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Sumário Marina K. Pereira.................................................................................................... 5 Catarina Fransani e Gabriela Nardin................................................................ 13 Priscilla Barone Russo......................................................................................... 15 Caroline da Silva Pereira e Kalissa Sartorato.................................................. 19 Gustavo Rodrigues e Lucas Mirandola............................................................ 21 Gabrielly de Almeida Lira .................................................................................. 23 Vinícius Jorge Barreto......................................................................................... 26 Beatriz Afonso Romano..................................................................................... 30 Arthur Lopes Figueiredo.................................................................................... 32 Marianna Cordelli P. P. Oliveira......................................................................... 34 Vitória Machado Fernandes da Silva .............................................................. 36 Luiz Henrique Massucati ................................................................................... 38 Beatriz Laselva e Vinícius Bellangero Fabiano .............................................. 40 Clara Almeida Baptistão .................................................................................... 42
Apresentação Esta reunião de contos foi escrita por dezoito mãos e tratou-se de um projeto de redação para 2ª série do E.M. que visava a contribuição com o processo de produção escrita, entendida como trabalho, e dar condições de interpretação dos contos de Clarice Lispector e de produção textual aos alunos, com foco nas etapas do planejamento, escrita, revisão e reescrita do gênero discursivo Contos. A proposta foi a seguinte: após a análise dos contos de Clarice Lispector, os alunos deveriam reescrevê-los, preservando o elemento condutor da narrativa, a prosa intimista e reflexiva - estilo individual da autora - e inserirem novos momentos de epifania. A sequência de atividades apresentou a seguinte organização: houve um sorteio que apontou os alunos que fariam a análise em dupla e os que fariam-na individualmente e cada dupla ou aluno deveria analisar um conto de Laços de Família, extraindo, de seu enredo, o “fio condutor” da narrativa, o ser no mundo, e os momentos de epifania; na sequência, deveriam apresentar a análise para a turma e iniciar o processo de reescrita do conto analisado, fazendo as devidas observações da proposta dada; posteriormente, os contos escritos deveriam ser apresentados à professora para a correção e reescrita, repetindo-se este último processo quantas vezes se fizessem necessárias. Em Laços de Família, seguindo o caminho percorrido por grandes contistas da Geração de 45 do Modernismo, Clarice Lispector exibe domínio absoluto dessa forma breve de narrativa. Ciente de que o conto é o “irmão misterioso da poesia”, espécie de “caracol da linguagem”, segundo Julio Cortázar, Clarice prende o leitor e, sem trégua, invade-o com um acúmulo de sentimentos que, aglutinados, se abrem para realidades mais vastas. Como um ímã, ela o arrasta para o interior de cotidianos urbanos e domésticos a partir dos quais surgem, como sempre acontece em sua literatura, a natureza íntima das pessoas e das coisas, a nervura dos seres, seus infinitos e domínios mais insuspeitos. Tudo isso, segundo ela mesma, “cosendo por dentro” o círculo imaginário onde se situam suas personagens e sua lógica organizadora.
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O estado de permanente atenção provocado pelo fato de as narrativas de Clarice se concentrarem no mais insignificante, na intensidade dos gestos e nas palavras – ou na falta delas –, impõe-se como um dos traços estruturantes de sua escrita. O minúsculo e o epifânico, o excessivo e o espantoso, a maneira como o óbvio e o lugar-comum são formulados e a insistente interrogação sobre o ser no mundo podem ser tomados como pequenas pistas ou linhas de leitura desses Laços de família. E são essas mesmas características, que renderam à Clarice vários prêmios da Literatura, é que tiveram de ser mantidas nas releituras elaboradas pelas duplas. Tamanho desafio foi cumprido com empenho e alto estilo, fazendo despontar talentos que nos vem deliciar através da leitura prazerosa deste volume.
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Antes mal acompanhada do que só ou (Re)escrita de “O crime do professor de matemática” Marina K. Pereira Quando Célia chegou em casa naquela noite, deixou os saltos ali ao lado da porta, e na hora mesmo já ouviu os latidos altos e saltos alegres. Em alguns segundos, o cachorro magricela apareceu com suas pantufas na boca, colocando-as cuidadosamente no chão. em frente à dona que as vestiu e dirigiu-se às escadas. Célia, aos trinta e três anos, morava sozinha - não tinha se casado ainda, e encontrava-se desesperada para que isso acontecesse - em uma simples casa de dois quartos e dois andares na Rua da Deserção. Era formada em física, mas não trabalhava, pois, sendo filha única, vivia da herança dos falecidos pais que, além do dinheiro, deixaram em suas mãos os cuidados com o cachorro de cor castanho-amarelado que lhes pertenceu. Célia era tão indiferente ao animal que nem se dava ao trabalho de lembrar o nome que seus pais deram a ele. O cachorro era um bicho alegre, saltitante e disposto a fazer de tudo por qualquer um que o acolhesse. Mesmo que esse qualquer um fosse Célia, que não tinha a menor intenção de cuidar do animal, não lhe comprava ração, dava-lhe apenas seus próprios restos de comida, nunca o levava ao veterinário ou lhe comprava brinquedos. Não raro pensava “por que essa praga não morre logo?”. Todo fim de tarde, Célia ia à Igreja, de segunda a domingo, e não ia só para rezar não, era só para ajoelhar-se em frente à estátua de Nossa Senhora e pedir por um marido. Quando chegava em casa, exausta por causa da altura de seus saltos, colocava-os ao lado da porta e, em segundos, o cachorro vinha trazendo suas pantufas cor-de-rosa na boca. Ela as colocava e dirigia-se para o quarto; o cão corria escada acima e, afobado, chegava antes dela, puxava a coberta para que a dona deitasse e, então, com dificuldade, arrastava a coberta sobre a mulher, cobrindo-a. Tudo isso apenas para agradar e tentar chamar a atenção de Célia, que simplesmente empurrava o animal para fora da cama. O mesmo não se importava, afinal, sua dona estava quente e aconchegada, e isso era o que importava, dormir no chão gelado de madeira não era um problema para o animal.
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Nas manhãs, ela acordava com o cachorro certificando-se de latir para ela entre às seis e às seis e meia da manhã todos os dias, funcionando como um dedicado despertador. Levantava da cama e descia as escadas em espiral, para então chegar à cozinha onde o cachorro, pacientemente, esperava ganhar alguma sobra do café da manhã o que, na maioria das vezes, não acontecia. Eram por volta das seis da tarde, quando Célia chegou em casa da Igreja, e na hora em que estava entrando na casa, apareceu um jovem carteiro que lhe trazia uma carta escrita por sua distante - e melhor de vida - prima, Elisa. O homem era muito bonito, tinha olhos verdes brilhantes, nos quais Célia não conseguia parar de reparar. Com um tom sedutor, apresentou-se a ela antes de dar-lhe a carta, e então puxou assunto. Célia era ótima em fingir interesse em assuntos para ela inúteis, como os novos bares que abriram por ali, por exemplo, e por isso conseguiu ficar ali puxando assunto com o homem na porteira. Ficaram por vários minutos. Célia sentindo-se cada vez mais atraída pelo jovem. Porém, em algum momento da conversa interessante, ouviram-se latidos altos e alegres e o cachorro apareceu à porta, cheirando o homem e latindo para o carteiro que, em segundos, espirrou. E espirrou de novo e de novo. Pediu então perdão e começou a se retirar lentamente, pois era alérgico ao pelo do animal. Assim, ele foi-se embora. Ali um possível pretendente escapara de suas mãos. Célia, desapontada, sentou-se na poltrona da sala. O cão logo veio com as pantufas na boca, entregou-as à dona e deitou-se ali no chão ao lado dela. Na hora do jantar, o animal esperou receber algum pedaço de carne, mas ganhou apenas uns restos de alface. Quando Célia dirigiu-se a seu quarto, no andar de cima, o cão fez questão de puxar as cobertas e depois cobrir a dona que deitara na cama. Aquele cão a lembrava o quanto padecia de solidão. E ali, no silêncio da noite, Célia murmurou: “Estou sozinha!”. Em um outro dia, Célia havia passado grande parte do fim de tarde conversando com um homem que sentara ao seu lado na missa da quarta-feira, chamava-se Maurício e trabalhava para o banco da cidade e, por isso mesmo, sempre andava com um terno preto e uma gravata com uma pequena cobra negra que era símbolo do banco. O homem era muito atraente, porém, em questão de personalidade, era um tanto arrogante e prepotente.
