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DA CONSCIÊNCIA ABSTRATA
O ano era 1952. Ao se referir à própria produção nos primeiros anos da carreira, Maria Leontina respondeu: “Não tenho passado artístico. Mas acho que pensei em ser pianista, embora nunca tenha concretizado ser alguma coisa”. E mais adiante, quando perguntaram se era a paisagem do Brasil que lhe tinha despertado o sentido das cores, ela completou: “Mas teria eu visto alguma paisagem neste tempo? Creio que a verdadeira paisagem que eu descobri e que quis exprimir foi esta paisagem contida nas pessoas e que reflete o resto das coisas. Quando comecei a desenhar, só desenhava rostos”. Os anos de 1940, quando Leontina introduziu-se com maior afinco à prática artística e passou a frequentar o ateliê de Waldemar da Costa, seu mestre, pareciam se projetar com grande distância no tempo. Ao que tudo indica, sua passagem pelo ateliê de Johnny Friedlaender, durante sua estada em Paris, entre 1951 e 1952, depois que recebera um prêmio do governo francês na I Bienal de São Paulo por uma natureza-morta, fez estreitar sua relação com a abstração, deslocando sua relação com a figuração para um passado virtualmente distante. Embora quisesse apartar esse passado recente, a trajetória formativa de Leontina não diferia muito da de outros artistas, que se viram impelidos em substituir a sugestão abstrata, contida em faturas cubistas e composições metafísicas, por uma abstração literal. O ano de 1952 foi crucial para a história da arte brasileira: data desse ano a criação do Grupo Ruptura, liderado por Waldemar Cordeiro, em São Paulo, enquanto, no Rio de Janeiro, Ivan Serpa já se organizava para criar o Grupo Frente, fundado apenas dois anos mais tarde, quando o grupo paulistano já havia se diluído. É com esse panorama de expansão da abstração geométrica que Maria Leontina se deparou quando retornou ao Brasil, já nutrida das teorias da composição e da Gestalt que conhecera nos ambientes franco-germânicos que frequentara. Deu-se início, então, a uma arriscada manobra: reorientar seu estilo significava reelaborar, com as ferramentas de que dispunha, a passagem “da forma ao Todo”, ou, em outras palavras, da abstração à (empatia), perfazendo o caminho traçado por Wilhelm Worringer em sua obra clássica, publicada em 1907. As naturezas-mortas, como aquela que expôs na citada Bienal, os retratos e, em menor número, as paisagens, cediam lugar a um estilo mais explicitamente geométrico, mais organizado, mais controlado, mais sintético. A pintora iniciante, que desejava ser expressionista, parecia ceder cada vez mais às conquistas geométricas celebradas pelos seus contemporâneos. De seu estilo inicial, no qual prevalecia uma inclinação expressionista livre de qualquer sedução pela dimensão trágica da vida, manteve-se o compromisso com os gestos largos do pincel sobre a tela e o desejo de reconstrução do espaço, que se revelou em alguns pretextos figurativos. O mais recorrente, sem dúvidas, é o motivo da cadeira (substituído vez ou outra por uma janela), que aparece tanto nas naturezas-mortas, quanto nos retratos. Foi sobre a cadeira, ou na frente de um formado pela janela, que Leontina organizou seus objetos – conjunto no qual se incluem os personagens que retratou – e foi a partir dessa estrutura geométrica, em geral ortogonal, que o espaço foi reconstruído.
Janela, s.d. e Pintura, 1967.
Fotos: Isabella Matheus.
Cortesia : Pinacoteca de São Paulo.
Da Forma E Do Todo
Em um ensaio dedicado à obra de Maria Leontina, Lélia Coelho Frota, uma de suas amigas mais próximas, escreveu: “O seu processo de criar e se relacionar com o mundo constituiu o oposto da premeditação intelectual, e os meios a que sempre foram estrita e exclusivamente de valor visual. Como Klee e Miró, artistas de sua predileção [...], Leontina dava título aos seus temas após a conclusão dos trabalhos”. Maria Leontina não foi uma artista de rupturas ou de gestos radicais; ao contrário, sua obra constitui um grande conjunto coerente, que se organiza sobre um fio de rara continuidade entre os artistas modernos, em geral, e os de sua geração, em particular. Talvez por isso seja tão difícil aplicar o termo “fase” ou “período”, em sua trajetória.
Muito embora a artista tenha se notabilizado por suas séries, que se organizam como subconjuntos mais ou menos autônomos dentro de sua produção bastante homogênea, seu interesse na pintura como processo parece se revelar incompatível com a ideia de pintura como “coisa finita”, traço que se manifestou tanto na organização dessas séries propriamente ditas, sempre prontas para crescer, quanto no aspecto plástico que adotou, via de regra, em sua obra.
Sem título, 1969. Foto: Gabi Carrera. Cortesia Denise e Gonçalo Ivo.
