Revista Curinga Ed. 23

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Revista Laboratรณrio | Jornalismo | UFOP

Dezembro de 2017 | Ano VII

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Curinga é uma publicação da disciplina Laboratório Impresso II. Revista produzida pelos alunos do curso de Jornalismo da UFOP. Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA). Departamento de Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social (DECSO). Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

REPÓRTERES

Carmem Guimarães Caroline Borges Fábio Souza Francielle de Souza Igor Mattos Letícia Caldeira Marianna França Mariani Barbosa Mayara Portugal Thiago Henrique Wigde Arcangelo

FOTÓGRAFOS

Gabriel Conbê Guilherme Oliveira Íris Jesus João Vitor Nunes Joyce Fonseca Lui Pereira Octávio Zumerle Rafaela Rissoli Rhaquel Rocha

DIAGRAMADORES

Editor de Texto Luiz Loureiro Editor de Arte Carlos Paranhos Editor de Fotografia Bruno Andrade Editoras de Multimídia Glenda Louise Mariana Moraes Mariana Storto Revisoras Ingrid Mitsue Letícia Conde

Amanda dos Santos Francisco Elmo de Oliveira Evelin Ramos Isabela Resende Jasmine Jacyara Lígia Caires Luiza Boareto Mariana Storto Mayron Brito Melissa Reis Nathalya Saiki Pedro Menegheti

Expediente

Professores Responsáveis Frederico Tavares - 11311/MG (Reportagem) Flávio Valle (Fotografia) Michele Tavares - 0001195/SE (Planejamento Visual)

Monitoras: Ana Paula Bitencourt Júlia Rocha Casting da capa: Hannah Carvalho Matheus Efgen Endereço: Rua do Catete, 166 - Centro 35420-000, Mariana - MG

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Impressão: MJR EDITORA GRÁFICA Rua Carlos Pinheiro Chagas , 138 Ressaca, CEP 32.113-460- Contagem/MG Tel.: (31) 3557-5777

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Ventre artificial

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Corpo Negro, Casa Divina Rota Indefinida

Sumário

Ode à vida

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Universo em Construção

Em busca de novas memórias

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Um Brasil de quem? Endereço de Todas Rotina silenciosa

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Aos cuidados do outro Dois tempos

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Sentidos do lar

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Ensaio: Pode Entrar

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Desafio! Não há outra palavra para caracterizar a tarefa de elaborar uma edição baseada no vocábulo “lar”. Vocábulo sim, pois não há um conceito único que o traduza. As facetas são tantas, e tão diversas... Defini-las seria como tentar responder à pergunta mais fundamental da Humanidade: “De onde viemos, onde estamos, para onde vamos?” E aí... a eureca acontece! Por que não juntarmos isso? Aproveitando as denominações das editorias da Curinga, qual seria o resultado da associação com o conceito mais básico de lar, ou seja, a casa? Ou com o leite que, puro ou com café, é utilizado em tantos lares nas manhãs ou tardes de convivência à mesa. Surge daí a simbologia de “Eu no mundo”: o leite no bule, significando o recipiente, o invólucro, a mãe Terra que nos abriga nesse oásis do universo. Coube aí a reflexão a respeito de nossa relação com esse lar, submetido a brutais queimadas nos meses de clima seco. Afinal, quando aprenderemos a cuidar e viver harmonicamente com a natureza? Mas, antes mesmo disso, o que nos envolve remete ao lar uterino, ao aconchego do qual somos retirados e, como reparação, recebemos um espaço próprio, apartado do ventre materno, mas artificialmente construído. Em algumas ocasiões, porém, o lar não é uno, mas múltiplo. Por escolha ou imposição, o lar é algo impalpável e incerto, sujeito a circunstâncias que provocam desconfortos à mente e ao corpo. Mas esse mesmo corpo pode também transmutar-se em lar, ser a casa de divindades e manifestações, organismo mantenedor de coisas sagradas. Assim como pode exigir a materialidade de um abrigo, uma construção, uma casa. Um local palpável, concreto, muitas vezes edificado por quem faz disso missão, mas só consegue dedicar-se a erigir seu próprio lar em horas poucas, quando deveria descansar de sua dura labuta. Nada, contudo, pode descrever a vã esperança de recuperar seu antigo espaço, seu cantinho, brutalmente destruído pela ganância e falta de respeito humano. Não há mais mesa para a reunião familiar. Como simbolismo da “Travessia”, o leite vertido do bule à xícara, remeteu-nos à discussão de um país que, tendo atravessado mais de 500 anos, vem negando aos proprietários originais a condição de chamá-lo de lar. Assim como, por analogia, significa a luta daqueles que por intolerância, são expulsos de seus lares e da convivência familiar. Chegamos, enfim, ao “Mundo em mim”, a determinadas situações que nos são impostas, ao leite derramado, às dores do mundo. À violência, ao descobrimento de nossas incapacidades e à submissão. Mas também recuperamos nossa resiliência, nosso poder de adaptação e superação frente às situações mais desfavoráveis. A despeito de tudo, temos a capacidade de transformar em lar os locais onde estamos e para onde vamos. É isso! Aqui está nossa casa. Esteja à vontade. Pode entrar.

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Eu no mundo paginas iniciais.indd 5

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propõe um resgate da nossa relaçào com o planeta

Em meio à devastaçao da natureza, a Biofilia

Ode à vida

Sensação

Texto: Caroline Borges Foto: Octávio Abrão Arte: Melissa Reis Modelo: Gabriela Cornélio

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O mês de setembro de 2017 foi registrado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) como o mês recordista de focos de incêndios desde o início das atividades do Instituto, em 1999. A partir de 2001, o órgão possui monitoramento por satélite do território brasileiro e mantém registros da área queimada. Em setembro deste ano, o fogo consumiu uma extensão de 140.918 km², enquanto no mesmo mês de 2001, o território correspondeu a 79.589 km². Esses dados equivalem aos territórios da Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal juntos e dão uma visão geral de um problema que se encontra ao lado. O ano de 2017, além de possuir o mês com a maior área queimada já registrada, foi também palco da maior queimada da história do Parque Estadual da Chapada dos Veadeiros, no centrooeste de Goiás. Segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, que gerencia a unidade de conservação, o que aconteceu na reserva foi criminoso. A Chapada dos Veadeiros foi tombada em 2001, pela Unesco, como Patrimônio Natural da Humanidade e, 16 anos depois, teve sua área aumentada para 240 mil hectares, quase quatro vezes mais do que quando foi reconhecida com o legado. Segundo o historiador ambiental Arthur Soffiati, doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ), atitudes como incêndios criminosos, são reflexos de uma concepção do homem, em relação a natureza, que vem de um processo histórico que começou no século XI, na Europa Ocidental. O professor usa a história de Gilgamesh, uma das mais antigas da humanidade, datada do século VII A.C., como exemplo. “Até então, a natureza era protegida por uma aura de sacralidade. Não que ela fosse intocada. Contudo, os excessos eram punidos pelas entidades sagradas protetoras. A epopeia de Gilgamesh, da Mesopotâmia, ilustra essa proteção. Gilgamesh foi castigado pelos deuses por ter destruído uma floresta e matado seu protetor”, conta Soffiati. A economia mercantilista - voltada para o mercado, visando o lucro - que começou a se constituir desde então, foi responsável pela “destruição da aura protetora da natureza e a transformou em coisa uma a ser explorada sem limites”. Nas Américas, a economia de mercado chegou com os europeus, assim como o cristianismo. A ocupação do território americano é caracterizada pela intolerância religiosa. O historiador conta que os povos pré-colombianos viam a natureza como uma coisa sagrada, protegida por entidades. “Todas as sociedades caçadoras, pescadoras e coletoras crêem em divindades protetoras da natureza porque dependem dela. Pode parecer um paradoxo que elas cacem e pesquem. Mas, os limites são respeitados. Nas sociedades civilizadas, as divindades protetoras da natureza começam a perder força”.

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Para Sofiatti, o sistema econômico vigente possui papel fundamental na compreensão de como esses limites são traçados atualmente. Para ele, “o capitalismo dessacraliza a natureza e a transforma em coisa a ser explorada. Os rinocerontes são abatidos como objetos só para obtenção de seus chifres, que valem muito como mercadoria, pois se acredita que têm poderes afrodisíacos”.

Solução? A relação do homem com a natureza é um fenômeno histórico. Uma das linhas de pensamento que aborda essa relação é a biofilia. Biofilia vem do grego bios (vida) e philia (afeição, amor) O termo foi usado pela primeira vez pelo ecólogo Edward O. Wilson, em 1984, em seu livro de mesmo nome. Segundo o biólogo e professor André Talvani, diretor do Instituto de Ciências Exatas e Biológicas da Universidade Federal de Ouro Preto, a biofilia nos remete a uma ideia quase instintiva, na qual os seres humanos se sentem impelidos a favorecer/interessar pelos fenômenos da vida, a se aproximarem e serem afetados diretamente por eles. Diante da depredação crescente da natureza, o incentivo à biofilia desde a primeira fase humana, é uma maneira de estimular a conscientização humana sobre a importância da preservação do ambiente natural e as diferentes espécies que nele vivem. Para Talvani, a preservação do natural é comparável à ética. Segundo o professor, a ética não deveria ser exigida, mas coexistir com o ser humano. Ao longo da jornada evolutiva, o homem descobriu desvios de conduta que traziam benefícios ou facilitações e a ética passou a ser negligenciada pela humanidade. Foram criadas leis e ideologias de medo/punição numa tentativa de controlar o caos social e a conduta moral da humanidade. “A biofilia acompanha a história da evolução humana desde nossos ancestrais, que mantinham uma interação próxima com a agricultura e animais para sua sobrevivência. Não precisaríamos ser lembrados que preservar o meio ambiente e respeitar a vida das demais espécies é algo intrínseco ao nosso próprio mecanismo de sobrevivência.”, observa o biólogo. Com uma visão imediata, de “quem só vive uma vez”, a humanidade não pensa no futuro. O historiador ambiental Arthur Soffiati compara a colisão do homem com a natureza: “É como um motorista correndo a 120 quilômetros até passar por uma placa avisando que existe uma ponte caída a cinco quilômetros. Se ele mantém a mesma aceleração, cairá no precipício. Se acelerar mais, a queda ocorrerá com mais rapidez. Se afunda o pé no freio repentinamente, o carro capotará. O mais ajuizado será frear o carro lentamente nos cinco quilômetros que restam e mudar de rumo.” É o que manda o juízo.

