8 minute read

JOAN MITCHELL

JOAN

NASCIDA EM CHICAGO, JOAN MITCHELL PASSOU BOA PARTE DA VIDA NA FRANÇA, O QUE NÃO IMPEDIU QUE SUA OBRA REFLETISSE O EXPRESSIONISMO ABSTRATO CARACTERÍSTICO DE SEU PAÍS NATAL. NAS ÚLTIMAS DÉCADAS, TORNOU-SE UM ÍCONE DO MOVIMENTO DE REVALORIZAÇÃO DE MULHERES ARTISTAS, ALCANÇANDO O STATUS DE ESTRELA NO CIRCUITO E NO MERCADO DE ARTE

POR IASMINE SOUZA

“Poxa, Joan, se você fosse francês, homem e morto...”, teria dito um negociante de arte a Joan Mitchell na década de 1950, em Nova York. Por um tempo bem mais que aceitável, os cânones masculinos da “boa arte” silenciaram a expressão feminina nos espaços artísticos e cultivaram uma assombrosa desproporção numérica entre as obras de homens e mulheres nos acervos de galerias e instituições. Para além do desconforto das estatísticas que envolvem o desequilíbrio de gênero na arte, restou às novas gerações o árduo trabalho de investigação dos porquês desse silenciamento e resgate de um sem número de artistas que poderiam ter enriquecido livros e aulas de história da arte. O nome de uma delas é Joan Mitchell, norte-americana de temperamento abrasador que desafiou o cobiçado mundo masculino da pintura abstrata do século 20. Os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial podem ter sido a era de ouro para os Estados Unidos, mas foram cruéis para as mulheres na pintura. Participar de uma exposição ou obter um elogio genuíno da crítica era um feito para poucas. Por isso,

Straw, 1976.Pág. Anterior: City Landscape, 1955. © Estate of Joan Mitchell.

Sunflowers II 1992 from the ‘Sunflowers’ series 1992. © Estate of Joan Mitchell.

principalmente no que diz respeito ao expressionismo abstrato, não se culpe ao lembrar apenas de nomes como Jackson Pollock ou Willem de Kooning. Suas lembranças estão moldadas pelas imagens de um movimento altamente masculinizado. Afinal, em um ambiente em que ser homem é privilégio, foi fácil transformá-los em mitos que atuam em uma espécie de transe de energia, paixão e criatividade. Fizemos desse agir masculino o símbolo do momento – aqui, é bom lembrar Pollock executando movimentos em volta e sobre à tela –, e criamos os gênios da abstração que ainda reinam insistentemente e únicos no nosso imaginário. Joan e outras mulheres, contudo, estavam bem mais engajadas na arte desse período do que poderíamos imaginar. Isso tudo não significa que falamos aqui de uma artista que carregou bandeiras feministas. Não se pode querer impor essa marca à vida e ao trabalho de Joan. Ela definitivamente não o fez. O certo é que ela era uma mulher extremamente complexa, que travou inúmeras batalhas consigo mesma, desde menina, ainda na esfera familiar. E por isso não surpreende que tenha reagido ao campo majoritariamente dominado por homens com pouquíssima (ou nenhuma) doçura.

Trees III, 1992. © Estate of Joan Mitchell.

Se as coisas estavam duras para as mulheres, elas deveriam ser duras com as coisas, pensava. Joan, que já carregava o fardo da vigilância e da crítica paterna – foi a segunda filha, quando o pai aguardava ansiosamente por John –, não era exatamente o que a sociedade esperava de uma “dama”. Era independente, durona e colecionava discussões acaloradas. Fumava, bebia, caprichava nos palavrões. Ela nasceu em 1925, em uma família de boa condição financeira da alta sociedade de Chicago. A tensão do relacionamento conflituoso e competitivo com o pai James, médico, entusiasta da arte e pintor amador, marcou profundamente a infância e juventude dela. Ele nunca superou o nascimento de uma menina. Desafiava os talentos dela, criticava a aparência, roupas – ela gostava de usar camisas e calças, por baixo de um –, e até o jeito que movimentava o corpo. Nem os troféus atléticos que conquistou para atender às expectativas do pai bastaram. Sobre pintar, ele dizia: “você nunca poderá ser tão boa assim, porque você é mulher”. Quando finalmente percebeu que nada deixaria James satisfeito, decidiu se tornar pintora, ainda aos 12 anos de idade.

