição Evaristo delineia a crise identitária de Ponciá enquanto resultado de choques emocionais (a morte de seu avô, de seu pai e de seus sete filhos), de fatores socioculturais (pobreza, patriarcado, discriminação racial) e históricas (a escravidão, o sistema de plantação). Filtrada pela memorização de Ponciá, esta crise liga o passado e o presente como local de memória, tecendo uma tapeçaria de múltiplas "idas, partidas", "mutilações e ... ausências".30 O que Ponciá decifra neste processo mnemônico são os motivos do desenraizamento de sua família, as ruínas da história, como diria Walter Benjamin, cuja conscientização facilita o processo da reconstrução
"Ibidem. p. 364-365.
29 EUA, Nada. Trances, Dances, and Vociferations: Agency and Resistance in Africana Women s Narratives. New York/London: Garland, 2001. p. 151.
311 EVARISTO, Conceição. POl1ciá Vicêl1Cio. Belo Horizonte: Maza, 2003. p. 76, 131.
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31
Ibidem. p. 83-84.
32
Ibidem. p. 27.
33 Ibidem.
p. 82.
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identitária. A errância de sua família entre o interior e a cidade é profundamente embutida nos múltiplos eixos da injustiça social no Brasil- a raça e a cor, a classe social, o gênero, o sistema latifundiário, a dicotomia entre o interior e a cidade - que Ponciá resume da seguinte forma: "Nascer, crescer, viver para quê? ... A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra e nova vida"Y Continuar a trabalhar para os donos brancos da terra como colono endividado depois da abolição em 1888 era uma coisa. Ser roubado da terra pelos mesmos donos brancos que a tinham dado era outra. Esta objetificação escravizadora do ser humano provocou a morte da sua avó pelas mãos do seu avô num momento de loucura. Mas o legado da vergonha familiar remete a um passado ainda mais longínquo. Ao escrever seu nome Ponciá sente a dor de um vácuo existencial: "Era como se estivesse lançando sobre si mesma uma lâmina afiada a torturar-lhe o corpo". O seu apelido foi dado aos seus bisavôs pelo seu senhor, "um tal coronel Vicêncio" antes da abolição. Desta forma, o nome evoca a memória da escravidão, "deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terras e dos homens".32 A marca do senhor, portanto, apaga (e nega) as raízes familiares e étnicas de Ponciá. Esta marca transforma sua existência numa não-existência dentro de um processo histórico de subaltemização que continua escrevendo novos capítulos sem fim. O romance, portanto, denuncia um sistema altamente discriminador que faz dos negros "donos da miséria, da fome, do sofrimento, da revolta suicida".33 Semelhante a Toni Morrison, Conceição Evaristo indica o amor, o carinho, a solidariedade coletiva, a memorização e a criatividade artística como possíveis meios de conscientização e cura da alienação e fragmentação identitária. A volta de Ponciá ao seu lugar de nascimento no interior onde ela retoma seu trabalho com argila, que ela coleciona ao lado de um rio onde modela suas esculturas, é profundamente imbuída da espiritualidade africana porque restabelece sua ligação com os vivos - sua mãe -, os mortos - seu avô - e os orixás - Oxum, deusa das águas doces, da vida, do amor e da fecundidade. A reconexão com Oxum e sua família fecha um círculo interrompido pela sua ida à cidade. Ou seja, com base nos pensamentos de Arnold Van Gennep em Les rires de passage e Victor Turner
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em Dramas, Fields, and Metaphors, pode-se dizer que esta estadia na cidade com seu marido é o estágio intermediário do limen entre o primeiro da separação e o terceiro da reagregação à sociedade/família. O sofrimento que Ponciá vive enquanto mulher casada na cidade inicia um processo de rememoração circular enquanto cura mental e física que liga diferentes tempos, espaços e esferas de ser num contínuo fluido: a memória está sendo explorado como lugar da (re )construção de identidade, a atividade do self em busca da sua intimidade perdida. O ato de dar vozes pessoais e raízes históricas à dor, ao sofrimento e ao remorso causados por violência e de lembrar e problematizar a experiência de subaltemização (porque e como estes aconteceram) abre a possibilidade que estes eventos nunca acontecerão de novo; ou seja, nas palavras da narradora do romance Ponciá Vicêncio: "enquanto o sofrimento estivesse vivo na memória de todos, quem sabe não procurariam, nem que fosse pela força do desejo, a criação de um outro destino".34 Gostaria de alegar que esta participação da violência e suas consequências no ato da reflexão, conscientização e humanização das vítimas e dos carrascos demonstra a capacidade da imaginação humana de construir liberdade a partir do espaço da não-liberdade. Como tal, a memória retraça (e assim mina) a fronteira separando e ligando o Mesmo e o Outro. Ao mover entre os dois em vez de afirmar um deles, a memória nos romances de Evaristo, Morrison e Condé (e numa grande parte da ficção da diáspora negra novo-mundista) expressa a necessidade moral de reconhecer e respeitar a existência e epistéme do outro. Isto significa que o ato da memorização é também um lugar da luta ética sobre autoridade semântica e social, ou seja, sobre o acesso à significação. Em busca de "duração temporal",35 revisão histórica e lugar enquanto "geografia simbólica",36 escritores africanos da diáspora novomundista exploram a memória enquanto lugares epistémicos entre a África e as Américas, o mar e a terra: uma "transescrita"37 que tenta criar lares a partir do que Gilroy chama de "tensões entre raízes e rotas".38 A memória é um importante instrumento de recriação da identidade enquanto lugar entre o passado e o presente que visa o futuro porque serve para abrir tanto os emissores quanto os receptores ao processo de conscientização; processo este, que inicia a cura. A narrativa de Evaristo, portanto, nos confronta com um movimento circular de várias dimensões cujo objetivo é curar o trauma colonial e seus desvios existenciais mediante a afirmação criativa destes: o círculo da
34
Ibidem. p.130.
GLISSANT, Édouard. Caribbean Discourse. Charlorttesville: University Press of Virginia, 1992. p.l44.
35
36 STEPTO, Robert. From Behind the Vei/: A Studyoi AJi"o-Ameriean Narrative. Urbana: University of Illinois Press, 1991. Segundo Stepto (p. 67), "uma paisagem tomase simbólica na literatura quando é uma região no tempo e no espaço que oferece expressões espaciais de estruturas sociais e condições rituais por um lado, e de eOlllmllnitas e genills foei por outro". 37 WALTER, Roland. Narrative Idelltities: (Inter)Cultural In-Betweel1ness in lhe Americas. New York/Frankfur!: Peter Lang, 2003. p. 3132. ]X GILROY, Paul. The Atlalltic: Modernity DOllble COI1SeiOllslless. bridge: Harvard UP, p.133.
Black and Cam1993.
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" Neste sentido, ver a importância do círculo em Praisesollg for lhe Widow de Paule Marshall e em Amada de Toni Morrison. Para uma análise científica do círculo na epistéme africana, ver STUCKEY, Sterling. Slave Cullure: Naliollalist Theory alld lhe Foulldatiolls of Black America. New York: Oxford UP, 1987. p. 12.
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rememoração catártica de Ponciá que é ligado com aquele do trabalho artístico; dois círculos que criam o círculo entre o indivíduo e o coletivo, o passado, o presente e o futuro, os mortos, os vivos e aqueles que nascerão, o mundo humano e o mundo dos orixás. Estes círculos dentro de círculos dão a perceber uma consciência de entrelaçamento cósmico - uma interdependência de todas as coisas e esferas. Tempos, espaços e identidades estão em processo. Os limites ocidentais (identidade/alteridade, exterior/interior, etc.) tornam-se permeáveis, abrindo-se aos seus espaços intervalares adjacentes onde o racionalismo ocidental encontra a espiritualidade africana. Ou seja, estamos lidando com o processo da troca transcultural num espaço intersticial. A característica circular da estrutura discursiva e temática do romance de Evaristo revela uma ordem de saber circular, uma consciência interior que substancialmente caracteriza aspectos de expressão cultural da diáspora negra nas Américas. O significado africano do círculo em poemas, dança, música, performance, pintura, contos e romances é dotado de matizes novos devido às condições específicas da escravidão e do sistema de plantação e aos contextos culturais diferentes nas Américas. O que se mantém até hoje, porém, é um dos significados principais do símbolo circular, a saber: a conexão com a epistéme ancestral tanto de forma consciente como de forma inconsciente. Enquanto signo e substância de unidade e harmonia, o círculo continua ser um símbolo de equilíbrio que une a diaspora africana em sua diferença. 39 Os romances de Morrison e Evaristo, portanto, nos confrontam com o processo de fissura e fusão, ruptura e continuidade da transculturalidade. Exemplos de um vasto corpo narrativo, eles denunciam a violência da desterritorialização/expropriação e reterritorialização/reapropriação inerente ao processo transcultural em conseqüência da conquista e das subsequentes formas de imperialismo e (neo)colonização. Urna violência que continua deixando o corpo, a alma e a mente como portadores de diferentes formas de diferença destruidora, desenraizados entre o self e o(s) Outro(s) num espaço fronteiriço onde a identidade é continuamente questionada. Uma violência que opera mediante a construção e desconstrução de fronteiras. As fronteiras que esta política violenta de diferença estabelece são linhas e espaços onde tendências contraditórias se suplementam e subvertem mutuamente. Corno linhas divisionais de diferenciação espacial, temporal e cultural, estas fronteiras distanciam a identidade interna da alteridade ex-
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tema, e como entre-espaços compartilhados as ligam. Estabelecem hierarquias entre o interior e o exterior e dentro destes. Assim, elas contêm as diferentes formas de diferença ao transformar os sujeitos em estrangeiros e/ou ilegais (perigosos), fora do real inteligível, do normal e/ou humano. Simultaneamente, as fronteiras e seus entre-espaços são reproduzidos e reimaginados para subverter esta contenção no processo de resistência à subaltemização e marginalização. Fronteiras e seus entre-espaços, portanto, constituem o terreno onde as identidades são vividas numa interação tensiva de estase cultural (diferença enquanto separação) e transgressão cultural (diversidade enquanto relação). Fronteiras conotam estase cultural ao canalizar a identidade cultural para epistémes nacionalmente identificadas enquanto a transgressão destas fronteiras revela espaços intersticiais onde as diferenças culturais são traduzidas para relações interculturais de pluralidade simbiótica e/ou sintética. Neste sentido, fronteiras e espaços fronteiriços são entidades materiais e símbolos que constituem lugares tanto de poder do Estado repressivo e normalizador quanto de funções e práticas transnacionais e transculturais transgressivas. Se o nosso mundo continua sendo profundamente fissurado por nacionalidade, regionalismo, etnicidade, raça, classe e gênero, os romances em questão nos alertam para a necessidade de transcender estas divisões, forjar de uma vez por todas uma cultura cívica que respeita tanto as diferenças quanto as semelhanças. Estou firmemente convencido que se pode conseguir isto através de uma educação que tenta compreender a diversidade da cultura humana. Se não existem culturas puras porque se constituem por processos de transculturação, então a qualidade híbrida e fragmentada da multicultura faz necessário que transcendamos o provincianismo de culturas e Estado-nações e examinemos o significado de 'identidade', 'cultura' e 'nação', entre outros, nas suas complexas, fragmentadas e negociadas inter-relações transculturais. Assim, me parece que o lugar do crítico contemporâneo deve ser a fronteira e os espaços fronteiriços entre disciplinas desde onde ele mapeia e problematiza os fenômenos em contato e a dinâmica deste processo de maneira radicalmente comparativa e conjuntural. O objetivo deste empreendimento deve ser a compreensão de culturas alheias no interesse da coexistência pacífica. A ética desta metodologia comparativa e conjuntural, portanto, deve-se dirigir contra um forte impulso globalizador que privilegia certas culturas e suas línguas ao detrimento de outras, forçadas a traduzir seu ethos e sua cosmovisão em
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línguas alheias à sua vivência. Enquanto crítico literário e professor de literatura comparada vejo a minha tarefa principal na construção de pontes e redes onde existem abismos; pontes que facilitam a compreensão de que tudo no mundo é ligado e nada existe de maneira isolada; redes para demonstrar as concatenações históricas, sócio-políticas, socioeconômicas, socioculturais e literárias - pontes e redes que facilitam o estudo comparativo de todas as literaturas, de cada texto no seu contexto local e global e que, neste processo, desconstroem fronteiras que distanciam os outros com suas culturas e literaturas. Esta aceitação crítica dos outros (das obras de outras culturas) no self é de suma importância para quem trabalha com literatura comparada. Assim, me parece, pode-se contribuir para a conscientização democrática das sociedades e culturas mundiais no sentido de problematizar visões simplistas do mundo onde dominam idéias abstratas que ofuscam deliberadamente os significados do contexto cultural e das raízes históricas. O mundo não pode ser visto de maneira dicotômica, pintado em preto e branco. O mundo é feito de múltiplas cores, um arco-íris cujas cores mudam continuamente. Vejo a metodologia conjuntural da literatura comparada acima-esboçada como visão intercultural de arco-íris. Arco-íris este, que cria pontes policromáticas entre elementos opostos, traduzindo diferenças enquanto separações para diversidades enquanto relações. E acredito firmemente no poder de conscientização e transformação sócio-cultural deste tipo de literatura comparada simplesmente porque a utopia concreta é o hífen entre o que é e o que é imaginado ser, um axé que nos impele para frente por meio de uma visão, para uma realidade diferente, melhor e ativamente criada.
