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WALTER GRAMATTÉ
WALTERgramatté
EXPOSIÇÃO EM HAMBURGO RELEMBRA A OBRA DO PINTOR, DESENHISTA E ARTISTA GRÁFICO ALEMÃO WALTER GRAMATTÉ (1897-1929), CUJO ESTILO AUTÔNOMO NA DÉCADA DE 1920 OSCILAVA ENTRE SIMBOLISMO, EXPRESSIONISMO E SURREALISMO
POR NICHOLAS ANDUEZA
UM ARTISTA E UMA CIDADE
O Hamburger Kunsthalle exibe, até 24 de maio, a mostra , que conta com 75 obras de Gramatté, artista alemão do início do século 20. A exposição é motivada por uma recente doação que reforça o acervo já extenso desse pintor e desenhista no museu de Hamburgo, estreitando laços históricos entre o artista e a cidade. Servindo-se de um arquivo com mais de 120 obras à disposição, o curador Andreas Stolzenburg nos convida a caminhar por entre pinturas, desenhos e trabalhos gráficos de Walter Gramatté. No sentido dessa relação entre o artista e a cidade, uma pintura que chama atenção é , ou simplesmente , pintada, em 1918, por Gramatté. Dominada por tons vermelhos, azuis, verdes e róseos alaranjados, vemos ali a cena de um estabelecimento que recebe poucas pessoas sob uma luz fraca. Trata-se de uma pintura composta em pelo menos três planos: o fundo, mais bem iluminado (alaranjado), cujas figuras não têm contornos definidos e as pinceladas se misturam; um plano intermediário mais apagado (azulado-esverdeado), onde vemos uma mulher e um homem conversando à
Café, 1918 © Hamburger Kunsthalle / bpk. Foto: Christoph Irrgang
Abaixo: Almería, 1927. À direita: Granada, 1925. © Hamburger Kunsthalle / bpk. Foto: Christoph Irrgang
mesa; e, finalmente, o primeiro plano da mesa em que se senta o observador-pintor. É um quadro pintado em primeira pessoa, inserindo factualmente o pintor neste café de Hamburgo. Atesta-se uma relação com essa cidade, não só biográfica, mas também pictórica. E, ao contrário da Königsberg de Kant, cidade que se tornou o mundo do filósofo, dado que ele jamais saiu dela, a Hamburgo de Gramatté não foi o mundo dele, mas a capital. Pois, apesar das fragilidades de saúde, o artista viajou bastante ao longo da década de 1920. Prova disso é, por exemplo, a paisagem de Granada, pintada em 1925 com aquarela, ou mesmo a belíssima paisagem de Almería, de 1927, pintada em tons pastéis com óleo sobre tela. Além de localidades espanholas, Gramatté visitou também cidades francesas e italianas; para além das cidades alemãs, como Berlim (onde nasceu) e Ahrenshoop. Mas foi em Hamburgo que o artista fez seus contatos mais fortes com as artes, particularmente através de Rosa Schapire, retratada duas vezes pelo artista em 1920. É também em Hamburgo que Walter Gramatté veio a falecer, em fevereiro de 1929, com apenas 32 anos e uma saúde
A nova escultura Salome, 1893. Foto: © InGestalt / Michael Ehritt.
Rosa Schapire, 1920 © Hamburger Kunsthalle / bpk. Foto: Christoph Irrgang. muito debilitada – devido a uma tuberculose intestinal e a ferimentos do serviço militar prestado à Alemanha na Primeira Guerra. O Hamburger Kunsthalle já havia investido no artista enquanto ele ainda era vivo, adquirindo vários desenhos e trabalhos gráficos de algumas galerias em Hamburgo, como a Commeter (ainda ativa) e o Salão de Arte Maria Kunde. O Kunsthalle também fez uma mostra dedicada exclusivamente a Gramatté na primavera de 1933. Mas este foi também o sombrio ano em que Hitler tomou o controle político da Alemanha, e, como se sabe, pouco depois o organizaria a infame exposição daquilo que chamou (1937), organizando ataques de censura a Gramatté e outros artistas modernistas. Assim, Walter Gramatté faz parte da “geração esquecida”, a qual, por ter sido perseguida e silenciada (violentamente) pelos nazistas, só passou a ganhar notoriedade artística após a Segunda Guerra Mundial. Mas durante o período nazista, os trabalhos gráficos de Gramatté arquivados no Kunsthalle foram mantidos a salvo. Recentemente, em 2019, a generosa doação da Fundação Eckardt-Gramatté,
Dreaming boy, 1921 © Hamburger Kunsthalle / bpk. Foto: Christoph Irrgang.