Após a graduação no Art Institute of Chicago seguiu para estudar na França, onde, entre idas e vindas, passou boa parte da carreira. Isso não a impediu de conquistar notável reconhecimento na cena artística nova-iorquina. Joan Mitchell estava entre o punhado de mulheres que expôs na , mostra que consolidou o expressionismo abstrato, ao lado de Pollock, De Kooning e Hans Hofman. O primeiro casamento, com Barney Rosset, fundador da editora Groove Press, chegou ao fim em 1952. Em 1955, quando já tinha conquistado atenção da crítica e das galerias de Nova York, ela conheceu o artista canadense Jean-Paul Riopelle, com quem partiu para a França. É lá que ela viveu definitivamente até 1992, ano de sua morte, aos 67 anos. Já consagrada, abria constantemente a casa que construiu em Vétheuil, perto de Giverny, para muitos pintores emergentes, mantendo-os sob sua proteção, amizade e financiamento. A Fundação Joan Mitchell, criada em 1993 para atender ao desejo declarado da artista em testamento, ainda hoje perpetua sua generosidade, apoiando artistas em todos os estágios da carreira, concedendo bolsas e patrocinando o desenvolvimento de programas de arte. É impossível colocar a obra de Mitchell em uma caixinha. Embora seja comum vê-la rotulada como expressionista abstrata da “segunda geração”, junto a Helen Frankenthaler e Grace Hartigan, ela recusou terminantemente o rótulo. Joan não estava interessada em se enquadrar no espetáculo romantizado da ação gestual a serviço da pintura, como muitos pares masculinos, tampouco em se associar à obra de outras mulheres (isso, aliás, o senso de competição implantado pelo pai jamais permitiria). Em seus trabalhos, a intensidade emocional não é transferida para a superfície da tela de forma descontrolada ou automática. Em

Ladybug, 1957. © Estate of Joan Mitchell.

Asphalt Air and Hair, 2017, ARoS Triennial THE GARDEN, Dänemark © Katharina Grosse und VG Bild-Kunst, Bonn, 2019. Foto: Nic Tenwiggenhorn.

Noël, 1961–62. © Estate of Joan Mitchell.

vez disso, a pintura de Mitchell é guiada por um excepcional equilíbrio que não entrega inteiramente as emoções que participaram do processo. “Não fecho os olhos e espero o melhor”, disse, certa vez. Uma memória precisa permitiu que ela invocasse experiências com letras, músicas, cores e paisagens. Como um álbum de fotografias, a mente dela carregava com detalhes uma gama de vívidas imagens particulares. Memórias do lago Michigan da infância em Chicago e de Vétheuil, onde morou na França, por exemplo, estão entre os temas revividos nas obras dela. Mas não era só. Mitchell tinha sinestesia, uma rara condição neurológica que a possibilitava vivenciar sensações de uma forma surpreendente: distinguir emoções e letras em cores específicas e perceber músicas em formas consistentes. Uma verdadeira mistura de sentidos. Isso não esgota ou explica inteiramente a arte dela, mas esses cruzamentos especiais do cérebro de Joan certamente ampliavam a capacidade sensorial e afetavam a forma como aplicava as cores sob um fundo branco.

Ela abraçou influências como Van Gogh, Cézanne e Picasso, até Kandinsky e Willem De Kooning. Logo cedo, decidiu que nunca mais pintaria a figura humana e foi fiel à abstração, dando vida a um trabalho majestoso, vasto e dinâmico, que envolve painéis – muitas vezes vários deles –, gravuras e aquarelas. Pintou com liberdade de gesto, usando os dedos, pincéis, trapos, salpicando ou espremendo a tinta na tela. E não poderia ser diferente: na pintura abstrata, finalmente fazia algo que o pai dela não podia criticar. A partir deste mês, algumas gravuras da fase final da sua carreira serão objeto de exibição na . As obras são parte da coleção de Kenneth Tyler, figura marcante na arte americana do pós-guerra, e fruto de uma colaboração de trabalho bem-sucedida entre os dois, abusando das mais inovadoras técnicas de impressão da época. São gráficos poderosos que exploram memórias da natureza, cores, formas e espaços, com uma energia arrebatadora, típica de seu trabalho. A duras penas, Joan Mitchell faz parte de um seleto grupo de mulheres que desfrutou de um nível de aceitação incomum e obteve aclamação da crítica e do público. Atingiu o sucesso comercial em vida, mas só agora começa a ter o que merece. As obras dela estão presentes nos mais renomados museus e lideram femininos de vendas em leilões, a despeito de trabalhos produzidos por homens ainda representarem de forma esmagadora as cifras estratosféricas (nesse ponto, estejamos atentos às hipocrisias do mercado, ainda concentrado em um número muito pequeno de mulheres). Uma famosa história de bastidores entrega que, quando Joan Mitchell e Elaine de Kooning foram questionadas em uma festa: “O que vocês mulheres artistas pensam ”, Joan, que desejava ser lembrada naturalmente como um entre os artistas ali presentes e detestava essa categorização, agarrou o braço da amiga e bradou: “Elaine, vamos dar o fora daqui”. Nesse novo panorama em que as problemáticas de gênero que tanto a incomodavam ainda estão longe de ser superadas, é difícil dizer se a reação poderia ser diferente.

Iasmine Souza Encarnação Novais é Procuradora do Município de São Paulo, entusiasta da história da arte e autora do perfil @minutodearte.

JOAN MITCHELL: WORLDS OF COLOR • NATIONAL GALLERY OF AUSTRALIA • 13/2 A 26/4/21

Bedford I, 1981 from the 'Bedford' series 1981. © Estate of Joan Mitchell

Atravessadores 2, 2020.

This article is from: