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CYBÈLE VARELA
Juvenil
Em 1967, Cybèle Varela era, sob quaisquer critérios, uma artista jovem. Nascida em 1943, em Petrópolis, cidade da serra fluminense, ela havia começado a pintar na infância e vivia na comutação com o Rio de Janeiro, onde frequentava aulas livres de Ivan Serpa, no Museu de Arte Moderna (MAM Rio), e convivia com a cena jovem que então recebia muito nomes: , e .
O Rio de Janeiro de então era um ambiente de osmoses estéticas e políticas. A geração que despontou já sob o peso do coturno da ditadura militar (1964-1985) se definiu mais por princípios éticos do que estéticos. Tenho escolhido como ideia-chave para abordar a atitude dessa geração a noção de “opinião”, que, não por acaso, foi tomada naqueles anos como nome de exposições, espetáculo musical, grupo teatral, festival de teatro e jornal. No Brasil, o ciclo da opinião (e da ) aconteceu de 1964 até o fim de 1968, com a promulgação do AI-5. Cybèle estava, então, plenamente engajada em experimentar as formas e processos que circulavam a seu redor, tanto no meio das artes visuais, quanto além dele. Em outros textos, já escrevi que essa geração se moldou antes por princípios éticos do que estéticos, mas o caso de Varela torna difícil essa distinção. Acredito que o que hoje se conhece de sua produção jovem demonstra foi o “apalpar” da cena cultural em uma época de exceção que a levou a lidar com as contradições daquele tempo.
Antonio das Mortes, 1965-1966. © Cybèle Varela.
Foto: Ariane Varela Braga.
Crescida em um lar em que a política não era um assunto reiterado, sem contar com um convívio tão assíduo com os cariocas, e por ir e vir sempre de Petrópolis, ela se punha em relação com tentativas de contestação que já lhe chegavam como expressão estética. Vejamos, por exemplo, as obras (1965-6) e (1966), compostas pela justaposição de frases, balões de diálogo, personagens e fragmentos de cena. Absorvendo diversos recursos das histórias em quadrinhos, essas obras funcionam também como uma espécie de fanzine pictórico do filme , um clássico de Glauber Rocha e do Cinema Novo. Bordões que o filme tornou célebre se juntam a um imaginário cangaceiro fantástico, em cenas a um só tempo alucinadas e sedutoras. Seja pela simbologia rebelde e marginal do cangaço, seja pela afirmação da resistência incorporada pelo personagem Corisco (“Eu não me entrego, não”), essas obras compunham, no contexto brasileiro da época, um chamado à luta contra o poder instituído. Esse chamado, não obstante, não havia chegado à Cybèle diretamente da ação política, mas por haver metabolizado algo do que então se produzia de mais disruptivo no cinema nacional.
Puzzles
O amadurecimento da obra de Cybèle Varela passou pela absorção do caráter fragmentário do fluxo imagético cotidiano. Obras como (1967), (1967) e (1968), apresentam as ruas como espaço de difração visual de personagens e modos de viver, valendo-se da repetição de elementos como os retângulos paralelos das faixas de pedestres para embaralhar cenas percebidas de modo simultâneo ou sequencial. Essa era uma forma de incorporar o ritmo urbano sincopado nas cores saturadas e brilhantes da tinta esmalte aplicada pela artista em placas de madeira. Era, também, uma espécie de crônica pictórica, que sublinhava a transformação da vida contemporânea e dos seus costumes, impulsionada por uma jovem geração que abraçava entusiasmada novas vestimentas e sociabilidades.
O sentido de fragmentação e simultaneidade se aprofundava nos objetos, caixas e volumes explorados pela artista na segunda metade da década de 1960. Seja pelo emprego de espelhos ( (1967) e (1967)), seja pela possibilidade de girar, abrir ou mover peças ( e outras caixas hoje perdidas), o espectador se via implicado nas obras, instigado a interferir em seu tempo de apreensão e na edição de suas narrativas. Essa possibilidade foi levada mais longe nos feitos pela artista, verdadeiros tabuleiros cambiantes compostos por duas pinturas sobrepostas – uma delas perfaz a base do arranjo, enquanto a outra é recortada em nove partes iguais, das quais se suprime uma com a finalidade de permitir que os pedaços deslizem e sejam reposicionados.
O único cuja localização é hoje conhecida se chama (1970), mas há o registro de outro trabalho dessa natureza com o mesmo título. Nos dois casos, a tensão narrativa reside no encontro entre um homem e uma mulher, o qual pode mudar de conotação dependendo do arranjo formado pelo público ao manusear as peças moventes da pintura. A depender do maior ou menor naturalismo no encaixe das anatomias dos personagens, das cores que se mantêm aparentes, e da posição relativa entre as figuras masculinas e femininas, o encontro em questão reitera ou frustra a felicidade prometida no título das obras.
