3ª Série do Ensino Médio - Recontando Sagarana de Guimarães Rosa

Page 1

1


Sumário Solange Galeano de Toledo ...................................................................................... 04 Pietra Inoue Comenda e Leonardo Moteo............................................................. 12 Gabriela P. Guerra e Manuel André S. Risco.......................................................... 14 Ania M.Martins Fontes e Gabriela Amâncio........................................................... 18 Gabriel Goya e Gabriel Ponte Quaglia .................................................................... 21 Giulia Garbin e Lucas Siqueira ................................................................................. 27 Kauê Rangel Jordão e Mateus Martins Sgarbi ...................................................... 30 Arthur Nicolino e Kaiode Akami Simões................................................................. 33 Edivaldo José Ciryllo Rangel Júnior e Giovanni Antonini Contente………….... 35


Apresentação Este volume foi escrito por dezessete mãos e tratou-se de um projeto de redação para a 3ª série do E.M. que visava a contribuição com o processo de produção escrita, entendida como trabalho, e dar condições de interpretação dos contos de Guimarães Rosa e de produção textual aos alunos, com foco nas etapas do planejamento, escrita, revisão e reescrita do gênero discursivo Contos. A proposta foi a seguinte: após a análise dos contos de Guimarães Rosa, os alunos deveriam reescrevê-los, preservando o elemento condutor da narrativa e observando o tratamento dado à linguagem. A sequência de atividades apresentou a seguinte organização: os alunos foram divididos em duplas e cada dupla deveria analisar um conto de Sagarana, extraindo, de seu enredo, o “fio condutor” da narrativa e o trabalho com a linguagem dispensado pelo autor do livro à obra; na sequência, deveriam apresentar a análise para a turma e iniciar o processo de reescrita do conto, fazendo as devidas observações da proposta dada pela professora. Em Sagarana, Guimarães Rosa apresenta um regionalismo de novo significado: a fusão entre o real e o mágico, de forma a radicalizar os processos mentais e verbais inerentes ao contexto fornecedor de matéria-prima, traz à tona o caráter universal. Os enredos desembocam sempre numa alegoria, e o desenrolar dos fatos prende-se a um sentido ou "moral", à maneira das fábulas, apólogos ou parábolas. Além disso, os narradores de Sagarana têm o estilo marcante criado por Guimarães Rosa, cuja principal característica é a oralidade. Todas essas características, acima apresentadas, deveriam ter sido mantidas na “recontagem” das histórias. Este volume não segue a sequência original do livro de contos Sagarana, mas o leitor poderá encontrar referências a esses mesmos contos logo abaixo do título escolhido pelos alunos para suas recontagens. É importante, ainda, observar que as epígrafes, trechos que encabeçam cada conto e são tomados da tradição mineira , dos provérbios e cantigas do sertão, foram mantidas tais como aparecem na obra , pois acabam por resumir ou manter estreita relação com o enredo de cada um dos contos que antecedem.

3


Ação e (re)ação: Uma releitura de A Hora e a Vez de Augusto Matraga Solange Galeano de Toledo “Eu sou pobre, pobre, pobre, vou-me embora, vou-me embora ...................................................... Eu sou rica, rica, rica, vou-me embora, daqui!...” (Cantiga antiga.)

“Sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão.” (Provérbio capiau.)

João Valentão era o chefe da boca no Morro da Babilônia. Nada piedoso, matava velhos, mulheres e crianças; era só atravessar meio atravessado seu caminho e ele não se fazia de arrogado: um tiro apenas, certeiro e rápido. Não desperdiçava balas. Sua mulher e filha viviam trancafiadas no sobradão do alto do morro. De lá tinham vista privilegiada da praia de Botafogo, comiam do bom e do melhor, um luxo. Mas não triscavam para fora do cafofo, pois temiam represálias e agressões de João. O negócio não ia bem: muita gente de olho em seu posto. As biqueiras vendiam pouco, morros vizinhos roubaram-lhe a freguesia. João já não conseguia bancar seus capangas e Tico Mulato, seu braço direito, dissera que os chegados não estariam para sempre a seu lado e, pior, Joca do Ouro já estivera pelo terreiro sondando alguns, prometendo mundos e fundos se mudassem de lado. Joca do Ouro era o dono da boca do Dona Marta e vivia de olho esganado no comando da Babilônia. Sonhava com o império para si, engordar

4


o seu negócio era seu objetivo. Tentara invadir, algumas vezes, mas os canas, chapinhas de João Valentão, impediram. Em certo dia, quando Valentão voltava, acompanhado por Tico, de uma ida à cidade, foi surpreendido por vários homens, incluindo os seus, que renderam o Mulato, jogaram João na mala de um carro e saíram. Depois de um tempo andando, finalmente o carro parou, tiraram-no do porta-malas e ele se percebeu no Alto da Boa Vista, de cara para o precipício das encostas da Tijuca. Apanhou até não querer mais. Um dos golpes o jogou pela encosta. Zeca Fumaça ainda quis ir atrás, mas um dos chegados disse que João não sobreviveria aos golpes e à queda. E, convencidos, se foram. O corpo caído junto ao lixo acumulado no barranco, o mau cheiro, os insetos rondando tudo por ali. A uns metros de onde João caíra, estava Carijó e a mulher. Tateavam o terreno em busca de latinhas para vender e fazer o dinheiro da semana. Fuçavam pedaço por pedaço do espaço de terra que dava para o paredão de pedra. Carijó fez um gesto, segurou o braço da mulher para que parasse e, com o dedo indicador, fez sinal de silêncio. —Olhe ali, Das Dores! Sussurrou para a mulher. —Virgem Santíssima!! O que é aquilo, Carijó? — Sei não, mas parece presunto desovado. — Cruz credo, homem! Então, vamo embora, uai! — Vou até ali ver se é presunto. — Acho melhor você ficá bem aqui! -Ordenou. Carijó era curioso e, pé ante pé, foi para perto do corpo. Foi quando escutou um gemido. Apurou o ouvido para ver se não estava ouvindo coisas. Escutou o som novamente. Chegou bem perto e pousou a mão no homem caído. Viu que o corpo estava quente. — Das Dores, corre aqui! O presunto tá vivinho! Tá é bem machucado, mas vivinho! — O que você quer fazer, Carijó? — Vem, ajuda aqui. Vamo levá o homem para nossa casa. — Sei não, Carijó. Tô achando melhor a gente ir embora e chamá a polícia. — Vem logo, mulher! Se ele ficá aqui, vai morrer.

Canas: policiais.

5


Levaram João para um barraco de madeira escondido, bem perto do paredão de pedra. Entraram e o puseram-no numa esteira perto do fogão. Aqueceram água numa lata, limparam os ferimentos. Das Dores procurou fora do barraco erva de Santa Maria para que, com a gordura do porco guardada num pote no armário, pudesse fazer um unguento sobre os ferimentos do homem. Foram dias de cuidado. João, às vezes, delirava, gritava coisas sem sentido, mas a febre já o deixara. Carijó chamara um amigo, pai de santo, para benzer o moribundo e todos os dias Pai Chico passava no barraco para saber do homem. Aos poucos, João foi tomando consciência da própria vida. Acordava, olhava para o casal de negros, olhava as tábuas do barraco, inspirava profundamente e voltava a fechar os olhos. Não se sabia se estava acordado ou não. Várias vezes por dia o quadro se repetia. Dia veio em que ele começou a falar com voz baixinha, bem rouca, quase inaudível. Quis saber o que acontecera e como viera parar ali. Tentou se ajeitar, mas as dores dos ossos ainda quebrados na costela não o deixaram levantar. Das Dores pediu continência. Carijó apressou-se em falar. Era um homem falador demais. João limitou-se a olhar atento. Por vezes parecia sentir alguma dor, fechava o cenho, mas desfransia a testa tão logo se sentia mais confortável. Foram meses nesse ritual. Até que, sem mais, João pediu para falar com Pai Chico. Carijó correu chamar o amigo que o acompanhou. — Chamou, meu filho?- Perguntou o homem, assim que entrou no barraco. — Pai Chico, queria fazer algumas perguntas para o senhor. — Pois pergunte, meu filho. — O senhor sabe que quase morri, não sabe? Sempre fui muito torto na vida e não merecia que Deus do céu me desse essa outra chance de poder viver, merecia arder no inferno com o resto que mandei para lá. Fiz morrer muita gente. Não perdoei mulheres, velhos ou crianças. Matei por cem vidas. Acho que ele me quis por aqui por algo importante e, como o senhor conversa aí com os seus espíritos do outro lado, será que saberia me dizer o que Deus quer de mim?