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Célia, no entanto, não perderia por esperar, chamou-o para acompanhá-la até sua casa. No caminho, foram conversando - sobre ele, suas realizações e seu trabalho - até chegaram à porta da casa. Assim, ao chegarem perto da porta, ouviram os latidos altos do cão de Célia, do qual a existência ela nem se lembrava. Ao abrir a porta, o cão veio próximo a Maurício, cheirando-o os pés e latindo desconfiado. Célia, envergonhada pelo animal magrelo e barulhento, desculpou-se, mas o cão continuou latindo e rosnando para o homem, como se quisesse afastá-lo da dona. Mordiscou a barra da calça do homem, que enojado e indignado, olhou para o caríssimo relógio em seu pulso e disse que estava atrasado para um compromisso. Retirou-se. E, na missa da semana seguinte, sentou-se do outro lado da Igreja. Naquela noite, Célia, desapontada, sentou-se na poltrona da sala. O cão logo veio com as pantufas na boca, entregou-as à dona e deitou-se ali no chão ao lado dela. Na hora do jantar, o animal esperou receber algum pedaço de carne, mas ganhou apenas uns restos de alface. Quando Célia dirigiu-se a seu quarto, no andar de cima, o cão fez questão de puxar as cobertas e depois cobrir a dona que deitara na cama. Ali no silêncio da noite, Célia murmurou: “Estou sozinha!”. E assim o tempo foi passando, meses e meses. E como Célia dizia: “Decepção atrás de decepção!”. Certo dia, Célia conheceu Carlos. Alto, forte e esbelto, servia o exército há mais de dez anos. Conheceram-se na festa junina do bairro, onde ele cuidara da segurança. Na primeira vez que Carlos foi à casa de Célia, o cão ladrou e ladrou, até ser chutado para um canto pelo homem, e Célia obviamente não deu a mínima. Carlos passou a morar na casa de Célia e saia para trabalhar todos os dias às sete horas. O horário normal para que voltasse para casa era por volta das sete e meia da noite, porém sempre chegava às nove ou até mais, quando Célia estava quase indo para a cama. Quando chegava, fazia questão de chutar o indesejado animal para longe de si, já que o cão não confiava nada nele. Carlos dizia que chegava tarde por causa do Coronel que o segurava no trabalho, pois confiava muito nele e então dava-lhe tarefas extras. O que Célia não sabia era que nada disso sequer chegava perto da verdade.
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Logo ao terminar o seu turno, Carlos ia ao bar mais próximo para aproveitar a noite com as jovens mulheres do bairro, e havia alguns vizinhos de Célia que a alertavam sobre como o marido fora visto no bar em tal noite, e como muito provavelmente a traía. Entretanto, Célia, indignada, ignorava as acusações, mesmo com o enorme número de provas como, por exemplo, as marcas de batom no pescoço de seu parceiro. Em seu interior, Celia talvez soubesse sim das traições do companheiro e de que ele só estava com ela pelo dinheiro. Mas o que ela faria, não é mesmo? Ela dizia estar sempre sozinha, ela precisava daquele relacionamento. Uma coisa que Carlos odiava era o cão. Não aguentava os latidos, os olhares pedindo comida e muito menos o que o animal fazia pela dona, ele achava ridículo tamanha devoção a uma mulher, quer dizer, ele mesmo não dava a mínima para Célia - já que estava ocupado, gastando com bebidas e mulheres o dinheiro que a namorada cegamente lhe deixava usar, - então não entendia como um cachorro poderia dar tanta importância a alguém. Carlos tinha todas as intenções de permanecer com Célia, afinal, ela tinha muito dinheiro da herança dos pais e, segundo ele, era sonsa como uma porta, então jamais o questionaria. Então, após três meses de namoro, pediu Célia em casamento. A festa foi grandiosa e, claro, Célia pagou por tudo e fez questão de que o bairro todo fosse ao casamento, desde as vizinhas xeretas até o simpático velho padeiro cujo nome ela não sabia. Ficaram uma semana em Lua de Mel, na cidade de Cancun, sem problemas e responsabilidades. Obviamente, já que o cachorro de Célia ficara para trás, não foi levado ao casamento e muito menos na viagem. E Célia não se importou nem um pouco em procurar alguém que cuidasse do cão em sua ausência. O pobre animal revirara a casa, comendo restos ou doces que encontrava nos gavetões mais baixos da cozinha, ficando cada vez mais magricela. E, mesmo assim, todas as tardes, o cão fazia questão de ficar próximo à porta, esperando que a dona chegasse (e esperando para latir alto para Carlos, expressando seu descontentamento e descrença no caráter do homem). Carlos já não tinha mais o que fazer naquela cidade, já visitara todos os bares diversas vezes e conhecia toda e qualquer jovem mulher que já passara por lá, e por isso, decidiu sugerir à Célia que se mudassem. Ela não queria, pois gostava da casa e do bairro em que vivia, mas era certo que ela jamais iria contrariar o marido, já que precisava dele. Senão estaria sozinha, não é?
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Então concordou em se mudar com ele. Arrumaram malas e venderam móveis, usando o dinheiro de Célia para comprar peças mais modernas. Compraram um carro enorme para levar tudo. E assim se foram sem deixar nada pra trás. Quer dizer, sem deixar nada que lhes fosse importante para trás. Pois o cão ficou. Ficou para trás, Carlos odiava o animal e convenceu Célia de que - mesmo que tivessem comprado uma casa e um carro maiores ainda - não teriam como transportar o animal, e também, segundo o homem, em sua afirmação sem cabimento algum, a mudança poderia “transtornar o animal, fazendo-o até contrair raiva”. Por semanas, o cão ficou de fato transtornado, sem entender o porquê a dona estava se livrando de tudo na casa, inclusive a velha coberta com a qual ele a cobria toda noite e as velhas pantufas que levava para ela sempre. No dia da mudança, Célia e Carlos deixaram a casa como sempre aos latidos do cão, que pulava e latia animado como toda manhã. Porém, quando Célia fechou o portão do quintal da casa, não voltaria a abri-lo. Qualquer sortudo que comprasse a casa teria uma surpresa canina ali no quintal, e aí o que os novos moradores fariam com o animal já não era mais problema dela, afinal, agora ela tinha o que sempre quis e ele era muito mais importante. Companhia. O tempo passou. Mas nada mudou muito. Moravam na casa nova, Célia passava o dia assistindo ao noticiário e só saia de casa para ir à Igreja, já que o marido não a deixava sair - para que ela não desse de cara com ele saindo com outra mulher. Dizia a esposa que o mundo hoje em dia era “muito perigoso”. Ela não questionava, claro. A única coisa que a deixava cismada em sua nova vida, era chegar da Igreja naquele silêncio e ter de procurar os seus chinelos sozinha. Era jantar sem ter um ser pulando ao lado da mesa e com os olhos brilhando ao ver a comida. Era ir dormir tendo que cobrir a si mesma. Além disso tudo, os vizinhos de Célia, Júlia e Valder, eram uma das coisas que mais a incomodavam em sua nova vida. Eram o casal perfeito, desde as flores que ele trazia para ela, até o magnífico jantar que ela lhe fazia, cujo cheiro da comida podia ser sentido de longe. E também, o casal tinha um cão. Um cachorro alto e bonito, sem raça que Célia reconhecesse, pois, claro, nunca dera a mínima para cachorros, que pulava quando os donos chegavam, pedia comida quando havia piqueniques no quintal e, segundo Célia ouvira falar de outras vizinhas fofoqueiras, o cachorro até trazia para os donos seus chinelos quando chegavam em casa.
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Célia tentava não pensar neles, dizia a si mesma: “Eu tenho tudo isso que eles têm! Quer dizer, tenho um marido assim como Júlia, o que eu invejaria nela?!” Em uma noite, chovia, o que era raro para a seca cidade onde morava, e Célia havia esquecido as roupas no varal do quintal. Correu para pegá-las, e então, no meio do caminho, percebeu que estava descalça, e teve que voltar para casa com os pés molhados para pegar os seus chinelos, já que jogara fora as pantufas e, mesmo que as tivesse, não havia ninguém que pudesse pegá-las para ela rapidamente. Ao recolher as roupas do varal, teve uma visão plena do bar à frente de sua casa. Teve uma ótima visão de Carlos lá (mesmo que até onde ela sabia, ele estava trabalhando àquela hora). E ele não estava sozinho, à sua frente, uma jovem alta e magra de longos cabelos loiros ria alto, arqueando as costas e fazendo o decote do vestido mais altivo que nunca. Célia ficou estática, parada observando. Observou enquanto o marido segurava a mulher pela mão e a levava para dentro do estabelecimento, fazia um sinal para um garçom qualquer que lhe apontava um escadaria. Reparando bem, podia-se ver que o Bar da Aleivosia não era apenas um bar, como também um motel. Célia sentia o coração batendo forte, mas tentou tirar os pensamentos da cabeça e recolher as roupas já tão encharcadas quanto ela do varal. Disse a si mesma que talvez ela fosse uma colega de trabalho (o que seria estranho já que ele era militar, e não havia mulheres no batalhão). Também disse que, por conta da escuridão da noite e da chuva, talvez ela tivesse confundindo-o com um homem aleatório. Porém, desde esse dia, Célia começou a passar muito tempo no quintal. Todo fim de tarde, após chegar da Igreja, ela inventava algo para plantar ou colher no quintal, e ficava de olho no bar da rua da frente para ter certeza que não veria Carlos ali novamente. Mas o viu. O viu de novo e de novo, toda noite com uma mulher diferente. E, quando ele voltava para casa bem de noite, dava um leve beijo na bochecha da esposa e dizia estar cansado do trabalho. Então, ligava a televisão e por ali ficava. Bebia algumas cervejas, dava altas risadas até que Célia fizesse o jantar. Ela não tinha coragem de questioná-lo. Se o questionasse, ele não iria gostar, iria? Ela não queria jamais que ele a deixasse!