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Encontros na travessia
Tania Franco Carvalhal Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Ao realizar-se sob a inspiração do tenuo "travessias", extraído da obra fundamental de João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, o IX Congresso da Abralic escolhe como tema central uma palavra que é usual na prática comparatista, enquanto sinônimo de "passagem", "trânsito", "errâncias" e "desvios". Vivemos em trânsito, entre fronteiras de línguas, códigos, culturas, procurando ver a literatura sem que ela seja limitada por essas fronteiras, de nações ou de línguas, nem pela divisão entre as artes e outras formas do conhecimento ou entre o erudito e o popular. Nesse contexto, outros tennos como encontros e contatos são também, como sabemos, definidores da atuação do estudioso que, de fonua regular e sistemática, relaciona dados, articula elementos, explora intervalos, além de ultrapassar limites e margens. Por isso é possível dizer que a literatura comparada se interessa sobretudo por relações, pela literatura e pela cultura em suas relações, pela literatura e cultura como lugares de relação. Julgo que, nesse conjunto de palavras, o termo encontro é especial graças aos múltiplos significados para que aponta. Ora pode indicar o resultado positivo de uma busca, a descoberta de algo, (encontrar é descobrir) como pode ser simplesmente indicativo de um local de confluência.
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Tanto pode significar unir como opor-se. A idéia de que encontro pressupõe também a de separação é decisiva porque possibilita a integração, neste conjunto de sentidos, da noção de diferença. Encontros na Travessia, o título que escolhi para esta reflexão, quer valer-se desses múltiplos e ambivalentes significados. Não é, portanto, nada ocasional ou aleatório. Encontros ganham, aqui, o valor simbólico de transformações, apontando para aquelas por que a literatura comparada vem passando desde meados do século anterior e que se firmam neste início de milênio. Significa, simultaneamente, continuidade e mudança. É com esse intuito, o de aludir às noções que revitalizam hoje o comparatismo e lhes dão uma nova configuração, que lhes quero falar de alguns "encontros" no âmbito da criação artística, como confrontos e pontos privilegiados de observação, para mim iluminadores das práticas comparatistas correntes. Essa breve introdução explicita os passos de meu pensamento no vaivém entre vários campos e textos, literários ou não, entre noções e seus avessos, entre o teórico e o imaginário. Leituras, enfim, que são também reencontros.
Copiar é inventar. Pablo Picasso (1881-1973) e Dominique Ingres (1780-1867)
o primeiro encontro nos leva ao imaginário das artes plásticas, em particular o da pintura de Pablo Picasso. De março a junho de 2004, o Museu Nacional Picasso, também conhecido como Hotel Salé, em Paris, realizou uma exposição sob a designação "Picasso Ingres" colocando lado a lado vários quadros dos dois pintores para que o público pudesse perceber o quanto havia do mestre francês no pintor espanhol. As obras de Picasso escolhidas para esse confronto permitiram com nitidez que se percebesse como, ao olhar para a obra de Dominique Ingres, ele a copia, a cita, a parodia ou dela se desvia. Tal intenção não surpreenderia Ingres que por sua vez copiara o italiano Rafael, justificando: C'est en se rendantfámilieres les inventions des autres qu 'on apprend dans I' art à inventer soi-11Iême. 1
1 Ingres, "De 1'étude de l'Antique et des Maltres" editado em Pellsées d ·ll1gres. Editions de la Sirene, 1992.
Encontros na travessia
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Por isso, nos cadernos de Ingres está preservada uma sugestiva citação de Montaigne na qual o ensaísta compara o ato de apropriação à ação das abelhas quando retiram mel das flores e conclui: Cahiers. Montauban, musée Inges.
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Ainsi les pieces empruntées d 'autrui, il les transformera et les confondra pour en faire un ouvrage tout sien. 2 Picasso estabelece com seu ilustre antecessor um diálogo essencialmente plástico e formal. Na exposição parisiense, a disposição dos quadros favorece que se desenhe o trajeto dos encontros de Picasso com a célebre tela de Ingres, "O BanhoTurco" até a apropriação de outra tela, a de "Jupiter et Thétis", quadro que o pintor espanhol visitará regularmente no museu Granet d' Aix-en-Provence. A seqüência de apropriações feitas por Picasso organiza-se como um percurso de procedimentos que vão da citação, vista inicialmente como época do "pastiche" até a da "alusão"direta (o período dos retratos de mulheres), seguido do tempo de "apropriação" (os anos 30) até o da "paródia", nos anos 60. A disposição dos quadros expostos favorece também a leitura do processo de composição de que Picasso se vale para inicialmente reproduzir e depois desconstruirlreinventando a obra do outro. Assim, através de Ingres, é toda a pintura e mesmo o ato de criação que ele interroga.
o segundo encontro -
Pabio Picasso (1881-1973) e Henri Matisse (1869-1954). A reinvenção Certamente não é esta a primeira vez que exposições se encarregam de identificar na obra de Picasso o intuito de estabelecer um diálogo permanente com outros pintores, seja com EI Greco, com Velázquez (lembre-se aqui a leitura da série "As meninas" como está disposto no Museu Picasso em Barcelona), com Toulouse -Lautrec, com Gauguin, Manet ou Corot. Antes, de janeiro a maio de 1999, o Kimbell Art Museum, de Fort Worth, Texas, organizara uma bela exposição intitulada "Matisse e Picasso. Uma gentil rivalidade". Em 2002, essa mesma exposição translada-se a Paris, no Museu do Grand Palais. Sabe-se que esses dois pintores do século XX pensaram de maneira fundamental a relação entre forma, cor e linha na arte da representação, inovações que foram revolucionárias não apenas para a pintura, mas para a
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arte moderna em geral. No entanto, desconhecia-se até então a dimensão da produtiva rivalidade existente entre eles e como ela se acentua nos anos 30 constituindo um intermitente diálogo. Além disso, "Matisse e Picasso", como observa Joachim Pissaro, curador da Vale University Art Gallery, nos permite a revelação de um fato específico de nossa cultura, pois desde que a imposição de um unívoco e exclusivo modelo herdado pela tradição artística entrou em colapso - pelo menos desde Cézanne, na pintura - abriu-se um caminho para a pluralidade de vozes, tal como M. Bakhtin explicou. Por isso, para Pissaro, "não há vencido nem vencedor nesse confronto, pois eles não inventam uma nova forma artística. No diálogo, eles inventam e reinventam a si mesmos."3 Cabe evocar, nesse contexto, uma das questões centrais da teoria da comunicação, quando Medveded observa que em realidade, a relação entre dois elementos, entre A e B (letras que podemos substituir por Henri
3 Pissaro, Joachim. In: Matisse and Picasso. Fort Worth, Texas, Flammarion, Kimbell Art Museum, 1999.
Matisse e Pablo Picasso), estão em estado de permanente formação e transformação; eles (A e B) se alternam no processo de comunicação. Nada é transmitido do primeiro para o segundo mas construído entre eles, como uma ponte ideológica; tudo é construído no processo de interação. No encontro com Matisse, as palavras-chave que a leitura crítica da exposição registra no catálogo, organizado por Yve-Alain Bois, são outras. Deparamo-nos ali, para caraterizar cada fase do diálogo, com "Diálogo", "Desprezo (misprision)", "Rivalidade" e "Chess (xadrez)".4 Ora, a série que contempla esses termos chama logo a atenção de um comparatista para a natureza agressiva dessas palavras como se a relação entre os dois pintores (Picasso e Matisse) não fosse amena nem da mesma natureza daquela que ele estabelecera com Ingres. O expressivo número de telas pintadas por um e outro - ao todo eram lOO os quadros expostos no Kimbell Museum - revela que o diálogo entre eles exigia rapidamente uma resposta, pois se realizava como uma espécie de competição. Há duas perspectivas essenciais nesse diálogo, a da rivalidade e a do modo lúdico das trocas entre os dois pintores, metaforizado pelo jogo de xadrez. É, pois, uma interação conduzida pela rivalidade competitiva e simultaneamente lúdica. Nas duas exposições de Picasso aqui evocadas, impressiona a um comparatista sobretudo a escolha dos termos empregados para qualificar as trajetórias de confronto, pois são palavras idênticas às adotadas na
Bois, Yve-Alain.In: Matisse and Picasso. Fort Worth, Texas, Flammarion, Kimbell Ar! Museum, 1999.
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prática dos confrontos textuais. Percebe-se, então, que as telas podem ser objeto de leituras relacionadas com textos literários, graças à identificação dos processos criativos que regem suas produções. Igualmente interessa comparativamente observar que há, subjacente a cada uma das duas exposições, fundamentos teórico-críticos distintos que ordenam a disposição das telas e descrevem os procedimentos criativos a que elas remetem. Com efeito, para analisar a relação Picasso/Ingress foram usadas as expressões paráfrase, citação, alusão, paródia, remetendo à uma tradição crítica francesa que inclui, entre outros, GGenette, Julia Kristeva, Michel Riffaterre, Antoine Compagnon. Por outro lado, as palavras-chave que acompanham, dividindo em quatro partes, o confronto entre Picasso e Matisse estão ligadas ao pensamento de Harold Bloom, em Anxiety of lnfluence e à noção de misreading. A uma tradição crítica norte-americana, portanto. Interessa, ainda, apontar que um fator determinante na diferença que existe entre Picasso e os outros dois pintores franceses é a linha de tradição em que cada um deles se insere. Nas raízes de Picasso há certamente Goya, EI Greco e Velasquez, na dos franceses, Delacroix. Tal aproximação confirma para nós que um artista pode se apropriar dos achados e das invenções de seus predecessores ou de seus contemporâneos sem a finalidade de reutilizá-los simplesmente, mas com a intenção de os reinterpretar e de enriquecê-los como se fossem um legado a que outros mais haverão de dar continuidade. A re-Ieitura permitindo, portanto, que se estabeleça uma tradição, feita de repetições e de desvios. A fecundidade do pintor espanhol não se esgota em si mesma. Ao contrário, e do mesmo modo que muitos escritores, parece necessitar dessas aproximações com outros artistas para crescer, para alterar as convenções e recriar a pintura e a literatura. Igualmente, os confrontos que são oferecidos ao observador permitem diferentes leituras dos quadros de Picasso, segundo as etapas de leitura sugeridas por Michel Riffaterre. Quer dizer, contextualizando-os (isto
é, situando-os no tempo e espaço de sua produção) des-contextualizandoos (ou atribuindo-lhes um significado simbólico ou metafórico que os faça ter sentido em qualquer tempo e espaço) e re-contextualizando-os (isto é, reconstruindo um significado no presente, relacionado com o mundo do leitor/observador) para ler nele outras obras e a própria história da arte.
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Como se pode perceber, as relações estabelecidas a partir da obra de Picasso servem então como ilustração de tendências críticas diferentes que podem também ser lidas no confronto. Permitem igualmente a evocação de noções essenciais ao comparatismo de hoje, como a nova concepção de originalidade para a qual importa não a identificação das fontes mas o tratamento diverso (este sim original) que as obras recebem no processo de apropriação, originando uma composição diversa e inovadora. É com essa versão transformada e transformadora que transitamos do campo da pintura contemporânea para o da literatura, circulação que nos é facilitada pelo uso em ambos os domínios de procedimentos de invenção, que se assemelham e se encontram.