6


— João, é difícil saber isso. Ninguém entende muito do que Deus quer. Mas fique tranquilo que Ele mesmo deverá mostrar a você. Reze sempre, seja honesto e ajude as pessoas assim como foi ajudado por Carijó e Das Dores. João, já curado totalmente, saía todos os dias com o casal para recolher os descartáveis. Trabalhava duro. O sol queimava sua pele, mas ele lutava bravamente contra o calor, a fome e o cansaço. Nos momentos de folga, ajudava as crianças em uma ONG, ensinando capoeira, e frequentava o terreiro de Pai Chico. Já não era João Valentão. João Desdita era como os amigos e conhecidos o chamavam. Estava feliz. Carijó, Das Dores e João percorriam, todos os dias, muitos quilômetros à pé, empurrando uma carrocinha atrás de descartáveis. O trio já conseguira dinheiro o bastante para comprar uma casinha em Guaratiba. Era longe de tudo, mas era de alvenaria e, melhor, deles. Carijó, certa vez, pediu a João que fosse ao centro comprar, no Saara, umas camisetas para Das Dores pintar o nome da ONG e dar para que as crianças usassem na capoeira. Sem demora, João atendeu. Teria de tomar dois ônibus, um até o Terminal da Barra e outro até o centro da cidade. Já no meio do trajeto, estava perdido em seus pensamentos quando ouviu seu nome. Virou-se e deu de cara com o Zeca, irmão de Tico Mulato. — Não acredito, João! Você está vivo, homem! Pensei que os chegados do Joca do Ouro tivessem acabado com você! Quase aleijaram meu irmão. Mas, me conte, o que anda fazendo? Quero saber de tudo. João, a princípio, ficou estático, como se não tivesse reconhecido o homem. Inspirou profunda e lentamente e respondeu com o cenho fechado. — Há muita coisa que você não sabe nem vai saber. Eles quase me mataram, sim. Mas Deus não quis que eu tivesse morrido. Mas, para eles, devo continuar morto, você entendeu? — Claro, fique tranquilo. Jamais direi que nos encontramos. Mas o que anda fazendo? — Trabalhando. — Como é? - Perguntou incrédulo. — Isso que ouviu. T-r-a-b-a-l-h-a-n-d-o! E o que você sabe sobre Maria Rita e Filó? — Bem, Maria Rita foi embora com o Nego do Alemão dois dias depois de você ter sumido. A Filó foi junto, mas eu soube que o Nego botou ela na

7


vida. Ela fugiu e o filho do Joca do Ouro deu proteção a ela com a permissão do pai, mesmo a Filó sendo a sua filha. Dizem por aí que, às vezes, ela faz programa, só às vezes, mas que vive mesmo é de passar roupa para as madames lá do asfalto. João engoliu a seco, fechou os punhos. Sentiu uma onda de ódio invadir o corpo e o pensamento. Mas respirou, dominou sua mente, relaxou aos poucos os músculos do corpo, soltou os braços e abriu os punhos. O outro observava desconhecendo-o totalmente. — Bem, elas escolheram cada uma o seu caminho. Nada posso fazer. Nunca fiz nada por elas. Fui agressivo e impiedoso. Não posso voltar no tempo, assim como elas também não. Que sigam a trajetória escolhida. João levantou-se repentinamente e mal se despediu do outro. Desceu. Iria o restante do trajeto à pé. Precisava pensar. Nem percebeu a distância. Precisava estar consigo mesmo e se refazer das notícias. Pensou algumas vezes em fazer contato com a ex-mulher, mas se deteve, pois estariam mais felizes com a ideia de sua morte. Saber do destino da filha o fez sofrer e desejar a morte dos culpados. Ver que a vadia da Maria Rita desencaminhara a filha deixou-o com muita raiva. Não podia se sentir assim. Pudera, ele nunca fizera nada nem pela filha. Estava pagando pelos erros cometidos. Chegou à casa passava das seis da tarde. Carijó e Das Dores já estavam preocupados. — Nossa, homem, você demorou! - Observou Carijó. — É, eu sei. - Respondeu, pousando numa pequena banqueta a sacola com as camisetas. — Aconteceu alguma coisa, João? Você parece chateado. — Não, está tudo bem. Preferiu não comentar. Ninguém precisava saber. Aliás, o passado deveria permanecer no passado. Ele era outro homem e a sua vida pregressa não encontrava lugar no presente. — Estou cansado, andei bastante. Tomarei um banho. Disse isso e saiu. O casal não fez mais perguntas. Sentiam que havia acontecido algo, mas respeitavam o amigo. Ele falaria quando quisesse. Os dias entravam e saíam num desfile incessante. Certa tarde, apareceu por lá, em Guaratiba, diante da casa de João, um homem armado que gritava e gesticulava para outros que desciam rapidamente de um carro. Carijó parou

8


de pitar o seu cachimbo e ficou observando o movimento. João parou de ler um livro sobre a Umbanda e também acompanhou a movimentação. João atentou-se um pouco mais e reconheceu um dos homens. Era Tico Mulato. Sem pensar, abriu a porta e chamou por Tico. O Outro o reconheceu também e correu, pedindo a ajuda do antigo amigo que lhe abria a porta. Havia mais dois homens com Mulato que correram atrás do comparsa. João abrigou os três. Já dentro da casa, Tico abraçou fortemente o antigo chefe e amigo. Passados os instantes de emoção do reencontro, João quis saber do que o amigo fugia. —Depois que você sumiu, João, o Joca do Ouro tomou conta da boca. Tive que fugir, mas você sabe que muitas outras bocas me conheciam e me ligavam a você. Não tinha chance em nenhuma delas. Fui parar na casa de uma tia em Nova Iguaçu. Lá conheci o Bola de Gude que me apresentou aos colados aqui. Sabe, gente torta feito a gente não tem como ganhar dinheiro com trabalho, não. Ninguém confia. Então a gente mete os ganhos como pode. E é só o que a gente tem feito. Só que tem uns pebas querendo entrar numas porque fizemos uma casa no terreiro deles. Tentamos nos livrar dos e não conseguimos. Tivemos que abandonar a carreta e você acudiu a gente antes que perceberem onde tínhamos parado. Mas, e você, João, por que não voltou? Por que não avisou que estava vivo? — É uma longa história, Tico. O que você precisa saber é que sou um novo homem. Vivo honestamente e ganho o meu dinheiro com o suor do meu trabalho. — Impossível, João. Gente como eu e você não tem emenda. Nascemos tortos e morreremos tortos. A sociedade não perdoa e a gente também não. — Não é bem assim, Tico. Hoje eu sou o João Desdita. O Valentão morreu na Tijuca. Deus tem uma missão para mim e eu ainda vou encontrá-la. — Que missão, João? Sua missão é na rua, junto aos irmãos. — Não, Tico. Meu lugar eu ainda não encontrei.

