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JUDITH lauand,

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MARCELLE

MARCELLE

Acervo

Hoje, diferentes formas de ver e estar no mundo se fazem presentes e se constroem em muitos campos do conhecimento e, especialmente nas artes, o recontar histórias e propor novas abordagens têm sido alvos de atenções de artistas, curadores e museus. Prova disso são as recentes interações entre, arte, história e antropologia nas propostas artísticas e em exposições que trazem discursos plurais, tais como as mostras organizadas pelo Museu de Arte de São Paulo (MASP), que contam histórias a contrapelo.

No atual ciclo curatorial (biênio 2022/2023), a exposição com curadoria de Adriano Pedrosa e Fernando Oliva, celebra os 100 anos da artista, falecida em dezembro de 2022, mas também vê e reescreve a história da arte brasileira sob nova perspectiva.

Por meio de 128 obras e dezenas de documentos do arquivo pessoal de Lauand, a mostra joga luzes sobre sua trajetória e sobre o projeto construtivo brasileiro. E os fatos e questionamentos são tantos, que fico até agitada. Mas, vamos com calma! Organizemos as ideias: o primeiro ponto é compreender o que foi o concretismo no Brasil. E, na sequência, entender por que o exercício de rever a poética de Judith Lauand é, no fundo, contar “outra história”.

Historicamente, a arte concreta chegou ao Brasil em um momento de euforia, com a expectativa de desenvolvimento econômico, após a II Guerra Mundial. Viam-se a proliferação de indústrias nacionais, como a automobilística; a criação da Petrobrás; as siderúrgicas; o crescimento das cidades e os novos meios de comunicação, como a popularização do rádio, das revistas, dos jornais e o advento da televisão. O país queria superar seu passado arcaico, rural e atrasado, e planejava ser “do futuro”, urbano e industrial. Durante a década de 1950, a elite industrial – preocupada com a inserção do Brasil na modernidade e no capitalismo internacional – apoiou a arte moderna e seus desdobramentos. Sob a influência norte-americana, particularmente com a intervenção do magnata Nelson Rockfeller, o empresário Ciccillo Matarazzo, um exemplo dessa mentalidade burguesa, cooperou para a fundação do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM SP) e do MASP e, além disso criou a Bienal de São Paulo. Aliadas a esses eventos, as ideias do movimento concretista partiram de Ulm (Alemanha) em direção à América Latina, chegando à Argentina e depois ao Brasil. À época, uma série de conferências foi organizada para a preparação de críticos e artistas – mas, para o grande público, as propostas concretas foram difundidas através das Bienais. A primeira Bienal de São Paulo foi realizada em 1951. O Grupo Ruptura, formado em 1952, surgiu a partir desse contexto em São Paulo e se tornou responsável pelas regras do Movimento Concreto Brasileiro. Os membros do Grupo eram: Waldemar Cordeiro (visto como o líder), Lothar Charoux, Geraldo de Barros, Leopold Haar, Luiz Sacilotto, Anatol Wladislaw, Hermelindo Fiaminghi, Maurício Nogueira Lima e a nossa artista Judith Lauand. Diga-se, aqui, que ela só integrou o Grupo em 1955, quando foi convidada por Waldemar Cordeiro, sendo a única mulher inserida oficialmente no círculo concretista.

Acervo 29, Concreto 33, 1956. Acervo MASP. Foto: Eduardo Ortega. © Judith Lauand.

Lauand iniciou seu percurso no final dos anos de 1940, na Escola de Belas Artes de Araraquara e, nessa época, dedicava-se à arte com influências realistas e expressionistas. Seus motivos eram figuras e naturezas-mortas. Ela se formou em Artes Plásticas, em 1950, e, em 1952, mudou-se para São Paulo, onde estudou gravura com Lívio Abramo. A jovem artista entrou em contato mais próximo com o concretismo, quando atuou como monitora na II Bienal de São Paulo, em 1953 – ali, ela teve as primeiras trocas com os membros do Grupo Ruptura – e, nesse momento, adotou o vocabulário abstrato-geométrico.

Assim, ela participou do 4º Salão Paulista de Arte Moderna na Galeria Prestes Maia, em 1955 (nessa ocasião, ela chamou a atenção de Waldemar Cordeiro e selou sua entrada no Grupo). Na sequência, a artista enviou obras para a , realizada, em 1956, no MAM SP e, em 1957, no MAM RJ. Integrou a mostra , em Zurique, em 1960 e, em 1963, expôs na inauguração da Galeria Novas Tendências, em São Paulo, da qual foi fundadora, com Hermelindo Fiaminghi e Luiz Sacilotto.

Sem título, 1955. Foto: Jaime Acioly. © Judith Lauand.

Waldemar Cordeiro e seus amigos seguiam uma doutrina fortemente ligada às propostas do artista suíço Max Bill e da Bauhaus, além disso, enfatizavam em suas produções os valores relacionados à noção de progresso, desenvolvimento industrial, crença na tecnologia e investimento na lógica do capital. Eles aspiravam a uma linguagem de comunicação universal e autônoma, aproximando-se das formas arquitetônicas. Para os construtivistas, a pintura, a escultura e outras linguagens eram pensadas como construções – e não como representações – e, nesse ponto, encontra-se a relação com a arquitetura em termos de materiais, objetivos e procedimentos. Eles se basearam no rigor geométrico, na matemática; eliminaram o gesto (o sinal da mão) e privilegiaram o desenho exato (feito com régua e compasso).