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Habitar

Ventre artificial O nascimento rompe a relação do bebê com o ventre materno. Será possível compensar esta primeira morada? Texto: Letícia Caldeira Foto: Rhaquel Rocha Arte: Lígia Caires

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Nosso primeiro lar é completo, calmo, aconchegante. Não tem teto, não tem chão, não tem contato com o ar. Dentro desta casa arquitetada e projetada, o fio gerador de energia é o cordão umbilical. É a principal nutrição da criança, segundo o ginecologista e obstetra Paulo Marchetti. “Ele é a grande ligação entre o útero e a criança, o que media tudo. As reações químicas, nutrientes, descargas energéticas. Tudo o que vai acontecer de bom e de ruim será através do cordão”. O desenvolvimento da criança dentro da barriga é instintivo e, embora muitos acreditem na conexão mãe-filho através do toque e da voz materna, não há comprovação científica da sensação direta percebida pelo bebê. “Psiquicamente, não foi comprovado que essas sensações sejam proporcionais. Claro, uma gravidez mentalmente sadia faz com que a ‘casa’ da criança seja melhor”, afirma Marchetti. Luana Cerceau, grávida do primeiro filho, acredita que essa ligação acontecerá de maneira mais sólida depois do nascimento. “Já existe, mas acho que a conexão vai vir depois que nascer, depois de ver a pessoa ali completa”. A adaptação é o termo comum entre mãe e filho durante a gravidez, já que ambos passam por processos de adequação de seus organismos. O ajustamento também ocorre, primordialmente, após o nascimento. De acordo com os estudos do pediatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott, a mãe tem papel fundamental na adaptação do bebê à realidade e no seu desenvolvimento emocional. A partir da mediação materna, a criança passa a conhecer e identificar o mundo, ganha seu próprio espaço e cresce com referências externas necessárias.

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Espaço potencial da criança A cultura do quarto do bebê começa com a industrialização, a partir da mudança na construção das edificações e costumes. O berço, de certa forma, sempre esteve presente - demarcando, assim, a individualização da criança desde o seu nascimento. A professora e pesquisadora Elaine Pedreira Rabinovich explica que a cultura do “espaço potencial” do bebê está ligado à transição entre culturas coletivistas para individualistas. “O seu começo está na emergência de sociedades coletivizadas para aquela em que o indivíduo está no centro. Hoje estamos vivendo em uma sociedade que é fundamentalmente individualizada”. O berço é um marco separatório entre mãe-filho, assim como o desmame e o dormir separado. Para o adulto suportar ver seu bebê sozinho, são criados objetos transicionais como bichinhos de pelúcia, enfeites e o cantinho próprio. Para a criança, esse ambiente é utilizado como forma de suprir suas necessidades e amenizar desconfortos - a transição entre útero e mundo exterior traz instabilidades e carências ao recém-nascido, fazendo necessário uma continuidade e estabilidade em seu cuidado. A sociedade do consumo exerce grande impacto na cultura do espaço potencial da criança. “O cantinho do bebê está cada vez mais tecnológico e computadorizado. A venda de produtos especializados foi a que mais cresceu no Brasil nos últimos anos. Tudo em crise, menos isto. Existem chupetas que permitem serem vistas à noite, baby monitors, gadgets para crianças. Vejo muitos bebês se auto-complementando com celulares, mas existe também uma consciência culposa dos pais que sentem que não deveriam estar sendo substituídos por objetos”, pontua Rabinovich. Para a pesquisadora, a cultura do consumo não permite à criança elaborar seus lutos e pequenas perdas, já que ela é invadida por produtos que estão sempre se renovando. “A artificialização do ambiente pode levar a uma artificialização de estruturas básicas. Nada substitui o contato humano, e o que os pais tentam suprir ao exagerar neste cantinho é a sua própria falta”, completa. O quarto do bebê é uma evidência do carinho e atenção dos pais, mas também de suas fragilidades. Como explica Rabinovich, a nossa cultura induz os pais a pensarem que a felicidade de seus filhos depende do consumo, criando neles, e nos pais, um “vazio” que nunca é preenchido. “Tudo isto visa substituir a mãe e o útero em sua ausência, mas a perda deste ambiente de segurança e conforto é irrevogável”.

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Identidade

Corpo Negro, Casa Divina

Braços levantados em direção ao céu. Troncos prostrados como se carregassem todo o peso do mundo nas costas. Um idioma que foge do entendimento daqueles de fora. Vozes produzindo sons indecifráveis que se somam ao barulho das palmas maximizando o volume do ruído. Corpos em êxtase. Os bairros Centro e Barro Preto, Mariana, Minas Gerais, abrigam um templo pentecostal e uma casa espírita umbandista, locais onde a cena se repete. A médium Maria Marta Ramos, responsável pela Casa de Umbanda Mãe Maria, incorpora entidades durante as sessões. “É como se você saísse do corpo, a gente empresta o corpo e a mente para uma entidade”, diz. Já o pastor Alexsandro Souza, da Igreja Missão Evangélica do Brasil, em Mariana, diz que os fiéis são moradas do Espírito Santo, mas para que ele aja é preciso que ocorra arrependimento do pecado. Dessa forma, os membros podem experimentar a manifestação da divindade, o que, segundo ele, é algo que não é entendido no âmbito da razão. “É um sentimento, uma emoção que não se sabe explicar”. Apesar das diferenças entre o credo desses dois universos devocionais, essas crenças compartilham o entendimento que o corpo humano é espaço, além de um amontoado de carne e ossos. É templo de entidades espirituais. No Brasil, esses lugares sagrados possuem uma característica em comum: a maioria deles carregam a cor negra em suas paredes. Em 2010, o pentecostalismo possuía 57,4% dos seus membros de cor preta ou parda, segundo o Censo IBGE. Superando, inclusive, os 51,9% do candomblé e da umbanda. O pentecostalismo surgiu nos Estados Unidos com a pastora Jennie Evans Moore Seymour e o pastor William Seymour, descendentes de escravos. Em seu livro A Religião Mais Negra do Brasil, o teólogo e militante negro Marco Davi de Oliveira defende que ao chegar ao país a corrente teológica pentecostal incorporou novos elementos da cultura brasileira. Isso fez com que esse segmento se propagasse por camadas mais pobres da população.

Texto: Wigde Arcangelo Foto: Rafaela Rissoli Arte: Amanda dos Santos Francisco

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Resistência pela fé Erisvaldo Pereira dos Santos, professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), acredita que há uma semelhança entre as performances das celebrações do pentecostalismo e das religiões de matrizes africanas. “Esse foi o processo pelo qual se deu a aproximação das classes populares nessas igrejas, o fato de terem um tipo de culto e uma liturgia que mais afeta a relação com a corporeidade das pessoas”, afirma o professor e também Babalorixá no Terreiro de Candomblé em Contagem. A historiadora Débora Armelin Ferreira defende que os negros usaram suas próprias peles para manterem vivas suas culturas, apesar da tentativa do dominador europeu de apagar a tradição africana. Para ela, no período da escravidão, “o corpo torna-se possuidor de valores financeiros, e foi através da expressão de suas tradições culturais que eles ‘resistiram’ à escravidão capitalista, tentando romper este conceito de serem apenas bens móveis”, escreve em O

Corpo Como Local De Discurso: artistas mulheres em África, texto de 2012. A religião e o sincretismo religioso foram uma forma de se ligarem com suas origens. O que faz acender hoje o debate sobre o que seria uma religião tradicionalmente negra. Para o professor Erisvaldo, a pessoa negra deve possuir autonomia para decidir o local em que se sente mais confortável. “O sujeito tem que avaliar não em cima de uma pressão política ou religiosa, mas tem que perceber o que há de força capaz de potencializar sua vitalidade”, afirma. Agdo Mariano é médium da Casa de Umbanda Mãe Maria e foi nessa religião que se sentiu preenchido. “A partir do momento que coloco minha roupa e a minha guia, penso que os meus problemas da porta pra dentro sumiram. Eu me sinto realizado, foi onde eu me encontrei”, afirma. No entanto, ao contrário dos casarões históricos que são protegidos por leis que, geralmente, são obedecidas, o corpo negro é visto como lugar abandonado, passível

de violação. Wall Moraes, militante negra feminista, professora e pastora da Igreja Assembleia de Deus Liberdade e Vida do Distrito Federal, defende que “o cristianismo nasceu negro. O que aconteceu foi que as brancas europeias e os brancos europeus ocuparam os espaços de poder, detinham o capital às custas da escravização das africanas e dos africanos e impuseram uma história e cultura branca em todos os setores de atividades da sociedade civil”. Até mesmo na religião, ela conta que seus avós eram obrigados a se sentarem nos últimos bancos da igreja que iam por causa de suas etnias, “tudo relacionado a Deus é branco e relacionado ao Diabo é negro”, diz.

Intolerância O médium Marcelo Ramos hoje comanda o terreiro de umbanda de Mariana junto com a mãe Maria Marta, mas carrega com ele uma lembrança negativa da escola. Ele estava em aula quando a professora perguntou sua religião. Ao responder que era católico e espírita, ele diz ter ouvido de um colega de classe: “Já que você é macumbeiro eu nunca irei na sua casa e nem irei comer nada na sua casa”. Tal desfeita foi seguida por uma cusparada. Racismo e intolerância religiosa estão intimamente ligados e, para combater esse problema, o professor Erisvaldo entende que a educação é uma saída. “Setores da educação se recusaram a entender a religião como fenômeno da nossa sociabilidade a escola precisa conversar com esse segmento e formar sujeitos para uma convivência mais amistosa, verdadeiramente solidária nas relações”. É entre essas questões que o corpo negro ressignifica o seu espaço, abandonando o lugar de marginalizado para se transformar em lares de divindades. No pentecostalismo e nas religiões de matrizes africanas, esses corpos são livres, pelo menos no momento em que o espiritual se manifesta em suas vidas.

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Alternativa

Sada Maitreya, deixou seu trabalho, e dedicindo viajar em busca de novas experiências sensoriais e culturas.

Rota Indefinida Texto: Thiago Henrique Foto: Guilherme Arte: Elmo de Oliveira Alves

Viajantes sem destino fazem dos caminhos seus lares Difícil dizer o que nos motiva a caminhar. Algumas pessoas saem de seu lugar pela sobrevivência, outras pela inadequação, para conhecer novas culturas, aventurar-se ou até mesmo são obrigadas pelo trabalho. Os primeiros povos nômades, pessoas que não tem uma habitação fixa, deslocavam-se constantemente à procura de alimentos, coletando a vegetação natural e procurando novas pastagens para o gado, para escapar de um ambiente inóspito, ou mesmo pelo desacerto ao lugar de onde estavam. Muitos povos estabeleceram-se como nômades, entre eles os Beduínos, árabes que vivem em movimento pelo norte da África e o Oriente Médio. Os Ciganos, originários da Índia, dividem-se em clãs pelo globo. Porém, com o desenvolvimento da agricultura, o estilo de vida se modificou e a vida se fixou em um único lugar. A geógrafa Alana Roos afirma que “os povos nômades foram os primeiros a desenvolverem uma técnica primitiva de agricultura, visto que eles descobriram que as sementes das frutas que colhiam geravam novas fontes de alimentos, com isso os primeiros sinais da agricultura se estabeleciam.” Com esse aparato, o deslocamento constante deixa de ser questão de sobrevivência e passa a ser um fator cultural ou de resistência.