Colados: Muito amigos Como pode: Fazer assaltos Pebas: Roceiros Numas: Brigar Carreta: Carro

9


Ficaram conversando mais um pouco. Já era bem tarde e o bando resolveu deixar a casa. Despediram-se de João e do casal, agradecendo a cobertura. Saíram e sumiram no negro da noite. Dias e noites correram com muita pressa. João, Carijó e Das Dores ainda trabalhavam muito duro. Numa tarde, depois do banho, do nada, João comunicou sua decisão: estava na hora de encontrar a sua missão. Iria embora, sem destino, para outros lugares, outras paragens. Deus haveria de mostrar o que queria. E assim o fez. Colocou a mochila nas costas, pegou o ônibus para Queimados e não olhou para trás. De lá, pegou carona num caminhão. Pouco falou. Chegando à cidade de Resende, desceu, agradeceu ao caminhoneiro e mansamente foi andando, subindo a rua mais larga que encontrou. Um pouco à frente, uma gritaria. Um homem, com idade avançada, implorava pela vida e tinha uma arma apontada para a sua cabeça. No chão, o corpo de um homem jovem. João tentou entender o que estava acontecendo. Aproximou-se um pouco mais a fim de enxergar o homem que segurava a arma. Qual não foi a surpresa quando viu que o homem com a arma era Tico. — Tico, por Deus, o que você está fazendo? — Este homem é o pai do assassino de um dos meus colados. — Calma, Tico. O homem não atirou em seu amigo. Se quiser punir alguém, que seja seu filho. — Não, João! Um de cá, outro de lá. Não me importa quem. — Tico, não vale à pena! Vamos, deixe o homem ir. - Pediu se aproximando. — Fique bem aí, João. Não se meta. — Vamos lá, Tico. - Argumentou, aproximando-se mais. — Mais um passo e atiro em você, João. Não me obrigue a isso! João não parou e Tico atirou. O tiro pegou o peito de João que caiu. Tico, arrependido, correu até o amigo. Segurou sua cabeça em meio às lágrimas. — Poxa, João, eu avisei, cara! Você me fez atirar em você, eu não queria! Por que, João?

Colados: Muito amigos

10


— Está tudo bem, Tico. - Ponderou João, com muita dificuldade. - Você fez o que deveria ser feito. Salvei aquele senhor. A vida dele pela minha. Justo, muito justo. Deus mostrou a minha missão. Dito isso, fechou os olhos com muita paz. Um sorriso em seus lábios ainda pode ser visto. Finalmente, respirou profundamente pela última vez.

11


Mandinga: Recontando São Marcos Pietra Inoue Comenda e Leonardo Moteo “Eu vi um homem lá na grimpa do coqueiro, ai-ai, não era homem, era um coco bem maduro, oi-oi. Não era coco, era a creca de um macaco, ai-ai, não era a creca, era o macaco todo inteiro, oi-oi.” (Cantiga de espantar males.)

Naquela época eu, Johnson, esteticista, recém-chegado em Osasco, não acreditava em feitiçaria e vivia zoando uma macumbeira local - a Mama Oddy - cuja casa era repleta de clientes de suas rezas, despachos, mandingas e simpatias. Muitos outros, em Osasco, estavam envolvidos com todo o tipo de bruxarias: Geisi, já muito rica e considerada por seus despachos; Marinete, que participava do Alcoólicos Anônimos, e até o Daniel obteve feitiço contra as notas baixas do professor. Certo domingo, eu tava a caminho do Pico do Jaraguá, passei perto da casa da Mama Oddy e, como sempre, tirei mór onda com a véia sem motivo. Outra vez, a caminho do parque, onde eu admirava e contemplava a natureza dos bichos, árvores e flores, encontrei o Haroldo e ri absurdos com os casos dos terríveis efeitos e poderes da oração mágica de São Marcos, que todo mundo conhecia. Naquele dia, o longo papo com Haroldo envolveu também outras pessoas: o Seu Zé, o Mano Jão, o Beto Silveira, o Pereira, o Felipe Tosta, e outros cujos nomes não me recordo agora, cada qual narrando os seus casos de feitiçaria. Eu, por brincadeira, comecei a recitar a oração proibida de São Marcos. Haroldo ficou com o maior medo e disse que era um perigo dizer as palavras daquela oração, mesmo que por brincadeira, e contou a história de Beto Silveira que, após ter sido traído pela mulher, deu uma sova nela e foi preso, acusado de agressão. Uma vez na prisão, Beto recitou a oração e, não se sabe como, conseguiu escapar.

12


Entrei de novo no mato, absorto na contemplação da natureza, recordando o tempo em que gravava o nome do meu amor nos troncos de árvores. De repente, sem explicação nenhuma, se alguma houvesse, fiquei cego. Fiquei nervosíssimo, quase morri de desespero. Mas como conhecia a fundo os ruídos, cheiros e as mínimas vibrações do mato, dos ventos e dos animais, consegui dar um jeito de sair de lá. Irritado com a demora da luz, gritei, com raiva, a reza de São Marcos. Eu, querendo esganar alguém, corri em uma só direção: a casa de Mama Oddy. Fui seguindo os barulhos e cheiros que, pouco a pouco, começavam a se tornar familiares. Assim, cheguei, de súbito, na casa daquela senhora. Desci a chibata na velha que deu na minha cabeça com uma frigideira. Teve treta por quase 15 minutos. Mas do nada, voltei a enxergar. A velha havia colado, por brincadeira vingativa, uma tira nos olhos em uma foto minha, para que eu ficasse cegueta e aprendesse a não tirar sarro de quem não me fez nada. Até hoje tenho ranço daquela velha asquerosa.

13


A volta do marido egoísta Recontando A volta do marido Pródigo Gabriela P. Guerra e Manuel André S. Risco “Negra danada, siô, é Maria: ela dá no coice, ela dá na guia, lavando roupa na ventania. Negro danado, siô, é Heitô: de calça branca, de paletó, foi no inferno, mas não entrou!” (Cantiga de batuque, a grande velocidade.)

‘ Ó seu Bicho-Cabaça!? Viu uma velhinha passar por aí?... Não vi velha, nem velhinha, corre, corre, cabacinha... Não vi velha nem velhinha! Corre! corre! cabacinha...” (De uma estória.) Gabriel era um homem simples, comum e que morava em uma cidade no interior de São Paulo, porém com uma ambição enorme por coisas sem valor. Ele namorava uma linda mulher chamada Marta e seu trabalho de período integral era ser segurança de boate. Gabriel já havia tentado inúmeros outros trabalhos, mas fora demitido de todos eles por causa de seu jeito de ser e trabalhar, em outras palavras, ele era inconsequente. Uma vez, durante o seu seviço, Gabriel presenciou uma briga na boate e seu dever seria o de separar, mas, ao invés disso, ele começou a filmar e depois postou na internet. Quando seu chefe Lucas soube disso, decidiu dar uma última chance a Gabriel e disse:

14


— Gabriel, não aguento mais suas atitudes irresponsáveis e egoístas. Essa é a sua última chance; caso contrário, você está fora! — Sim senhor. Prometo que não vai mais se repetir. — Bom mesmo. Ao chegar em casa, Gabriel deu um beijo frio em Marta. — Mas o que aconteceu? Que cara de derrota é essa?- Perguntou a esposa preocupada. — É o cansaço amor, só isso. - Dissimulou Gabriel. Quando se deitou em sua cama, fechou os olhos e começou a pensar o quanto sua vida era ruim. Disse para si mesmo que precisava aproveitar a vida enquanto ainda podia e decidiu-se que fazer tudo diferente. No dia seguinte, Gabriel foi a procura de Luan, um milionário que meses antes fez uma oferta para comprar a casa do casal. Cruzou a cidade para chegar ao escritório de Luan e, quando finalmente chegou, fez uma oferta de vender sua humilde casa para juntar dinheiro e viajar com Marta. Luan aceitou a proposta, mas com um pequeno detalhe: ele dava o dobro de dinheiro se Gabriel vendesse a casa e terminasse o seu casamento. Depois de pensar bastante, a proposta foi aceita e, do dia para a noite, Marta estava sem casa e sem marido. Ao perceber que estava sem moradia, Marta pensou em se mudar para a casa de sua mãe; porém, quando já estava de saída, Luan chegou e fez-lhe uma oferta: — Fiquei sabendo da sua situação, é uma pena mesmo. Caso esteja interessada, eu posso dividir minha casa com você até que tudo se organize. — Quanta gentileza! Fico feliz com a proposta, mas não posso fazer isso assim do nada. — Como não ? Não terá problema algum, venha e prometo que estará segura e com os melhores cuidados. — Bom, se é assim, eu vou então. Enquanto isso, Gabriel foi para Salvador tentar curtir o máximo de sua vida. Ao chegar lá, alugou uma casa e, todo dia que passava, ele contratava uma prostituta diferente. E assim foi sua vida, bebendo, dormindo com mulheres diferentes e tentando preencher o vazio que ainda sentia. Esse vazio ficou maior quando ele percebeu que o dinheiro estava acabando e, então, começou a ficar desesperado.