Descobrir é inventar: Oswald de Andrade e Blaise Cendrars Tudo que até aqui se disse pode ser transferido, portanto, de um campo para o outro. Na verdade, o que interessa ao comparatista na interação entre as artes é a possibilidade de encontrar, na íntima relação que elas estabelecem, o sentido principal dessa aproximação que está simultaneamente ali e em todas as outras obras. Telas e textos, ao serem confrontados, nos dizem sobre o conceito que os move em sua produção. "Il n'a donc qu'à copier pour être original", repetia Jean Cocteau, fazendo coro a Ingres, Picasso e Matisse. Nesse sentido, a literatura brasileira seguiu a melhor lição machadiana nos procedimentos criativos da apropriação e da assimilação, como nos ensinou José Aderaldo Castello em "O ideário crítico de Machado de Assis". Segundo Afranio Coutinho, Machado de Assis, ao dizer que se pode ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica, estava "gravando num aforismo toda a sua teoria de originalidade em literatura." 5 Quer dizer, ao final do século XIX, Machado apontava para o que hoje está consagrado na fórmula "copiar é inventar". Ou, se quisermos, reinventar. Mais tarde, o modernismo antropofágico nos ensinaria exemplarmente por que e como assimilar o alheio na confonnação do próprio, confirmando que esse processo é o que caracteriza a fonnação literária em todo o seu percurso. O encontro de Oswald de Andrade com o suiço Blaise Cendrars é outro desses confrontos que esclarecem como a poesia de um e de outro
, Coutinho, Afranio. In: Machado de Assis.Obra Completa. [Org. Afranio Coutinho J Rio de Janeiro, Ed. José Aguilar LIda. 1959, p. XIX.
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Campos, Haroldo de. Artigo citado. In: Pau Brasil. Oswald de Andrade. Obras Completas. São Paulo, Ed. Globo, 2a ed, 2003.
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repercutiram em suas produções, como nos mostra Haroldo de Campos em "Uma poética da radicalidade", estudo antológico sobre o livro oswaldiano de 1925, Pau Brasil. Ao analisar os resultados desse diálogo, em termos de influxos de um poeta sobre o outro, diz Haroldo: "Apenas a câmara portátil dos poemas oswaldinos tinha um dispositivo a mais, que faltava à kodak excursionista com que Cendrars fixou sua "fotografias verbais" paubrasileiras: a visada crítica. Cendrars ficava no exótico e no paisagístico, na cor local; Oswald dirigia sua objetiva para além desses aspectos, colhendo nela as contradições da realidade nossa, que escapavam à faiscante inspeção de superficie."6 O comentário crítico de Haroldo ressalta, assim, não apenas a forma diversa de ver dos dois escritores, mas igualmente a forma distinta de cada um em expressar a realidade observada: o olhar estrangeiro vê o exótico, Oswald lê em profundidade os paradoxos da realidade. São descobertas diferentes e de distinto alcance. Alexandre Eulálio, em A aventura brasileira de Blaise Cendrars (1978) insiste na importância da descoberta do Brasil em 1924 para obra cendrarsiana, "este espaço livre, vaga expressão geográfica, imenso laboratório de culturas onde coexistiam as mais contraditórias experiências de tempo social" seria uma atração irresistível para
Eulálio, Alexandre. Aventura Brasileira de Blaise Cendrars.São Paulo: Quironl Brasília: INL, 1978.
7
ele e, como diz Eulálio, "o próprio símbolo da viagem que é o encontro consigo mesmo."7 O encontro entre os dois escritores nos leva a pensar no que nos fala Szent-Gyorg quando diz que a descoberta consiste em ver o que todos
viram e em pensar o que ninguém pensou. Szent-Gyorg nos fala de invenção e criação na descoberta como elementos coadjuvantes da percepção. Por isso o novo, estando ligado à capacidade de inventar, associada por sua vez à de descobrir e à de perceber, nos permitirá sempre entender que a originalidade está em pensar de forma diferente aquilo que todos vêem. Para todos é dado ver, mas cada um se identifica ao pensar o que vê, ato no qual interagem a formação, as experiências e interesses particulares. A descoberta, enfim, é uma construção individual. E a sugestão ou influxo é um encontro que desperta no escritor/pintor, no artista, as tendências neles l~tentes. Por isso, deixa-se de considerar na prática comparatista influência como uma ação pacífica, que diminui o outro ao fazer dele simplesmente um repetidor. Numa perspectiva positivista, a influência servia
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para identificar detenninantes simples que explicassem "casualmente" a nova obra, como em um processo de causa e efeito. Hoje, ao contrário, o influxo, como o entendemos, indica uma interação positiva, dinâmica, com resultados novos e inventivos. Passa a ser, então, um valor positivo que dá lugar a outras preocupações, como "efeito", "recepção" e inclusive a retomada, em outra dimensão, da multiplicidade de apropriações que podem ser feitas e de sua utilidade. Assim, quando o jagunço Riobaldo diz a seu mudo interlocutor -
Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco a ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só para mim é pouca, talvez não me chegue, 8 compreendemos, com Guimarães Rosa, que a nossa literatura soube sempre valer-se do procedimento apropriativo, pois em nossos maiores autores identificamos a consciência desse procedimento que os singulariza e simultaneamente os inscreve na tradição cultural do Ocidente. Beber água de todo rio com a sede de quem necessita afinnar-se e encontrar o caminho certo e sem igual. Descobrir os caminhos é, ao fim e ao cabo, inventá-los. A literatura brasileira, e por extensão a latino-americana, tem fornecido ao comparatismo mundial inúmeros exemplos que ilustram os processos de apropriação e assimilação além de outras noções fundamentais que a teoria literária encarregou-se de identificar e definir, muitas vezes apoiando-se na leitura de Jorge Luís Borges, certamente um dos mais difundidos autores do Novo Mundo. Isso nos leva a crer que encontramos nosso lugar no comparatismo mundial nele introduzindo aspectos condizentes com nosso contexto e nossa maneira peculiar de ver o literário, o cultural e as modificações que se processam a nosso redor. As traduções de textos, associadas a aspectos de difusão e recepção literárias, com seus impactos e motivos, ao esclarecerem os movimentos de conformação dos polissistemas literários e culturais, pennitem também a escrita de uma nova história literária, atenta para as condições contextuais e para a figura do leitor. Quer dizer, a dinâmica de circulação textual esta detenninada pela assimilação e o intercâmbio. É, como se sabe, o leitor quem dá visibilidade às obras, dando-lhes sentido, pois elas não existem sem uma loealização em um sistema de refe-
Guimarães Rosa, J. Grande Serão. Veredas. In. Ficção completa. [Org. Eduardo Coutinho] Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar, 1994, p.16.
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rência interpretativa. Por isso dizem que a história da arte é a história de sua leitura. A intervenção do leitor no processo criativo, complementando-o, é tão importante. que falar de uma obra não significa falar apenas dela, mas dos sentidos que a ela se agregaram em cada leitura. Na literatura comparada, a ênfase na figura do leitor e os significados encontrados para seus procedimentos em relação aos textos, introduziu importantes modificações conceituais. No horizonte do comparatista está "o autor enquanto leitor" e a conhecida noção de "fusão de horizontes" se redimensiona, pois ao horizonte primeiro se agrega o horizonte de uma cultura diversa daquela a que a obra pertencia. Nesse caso, a interpretação deve ser verdadeiramente construída, permitindo a compreensão do meio literário no qual a obra agora se inscreve: é uma metainterpretação. Os conhecimentos de hermenêutica aplicados à literatura comparada favorecem a redefinição de muitas de suas atuações.
Leitura da cartografia comparatista Os exemplos de encontros/confrontos até aqui referidos nos permitem uma aproximação do comparatismo em novas bases. O estudioso se encontra destituído de conhecimentos fixos e pronto para outros avanços e transformações. Não poderia ser de outra maneira, pois entramos, nesse milênio, na era da desconstrução: enquanto ideologias caem, religiões se radicalizam, as ciências exatas expõem os limites de sua pertinência enquanto as ciências humanas resvalam em suas fronteiras disciplinares. Por isso, quando Edgar Morin escreve:
Morin, Edgar. Introdução a Raí::es Errantes. Mauro Maldonato, São Paulo, SESC São Paulo, Ed. 34 Letras, 2004, p.
9
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Considero fundamental afirmar que a contribuição mais relevante do saber do século XX foi seu esforço para conhecer os limites do conhecimento. A maior certeza que ele nos deu é a da impossibilidade de eliminarmos as incertezas. O único ponto praticamente certo é o da interrogação. 9 entendemos, então, cada vez mais que não é possível pensar em campos do saber estanques, conclusos e fechados em si mesmos, pois o que se acentua é a natureza híbrida dos diversos domínios do conhecimento e da expressão artística, sua inter-relação. Ressalta das palavras de Morin o valor da dúvida não só como central ao pensamento reflexivo, mas nele indispensável para que saibamos,
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com antecedência, que de nada nos valem as certezas se queremos avançar nos campos interligados do saber. Por isso nosso instrumento básico é a interrogação. Nosso método, o da formulação de questões em dimensão relacional, abarcando não apenas diversos campos - a história, a sociologia, a etnologia, a psicanálise, etc como examinando de vários ângulos as questões que nos são oferecidas. Desde os anos 70 Roland Barthes alertava para a função da crítica não como homenagem ao passado ou à verdade do outro mas como a construção do inteligível do nosso tempo. Nessa linha de pensamento, a função da crítica será, ainda, a de reconstituir (ou constituir), à luz e com os recursos do nosso tempo, essa inteligibilidade. Com efeito, cada vez mais se toma indispensável identificar, selecionar, reler com olhos novos e estratégias distintas as questões que nos são propostas e que devemos criticamente enfrentar. Essas alterações nos levam necessariamente a colocar em causa os parâmetros de crítica em uso. Em entrevista recente, Roberto Schwarz defende a crítica que "parte da análise estética e busca o não-evidente, o resultado do que o trabalho formal do artista configurou". Segundo ele "se não for preciso adivinhar, pesquisar, construir, recusar aparências, consubstanciar intuições dificeis, a crítica não é crítica."lo A literatura comparada, como prática crítica, se inscreve no movimento de mudanças das demais modalidades críticas, delas se distinguindo não pelos objetos que estuda, mas pelas perguntas que formula e pelos modos de aproximação de que se vale. Nesse contexto, apenas ampliar o "objeto de estudo" da literatura comparada para fazê-lo coincidir com o campo total do que consideramos "produção cultural" não resolve, a meu ver, a definição do comparatismo. Por outro lado, o comparatismo literário não pode restringir-se à prática da comparação, da forma como a designação de "literaturas comparadas" poderia fazer-nos entender. Antes de tudo porque o conceito de "literatura" ganhou em complexidade. E, principalmente por ser esta uma disciplina que se caracteriza pela pluralidade de orientações, adequada ao tipo de relação de que trata. Ao transformar a relação binária usual nos primeiros trabalhos em uma indagação que pressupõe uma série de outras (com a construção do que convencionamos chamar de tertiul11 quid), a literatura comparada su-
10 Revista Pesquisa Fapesp abril de 2004, p.15
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pera a busca de semelhanças e diferenças para formular indagações que mobilizam amplamente o literário e o cultural. Assim é possível considerá-la como um dos intrumentos críticos colocados à nossa disposição para que consigamos dar visibilidade às questões do nosso tempo, formulando-as de maneira relacional. Além disso identifica-a a articulação freqüente com outros procedimentos críticos, pois graças ao acento posto na natureza relacional dos textos literários e dos fatos culturais, a literatura comparada assegura para si própria uma ampliação em direção às grandes questões tanto literárias como culturais. A investigação interdisciplinária, na atualidade, se converte em uma necessidade. Mas para chegar a essa constatação, hoje banal, foi preciso transformar-se. Como se percebe na menção aos antecedentes históricos que definiram inicialmente o comparatismo.
Os caminhos trilhados
11 Fokkema, D. "La literatura comparada y el nuevo paradigma" In: Orielllaciolles em Ii/era/ura comparada [Org. Dolores Romero] Madrid, Arco/Libras, 1998 , p.229.