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Mas a situação continuou e continuou, todo dia Célia arrumava uma desculpa para si mesma do porquê estava no quintal, quando na verdade apenas esperava ver o marido e alguma mulher entrando no bar. Acontecia todos os dias, às vezes, as mulheres até se repetiam. Passado um tempo, Célia sentia que estava enlouquecendo. Queria por para fora a tristeza que sentia, queria explicações do marido. Mas não conseguia pedi-las. Não tinha coragem para tal. Em julho, era aniversário do casamento de Célia e Carlos e ela fez questão de preparar um esplendoroso jantar para quando o marido chegasse. E ele chegou, e assim como ocorrera algumas vezes, Célia pode ver as marcas de batom vermelho no pescoço dele, levemente borradas provavelmente em uma tentativa de apagá-las. Em pé ao lado da mesa de jantar, após levar as travessas para a pia, Célia questionou-o. Perguntou por que ele levava mulheres aleatórias para o bar, por que não lhe dizia a verdade? Carlos negou e, quando a mulher insistiu, ele ficou com raiva e disse não ter paciência para tal drama, pois tinha mais o que fazer, então mandou que a esposa parasse com as paranoias, se recompusesse e viesse logo dormir. As traições continuaram e continuaram a acontecer. Toda noite, porém, agora Carlos parecía estar mais interessado em uma mulher específica, que usava roupas de grife e joias que valem o preço da casa de Célia, que continuava todas as noites sentada no banco de madeira do quintal, observando o marido passando o tempo com outras mulheres. Porém, passou a demandar respostas todos os dias, incomodando cada vez mais o marido. Era por volta das três da tarde, Célia assistia ao noticiário quando a campainha tocou e o carteiro deixou uma carta no local. A carta era de Carlos e, pela letra, fora escrita às pressas. Ele dizia, com todas as palavras, a verdade que Célia no fundo já esperava. Ele a deixara. Conhecera uma jovem mulher, filha de um empresário que morava nos Estados Unidos e enviava dinheiro para sua única filha aqui no Brasil, muito mais rica e esbelta que Célia, e a mulher o conquistara. Carlos ainda tivera a audácia de escrever que Célia não devia culpá-lo! Afinal, “o coração é quem escolhe”, nas palavras dele, porém já estava claro que quem escolhera agora fora o bolso e não o coração.
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Célia sentiu o chão se desfazer ao terminar de ler, seu marido a havia deixado, trocado-a por uma mais bela e mais rica. Célia sentou-se na poltrona, descalça, e pensou e pensou o resto da noite, tentando entender como chegara àquele ponto, ficando cada vez mais confusa. Ela sentia todos os sentimentos do mundo, mas ao mesmo tempo não sentia nada. Célia não era de chorar ou expressar emoções muito bem, a confusão mental era sua principal emoção e característica. Ela simplesmente não sabia o que fazer, e ainda, não se sentia mal por Carlos em si, já que nem passava tempo com ele, sentia falta era do marido. De ter um marido. Ou pelo menos ela achava, até perceber que o que ela sentiria falta era de companhia. Logo começou a pensar em como queria se mudar, sair daquela cidade onde poderia a qualquer momento andar na rua e encontrar o ex-marido. Sua vontade mesmo era voltar para seu pequeno bairro, porém a casa já havia sido comprada e, como Carlos tomara conta de tudo, Célia nem sequer sabia quem a comprara. Também já pensava no que faria para contar a todos sobre o término. Diria que foi traída? Que cansou? Que o dinheiro acabou? Ela não sabia. Tudo o que ela sempre quisera na vida era não estar sozinha, por isso quisera tanto se casar durante todo esse tempo e, agora, depois dessa experiência, ela já não mais via o casamento como um ídolo a ser adorado ou um paraíso a ser alcançado, mas sim como uma expectativa criada e tão logo destruída. E, naquela noite, Célia, desapontada, sentou-se na poltrona da sala. Porém, dessa vez ninguém veio até ela com suas pantufas na boca, ninguém entregou-as a ela e ninguém se deitou ali no chão. Na hora do jantar, não havia ninguém ali esperando receber algum pedaço de carne. Quando Célia dirigiu-se a seu quarto, no andar de cima, ninguém puxou as cobertas e depois a cobriu assim que se deitara na cama. Então ali, no silêncio da noite, Célia lembrou-se da companhia que nunca reconhecera, da companhia que nunca valorizara, da companhia que perdera. E então murmurou mais uma vez: “Estou sozinha”.
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Laços de amor ou (Re)escrita de Laços de Família Catarina Fransani e Gabriela Nardin Julia finalmente tinha passado pelo portão de embarque do aeroporto internacional de São Paulo, ela estava meio triste, pois não ia ser fácil ficar as férias todas longe de seus amigos e familiares. Sua mãe, como sempre, não conseguiu ir no momento de sua despedida, pois estava trabalhando muito e não chegou a tempo no local. Por um lado, a menina já se havia acostumado com essa situação e não estava sozinha, seu pai, Miguel, estava com ela nesse momento de nervosismo e ansiedade. A jovem apenas tentou se convencer que seria pouco tempo na casa de seus avós, na Itália, e que logo mais estaria de volta, não iria nem dar tempo de sentir saudades. Após passar pela alfândega, Julia ouviu que seu voo iria atrasar cerca de meia hora e pensou em ir comer algo em algumas das lanchonetes por lá mesmo. Depois de alguns instantes na lanchonete, seu celular tocou, quando julia olhou a bina, era Laura ligando, sua mãe, a quem ela não tinha o costume de chamar por “mãe”. Atendeu o celular já sabendo o que seria dito: — Júlia, me perdoe pelo atraso, tive muita coisa para fazer no trabalho e acabei saindo um pouco mais tarde e, infelizmente, o trânsito não permitiu que eu chegasse a tempo. Seu pai te deixou ai? Ele já foi embora? A menina respirou fundo, mas seus olhos já estavam tomados por lágrimas e então ela disse: —Tudo bem.. eu sei que você é uma mulher muito ocupada. Meu pai já voltou para casa. Estou no local de embarque, mas meu voo está atrasado. —Filha, eu adoraria ficar conversando com você, mas não posso, pois tenho que entregar alguns relatórios ainda hoje, então só quero desejar boa viagem, fale para os seus avós que mandei um abraço e.. - Antes que Laura pudesse continuar, Julia desligou.
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Ela embarcou. Não conseguiu tirar sua mãe da cabeça. Será que Laura nunca se dera conta do mal que ela causara? Será que sabia a mágoa que seus atos, sempre colocando à frente o seu trabalho, traziam? Não queria pensar, era perigoso pensar assim, mas não conseguia segurar as lembranças e os pensamentos. Finalmente conseguiu dormir. O voo foi super tranquilo. Após muitas horas dentro do avião, ela por fim havia chegado ao seu destino. Saiu do avião, pegou as malas e quando viu os avós, andou depressa e se encaixou nos braços deles, igual fazia quando era pequena. — Que saudades que eu estava de vocês! - Disse Júlia emocionada. No caminho para casa, Júlia começou a falar de sua mãe e em todos os momentos sua avó era meio fria ao se referir à filha. Elas não conversavam há muito tempo e fazia anos que Laura não vinha visitar os pais. Júlia ficou com isso na cabeça e por esse e outros motivos ocorridos antes e durante a viagem e em suas conversas com a avó, ela se convenceu de algo que nunca havia reparado com tanta nitidez , mãe e filha não eram nada próximas e nunca haviam sido, isso a fez pensar que esse era o motivo pelo qual ela e Laura também não eram tão ligadas. Então, ela prometeu a si mesma que quando voltasse ao Brasil, faria questão de conversar com sua mãe e restabelecer uma nova conexão entre elas. O que Julia menos queria era que elas ficassem com a relação abalada pelo resto da vida como a de sua avó com sua mãe, sem intimidade, sem carinho e etc. As férias passaram num pulo e logo Júlia estaria de volta ao Brasil. Para sua surpresa, quando chegou ao aeroporto, já no Brasil, sua mãe a estava esperando. Quando a menina a viu, ficou tão contente que não conseguiu se segurar. No momento em que ficaram frente a frente, Júlia envolveu a mãe num abraço. Foi um abraço tão sincero que, a princípio, Laura ficou sem reação, mas depois, ela retribuiu o maravilhoso abraço e soltou algumas poucas palavras: “Filha, me desculpe por ser tão ausente, vou melhorar”. Elas conversaram muito naquele dia e, a partir de então, ambas passaram a ter uma relação mais próxima, tal qual Julia houvera prometido a si mesma.
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A pior mulher do mundo ou (Re)escrita de A Menor mulher do mundo Priscilla Barone Russo
Doutor Alex era conhecido por sua frieza e extrema dedicação nas áreas mais desconhecidas da medicina, coisa que infelizmente não lhe trazia um retorno financeiro imediato, porém sua felicidade era tudo o que importava. O egoísmo e a falta de caráter fizeram com que seu noivado acabasse e, desde então, o cientista voltou a ser completamente dependente do teto de seus pais. Por conta do alto índice de desemprego, Alex não havia sido requisitado para participar de algum caso médico já há 3 anos e meio, deixando-o praticamente sem esperança e entusiasmo para fazer suas descobertas e constatações. Sua vida estava resumida em tomar conta de sua mãe, que sofria do mal de Alzheimer em um estágio avançado, sendo considerada, por ele mesmo, um fardo. Entretanto, enquanto Alex estivesse cuidando de dona Glória, teria sempre um local para residir sem ter a preocupação de realizar o pagamento de contas e de aluguéis. Todo final de mês, o doutor precisava ir à farmácia buscar os remédios de sua mãe que, eventualmente, acabavam e que de forma alguma poderiam faltar. Ao se aproximar da drogaria, Alex viu uma família vivendo no andar mais alto de uma casinha muito simples e, ao prestar mais atenção, conseguiu visualizar e perceber a situação precária em que eles viviam. Ele não sabia como poderia ajudar, pois fazia muito tempo que não sentia empatia por outro ser. Pensou na sorte que tivera em nascer onde nascera e ter os pais que tivera, sempre em condições de garantir o melhor para ele. Parou por instantes para observar mais um pouco e então seguiu seu caminho em busca dos remédios.
