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LEONTINA
MARIA LEONTINA ERA UMA ACUMULADORA DE REFERÊNCIAS E OBJETOS PELOS QUAIS NUTRIA IMENSO
AFETO.AARTISTAVIANAARTEPOPULAR,NAESTATUARIA RELIGIOSA E NOS ARTEFATOS INDÍGENAS UM MANANCIAL DE CONTRADIÇÕES PLÁSTICAS, DE ONDE
SURGIU OS INTERESSES QUE SEGUIRAM SEU PERCURSO DA FIGURAÇÃO ATÉ A ABSTRAÇÃO LÍRICA
POR RENATO MENEZES E THIERRY FREITAS
DA PAIXÃO PELOS OBJETOS
Em uma fotografia datada de 1973, Maria Leontina olha para a câmera enquanto insinua tocar objetos dispostos sobre um armário de madeira. Nele, estatuetas religiosas convivem com cartões-postais de impressão industrial, enquanto bolsas artesanais e potes de cerâmica coabitam o mesmo espaço ocupado por caixas decoradas e livros que se apoiam uns nos outros. Ao fundo, artefatos indígenas incrementam a coleção heterogênea que povoa o ateliê que a artista manteve na rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, na zona sul do Rio de Janeiro. Cada plano que estrutura o armário – cada estante, cada porta – parece se oferecer à Maria Leontina como suporte para um criterioso e lento trabalho de composição, formando quadros de delicadas ações de suas mãos: colocar ou retirar qualquer objeto desse suporte supõe uma cuidadosa coreografia dos dedos, para que os outros objetos que os avizinha não sofram qualquer dano ou prejuízo potencialmente fatal. Tudo o que ali está parece ter sido destinado a ocupar a posição que ocupa, para que nenhum espaço vago se tornasse uma injustificável lacuna. Tudo o que ali está parece suspenso no tempo, sem futuro nem passado, tal qual uma natureza-morta, gênero que Leontina nunca deixou de praticar ao longo de sua carreira. Tudo o que ali está parece ter passado pelo rigoroso crivo de suas mãos.
Acima: Sem título, 1951. Abaixo: Os episódios IV, 1959. Fotos: Cortesia Almeida & Dale.
Se a atividade artística de Maria Leontina pudesse ser definida em poucas palavras, a busca incessante pela tradução em imagens do que as mãos podem sentir seria a melhor forma de expressar o modo como ela se aproximou dos objetos, até fazer de suas obras os objetos pelos quais se apaixonava. “Desde menina eu me apaixonava pelos objetos como os outros se apaixonam pelas pessoas”, confessou Maria Leontina, em 1979.
Nessa época, Leontina já trabalhava no referido ateliê de Ipanema, que manteve até o fim da vida. Ocupavam esse pequeno apartamento muitos objetos: leões de barro, anjos de madeira e tocadores de violão; oratórios, máscaras e leques; bonecas , cestos de palha e porta-joias; jarros, cadeiras e pilhas de papeis – toda sorte de objetos, de proveniências e materiais diversos, pareciam estabelecer entre si uma inusitada intimidade, como as que florescem entre os que pouco se importam com a autoridade do calendário. A organização entre eles era arbitrária, pouco (ou nada) hierárquica, obedecendo a critérios tais como peso, medida e material, reminiscências, talvez, das lições que aprendera no curso de Museologia que frequentou na mocidade. Ali, naquele ateliê, esses objetos estavam isentos de qualquer interesse etnográfico para alcançar a dimensão mais concreta e “coisal” que eles poderiam integrar: Maria Leontina parecia ver na arte popular, na estatuaria religiosa, nos artefatos indígenas um misterioso manancial de contradições plásticas, que combinavam a precisão da forma com as incorreções da mão não domesticada, lá onde se firmava um pacto entre rigor e calor que a artista jamais abandonaria até o fim de sua carreira. Talvez por isso, o lugar mais adequado para esses objetos seja não o de fonte de inspiração –termo, aliás, incompatível com a prática de uma artista obcecada pelo desenho, pelo projeto e pelo trabalho demorado sobre as telas –, mas o de testemunhos de sua produção e origem de “infinita e imprevisível surpresa”, conforme anotou ao final de um texto poético que escreveu em 23 de maio de 1967. Talvez, nesses objetos, encontre-se o princípio que emana de suas obras, sobretudo as que fez a partir da década de 1960, segundo o qual pintura se faz a partir de coisas e não de ideias.