Quando as cores e luzes dos biomas tropicais retornaram ao ateliê de Varela, elas já não estavam flutuando em um imaginário arquetípico, mas haviam pousado na superfície de reproduções fotográficas manuseadas no ambiente da casa ou do ateliê. A pintura (1973), é uma das primeiras a revelar essa situação. Nela, vemos uma densa mata composta em tons de verde e amarelo, com pontuações em rosa. Há dois tucanos repousando na copa de uma árvore. Há, também – e aí a ilusão alegórica começa a se desfazer –, um requadro de linhas um pouco abauladas abraçando essa paisagem, e dois círculos pequenos sobre seus cantos superiores. Ao redor, tudo está pintado de rosa. No lado direito, vê-se um interruptor de luz e, sobrepondose a ele, um feixe de luminosidade mais intensa. Percebidos em sequência, os elementos dessa obra explicitam que a artista não estava efetivamente pintando nem tucanos nem florestas, mas um ambiente fechado, com luz elétrica e entrada de luz natural, uma parede rosada, na qual foi fixada uma fotografia do Brasil daquelas dignas de cartão-postal.
Essa (colocação em cena, em uma tradução direta e eficaz) se repetiu inúmeras vezes na produção de Cybèle Varela ao longo da década de 1970. Por vezes, a artista preferia abrir mais seu enquadramento, a fim de explorar a espacialidade do contexto observado em sua pintura e posicionar a paisagem fotografada como um objeto de cena (como em (1973)). Noutras vezes, ela alargava a paisagem, reduzindo os vestígios da arquitetura a seu redor e reforçando a presença dos feixes de luz natural projetados sobre a fotografia (como em (1974) e (1974)). Em todos os casos, o observador atento percebe que o assunto das obras extrapola do deslumbre perante a paisagem. O tema efetivo dessas pinturas reside nas mediações acumuladas entre a paisagem percebida em primeira mão e aquela enquadrada, fotografada, impressa, posicionada, pintada.
AS MULHERES DE CYBÈLE:
REPRESENTAÇÕES DO FEMININO NOS ANOS 1960 E NO PRESENTE
POR CAROLINA VIEIRA FILIPPINI CURI
Na década de 1960, o embate entre novos modos de vida desejados e uma sociedade sexista e conservadora não esteve alheio à produção de Cybèle Varela. Suas produções, realizadas no contexto da brasileira, representaram o ambiente urbano e suas idiossincrasias. Varela abordou temas urbanos e populares, o impacto da mídia de massa na sociedade, a ditadura e privilegiou, em um grande número de obras, a representação da figura feminina. Podemos identificar, em muitos de seus trabalhos dos anos 1960, o interesse por questões relacionadas com os lugares ocupados pelas mulheres na sociedade, a objetificação feminina e o impacto da moral católica nas vivências das mulheres. Varela não se considerava uma feminista, assim como boa parte das artistas e intelectuais sul-americanas do período. O contexto no qual viviam, de repressão política e conservadorismo, dificultou que as pautas do movimento feminista, que renascia em sua chamada segunda onda, estabelecessem-se de maneira mais concreta no país. As associações feministas praticamente desapareceram com o Golpe de 64, voltando a tomar impulso somente a partir de 1975, com a instauração do Ano Internacional da Mulher, por iniciativa da ONU. Dentro desse cenário, o feminismo foi constantemente apresentado como um movimento de mulheres frustradas e pouco femininas, e mesmo grupos de esquerda diminuíram o movimento das mulheres, fazendo com que o termo feminista ganhasse um teor pejorativo. Isso não quer dizer, porém, que as artistas brasileiras não tenham abordado, de maneira mais ou menos direta, questões importantes para a segunda vaga feminista. Cybèle Varela e muitas artistas sul-americanas, como a argentina Dalila Puzzovio, a peruana Teresa Burga e colombiana Beatriz González, ao se voltarem para o registro do cotidiano e da vida urbana, em obras muitas vezes autorreferenciais, retrataram os desafios enfrentados pelas mulheres no período, discutindo,assim,muitasdaspautasqueseriamcentraisparaomovimentofeminista.
Miss Brazil e o Cisne, 1968.
Foto: Cortesia da artista. © Cybèle Varela.
