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NAN GOLDIN,
Heart-shaped bruise, New York City, 1980. Ur diabildspelet The Ballad of Sexual Dependency, 1981–2022 © Nan Goldin.
NAN GOLDIN É UMA DAS ARTISTAS MAIS COMENTADAS E CONTROVERSAS DO NOSSO TEMPO. SUA NOVA EXPOSIÇÃO RETROSPECTIVA ISTO NÃO VAI ACABAR
BEM FAZ UM EXPERIMENTO DE SUA ARTE COM APRESENTAÇÃO DE SLIDES COM SOM E MÚSICA, ONDE MILHARES DE FOTOGRAFIAS SÃO ORGANIZADAS EM HISTÓRIAS DE AMOR, INTIMIDADE, VÍCIO E PERDA
Por Drika De Oliveira
O Museu de Arte Moderna de Estocolmo (Moderna Museet) apresenta a exposição
A mostra é um recorte bastante peculiar da obra de Nan Goldin, já que é a primeira vez que as fotografias da artista são apresentadas somente por meio de projeções. São seis obras de Goldin dispostas em seis espaços diferentes, criados especialmente para esta mostra. A grande sala escura que reúne todos esses seis espaços forma uma espécie de vilarejo de obras de arte, uma comunidade de histórias e imagens imaginada pela própria artista.
A ideia da exposição começou quando o curador Fredrik Liew se deu conta de que ainda não se tinha feito uma mostra só com trabalhos audiovisuais de Goldin, formados principalmente por . Quando a contactou, explicando que gostaria de apresentá-la como realizadora audiovisual e contadora de histórias, a artista aceitou de imediato. Ela logo indicou a arquiteta Hala Wardé, para que se construísse uma espécie de “aldeia de obras”. Nessa aldeia, cada uma das seis peças tem sua própria casa. Todos os núcleos são revestidos de um tecido grosso preto e têm uma textura aveludada, que lembra uma cortina de teatro ou mesmo de cinema. Por dentro, cada uma tem estrutura e cor próprias.
A célebre (1981-2022), por exemplo, tem um vermelho, enquanto (2019-2021) tem uma cor azul intensa e (2019-2020), um alaranjado sóbrio. Quando o visitante entra em uma dessas casas, ele atravessa e é atravessado pela cor que o acolhe; só depois chega a uma sala escura, onde a obra está projetada. Em uma entrevista concedida ao Steidl Publishers, em 2022, Nan Goldin diz que sempre pensou em seus como sendo filmes feitos de . Ou seja, é como se cada espaço fosse de fato um pequeno cinema. Assim, ao adentrar as casas que compõem a exposição, o espectador acaba adentrando também em uma zona de intimidade: da artista, da obra, de si mesmo – o quarto escuro.
Nascida em 1953, em Washington, nos Estados Unidos, a artista se mudou para Boston ainda muito pequena. Aos 16 anos, foi introduzida à câmera fotográfica, que se tornou sua grande ferramenta de trabalho e de expressão. Sua primeira exibição solo, em 1973, em Boston, já trazia uma exploração muito próxima e direta da comunidade e LGBTQIA+ da cidade. O grande diferencial do trabalho da artista era sua intimidade com as pessoas e com o mundo que fotografava. Algo que certamente afeta os instantes capturados, como em (1980) ou em (1999), mas também a forma de os capturar, com enquadramentos próximos, uso constante de e uma química específica na relação dos fotografados com a câmera – seja por não se incomodarem com sua presença, de tão íntimos, ou pela forma de olharem através da lente, para a amiga que os fotografava. Goldin de fato vivia no mundo que fotografava, e até por isso fazia também autorretratos singulares, como o violento (1984).
Muitas dessas fotos da fase inicial do trabalho de Nan Goldin estão nos (1981-2022) e (1992-2021), que continuam sendo retrabalhados constantemente pela artista desde o século passado. O primeiro dos dois, por exemplo, recebeu uma versão nova para a exposição no Moderna Museet. “ é o diário que eu deixo as pessoas lerem”, disse Goldin se referindo ao aspecto pessoal e autobiográfico da obra. Ali estão cenas eróticas, festivas e violentas da própria fotógrafa e de seus amigues, incluindo a brilhante (1983).
Amanda at the sauna, Hotel Savoy, Berlin, 1983. Ur diabildspelet The Ballad of Sexual Dependency, 1981–2022. © Nan Goldin
Em , a artista faz uma homenagem às amizades trans, celebrando uma euforia de gênero. Vemos ali um olhar amoroso e direto da fotógrafa-cineasta, um respeito profundo à potência de vida daquelas pessoas. É o que fica evidente, por exemplo, em (1973). Em Goldin, uma pessoa trans não traz consigo um corpo estranho ou exótico, traz simplesmente a coragem de viver da forma mais sincera. Por isso, esse trabalho marca um claro contraponto com certas fotos publicadas no livro-coletânea (1996), em que a artista acompanha o processo de morte da amiga Cookie Mueller, vítima da Aids. Assim, seja na festa da vida ou no luto da morte, o trabalho de Nan Goldin lida muito com a memória. Se ela segue até hoje atualizando seus com fotos antigas, é possível ler aí um esforço de não deixar que se perca a existência dos corpos que já não estão – seja porque morreram, ou porque simplesmente mudaram, caminharam no tempo e seguiram vivendo.
Mas é também um trabalho que lida com a experiência subjetiva em si, mesmo quando a memória falha. É o caso de (2019-2021), outro filme que compõe a exposição. Mais recente, essa sequência de imagens tremidas, distantes, desfocadas ou desérticas já não têm quase nada da natureza intimista cultivada nas fotografias das outras obras. também usa material de arquivo da artista, mas o faz para representar o esquecimento, o precipício da adicção. O tremor dos riscos luminosos em tantas fotos remete à intensidade imediata da experiência da abstinência das drogas. O corpo e a mente são tomados por uma força devoradora que pausa o tempo. Não há mais o que lembrar; há a necessidade da substância, ou a possibilidade de uma rota de fuga. A falta de memória gera também perda de identidade, solidão. Já não são os amigos íntimos que são fotografados. É uma peça que a própria artista declarou ter sido muito difícil de fazer em uma entrevista à Marian Goodman Gallery.
My horse Roma, Valley of the Queens, Luxor, Egypt, 2003. Ur det digitala bildspelet Memory Lost 2019–2021. © Nan Goldin.
The crowd, Paternò, 2004. Ur det digitala bildspelet Memory Lost 2019–2021. © Nan Goldin.
Fur Wheel, 1962. À direita: Colorado House, 1962. ©
Greer in a babydoll dress, NYC, 1981. Ur diabildspelet The Other Side, 1992–2021. © Nan Goldin.
Seguindo nessa linha, o título da exposição (“Isto não vai acabar bem”) parece sugerir uma conotação negativa e catastrófica à mostra. Mas há nessa frase também um aspecto de desafio, ou cumplicidade na partilha de uma vivência com alguém; há um sorriso de canto de boca: a declaração implícita de um desejo, de um devir. Não por acaso, mesmo depois de , poderemos ver (2019-2020), que formula uma viagem através do torpor das drogas. Ou seja, o trabalho de Nan Goldin nos apresenta, acima de tudo, uma entrega às contingências da vida, aos encontros e desencontros que nos afetam e nos definem, que nos libertam.
Drika de Oliveira é chefe de coleções fílmicas na Cinemateca do MAM Rio, Diretora de Fotografia e Pesquisadora Audiovisual.