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MARCELLE

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NAN GOLDIN,

NAN GOLDIN,

A MANEIRA COMO OS OBJETOS, AS IDEIAS E OS CONCEITOS SÃO ORDENADOS NO MUNDO, BEM COMO AS ESTRUTURAS DE PODER E AS HIERARQUIAS QUE SUSTENTAM ESSES SISTEMAS DE ORGANIZAÇÃO SÃO TEMAS CENTRAIS NA PRODUÇÃO DA ARTISTA CINTHIA MARCELLE

Por Isabella Rjeille

, título da exposição de Cinthia Marcelle no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), parte de um trabalho da artista que consiste em desenhar um muro de tijolos com um rolo de fita-crepe e uma folha de papel. Esse trabalho pode (ou não) ser acompanhado de outro, intitulado (2007-em processo). Em ambos, percebemos os gestos simples de interromper o comprimento da fita com um corte manual e cuidadosamente remontá-la no formato de um muro sobre uma folha. O que os distingue, para além de seus títulos, é a representação do muro: enquanto designa um muro intacto, (2007-em processo) o representa arruinado. Em ambos, a cor da fita que compõe o muro é da mesma cor do papel, tornando essa barreira opaca, mas não completamente invisível. Com o passar do tempo, a acidez da cola atribui à fita nuances de amarelo sobre o papel branco e revela a barreira.

O trabalho reúne e sintetiza uma série de assuntos que atravessam a prática de Cinthia Marcelle nas artes visuais e para além dela por isso foi escolhido como título desta exposição, a primeira mostra panorâmica dedicada à artista no Brasil. No entanto, para realizar uma panorâmica da produção de Marcelle, é preciso adotar uma metodologia não baseada na linearidade temporal de sua biografia. A produção da artista segue outra lógica. Pode ser organizada por materiais, operações, gestos, cores ou temas que se entrecruzam e ressurgem ao longo de sua trajetória. A expografia propõe um percurso circular por obras de diferentes períodos, muitas delas revistas e/ou reconfiguradas para esta mostra. Neste ensaio buscarei navegá-lo, ampliando-o por meio de uma leitura (também espiralar) de um conjunto de obras da artista, que toma como base três aspectos: os materiais, o tempo e a cor.

Materiais

O primeiro aspecto está na escolha dos materiais utilizados pela artista. Eles determinam temas e procedimentos, delineiam universos de interesse com os quais a artista irá trabalhar. Esses materiais, muitas vezes provenientes de ambientes escolares ou da construção civil, estão presentes em diversos trabalhos de Marcelle, como (2002), (2009), (2009), (2014), (2015) e (2018), e definem dois campos de interesse centrais em sua produção: a educação e o trabalho. As figuras do estudante e do trabalhador também aparecem com frequência em suas obras, sempre como protagonistas de ações e performances que partem de seus próprios ofícios, aproximando e desfazendo distinções entre o trabalho manual, os processos de aprendizado e o trabalho do artista. Em algumas dessas obras, o trabalho é esvaziado da necessidade de produtividade impostas ao trabalhador pelo sistema capitalista; o ambiente escolar aparece na sua capacidade de recusa da reprodução de formas hegemônicas e excludentes de entendimento de mundo. Ambos são trazidos não apenas por seus materiais, mas também por gestos, que, deslocados da ordem cotidiana das coisas, se mostram prontos para serem reorganizados e reorganizar, a partir das bases, as sociedades nas quais se inserem.

A aproximação entre esses dois universos está presente em uma nova obra reconfigurada para o MASP a partir de (2016), inicialmente exibida em (2016-17), na Duplex Gallery do MoMA PS1, em Nova York. O espaço da Duplex Gallery, que já abrigou uma escola, teve as frestas dos tijolos das paredes preenchidos por bastões de giz de lousa, em uma ocupação linear semelhante às pautas de um caderno — como se, por meio das frestas da parede, Marcelle pudesse estudar aquele lugar. No MASP, um muro de blocos de concreto empilhados ocupa a vitrine que se estende para o Centro de Pesquisa do espaço expositivo do segundo subsolo. O concreto foi escolhido para estabelecer um diálogo com os materiais utilizados no próprio edifício do museu. O rejunte de cimento, que uniria esses blocos, é substituído por giz de lousa escolar encaixado nas frestas, em uma referência ao rejunte que vaza por entre os blocos que separam as paredes dos ateliês no Sesc Pompeia, edifício de Lina Bo Bardi, arquiteta que concebeu e projetou o MASP.