Desde sua institucionalização como disciplina acadêmica no início do século XX e ao longo dos desenvolvimentos teórico-críticos que caracterizam os estudos de literatura comparada, várias têm sido suas formas de atuação como leitura confrontativa e busca de complementação em seus procedimentos. Não por acaso surge como subsidiária da historiografia literária, para ir encontrando sua autonomia e perfil singular. Enquanto escrevo, tenho presente a afirmação de Karl Popper sobre o que seja uma disciplina, isto é, "não mais do que um conjunto, limitado e construído, de problemas e soluções provisórias." ( Die Logik der Sozialwissenschaften, 1972) Douwe Fokkema, ao comentar essa definíção e analisando o conhecido relatório Bernheimer, complementa essa idéia ao dizer que "o grupo de perguntas e problemas que,juntos, compõem os estudos literários se relacionam com as intenções estético-literárias, os meios semióticos através dos quais se expressam, e seus efeitos."!! Como se percebe, o comparatismo foi adquirindo uma mais ampla configuração além daquela que a especificou desde sempre, ou seja, a de problematizar a dimensão estrangeira de um texto, de uma literatura, de uma cultura em outra. Da teoria literária se apropria de noções que a renovam como a da intertextualidade (que vai reformular os conceitos de fontes e de influências),
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das relações interculturais internas e externas, de recepção literária (que redimensionam os parâmetros de difusão e de transmissão interliterária e intercultural); dos estudos sobre os cânones, da teoria do polissistema e dos estudos de tradução (ou de literatura traduzida), que reformularam as relações entre centro e periferia, relativizando esses conceitos. Já da etnologia lhe vêem os conceitos de hibridismo cultural, de mestiçagem e de transculturação (que ampliaram os casos simplistas de contatos culturais vistos como de simples aculturação para um conceito de complexa (trans )formação); as noções de trans e multiculturalismo (que moveram os estudos pos-coloniais), revalorizando as pesquisas de viagem e sobre viajantes, sobre intermediários e mediações e de representações culturais. Trata-se, enfim, de reconhecer na literatura comparada, como quer Jean Bessiere, "o seu poder contextualizador e a coordenação mais ampla dos estudos literários que ela envolve em conseqüência." Tal formulação nos leva a perceber "que os diversos contextos constituem uma interrogação sobre o saber comum."
A experiência dos limites "Tudo isso tem a ver com uma proibição da modernidade: o limite", diz-nos Mauro Maldonato, psiquiatra e filósofo italiano, em seu livro Raízes Errantes 12 acrescentando que "o limite não é o aquém ou o além das margens, mas o que as une e as separa. Segundo ele, limite também é corte, separação, individuação, identidade: um caminho entre as margens ocultas de diferentes identidades, e em si mesmas diferentes."l3 Ao alertar para a necessidade de se recomeçar a pensar o limite num sentido totalmente novo, observa que "limite é um exercício de perplexidade, um lugar sem raízes."l4 Mais uma vez o texto de Guimarães Rosa ajuda à nossa reflexão. Lembremos que, na voz de Riobaldo, temos o registro de um lugar aberto, sem limites. Diz ele:
Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos. (...) O sertão está em toda parte. Esses gerais são sem tamanho (...) Sertão: estes seus vazios. 15 A citação nos estimula a uma produção continuada de sentidos desde a paisagem fisica - que se reproduz em outros locais de países do mun-
12 Maldonato, Mauro. Raízes Errantes .São Paulo, SESC São Paulo, Ed.34, 2004. p. 168.
Maldonato, Mauro. Id.ib. p. 172.
1]
Maldonato, Mauro. Id.ib. p. 173.
14
15
Guimarães Rosa. Op. cito p.
11.
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16 Simõe Lopes Neto, J. "Correr Eguada"In: Contos Gauchescos e Lendas do Sul, Porto Alegre, Ed. Globo, 4 a ed. 1973, p.45.
17 Guilhermino Cesar. "João Guimarães Rosa em Família" In: João Guimarães Rosa. Faculdade de Filosofia e letras da UFRGS, 1969, p. 13.
IX Guimarães Rosa, J. Op. cito p. 24.
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do - como deserto, pampa, selva, cordilheiras ou todo e qualquer espaço aberto, domínio da imensidão e do vazio. Igual ao que se lê no conto "Correr eguada" de João Simões Lopes Neto no qual o gaúcho Blau Nunes (antecedente direto de Riobaldo) na descrição da paisagem em tomo: Tudo era aberto; as estâncias pegavam umas nas outras sem cerca nem tapumes... Espaço que corresponde ao do sonho, sem tapumes, nem lindeiros. 16 Mais tarde, ao ler Guimarães Rosa, Guilhermino Cesar dirá sobre sertão. Sonora palavra que recorta o longe, carrega a imaginação para o oco do mundo, /7 acentuando a vacuidade para a qual o termo remete, sinônimo de ausência. O sertão é oferecido aos imprevistos transculturativos que fazem desse espaço um local de mobilidade e de reconstrução permanentes, apesar da aparente uniformidade. Espaço simbólico que acumula sentidos. Espaço que funciona como elemento estratégico de trânsito ao particular, que diz respeito a uns poucos, e para o universal, que atinge a todos. Se o sertão é a realidade em tomo de Riobaldo, é também o que está, como o sonho, na percepção simoniana, em todo o lugar. Associadas, as palavras se convertem em metáforas do 'não-lugar' ou do espaço utópico que o homem busca continuadamente. Esse lugar é uma sucessão infinita de limites que surgem e desaparecem nos deslocamentos. O limite está, como a literatura, em movimento. Reaproximo-me, para concluir, do texto rosiano que nos permite ainda visitar a diversidade, pois nele se lê que cada um é feito um por si. 18 Riobaldo mais uma vez aponta para uma questão essencial: a de que cada indivíduo é um só em sua singularidade, e que a "diferença" nos permite reconhecer o Outro. Na breve afirmação persiste a insistência na individualidade, seja na maneira de ser, seja na maneira de fazer. A diferença entre cada um é ali marco da identidade. A diferença é o que distingue, o que distancia, o que isola e singulariza. Não obstante, a atuação de cada um, na totalidade, converge para o coletivo, como se lê em outra passagem na qual Riobaldo evoca o dito do compadre Quelemém: Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho ...
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Sabe-se que o texto rosiano é um farto repositório das grandes questões de nosso tempo, comprovando que a literatura de invenção contém o saber do mundo. Mas não só. É um texto que, no uso da invenção, instaura normas da arte. Assim, ele nos possibilita re-visitar noções que ao longo dos estudos literários vimos transformando em conceitos teóricos, em aproximações críticas, em elementos centrais da prática comparatística. Grande Sertão: Veredas comprova como as obras literárias estão sempre a sugerir perspectivas de confronto e, na continuidade da tradição que desenham, dizem de ligamentos e separações, de aproximações e de distanciamentos, de desvios e de encontros. "Encontros" que as exposições de Picasso, Matisse e Ingres, a aventura de Blaise Cendrars e Oswald de Andrade e a leitura de Guimarães Rosa permitiram estabelecer favorecendo que se pense simultaneamente em continuidades e mudanças nas práticas de literatura comparada. De qualquer modo, se as escolhas feitas e os respectivos comentários guardam a memória de meus outros textos, quis mesmo assim ver aqui com olhos de permanente re-definição o comparatismo. Vê-lo "como os outros o vêem, mas também como ainda não o quiseram ver". Se isso foi possível, esta exposição já terá cumprido o seu dever. Muito obrigada.
Exterioridad /interioridad del conocimiento. "Sobre" / "en" América Latina
Zulma Palermo Consejo de Investigación Univ. Nac. de Salta - Argentina
Las proposiciones que me interesa exponer parten de mi interpretación de algunas líneas de desarrollo teórico desde/sobre América Latína y que se mueven en varias intersecciones: de distintas historicidades, de diferentes disciplinas, de localizaciones culturales distantes, en lenguas dispares. No obstante, todas ellas responden a la voluntad de satisfacer imperativos éticos y políticos compartidos, por los que se quiere encontrar alternativas a la larga cadena de sujeciones a las que se encuentra sometida América Latina -en la diversa gama de sus formas de producción- en vinculación con los demás espacios periféricos a Occidente. En oportunidad reciente (2004), reuní tales líneas de trabajo en dos grandes agrupamientos cuyos fundamentos presenté por separado. Por un lado, los estudios de tipo culturalista y sociologista que se orientan más definidamente a describir y comprender los cambios producidos por el proyecto capitalista y su proyección global en las identidades culturales con sus correspondientes efectos en los microespacios del sudcontinente. Por otro, las propuestas de corte geopolítico orientadas centralmente al análisis epistemológico, desde donde proponen una crítica abierta al pensamiento de la modernidad desde América Latina.
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En el primer grupo reúno tres proyectos perfilados por estudiosos argentinos, emergentes de indagaciones sobre productos de la cultura localizados en microespacios periféricos y sostenidos en perspectivas resistentes a las políticas generadas por la diferencia epistémica; éstos reconocen una genealogía radicada en el pensamiento occidental, con vocación "latinoamericanista".' En la segunda, al proyecto modernidad / colonialidad en sus vinculaciones con el de geopolíticas del conocimiento y que vinculan críticamente las teorías poscoloniales con aquellas que reconocen una genealogía propia. 2 Simplificando al máximo el amplio espectro de las radicales transformaciones que se vienen generando desde las líneas que acabo de señalar, en su común exigencia de pensar el pensamiento desde otros lugares que los hegemonizados por occidente, diríamos que los estudios localizados en el Cono Sur (más precisamente en Argentina) se preocupan fundamentalmente por los cambios culturales que se vienen produciendo en los tiempos de la globalización de la economía capitalista. Simultáneamente radican sus postulados en la historicidad de los problemas que se analizan y en la "desestetización" de los productos de la cultura por los que se interesan, operando más allá de los estrictos criterios disciplinares (y de discip1inamiento) propios del paradigma de la modernidad. Como efecto de ellos se produce una sustancial modificación de la noción de "cultura" que deja de ser propiedad de los estudios humanísticos para convertirse en el espacio de producción que vincula a las formaciones sociales con los sujetos que la producen y desde donde se hace posible generar -y reconocer- otras formas de conocimiento. Nos hemos así desplazado desde la perspectiva geocultural y de base predominantemente sociológica a la geopolítica, cuyo acento recae más específicamente en el orden de la producción de conocimiento, a partir de la discusión que los estudiosos establecen con la validación única del saber edificada por las ciencias sociales y por las que ofrece el capitalismo tardío. Este desplazamiento, sin embargo, no anula la orientación social de todas estas formas de aproximación a los productos de las culturas. Se trata en ambos casos de una radical modificación de la concepción del conocimiento que afecta tanto a lo que se quiere conocer ( el objeto) como a los destinatarios de los productos de esos saberes (los sujetos socialmente destinados) y a la finalidad de las especulaciones (al efecto futuro sobre la sociedad) [cfr. Lander 2000], pero también, y muy especialmente, a la localización de los sujetos del conocimiento. Por eso es impor-
1 Se trata de los "estudios geoculturales" sostenidos en la filosofía de la cultura popular de Rodolfo Kush; los desarrollos filosóficos de Arturo Roig volcados a proponer una ética desde la pobreza; la sociología de la cultura promovida por Ricardo Kaliman.
2 Refiero a dos propuestas que responden a un mismo programa coordinados por Arturo Escobar y Walter Mignolo respectivamente
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tante destacar en las dos líneas acá definidas esa diferencia fundamental y que radica en la localización de sus productores. Se trata de la importancia de pensar el objeto de estudio desde la interioridad o exterioridad de su lugar cultural, es decir en la diferencia de teorizar sobre o en América Latina.