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Por sorte, conseguiu encontrar todas as medicações em um só lugar, coisa rara de acontecer. Pagou a altíssima conta e, ao dirigir-se à saída, esbarrou com a mulher que mais cedo vira naquele sobrado pobre, perto da farmácia. Com um olhar de desespero, Ana conseguiu tocar a alma insensível de Alex, que ficou fascinado com seu jeito engraçado de sair de uma situação tão embaraçosa como aquela, visto que todos os remédios estavam caídos no chão. Após ela se desculpar, o doutor pôde perceber que sua má formação nas pernas, por conta de um nanismo, estava em um estado deplorável e perguntou se eles poderiam ir a algum lugar para que pudessem conversar, deixando claro que ele era um médico renomado e que havia se interessado por seu caso. Ao chegarem na cafeteria, a moça disse, com a maior simplicidade, que não comeria nada, pois sua situação financeira não era nada boa e estava a cada dia pior. Acrescentou que nunca havia sido contratada por conta do preconceito com o seu problema. Ele, com um ar de total interesse, ofereceu-lhe o cardápio, sugerindo que ela pedisse o que tivesse vontade de comer, que ele pagaria a conta. Seu cavalheirismo fez com que Ana lhe contasse várias histórias, inclusive a de que seu nome havia sido escolhido a partir de seu problema, uma relação direta com a palavra anã. Além disso, a mulher aproveitou aquele momento único de ter um profissional da medicina à sua frente e mostrou uma grande elevação em sua barriga, fazendo uma comparação com o como ela costumava ser antes de aquela protuberância aparecer. Alex enxergou uma ótima oportunidade de mostrar ao mundo que ele ainda possuía muita capacidade e talentos que não tiveram a chance de serem explorados e utilizados, então, combinou encontros semanais com Ana, para que ele pudesse tratar e melhorar o problema em suas pernas e também acompanhar o crescimento e desenvolvimento dessa massa que tanto a preocupava e tirava seu sono. Naquele dia, o doutor retornou à sua casa com um sorriso profundo e com uma sensação de realização que não cabia em seu peito. Sentia como se sua vida tivesse reencontrado um rumo e finalmente tivera achado uma razão pela qual ele gostaria de viver para ver.
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Assim foram passando os dias, mas havia um detalhe que desagradava Alex profundamente, e era o fato de essa protuberância, na verdade, ser uma gravidez que já estava em seu quinto mês. No mesmo dia em que fez o diagnóstico, decidiu que seria melhor se ele não contasse isso à ela, visto que ele começara a sentir algo que não sentia desde que seu noivado terminara e tinha medo de que ela deixasse de encontrá-lo uma vez que ele não era obstetra.. Por tratar-se de uma pessoa completamente egocêntrica, o médico deixou de lado suas responsabilidades éticas e morais para tentar viver um amor impossível, omitindo a verdadeira razão pela qual a barriga de Ana estava tomando aquela proporção. A falta de escolarização e de informação fizeram com que ela não tivesse ideia do que pudesse estar acontecendo. Essa farsa foi levada até o oitavo mês da gestação, pois contrações muito fortes a levaram para o hospital às pressas. Acompanhada de seu marido, Ana chegou ao hospital público mais próximo de onde eles moravam e por ali ficaram durante muito tempo, esperando por um atendimento. Doutor Carlos era o plantonista daquela noite e, ao dar a notícia de que haveria a necessidade de fazer uma cesariana imediatamente, pois sua bolsa já estava quase sem líquido amniótico, entrou em choque ao ver a ignorância dos pais e a falta de conhecimento a respeito da gravidez. O procedimento foi realizado e Ana deu à luz a uma menina linda que, por medidas de segurança, foi mantida na UTI por alguns dias, devido a seu tamanho e peso. Sua revolta contra Alex era imensurável. Sensações de traição e ódio passavam por sua mente a todo o momento e ela estava determinada a se vingar a qualquer custo do médico que a enganara. Eis que então, seu marido, observando toda a situação, teve a brilhante ideia de recorrer ao jornal mais conhecido da cidade para denunciar em público a tremenda falta de ética do médico.. Ana gostou da ideia, filmou o depoimento de Doutor Carlos e, assim que recebeu alta da maternidade, foi direto recorrer à imprensa.
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Conseguiu o contato de uma pessoa que trabalhava no jornal e que procurava por esse tipo de história a fim de publicar em sua coluna. O jornalista disse que não demoraria muito para que a matéria saísse e que, com certeza, a repercussão seria bem rápida. De fato, bem mais cedo do que esperava, Ana recebeu várias ligações de consolo e de pessoas oferecendo ajuda. Podia perceber que a notícia gerara vários tipos de sentimentos em todos, desde o de desprezo à vontade de que algo similar acontecesse ao médico que a enganara. Desde então, Alex percebeu que se apaixonar foi o motivo de ter a vida arruinada duas vezes. Assim, desistiu de seguir sua profissão e tornou a melhor qualidade de vida de sua mãe, seu maior e único objetivo.
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Indecisão, embriaguez: nem sempre só a cabeça vazia é “oficina do diabo” ou (Re)escrita de Devaneios e embriaguez duma rapariga
Caroline da Silva Pereira e Kalissa Sartorato
Já era meio dia e ela ainda não tinha saído do quarto, ficava lá sentada na ponta da cama só ouvindo por sua janela os ruídos na rua, carros passando, pessoas conversando e até um grupo de garotos de sua classe de cursinho que a viram e foram logo perguntando porque, em pleno sábado, ela nao saia de casa para beber e curtir com as amigas. Ela, toda nervosa, já foi dizendo “não é da conta de ninguém, minha vida não é da conta de ninguém” eles acharam super engraçado, mas saíram da frente da janela para não deixar a garota mais nervosa. Frequentemente, Ana sempre passava os seus dias estudando, só saía do quarto para comer e ir ao banheiro. Nos finais de semana, era pior ainda, às vezes, nem saia para comer; porém, naquele sábado em questão, ela ficou trancafiada, mas não para estudar, só ficou sentada na cama, olhando para o teto e refletindo consigo mesma, pensando “o que estou fazendo?”,“nao sei se gosto da minha vida assim”, “nunca tive uma adolescência como a das minhas colegas”, “nunca me diverti muito”, “nunca fui às festas’. Estava triste e não se trocou; durante o dia, não dirigiu uma palavra sequer à sua mãe, Dona Margarete, que não estranhou nem um pouco porque achava que a filha era daquele jeito e gostava de ser assim. À noite, Ana recebeu uma mensagem de uma amiga dela, que a convidou para ir para a balada, mas sabendo que ela não iria, pois provavelmente estaria estudando. Entretanto, como a garota já andava se questionando, refletindo em um momento muito crucial da vida e também querendo passar no vestibular para ter uma vida boa, que ela não tinha certeza de qual seria, decidiu ir “quer saber, eu vou nessa balada, posso ir, mãe?” disse bem alto para ver se sua mãe deixaria.
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Margarete ficou surpresa porque sua filha não saia para se divertir fazia muito tempo, e acabou deixando. A moça se arrumou como nunca, colocou seu melhor vestido, se maquiou bastante do jeito que ela via nos tutoriais do youtube e foi para a balada. Lá encontrou algumas amigas da escola que eram super grudadas com ela, mas a vida acabou levando-as para lugares diferentes. Depois de duas horas naquele lugar, Ana já estava mais que bêbada, tinha beijado mais de dez caras diferentes, tinha dançado na pista de dança com suas amigas ate cair. Ela se divertiu como nunca. Eram quase cinco horas da manhã quando suas amigas pegaram-na e a levaram para casa. Ana desceu do carro dizendo “amei a noite, gente, um dos melhores dias da minha vida,vamos ter que repetir”! Quando entrou em casa, sentou na cama e refletiu sobre tudo o que aconteceu e sobre tudo o que ela fez. Sentiu-se pior do que estava e com uma super dor de cabeça por causa da bebida. Resolveu tomar um banho e, quando terminou o banho, já eram seis e meia da manhã, horário em que saía para ir ao cursinho, Ana se deitou na cama com a toalha na cabeça, de pijama e toda dolorida, pensando “ontem foi um dia muito diferente; foi até legal, mas nunca mais quero fazer isso, amanhã voltarei para a minha perfeita rotina de estudar o dia inteiro porque hoje eu, com certeza, nao aguento”.
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Retrato 3X4 de um sovina ou (Re)escrita de Começos de uma fortuna Gustavo Rodrigues e Lucas Mirandola
Aurélio era um menino de 15 crente que seus sonhos um dia poderiam se tornar realidade. Ele possuía vários sonhos, porém um deles lhe chamava muito a atenção: o sonho de um dia tornar-se rico. O garoto passava dias e noites pensando em como ele iria fazer para que esse sonho se tornasse real. Todos os dias, logo após acordar, ele tinha o objetivo de ganhar dinheiro de qualquer forma, era a sua motivação diária. Para Aurélio, só isso já bastava para ser feliz. Seus pais estranharam sua maneira de pensar. Eles já o haviam questionado várias vezes, perguntando qual seria a utilidade de tanto dinheiro. Aurélio disse que a utilidade principal seria para crescer financeiramente na vida. Seus pais lhe deram muitos conselhos com o intuito de desviar o assunto de que ele tanto falava, porém não dava a mínima para o que seus pais diziam. Em qualquer situação, Aurélio não tirava o dinheiro da sua cabeça, poderia acontecer qualquer coisa importante que ele só dava valor ao dimdim. Ia ao shopping, não gastava um centavo. Queria ficar rico. Ia ao cinema, parava no final da fila, mas logo desistia. Não podia gastar o seu dinheiro. Ia para a cantina, na hora do lanche, porém não foram poucas as vezes em que ficou parado diante da atendente por um minuto ou dois, pensando se valia à pena gastar um tantinho das suas economias. E, claro, sempre desistia de fazer qualquer pedido. Os amigos chamavam para sair, ele não ia. Essas atitudes preocupavam demais os pais de Aurélio. Um dia, na sala de Aula, César e Raffa Moreira, amigos do jovem sovina, convidaram-no para almoçar no McDonald’s depois da aula. A princípio, iriam César, acompanhado por Carla, Raffa Moreira, acompanhado por Paula e Aurélio, caso aceitasse o convite, estaria acompanhado por Ana, uma garota da qual gostava muito.