15


A única alternativa era voltar à sua cidadezinha, entretanto sabia que sua reputação seria a de alguém que largara a mulher para curtir a vida. Ainda assim, Gabriel voltou para a sua cidade, São Paulo para tentar reconquistar a sua mulher Marta. Procurou-a e tentou convencê-la a voltar, porém ela estava muito enfurecida com a atitude de Gabriel e não aceitou suas desculpas. Pior ainda, disse-lhe que era um vagabundo que não parava em trabalho nenhum e que não a ajudava a manter a casa. Todas as palavras de Marta fizeram com que Gabriel refletisse sobre a sua vida atitudes passadas e ele acabou concluindo que, de fato, era um irresponsável e um interesseiro, pois ele vendeu a sua casa e praticamente a sua mulher só para ir para Salvador, a fim de poder curtir a vida. Gabriel, então, foi até a prefeitura para poder ver se conseguiria algo com o prefeito, seu amigo, porém ele também já tinha vacilado muito com o seu chapinha. Chegando lá na prefeitura, Gabriel tenta convencer o amigo de que mudara totalmente, e que se tornara mais responsável, com vontade de trabalhar, com vontade de mostrar para a sua mulher que ele acabara se arrependendo do que fez. Então, o prefeito decide dar mais uma chance a ele. — Escute bem, Gabriel, esta é a única chance que lhe darei. Então, aproveite-a. Amanhã você começa em seu novo trabalho às 8:00 da manhã. Sem atrasos, entendeu? Disse o amigo prefeito. — Muito obrigado, senhor prefeito, sou muito grato pela chance. Garanto que o senhor não se arrependerá. Mas antes, posso fazer só uma perguntinha? — Pode perguntar. — Quando serão as minhas férias? — Engraçadinho você, hein?! Agora, vá embora daqui! Gabriel chegou ao trabalho no horário marcado e mostrou a seu patrão a sua vontade de trabalhar, tudo o que o prefeito pedia, Gabriel ia na hora para fazer com o maior prazer. Ele, verdadeiramente, mostrou ao prefeito que estava mais comprometido. Mas faltava Gabriel reconquistar o que ele mais queria, sua mulher Marta e mostrar para ela que ele realmente mudara. O prefeito, penalizado com a situação do amigo, decidiu ajudar e pediu para que Fernando, uma auxiliar de seu gabinete, fosse chamar Marta. Não demorou muito a retornar com a moça. Ao chegar, Marta se depara, na sala do prefeito, com o seu ex marido.

16


— Que raios você está fazendo aqui, seu babaca?- Perguntou indignada. — Marta, estou aqui para pedir o seu perdão e dizer que... — Nem mais uma palavra. Não quero ouvir você muito menos perdoar, estou cansada de suas irresponsabilidades! — Eu te amo, Marta, todo esse tempo em que estive longe, consegui refletir sobre a pessoa cheia de defeitos e falta de atitudes que eu era e na pessoa em que poderia me tornar. Aquela vida é passado a partir de agora, querida. Sou um novo homem. — Você acha que é assim? O que eu ganho com tudo isso? Você me abandonou e, pior, vendeu nossa casa! — Você ganha uma coisa que sempre desejou. Estou disposto a criar uma família a partir de agora, amor. Quero uma vida a seu lado e herdeiros para compartilharem de nossas alegrias. No final, marta se emocionou e aceitou voltar com Gabriel, que a partir daquele dia virou uma nova pessoa. E o prefeito, emocionado, financiou uma casa grande para os dois morarem,descontando a mensalidade diretamente do salário pago a Gabriel, e deu os parabéns para o casal, sobretudo a Gabriel que estava transformado.

17


Um funcionário experiente Recontando O Burrinho Pedrês Ania M.Martins Fontes e Gabriela Amâncio “E, ao meu macho rosado, carregado de algodão, preguntei: p’ra donde ia? P’ra rodar no mutirão.” (Velha cantiga, solene, da roça.)

Serafim era o mais antigo funcionário de uma empresa que, agora, só contratava jovens. Ele já era idoso e só continuava lá porque sempre fora um excelente funcionário e faltavam poucos anos para que pudesse se aposentar. Mesmo assim, nunca se misturava muito com os outros funcionários da empresa: apesar de serem jovens adultos, ainda eram imaturos, quase adolescentes. Sempre tratavam Serafim com evidente desdém. Ao menos Saulo, o chefe ― que era cerca de 20 anos mais jovem―, o defendia: ele sabia do valor do funcionário para a empresa e estava ciente de sua competência. Serafim entendia pouco das modernizações da empresa e não se aventurava muito. Sabia apenas o básico sobre computadores e continuava exercendo a mesma tarefa de sempre. Estava satisfeito desse jeito. No entanto, quando faltaram funcionários jovens para uma tarefa especial, tiveram que recorrer a Serafim. Era uma tarefa com um prazo extremamente curto. Os funcionários foram separados em trios para realizá-la e todos estavam muito empenhados, tendo em vista que havia uma vaga importantíssima disponível e todos a almejavam. Estava claro que era fundamental impressionar Saulo para conseguir a promoção. Bruno e Fabiano eram os funcionários que haviam sido designados para trabalhar com Serafim. Ambos estavam insatisfeitos, mas não reclamaram. Enquanto todos os funcionários trabalhavam rapidamente, usando seus computadores e digitando muita ligeireza, Serafim escrevia tudo à mão, com

18


tranquilidade. Quando Fabiano fez uma pausa para tomar café, ouviu Silvio e Téo conversando. Nenhum dos dois havia percebido sua presença. ― Eu tenho ódio daquele desgraçado ― dizia Silvio, já no meio da conversa. ― Ele está muito errado se acha que pode simplesmente roubar minha namorada sem que lhe aconteça nada. ― E o que você pretende fazer? ― perguntou Téo. ― Eu quero acabar com a vida dele. Fazer com que ele seja demitido, só pra começar. O Bruno vai se arrepender de ter feito isso comigo. Fabiano sentiu-se na obrigação de avisar Saulo. O chefe, no entanto, não deu confiança. Disse que era besteira e que aquele tipo de coisa não aconteceria na empresa dele. Fabiano achou melhor ainda não mencionar o ocorrido para Bruno, mas ficou preocupado e se manteve atento. Todos os grupos seguiram seus trabalhos. No entanto, a tempestade que caía fez com que todo o escritório ficasse sem energia. Todos os funcionários se desesperaram, já que dependiam completamente de seus computadores e da internet para trabalhar. Sem energia, não conseguiam nem verificar os arquivos da empresa, uma vez que que só sabiam acessá-los virtualmente. Serafim era o único funcionário que não havia perdido todo o trabalho já feito até o momento, além de ser o único que sabia como encontrar cada arquivo físico da empresa. ― Inferno! ― xingava Silvio. ― Hoje aquele desgraçado escapou, mas na próxima não vai! ― Como assim, Silvio? ― perguntou Téo. ―De todos os funcionários, eu sou o que mais entende de computadores, esqueceu? Ia ser muito fácil invadir e alterar todo o trabalho do Bruno para fazer com que ele fosse demitido! Agora ele vai se dar bem porque está no grupo daquele velho, o único que não perdeu todo o trabalho! As coisas ocorreram, de fato, como dito por Silvio. Saulo, que havia se desesperado com a queda da energia ― devido ao prazo, precisavam entregar todo o trabalho naquela noite ― conseguiu concluir a tarefa a tempo graças ao trabalho de Serafim. Isso foi suficiente para que ele oferecesse a promoção disponível ao idoso, que recusou: naquela altura da vida, ele só queria sossego. Não queria saber de assumir um novo posto de trabalho.