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Contracultura A vida na estrada não está sempre ligada à sobrevivência. Em alguns momentos, viajar sem ter onde ficar, sem se preocupar com as demandas da sociedade foi um símbolo de resistência e de não aceitação do sistema vigente. Foi no século XX que essa prática tornouse um elemento comum de contracultura. Os beatniks, grupo de escritores e poetas nômades que viviam viajando de carro pelo Estados Unidos na década de 1950, são um marco desse movimento cultural. Ainda na literatura, os livros de Jack London, escritor americano do século XX, principalmente “O Grito da Selva”, influenciaram jovens a abandonar o conforto do lar e viver aventuras. Os hippies, principais representantes da contracultura nômade, eram uma comunidade que buscava romper com os valores tradicionais da sociedade e viver mais próxima à natureza. Apesar de beber dessa fonte, Felipe Augusto, ou como prefere ser chamado, Sada Maitreya, não se adequa totalmente a esses movimentos. Saiu de casa aos 24 anos, em 2014, quando, cansado de trabalhar em um bar que compartilhava com os amigos, decidiu mudar de vida após se questionar:

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“O que a gente tá fazendo aqui nos grandes centros? Qual nosso papel aqui?” Em Santa Catarina, seu primeiro destino trabalhando como tatuador e body piercing, teve contato com o malabares, atividade que seria fundamental para sua vida na estrada: “O sinal, o semáforo, a faixa de pedestres, é um palco. É ali que todas as pessoas passam, que tudo acontece.” Sada é adepto das raves psicodélicas, festas com música eletrônicas que normalmente são realizadas ao ar livre, em locais que a natureza proporciona experiências sensoriais. Sada viaja o país indo de um festival ao outro. No Brasil, a maior e mais conhecida é a Universo Paralelo, que acontece na Bahia a cada dois anos durante o réveillon. O festival existe há 15 anos e dura uma semana. Além do Universo Paralelo, Sada destaca o Festival Ressonar, que há 10 anos leva música eletrônica à chapada Diamantina durante a primeira lua cheia do ano e afirma: “Eu gosto disso, de ir para as cidades e conhecer a cultura daquele lugar, o que as pessoas dali fazem.”

Academia Com outra forma de ver o mundo, através da academia, Paolo Cetrangolo, estudante italiano de letras, veio para o Brasil por um programa de intercâmbio da Universidade de Napoli. Morando na república Quitandinha, em Ouro Preto, Paolo conheceu o que chama de sua segunda família, as pessoas que o fazem sentir em casa, mesmo estando tão longe de sua cidade natal. O intercâmbio é uma prática que proporciona ao estudante a possibilidade de compreender melhor outras culturas, o que Paolo acha fundamental para um estudante das línguas. A instituição Rotary Internacional foi pioneira nos programas de troca de estudantes desde a

Paolo Cetrangolo é italiano e veio estudar letras no Brasil por um programa de Intercâmbio da Universidade de Napoli.

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década de 1920, com a iniciativa do clube de Copenhague, na Dinamarca. Mas, os primeiros estudantes não europeus a participarem dos programas datam de 1939, quando o clube decidiu abarcar as Américas. Atualmente, o Rotary envolve estudantes de 82 países e aproximadamente 9000 estudantes por ano. É o principal programa de intercâmbio no Brasil, com 55% dos intercambistas da América Latina. Além desse programa, o Ciência sem Fronteiras, programa criado pelo Ministério da Educação em conjunto com o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, foi um dos principais programas de intercâmbio no Brasil.

Trabalho Viver viajando nem sempre é uma questão de escolha. Alexandre Ferreira, 33, caminhoneiro há 8 anos, afirma: “Não sei fazer outra coisa”. Natural de Caetanópolis, suas rotas o obrigam a ficar até 20 dias sem visitar a família, viajando de norte a sul do Brasil. O caminhoneiro considera o veículo sua primeira casa e gosta da vida de viagens porque conhece melhor o país e consegue ver paisagens incríveis. Mas, é durante a noite que a situação aperta: “Aí que bate a solidão, você fica preocupado, vai ligar pra família, corta o coração na hora. Duro da estrada é isso” Casado e com filho pequeno em casa, Alexandre quase não consegue presenciar os momentos importantes do crescimento da criança. Além de não ter muito contato com a família, passa dias sem banho e sem comer enquanto viaja, mas a vontade de ver as coisas diferentes: “O cara pra ir pra estrada tem que gostar, tem que gostar de verdade, porque é sofrido”.

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Identidade Identidade

Universo concreto “Se um pássaro com o próprio bico constrói sua casa, porque não me animar a fazer a minha com as próprias mãos?”, questionou-se Carlos Vilaró, famoso artista plástico uruguaio. As palhas entrelaçadas com gravetos, terra e argila são moldadas para se transformarem em grandes obras arquitetônicas, onde as aves, por dias e às vezes anos, constroem um local onde poderão encontrar abrigo e proteção. O João de Barro, um dos pássaros mais conhecidos da fauna nacional, é capaz de construir verdadeiros edifícios e, devido a essa grande habilidade, é popularmente chamado de pedreiro das florestas. Inspirado pelos pássaros e imortalizada no poema de Vinicius de Moraes, “A Casa” de Vilaró é cantada por várias gerações de brasileiros. Texto: Carmem Guimarães Foto: Lui Pereira Arte: Nathalya Saiki

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A origem da palavra pedreiro vem do latim: Petrarium. Relacionado às pedras. Há quem diga que a profissão seja uma das mais antigas e está presente desde o mito da criação do universo. Segundo a tradição cristã, como um construtor, Deus criou o céu e a terra em sete dias. Ao apóstolo Simão, Jesus Cristo delegou a função de edificar sua igreja e chamou-lhe de Pedro. As escrituras talvez expliquem a gênese da profissão, embora seja praticamente impossível identificar o primeiro homem que construiu e a primeira casa chamada de lar. Por mais de 50 anos, Jair Gomes Pinheiro, 74, executou com maestria a tarefa. Sua história confunde-se com a de mais de 6,8 milhões de profissionais da construção civil segundo dados do Instituto Brasileiro de Pesquisas e Estatísticas (IBGE) em 2017. Quando jovem, por razões econômicas abandonou os estudos para ajudar nas despesas de casa. “Meu pai falou pra mim e pro meu irmão se queríamos continuar estudando ou trabalhar. A gente não tinha muito dinheiro”. Contudo, enganam-se aqueles que pensam que o ofício é simples. Para ser pedreiro, é preciso grande conhecimento em geometria, matemática, estudo de solos, entre diversos outros saberes. Valéria Silva, 33, iniciou na profissão aos 14 anos. Especializou-se em pinturas artísticas, restauro, policromia. Trabalhou em mais de 150 casas, além de várias igrejas barrocas. “Comecei na área através de um projeto social e ao longo dos anos fui aprimorando. Fiz curso de pedreira, cantaria, pintura, carpintaria”. Além dos conhecimentos técnicos, é preciso dedicação, compromisso e resistência física. No currículo invejável de Jair, há três escolas, o Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (Icsa) da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), um centro de reabilitação para usuários de drogas, a reforma e restauração de incontáveis casarões tricentenários, e o próprio lar, uma bonita casa na região central de Mariana. “Até parece aquela música do Zé Geraldo. Tá vendo aquela igreja moço? Ajudei a levantar (…) As vezes, vejo algumas construções e nem eu acredito que fiz”. Oficialmente aposentado após 30 anos de trabalho na Ufop, Jair continua realizando pequenas obras nos fundos de casa. Aliás, aposentadoria total não parece ser comum neste tipo de ofício. Há sempre um amigo com uma pequena reforma para fazer ou uma obra para terminar.

(In)Visibilidade Embora seja inegável a importância dos profissionais da construção, ao longo da história do Brasil eles costumam ser silenciados. As grandes obras enaltecem as memórias dos idealizadores, mas muitas vezes, esquecemos os seres humanos por detrás de cada tijolo, pedra e areia daquela construção. O caso mais emblemático da história da engenharia civil no país aconteceu em 1971 na cidade de Belo Horizonte. As obras no Parque da Gameleira levavam as assinaturas de Oscar Niemeyer e Joaquim Cardoso e, de acordo com o jornal O Globo, de fevereiro daquele ano, aproximadamente dez toneladas de cimento e ferro desabaram sobre centenas de trabalhadores. No total, 65 mortos e mais de 50 homens feridos e mutilados. Quase cinquenta anos após a tragédia, não há no lugar memorial, placa ou homenagem às vítimas. Muitas vezes socialmente negligenciado, o pedreiro é parte da vida do brasileiro. De acordo com o Instituto Brasileiro da Qualidade e Produtividade (IBPQ), a casa própria é o nosso segundo maior desejo, perdendo apenas para o sonho de viajar. Valéria entende a importância da profissão. Sabe que cada obra é uma conquista e, por isso, esforça-se para fazer o melhor: “Não há nada mais prazeroso que entregar um serviço e ver a alegria do cliente. Hoje entreguei uma pintura e você precisava ver a felicidade da dona”. Após anos dedicados à construção civil, Valéria e Jair têm orgulho do ofício que escolheram. Valéria quer mais. Deseja criar um projeto social para jovens e adultos na Prainha, bairro onde cresceu em Mariana, para transmitir seus conhecimentos. “O dinheiro tornou o mundo egoísta. Gosto de ensinar e ajudar as pessoas. Quando fazemos isso, o pouco que temos multiplica”. Enquanto Valéria sonha, Jair tenta descansar depois de meio século dedicado à profissão. O maior orgulho não está em uma parede erguida, ou uma obra específica, mas ter proporcionado às cinco filhas a formação escolar. Todas fizeram magistério, uma delas também é graduada em administração no Icsa e estudou exatamente nas salas que seu pai ajudou a construir. Segundo nosso João de Barro, mérito total de sua filha, embora saibamos que o trabalho de Jair construiu os alicerces deste sonho.