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No começo, Aurélio não havia apreciado nem um pouco a ideia, pois com esse passeio iria gastar grande parte de sua mesada. Uma vez que ele não havia esquecido que, além de pagar o próprio almoço, pagaria também o almoço de Ana como ato de cavalheirismo. Assim, depois de muito pensar, decidiu ir. Arrumou-se, foi muito animado pelo caminho pois até se esqueceu da sovinice. Chegando ao Mc Donald’s, ele encontrou os amigos e todos foram para a fila realizar o pedido. Após todos pegarem seus lanches, foram em direção à mesa. A partir do momento que começaram a comer, Aurélio instantaneamente voltou a pensar em diversas coisas estranhas. Ele pensava que o almoço não teria valido à pena, que a Ana estava interessada em seus bens e não em sua pessoa, que ele não deveria ter aceitado a proposta de seus amigos, etc, etc, etc. Então, após essa série de pensamentos ruins, não aguentou, teve um ataque de loucura e saiu correndo em direção à sua casa, deixando para trás os amigos perplexos com a sua atitude. Chegou em casa chorando. Entrou correndo pela sala e seu pai perguntou-lhe o que havia acontecido. Ele resolveu contar tudo, desde ao convite para almoçar até seus pensamentos malucos. Seu pai, assim que terminou de ouvir Aurélio, imediatamente contou para a mãe e, daí em diante, eles passaram dias e dias conversando sobre o que poderiam fazer para salvar Aurélio desse vício. Após muitas conversas, resolveram colocar o garoto numa clínica para tratamento de Transtorno Obsessivo Compulsivo. Aurélio ficou muito chateado com tal decisão, porém no final entendeu a gravidade que a situação estava tomando e finalmente concordou com eles.
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Os gatos ou (Re)escrita de Mistério De São Cristóvão
Gabrielly de Almeida Lira
O entardecer cobria o céu. Cecília olhava pela janela, o vento batendo nas rosas do jardim e o sol já alaranjado cobria o horizonte. O tempo foi passando e o céu já estava escuro lá fora, estrelas começavam a surgir aqui e ali. Quando desviou o olhar do céu, um medo tomou conta dela. Tudo parecia tão escuro! Mas o barulho do seu estômago vazio cortou seu pensamento e sua concentração. Esse jantar ainda não está pronto? A jovem de dezesseis anos sentou à mesa onde estavam o pai Carlos, a mãe Célia, Dona Clara e seu marido, e os dois irmãos mais novos da menina. — Cecília, vamos, ajude a sua avó com os pratos!- disse-lhe a mãe. Mesmo relutante, sabia que não poderia deixar uma senhora fazer todo o trabalho sozinha e nem queria fazer isso. Então, resolveu ouvir sua mãe e foi ajudar. Quando tudo estava pronto e toda família na mesa, Dona Clara, a avó, abençoou o jantar com uma oração e todos puderam comer. O jantar foi como em todos os dias, instantes em que nada de especial acontece, mas todos permanecem compartilhando suas vidas uns com os outros sem motivo algum. Depois de alguns minutos só falando, pegaram-se apenas apreciando como a família estava bem e estável. A noite quente de verão começa a aliviar seu calor com pequenas brisas refrescantes, essa foi a deixa para cada um, depois de saborear a deliciosa comida de Dona Clara, encontrar seu quarto. O pai e a mãe ficaram responsáveis por fechar todas as portas, deitaram-se pensando em como a vida vinha sendo graciosa com a família e adormeceram. As duas crianças dormiram juntas, depois de muitas histórias contadas pelo avô. Os dois velhinhos dormiram um sono tranquilo, depois de pôr os netos mais novos na cama.
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A menina, vestiu seu pijama novo de um filme sobre guerra no espaço, já ia se deitar, mas resolveu abrir a janela do quarto para dar uma última olhada nas rosas. Ah, como eram lindas! E cheirosas também! Respirou fundo e sentiu todo o jardim acolhê-la, mesmo assim, havia algo estrago, um vazio, uma ausência que não sabia explicar. Perturbada com esse sentimento revoltou-se com o jardim e com cada flor ali, jurou que no dia seguinte algo teria de mudar, de tal forma que o jardim inteiro se abalaria com sua atitude. Com esse pensamento, adormeceu. Passaram-se horas e o silêncio se intensificava, nos quartos só se ouvia a respiração daqueles que já estavam dormindo, o jardim também já estava quieto, nem os grilos se atreviam a interromper o sossego. Cecília levantou de repente, ouviu algo lá fora e resolveu seguir o som. Passou pelo corredor fazendo o mínimo de barulho possível, a cada porta que passava, imaginava o que as pessoas ali dormentes poderiam estar sonhando. Será que as crianças estariam sonhando com as aventuras desse verão? Será que os avós estavam sonhando com a família feliz e talvez mais netinhos? E os pais? Certamente, cansados demais deveriam ter desmaiado sem sonho algum. O som estava um pouco mais baixo quando chegou perto da porta, percebeu que o barulho estava vindo da roseira. Viu que eram três gatos que vinham saindo de trás das rosas, um era gordo e preto como o céu à noite e seus olhos tão escuros quanto os pêlos, Cecília quase não o viu; o outro, um gato bem marrento e esbelto com o pêlo dourado; e o último tinha os olhos vermelhos como chamas e parecia mais velho, com movimentos mais cautelosos que o dourado. Observaram-se por um bom tempo, absorvendo os detalhes e tentando entender. A menina avançou para mais perto deles, estendendo a mão como um sinal de paz. Hesitante ambos os lados, Cecília percebeu que os gatos estavam pegando as rosas, não todas, mas algumas. — Para que é isso? Os gatos miavam para ela, pareciam dizer algo, mas ela não entendia, e o perfume das rosa era ainda maior naquele momento. Tudo parecia ter sido marcado para aquela situação acontecer. Não paravam de se fitar por achar que aquilo tinha um propósito especial.
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Depois de muitos segundos, os três gatos reuniram as rosas e correram em direção ao portão, escalaram o muro e partiram na escuridão. Cecília não sabia, mas os gatos misteriosos tinham um propósito para as rosas: levaram para o cemitério e lá encontraram a cova já conhecida, sempre se reuniam para recolher as flores mais bonitas e lembrar com carinho da antiga dona. Mas hoje chegaram ofegantes e meio atordoados pelo o modo como aquela meninas os olhara. Enquanto isso, na casa, a menina inconformada caminhou de volta ao quarto, de fato queria mudar tudo e agitar o jardim, mas não dessa forma, os familiares acabaram acordando com seus passos descuidados e perguntaram o que houvera, mas ficou sem palavras, realmente não sabia o que dizer - três gatos bem esquisitos apareceram no jardim!- ninguém levaria a sério. No dia seguinte, seus olhos cansados era evidência do que acontecera. Dona Clara passeava pelo jardim de manhã e também percebeu detalhes estranhos na roseira, vários galhos cortados no talo. Muito estranho, isso não estava aqui! As crianças brincavam naquele mesmo jardim, e os avós aproveitavam o tempo no sol. Os pais arrumavam a mesa e Cecília resolveu ajudar. A brisa de verão passou do jardim pela janela, invadindo a cozinha com cheiro das rosas, aquecendo todos os ambientes e trazendo inquietação e dúvida. O que os gatos teriam dito?
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Os laços ou (Re)contando Preciosidade
Vinícius Jorge Barreto
Era manhã quando Larissa acordou assustada achando que tinha perdido o horário. Ela não poderia perder o horário bem numa quinta-feira, o dia do laço pequeno. O único laço que ela gostava. O que chamava menos atenção dos adultos. O único dentre todos os outros que a mãe dela obrigava a usar. Meninas usam laços. Larissa olha para o relógio e vê o seu rosto pálido e magro refletir no visor. Ainda eram seis horas, sem atrasos no dia de hoje. A preguiça de levantar e fazer tudo de novo era grande, porém a mãe já estava a gritar pela menina de quatorze anos. Levantou e colocou as pantufas de coelhos. Foi ao banheiro e mergulhou o rosto na água fria. Água fria tira o sono. Escovou os dentes e desceu correndo escadas abaixo. — Para que a pressa? — Nada, mãe. Devorou o café e foi correndo se arrumar. Com muito esforço, conseguiu colocar a meia calça. A saia e a camiseta do uniforme vinham logo depois. Desceu as escadas, mas, dessa vez, nas pontas dos pés. Abriu a porta. Finalmente hoje era um dia que não precisaria usar laço. — O que você está fazendo? — Indo para a escola, mãe. — De novo Larissa? De novo tentando sair antes da mamãe arrumar seu cabelo? Sente aqui, agora. Foi por pouco. Larissa sentou na poltrona da sala de televisão. A mãe começou a puxar os cabelos para fazer o rabo de cavalo. — Aí! — Não reclama.