Conocimiento desde "dentro" y desde "fuera" Una de las cuestiones que produjo mayores debates en los últimos años es la puesta en duda de muchos estudiosos latinoamericanos radicados en sus lugares de origen, acerca de la legitimidad de las teorizaciones que se proponen desde las universidades norteamericanas sobre el funcionamiento de las culturas del sudcontinente. Tal actitud se sostiene en la desconfianza hacia posibles nuevas estrategias de colonización intelectual que consideran acompañan -conscientemente o no- a las políticas de globalización desarrolladas por las formas actuales del poder global. Las proposiciones generales sobre las que fundan su argumentación se concentran en que el interés por focalizar las investigaciones en el objeto "América Latina" proceden de dos órdenes complementarios: por un lado, los reclamos civiles de los grupos "minoritarios" en EEUU (negros, mujeres, latinos, gays) que dieron lugar a la proliferación de estudios vinculados con la "diferencia" y, en particular, la diferencia cultural con los latinos. Por otro, la necesidad institucional de fortalecer los departamentos de estudios sociales y de lenguas extranjeras que se encontraban debilitados, focalizando las investigaciones en los estudios de género y de sexualidad yen los de raza y etnicidad (Mignolo, 2003). Un factor determinante en este interés por los estudios latinoamericanos fue la numéricamente importante y creciente presencia de universitarios latinoamericanos en esas universidades, la que fue impulsada también por al menos dos factores decisivos: por un lado, el interés de las universidades del norte por acrecentar los llamados "estudios de área" que respondieron a claros intereses de política exterior y por 10 que acogió con agrado no sólo a estudiantes sino a profesores de este lado de América; por otro, los sistemas dictatoriales instalados en la mayoría de estos países y que provocaron la emigración de ingentes grupos de intelectuales. De este modo, los estudios "sobre" América Latina vienen siendo producidos más específicamente por los latinoamericanos
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"desterritorializados" en al menos otro par de modalidades que me interesa distinguir: emigrados y exiliados. Los primeros se radican o visitan periódicamente las universidades del norte continental generando una circulación teórica importante y produciendo resultados todavía difíciles de evaluar, ya que esa migración sostenida fortaleció la tendencia al remedo de nuestra academia con la más rápida incorporación de teoría "de fuera", particularmente de los estudios culturales y sus extensiones (subalternos, poscoloniales etc.) y su complementaria, el reincidente nuevo signo "exportador" de América Latina como objeto de conocimiento hacia fuera, al "poner ante los ojos" las particularidades locales y la heterogeneidad cultural de sus lugares de radicación y pertenencia. Están también los que, después del período de distanciamiento, retomaron a sus universidades "periféricas" posibilitando nuevas articulaciones de los saberes locales. Es el caso de Antonio Cornejo Polar -entre algunos otros- quien, apropiándose y transformando la práctica teórica circulante en la academia norteamericana, realizó sugerentes e innovadoras lecturas del corpus andino, sin dejar de lado
su preocupación por toda una serie de prácticas que observa en el mundo académico norteamericano y que percibe { ..} como tomas de posesión. Estas prácticas le parecen ir de la mano de un monolingüismo creciente, y parecen reforzar, dentro del ámbito intelectual, la hegemonía y el monologismo creciente del componente anglosajón, minando la autoridad, presencia e integridad de una tradición de literatura y autoridad, presencia e integridad de una tradición de literatura y pensamiento diferente: la latinoamericana (Past01~ 1999: 60). Esta situación de hecho se intensifica en los últimos tiempos con la circulación de la información por vía de la cibernética, produciendo el efecto de que todas las localizaciones académicas se encuentran en idénticas condiciones materiales de producción de conocimiento, cuestión que no dejaría de ser más que un nuevo espejismo. Por ello, muchos estudiosos del latinoamericanismo piensan con Nelly Richards que en nuestros días las relaciones entre conocimiento local y "global" son contradictorias y complejas y, por eso,
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3 Los destacados en el texto original.
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nos exigen pensar más finamente que nunca el valor de cada localización teórica, es decir, la condición de experiencia surgida, para cada uno de nosotros, del acto de pensar la teoría insertos en una determinada localidad geocultural a través de la relación -construida- entre emplazamiento del sujeto y mediación de códigos, entre ubicación de contexto y posición de discurso 3 (1998: 246- 247). De allí la importancia que reviste la diferencia entre teorizar sobre y teorizar en América Latina, diferencia que -según adelantara- marca las mayores distancias entre las proposiciones que vengo analizando. Esa distancia señala precisamente la singularidad de cada grupo de investigadores, pues la propuesta que desarrollan los estudios sociológicos y geoculturales, totalmente enclavados en sus propias localizaciones, se definen claramente por la búsqueda de las características de las culturas "nacionales" o "regionales" más acá o más allá de esos límites previamente definidos (espacios supranacionales que responden a memorias comunes), en tanto que los estudios geopolíticos, producidos mayoritariamente por latinoamericanos radicados en USA analizan esos mismos objetos pero desde otras perspectivas y, sustancialmente, en una lengua distinta a las de las culturas objeto. Por su parte los procesos de producción de saber en América Latina se caracterizan por una doble acentuación -intelectual y política- en la búsqueda de epistemes "otras", las que previamente a la expansión del discurso poscolonial, fueran el lugar de enunciación de un número importante de pensadores latinoamericanos, todas ellas académicamente poco conocidas o parcialmente canonizadas. Para estos estudiosos, las "innovaciones" procedentes de la academia del norte resultan ser, en el mejor de los casos, parciales y, por 10 general, poco informadas sobre los desarrollos preexistentes. No parece ser otro el sentido que indican las categorías transculturación acuñada por Fernando Ortiz y reformulada por Angel Rama; fagocitación propuesta por Rodolfo Kush; entre lugar en la traslación de Silvano Santiago; borderland en el hispaninglish de
"Neplanta" is a náhuatl ward deseribing the "in-between situation" in which the Aztecs saw themselves in the sixteenth eentury, as they were p laeed in between aneient Aztee wisdom and the ongoing Spanish colonization" (2002: 2).
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Gloria Anzaldúa; nepantla4 de la veltiente náuhatl precolombina revitalizada por Walter Mignolo. Todas ellas comparten su punto de partida en la colonialidad temprana y se localizan en la conflictividad misma que produce el desplazamiento de las lenguas de conquista (español y portugués) en la historia de la modernidad, salvo la propuesta de Anzaldúa que, sin embar-
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go, parece significar un similar conflicto cultural en el caso de los hispanos en U.S.A. en los tiempos actuales (Mignolo, 2000). Otro señalamiento importante es la propensión generalizada a un excesivo textualismo por donde 10 real se reduce a las dimensiones del discurso. Todo ello ajustado a un "esquematismo programático" (Bustos, 2003) emergente de la desproblematización política que los caracterizaría. En síntesis: los problemas sociales que aquejan a América Latina han sido objeto de análisis y reflexión sistemática a través de todas sus formas de mediación simbólica desde hace al menos una larga centuria y no son el resultado del "descubrimiento" de los estudios poscoloniales sobre las sociedades y las culturas latinaomericanas tal y como son trasvasados (y despolitizados) por la academia norteamericana.
Teorías desde el exilio: 5 pensar "entre" Otro es el lugar que construyen los estudiosos marcados por la experiencia del exilio, el tránsito, el "pasaje", que padecen y reflexionan sobre su propia condición de desterritorializados buscando una vía dentro de la cultura -y de la academia- en la que han eligido -o han sido impelidosa actuar. Se trata de un posicionamiento en el que el sujeto teórico se encuentra siempre "fuera", sin pertenencia, sin lugar, pues si bien conoce ampliamente su propia cultura y también la de la nueva localización, como asevera Stuart Hall, no pertenece totalmente a ninguna de ellas. "E esta e exactamente a experiéncia diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimiento de exilio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de urna 'chegada' sempre adiada" (2003: 415). Esta experiencia de estar tanto "dentro" como "fuera", la de sentirse "familiarmente extranjero" (Ibid: 416), da fuerza a los argumentos del discurso de los poscolonialistas que se sitúan en el "entre-medio", un lugar cultural y epistemológicamente nuevo, con doble pertenencia, con superposiciones y contradicciones en constante dinamismo, en permanente formación y transformación. Es la experiencia que se define en la búsqueda de definiciones personales, de autolegtimación y, por esa vía, de legitimación de las culturas subalternas en diálogo (¿o más bien "negociación"?) con la dominante (Palermo, 2001). Desde la perspectiva geopolítica no parece casual que estas maneras alternativas de comprender las relaciones culturales emerjan en los espacios de producción subalternos (las periferias del continente europeo -la India,
5 Reúno acá bajo esta denominación tanto a emigrados como exiliados
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el Africa- o latinoamericano). Una situación histórica similar, marcada por la diferencia colonial, da lugar a la emergencia de apuestas alternativas a la construida por la hegemonía dominante. Estos esbozos alcanzaron mayor sistematicidad y circulación en los '90 -década del climax del proyecto de la economía global y como su resistencia- a partir de la perspectiva que imprimen al campo del conocimiento social las reflexiones emergentes de pensadores "fronterizos" como Rornmi Bhabha, Eduard Said o Gayatri Spivak, entre los más difundidos y, en el territorio latinoamericano, los integrantes de los proyectos a los que referimos. Pensadores que participan de la doble pertenencia, muchos de ellos desde la experiencia del exilio, a la vez que emaizados en lo local "periférico", lo objetivan desde su participación intelectual en el centro mismo de la hegemonía cognoscitiva. De este modo, sus teorizaciones son, ellas mismas, expresiones de esa particular localización que Bhabha llamara "in betwin": oo. O que é teóricamente inovador e políticamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que sáo produzidos na articulac;áo de diferenc;as culturais. Esses "entre-lugares" fornecem o terreno para a elaborac;ao de estratégias de subjetivar;ao -singular ou colectiva- que dao início a novos signos de identidade e postos inovadores da colaboraC;ao e contestar;ao, no ato de definir a propria idéia de sociedade (1998:20).
Estos son los principios en los que se sostienen algunos de los argumentos fuertes de los teóricos latinoamericanos en el exilio, aún cuando destacan sus diferencias con los estudios poscoloniales y culturales. Los "nuevos signos de identidad" emergentes del lugar "entre medio" tanto de las culturas que estudian corno el de sus prácticas teóricas y sus estrategias hermenéuticas, señalan su teleología y su horizonte epistémico y desde allí establecen una relación ambigua con sus pares que permanecen en las universidades latinoamericanas. Por un lado, buscan incorporarlos en sus programas de investigación y, por otro, interpretan su resistencia a esas incorporaciones --corno señala con claridad Rugo Achúgar- "corno la huella del pensamiento letrado de viejo cuño que se resiste a abandonar una supuesta y antigua 'centralidad' de los intelectuales latinoamericanos en sus respectivas sociedades" (1998: 277, infra), con 10 que otra vez se ejerce un "patrimonio" intelectual sobre ellatinoamericanismo en America Latina.
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Esos sujetos migrantes del teorizar generan teorías "excéntricas" desde el centro mismo de la expansión de los saberes y, en cierta medida, ponen en circulación -y a pesar de sus voluntades- 10 que puede pensarse como un "universalismo de otro modo", en las nuevas relaciones de poder a partir de la tensión entre 10 local y 10 global. Esta localización no está exenta de riesgos y se debate -como todo discurso "fronterizo"- en importantes contradicciones. Veamos desde esta perspectiva el lugar discursivo de Walter Mignolo que puse en discusión hace ya unos años en un encuentro sostenido en Río de Janeiro (Palermo, 2001). Entonces advertía sobre una búsqueda que se proponía a la manera de negociación con la cultura académica en la que desarrolla su actividad y desde el lugar del desterritorializado. Es la misma perspectiva que advierte Beatriz Pastor aunque centrada en la cuestión de la lengua de conocimiento por la que este importante estudioso se inclina:
La opción que elige Mignolo es, en los términos del modelo diglósico de Lienhard, la que le corresponde al subalterno que no busca transformar la asimétrica relación de las dos culturas, sino hacerse escuchar por la cultura de la norma alta ingresando al círculo de poder de la elite dominante (1999:74) Del mismo modo Martín Lienhard, generalizando este caso, cuestiona el hecho de que se trata de un espacio de producción de conocimiento que se encuentra lejos de las preocupaciones y de los problemas de la vida cotidiana propios de las sociedades latinoamericanas (1999). Ello se encuentra agravado por el hecho de que su poder económico y de gestión lo transfonna en dominante y, en consecuencia, en hegemónico esgrimiendo contradictoriamente el discurso del multiculturalismo como la nueva oferta neutralizadora de la conflictividad de lo real. No obstante, la condición de exiliado se constituye en un articulador que puede ofrecer alternativas para el estudio de las culturas "subalternas" pues resulta menos conciliador que aquel lugar desde el que se pensaba a las culturas de América Latina como mestizas o aún transculturadas, según postulaba Cornejo Polar en unas de sus últimas aproximaciones a la escritura de J.M.Arguedas:
Subrayo en este orden de cosas la dinámica centrífuga del discurso migrante y su reivindicación de la múltiple vigencia del aq1lí v el allá v del ahora v el avel~ casi como un acto
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simbólico que en el instante mismo en que afirma la rotundidad de una frontera la está burlando y hasta escarneciendo mediante la fluidez de un habla que se emite de cualquiera de sus lados ... (1995: 105-106)
Balance provisorio Con este recorrido me propuse poner en reflexión algunas de las propuestas que, en relación a las formas del conocer, se encuentran en plena producción en nuestros días y que están siendo difundidas, en mayor o menor medida, en nuestros espacios universitarios. Al efectuar tal recorrido se hace evidente el nuevo interés de los estudios radicados en la academia norteamericana por el objeto de estudio "América Latina" con también renovados paradigmas esta vez procedentes de los cultural studies ingleses y de los no menos convalidados estudios poscoloniales en todas sus variantes. Esta cartografia localiza a los teóricos latinoamericanos en dos latitudes: en sus propios lugares de pertenencia buscando generar conocimiento desde y en su cultura y como migrantes o exiliados en el flujo de transacciones epistémicas -que también son ideológicas- entre norte y sur o definitivamente radicados fuera de sus espacios de origen. Las diferencias entre unos y otros resultan suficientemente claras y nos retrotraen a viejas preguntas, aquellas emergentes de la filosofia de la sospecha, acerca de la posibilidad de autonomía -que no significa aislamiento de lo que acontece en el mundo- para proponer formas de conocer emergentes de la diferencia cultural, sin hablar desde la subaltemidad cuya tradición ha venido reproduciendo la mirada y la palabra del amo.
Bibliografia referida ACHÚGAR, Hugo, 1998, "Leones, cazadores e historiadores. A propósito de las políticas de la memoria y el conocimiento", en Castro-Gómez y Mendieta (coord .. ), Teorías sin disciplina. Latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debate, México: Univ. ofSan Francisco: 271-285. BHABBHA, HOlmni, 1998, O local da cultura, Bello Horizonte: Ed. UFRGS. BUSTOS, Guillenno, 2003, "Enfoque subalterno e Historia Latinoamericana. Nación, subalternidad y escritura en el debate Mallon-beberly", en Walsh, c., (ed.), 2003, Estudios culturales latinoamericanos. Retos desde y sobre la región andina, Quito: Abya Yala- Univ. Andina Simón Bolívar: 215-242.
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* Este texto é um dos capítulos do livro do autor, a ser editado pela Ed, Perspectiva em 2006 - Sujeitos/objetos do moderno. Corpos. vozes e signos da transgressão, Organização de Michel Peterson, Tradução de Ignacio Antonio Neis, Michel Peterson e Ricardo Iuri Canko
Narrativa de valores: os novos actantes da Weltliteratur*
Wladimir Krysinski
Para Luiz Costa Lima
No entanto, é difícil hoje eludir as questões concernentes ao global, ao total, ao sentido, portanto, como dizes, "ao mundo ", Obstinadamente, alguns "neo" aplicam a categoria de "totalidade" aos fragmentos: ao social, à produçào, à biologia, à linguagem, à realidade fisica ou histórica, ao mental. A única réplica seria, portanto, encarar ou acarar o "todo ", Como? Por qual via? Em que caminho? Como sabes, "penso" mais na poesia, na música, no teatro, na arquitetura do que no pensamento de tipo filosófico, para retomar tua formulaçào, chegando a fazer uso de conceitos que partilham os da filosofia para "compreender" a poesia, a música, o teatro, sem, contudo, abandonar a lucidez dita razoável ou racional, sem sacrificar o saber ao saltar para a transcendência, 1 In: Entretiens, Paris: Fata Morgana, 1973, p, 72-73,
Kostas Axelos, Entretien avec Henri Lefebvre I
Uma olhada rápida e minimamente crítica sobre a questão deveria fazernos admitir que a literatura mundial, no sentido em que Goethe a entendia no início do século XIX, não pode ser hojc senão uma hipótese de trabalho, sem dúvida tentadora, mas a ser verificada com relação às teorias e aos
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fatos literários que inexoravelmente se acumularam desde o momento em que Goethe a definiu em suas conversações com Eckermann. Todos os campos do saber tomaram-se consideravelmente complexos. O campo da literatura permanece não somente tributário das mutações epistemológicas, mas, por sua vez, se toma complexo na medida em que, mais do que nunca, a época contemporânea assistiu ao estilhaçamento dos grandes cânones e à multiplicação de novos fatos literários, sobretudo no espaço das literaturas pós-coloniais. Em vez de seguir o fio condutor da Weltliteratur e de sua existência problemática, proponho-me explorar a hipótese de sua probabilidade empírica e discursiva, investida de valores especificamente "mundiais". Tratarei, pois, de problematizá-Ia, sem, no entanto, exagerar quanto à sua possível fantomização. De antemão, deve-se interrogar o sentido ambiente de conceitos tais como "mundial" [weltlich], "humano" [menschlich] ou "nacional". Não seria preciso admitir que esses conceitos se tomaram necessariamente metonímias ilusórias, metáforas ideologicamente conotadas? Voltemos um pouco para trás. Quando Kant responde à questão "O que são as Luzes?" [Was ist
Aujkliirung?] e define as Luzes como "saída do homem para fora do estado de minoridade, em que ele se mantém por sua própria culpa'? poder-se-ia ter a impressão de que o filósofo pensa a humanidade como Ding an sich, mais como númeno que como um fenômeno objetivamente descrito. Sem dúvida, Kant concebe a humanidade intencionalmente in toto enquanto cada indivíduo-socius da espécie humana e cada coletividade específica na escala planetária. Mas os argumentos de Kant em favor de sua
2 KANT, Emmanuel. Réponse à la question: Qu'est-ce que les Lumieres? In: Critique de la Jacu/té de juger. Trad. francesa de A. l.-L. Delamarre, 1.- R. Ladmiral, M. B. de Launay. J.M. Vaysse, L. Ferry & H. Wismann. Paris: Gallimar , 1985. p. 497. Col. Folio/Essais.
definição das Luzes pecam pela generalização e pelo psicologismo. Assim são englobados na humanidade aqueles que se mantêm no estado de minoridade por sua própria culpa, por preguiça e frouxidão, e aqueles outros membros da espécie humana que sabem servir-se de seu entendimento por não serem preguiçosos. Para Kant, o problema da emancipação da humanidade é de vontade e de coragem ("Sapere aude"), ao passo que o poder de uns sobre outros, em particular o poder monárquico, é descrito por Kant como aquele que "reúne toda a vontade do povo" na do monarca. 3 Quando Kant diz em latim "Caesar 110n est supra grammaticos", está idealizando o comportamento do monarca no poder. A saída do homem do estado de minoridade pode ser impedida tanto por sua própria frouxidão quanto por seus interesses e pelos interditos do poder. Hoje podemos dizer: "Stalin erat supra grammaticos". Sua autoridade não encontrava limite
1
Op. cit., p. 502-503.
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na dos gramáticos ou dos sábios. A humanidade englobada por Kant a partir de Kõnigsberg passa a ser uma espécie de ficção metafórico-ética e transforma-se em idéia pura, enquanto, na verdade, está dividida entre os que vigiam e os que são punidos. Parece-me evidente que, em Kant, noções como "cidadãos razoáveis do mundo" [vernunftige Weltbürger], no estudo Idéia de uma História Mundial do Ponto de Vista Cosmopolita [Ide e zu einer Allgemeinen Geschichte in Weltbürgerlicher Absicht]), "bem comum" [das Weltbeste], "nossos governantes" [unsere Weltregierer] estão impregnadas de um idealismo que deforma o estado de coisas em que se encontra a humanidade. No intuito de conceber hoje a literatura mundial em termos de estrutura coerente, de época, de sincronia, de patrimônio e de museu que vive e se renova sem parar, deve-se ligá-la à complexidade da realidade interumana que se desumanizou consideravelmente desde a celebração goethiana do cosmopolitismo, do qual a literatura mundial devia ser uma expressão sofisticada e panumana. A história evenemencial de nosso século destruiu sistematicamente os "valores humanistas". Estes tomaram-se lembranças dos "bons velhos tempos", na exata medida em que se evidencia cada vez mais
LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Trad. de Ricardo Corrêa Barbosa. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. 4
que não há nenhum implícito entre a igualdade, a fraternidade e a liberdade. Depois dos cataclismas históricos que abalam o mundo, depois de Auschwitz, e depois do Vietnã e da Iugoslávia, será preciso promover a literatura mundial como uma espiritualidade superior, como uma superestrutura que abre caminho através de todas as negatividades do mundo? Ou será preciso pensá-la como uma outra idéia humanista de um humanismo atrasado? Em sua vertente problemática, a questão da Weltliteratur pode ser vista CQmo uma das grandes metanarrativas da humanidade que Jean-François Lyotard identifica em O Pós-Moderno4 enquanto instâncias de legitimação da modernidade. Se a hipótese de uma mudança radical do paradigma moderno para pós-moderno tem de ser levada a sério, cumpre indagar-nos se a literatura mundial do final do século XX deve ser pós-moderna; portanto, se pode distanciar-se das grandes metanarrativas da humanidade fixa em sua modernidade? Na falta de respostas imediatas e transparentes a todas essas questões, prefiro buscar solução ao problema da Weltliteratur com uma simpatia cognitiva e sem pretensão alguma de esgotar o assunto. Coloco então que a literatura mundial se funda em uma dialética do reconhecimento cuja complexidade implica um movimento de cinco actantes: o local, o nacional, o marginal, o institucional e o universal. São os
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suportes actanciais e semânticos de urna narrativa de valores que se desdobra na escala do planeta e que garante à literatura mundial suas formas e seus conteúdos. Espera-se que os exemplos variados que devem ilustrar as qualidades diferenciais de cada um dos cinco actantes e que serão colhidos nos diferentes espaços literários (iugoslavo, italiano, canadense, polonês) mostrarão com bastante eloqüência que a Weltliteratur está em formação constante, que permanece em equilíbrio instável e que não pode ser senão urna utopia funcional a serviço de urna visão do mundo unitária que a realidade tem certa dificuldade em confirmar. Tentar-se-á então identificar alguns fenômenos globais corno incertezas identitárias, reinvestimentos identitários, proliferação de nacionalismos e ressurgência do marginal. Repensar hoje a questão da literatura mundial exige a consciência de problemas cuja enumeração seria bastante fastidiosa, e até improdutiva, pois é cada vez mais dificil, e talvez impossível, hierarquizar todos os aspectos da criação literária, de sua recepção e de sua teorização. A bela época das teorias corno o formalismo, o New Criticism, a sociologia literária, a sociocrítica, a crítica marxista, a semiótica, para mencionar apenas estas, passou. Todos esses movimentos críticos pareciam saber o que é a literatura. Hoje, pode-se, sem grande risco de erro, afirmar que as certezas epistemológicas flectiram consideravelmente. Graças a Bakhtin, compreendeu-se que o fato literário é fundamentalmente multi valente, dialógico, polifônico, e que ele se realiza através de urna interdiscursividade marcada de tensões ideológicas e axiológicas, bem corno através de urna injunção dos contextos sociais, textuais e discursivos. Até a própria desconstrução se desconstruiu: entre um pós-modernismo triunfante e urna modernidade a ser reescrita, entre a resistência à teoria e as teorias fortes e ainda ativas, o campo problemático do literário esvaziou-se sistematicamente de certezas julgadoras. À força de desconstruir tudo e de pós-modernizar mais ou menos tudo, alguns críticos-filósofos, ou melhor, alguns filósofos-críticos efetuaram urna transferência impressionante de categorias e valores da área filosófica, hermenêutica ou sociológica para a área da literatura ou da teoria literária Constata-se que as teorizações freqüentemente se substituíram ao texto. Abrir um caminho nesta selva oscura da teoria metateorizante é cada vez mais dificil e até mesmo arriscado. Abordar nessa aura crítica a questão da Weltliteratur comporta um risco. Pode-se argumentar que a sabedoria de Goethe envelheceu; e, se,
Narrativa de valores: os novos actantes da Weltliteratur
BARTHELME, Donald: Conversations with Goethe. In: 40 Stories. New York, London: Penguin Books, 1987. p. 67. As opiniões de Goethe, expressas sempre de modo metafórico, são de uma banalidade rebuscada; por exemplo: "A juventude, diz Goethe, é a manteiga de maçã untuosa no bom pão preto da possibilidade [Youth, Goethe said, is the silky apple butter 011 the good browll bread of possibility]; "A comida, diz Goethe, é a mais alta vela no candelabro dourado da existência" [Food. said Goethe, is the topmost taper 011 the golden candelabrum of existence]. 5
BERNHARDT, Thomas. Der Theatermacher. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984. p. 87.