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Habitar

Em busca de novas memórias

Após dois anos, atingidos pela barragem de Fundão permanecem à procura de um recomeço

“Eu quase que não consigo ficar na cidade sem viver contrariado”. O trecho faz parte da canção Lamento Sertanejo, composição de Gilberto Gil e Dominguinhos. A música fala sobre a odisséia de sentimentos que as pessoas passam por estarem longe daquilo que consideram lar. Como é o caso dos atingidos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo em Mariana, e Gesteira, distrito de Barra Longa, Minas Gerais. Após dois anos do rompimento da barragem de rejeitos de minério, administrada pela empresa Samarco, estas pessoas ainda vivem sob a perspectiva de voltar para a casa. Ou para a nova casa. O reassentamento das comunidades é importante e está assegurado por lei. “Ser atingida é ter os sonhos interrompidos”, afirma Luzia Queiroz, 52, que viu ruírem todos os planos futuros da família na comunidade de Paracatu de Baixo. Assim como muitos atingidos, Luzia mora em Mariana, e mantém uma realidade diferente de outrora. Seu dia a dia está em meio a novas narrativas. A leveza do interior faz falta e atividades como cuidar dos animais e até mesmo colher uma laranja no quintal não fazem parte do cotidiano da maioria dos atingidos. O sítio de Marcos Muniz, 54, morador de Bento Rodrigues, era o fruto de toda uma vida. Por 30 anos, foi funcionário da Samarco e almejava uma aposentadoria tranquila na casa de campo que, em outros tempos, pertencera ao seu pai. Em seu pomar, havia centenas de laranjeiras, mangueiras, jabuticabeiras e limoeiros. No quintal criava galinhas e mantinha gado nos pastos. O sonho durou exatamente um ano, até a lama levar sua residência, seus frutos, seus animais e as memórias de sua família.

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Pertencer Alguns atingidos ainda não se acostumaram com o jeito mais acelerado da cidade. O cantinho de antes era bem mais calmo, com uma feição só deles. Luzia, planejou todos os detalhes da sua casa, o terreno onde construiu pertencera ao avô do seu marido Caetano e mantinha inúmeras histórias. As paredes revestidas por azulejos portugueses eram o seu xodó e o piso antiderrapante da cozinha foi pensado especialmente para seu neto Miguel. Além das questões burocráticas que estendem a espera pelo reassentamento, a passagem dos anos tem transformado o cotidiano da população. Os afetos e as relações sociais tiveram que se adaptar à rotina de lares temporários e muitas amizades e vínculos afetivos também se romperam. A psicóloga Maíra Almeida Carvalho, responsável técnica pela equipe Conviver que atua especificamente com os atingidos de Mariana, esclarece essas dificuldades: “Estão dispersos num território em que muitos não se reconhecem, situados em casas que não são próprias, distantes dos vínculos familiares, de vizinhança e das redes de suporte social”. Tanto Marcos quanto Luzia lamentam a perda de contato com alguns vizinhos, amigos e parentes. “Meu netinho ficava comigo em Paracatu, às vezes passávamos as tardes deitados na cama olhando os bois pela janela. Isso acabou”. Manter a mesma identidade com o novo local é um dos grandes problemas a ser enfrentado. De acordo com a psicóloga Lilian Garate Castagnet, especialista em eventos pós-traumáticos, “por mais que o novo terreno seja adequado e possa oferecer mais segurança, é um local sem história, sem me-

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carmem guimarães e igor mattos foto: Íris jesus arte: mayron brito

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mória, e que não foi parte de uma construção escolhida, e sim imposta”. Segundo Lilian, uma das maneiras de tentar reverter a situação é respeitar o luto por tudo que foi perdido. É permitir o protagonismo da comunidade no processo de escolha e na organização dos novos distritos para, assim, incorporar a memória do que foi vivido. Um posicionamento que reforça a importância de manter preservada o senso de comunidade quando voltarem à vida em grupo. “Uma coisa é a Samarco te dar a casa, outra é você construir”, reforça Luzia.

Incertezas Conforme os anos passam, o desejo de recomeçar tem se transformado em aflição. Os projetos para os novos distritos ainda não foram totalmente aprovados pelos moradores e as documentações das terras ainda não estão regularizadas. As obras nos terrenos de Lavoura, onde será construído o Novo Bento; Lucinda destinado ao reassentamento dos moradores de Paracatu de Baixo, e Macacos para a reconstrução de Gesteira sequer começaram. De acordo com a Fundação Renova, responsável por reparar os danos causados pelo rompimento da barragem, a expectativa é que as obras comecem no

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início de 2018, pois dependem do registro dos terrenos, da aprovação do conceito urbanístico dos novos distritos pelos atingidos, bem como do processo de licenciamento urbanístico e ambiental. A situação, que parecia provisória, tornou-se longa e exaustiva e o reassentamento ainda é incerto. Inicialmente, a Renova afirmava que o novo Bento, por exemplo, seria entregue em março de 2019. Contudo, com o passar dos meses, a fundação já não indica mais a data de entrega do novo local. A psicóloga Maíra teme os efeitos pela demora deste processo: “Quanto mais se prolonga a espera pela construção das comunidades, maiores são os desafios para a retomada das rotinas e cotidianos”. Mesmo com toda demora e prazos incertos, a luta pela moradia é um direito que os atingidos não abrem mão. As relações talvez nunca mais voltem a ser como antes. Porém, reconstruir os distritos é um modo de reforçar suas existências e fazer justiça. Marcos pretende retomar parte da sua vida e acredita que quando se dedica às tarefas do sítio deixa de pensar no crime ambiental. “Não sei se quero plantar todo o pomar de novo. Já tenho mais de 50 anos e é muito difícil recomeçar, mas quero minha casa exatamente como era. Pintada com a cor areia, que é uma cor que eu gosto”, reivindica.

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Travessia

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Um Brasil de quem? No século XXI, negros e índios no país ainda sofrem com a desigualdade social imposta pela colonização portuguesa

Nas últimas décadas, a onda conservadora no Brasil e no mundo dá voz e lugar para que práticas racistas e excludentes se tornem visíveis no espectro social. Casos como o do jornalista William Waack, que, à época da cobertura das eleições presidenciais dos Estados Unidos, ao se preparar para uma entrada ao vivo, irritou-se com o barulho das buzinas nas ruas e disse: “É preto. É coisa de preto”. Ou a tragédia do índio Galdino, queimado vivo em Brasília por quatro jovens entre 17 a 19 anos. A motivação do crime foi para o “entretenimento” dos rapazes. Em 2017, completaram-se vinte anos do episódio e os assassinos já cumpriram as suas penas em liberdade condicional com apenas metade da sentença inicial de 14 anos de prisão. Esses dois casos são exemplos que mostram a forma como os preconceitos étnico e de classe se manifestam por aqui. Hoje, esses dois grupos coexistem no país em situação semelhante. No passado, negros e índios, donos de seus próprios espaços, se viram expulsos de seus lares. Inicialmente, em decorrência da colonização e da premissa de um repovoamento supostamente civilizatório. Porém, sabe-se que mesmo depois da colonização a situação continua igual, os dois grupos continuam à margem da sociedade.

Desapropriação antiga Existem índios no Brasil? A resposta é sim, mas persiste um senso comum de que a história deles no nosso país acaba no período colonial. “O motivo desse senso comum é que ou as pessoas pensam que eles foram totalmente inseridos na sociedade e ‘deixaram de ser índios’”, explicou Manoel Rendeiro Neto, historiador formado pela Universidade de Brasília (UnB). Conforme Manoel, essa é uma ideia errada, porque ser indígena não é uma questão civilizatória cultural e sim identitária. A segunda hipótese do senso comum, levantada pelo historiador, é de que os nativos da nação teriam sido totalmente dizimados. A partir do momento em que os europeus desembarcaram em suas primeiras caravelas no Brasil, a história dos indígenas se tornou turbulenta. Para aqueles que nunca tiveram contato com a civilização europeia, os portugueses até pareciam deuses cheios de boas intenções. Porém, como já dizia o velho ditado, ‘de boas intenções o inferno está cheio’. Pouco tempo depois, o homem branco mostrou a sua verdadeira face aos nativos, apropriou-se das terras indígenas, matou e escravizou aqueles que eram contra as

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Mariani Barbosa e Marianna França Arte: Pedro Menegheti Foto: Lui Pereira suas decisões. “Praticamente a história da colonização e de povos europeus versus indígenas é marcada pela questão de desapropriação das terras indígenas, principalmente através do genocídio dessa população. Se formos estudar a fundo a questão de história indígena no Brasil, além do período colonial, vamos ver que o contato da civilização europeia com esses povos gerou a perda e a desapropriação dos seus lares originais. E, até hoje, nós vemos a situação precária com relação à divisão de terras”, afirmou Manoel. Cinco séculos se passaram e os índios continuam habitando o Brasil. Por incrível que pareça, sofrem com os mesmos problemas da época da colonização, entre eles o medo constante de perderem os seus lares. A grande diferença é que hoje a reivindicação de direitos é uma possibilidade.

Luta por direitos O assunto mais debatido dentro dos movimentos indígenas é a questão da demarcação justa de terras. O Marco Temporal - ação judicial da constituição da década de 1980 - alega que se as comunidades nativas não estavam nos territórios declarados como delas desde o dia 5 de outubro de 1988, essas comunidades não teriam direito à tais terras. O problema é que até 1988, os indígenas não eram reconhecidos como pessoas capazes à prática do ato civil. Exatamente por isso não era possível às comunidades defenderem com legitimidade os seus direitos aos territórios. ”A questão de demarcação de terras é a central. Geralmente, qualquer tipo de declaração envolvendo movimentos indígenas sempre busca a legitimação de suas terras. Porque mesmo grupos indígenas que as tiveram demarcadas, muitas vezes, são ameaçados de perdê-las. A bancada mais conservadora do Congresso fala que apenas as terras demarcadas oficialmente até 1988 podem ser consideradas terras indígenas”, comentou Manoel. Almir Narayamoga Suruí, chefe do Clã Gameb, um dos quatro clãs que fazem parte do povo Paiter Suruí, em Rondônia, é um exemplo da resistência indígena contemporânea. Almir é formado em Biologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) e tem título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Essa formação acadêmica ajuda-o a proteger o seu clã contra aqueles que tentam contrabandear madeira,

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É importante enfatizar o índio como vítima da colonização e do processo de formação nacional. Mas, também, não podemos ficar só nessa imagem. No final das contas, isso não os favorece. Só favorece uma imagem de que eles foram derrotados e que não tem mais força. Isso já não é mais verdade. Eles estão buscando força e estão se mobilizando cada vez mais no movimento político em nível nacional. Manoel Rendeiro Neto, historiador formado na Universidade de Brasília

Os retratos desta reportagem foram construídos em parceria entre o fotógrafo e as pessoas fotografadas, em uma tentativa de dar novo significado a imagens produzidas por diversos fotógrafos do final do séc XIX e início do séc XX que retratam negros, indígenas e mestiços brasileiros um ar de exotismo e de submissão.

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garimpar ilegalmente e contra os que insistem em explorar o território dos Paiter Suruí de forma indevida. “Quando se tem grande potencial em um território, acaba despertando interesses econômicos. Tudo isso é um grande desafio e hoje mais ainda porque transforma um discurso do governo em anti-indígena. Ele pretende aprovar uma lei de mineração no nosso território”. Almir cita como exemplo a PEC 215, que tem a intenção de delegar ao Congresso Nacional o dever de demarcação dos territórios indígenas e quilombolas. Seria proibir a expansão das áreas indígenas já existentes, “[...] prejudicando o direito dos povos indígenas em geral. Para nós isso é um retrocesso”, afirma. O chefe do clã Gameb começou a falar português com 12 anos, pela necessidade de se comunicar com os ditos não indígenas. De acordo com ele, os Suruí tiveram o contato pela primeira vez com comunidades externas em 1969, há 48 anos. “O contato trouxe grandes epidemias e doenças. Gripe, sarampo, tuberculose… Dizimou mais de 90% da população Paiter”, contou Almir Suruí. Essa comunicação se deu por uma ação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). “Essa região estava sendo ocupada, tinha um projeto de colonização do governo brasileiro. Eles estavam ocupando toda a região que nós habitamos. Tivemos vários conflitos com os não indígenas, com os seringueiros, as pessoas que chegaram pela primeira vez aqui”, contou o chefe Suruí. Repetindo mais uma vez a mesma história do início da colonização do Brasil: o homem branco se apropriando do lar dos povos indígenas. A solução que Almir encontrou para apaziguar os conflitos e proteger o território dos Paiter Suruís foi entender como funcionava a vida fora da aldeia e correr atrás dos direitos do seu povo indígena. “Em 1994, idealizei a construção de um plano estratégico de 50 anos para o meu povo. Queremos a autonomia do povo Paiter Suruí na gestão de

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seu território. Hoje em dia a responsabilidade da gestão do território é do governo, através da política de indianista que é dirigida pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Não queremos tomar esse poder da Funai, mas queremos criar a consciência do povo sobre o valor do seu território e cultura”, explicou Almir. As demandas do plano são pedidos básicos de sobrevivência de uma população: a proteção territorial, proteção cultural, direito à educação baseada nos costumes da cultura indígena Paiter Suruí, saúde, gestão política, fortalecimento da economia e uso tecnológico. Ou seja, tudo que é instrumento importante que pode mover a vida de um ser humano, porém foi negligenciado para as comunidades indígenas desde o ínicio do Brasil.

Segregação e memória Embora se completem, no próximo ano, 130 anos da Lei Áurea, ainda hoje a sociedade brasileira vive as sequelas desse período tão obscuro da narrativa nacional. E assim como as tribos que já viviam por aqui à época da chegada dos portugueses e que ainda sofrem com a segregação, a população negra permanece marginalizada e forçada a ocupar apenas espaços periféricos das cidades. Segundo a socióloga Mayara Amaral, o movimento migratório, que ganhou força no Brasil especialmente com a atividade industrial, entre os séculos XIX e XX, e que trouxe milhares de europeus ao país, contribuiu para uma crescente marginalização do negro por aqui. “Marginal se usa para falar daquela pessoa que está à margem da sociedade, ou seja, não foi inserida. (...) O negro não é inserido na sociedade de classes, ele é colocado à margem, porque (à época da escravidão) quem trabalhava na roça? Quem cultivava o café? Eram os negros, os escravos”. Mayara acrescenta também a questão do êxodo da po-

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pulação negra para os morros, decorrente dessa imigração europeia pós-escravidão. Para ela, a vinda dos brancos, que ocuparam postos de trabalho - seja em atividades industriais ou do campo - que poderiam ser realizados por brasileiros, significou ao negro a perda de seu próprio espaço. “Quando se deixa de ter a escravidão, passa-se esse processo e os brancos vêm pro Brasil, para trabalhar nessa roça, para trabalhar com o café, com o algodão, com o açúcar, eles perdem os empregos, então são deixados à margem (...) e são obrigados a subir os morros e é aí que começa a construção das favelas”. Até hoje, quando se considera a densidade demográfica dos aglomerados subnormais e periféricos, pretos e pardos ainda são maioria. De acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, cerca de 11,4 milhões de brasileiros vivem em favelas e, destes, 68% são declarados negros. Muitos não contam com acesso a serviços de saneamento básico, como tratamento de esgoto e limpeza urbana. A periferização, além de prejudicar nas questões trabalhistas, ainda contribui para que as condições de vida sejam precarizadas, dificultando a ascensão.

Raças marginalizadas Ao analisar a trajetória do afro-brasileiro, percebe-se que o racismo foi instaurado e enraizado na história brasileira. O mito da democracia racial, ainda presente, revela o exercício de um racismo velado que encontra a justificativa de sua existência na afirmação de que a segregação já não existe mais no Brasil. Embora o país seja a nação com a maior população negra fora da África - 54% da população, de acordo com o IBGE - pouco se faz para preservar e valorizar a ancestralidade africana por aqui. Ações orquestradas pelo Estado,

como a política de cotas raciais e a instituição do 20 de novembro como Dia da Consciência Negra (em homenagem ao líder quilombola Zumbi dos Palmares, morto nesta data em 1695) são pequenas iniciativas que, apesar de promissoras, se revelam insuficientes para reparar as consequências de mais de 300 anos de escravidão. “Quando colocam lá na vaga de secretária ‘ah, é uma pessoa bonita’. O que é uma pessoa bonita? O que é uma moça com boa aparência? É uma moça que tenha um padrão branco. Ela pode até ser parda, mas ela tem que ter o cabelo liso, ela tem que fazer uma progressiva. Só que essas coisas não estão colocadas para sociedade de forma clara e explícita. O racismo no país é um racismo que não é auto-declarado (é velado)”, completa Mayara. Ao analisar a história do Brasil, é possível perceber que essas duas etnias foram negligenciadas. O historiador Manoel acredita que é de extrema importância destacar o índio como vítima da colonização. “(...) Mas, também, não podemos ficar só nessa imagem, porque no final das contas, isso não os favorece. Só favorece uma imagem de que eles foram derrotados e que não têm mais força (...)”. O mesmo vale para o negro. O processo colonizador instituiu um contexto de marginalização para um grupo social, como questiona Amaral: “Por que a nossa sociedade não pode ser igualitária e se a filha da empregada quiser ser médica, quiser ser doutora, ela não pode ser doutora? Ela tem que ser no máximo, uma professora, porque é o que cabe pra classe e pra raça dela”. Hoje, movimentos de resistência e valorização da cultura negra e indígena contribuem para manter viva a tradição de ambas as etnias, que lutam diariamente para pertencer e ocupar seu lar de direito no Brasil. A mistura dos índios, negros e europeus deu origem ao brasileiro, o descendente que sustenta a exclusão de seus sucessores diretos.

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Texto: Igor Mattos Foto: Gabriel Conbê Arte: Luiza Boareto

Endereço de Todas Anyky Lima mantém uma pensão em BH para travestis. O objetivo não é só alugar o espaço. Ela acolhe quem é muito excluída pela sociedade. Entre uma tragada e outra no cigarro, Anyky vai abrindo um pouquinho mais da sua vida. Fala do passado sem saudosismo ou pieguismo, mas sim com orgulho. Muito orgulho. Ela que passou por tanta coisa (e ainda passa). Travesti, matriarca, idosa e militante. Dona de uma pensão em Belo Horizonte que recebe travestis há mais de 30 anos, a carioca é a matriarca da família que construiu no bairro Carlos Prates. Com 63 anos de vida, já tem muita coisa para contar. Foi expulsa da casa dos pais no Rio de Janeiro aos 12 anos. “Era muito afeminada”, afirma. Eles, de uma família tradicional nordestina, não entendiam. O caçula de quatro irmãs foi parar na rua. Lá conheceu uma amiga, Sandra Dragão, e, juntas, foram tentar a sorte. Depois de tanto custo, conseguiram uma carona para o próximo destino: Vitória. Lá ela se fez travesti, apanhou por ser travesti, lutou para ser travesti. Tudo isso em meados da década de 1960, em um Brasil vivendo os primeiros anos da ditadura militar. Conviveu com as dores da solidão íntima e a sorte de ter outras irmãs para se apoiarem. Prostituiu-se até os 32 anos, quando decidiu largar a vida de garota de programa. Ela tinha poucos clientes, problemas de saúde e contas para pagar. Anyky resolve se mudar para Minas Gerais. Belo Horizonte é o novo endereço. Local onde abre a pensão para acolher outras travestis. Meninas de diversas partes do país que também fixaram os pés junto a “tia Anyky”.

A pensão Anyky tomou esse papel de família para si. Desde a década de 1980, que a casa emoldura o seu lar. Não gosta quando falam que é um albergue: “Não tenho um albergue. Eu tenho uma casa onde as meninas pagam pra viver. E eu como militante acho uma obrigação, se ela quiser ir no médico, se eu não puder ir, pelo menos informar onde”, afirma. As paredes da pensão se configuram neste apoio. Das trocas de sabedorias dos anos de vida: “Essas coisas a gente tem que passar pra frente, por ser militante, dona de casa e por gostar também”. Ao todo já passaram pela pensão pouco mais de 3 mil meninas. Algumas vão e não voltam, enquanto outras retornam e querem ficar. Mas,Anyky agora quer sossego. Ver seus filmes na TV. Já teve muita movimentação na casa. Ou nas casas. Em tempos mais movimentados, chegou a alugar duas moradias. Nem sempre cobrava o aluguel. A

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compaixão falava mais alto. “Já peguei algumas meninas da rua, sabe? Que estavam sem casa. Que eu já conhecia. Conhecia a família e botei aqui dentro.” Atitude deixada para trás: “Eu já não faço mais. Eu fico com pena e tudo, mas você sabe que não tem lugar nenhum pra apoiar essas pessoas. E você pegar uma pessoa na rua e trazer pra dentro da sua casa, também não adianta. Tem que ter um acompanhamento de saúde, de tudo.” Ela brinca que, se ganhasse na mega-sena, iria trazer todas as meninas para viverem juntas: “Minha vontade é comprar uma casa grande, onde morassem mais meninas. Mas, meu intuito realmente é esse. Morar todas comigo.” Até que esse dia chegue, o lar que ela mantém abriga nove meninas: “Era para ser quatro, sabe? Mas ligaram e insistiram tanto para ficar, que acabei deixando”, conta Anyky. Algumas já moraram no mesmo endereço anos atrás. Voltaram para Belo Horizonte, o que significa querer estar perto da Anyky. “Elas vão atrás de mim. Querem ficar onde a tia Anyky está”, afirma, com ares de uma tia que podem sempre contar.

Passinhos pra frente Figura já conhecida em BH, Anyky atua também publicamente na causa das travestis. Dá palestras para diversas instituições. Participa de grupos como a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA) e Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual (CELLOS). Isso começou em 2007, mesma época em que a polícia invadiu sua casa à procura de drogas. Na busca de encontrar um lugar para saber quais são seus direitos - e não mais deixar isso acontecer - ela conheceu o CELLOS. Tornou-se íntima do pessoal. Ia às reuniões, eventos e debates. Até uma hora ser chamada para participar do centro. “Porque para trabalhar com travesti você não pode ficar num lugar sentada esperando. Você tem que ir ao encontro delas”, diz. Encontro que deu certo. Apesar de alguns anos separarem sua geração com a das meninas que moram com ela, Anyky sabe que muita coisa não mudou: “A violência continua do mesmo jeito, sabe? As pessoas se negando a fazer as coisas pra ajudar essa população. As políticas públicas ficam no papel e não saem do papel.” Segue na luta para desvincular a imagem da travesti com a do perigo para sociedade.

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A travesti ao mesmo tempo que constrói seu próprio corpo, também constrói seu próprio lar.

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Anyky tenta passar sua sabedoria de vida para as demais. Explica como fazer para conseguir seus direitos, onde procurar para reivindicar e a quem procurar. “O que a gente leva da vida é mostrar pra outra pessoa o lado positivo da vida. Porque a travesti, a partir do momento em que bota uma saia, não tem mais ninguém em volta dela. Pode estar cercada de pessoas, mas está sempre sozinha”. Na dinâmica delas na casa, uma vai ajudando a outra. Superando as dificuldades de serem travestis no país que mais as mata. Serem colocadas à margem não é motivo para as meninas se sentirem para baixo. Pelo contrário, na casa, o riso de todas atravessam os cômodos. “Gosto das neuroses das meninas, das conversas, das histórias, de dar conselhos”, completa Anyky. Ela quer manter isso por muito tempo.

Uma destas compreensões é valorizar a união. Anyky quer que elas entendam o valor da vida e a importância de estarem juntas. Ali, afirma, é a família delas, “porque a família da gente é quem está mais próximo. As meninas que me socorrem caso aconteça algo. Família é quem te acolhe na hora que você mais precisa”. A pensão é a materialização da crença dessa comunhão de todas. Sororidade que Anyky com certeza é devota. Sobre a expectativa da casa, afirma que enquanto tiver saúde a mantém. Porque, segundo ela, família a gente faz junto, um pouquinho de cada dia. Assim como resistência.

SORORIDADE - A palavra sororidade, com origem no latim soror (irmã), é uma forma de valorizar a irmandade feminina. Representa a união entre as mulheres a partir de uma concepção de todas caminharem juntas.

ESTATUTO DA FAMÍLIA - O projeto de lei que transita no Senado PL 470/ 2013 cria o chamado Estatuto das Famílias. Levado em frente pela senadora Lídice da Mata (PSB-BA), tem como idéia reconhecer diversos arranjos definidos como família.

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Comum Texto: Francielle de Souza Foto: Rafaela Rissoli Arte: Evelin Ramos

Rotina Silenciosa No Brasil, a maioria dos casos de violência contra mulheres, crianças, adolescentes e idosos é cometida por familiares e ocorre na casa das vítimas.

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Na sala de espera do Centro de Referência Especializado da Assistência Social (Creas) de Ouro Preto, uma senhora e três mulheres de meia idade aguardam, em silêncio, o atendimento. Em geral, elas não se olham nem levantam a cabeça. O silêncio, que por vezes chega a ser incômodo, é interrompido quando a psicóloga Carina Lemos surge acompanhada por um menino e uma das mulheres pergunta se ele gostou do atendimento. A criança sinaliza que sim. Na sala da psicóloga, duas cadeiras dispostas lado a lado indicam que a última conversa ali foi próxima e as pastas empilhadas na mesa ao fundo sugerem que ela não usou o móvel naquela manhã. Enquanto arruma os papéis, Carina exemplifica os casos que recebe todos os dias: uma pilha de documentos solicitando atendimentos psicossociais para mulheres, crianças e adolescentes em situação de violência. Em outra sala do Creas ou, se preciso, na casa da vítima, a psicóloga Áurea Queiroz acompanha os idosos que também vivem nessa situação. Dados nacionais apontam que os casos de violência doméstica, em geral, acontecem na casa da vítima e parentes próximos são os principais suspeitos de cometerem a agressão. De acordo com o último relatório da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, entre os tipos de violência, os de maior destaque, em 2016, foram negligência, violência psicológica, violência sexual, violência física e violência patrimonial. Ainda segundo a Ouvidoria, a violação de direitos de crianças e adolescentes corresponde a 57% das denúncias. Contra idosos, são 25%. Enquanto a negligência - caracterizada pelo abandono parcial ou total dos responsáveis e/ ou incapacidade de prestar os cuidados necessários ao bem-estar do indivíduo - atinge mais crianças e idosos, a agressão física é o motivo da maioria de denúncias das mulheres. Dos 140 mil atendimentos realizados em 2016 pela Central de Atendimento da Mulher, serviço de denúncia criado pela Secretaria de Políticas para Mulheres, a violência doméstica corresponde a 86% dos relatos.

Ciclo da Violência Para as psicólogas, o que faz do lar um ambiente propício para a violação de direitos é a naturalização da violência: “Muitas vezes não há consciência de que é um crime. Há uma repetição de comportamento, é uma questão cultural. ‘Eu apanhei quando criança, então vou bater quando for adulto’”, aponta Carina. O balanço da Central de Atendimento da Mulher confirma a explicação da psicóloga. Os dados mostram que 78% das mulheres que sofreram violência doméstica em 2016 são mães. Em 59% dos casos, os filhos presenciaram a agressão e em 22% eles também foram vítimas dela. Áurea traduz: “Infelizmente, a violência faz parte da criação de muita gente desde cedo”. Na voz de Carina, o caso de Ana*, uma menina de 8 anos estuprada pelo pai, revela que a dificuldade em sair da situação de violência pode ser ex-

plicada também pela noção de status social que um lar tradicional carrega. “O pai confessou que teve relações sexuais com a filha. Perguntamos para a mãe da Ana: ‘Você está ouvindo o que ele disse?’. Ela respondeu que não podia fazer nada depois que o abuso já tinha sido feito. Quando ele foi preso, ela veio brigar com a gente e pagou cinco mil reais para um advogado tentar tirá-lo da cadeia”. A recusa da mãe de Ana em abrir mão do lar tradicional - formado por marido, esposa e filhos - é comum para mulheres. “As mulheres que têm dificuldade de sair da situação, geralmente, veem um ganho com a violência. Ou não querem ser mães solteiras, ou têm um ganho financeiro, ou acreditam que os companheiros batem porque amam, porque sentem ciúmes. Muitas mulheres que vêm até aqui querem que a gente só dê um susto no marido. Elas não querem denunciar”, conta Carina. Para Áurea, além de já ser difícil fazer a denúncia, o ambiente familiar pode pressionar a vítima a desistir de continuar com o processo. A psicóloga enfrentou casos em que a pessoa idosa relatou a violência durante o atendimento, mas, por medo do agressor, negou quando o caso foi levado para o Ministério Público. “Nesses casos, a gente fica de mãos atadas”, lamenta Áurea.

Papel do Estado Até que ponto o Estado pode intervir no ambiente familiar? Alexandre Bahia, professor de Direitos Humanos da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), aponta que houve mudanças na forma como a lei enxerga o lar: “Durante muito tempo, essa questão da família era considerada de fato intocável, mas essa é uma compreensão que já está bem desatualizada. Desde a Constituição de 1988, existe uma interferência grande do Estado na família”. Advogado e professor de Direito da rede de ensino Doctum, Filipy Bicalho explica ainda que as relações de afeto contidas na ideia de família pressupõem um ambiente sadio e, por consequência, menos intervenção do Estado. Porém, quando há violação de direitos humanos, o limite entre público e privado é frágil, exigindo uma ação do governo. Apesar disso, as leis ainda têm dificuldade de penetrar esse ambiente. Alexandre explica que isso acontece porque “nós criamos o mecanismo penal, mas não criamos os mecanismos para evitar que se chegue na violência.” Ambos os especialistas acreditam que a saída é investir em uma educação não sexista e em políticas públicas para o combate à violência doméstica. Ao final, o silêncio na sala de espera do Creas é reflexo do silêncio nos lares. Para entender quem chega ali, quem não olha ao redor nem levanta a cabeça, é preciso saber que denunciar ainda é um desafio. Seja por causa de uma cultura violenta, pelo status social ou por pressão familiar, as salas de nossas casas ainda permanecem em silêncio.

* O nome foi alterado para proteger a identidade da fonte. CURINGA | EDIÇÃO 17 CURINGA | EDIÇÃO 23

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Sensação

Aos cuidados do outro Como funcionam instituições socioassistenciais responsáveis pela tutela de crianças e idosos

Texto: Fábio Souza Foto: João Vitor Nunes Arte: Mariana Storto

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Frequentemente usada com o intuito de descrever o local onde as pessoas vivem, a palavra Lar está ligada a sensação de segurança, conforto, pertencimento e calma. No entanto, muitos não recebem esse conforto por parte de sua família. São pessoas tuteladas, estando sob a guarda de abrigos institucionais, casas lares ou famílias acolhedoras. Estes serviços são definidos e regulados pela Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009, do Conselho Nacional daeAssistência Social (CNAS), que dispõe sobre a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais. O Acolhimento Institucional ampara milhares de idosos, crianças, adolescentes e jovens em todo o país. Na cidade de Mariana, Minas Gerais, o Lar Santa Maria, abriga atualmente, 58 idosos com e sem alguma deficiência mental, oferecendo cuidados médicos, geriátricos, apoio funcional, e terapêutico, além de cuidados com alimentação, tendo como premissa o cuidado humanizado. Esta instituição faz parte das Obras Sociais Monsenhor Horta, uma sociedade civil de direito privado, regida por estatuto e que possui títulos de utilidade pública dos governos federal, estadual e municipal e de filantropia, concedido no ano de 1974. A entidade mantém quatro departamentos assistenciais vinculados a esta matriz, sendo elas: Casa da Criança Jesus, Maria e José, Centro Promocional Cônego Renato, Casa da Sopa Tia Lica e o Lar Santa Maria. Já em Ouro Preto, o abrigo para meninos, localizado no Bairro Alto da Cruz, é responsável pela tutela de sete garotos. A casa existe há cinco anos, e teve seu início no ano de 2012, no distrito de Santa Rita de Ouro Preto. A instituição surge após ser dividida em duas, através de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pelo Ministério Público. Isso aconteceu para sanar problemas decorrentes do excessivo número de jovens que morava no abrigo. A ideia era que se criasse uma outra instituição apenas para garotos de 12 a 18 anos, diferente da Casa Lar de Ouro Preto, que continuaria a receber crianças de ambos os sexos.