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O laço é amarrado com força. A menina de cabelos escuros e longos se sente agora como se estivesse presa. — Agora sim, você está pronta. Larissa segue para a porta. Agora, é andar até a escola. A caminhada da morte. A caminhada dolorosa. A caminhada do laço. “Será que alguém vai me deixar triste de novo?” pensa solitária enquanto caminha. Depois de vários passos apertados, é possível ver o último andar da escola. Longe ainda. No caminho, Lari tem sua mente cheia de pensamentos. O maior deles é o laço. “Para que usar laços?”. Laços chamam a atenção dos adultos. Meninas usam laços. Os amigos fazem a cabeça da Larissa se sentir confusa. Todos têm amigos. Larissa não tem amigos. “Será que isso também é culpa dos laços?”. Mas, meninas usam laços. Finalmente escola. Não tão finalmente ainda. Falta chegar na sala de aula. Até lá muitas pessoas irão olhar para ela. Dito e feito. “Culpa do laço”. O sinal do fim da aula toca. Larissa leva um susto. Hora de ir para casa. Tudo de novo. A Angústia de andar rápido e chegar em casa é gigante. Mas hoje foi tudo bem. Casa. Quarto. Lições de casa feitas. Banho. Janta. A hora da janta é sempre a mesma coisa. — Como foi a escola hoje? — Normal. Hoje tudo correu bem. A menina come devagar o prato de macarrão à bolonhesa que a avó dela preparou na quarta. Larissa não gosta de comida requentada. Não reclama de nada. Subindo para o quarto, ela sente uma vontade gigante de chorar. É a ansiedade de saber como será o dia de amanhã. Uma cápsula de rivotril. Hora de dormir. Sexta-feira. A bela adormecida acorda novamente antes do despertador tocar. Dessa vez aliviada. “Tomara que hoje o dia seja perfeito como ontem’. Pantufas e banheiro. — Bom dia, mãe. — Bom dia, que animação é essa, filha?
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— Estou ansiosa…- Antes de acabar a frase, Larissa repara no que está na mão da mãe dela. O laço. Hoje é dia de laço amarelo. — Tchau, mãe. —Tchau, boa aula. O fato de ter que usar laços acabou com a felicidade da menina. O medo e a angústia voltam. Coração a mil. Três homens que estudavam em uma faculdade vizinha caminham em direção à Larissa. “Não, não, não, não pode ser!”. Larissa passa a mão na cabeça e percebe que está de laço. “Ah não”. O desespero de ver rostos conhecidos. Os meninos passaram. Deixaram rastros na adolescente. E ela só chorava tentando esquecer dos rostos e das frases que os homens falaram. Levanta do chão. Esfrega a manga da blusa no rosto. Tira o laço da cabeça e joga no lixo. Sem mais laços por hoje. Sem mais vida. Ela não se conformava ao pensar que um raio pode sim cair duas vezes no mesmo lugar. Que absurdo! Finalmente escola. Ela já não ligava mais se iriam prestar atenção nela. Já não fazia mais diferença. O sinal toca. Lari ficou pensando o dia todo nas desculpas que iria dar a mãe por não aparecer com o laço de volta. “De novo não, Deus”. Em casa, Lari sobe as escadas correndo, está chegando o momento do jantar. O momento em que a mãe dela pergunta como foi o dia. As lições pareciam mais difíceis. Já é hora do banho. Pijama. Escadas. Descendo as escadas, ela ouve o barulho do microondas apitar. “De novo não”. Senta na cadeira. A sala de jantar estava fria. Ela sobe as escadas para pegar uma blusa. Faria de tudo para adiar o momento. O momento em que a mãe dela perguntaria como foi o dia de hoje. A mãe abre a boca para falar e as mãos começam a suar. — Onde você colocou o laço? Não achei em lugar nenhum, — Está em cima da cama. — Então vá agora pegar. — Não.
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— Oi? Você está louca de falar assim comigo, né? Só pode. — Desculpe, mas eu não vou pegar o laço — Como assim? Naquele momento ela queria que a mão fizesse a pergunta clichê. Parecia que ia demorar. — Eu não trouxe o laço. — Eu não estou entendendo. — Joguei fora! — Eu não estou entendendo! O que está acontecendo? — Laços são para meninas. Laços chamam a atenção dos homens. Eu não quero usar laços.
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Uma Ana como outra qualquer ou (Re)contando Amor Beatriz Afonso Romano
O Sol se punha em São Paulo, e Ana, sentada ao lado da janela de um vagão vazio do metrô, observava, como podia, a paisagem seca do inverno. Os galhos pontudos das árvores já sem folhas rasgavam seus olhos e sua alma, como se arrancassem sua última esperança de ver a luz do Sol tocar em seu rosto novamente. Em seu colo, havia uma caixa de madeira decorada com um crucifixo negro, dentro, sementes e pétalas de flores, algumas, já secas. Pensava em seus filhos, já homens, fúteis, com suas esposas a mercê deles e também extremamente fúteis, desfilavam pela cidade ignorando a origem humilde que tiveram. A infância vivida num apartamento quente no nono andar de um prédio bem afastado do centro da cidade, a comida simples que era servida no jantar e, na mesa, a família toda reunida esperando a hora certa para levantar e ir embora, como completos desconhecidos. Após o jantar, os meninos sempre brincavam no carpete impecável da sala, o qual ela limpava, incansavelmente e sem falhar, todas as manhãs antes de enviá-los à escola. Seu cuidado com a família era admirável. O metrô fazia curvas bruscas, fazendo Ana se mexer involuntariamente. Ela continuava submersa em seus pensamentos, sua mente era barulhenta, as recordações vinham rápidas, violentas, como tiros em sua alma. Sentia falta de sua família, de sua antiga rotina de limpar, cuidar e mandar os filhos à escola, para ela, aquilo era a vida perfeita. Havia chegado no fim da linha, as portas do vagão se abriram e Ana se viu obrigada a descer. Ela segurava a pequena caixa com medo, nunca havia estado ali antes, não sabia que lugar era aquele, não sabia nem o motivo de ela estar ali. Foi quando uma brisa suave bateu em seu rosto, como se dissesse que estava tudo bem, e a fez recordar da época em que observava a rua através da pequena janela do nono andar. Aquilo lhe trouxe um sentimento de paz e, por um momento, manteve a calma. Saiu da estação.
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A rua era caótica, as pessoas pareciam desgovernadas, o céu cinza lhe devolvia a angústia de ter deixado o tempo passar. Com dificuldade, atravessou a multidão e avistou um homem revirando a terra de um canteiro no parque do outro lado da rua, aquilo a deixou intrigada, como no meio do caos um homem estaria mexendo calmamente na terra? Decidiu então ver mais de perto, atravessou a rua atordoada e ficou ali, parada, na calçada observando o velho homem revirar a terra com delicadeza e plantar algumas sementes enquanto pétalas saiam de uma caixa idêntica a sua e partiam com o vento. Incapaz de se mover, Ana ficou ali observando o pequeno recipiente de madeira com um crucifixo negro por tempo indeterminado. O homem parecia não vê-la, era como se ela fosse uma simples sombra, nada mais. A mulher, sem rumo, adentrou ao parque e se sentou no gramado encostando em uma cerejeira, a sua frente havia um baobá, no balanço, dois meninos disputavam quem conseguia chegar mais alto, um casal dava comida aos patos que nadavam tranquilamente à beira da lagoa e uma mulher corria despreocupada. Ana se perguntava como aquelas pessoas estavam alegres e tranquilas naquele dia tão cinza, naquele lugar tão caótico, ficou ali imaginando todas as possíveis respostas por horas, até que o frio da noite a expulsou dali. No caminho de volta à estação, Ana se deparou com o velho que mais cedo mexia com a terra do canteiro. Sem dizer nada, o homem pegou as mãos dela com cuidado e a levou para debaixo do baobá, abriu a caixa da moça, retirou as sementes e as entregou em suas mãos, Ana, sem entender, repetiu as ações do velho homem e plantou todas aquelas sementes deixando sua história no planeta. A brisa suave, que tocara seu rosto mais cedo, carregou sua alma junto às pétalas, libertando Ana de sua própria prisão terrena.
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A gravidez ou (Re)contando A galinha
Arthur Lopes Figueiredo
Joana era uma mulher simples, dona de casa, casada, não tinha nem pai nem mãe. Era uma mulher com pouca autoestima, depressiva. Não tinha amizades, era apenas ela e seu marido. Morava em uma vila pequena e simples. Todos os dias, ela fazia sempre as mesmas coisas: acordava, tomava seu café preto, arrumava a cama, lavava louça, preparava o almoço, almoçava, tirava um cochilo, quando acordava, ia para janela e olhava todas aquelas pessoas da vila conversando. Eram todos amigos menos Joana que invejava todas as amizades da vila. Quando saía de casa, ninguém reparava nela, apenas ignoravam-na. Um dia, Joana, fazendo suas tarefas de casa, acabou passando mal. Então, resolveu parar tudo o que está fazendo e se deitou em sua cama para descansar um pouco. Passou algumas horas e Joana se sentiu melhor. Levantou-se para continuar suas tarefas. Naquele dia, ela tinha que ir ao mercado para comprar mistura para o jantar. Ao sair de casa, Joana desmaia em frente a sua casa, na calçada. Sua vizinha vê que ela caiu no chão e ligou imediatamente para uma ambulância. Ainda estava desmaiada quando a ambulância chegou, levando-a ao hospital. Quando acordou, estava no hospital em um quarto bem arrumado. A enfermeira entrou em seu quarto para ver seu estado e contar o que acontecera. Joana ficou toda lisonjeada por estar tendo atenção. Então a enfermeira perguntou: — Como está se sentido? — Bem, um pouco fraca e com fome, porém estou bem.- Respondeu vagarosamente.