Com esse estilo difuso e processual, em que a mancha progressivamente se sobrepõe à forma nítida, Maria Leontina trouxe ao mundo “pequenas invenções de objetos simbólicos inexistentes”, que povoaram sua obra, desde os empilhamentos de formas geométricas que se organizam em um “equilíbrio precário de pedras e blocos no espaço”, como em , , s e , até as séries em que os objetos deixam de se tornar pretexto à fragmentação do espaço para se tornarem centro de uma observação dissolutiva: os ângulos se arrefecem, as linhas se diluem, os contornos se tornam ainda mais imprecisos e o plano se apresenta como superfície complexa sobre a qual linhas e pontos coexistem. Surgem, então, séries como os , , , , , , , , em que os planos se comportam de maneiras diferentes, todos eles negando a rigidez e a frontalidade absoluta, em um espaço que agora, mas do que nunca, prescinde de qualquer referência ao mundo exterior
Renato Menezes é curador e historiador da arte e doutorado em Teoria da Arte pela EHESS (Paris).
Os episódios V, 1959-1960. Foto: Cortesia Pinacoteca de São Paulo.
Thierry Freitas é curador e historiador da arte atuando com Arte Moderna e Contemporânea.
MARIA LEONTINA: DA FORMA AO
TODO • EDIFÍCIO PINA LUZ • SÃO
PAULO • 13/5
A 10/9/2023
COM OBRAS BIDIMENSIONAIS E TRIDIMENSIONAIS EM UMA VARIEDADE DE MEIOS, A ARTISTA GERMANOVENEZUELANA GEGO EXPLOROU A RELAÇÃO ENTRE LINHA,ESPAÇOEVOLUME.SUASPRÁTICAS,EMFLERTE COM A ARQUITETURA, O DESIGN E A EDUCAÇÃO, COMPLEMENTARAM ESSAS INVESTIGAÇÕES
POR PABLO LEÓN DE LA BARRA E GEANINNE GUTIÉRREZ-GUIMARÃES
Uma das artistas mais significativas a surgir na América Latina durante a segunda metade do século 20, Gego (n. 1912, Hamburgo; d. 1994, Caracas) permanece menos conhecida nos Estados Unidos. Nascida em uma família judia alemã, Gertrud Goldschmidt, ou Gego, formou-se inicialmente como arquiteta e engenheira na Universidade Técnica de Stuttgart (agora Universität Stuttgart). Fugitiva nazista da perseguição em 1939, emigrou para a Venezuela, onde se estabeleceu permanentemente, iniciando, na década de 1950, uma carreira artística de mais de quatro décadas.
Gego apresentou ideias radicais por meio de suas investigações de sistemas estruturais: transparência, tensão, fragilidade, relações espaciais e os efeitos ópticos do movimento são metodicamente abordados em seu corpo singular de trabalho. Traçando um percurso artístico marcadamente individual, Gego desafiou a categorização.
Chorro Reticulárea, 1988. © Fundación Gego.
Foto: Walter Otto, courtesy Colección Mercantil, Caracas.
Reticulárea, 1969.
Abaixo: Sin título, 1966 e Sin título, 1968. © Fundación Gego. Foto: Will Michels, courtesy The Museum of Fine Arts, Houston e Archivo Fundación Gego.
PRIMEIROS TRABALHOS (1953-1960)
A Venezuela experimentou dramáticas mudanças econômicas, políticas e sociais durante e após a Segunda Guerra Mundial. Durante essa época, a arte moderna venezuelana passou por uma mudança igualmente transformadora. O surgimento da abstração geométrica – um movimento transnacional caracterizado por esquemas puros de forma, linha, cor e ordenação geométrica – no país, por volta da década de 1950, marcou um período de grande inovação artística. Foi nesse contexto que Gego iniciou sua nova vida em seu lar adotivo na Venezuela, onde chegou, em 1939, como deslocada, sem familiaridade com o idioma e a cultura. Ela começou a trabalhar como em escritórios de arquitetura e estúdios de planejamento urbano em Caracas no início dos anos 1940, utilizando o treinamento em arquitetura e engenharia que recebeu na Alemanha. No início dos anos 1950, recentemente divorciada de seu primeiro marido, Gego abandonou sua prática de arquitetura e abraçou totalmente a arte. Ela e o designer gráfico nascido na Lituânia, Gerd Leufert, que se tornaria seu parceiro vitalício, mudaram-se para a vila de Tarmas, perto da costa caribenha da Venezuela, de 1953 a 1956. Lá, Gego se concentrou em paisagens, representações de formas arquitetônicas e figuração. Ela experimentou diferentes meios, incluindo aquarela, grafite, monotipia e xilogravura.
A artista tomou seu entorno imediato como fonte de inspiração no início e meados da década de 1950, retratando a flora local em cores vivas e exuberantes e cenas de montanha e casas em uma paleta suave. Na última parte daquela década, influenciada pela presença da abstração geométrica na Venezuela, ela fez uma transição crítica para formas não representacionais.