Chegadas e partidas A chegada de crianças e adolescentes até a uma instituição é cercada de incertezas, medos e estranhamentos. Segundo a psicóloga do abrigo para meninos em Ouro Preto, Priscila Câmara, 36, os garotos chegam até a instituição através de uma ordem judicial de caráter excepcional. Emitida quando há violação dos direitos da criança e adolescente, funciona como medida protetiva. Os casos mais comuns para o Abrigo ou Casa Lar ser destino dessas crianças é a família estar envolvida com tráfico, quando fazem uso e abuso de drogas, ou até mesmo negligência - quando são abandonadas. “O pessoal some e deixa, aí os órgãos dizem que tem um adolescente que está morando sozinho e não tem ninguém, está passando dificuldade, já tentamos localizar familiar e ninguém quer ficar. Já teve problema, ninguém se dispõe, ninguém se responsabiliza”, explica Priscila.

Não há um período de adaptação para os jovens que chegam, uma vez determinado, eles seguem para o abrigo. Então, segundo a psicóloga, eles tentam acolhêlos da melhor forma possível. Quando novos meninos são encaminhados para a instituição, as outras crianças são orientadas a recebê-los bem: “Olha, vai chegar! A gente não sabe muita coisa, mas, assim como vocês vieram para cá, vocês chegaram assustados, então vamos tratar a pessoa bem. Vamos conhecer a pessoa”. Segundo Priscila, eles são super receptivos. A psicóloga chama a atenção para algo particular sobre abrigos: o fato de que muitos não conhecem e usam o termo como uma penalidade, para recriminar a criança ao fazer algo errado. E não é bem assim. As crianças, como ela afirma, não estão ali porque cometeram ato infracional, e sim por uma medida protetiva.

Uma coisa que eu tentei trazer no meu trabalho é que aqui fosse a casa deles, para que eles sentissem isso

O coordenador do abrigo, Rhenan Hermes, 31, vê seu trabalho para além das questões administrativas, estando ligado também ao relacionamento e convívio dos meninos na instituição, que é feito em conjunto com a psicóloga. Segundo Rhenan, suas atividades envolvem questões mínimas do dia a dia, como se fossem coisas de família. Então, seu trabalho é, além de tudo, trazer a conscientização de que temporariamente o abrigo é casa deles: “uma coisa que eu tentei trazer no meu trabalho é que aqui fosse a casa deles, para que eles sentissem isso”. O abrigo funciona como uma medida temporária. O ideal, segundo os órgãos de assistência social, é que as crianças e adolescentes fiquem no máximo por dois anos na instituição. Durante este período, é feito um trabalho de retorno deste jovem para a família de origem ou uma família extensa, que seria um tio, um primo, etc. Não sendo possível este retorno, irão tentar uma família substituta. Ao completar dezoito anos, o jovem deverá deixar o abrigo e retornar para sua família, ou encontrar um novo local para morar. Durante o processo de desligamento, o coordenador, juntamente com a psicóloga, preparam este adolescente para a sua saída, porém, conforme explica Priscila: “é difícil esse período, pois não está fácil conseguir trabalho e geralmente eles têm uma defasagem escolar que vem lá de traz. E isso já é uma coisa que dificulta”. Segundo ela, o jovem com dezoito anos tem que ter algum apoio, e esses adolescentes que lá residem não tem, “os que ficaram aqui até os 18 é porque não conseguiram ter vínculo com a família, não teve muito apoio da família, então a gente faz o que dá. Mas eles saem sozinhos, e é difícil”.

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Proteção para seguir com a vida Para o idoso chegar até uma instituição de longa permanência, ele atravessa um caminho bem parecido com o que será encontrado por um adolescente. Segundo Teresa Cristina, assistente social do Lar Santa Maria, o primeiro contato com a instituição e o familiar acontece quando a demanda é espontânea. Neste momento, haverá as demandas do município, outras que chegam pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e aquelas que geralmente são levadas pela família. Segundo a assistente social, em um perfil de acolhimento institucional, são levados em consideração critérios como questão clínica, social e a condição financeira daquela família de se organizar para aquele cuidado. Após o contato, a demanda será tratada e, logo depois, será acolhida. Ao receber esta demanda que chega, buscase a rede de serviços do município na saúde e na assistência social, levando em consideração quem está acompanhando esse idoso, e se já existe um acompanhamento por parte do poder público e dos equipamentos do município. Além destas, existem também as demandas de risco, que chegam através de ordem judicial, aquelas que já irão com a determinação, como uma medida protetiva. Segundo Teresa Cristina, se for um idoso que estiver em risco de violência e maus tratos, solicita-se uma medida cautelar protetiva, o que acaba sendo uma internação compulsória, por uma medida de proteção, até que se consiga entender o que está gerando a violência. Outra forma não muito comum para o idoso chegar até a instituição é, em casos raros, quando ele mesmo irá buscar acolhimento, o que geralmente acontece por causa da solidão. O idoso está entristecendo sozinho ou tem medo. Segundo a assistente social, enquanto ainda está independente, ele vai conseguir se organizar, mas à medida que vai entendendo ou reconhecendo alguns obstáculos, como esquecer um gás aberto em casa, isso se torna algo terrível para eles. A assistente social coloca uma questão importante sobre a liberdade da opinião do idoso. Quando o idoso é lúcido, a primeira conversa que tem com ele, pergunta: “O senhor gostaria de ir?”. Se ele falar que não, conta Teresa, a conversa encerra-se ali e o idoso não é levado para a instituição. O asilo Santa Maria, não é uma instituição pública, mas atende a todo o município de Mariana bem como seus distritos. O acolhimento institucional é uma garantia legal ao idoso, conforme ressalta Teresa Cristina, mas não existe uma instituição municipal, desse porte, em Mariana. No caso do asilo Santa Maria, “ela não é pública, ela é de direito privado, mas presta um serviço público. Ela tenta suprir uma deficiência do Estado”.

A moradora do Lar Santa Maria, Dona Efigênia, falando com a visitante Hermínia sobre suas plantas

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Sensação Identidade Meu lar é onde meu coração encontrar abrigo Além dos abrigos institucionais, casas lares e repúblicas para jovens de até 21 anos, a Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009, do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), define e regula o serviço de acolhimento em Família Acolhedora. Que irá garantir o abrigo de crianças e adolescentes, afastados da família por medida de proteção, em residência de famílias acolhedoras. Este amparo será feito até que haja possibilidade de retorno à família de origem ou o encaminhamento para adoção. É de responsabilidade deste serviço a seleção, capacitação, cadastramento e acompanhamento dessas famílias que acolhem, bem como realizar o acompanhamento da criança e adolescente e sua família de origem. M.B. mora em Viçosa e participou do projeto Família Acolhedora, após o convite da assistência social. Apesar de ter uma casa humilde e pequena ela afirma que sempre tinha espaço, e que já recebia jovens estudantes que não tinham onde ficar. A novidade, segundo ela, é que no programa tinha uma responsabilidade maior, conforme relata: “como mãe acolhedora de crianças pré adolescentes, além de serem de situação de risco, são crianças protegidas da justiça, então nesses casos a atenção tem que ser redobrada”. Este programa segue os princípios, diretrizes e orientações do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), além do documento “Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes”, sendo aprovado pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do

Adolescente (CONANDA) em 18 de junho de 2009. Tendo como finalidade regulamentar, no território nacional, a organização e oferta de Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes, no âmbito da política de assistência social. O serviço é particularmente adequado ao atendimento de crianças e adolescentes cuja avaliação da equipe técnica indique possibilidade de retorno à família de origem, nuclear ou extensa. Tem como principal objetivo acolher crianças e jovens em situação de risco, reeducá-las, dar suporte, educação e, depois de um certo tempo, retornar com elas. O atendimento também deve envolver o acompanhamento às famílias de origem, com vistas à reintegração familiar. Ao se lembrar do programa, M.B* relata e lamenta um fato triste. Um jovem que estava sob sua tutela junto com sua irmã, teve abstinência de drogas: “Eu sofri muito, porque ele fugiu e levou a menina com ele”. Ela relata ainda que acionou o Conselho tutelar e foi atrás deles, encontrando-os na casa da mãe, que não quis devolvê-los e que os ajudou a fugir. Quando as crianças foram encontradas, já era bem tarde: “Eu e meu filho só encontramos eles às 19h, já muito escuro, a menina deitada no meio do mato como bicho, e ele com um enorme cigarro de maconha aceso na boca.” Apesar de acontecimentos isolados como este, M.B acredita que o processo de Família acolhedora resolve problemas que essas crianças passam. Para ela, um lar é onde existe amor, carinho, proteção, compreensão e dedicação. E, acredita, que o Lar para essas crianças que moram em abrigos é aquele que gera amor e carinho. *O nome foi alterado para proteger a identidade da fonte

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Identidade

Lava, passa, cozinha. Lava, passa, cozinha. A rotina dupla de afazeres domésticos acompanha as 5,9 milhões de mulheres que trabalham como empregadas domésticas no Brasil. O dado é do levantamento feito pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), lançado em 2016. Uma pesquisa publicada em 2012 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontou que 61,7% das empregas domésticas são negras. O perfil do trabalhador doméstico brasileiro, formado predominantemente de mulheres negras, é consequência do período colonial. Segundo estudo publicado em 2017 e realizado por pesquisadoras da Universidade Federal de Viçosa (UFV), “no período escravocrata, as trabalhadoras domésticas moravam na senzala, mas passavam grande parte do dia na Casa Grande. Com o redimensionamento das casas na zona urbana, esses dois lugares fundiram-se e foi criado um novo cômodo nas casas: o quarto da empregada”. A aproximação da empregada doméstica da família para a qual trabalha mudou com sua presença constante na casa. É comum ouvir relatos onde os filhos se apegam à empregada, tal como acontecia com as amas-de-leite, mulheres que amamentavam os filhos dos senhores por serem consideradas mais fortes e saudáveis, na época da escravidão. A fala de Cida*, uma senhora negra de 52 anos, é marcada pela proximidade conquistada com as crianças na casa onde trabalha como doméstica há quatro anos: “Lá é como se fosse minha família mesmo. Eu praticamente criei as crianças. Me considero madrinha, me considero avó, me considero tudo”. A relação de afeto criada entre funcionária e chefe culminou no convite para ser madrinha da filha mais velha dos patrões. A história de Cida contrasta com a de Maria*. Acusada de roubo em uma das casas em que trabalhou, a empregada relembra o constrangimento: “Teve uma época em que eu estava parando de fumar, aí me dava muita fome. Lá tinha aqueles biscoitinhos recheados de chocolate e eu c omi um. Quando ela [a patroa] viu, disse que eu estava trazendo pra casa”. Para Marcelo Brito, pesquisador das relações de trabalho entre patrões e empregadas domésticas, “a ambiguidade intimidade/distanciamento é clara nessas relações em que ora se evidencia a proteção e benesses, ora se enfatiza a divisão das classes e as imposições”.