6
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por outro lado, levannos em conta o fato de que pós-modernistas zombaram abertamente daquilo que ele transmitia a Eckennann,5 deveremos proceder com cautela ao endossar a idéia de Weltliteratur. Parafraseemos sem malícia: "Tudo o que passou não é só semelhança, mas também muitos problemas" [Alies Vergangliche ist nicht nur ein Gleichniss, sondem auch vi ele Probleme]. Deve-se, portanto, em primeiro lugar, indagar o que quer dizer hoje a noção de literatura mundial. Deve-se, a seguir, ver como, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, se operou e se opera uma mutação de valores nos diferentes campos críticos e teóricos. Poder-se-á, finalmente, propor uma nova problematização dos cânones literários universais. Ao ver a peça Der Theatermacher [O Fazedor de Teatro], de Thomas Bernhardt, dei-me conta de que ela caricatura pateticamente a literatura mundial. Bruscon, o Theatermacher, obcecado pelo teatro e por sua própria grandeza, não hesita em estabelecer a classificação dos maiores homens do teatro. E isso dá uma lista de três pessoas: Shakespeare, Goethe e Bruscon. Esse mesmo louco pelo teatro deve apertar com força a mão de sua filha para que esta repita depois do pai: "O que é então teu pai?" [Also was ist dein Vater?]. SARAH (contrariada): "O maior ator de todos os tempos" [Der grosste Schauschpieler aller Zeiten].6 Ao explicar essa estrutura em tennos de parâmetros meus, pode-se admitir que o marginal e o local dependem muito de seu reconhecimento nacional, e que esse reconhecimento passa pelo veredicto e pela bênção do institucional antes de passar para o universal. O corpo da literatura é imenso, mas inapreensível em sua totalidade. Como respira, como se desloca? Pode-se constatá-lo unicamente de modo metonímico, admitindo que o menor recanto do mundo reflete todas as escalas do jogo dos valores. A literatura é poliglota. Fala centenas, milhares de línguas. Nenhum Tirésias, nenhum Siro as compreenderá todas. Mas como é que várias dessas línguas são mundialmente compreendidas, escutadas, e forçam a tradução em escala de Torre de Babel? São essas operações translativas, que contribuem para a constituição do corpus mundial dos fatos literários, realizadas em nome de uma certeza absoluta dos valores respeitados, ou procedem de um ditame dos valores estabelecidos pela instituição do
universal que está coligada com os valores de troca do mercado? Comecemos com o local, o marginal e o nacional. Voltemos à Iugoslávia dos anos 20. A Iugoslávia de então é inseparável, problematica-
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mente inseparável da Croácia. A ação transcorre, aliás, antes na Croácia que na Iugoslávia, ou, para fazer justiça ao paradoxo iugoslavo, a ação transcorre ao mesmo tempo na Iugoslávia e na Croácia. Um grande escritor iugoslavo, porém croata, Miroslav Krleza, escreve em 1924 um texto fustigante que se intitula A Mentira Literária Croata. Kr1eza ataca a tradição literária croata que, segundo ele, se funda no "falso patos do romantismo ilírico".7 Esse romantismo amaneirado soa-lhe como falsa literatura, uma literatura distanciada da vida e dos problemas da nação, do povo e da realidade quotidiana, e até mesmo da história da Croácia:
Nossos pioneiros literários, diz Krleza, eram incapazes de avaliar de modo objetivo suas forças criadoras e de compreender sua missão cultural. Não ousavam confessar que nossa pretensa "tradição" se criou na prisão, nos postes, durante os combates, sob as bandeiras estrangeiras. Como tal, essa tradição nada mais era senão uma camuflagem diletante, fraca e fácil de ser denunciada. 8
Cito conforme a tradução polonesa do estudo de Krleza Chorwackie klamstwo literaa:kie [A mentira literária croata]. In: KRLEZA, Miroslav. D~ielllliki i eseje. Tradução e seleção de Jan Wierzbicki. Eódi,: Wydawnictwo Eodzkie, 1984. p. 138. 7
, Ibid., p. 138.
Krleza ressalta que a arte e a literatura devem constituir uma síntese eficaz e convincente da realidade quotidiana. Nesse sentido, a literatura croata é um fracasso. Idealizadora, mentirosa, ela imita os modelos austrohúngaros, alemães ou italianos. Krleza levanta então uma série de questões e formula postulados que nos pennitem compreender melhor o que é, para ele, a literatura mundial. A condição sine qua 11011 para aceder à universalidade é reconhecer sua própria identidade. Quem somos, nós, os croatas?, pergunta Krleza. Somos esnobes modelados sobre os grã-finos dos salões austro-húngaros e berlinenses depravados? Ou antes, "somos uma jovem raça campesina dos Bálcãs que, havendo saído das ruínas da história, segue agora sua própria estrada rumo à libertação e ao progresso"?9
'Ibid., p. 142.
Para Krleza, o problema da literatura mundial coloca-se de forma complexa, mas a situação política da Iugoslávia c da Croácia, tal como ele a analisa, deita luz sobre a dialética do reconhecimento que esboçamos entre o local, o nacional, o marginal e o universal. Krleza definiria o local como a vivência do real histórico e presente da comunidade croata. E essa vivência foi impedida, de um lado, pelos nacionalistas e, de outro, pelos literatos imitadores. A nação, constata Krleza, é a "catástrofe de todos os velhos valores". 10 É também a consciência de que nosso futuro histórico e
III
Ibid.. p. 147.
Narrativa de valores: os novos actantes da Weltliteratur
Cf. MATILLON, Janine. Les Ballades de Petrica Kerempuh, de Miroslav Krzela, et leur adaptation en langue française. In: KRZELA, Miroslav. Littérature. politique. histoire. Zaghreb: Le pont/The Bridge 36, 37, 38, 1973. p. 229-230.
11
12
Ibid .
13
Ibid.
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social deve ser fundado em bases sólidas. A identidade croata enquanto identidade local e marginal deve ser submetida ao imperativo do universal, que, para a Croácia, passa pela Iugoslávia federada e, a seguir, por uma forma de pan-eslavismo. Krleza desenha este como ideal de uma comunidade em que poderiam encontrar-se todos os eslavos. A via da literatura seria menos o reinvestimento identitário do local e do marginal que a superação do nacionalismo. A obra literária ideal saberia tirar vantagem dessa imbricação entre elementos históricos e geopolíticos determinados, que ela transformaria em um idioma universal. O próprio Krleza escreveu uma obra assim: As Baladas de Petrica Kerempuh [1936]. É o paradigma único de uma obra que tende para a universalidade. Ela se arrima no local, no nacional e no marginal, que ela transforma, temática e formalmente, em uma linguagem universal. Nas Baladas de Petrica Kerempuh, Krleza utiliza o caicaviano, língua falada no noroeste da Croácia, sendo as duas outras línguas faladas e escritas na Croácia o chtocaviano, falado na maior parte do território croata, e o tchacaviano, falado na Ístria, em parte da costa dálmata e nas ilhas do Adriático. Em 1836, Ljudevit Gaj, líder do movimento ilírico, "decide sacrificar o futuro do caicaviano em prol do chtocaviano" .11 Nas Baladas de Petrica Kerempuh, Krzela opta pelo caicaviano porque essa língua é a "do croata oprimido e, além disso, a do homem esmagado e revoltado". 12 Kerempuh, que fala essa língua nas baladas de Krleza, é a conhecidíssima figura da lenda popular, bem como um avatar do próprio Krleza, ora o poeta, ora um dos infelizes dos quais ele fala. Clérigo de profissão, homem revoltado e condenado, Kerempuh é um símbolo da revolta popular, cuja história representa alegoricamente a do povo croata. Como observa Janine Matillon, tradutora francesa das Baladas, "o que Kerempuh tem de particular é que ele toma a palavra in A. D. 1570, que a mantém in A. D. 1779 e que ainda a tem nos séculos XIX e XX". 13 E Janine Matillon nota: "Homem de sempre, Kerempuh só pode falar uma língua situada fora do tempo. Sua língua é a do homem oprimido, torturado, assassinado no decurso dos séculos pelos príncipes deste mundo, quem quer que sejam. É a língua da revolta mundial, e seria um erro explicá-la por uma particularidade histórica". 14 O tom, o sistema de imagens e metáforas fazem com que dominem, nas Baladas de Petrica Kerempuh, acentos de "desespero bíblico: não é um conto campesino; é, ao mesmo tempo, o Livro de Já e o Apocalipse. A
15
Ibid., p. 229.
cada instante, passa-se da balada para o salmo".'5
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Assim definida, a especificidade das Baladas de Petrica Kerempuh remete a modelos universais, a arquétipos e a prototextos que constituem referências interpretativas sem dúvida justas, sem anular, no entanto, o local e o marginal que estão na origem do processo de Krleza. Esse proces-
so chamou nossa atenção, bem como seu discurso crítico, pois adquirem hoje valor de símbolo. A Iugoslávia exaltada por Krleza não existe mais. Lá, os nacionalismos triunfaram provisoriamente, e parece estar ultrapassada a perspectiva de Krleza, pelos menos naquele recanto do mundo. Através de seu processo criador, bem como através do que ele critica sem concessão nenhuma na falsa literatura croata, por ele denunciada, Krleza antecipa-se à narrativa de valores do século XIX e confirma o que nele se produz já nos anos 20. Se no século XX a imagem da literatura mundial se turva, é porque o universal se define cada vez mais dificilmente e porque o surgimento de um certo número de fenômenos políticos, históricos, socioculturais e literários toma cada vez mais complexa a dialética do reconhecimento com cinco actantes. Deve-se admitir que, grosso modo, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, desde o momento em que se instalou a tão profunda crise do Estado-Nação e do Estado-Federação, desde o advento do nomadismo moderno que se constituiu em fenômeno planetário e em resultado do empobrecimento vertiginoso de uns e do enriquecimento de outros, resultado das múltiplas guerras locais e não tão locais, dos golpes militares e das ditaturas, deve-se admitir que o local e o marginal forçam o nacional, o institucional e, portanto, também o universal a agir. Com isso, o universal tem dificuldade para reencontrar-se em uma unicidade de estruturas temáticas ou formais que pareciam evidentes para Goethe, mas que são indicidíveis hoje. Sendo-me impossível fazer análises detalhadas, tratarei acima de tudo de ressaltar alguns problemas que tomam cada vez mais complexa a questão da Weltliteratur. Comecemos pela ressurgência do marginal. O nomadismo e sobretudo suas causas, tais como as defini, não permitem mais considerar a maioria das literaturas ditas nacionais como unidades homogêneas, estáveis, com parâmetros fixos. Se, em certos países, este é ainda o caso, é preciso indagar-se sobre a boa-fé dos críticos e dos historiadores da literatura, bem como sobre a onipotência do institucional. Reconheçamos no institucional componentes tais como um "conjunto de normas que se apli-
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16
DUBOIS, Jacques. L 'institution
de la littérature. Introduction à uI/e sociologie. Bruxelles: Bernand Nathan, Labor, 1978. p. 31 e 33.
17
Ibid., p. 130.
20 I
cam a uma área de atividades particular e que definem uma legitimidade que se expressa por uma carta ou um código", bem como a "dominação" ou a "subordinação ideológica".'6 O marginal é aquele que não tem o reconhecimento do centro. Isto é, do próprio institucional. É o institucional que exclui o marginal do "campo de legitimidade" e que o "isola [00'] no interior desse campo".l7 O centro dispõe de todos os meios institucionais "legitimamente" empregados: editoras, críticos, revistas, jornais, televisão, rádio, publicidade direta, prêmios literários e outros. Se um escritor passou por essa rede, pode-se apostar que ele terá tido sucesso, e que lhe será dificil deixar essa cena, se for mais ou menos disciplinado e se fornecer a mercadoria de maneira suficientemente sistemática. Nesse nível, ainda não se coloca o problema do universal. O Prêmio Nobel vem a seu tempo. O marginal é freqüentemente aquele que não nasceu na língua do país em que ele ou seus ancestrais se instalaram. O marginal é, pois, aquele que não teve a sorte de passar por essa rede, que provisoriamente se denominará manipulativa. Talvez chegue sua hora, mas, por enquanto, ele permanecerá o que é aos olhos cegos do institucional, que aceita muitas vezes que o comercial lhe dite suas condições. E então, os valores se relativizam. A antimarginalidade de Umberto Eco eclipsa dezenas de fenômenos literários marginais na Itália que, provavelmente, jamais se manifestarão e
ECO, Umberto. O pêndulo de Foucault. Trad. de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Record, 1989.