19


Com a recusa de Serafim, dois outros funcionários acabaram sendo promovidos: Bruno e Fabiano. O chefe passou a considerá-los muito competentes após o trabalho com Serafim, pois estavam na única equipe que conseguiu concluir a tarefa. Assim, os dois funcionários assumiram seus novos postos. Serafim, por sua vez, continuou trabalhando tranquilamente como sempre, esperando sua aposentadoria.

20


O Feitiço (Re)escrita de Corpo Fechado Gabriel Goya e Gabriel Ponte Quaglia “A barata diz que tem sete saias de filó... E mentira da barata: ela tem uma só.” (Cantiga de roda.) Darius caiu numa emboscada, foi metralhado de feitiços e tiros até cair no chão. Mas, meio minuto antes, estava completamente bêbado e também no apogeu da carreira: era o “espanta-rotas”, porque tinha batido de frente, uma vez, com um tanque e outros dois lutadores, que não puderam reagir por serem apenas três. - Você o conheceu, Kled? — Mas muito! Lutei com ele em várias batalhas e pude ver de perto a sua força! — Então ele era um campeão bem forte, não?... É até estranho ele ter morrido daquele jeito. — O que ele tinha de força, não tinha de inteligência… — Mas quem tomou o lugar dele? — O irmão. Draven, o carrasco. Esse aí não tinha pena de ninguém. Qualquer um que chegasse perto dele já sentia medo dos seus machados. — E que fim levou esse? — Teria morrido de velho, mas um dia o próprio povo se revoltou contra ele e dois machados não foram o suficiente para conter a raiva de centenas de pessoas. — E depois dele, veio quem? — Swain. Um quase tirano, feiticeiro que controla os corvos. Era o terror daqueles que andavam de noite por aqui! — E ele era pior que os outros dois?

21


— Não… Ao menos ele dominava pelo medo do mistério, não pelo medo da força. Por ser mago, ele nem precisava bater nos outros pra aterrorizar as pessoas. — E como ele deixou o posto? — De velho mesmo. Já assumiu ancião, lá para os 40 anos. Ficou até os 50 e se aposentou. — Entendi… E esse tal Gangplank? — Nem me fale dele… Um desgraçado. Um pirata que veio de lá das Águas de Sentina para infernizar nossas vidas aqui… Só porque o reino de Noxus não leva os soldados pra cá, não quer dizer que precisa vir um cara de fora pra ser o valentão daqui! — Mas o que ele faz? — Ele não tem o menor respeito pelas pessoas! Nem se fosse um impiedoso que nem o Draven, que corria sem dó atrás das pessoas, mas só de quem precisava… Nem se fosse metido igual o irmão, Darius. Pelo menos ele tinha razão pra ser assim, né! Poucos conseguiam lidar com tanta gente como ele. Nem Swain era tão tirano assim. Agora, esse piratinha metido a xerife não passa de um mau-caráter que abusa dos outros por diversão… E assim falou Kled. Draven, Darius, Swain, Gangplank… Havia sempre um valentão na vila. Mas Gangplank não dava sinais de deixar o posto. Não havia nenhum challenger para tentar tomar o lugar. Um dia pude ver Gangplank de perto. Um homem de barbas compridas e sujas, uma mão a menos e uma luva de metal no lugar, roupas sempre amarrotadas e um hálito de morte que saía da boca. Não sei se sentia medo ou nojo dele, só sabia que era necessário me afastar daquele homem. Agora, Kled é que era um homem de boa aparência! Um yordle, baixinho, peludinho, mas que não se deixava levar facilmente pelos outros e era bem convicto de suas ideias. E não tem como falar dele sem tocar na sua fiel montaria, Skaarl. Companheira para todo tipo de viagem, é ela que o salva de todos os problemas. Das brigas do bar até levá-lo bêbado para casa. Seu único defeito era ser medrosa demais. Isso às vezes colocava meu amigo em apuros, mas no fim das contas a amizade entre ela e Kled era maior que o medo da coitada.

22


Um dia, estávamos bebendo no bar, quando Kled me conta das suas aventuras em toda a terra de Valoran, viajando pelos desertos de Shurima com os nômades, dizendo como conseguiu sua bela montaria. Foi em uma dessas viagens que encontrei Skaarl. Os nômades do deserto queriam vendê-la pra mim por duas mil e quinhentas moedas de ouro! Sei que ela valia tanto assim, mas eu não podia deixá-los ganhar em cima de mim… Comprei-a por só mil e oitocentos! Diz se não foi uma boa compra?! — Foi sim, Kled. — E agora ela vale mais de cinco mil moedas! Ele também contou da sua nova namorada. Uma linda mulher que veio de dentro do reino de Noxus, filha de um nobre. Rica, linda e poderosa. E no meio dessas histórias, as portas do bar abrem. É Gangplank, com seu jeito marrento e destemido de sempre. Ele vem e se apoiou no balcão. Pediu um copo de cerveja e olhou para nós. — Ei, você. — P-Pois não! Eu mesmo! Para Kled gaguejar, era porque o sujeito era mesmo amedrontador. Eu mesmo nem consegui responder por estar paralisado de medo. E Gangplank continuou… — Gostei da sua namorada. O que acha de me emprestar ela por um dia? Venho pegá-la amanhã, às sete da tarde. Gangplank tomou o copo de cerveja num gole só. Se virou e foi embora. Kled ficou paralisado por mais de dez segundos. Precisei jogar água nele para acordar. — Ei, cara! Acorda! Vai deixar ele falar assim com você? — Ma-mas e-e-ele… Ele… — Ele? — Ele é o valentão! Eu faço o quê? — Enfrenta ele! — Como?... — A gente dá um jeito! E então saímos de lá. Ele precisava tomar um ar, respirar fundo, colocar a cabeça no lugar. Peguei sua montaria para ele poder se acalmar mais facilmente ou até retomar a sua coragem. — Ei Skaarl… O que eu faço?

23


— Greefrglarg! — Ah… Mas e depois? — Greefrglarg! — Acho que entendi! Não sei o que os dois discutiram, mas parece que se entenderam. Enfim, no fim da tarde fomos, eu, Kled e Skaarl, procurar ajuda. Nenhum guardinha, guerreiro nem mercenário queria nos ajudar, até que nos falaram sobre Singed, um químico louco vindo de Zaun, uma cidade cheia de malucos. — Não boto fé nesse louco não… Será que vai dar certo conversar com ele? — Kled, a gente não tem mais escolha. Já está no fim da tarde e ele vem amanhã. Então é só… — Só…? Nem pense em deixar sua mulher com aquele cara! Vamos, homem! Você consegue! — Não é tão fácil assim… — Eu não disse que é fácil, mas sim que é possível! — Se você diz... E então fomos conversar com o químico maluco. — O que os senhores desejam procurando um doido como eu? — Meu amigo Kled está com um grande problema e gostaríamos da sua ajuda… — E qual é o problema? Uma doença? Poção do amor? — Não. É bem pior. — E o que seria tão ruim assim? O valentão do Gangplank? — É. — Entendi… Não, espera! Como assim? Nem eu sou tão maluco a ponto de arranjar problema com ele! — Não foi ele que arranjou problema com ele, e sim o valentão que veio nos importunar… Do nada ele resolveu que iria pegar a mulher do Kled para ele. E é amanhã, às sete da tarde. Isso vai ter um custo. Vocês sabem, né? — Sim… E o quanto seria? — Não estou pensando em quanto, e sim o quê… Que tal essa montaria linda do seu amigo?

