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ANTEN DOS A HISTÓRIA DA POLÍCIA QUE MATA

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VIDA REAL

VIDA REAL

O livro Rota 66: a História da Polícia que Mata levou sete anos para ser escrito, mas a investigação por trás dele atravessa pelo menos duas décadas de violência e injustiça. Antes de Caco Barcellos mergulhar na reportagem mais importante de sua vida e transformá-la numa espécie de obsessão pessoal, entre 1985 e 1992, algumas perguntas jamais eram feitas em voz alta: quantas pessoas a Polícia Militar mata por ano? Quantas com passagem pela polícia? Quantas são executadas com tiros na nuca ou nas costas? Por que os algozes são frequentemente agraciados com medalhas e promoções?

Gaúcho radicado em São Paulo, Caco Barcellos tinha 35 anos quando começou a reunir informações sobre as mortes praticadas por policiais das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), tropa de elite da polícia paulista. Todos os dias, execuções atribuídas à Rota eram festejadas em programas de rádio e em jornais como o Notícias Popula- res. Bandido bom é bandido morto, diziam. Eram tempos de ditadura, e bem sabemos o que isso poderia significar. Em 1986, um desses radialistas tornou-se o deputado mais votado da história da Alesp.

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Caco decidiu cavoucar fundo e remexer onde ninguém mexia. Quantas armas teriam sido “plantadas” naquelas operações? Quantos boletins de ocorrência acusavam legítima defesa sem que a vítima tivesse resistido? Ao cabo de sete anos, o repórter havia registrado mais de 4 mil vítimas fatais da Rota e descobriu que três em cada cinco não tinham ficha criminal. Mais da metade foi morta apesar de já estar rendida. Eram, quase sempre, pessoas pretas e pobres, moradoras da periferia.

Passados 30 anos desde a publicação do livro, a história da polícia que mata virou série de ficção da Globoplay pelas mãos dos diretores Philippe Barcinski e Diego Martins. Em oito episódios, a saga de Caco Barcellos (interpretado

Um Bardo Em Crise

Circula por aí uma lenda segundo a qual certo jogador brasileiro, algum tempo depois de se transferir para o futebol inglês, desencontrou-se com a própria língua, como se tivesse “esquecido” o português. O que foi agravado pelo fato de não ter aprendido a língua inglesa. Em semelhante estado de indefinição, guardadas as devidas ressalvas, encontram-se as comunidades marcadas pelo processo de colonização: com o genocídio dos povos originários e o apagamento das culturas nativas, essas comunidades, deixando de ser o que vinham sendo até então, não chegaram a se reconfigurar de maneira clara, assumindo feições difusas, por vezes bizarras. É a concretização do mito de Macunaíma – deixaram de ser “primitivas”, mas não chegaram a ser civilizadas. Fica a pergunta: por Humberto Carrão) adquire cores épicas e a cadência de um lamento constante: o choro das mães que perderam seus filhos pelo cano de quem deveria protegê-los.

Há pouco de ficção nessa série de ficção. Está lá o trabalhador, fã da PM, morto por ela na volta para casa. Está lá o jovem universitário, filho de um policial, assassinado por um colega do pai a caminho de sua formatura em Direito. Hoje, algumas perguntas são feitas em voz alta. Quem matou Marielle? Onde está o Amarildo? Por que o senhor atirou em mim? Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. E é assim que Rota 66 deve ser vista. Para a gente lembrar que ninguém é repórter à toa. E que há um mundo a ser construído.

Em 2022, os paulistas elegeram um governador que prometeu acabar com as câmeras de monitoramento incorporadas às fardas dos policiais – ferramenta que vem contribuindo para a queda nas estatísticas de homicídio. Ao mesmo tempo, nunca houve tanto policial eleito para o Legislativo. Neste sentido, é bom ficar de olho Rota 66 é uma reportagem inconclusa. (Camilo Vannuchi, professor de Jornalismo) quem sou eu, se não sou mais quem era, nem cheguei a ser claramente uma outra coisa?

Bardo – Falsa crônica de algumas verdades, de Alejandro Iñarritu, volta-se justamente para esse assunto. No filme, Silvério Gama, jornalista e documentarista mexicano, depois de ter se mudado para os Estados Unidos, onde conquistou sucesso e dinheiro, retorna para o México para receber importante prêmio. A homenagem, que deveria ser causa de alegria pessoal, é vivida por Silvério como verdadeira tormenta: mais que reconhecimento pela qualidade de seu trabalho, o processo de premiação se construiu como uma negociata – prestigiado pelo prêmio, Silvério deveria empenhar seu nome como avalista de suspeitíssimas ações americanas em solo mexicano. O filme dá conta justamente dessa temporada no México, marcada por momentos de angústia, crises de identidade, farras, brigas, culpa e delícia.

Em seu próprio país, Silvério vive algo semelhante a uma crise de lucidez – que se converte, paradoxalmente, numa coleção de emblemáticos delírios. O jornalista emite sinais de total consciência das muitas camadas de violência que constituem a história do México, encobertas pela enganosa camada de verniz modernizante aplicada pelos discursos oficiais que ele próprio, após a negociação do prêmio, ajudaria a construir.

Impossível deixar de considerar o aspecto autobiográfico do filme: Alejandro Iñarritu já consta entre os grandes nomes do cinema contemporâneo. É provável que tenha experimentado, ao longo dos anos, angústias semelhantes às de Silvério: até que ponto um artista, evadido de seu país –marcado a ferro e fogo pelos horrores da colonização e pela condição de subalternidade perante o vizinho rico –, não teria realizado essa evasão como um modo de, isentando-se do horror e da barbárie que violentam o povo mexicano, capitalizar alto com a estetização da miséria de seus conterrâneos?

Autobiográfico ou não, o filme é uma obra-prima. Merece consideração a alucinante abertura do filme. Ou a cena em que, bailando loucamente ao lado de amigos na festa de premiação, Silvério deixa-se absorver pelo canto a capella de Let’s Dance, canção de David Bowie que, emblematicamente, sobrepõe-se, na intimidade de sua mente singularíssima, à música mexicana que até então dominava a cena. A letra de Bowie é reveladora: Because my love for you/ Would break my heart in two. (Danislau, professor de Língua Portuguesa)

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