18
que, por conseguinte, não serão reconhecidos pelo centro. A promoção da antimarginalidade do autor do Pêndulo de Foucault1S é digna de interesse para quem quer que se interesse pelo problema da Weltliteratur. No momento em que deve ser publicado O Pêndulo de Foucault, vemos multiplicarem-se na imprensa italiana e estrangeira artigos, entrevistas, fotos que precondicionam a recepção desse romance. O implícito desse precondicionamento é que o valor de uso e o valor de troca do livro são grandes. Prepara-se a entrada em circulação do romance como uma vitualha incontornável. Nenhum Carlo Emilio Gadda, nenhum Italo Calvino foi beneficiado com semelhante condicionamento, com semelhante massagem publicitária da consciência do leitor potencial. Vejamos os fatos mais de perto: L 'Espresso, em 9 de outubro de
19
L 'Espresso, n. 40, 9 oul. 1988,
capa.
1988, dedica 20 páginas de fotos a Ecofenomeno. Trata-se de uma "viagem com o autor pelos lugares do romance". 19 No mesmo número, o "grande historiador" [grande storico] Jacques Le Goff constata: "O diabo? É
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ele, Eco".20 Em 11 de fevereiro de 1990, é o semanário francês Le Point que publica, na primeira capa, uma grande foto do autor do Pêndulo, com
20 Il parere di un grande storico. IL DIAVOLO? E LUI, ECO. Ibid., p. 108.
o título: "O MÁGICO DE 40 MILHÕES DE LEITORES. Com O Nome
da Rosa, e agora com O Pêndulo de Foucault, esse universitário tornouse o homem de saber mais conhecido do planeta. Retrato de um professor de semiótica grande mestre do bestseller".21 Os sucessos comerciais excepcionais dos romances de Umberto Eco ensinam-nos que a potência e a força de choque do institucional não conhecem limites. Por esse motivo, coloca-se, com os dois romances, o problema da Weltliteratur de hoje. Em que medida os valores que os dois romances e seus sucessos estão promovendo são "mundiais" hoje? E o que recobre exatamente esse termo? Em virtude de seu sucesso internacional, os romances de Eco entram necessariamente no cânone da literatura mundial? Em certos países que acolheram nômades e refugiados, o marginal desejaria fazer-se reconhecer pelo centro. A comunidade albanesa da itália faz-se descobrir por escritores tais como Carmine Abate, cujo romance 11 Bailo Tondo 22 conta a história de Hora, uma comunidade dita arberese, uma ilhota da cultura albanesa na Itália que faz questão de salvaguardar sua identidade, a despeito do mundo que muda ao seu redor. Um rico quadro daquele universo complexo, repleto de mitos e lendas, constitui esse romance italiano. No entanto, sua temática o condena à marginalidade. É que, embora seja ítalo-albanês ou albano-italiano, Carmine Abate também é um germanese. Os germanesi23 são italianos que emigraram da Calábria para a Alemanha. Eles sofrem uma dupla alienação. Na Alemanha, são marginais porque vêm de alhures. De volta à Itália, desconfia-se deles, visto que na Alemanha mudaram. Afastaram-se demais de sua terra natal. Sua identidade é incerta, incompleta, flutuante, problemática. Antes mesmo de gravitar em tomo do centro, os criadores germanesi devem fazer-se reconhecer por uma instância institucional qualquer. A dialética desse reconhecimento requer que se levem em consideração suas obras. É o primeiro passo rumo ao global e ao institucional que gera o universal, de acordo com as modalidades que definimos. Deve a temática da obra de Abate, bem como aquela através da qual se representam os germanesi, obstar à universalidade de uma literatura institucionalmente não-reconhecida, portanto marginal, mas que, de facto, ultrapassa, e em muito, por sua qualidade literária e sua profundidade antropológica, certos romances que já adquiriram o reconhecimento do
Le Point, n. 907, 1i fev. 1990, capa.
21
22 ABATE, Carmine. Il bailo tondo. Genova: Marietti, 1991.
ABATE, C. & BEHRMANN M. I Germanesi. Storia evita
13
di una comunità calabrese e dei suo i emigranti. Cosenza: Pellegrini, 1986.
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institucional? Coloca-se o mesmo problema para certos escritores marginais na Alemanha, aqueles que pertencem à comunidade turca, por exemplo, mas que escrevem em alemão. Qual é seu estatuto de vinculação e de reconhecimento institucional? No Canadá, os escritores latino-americanos, em particular os chilenos ou os ítalo-canadenses, podem utilizar institucionalmente os recursos do Ministério do "Multiculturalismo". Dir-se-lhes-á que pertencem a diferentes "comunidades culturais". E assim o institucional terá, ipso facto, rejeitado para a margem de seu espaço obras que, de fato, não têm nada a invejar ao que foi institucionalizado em virtude da ideologia dominante que normatiza todos os usos intelectuais e artísticos. O mesmo fenômeno ocorre com romancistas e poetas franco-manitobenses, cujo reconhecimento pelo centro ou não se fez, ou tardou consideravelmente. Essas são as paradas da institucionalização da marginalidade que se estalebeleceu com força neste país, onde é melhor vir ao mundo em Toronto do que em Winnipeg, em Montreal do que em Fredericton. Esse não-reconhecimento do marginal pelo centro está ligado à primazia dos valores ideológicos que impedem evidenciar as qualidades diferenciais dos escritores marginais. A ideologia "dos dois povos fundadores", francês e inglês, faz com que o centro de gravidade do institucional se desloque das diferentes províncias canadenses para o Quebec e para o Ontario e se fixe em cidades como Montreal, Quebec e Toronto. Assim, apesar da "boa vontade" do governo central, os marginais institucionalizados são condenados a viver e a criar, de facto, em uma espécie de gueto, visto não poderem entrar no cânone da literatura canadense. Esta última é incapaz de reconhecer que ela possa ser escrita em várias línguas, através de temáticas e de formas diversas: a ideologia nacionalista dos dois povos fundadores da literatura canadense não o toleraria. De qualquer modo, os escritores marginais do Canadá, marginais devido à sua situação identitária ou devido à sua posição geopolítica, por assim dizer, já desestabilizaram consideravelmente a imagem harmoniosa dos blocos hegemônicos da literatura canadense. Esta tem certa dificuldade em definir-se claramente ou redefinir-se em função dos novos dados que investem a criação de complexidades identitárias e fazem ir pelos ares as certezas nacionalistas. Para as literaturas nacionais, e particularmente as dos países excomunistas, a recanonização dos repertórios literários nacionais é um fato impressionante. Tomarei como exemplo a recente tentativa de constituir
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um novo cânone da literatura polonesa do século xx. O que impressiona nessa tentativa é a entrada no cânone de alguns escritores ainda vivos, ou mortos antes de 1945, e que assumiram repensar a cultura polonesa, revisar os valores nacionais ou nacionalistas. O novo cânone24 proposto por certos críticos, teóricos, professores, mas também pelos leitores bem-avisados, engloba escritores como Witold Gombrowicz, crítico implacável da ideologia nacional, romântica e pequeno-burguesa. No mesmo cânone entram também Stanislaw Ignacy Witkiewicz, escritor parodista e catastrofista, e Czeslaw Milosz, Prêmio Nobel de Literatura (1980), emigrado, poeta de síntese, os quais relativizam as atitudes trágico-romântico-nacionais. Entra igualmente nesse cânone renovado Gustaw Herling-Grudzifiski, escritor emigrado, ou melhor, exilado, ex-prisioneiro dos campos de concentração stalinistas. Sua obra principal, Diário Escrito à Noite 25 , é uma reflexão intelectual a respeito do mal número um do século: os totalitarismos. Globalmente falando, o novo cânone polonês "desromantiza" a literatura polonesa, tradicionalmente patriótica e trágica, e abandona o discurso sobre a nação polonesa. Trata-se antes de uma comunidade de pessoas que falam a língua polonesa e que, tendo sido tragicamente provadas pela Segunda Guerra Mundial, tentam compreender sua tragédia. Nessa dialética do reconhecimento, a narrativa de valores pressupõe mecanismos que relegam ao segundo plano o local e o marginal. Esses mecanismos tomam complexa a questão da Weltliteratur, cujo espaço deveria alargar-se para acolher obras que, sem haver obtido as marcas do reconhecimento oficial, nem por isso são menos dignas de pertencer a seu cânone móvel e problemático. "Agora desaparece o bidê" [Jetz verschwindet das Bidet]: com essa constatação objetiva, Umberto Eco, líder de opinião, prevê a mundialização dos franceses. O bidê desaparece como símbolo das mudanças planetárias. Isso faz pensar sobre a literatura mundial como nova opção de valores. Simbolicamente então, a mundialização pressupõe o apagamento do nacional e do local. Contudo, pode-se confiar nos franceses, no chauvinismo dos franceses. Estes não deixarão de substituir o bidê por outro objeto prático. Quando, em 31 de janeiro de 1827, Goethe comunicava a Eckermann o ideal da Weltliteratur, ele avançava que o modelo grego era intransponível, pois, nas obras dos antigos gregos, a beleza do homem era representada ("sondern im Bedürfnis von etwas Musterhaften müssen wir immer zu
Kanon literatury polskiej XX wieku [Cânone da literatura polonesa do século XX]. Polityka, n. 11 (13 mar. 1993) e n. 24 (12 jun. 1993). 24
25 Obra não traduzida em português. Existe, contudo, uma tradução em francês realizada por Thérese Douchy: Journal écrir la nuit. Paris: L' Arpenteur. 1989. Essa tradução apresenta uma coletânea dos diários do autor, publicados em polonês sob os títulos de D::iennik pisally noca 1971-1972, Dzienlly pisany noca 1973-1979 e Dziennik pisany noca 19801983. Paris: Institut Líttérairc. 1973, 1980 e 1984, respectivamente. Posteriormente, foram publicados dois outros volumes: Dziennik pisany noca /984-/985. Paris: Institut Littéraire, 1989; e Dzienllik pisany noca /989-/992. Warzawa: Czytelnik, 1993.
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'" ECKERMANN, Johann Peter. Gesprache mit Goethe in den letzten Jahren seilles Lebens. Wiesbaden: F. A. Brockhaus, 1959. p. 174.
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den alten Griechen zurückgehen, in deren Werken stets der schone Mensch dargestellt ist").26 As poucas últimas décadas de nosso século revelaram, porém, que "o ideal grego" é uma matriz temática cujas paradas discursivas se devem relativizar e dialetizar no contexto dos fenômenos globais que perturbam a dialética do reconhecimento. Cada vez mais intertextual e interdiscursiva, a literatura do século XX investiu "o ideal grego" com momentos dialéticos que, nas obras de James Joyce, Thomas Mann, Eugene O'Neill, Alfred Düblin, Hermann Broch, João Guimarães Rosa, Augusto Roa-Bastos e, recentemente, nos textos dramáticos de Heiner Müller, por exemplo, modificam as visões do mundo fundadas na função hermenêutica, explicativa do mito. Assim como o projeto kantiano da emancipação da humanidade, que não deixa de ser hoje problemático, o projeto de Goethe deve ser repensado e recontextualizado. A narrativa de valores desenrola-se, repitamos, numa tensão permanente entre o marginal, o local, o nacional, o institucional e o universal. A incerteza generalizada dos valores que se renovam e se reformulam de acordo com a dialética do reconhecimento repõe em questão as obras promovidas pelo institucional. Estas são enfocadas através de obras ou atitudes criadoras polemicamente orientadas. Com isso, o espaço da literatura mundial se desestabiliza, mas ao mesmo tempo se abre a valores que correspondem às convicções axiológicas de comunidades que querem aceder ao universal. Assim sendo, não será a Weltliteratur uma realidade aberta e potencial, um espaço discursivo onde a narrativa de valores se escreve sob a pressão e pela interação de novos actantes? Nem postulado ético-pragmático necessário, nem prática estética de evidência, a literatura mundial define-se antes pela heterogeneidade de suas obras, das línguas que ela fala c das paixões que a sustentam neste fim de século.
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