24


— A Skaarl? Kled, você está de acordo? — O quê? A minha Skaarl? Bem… Não há o que fazer… — Mas relaxem, eu só vou pegar ela depois da briga. Afinal, se você morrer eu fico com ela do mesmo jeito, né? — Ah, sim… — Negócio fechado, então! De qualquer forma, sabem que ele usa um revólver, certo? — Sim. — Então, vou criar uma poção que vai impedir que as balas acertem seu amigo. Mas é só para a primeira, entendeu? — Sim, muito obrigado! — Mas eu preciso de ingredientes… Nada que não seja difícil de conseguir: um prato fundo, agulha e linha, uma lata com brasas, um véu de noiva e cachaça. Não deu meia hora e conseguimos tudo. Depois de entregar as coisas para o químico, ele se fechou no laboratório dele e foi fazer a poção. Isso só vai ficar pronto amanhã! Voltem aqui às cinco horas! E voltamos para casa. No dia seguinte, acordamos o mais cedo possível e fomos nos preparar para enfrentar Gangplank. Pegamos um facão para Kled e uma proteção improvisada para Skaarl, porque não deu tempo para conseguirmos mais do que isso. E, finalmente, cinco horas da tarde. Pegamos a poção com Singed e ele nos avisou: De novo, isso só protege o primeiro tiro. E lá estava Gangplank, com o revólver em uma das mãos, com um andar manco, pelas ruas do vilarejo. Todos se escondiam nas suas casas, menos eu, Kled e Skaarl. — Você está preparado para isso, Kled? — Não, mas vamos lá... E Kled, montado na Skaarl, segue de encontro a Gangplank. Ambos param quando chegam a uns dez metros de distância um do outro. Gangplank aponta o revólver para Skaarl e diz: — Ei, desmonta desse bicho e luta comigo de igual para igual. — Como se eles fossem muito iguais, né…

25


E, agora sem sua companheira para o ajudar, Kled enfrentava Gangplank sozinho. Ambos continuaram andando, até pararem a quase dois metros de distância. Kled gritou furiosamente e avançou para cima de Gangplank. Ele deu um tiro assustado e errou. Kled subiu em cima dele e se preparou para atacar, quando o segundo tiro veio. Kled fechou os olhos e… A poção salvou ele! Então ele continuou seu ataque, cortando o pirata de cima para baixo, de uma forma que não vou detalhar para não tirar a fome de quem está lendo. E, então, triunfante, Kled grita seu urro de vitória. E assim Kled foi entregar, aos choros, sua companheira de anos para o alquimista louco. Ambos se trancaram no laboratório, pois Kled não queria largar sua amiga até os últimos segundos e, depois de quase uma hora, ele voltou, feliz e saltitante. — O que houve, Kled? Singed me disse que eu posso pegar a Skaarl quando eu quiser. É só pedir pra ele que eu posso me juntar à minha amiga de novo! E assim termina a história de Kled, o mais novo valentão do vilarejo que, às vezes, foge da vigilância da mulher para montar na sua Skaarl e sair por aí esbanjando sua coragem e força, mas sem machucar ninguém.

26


Conversa de bichos (Re)escrita do conto Conversa de Bois Giulia Garbin e Lucas Siqueira — Lá vai! Lá vai! Lá vai!... Queremos ver... Queremos ver... — Lá vai o boi Cala-a-Boca fazendo a terra tremer!...” (Coro do boi bumbá.)

No caminho para o Zoológico, Zeca levava seis animais dentro do caminhão de transporte. Ele era um jovem triste e, naquele momento, desesperado. Seu pai havia falecido e ele o colocara junto dos animais, na boléia do caminhão. Sem pensar muito. Com ele, havia um funcionário que maltratava os animais, estava sentado ao seu lado, no banco do passageiro, e era conhecido como Biel. Além disso, o jovem adulto ficava cheio de graça para cima da mãe de Zeca e poderia até ser seu possível padrasto. O que seria trágico. Na boléia eram seis animais: duas cobras: Jurema e Soso; dois gaviões: Pitty e Robson; dois macacos: Robert e Peter; e o pai de Zeca, morto. Os animais começaram, mais uma vez, um diálogo muito além da capacidade de entendimento dos humanos. — O que será que irá acontecer com o pobre homem? Onde o menino irá colocar o defunto? - Perguntou Jurema, expondo seu lado mais sentimental. — Não sei, talvez eles coloquem o defunto para Wagner e Clacla comerem.- Disse Soso, respondendo à sua companheira e se referindo aos leões. — Pobre menino, não merecia tanta tristeza! - Pitty lamentou. Zeca, então, para no semáforo observando a rua em busca de seu conhecido amigo do farol. Pedro vem logo ali, à frente, cambaleando com sua muletinha, e para ao lado da janela do pequeno caminhão, olha para cima, encontrando os olhos do menino.

27


— Fala, menino! Ainda andando pra lá e pra cá com esse traste safado? Disse se referindo ao Biel que fumava um cigarro, ignorando completamente os avisos de “Não fume para o bem natural” e prejudicando a saúde de todos, inclusive a dos animais. O menino respirou fundo, sentindo os pingos de suor escorrendo por sua testa e a única coisa que pensava era em seu pai, morto e frio junto dos animais, sem vida alguma e deixando toda a desgraça para o garoto. — Acho melhor continuar quieto mesmo, seu maldito. Não ouse me estressar e começar com suas ladainhas com esse perneta inútil. - Resmungou Biel. Pedro, então, apenas levantou a mão em sinal de cumprimento ao jovem e se retirou de cabeça baixa para não ter que ouvir tudo aquilo, foi o tempo que Zeca precisou para acelerar e sentir novamente um singelo alívio consumi-lo e, depois, sumir ao pensar no que perdeu em um dia. Biel, ao notar, deixou uma risada maldosa escapar de sua boca. — Ah, garoto, pare com essa besteira. Seu pai morreu e acabou, supere. Disse colocando a mão apoiada no vidro do carro. — Olhe essa criatura sem sentimentos, eu sou uma cobra e sinto mais que esse desumano! Céus! - Disse Soso, tristonha ao sentir o clima pesado no caminhão. — Temos que ajudar esse pobre menino. Ele não pode continuar tendo esse cretino em sua vida, já apanhou tanto dele sem o ter debaixo de seu teto. Imaginem quando o caso com a mãe se oficializar. Eu tenho muita pena…Observou um dos macacos. — Vamos fazer algo, vamos? - Disse Peter animado. — Tenho uma ideia! - Disse Jurema - E se fizéssemos com que o caminhão bata do lado dele, uma pancada bem forte que mate de uma vez o desgraçado? O que acham? - Perguntou Soso com certa animação. — Não sei, não, Jurema. Colocaríamos em risco a vida do Zeca. - Duvidou Robert. — Espere, Robert, vamos deixar Soso explicar o plano. - Ponderou Pitty Como faríamos esse caminhão bater bem do lado do mala, Soso? — A gente se movimenta todos para um único lado e de uma vez. O caminhão ficará em desequilíbrio e puumm, vai bater.

28


— Como vamos ter certeza de que será o lado certo que será amassado por outro caminhão? - Questionou Robert ainda incrédulo. Soso explicou detalhadamente o plano. Então, todos toparam, pois tomaram as dores do jovem e precisavam fazer algo até o improvável para poder ajudá-lo. Zeca começou a escutar uns barulhos muito estranhos vindos da boléia onde estavam os animais e deu uma espiada pelo retrovisor pelo retrovisor para verificar se tudo estava certo. Quando o fez, viu que todos os animais não paravam de se mexer e se jogar contra a parede de um dos lados da boléia. Estranhando, pensou em parar, mas o outro fez cara feia. Cinco minutos depois de os barulhos terem se iniciado, percebeu que Biel estava inquieto no banco e não parava de olhar para trás. O jovem perguntou para o companheiro se era melhor parar e verificar o que estava acontecendo. O outro gesticulou com a mão para que prosseguisse, pois queria chegar a tempo de passar no bar. Então, quando menos esperavam, próximo a um cruzamento perigoso, todos os animais se jogaram contra uma das paredes ao mesmo tempo e o carro deu um solavanco, zapeou para um lado e para o outro, até bater contra outro caminhão gigante no cruzamento. Bem ao lado do Biel, como queriam os bichos. — Pobre, coitado, canalha. — Mais um defunto para a boléia. A confusão foi imensa. Polícia para todo lado, bombeiros, sirenes, Biel morto, preso nas ferragens. E mais um problema: os animais, sem qualquer sofrimento, precisavam seguir viagem; o corpo do pai de Zeca precisava chegar para ser enterrado, já estava fedendo. A solução foi pedir um outro caminhão de carga para que Zeca, que não sabia como explicar o acidente, seguisse viagem. A polícia pediu o caminhão do batalhão militar para transferir os animais e o corpo. E assim, Todos os animais estavam satisfeitos e felizes, voltando para o Zoológico.