A obra , de 1968, é um exemplo de como Varela trata questões relacionadas à vivência feminina e como traz uma perspectiva crítica. O trabalho, assim como muitos outros de Varela e de artistas da , conta com cores fortes e chapadas, uma representação simplificada das figuras, sem texturas e sem pinceladas aparentes, em uma linguagem semelhante à da publicidade, do design gráfico. Para os artistas do período, utilizar uma linguagem semelhante à da publicidade funcionava não somente como uma maneira de discutir a mídia de massa e seu impacto na vida dos indivíduos, mas travar um contato imediato com o público, comunicar de forma clara e direta e aproximar arte e vida.
Ao pintar uma , Varela traz as referências das revistas populares, dos programas de TV e do universo das celebridades, conectada aos interesses da época em representar a iconografia da cultura de massa, do cotidiano contemporâneo e dos temas ligados à vida urbana. Porém, podemos pensar, ainda, que o tema aparece na obra de maneira crítica, “buscando propor uma reflexão a respeito do lugar das mulheres na sociedade”. Os concursos de beleza começaram a receber severas críticas de grupos de mulheres no período, como ocorreu na icônica manifestação feminista realizada em Atlantic City, nos Estados Unidos, em 1968, mesmo ano da produção da obra de Varela, na qual uma centena de mulheres protestou em frente ao teatro onde ocorria o . Posicionando-se contra a ditadura da beleza, as mulheres jogaram sutiãs, cílios postiços, revistas , sapatos de salto e outros itens em uma lata de lixo, em um protesto que ficou conhecido como “A queima dos sutiãs”. A obra de Varela, em consonância com o que era apontado por alguns grupos, critica a redução das mulheres à sua aparência física, seu aprisionamento a um ideal de beleza e o papel dos concursos e da mídia na perpetuação de um imaginário que relaciona o feminino à beleza e não ao intelecto, à razão ou à força.
Varela também abordou, em obras do período, o impacto da moral católica na vida das mulheres e o contraste entre diferentes modos de vida no ambiente urbano. Em um contexto de grande aumento da população urbana, devido às migrações do campo para a cidade, Varela representou em muitas obras o cotidiano da grande cidade e seus contrastes. Temos como exemplo a obra intitulada (1967). O trabalho em cores fortes, com predominância do vermelho, tem uma estética e narrativa sequencial que remetem às histórias em quadrinhos. A narrativa mostra quatro mulheres que se cruzam ao atravessar uma faixa de pedestres em um ambiente marcadamente urbano.
De tudo aquilo que pode ser I, II e III , 1967.
© Cybèle Varela. Foto: Romulo Fialdini.
A obra retrata diferentes modos de vida e de sociabilização que se cruzam e se chocam nos ambientes urbanos. Ao representar jovens mulheres de salto e minissaia de um lado, freiras de outro, e o choque e a confusão entre elas, Varela aborda as transformações da moda, o impacto da moral conservadora e católica na vida das mulheres, e os papéis possíveis de serem ocupados pela mulher na sociedade. É interessante observar, ainda, que uma sensibilidade em relação à condição da mulher não se encerrou nas produções de Cybèle Varela realizadas nos anos 1960, continuando presente em obras mais recentes, produzidas nos anos 1990 e 2000. Nessas pinturas – o foco maior de Varela continua sendo a pintura figurativa –, podemos ver ainda o crescimento de uma vontade por parte da artista de representar a si própria. Nós a vemos em obras como , de 1998, uma espécie de autorretrato multifacetado da artista mostrando diferentes fases de sua vida e diferentes personas em frente a um espelho.
É possível vê-la representada, ainda, na obra , de 1999. Na tela de grandes proporções, com cores fortes e contrastantes, vemos a artista retratada cinco vezes. Na parte inferior da obra, Varela aparece em um painel de fundo azul, segurando um pincel no alto de uma escada, usando uma peruca e um vestido renascentista. Na parte superior da tela, vemos metade de seu corpo invertido frente a um céu azul, com uma paleta de tinta em uma mão e um pincel na outra, pintando a própria imagem na parte inferior do quadro. Em três pequenos pintados na parte superior, vemos a artista representada mais três vezes, em ambientes diferentes, como uma janela para o que ocorre fora da cena principal representada na tela. O trabalho dialoga com a história da arte na medida em que pode ser pensado tanto como uma referência aos autorretratos de artistas em seus ateliês que surgem a partir da transformação do do artista no século 16 e que se proliferam no século 19, quanto como uma referência às pinturas e performances de mulheres artistas nos anos 1970, nas quais elas se apresentavam de pincel na mão, mostrando-se como produtoras ativas e não mais como objetos passivos de representação.
Paulo Miyada é curador e pesquisador de arte contemporânea. Atualmente é curador do Instituto Tomie Ohtake, onde coordena o setor de Pesquisa e Curadoria.