Não demorou muito tempo, as obras concretas repercutiram nacional e internacionalmente e, de certo modo, influenciaram outros artistas, como toda uma fase de Alfredo Volpi. Mencione-se ainda que o concretismo foi um movimento, isto é, ganhou expressão em várias manifestações artísticas, tal como a poesia. E muitos teóricos consideraram o construtivismo “vocação” da arte brasileira – algo que indicava a evolução das artes –, tanto que artistas adeptos do figurativismo, como Di Cavalcanti e Cândido Portinari, foram considerados antiquados. Toda a questão da modernidade se colocou centrada nas propostas construtivas –temos como exemplo disso os ideais que giram em torno da criação de Brasília. Porém, passados alguns anos, a “ortodoxia” do projeto construtivo recebeu sérios questionamentos, em especial, a partir de 1959, quando surgiu o Grupo Neoconcreto – mas, aqui, temos que abandonar essa trama da história da arte brasileira para nos dedicar ao percurso de nossa artista.

Sem título, 1955. Foto: Isabella Matheus. © Judith Lauand.

Nesse ponto, voltamos à produção de Judith Lauand: reconhecida por suas obras com formas geométricas, rigor matemático a partir de linhas, planos e vetores, além das cores contrastantes, a artista foi, muitas vezes, colocada como coadjuvante no círculo construtivista. Lembramos que o Grupo Ruptura era, essencialmente, de homens brancos vindos das classes médias e abastadas – Lauand era uma mulher e, muitas pesquisas atuais evidenciam as relações dúbias entre os membros do Grupo. Em algumas declarações, a artista apontou o acolhimento profissional entre os colegas e a neutralidade de tratamento quanto ao gênero. Ela dizia: “Não me sentia mulher, eu me sentia um ser humano”.

Note-se ainda que críticos e pesquisadores, que se dedicaram ao estudo do concretismo, dão a entender que a trajetória da artista seria como um privilégio dentro daquele ambiente masculino, ou, ainda, uma concessão. O sexismo surgia, vez ou outra, nas tarefas distribuídas entre os integrantes do grupo. Isso pode ser sentido quando a artista contou sobre a pequena desavença entre ela e Cordeiro: para ele, na Galeria Novas Tendências, Lauand deveria vender não apenas suas obras, mas também os trabalhos de seus colegas. Isso, talvez, não fosse exigido dos companheiros homens. Porém, a maior negligência com relação à trajetória de Judith Lauand está no campo da crítica de arte e na análise de seus trabalhos – essa vertente está registrada nos estudos de Talita Trizoli, pós-doutoranda no Instituto de Estudos Brasileiros na Universidade de São Paulo. Adjetivos, tais como “tensões delicadas”, “geometria feminina” e “pequenas delicadezas concretistas”, mostram que o julgamento remete à feminilidade, mas, de fato, esse “feminino” não está nas obras da artista. O que se descreve não é o que se vê. Quando uma figura geométrica é rústica (masculina)? Ou frágil (feminina)? Um círculo é tão somente um círculo! Uma abstração!

À esquerda: Acervo 377, concreto 28, 1956. Abaixo: Moça no trem, 1952. Fotos: Isabella Matheus. © Judith Lauand.

O “desvio” da artista está no uso de sua paleta cromática. As cores contrastantes destoavam dos trabalhos dos seus colegas. Cordeiro, por exemplo, optou por uma economia de cores. Já nossa artista, estrategicamente, empregou a vibração cromática, assim ela se aproximou de um repertório geométrico rejeitado pelas vertentes construtivas. Ao longo de seus 70 anos de produção, ela não se prendeu; foi sempre “desviante”; experimentou diversas técnicas, entre elas, gravura, desenho, guache, colagem, tapeçaria, bordado e escultura. Em alguns trabalhos, percebe-se seu interesse pela pop arte! Por fim, a mostra, em cartaz no MASP, pretende mostrar essa vivência, assim como abrir novas leituras para suas obras que envolvem motivações, como questões políticas, repressão, ditadura militar, a guerra do Vietnã e, com ênfase, sua condição de mulher preocupada com temas, como violência, sexualidade, submissão e liberdade feminina – de modo denso, a exposição tem o objetivo de refletir sobre o construtivismo e, sobretudo, sobre o legado de Judith Lauand nessa nova versão da história da arte brasileira.

Alecsandra Matias de Oliveira é pósdoutorado em Artes Visuais (Unesp).

Doutora em Artes Visuais (ECA-USP).

Mestrado em Comunicação (ECA-USP).

Professora do CELACC (ECA-USP).

Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA-USP). Membro da Associação Brasileira de Crítica de Arte (ABCA). Curadora independente e colaboradora da revista Dasartes, Jornal da USP e Revista USP.

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