29


Vingança é um prato que se come frio (Re)escrita de Duelo Kauê Rangel Jordão e Mateus Martins Sgarbi E grita a piranha cor de palha, Irritadíssima: — Tenho dentes de navalha, e com um pulo de ida-e-volta resolvo a questão Exagero... — diz a arraia — eu durmo na areia, de ferrão a prumo, e sempre há um descuidoso que vem se espetar. Pois, amigas, murmura o gimnoto, mole, carregando a bateria nem quero pensar no assunto: se eu soltar três pensamentos elétricos, bate-poço, poço em volta, até vocês duas boiarão mortas… (Conversa a dois metros de profundidade.)

Turíbio Todo era um capiau, acostumado com o trabalho no celeiro. Nascera numa minúscula cidade do interior de São Paulo. Além disso, o caipira era um homem mau, vingativo e vagabundo, porém, nessa história, Turíbio estava completo de razão. Um certo dia, ao voltar da sua viagem que fora na intenção de pescar, Turíbio Todo encontrou sua mulher, Dona Silvana, no ato com Cassiano. Naquele momento, o sangue subiu à cabeça do caipira, mas Turíbio não era burro e sabia que, caso partisse para cima de Cassiano, além de traído, ele

30


seria um traído morto, pois o amante de sua mulher era conhecido por ser um militar de respeito, forte e que mataria Turíbio como se fosse uma formiguinha, com a ponta de seu dedo mindinho. Então, o capiau, matuto como só ele e covardemente, monta plano para executar o valentão de uma forma mais segura, com um tiro pelas costas. Entretanto, seu plano inteiro cai por terra, aos pedaços, ao saber que, invés de atirar em Cassiano, o militar pecador, o caipira acabou atirando em seu irmão gêmeo, um jovem inocente. Como diz o provérbio, “notícia ruim corre depressa”, Cassiano logo ficou sabendo a identidade do assassino do seu irmão e pôs-se a procurar Turíbio. O capiau, sabendo que sua vida corria sério perigo, juntou suas trouxas, fugiu para o sertão e foi andando para o mais longe que conseguiu. Todavia, no meio dessa busca implacável, Cassiano foi adoecendo, até ficar impossibilitado de continuar a sua jornada atrás do assassino de seu irmão, tendo que buscar ajuda num pequeno vilarejo, no meio do caminho, lá pelas bandas de Minas Gerais. Nesse vilarejo, Cassiano conseguiu a ajuda de Timpim Vinte-e-um, um homem muito pobre, que tinha um filho e, devido às condições da seca sertaneja, mal conseguia alimentá-lo. Antes já tivera mais dois, porém o destino fora cruel: um morrera bem pequenininho e a outra já nascera morta. Assim, Cassiano, generosamente, e por já estar praticamente à beira da morte, deu um pouco de seu dinheiro para o Timpim comprar comida para sua esposa e filho. Em troca desse pequeno favor, pediu para Vinte-e-um aparecer por lá no dia seguinte. Ao chegar o outro dia, Cassiano foi surpreendido pelo Timpim que levou até ele seu filho, para receber bênção do homem generoso que dera o que comer para a sua família. Com o passar do tempo, Cassiano e Vinte-e-um vão se aproximando e o primeiro conta, para Timpim, a história que o levou até aquele vilarejo. Conta que Turíbio matou seu irmão e que, desde então, ele estava na perseguição do capiau para vingar a tal morte. No leito de morte de Cassiano, Timpim promete vingá-lo e jura matar o capiau Turíbio Todo, como forma de agradecimento por tudo o que o militar fizera por ele e por sua família.

31


Ao saber da morte de seu caçador, o caipira decide voltar para casa e rever sua mulher, porque estava com muitas saudades. Porém, como obra do destino, na volta para casa, o capiau acaba passando pelo vilarejo de Timpim, que instantaneamente o reconhece, e como havia prometido a Cassiano, Vinte-e-um mata Turíbio Todo com um único tiro certeiro.

32


Teste de fidelidade (Re)escrita de Minha gente

Arthur Nicolino e Kaiode Akami Simões “Tira a barca da barreira, deixa Maria passar: Maria é feiticeira, ela passa sem molhar.” (Cantiga de treinar papagaios)

Um jovem rapaz chamado Jairo, que vivia no interior de São Paulo, decide ir para a cidade grande para morar com sua tia e procurar melhorar sua vida financeira. Para isso, decide fazer uma faculdade de medicina. Assim, como estudara em escolas de pouca qualidade, ele entrou em um cursinho para fazer os vestibulares das faculdades. Nesse lugar, Jairo revê Roberta que era um antigo amor platônico dele quando vinha visitar sua tia Joana em São Paulo. Os dois brincavam muito nos playgrounds do prédio em sua infância. E já fazia uns 10 anos de quando eles haviam se visto pela última vez, pois sua tia se mudara de apartamento. Ele ficara muito feliz em reencontrá-la, porém sua alegria acabou ao descobrir que ela tinha um “ficante”. Jairo fez de tudo para saber quem era o rapaz, porém não descobriu nada. Assim, cabisbaixo, ele começou a visitar os campus das faculdades para ver qual ele preferia. Nessas idas e vindas, ele conheceu uma garota linda que fez o mundo dele virar de ponta cabeça, ela se chamava Clara e ele a achava incrível, pois além de ser uma boa atleta ela era muito estudiosa, inteligente e engraçada. Após alguns dias saindo, eles começaram a ficar, porém nesse meio tempo, o relacionamento de Roberta passava por maus bocados, fazendo com que ela começasse a “dar em cima” de Jairo. Confuso com tudo o que estava acontecendo, Jairo estava em um dilema, pois a garota de que ele gostava 33


desde criança o estava chamando para sair, contudo ele também estava gostando de Clara. Achando que estava fazendo o certo, o jovem decidiu começar a sair com as duas ao mesmo tempo, fazendo com que ele saísse um final de semana com uma e o outro, com a outra. Até que ele, enfim, se vê em um beco sem saída, pois as duas estavam querendo namorá-lo. Sem saber o que fazer, Jairo pediu ajuda para o seu professor Thiago, que decide ajudar o rapaz, mas com uma condição: Jairo teria que marcar um encontro entre sua tia e o professor. Depois de ouvir os conselhos do professor e de marcar o tal encontro, o menino seguiu sem saber o que fazer. Tinha consciência de que “mais valia um pássaro na mão do que dois voando”. Até que Guilherme, um amigo bem próximo, tivesse uma boa ideia, um “teste de fidelidade”. O plano consistia em seu amigo tentar ficar com as duas e a que dissesse a ele que já tinha alguém (no caso, que estavam ficando com Jairo) seria a escolhida e a outra, que nada dissesse,ele deixaria de “canto”. De certo ele contava que apenas uma lhe fosse fiel. Entretanto, como o ano já estava acabando, antes de fazerem o teste, Jairo fez as provas dos vestibulares e passou na melhor faculdade de medicina e nela se matriculou. Por estar contente com a meta cumprida, ele decidiu fazer o teste o quanto antes para namorar uma das garotas. Assim, com o plano feito, Guilherme tentou ficar primeiro com a Clara e depois com a Roberta. Curioso para saber o resultado, Jairo ligou para Guilherme após as abordagens, e descobriu, então, que as duas eram melhores amigas e que a Roberta somente disse estar ficando com o Jairo, pois não queria perdê-lo. Com tal descoberta, o garoto começa a namorar o grande amor dele desde a época em que era criança e Guilherme principia um relacionamento com a Clara.