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— Tenho uma notícia para te dar - disse a enfermeira - você está grávida! Joana abre um sorriso no rosto e se emociona. A enfermeira continua: — Porém, agora você terá de se acalmar, você ainda está muito fraca, tente dormir um pouco, ao acordar te daremos alta. Joana caiu novamente no sono, quando acordou, o médico entrou em seu quarto, liberando a sua saída do hospital. Quando chegou em casa, seu marido já estava lá e todo preocupado: — Onde você estava? Cheguei e não te achei, fiquei preocupado. Joana, toda ansiosa, deu a notícia ao seu marido, que ficou mais preocupado ainda. — Amor, estou grávida. — Como assim, grávida? E agora? Terei que arranjar dois empregos para criar esse filho, outra coisa não quero que você faça muito esforço durante a gravidez, irei contratar uma empregada para fazer suas tarefas. Meses se passaram e Joana já estava com uma barriga bem grande e todo esse tempo ficou sem sair na rua. Porém, um dia, a empregada faltou e Joana precisou ir ao mercado para comprar os ingredientes para o jantar. Afina, o marido chegava do trabalho cansado e faminto. Ao sair à rua, a vila toda parou para observar a sua barriga chamando atenção. Várias mulheres e homens acabaram vindo conversar com Joana, oferecendo ajuda. Voltando para casa, sente uma dor forte e correu direto para o banheiro; foi quando percebeu que estava perdendo o bebê. O episódio foi choque para o marido e para a vila toda. O tempo foi passando, a empregada, que segundo o marido já não servia mais, foi demitida. A vida de Joana voltava à antiga rotina habitual.
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Solidão acompanhada ou (Re)contando O Jantar Marianna Cordelli P. P. Oliveira
Em uma noite quente, no Rio de Janeiro, Roberto chegou em casa, depois de um longo e exaustivo dia de trabalho, e decidiu sair para jantar com a sua esposa e filhos. Foram a um restaurante super chique em Copacabana que sempre frequentavam. Ao chegar ao local, enfrentaram uma demorada fila de espera, seus filhos adolescentes demonstraram insatisfação pelo longo tempo de espera e logo pegaram seus smartphones e entraram em suas redes sociais. Sua esposa, uma empresária muito bem sucedida, acabou recebendo uma ligação de uma cliente. Roberto se sentiu sozinho e um pouco triste, porém tentou acreditar que essa solidão seria algo momentâneo. Após mais de uma hora, a mesa estava finalmente pronta. Todos se sentaram, pediram suas bebidas e pratos principais. O homem tentou começar uma conversa com sua família, mas todos estavam mais preocupados com suas vidas e status virtual. Depois de um tempo, Roberto se depara com um homem já de mais idade sentado na mesa a sua frente. Maurício, um senhor já com oitenta anos, médico aposentado, viúvo, com três filhos já criados, sete netos. Um homem sozinho. No momento em que ele viu Maurício, mesmo sem o conhecer,sentiu-se igual àquele senhor. Um homem sozinho, porém acompanhado. Os pratos chegaram e, naquele instante, Roberto pensou que a situação iria melhorar, mas não foi o que aconteceu, todos comeram em silêncio, não fizeram nenhum tipo de comentário, nem criticando a comida e muito menos a elogiando. Em um determinado instante, o homem voltou a observar o senhor, parecia que estava se vendo no espelho só que com uns 35 anos a mais. Maurício estava com um semblante triste, até que uma lágrima caiu de seus olhos, parou de comer, pagou a conta e foi embora do restaurante.
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Roberto ficou em choque com a situação, viu que o tempo passa, a idade chega e se ele já se sentia solitário ainda jovem, imaginou como seria dali a uns anos. Ele pagou a conta, entrou em seu carro e decidiu tentar dialogar com sua família, disse tudo o que o incomodava. No momento em que ele começou a falar, viu que ele não era o único que pensava daquela forma, sua esposa também, mas os negócios e o dinheiro falavam mais alto que a diversão dos momentos em família. Seus filhos não ligaram para o que ele falou, continuaram no celular. Daquele momento em diante, Roberto teve certeza que aquela cena se repetiria para o resto da vida e tendia a piorar cada vez mais. A tecnologia nos dias de hoje acaba tendo mais valor que uma conversa entre familiares e amigos.
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A pulseira ou (Re)contando A imitação da rosa Vitória Machado Fernandes da Silva
Riley era a responsável pela organização de tudo antes do tal encontro. Encontro esse com velhos amigos, onde iria com seu vestido azul. Estaria linda e encantaria a todos os olhares, como não fazia há muito tempo. Will chegaria logo, eles entrariam no táxi e partiriam para uma noite alegre com os amigos, pois há anos não se divertiam como tais, apenas dividiam a vida, como marido e esposa. Veriam Wolfgang e Kala e conversariam sobre as novidades no bairro onde costumavam morar todos, mas que agora apenas o casal bem sucedido o faz. Parou para se observar e viu que estava ficando velha, pois estava cheia de marcas de expressão e rugas, mesmo tendo apenas 37 anos. Seus olhos cor de mel e cabelos loiros não eram mais os mesmos de quando se casou. Agora, possuíam características que a deixavam com o rosto de uma pessoa mais experiente, menos sonhadora. Teve uma filha uma vez, mas com as condições do parto, a criança não conseguira sobreviver, o que era lembrado constantemente por sua memória. Será que existe alguém que, um dia, conseguirá entender a dor que ela sentia, a falta que lhe fazia saber que sua única chance de ser mãe fora perdida há muito e agora não restava mais esperança suficiente para tentar de novo? Percebeu, assim que olhou para o relógio, que, mais uma vez, se perdera em seus pensamentos e memórias, e lembrou-se que ainda não havia tomado seus medicamentos. Pegou um copo com água até a metade. Pegou também seus comprimidos, um branco e um amarelo. Lembrou-se do que seu médico disse. Os amarelos tranquilizariam suas angústias e a ajudariam a não se sentir triste. Os brancos fariam com que suas náuseas e tremedeiras acalmassem.
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O único problema seria o sono que viria mais tarde, quando estivesse ouvindo o casal de amigos falar sobre seu novo animal de estimação, um cachorro que comia tudo o que via pela frente. Olhou novamente para o relógio. Levou um susto ao ver quanto tempo havia perdido. Colocou os remédios na boca e os engoliu devagar com a água. Sentia a sensação de algo gelado descendo seu corpo. Lembrou-se de que ainda não havia passado a camisa que seu marido usaria. Uma camisa branca feita de algodão, de cor mais clara que as nuvens que viu hoje, quando foi na biblioteca buscar um novo livro para se distrair. Pegou a obra mais famosa do seu novo escritor favorito, um moço islandês, bonito, de olhos azuis, que visitaria sua cidade dali a um mês. Passou também na nova loja da esquina, que vende roupas de segunda mão, porém bonitas e muito confortáveis. Comprou lá uma pulseira, de tamanho único e, por isso, muito grande para o seu pulso bem fino. Porém, era uma pulseira linda, com detalhes que imitavam diamantes. Ficaria perfeita no braço de uma pessoa mais morena, assim como era Kala. A pulseira era belíssima e nada se comparava a ela. Era perfeita! Pensou em dá-la à amiga e, por um instante, a ideia a incomodou. Mas será que, se não desse, essa ideia a deixaria ansiosa de um modo que, apenas ao entregar a pulseira à amiga, ficaria com a sua cabeça menos pesada e conseguiria, enfim, superar esse sentimento de inferioridade e inveja? Os pensamentos de Riley foram interrompidos com os passos lentos e pesados de Will entrando no quarto. O marido ficou surpreso, não porque a esposa não estava pronta, como se isso não fosse de se esperar, mas porque, ao entrar no cômodo, viu algo que não via há um bom tempo. Um sorriso. Um grande sorriso alegre por parte de sua companheira por conseguir se superar, pelo menos dessa vez, em muito tempo. Will abriu seus braços de um jeito emocionado e confuso ao mesmo tempo, simplesmente por não saber porque sorriam. Mas a surpresa fora tão boa que pouco lhe importava o motivo.
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O pudim ou (Re)contando A imitação de rosa
Luiz Henrique Massucati
Jinxx tentava se arrumar para que, quando Jake chegasse, ela já estivesse pronta e, assim, pudessem sair ao encontro do casal de amigos, Bella e Hobson. A moça tentava decidir que roupa vestiria, imaginando o que sua aparência diria àqueles que a vissem. Se perguntava se deveria usar o vestido vermelho, que destacava sua pele de um jeito sensual ou se seria melhor usar o macacão jeans que ganhara de aniversário da amiga. O marido chegaria às 20:00 e iriam de carro até a pizzaria, mas antes passariam no posto, porque o carro vivia sem gasolina, por conta da distância entre sua casa e o emprego de Jake. Ao sentarem, conversariam separadamente, os homens sobre o resultado do jogo do dia anterior e as mulheres sobre as babás de seus filhos. A roupa de Bella, detalhada ao máximo a ofuscaria, tornando seu conflito interno mais uma vez irrelevante e desnecessário. Enquanto experimentava combinações diferentes de roupas, percebeu que suas pernas já não eram mais as pernas de uma modelo que ela fora há alguns anos; tornaram-se pernas flácidas e gordas de uma mulher, mãe e dona de casa. Se deu conta de que mais uma vez havia se perdido em seus pensamentos no instante em que viu as horas. Reparou também que não havia tomado seus comprimidos ainda, os quais amenizariam o seu sentimento de desespero frequente. Gostava de tomar seus remédios com suco de maracujá, pois, além de ser seu suco preferido, acreditava que ajudava a acalmar, como dizia sua avó na sua infância. Pegou, então, o suco que estava pronto desde quando acordara mais cedo para separar as coisas das crianças, que ficariam em casa com Angélica, sua prima e babá dos pequenos.