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Dois tempos Texto: Francielle de Souza e Mayara Portugal Foto: Octávio Zurmele Arte: Isabela Resende

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Troca involuntária

Empregadas domésticas dividem as horas e o afeto no cuidado de dois lares: o seu e o do outro

São nos detalhes do dia a dia que surgem os conflitos próprios de quem, por necessidade, abdica do próprio lar para cuidar de outro. Embora goste dos momentos em que passa com as crianças no local de trabalho, Cida sente falta de tempo para cuidar de si. Fazer as unhas, arrumar os cabelos, ir ao forró com o marido, viajar com as amigas: atividades que faz com menos frequência do que gostaria. Também pela falta de tempo, Maria reserva os fins de semana para cuidar de sua casa. “Eu faço o serviço muito melhor lá. Na hora que eu deixo tudo limpinho e arrumadinho, me dá uma vontade de ficar na casa, mas daí eu penso ai meu Deus, agora é a minha’”, confessa. O peso de passar mais tempo cuidando de outra família marca a vida de Maria. Aos 11 anos, ela já trabalhava com serviço doméstico, aos 14 foi mãe. A necessidade de manter o emprego fez com que passasse a deixar a filha sozinha em casa muito cedo, quando a pequena tinha apenas seis anos. Ao lembrar dessa fase, Maria deixa transparecer como era difícil ficar longe da menina. “Eu passava aperto. Deixava a comidinha dela quente, em banho-maria e tudo. Ficava com medo dela se queimar. Era só correria, eu chegava correndo onze meia, meio-dia, pra levar ela pra escola. Tinha muito medo de deixar ela sozinha. Instalei o telefone fixo para sempre ligar e saber como ela estava”. No tempo em que trabalhou em casas de família, o receio de que a história se repetisse impediu que Maria engravidasse novamente. Hoje, trabalhando como diarista nas repúblicas estudantis de Ouro Preto, a história é outra. Há três meses, Flávia espera um novo bebê. Aos 34 anos, com horários mais flexíveis e com a ajuda do marido, ela acredita que terá mais tranquilidade para viver a segunda gravidez. A PEC das domésticas, política pública elaborada em 2013 para garantir direitos trabalhistas às empregadas, não eliminou a invisibilidade do serviço doméstico no Brasil. Os direitos estão garantidos na lei, mas os relatos de Cida e Maria demonstram que não é apenas uma questão burocrática. Diante da pergunta “Você acha que é justo o que recebe pelo seu trabalho?”, Maria diz: “Eu não posso ficar por conta de família dos outros e esquecer da minha”. Cida contrapõe: “a consideração paga”. *Os nomes foram alterados para proteger a identidade das fontes.

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Alternativa

Sentidos do Lar Texto: Mayara Portugal Foto: Íris Jesus Arte: Amanda dos Santos Francisco

Na memória, o sentimento de lar se constrói nos detalhes mais corriqueiros do cotidiano: no cheiro do refogado de alho e cebola, no programa de TV dos domingos de manhã ou no pé de mangueira do quintal de terra. À medida que os anos passam, nossas concepções de lar se transformam quase na mesma proporção com a que mudamos de endereço. A diferença entre a concretude da casa e o sentimento de lar é muito sensível: enquanto a casa é o lugar físico, a rua ou bairro que constam nos inúmeros formulários preenchidos ao longo da vida, o lar é tido como uma sensação que atravessa o tatear, é um sentimento de encontro e de abrigo mutável. Linda Desirée nasceu na Holanda, morou no México e veio para o Brasil com os pais ainda criança. A mãe mineira e o pai estadunidense se apaixonaram na Praia de Ipanema, lugar onde escolheram viver durante a infância da filha, que entrega a vivência carioca no sotaque marcado. Aos 23 anos, para Linda, o significado de lar tem a ver com os lugares por onde a pessoa passa e com o tempo que dedica a esse espaço. A companhia da família em todos esses lugares também é importante na construção desse significado. “Teve um lugar onde passei mais tempo e, na minha memória, esse lugar é meu último lar antes daqui. Minha família morava na Serramar e lá era um lugar lindo, tinha uma cachoeira gigante. Não era a casa, sabe? Tinha um rio praticamente no quintal e quando penso em lar, penso naquele rio onde eu nadava todo dia. Conheci aquele rio inteiro, cada pedra. Acho que esse foi meu primeiro lar, por causa disso, eu dediquei tempo, e por tudo que eu era ali, sem pensar no amanhã”.

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Contrastes Assim como o rio determina essa construção para Linda, para Edgar de Sá, as montanhas de Minas Gerais pontuam contrastes. Nascido na GuinéBissau, o estudante de Engenharia Civil adotou Ouro Preto como cidade natal há sete anos. Das saudades mais latentes, está a do clima tropicalúmido de seu país - localizado a 4978 quilômetros do Brasil - e dos frutos do mar frescos nas refeições cotidianas. O rapaz não gosta de queijo e passa mal somente com o cheiro de café. Em contrapartida, seu prato mineiro favorito é o frango com quiabo. Preferências culinárias à parte, os sete anos no Brasil têm sido uma experiência enriquecedora na transformação desse novo espaço em lar. Edgar garante que o tempo no Brasil o fez amadurecer e ter outras perspectivas sobre si mesmo e sua família, que o ajudaram a construir sua personalidade, mantendo sua raiz africana. “Além dos colegas da Guiné que me receberam aqui, teve uma família que até hoje agradeço muito. Me acolheram na casa deles até que eu achasse um lugar para morar. Nessa casa ganhei irmãos, uma mãe e uma avó. Não volto muito para Guiné porque é muito caro e não compensa passar pouco tempo lá, mas assim que eu me formar, é pra lá que eu quero voltar: casa em primeiro lugar”. As mudanças, no entanto, não são apenas entre um continente e outro. Aos 81 anos, o ouro-pretano Roque Nolasco nunca saiu de Ouro Preto. Sua história se confunde com a história do Zé Pereira e o Club dos Lacaios, agremiação carnavalesca centenária da qual participa desde a adolescência. Diferente de Edgar, a ressignificação do lar de Roque acontece junto às mudanças da cidade impressas nas lembranças de cada carnaval em que desfilou. “Eu me lembro que ali na Praça Tiradentes, onde hoje é o Banco Bradesco, era uma empresa de eletricidade. Mudou muito.”. Para Roque, seu lar é a trajetória no Zé Pereira: “O Zé Pereira me faz sentir um bem muito grande, eu gosto do que sinto aqui e por isso estou há tanto tempo. Minha família foi toda embora e o que eu tenho é aqui. Eu adoro o Zé Pereira porque ele é minha vida”. De acordo com o psicólogo Geraldo Tadeu, o processo de ressignificação do lar é fundamental para a construção social do indivíduo. “A casa e o lar estão

conectados, mas existe uma distinção entre ambos. O lar é diferente da casa porque é uma construção psíquica, que começa na infância e com o passar do tempo repercute no processo de construção da personalidade do indivíduo”. O psicólogo afirma ainda que, na infância, o sujeito passa por situações com as quais ainda não sabe lidar, o que resulta na transferência desse sentimento para algum objeto que rememore nele aquela determinada circunstância.

Tempo Cláudio Coração morou a maior parte da infância na zona rural de Botucatu, cidade do interior de São Paulo, localizada a 240 quilômetros da capital. Os contrastes entre a eletricidade da capital e a calmaria do interior formam a personalidade do jornalista e professor aficionado por livros, música e cinema. Da infância, ficaram as marcas da timidez e a curiosidade, características que o trouxeram do interior de São Paulo ao interior de Minas Gerais. Professor do curso de Jornalismo da UFOP, é na sala de aula o lugar onde se sente realizado. “A sala de aula é um lar pra mim porque é onde eu me sinto preenchido, é o lugar onde eu faço o que eu gosto de fazer, mas não é só isso. Lar é olhar para as ruas por onde a gente passa, é reparar num detalhe novo de uma casa que a gente vê todo dia e a partir disso ir ressignificando as coisas”. O ritual de passar café e assistir “Sr. Brasil” aos domingos de manhã o acompanha na vida em Mariana. Comandado por Rolando Boldrin, o programa apresenta músicas e ritmos genuinamente brasileiros que rememoram a infância e a família que ainda vive em Botucatu. O tempo, assim como a casa, atravessa os processos de significação do lar. Segundo Geraldo Tadeu, à medida que o tempo passa e o sujeito envelhece, suas percepções desse sentimento são alteradas. O psicólogo afirma que não existe uma fase em que o sujeito vai estar mais preparado para isso ou não, é a própria experiência de vida do sujeito, das dificuldades e dos prazeres que ele tem que vão estar sempre em processo de construção na sua formação. “Diante dessa ideia dos afetos no lar, é o sujeito que está amadurecendo ali. Exemplos como a comida são as partes concretas levadas da casa. Não dá para distanciar uma coisa da outra, mas, ao mesmo tempo, é nítida a percepção do lar nestes afetos”.

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Habitar

- Muito prazer! Estou produzindo um ensaio

fotografico sobre o Lar. Gostaria de conversar um pouco, conhecer sua casa e tirar algumas fotos.

ˆ

Voce aceita participar?

ro z out e v l a T

˜ o... a n e j o H

dia

melhor

Não vai dar ˜o na

nãO

Desculpa, mas não.

Não vou ace itar

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Claro, nao repare a bagunca.

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Texto: Joyce Fonseca Foto: Joyce Fonseca Arte: Jasmine Jacyara

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Maria do Carmo

Religiosa assĂ­dua. Por amar hospitais, dedicou sua vida a cuidar das pessoas.

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Fatinha Muniz

Lembranças da infância na fazenda com seus pais e 9 irmãos fazem seus olhos brilharem.

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Emy Verona

Professora de Português, Ciências e Inglês. Viveu por 56 anos um casamento perfeito que gerou 4 filhos, 13 netos e 6 bisnetos.

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Elza Lopes

Filha de fazendeiros, estudou até o quarto ano por opção. Casada há 39 anos, dedica seu tempo a religião e família.

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