sediada em Winnipeg, Canadá, trouxe mais 47 desses trabalhos gráficos e uma paisagem ao acervo do artista no Kunsthalle. O fortalecimento dos laços entre esse museu e o artista espelha a relação íntima que o próprio Gramatté mantinha com a cidade de Hamburgo, capital do seu mundo. Como provavelmente todos os grandes nomes do expressionismo alemão, Walter Gramatté não poderia ser reduzido ao rótulo de expressionista simplesmente. Durante a década de 1920, o artista fez várias incursões em trabalhos de caráter simbólico, ampliando seus horizontes estilísticos para referências do Surrealismo, da Nova Objetividade e do Realismo Mágico – sem jamais estacionar. É o que vemos bem exemplarmente em (1921): um menino de traços estilizados, com os olhos fechados, segurando o que parece ser uma pena, sentado na relva e entre as árvores, sorrindo, apesar da noite lúgubre, por receber um sopro
Tired Flower Girl, 1922 © Hamburger Kunsthalle / bpk. Foto: Christoph Irrgang.
do frágil brilho lunar. Podemos citar também (1922), pintada também à noite, mas de modo bem menos otimista que o menino sonhador: cabisbaixa, séria; abandonada pelos tons púrpuros que se misturavam a verdes e azuis no caso do menino, a pequena florista está francamente azulada – uma noite gélida e anônima na cidade ao seu entorno. Com efeito, se ao vislumbrarmos um Van Gogh é imprescindível notarmos os seus amarelos, no caso de Gramatté, perderemos uma boa parte das suas obras se não atentarmos às nuances dos azuis – construídas pelas ricas associações com tons verdes ou róseos. É por isso que as pinturas noturnas de Gramatté são tão impressionantes e imersivas. E o azul (particularmente o azul esverdeado) é tão presente em seus trabalhos que ocupa uma recorrência relevante mesmo nas produções gráficas, que não demandam necessariamente coloração. Vejamos, por
exemplo (1923). Se tentarmos abstrair a cor, veremos simplesmente duas mulheres nuas partilhando a cama – talvez conversem, talvez se atraiam eroticamente (a da esquerda, com a cabeça baixa, poderia estar indo em direção ao corpo da companheira). Mas, com a aplicação nuançada do azul, que enriquece a cena de volumes e texturas, cria-se também outra atmosfera, densa, sóbria, melancólica, noturna. A cabeça baixa da moça passa a ter o teor de uma reflexão silenciosa. E, assim, a cor muda a cena. A maior parte do acervo de Gramatté no Hamburger Kunsthalle é de gravuras e desenhos. Há ali paisagens, autorretratos e retratos variados (dos quais uma boa parte é dedicada à esposa Sonia Fridman, compositora, intérprete virtuosa no piano
Tired Flower Girl, 1922 © Hamburger Kunsthalle / bpk. Foto: Christoph Irrgang.
Girl making music - violin girl - Sonia Gramatté, 1927 © Hamburger Kunsthalle / bpk. Foto: Christoph Irrgang.
e no violino). Muitos desses trabalhos não têm cor, permitindo que observemos de perto o traçado do artista. Notamos então uma mão veloz, mais interessada em materializar a ideia ou a visão do que em recuperar cada detalhe do mundo exterior com esmero absoluto e demorado. São representações claramente breves e fragmentárias, e ao mesmo tempo sintéticas, isto é, precisas. Içadas à condição de obra de arte (e não de meros rascunhos), denotam o caráter verdadeiramente moderno de Gramatté. E isso se potencializa com relação às gravuras, por sua técnica da cópia mecânica, que, como aponta o clássico texto de Walter Benjamin, revoluciona radicalmente a noção da obra de arte na modernidade.
Trinker, 1922. © Hamburger Kunsthalle / bpk. Foto: Christoph Irrgang.
A continuidade da vida de um artista, por mais breve que tenha sido, está nas obras deixadas ao mundo. Cada obra estendendo não só simbolicamente, mas materialmente a existência de seu criador – em retribuição ao fato de ele ter provocado pessoalmente a existência de cada uma de suas obras. Assim, abrigado em Hamburgo por meio do Kunsthalle, esse acervo de Walter Gramatté refaz os passos do artista e finca essa cidade como a capital de seu mundo. Nessas obras, caminham rastros não só de um artista, mas de sua relação com uma cidade específica – Hamburgo.
Nicholas Andueza é doutorando em
Comunicação e Cultura/UFRJ, com especialização em cinema, corpo e imagem de arquivo. Mestre em Comunicação Social/PUC Rio (2016)
WALTER GRAMATTÉ AND HAMBURG • HAMBURGER KUNSTHALLE • ALEMANHA • 11/1/21 A 24/5/2021
Sofia Borges, Dança Escultórica #3, da série Ensaio para Degas, 2020.