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Ao olhar o relógio novamente, se desesperou com o tempo que seu devaneio tomou, apesar de parecer breve. Encheu o copo quase até que transbordasse. Tomou seus comprimidos e correu de volta para o quarto a fim de terminar de se trocar. No caminho, deparou-se com um pudim que havia comprado mais cedo na padaria. Aquele pudim parecia delicioso, como se estivesse coberto com um pedaço do céu. Lembrou que o doce preferido da amiga era o pudim que ela fazia nas tardes em que a visitava e pensou que talvez devesse levar um pedaço para ela mais tarde. Mas porque deveria? Se o pudim era tão bom, porque não comia sozinha enquanto via um filme à tarde? Por que não guardava para comerem no jantar do dia seguinte, todos em família, enquanto sua menina mais velha falava sobre o trabalho de química que estava fazendo com o menino de que gosta? Mas pensou que, se o pudim era assim tão perfeito, merecia ser comido por todas as pessoas que conhecia, ainda mais se a pessoa também fosse perfeita. Então, simplesmente parou de pensar por um instante, colocou um pedaço do pudim em um pote separado e foi terminar de se arrumar, sendo, então, interrompida pelo seu marido que a observava da porta, com um sorriso orgulhoso e confuso. Jake havia entendido tudo o que se passara na cabeça da esposa e, por isso, passou com o carro na casa dos amigos, entregou o pote com o pudim, cancelou seu encontro na pizzaria, voltando assim para casa a fim de que pudesse aproveitar o resto da sua noite com sua família, sem se preocupar com nenhum outro pensamento negativo que ameaçasse lhes perturbar.
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O Desamor ou (Re)contando O Búfalo Beatriz Laselva e Vinícius Bellangero Fabiano
Inverno. A maldade e o ódio estavam lá. Até a mãe abandonou o filho no meio do nada, sem nenhum remorso. “Ah não. O mal de novo, de novo não.” , resmungou a mulher agasalhada no sofá da sala, com o controle da televisão quebrado na mão. Trocava de canal. Remoendo-se ao tentar entender de onde vinha tanta maldade, para em um canal que achou ser diferente, com mais cores e uma música de fundo. Era só o bordão do noticiário. Achou errado. Era a mesma coisa, mas agora um homem tinha feito sua esposa sofrer até o último segundo. “Imundo.” disse a mulher em um tom baixo. Continuou no mesmo canal, com os olhos fixos na imagem, cheios de lágrimas de raiva. Tentou achar um ato de amor, carinho, compaixão. Tanto faz, estava impossível. Foi ao banheiro, nem encostou no celular. Raiva das mensagens. Desgostosa sobre si mesma de ter raiva das mensagens. Voltou para onde estava, cantinho desarrumado, pouca luz, janela entreaberta. Frio extremo, cobertor e café com leite. Seguiu assistindo, tentando aprender a amar e não via nada além do mal, além do sofrimento alheio. Desacreditando da humanidade, seguia, firme e forte na intenção de achar apenas um ato de conforto ao coração. Só dava para escutar ela dando goles na bebida quente, estalando os beiços, o vento pela fresta da janela, sua respiração e o som do jornal que passava aos domingos. Será que ela era mesmo a pior pessoa por não conseguir retribuir o amor que o menino da faculdade tanto expressava? Ela achava que tinha amor, lá no fundo algo a fazia acreditar nisso. Celular tocou, e ela já revira os olhos ao saber que era a mensagem dele. Correndo atrás, de novo. O sentimento que batia era de nojo, vontade de sumir. Sumir só para ele.
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No som alto, um homem gritou na televisão “BARBARIDADE!” e contou a terrível tragédia da família de Minas Gerais, por causa de um simples carro, pequeno, mas valioso, um casal e seus dois filhos morreram. Assassinados. Era para ser um roubo, mas não satisfeito o assaltante, menor de idade, se tornou um assassino. Ali estava, há três horas, a televisão já no mudo, lágrimas continuavam a escorrer, legendas e o barulho dos carros da avenida. Morava em uma avenida cheia de carros e pessoas de todos os lugares, “Casais... mas, por que casais? Por que amor?”, pensava ao olhar a janela e ver aquela multidão. Rejeitou todo tipo de ligação que vinha dele, não só de celular, mas ligação de corpo e alma também. E mesmo assim, ele insistia. Agora deitada e com frio, adormeceu na esperança de acordar e conseguir assistir algo que lhe oferecesse o que procurava. Acordou. E as mesmas coisas estavam ali. Famílias arruinadas, amores mentirosos, traições, roubos, furtos, violação às mulheres, assassinatos, decepções, corrupções. Maldade. Tristeza. Amargura. Ódio. Desumanidade. Ficou o dia todo lá, parada, nervosa. Não achou o que queria, aliás, só viu o que não queria. Impaciente por não entender como alguém não conseguia retribuir o amor de alguém, não conseguia nem sentir dó. Não respondia a ele há uma semana e meia. “Como?” repetiu ela muitas vezes, aumentando o tom de voz cada vez mais. Se desesperou. Não sabia amar, não sabia nem o que era o amor. Sábia sobre ódio, ranço, desamor. Desligou a televisão. Ficou como uma estátua, escutando sua respiração ofegante, olhando fixamente para imensa tela preta. Via seu reflexo no meio daquela escura imensidão sem fim. Se enxergou. Por dentro. Só sabia chorar, nada além disso. Viu-se. Fazia parte daquela humanidade falsa. Daqueles robôs que não faziam nada além do mal. Estava se vendo na escuridão, no vazio. Viu-se por dentro. Nada além de um buraco negro. Após tantas maldades vistas o dia todo, viu-se. Ela era aquela maldade que não sabia amar. Encontrou-se, entendeu-se. Disse carinhosamente “Eu te odeio.” para seu reflexo. Forma carinhosa de dizer o quão repugnante é, mas ao mesmo tempo, era ela mesma.
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Meus Pêsames ou (Re)contando Feliz Aniversário
Clara Almeida Baptistão
Sábado à tarde. Um caixão. Uma música triste ao fundo. Pessoas que chegam. Era uma noite fria quando ele se foi. Dona Luísa fora a única a cuidar das questões funerárias, com ajuda de sua sobrinha, é claro. Não tinha mais forças para lidar com essas coisas, apesar de a falta de vida ser muito familiar para ela. Desde que chegou, Dona Luísa não saiu da frente do caixão, para o qual olhava estática. Os familiares que chegavam, todos de preto, pareciam não se importar muito. Era possível escutar conversas durante o minuto de silêncio. Provavelmente algum papo furado entre as filhas de Luisa, que, desde que saíram de casa, só retornaram para pedir dinheiro ou fingir que passaram um tempo com os pais quando, na verdade, apenas postavam uma foto em suas redes sociais e simplesmente não davam a mínima para os acontecimentos recentes. Vidas de fachada. Maria Laura, a sobrinha, vivia em função de cuidar dos tios. Não por escolha, lógico, mas por falta de opção. Todas as outras mulheres da família tinham empregos e maridos que, inclusive, não fizeram questão nem de comparecer. A menina parecia estar aliviada. Menos uma boca para alimentar. Em meio a tantas atuações dramáticas e falsas empatias, um celular toca. As filhas, netos e sobrinha dirigem seus olhares ao telefone, que é atendido sem nenhuma cerimônia pela filha mais velha da senhora, que continua estática, com olhos fixos no caixão, mas ouvidos atentos à conversa baixa: “Eu precisei vir. Fugir dos aniversários eu até conseguia, mas do enterro não teve como, iam achar que eu não tenho a mínima consideração por essas pessoas.” Pessoas. Meras pessoas.
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Ainda era possível escutar sussurros entre as mulheres. Coisas como “Você vê que a mãe não se move desde que chegamos?” ou “Eu acho que ela não se importou tanto assim com a morte.” Ela se importava. Não se movia, pois a tensão instaurada entre seu corpo e mente não lhe permitiam. Aquele encontro se tratava de uma reunião de corpos, mas não de almas. Aquilo a corrompia por dentro. Em meio a tantas pessoas aparentemente alheias a toda a situação, Dona Luísa sente uma criança abraçar suas pernas. Era seu neto Pedro. O único pelo qual sentia amor de avó. O único membro da família que a entendia, apesar de tão novo. Naquele instante, todas as suas tensões pareceram cair por terra, e seu instinto fez com que devolvesse o abraço. Em um momento raro de silêncio, pronunciou as únicas palavras por ela ditas naquela tarde nublada: “Você é o que sobra dessa família, meu filho.” Todas as mulheres e outros netos encararam a senhora com desdém. A esse ponto, ela já havia voltado à sua posição de estaticidade. Então, direcionaram seus olhares à sobrinha, que devolveu com gestos de incompreensão. “Eu nunca mais entendi o que essa velha pensa. Parece que nada do que ela diz faz sentido algum.” O caixão baixou. O silêncio completo finalmente aparece. O olhar de Dona Luísa, porém, permanece no horizonte. A noite cai, as filhas todas pegam seus filhos pelos braços e, ainda com lágrimas falsas escorrendo pelos olhos, se despedem umas das outras. Passam pela mãe com indiferença e apenas tocam em seus ombros, como uma forma de despedida, ainda que primitiva. Pedro novamente abraça a idosa. “Até a próxima, vovó.” Até a próxima. A velha sabia que aquela família só se reunia em funerais e, raramente, em aniversários. Uma única lágrima genuína escorre do rosto de Dona Luísa naquele momento. Para ela, não haveria uma próxima vez.
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