Tempo

O segundo aspecto mobilizado por Marcelle é o tempo, um dos elementos que organiza nossas vidas, seja contabilizado na forma de calendários, relógios e agendas, dias e noites, meses e anos, como elemento que nos faz perceber as mudanças, seja através da luz, pela simultaneidade e repetição dos eventos, pelo envelhecimento dos materiais, ou mesmo pelo acúmulo de pó nos cantos da casa. Em e , é o tempo que revela a estrutura de uma barreira antes opaca. Já em e , ambas de 2019, e na série (2018-20), o tempo é contado a partir do trabalho manual da artista e de seus colaboradores, com os materiais que compõem a obra: tecido, tinta, sarrafo e cadarço. é uma série de pinturas que torna visível em seu produto final a relação entre tempo e trabalho mobilizados para a execução de cada peça. A série completa é composta por 13 obras, nas quais as faixas pintadas industrialmente de preto são cobertas manualmente com tinta branca. Essa faixa preta, por sua vez, materializada em um cadarço da mesma cor, comprimento e largura, é enrolada sobre um sarrafo que acompanha o tecido. Ao serem justapostos, o ritmo e a variação das faixas brancas e pretas evidenciam as quantidades de tempo e trabalho empregadas na confecção de cada peça. Já na série (2004-em processo), o tempo se manifesta em pequenas ações orquestradas pela artista e executadas por agrupamentos de pessoas, fazendo emergir uma unidade coletiva em meio à aleatoriedade e à dispersão cotidianas.

Em (2005)., uma cena cotidiana é alterada e republicada no tempo: em um cruzamento de uma cidade qualquer, oito malabaristas brincam com fogo durante o intervalo do sinal de trânsito. Inicialmente, dois deles ocupam a faixa e, a cada fechamento do sinal, mais dois se unem à ação, até ocuparem toda a extensão da faixa de pedestres, formando uma barreira de fogo frente aos automóveis e motocicletas, que, ao final, buzinam coletivamente diante dessa interrupção inesperada da ordem das coisas. Com esse agrupamento não usual de malabaristas no sinal, a artista joga com o tempo que organiza os fluxos urbanos, reconfigurando momentaneamente as dinâmicas de poder subjacentes à rotina das grandes cidades.

Cor

A cor é capaz de inscrever e apagar, borrar e demarcar, ressaltar, sobrepor, tornar visíveis ou invisíveis determinados aspectos de objetos, situações, contextos e lugares. A cor carrega também significados históricos e sociais distintos em cada contexto. É um elemento formal é uma escolha estética, mas também ética e política. Em

Marcelle evidencia como o contexto é capaz de influenciar o que é visível e o que não é. Mesmo que figura e fundo sejam supostamente da mesma cor, seus materiais fazem com que, aos poucos, suas diferenças apareçam. Um dos trabalhos que sintetizam a complexidade da abordagem da cor na obra da artista é a série de fotografias (2003), realizada em parceria com o artista sul-africano Jean Meeran durante uma residência artística na Cidade do Cabo, na África do Sul. Dividida em quatro partes ( , e ), essa série registra a artista em processo de se localizar em contexto alheio ao seu. No conjunto de fotografias, Marcelle tem seu corpo totalmente coberto por tecidos, misturando-se à paisagem ou perdendo-se em meio ao acúmulo de objetos em uma feira de rua. Apenas em , a última foto do conjunto, a artista aparece sentada no banco traseiro de um trem, em um dia comum na cidade, completamente misturada a seus habitantes. Sobre essa foto, Marcelle relatou:

Marcelle trabalha a cor de maneira análoga, reforçando que uma escolha estética é capaz de revelar aspectos políticos subjacentes a ela. Na instalação (2014-22), a cor é aplicada sobre objetos provenientes da construção civil e sobre o espaço expositivo em que estão inseridos. Essa instalação foi pensada como uma intervenção no segundo subsolo do MASP, em diálogo com a arquitetura moderna e sem paredes do edifício de Bo Bardi, concebida para ser permeável e acessível. Esse espaço foi originalmente pensado como um local de encontro, um hall cívico — parcialmente cercado por janelas, que ao mesmo tempo permitem ver de dentro o que está fora e apartam fisicamente esses dois lugares. Sobre essas janelas, Marcelle posicionou placas de madeira pintadas de branco que remetem aos painéis que recebem as obras no espaço expositivo. Essas placas deixam ver, por entre suas frestas e intervalos, um pouco do que está na rua: as pichações nos muros, as pedras e o jardim na área externa, os pertences de uma pessoa que usou aquele espaço como abrigo. Martelos, capacetes, escadas, botas, baldes, pranchetas, pastas e canetas são colocados cuidadosamente no limiar de um espaço demarcado no chão pintado na cor branca, no mesmo tom das chapas, que avançam para cobrir parte dos objetos que atravessam essa demarcação. A escolha de uma cor tão frequentemente utilizada nas paredes dos espaços de arte pela convenção de sua suposta “neutralidade” recobre parte desses objetos, uniformizando, homogeneizando e apagando suas diferenças. Aqui, ela atua como a criação de um espaço temporário, no qual a regra é que tudo o que se encontra dentro é contaminado por essa cor, que se coloca enquanto norma. No entanto, as placas apenas encostadas sobre as janelas aludem à fragilidade desse sistema, capaz de ser derrubado a qualquer momento por alguns dos objetos que se encontram em suas margens — como marretas e outras ferramentas.

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