34


Primo fura-olho (Re)escrita de Sarapalha Edivaldo José Ciryllo Rangel Júnior e Giovanni Antonini Contente “Canta, canta, canarinho, ai, ai, ai... Não cantes fora de hora, ai, ai, ai... A barra do dia aí vem, ai, ai, ai... Coitado de quem namora!...” (O trecho mais alegre, da cantiga mais alegre, de um capiau beira-rio.)

Dois primos nordestinos, Elias e Luizinho, moravam, Este último era casado e aquele, solteiro. Eles estavam passando por momentos muito difíceis devido à crise que assolava o país e ao desemprego em alta nas terras do sertão da Bahia. A situação estava tão apertada, que não conseguiam mais pagar a conta de água e chegaram a ficar sem comida por alguns dias. Cansados de viver nessa angústia, resolvem se mudar para São Paulo a fim de tentar buscar emprego e melhores condições de vida. O que não esperavam era que, em uma das paradas da viagem para São Paulo, em Janaúba, uma cidade pacata de 71 mil habitantes, Carla fosse conhecer um tal de Ronaldo, o delegado da cidade. Como ela era uma mulher muito bonita, Ronaldo se encantou e, conversa vai, conversa vem, de pronto, convidou-a para morar com ele. Já que Luizinho era um pé rapado, sem eira nem beira, ela decidiu aceitar a proposta do delegado bonitão. Ambos ficaram desolados e abismados com a conduta de Carla que sumiu sem dar satisfação em companhia de Ronaldo. A princípio, chegaram até a cogitar em ir atrás dela para resolver a situação com violência, porém, antes de tomar medidas drásticas, Luizinho, apesar de enfurecido, pensou bem e deixou-a ir para evitar maiores confusões. Iria tentar seguir a vida em São Paulo. Apesar de muita procura e esforço por um emprego, Elias e Luizinho não tinham muitas qualificações e tudo ficava cada dia mais difícil. Já estavam

35


quase sem nada das economias de uma vida. A situação deles não dava sinal de melhoras e, apesar de Luizinho se fingir de forte e dizer que estava tudo bem, ele ainda sentia muita saudade da antiga companheira. Finalmente Ellias consegue um emprego de ajudante de pedreiro em uma construção próxima à pensão em que estavam hospedados. Suspiraram um tanto aliviados, mas apesar do alívio, Luizinho se sentia muito incomodado porque o primo havia conseguido um emprego e ele continuava desempregado. Todas essas circunstâncias conduziram Luizinho a uma depressão e a uma forte necessidade de querer estar vivo, já que a vontade era a de morrer. A situação o impeliu para um mundo tenebroso: fez amizade com usuários de drogas e começou a fazer uso também. Uma vez que Elias tinha um emprego,saía todos os dias para trabalhar, passava nove, dez horas fora, os primos se distanciaram um pouco, mas a súbita mudança de comportamento de Luizinho fez com que Elias rapidamente percebesse que tinha algo errado e tentasse conversar com o primo. Após tomar conhecimento de onde andava o primo e o que fazia, desconcertado com o mundo e com a vida dura que levava, Ellias também se rendeu ao mundo das drogas e, claro, rapidamente perdeu o seu emprego. Foi quando os então dois usuários de craque foram morar na rua. Obviamente essa vida estava longe de ser saudável e o descaso de ambos só piorava tudo. Assim que chegou a temporada de inverno, tudo foi de mal a pior. Com ambos desabrigados e com a saúde precária, o inevitável aconteceu e os dois primos adoeceram. Pegaram pneumonia e debilitados, com os dois pulmões muito infectados, estavam com os dias contados caso não se tratassem. Entretanto, devido aos acontecimentos recentes, nem se importavam muito, tanto fazia se acordariam vivos ou não. Com o passar dos dias, os primos ficavam cada vez pior, com mais dores e, prevendo o destino trágico iminente, ficaram mais e mais amargurados e angustiados, além de estarem profundamente decepcionados por terem uma vida muito distinta do que sonhavam quando vieram para São Paulo. Já não aguentando mais essa angústia, Luizinho sentiu a necessidade de desabafar e começou a falar do passado com o seu primo. Lembrou de todos os momentos bons que viveu junto com a mulher e de como a saudade e

36


rancor ainda o assombravam. Elias sentia a sincera dor de seu primo e tentava consolá-lo, mas o que Luizinho não sabia era que seu primo, no fundo, no passado, sentira muita inveja da relação do primo com Carla, pois era profundamente apaixonado pela mulher de Luizinho, uma paixão oculta, silenciosa, sentindo-se tão carente quanto ele com o repentino abandono. Ambos conheceram Carla ainda pequenos e sentiam algo por ela desde sempre. Porém, conforme foram crescendo, Carla se aproximou cada vez mais de Luizinho, fazendo Elias guardar seus sentimentos para si. Entretanto ele nunca a esquecera. Isso corroia Elias por dentro e ele sempre se sentia muito mal por nunca ter contado nada para seu primo e, ainda pior, por nunca ter se declarado à Carla. A vida poderia ter sido diferente. Com o desabafo de Luizinho, os dois voltaram a se aproximar muito, com Luizinho sempre ressaltando a importância que Ellias tinha para sua vida. Era muito mais que um primo e até mais que um irmão. A relação deles transcendia qualquer realidade possível, era realmente a única pessoa que importava para ele. Passaram alguns dias dessa forma até que Elias começou a piorar muito e, pressentindo que estava no fim, com os dias contados, resolveu contar a seu primo sobre o seu amor escondido por Carla. E o fez sem peso na consciência. Mal terminou de falar, os dois doentes, drogados, à beira da morte, brigaram e Luizinho disse que era melhor que Elias saísse antes que ele perdesse a cabeça e fizesse alguma besteira. Apesar de chateado, Elias se sentiu aliviado por finalmente contar a verdade para seu primo e assim os dois acabam morrendo separados, drogados e pensando em Carla!

37


rancor ainda o assombravam. Elias sentia a sincera dor de seu primo e tentava consolá-lo, mas o que Luizinho não sabia era que seu primo, no fundo, no passado, sentira muita inveja da relação do primo com Carla, pois era profundamente apaixonado pela mulher de Luizinho, uma paixão oculta, silenciosa, sentindo-se tão carente quanto ele com o repentino abandono. Ambos conheceram Carla ainda pequenos e sentiam algo por ela desde sempre. Porém, conforme foram crescendo, Carla se aproximou cada vez mais de Luizinho, fazendo Elias guardar seus sentimentos para si. Entretanto ele nunca a esquecera. Isso corroia Elias por dentro e ele sempre se sentia muito mal por nunca ter contado nada para seu primo e, ainda pior, por nunca ter se declarado à Carla. A vida poderia ter sido diferente. Com o desabafo de Luizinho, os dois voltaram a se aproximar muito, com Luizinho sempre ressaltando a importância que Ellias tinha para sua vida. Era muito mais que um primo e até mais que um irmão. A relação deles transcendia qualquer realidade possível, era realmente a única pessoa que importava para ele. Passaram alguns dias dessa forma até que Elias começou a piorar muito e, pressentindo que estava no fim, com os dias contados, resolveu contar a seu primo sobre o seu amor escondido por Carla. E o fez sem peso na consciência. Mal terminou de falar, os dois doentes, drogados, à beira da morte, brigaram e Luizinho disse que era melhor que Elias saísse antes que ele perdesse a cabeça e fizesse alguma besteira. Apesar de chateado, Elias se sentiu aliviado por finalmente contar a verdade para seu primo e assim os dois acabam morrendo separados, drogados e pensando em Carla!

38



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.