RevistaDeLetraEmLetra vol3 n1 2016

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De Letra em Letra / Departamento de Letras, Universidade Federal de São Paulo UNIFESP (2016). - Guarulhos: Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, 2016 - v. : il. Semestral, julho 2012 — v. 3, n.1 (2016) Inclui bibliografia ISSN: 2317-3610 1. Linguística; 2. Linguística Aplicada; 3. Literatura I. Universidade Federal de São Paulo - Departamento de Letras.

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Departamento de Letras da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo — EFLCH-UNIFESP Chefe de Departamento Rita Jover-Faleiros Corpo Editorial Editora-chefe Karina Menegaldo

Auxiliar de Edição Fernando Leite Morais

Conselho Editorial Carlos Henrique Vieira Karina Menegaldo Luis Octavio Rogens de Melo Alves Mayra Martins Guanaes

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Comitê Científico Dra. Ana Luiza Ramazzina Ghirardi (UNIFESP) Dra. Ana Rosa Ferreira Dias (USP/PUC-SP) Dra. Bianca Fanelli Morganti (UNIFESP) Dr. Carlos Renato Lopes (UNIFESP) Dr. Edson Correia (FMU) Dra. Graciela Alicia Foglia (UNIFESP)

Dr. Janderson Luiz Lemos de Souza (UNIFESP) Dra. Leila de Aguiar Costa (UNIFESP) Dra. Leonor Lopes Fávero (PUC–SP) Dra. Ligia Fonseca Ferreira (UNIFESP) Dr. Márcio Rogério de Oliveira Cano (UFLA) Dra. Maria Lúcia Dias Mendes (UNIFESP) Dra. Mirhiane Mendes de Abreu (UNIFESP) Dra. Paloma Vidal (UNIFESP) Dr. Paulo Eduardo Ramos (UNIFESP)

Dr. Rafael Dias Minussi (UNIFESP) Dra. Raquel dos Santos Madanelo Souza (UNIFESP) Dr. Sandro Luis da Silva (UNIFESP) Dra. Sofia Maria de Sousa Silva (UFRJ) Dra. Sueli Cristina Marquesi (PUC-SP/UNICSUL) Dra. Sueli Salles Fidalgo (UNIFESP) Dra. Vanda Maria Elias (Editora Contexto) Pareceristas Convidados Dr. Nobu Chinen (Faculdades Oswaldo Cruz) Dr. Waldomiro Vergueiro (ECA-USP)

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Revisores Ana Paula de Macedo Brum André Felipe Barbosa Caique Franchetto Fábio Fernandes de Lima Francielle de Queiroz Zurdo Giovanna F. Rossinhole Jéssica Máximo Garcia

Lincoln Carneiro Mariana Pimentel Nelson Flávio Moraes de Oliveira Equipe Técnica Diagramação Karina Menegaldo

Capa Karina Menegaldo Coordenação tecnológica e website Karina Menegaldo Assessoria tecnológica Éric Frade Secretário Nelson Oliveira Divulgação Sarah de Araújo

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Expediente da edição Comitê científico Apresentação

A LEITURA DE ADAPTAÇÕES LITERÁRIAS NAS ESCOLAS BRASILEIRAS Carolina dos Reis Salomão SIMULAÇÃO DA REALIDADE E SIMULACRO NA HISTÓRIA EM QUADRINHOS CIDADE DE VIDRO Daniela dos Santos Domingues Marino DA CANUDOS SERTANEJA À CANUDOS PÓS-HUMANA: OS SERTÕES E BIOCYBERDRAMA SAGA Danielle Barros Silva Fortuna e Edgard Silveira Franco LITERATURA E QUADRINHOS: ESTUDO SOBRE O IMPACTO DE ADAPTAÇÕES LITERÁRIAS NA ESCOLA Denise de Paula da Silveira Ferreira POEMAS EM QUADRINHOS: ILUSTRAÇÃO OU TRADUÇÃO? Dennys da Silva Reis O GÊNESIS EM QUADRINHOS: AIZEN, CARIELLO E CRUMB—UM BREVE COMPARATIVO Ed Marcos Sarro

A CAVERNA: A ALEGORIA DE PLATÃO EM UMA ADAPTAÇÃO PARA OS QUADRINHOS POÉTICO-FILOSÓFICOS Edgar Silveira Franco e Danielle Barros Silva Fortuna

DEMÔNIOS DE ALUÍSIO AZEVEDO: METAMORFOSE DA OBRA-BASE À QUADRINIZADA Edilaine Correa Gonçalves e Carlos Daniel S. Vieira Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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MAIS DO MESMO – REPRESENTAÇÕES GRÁFICAS DA MEMÓRIA E SOLIDÃO DE BENTINHO NO SÉCULO XXI Eliane Dourado POR QUE (NÃO) TRABALHAR ADAPTAÇÕES LITERÁRIAS EM QUADRINHOS EM SALA DE AULA? Francielle de Queiroz Zurdo ADAPTAÇÕES LITERÁRIAS NA FORMAÇÃO DE ALUNOS LETRADOS Gabriela Silva

TRANSPOSIÇÃO DE POEMAS NA LINGUAGEM GRÁFICA E NARRATIVA DE FERNANDO PESSOA Iêda Lima dos Santos e Ana Paula Rodrigues Ferro O GÓTICO E A FIGURA DO VAMPIRO NA HQ INTERVIEW WITH THE VAMPIRE: CLAUDIA’S STORY Jaqueliane Santos Coelho OBRIGADO, DR. VAN HELSING: A FICÇÃO VAMPÍRICA NA ADAPTAÇÃO DE EU SOU A LENDA E EM 30 DIAS DE NOITE, DE STEVE NILES Lúcio Reis Filho

DO CONTO AO RECONTO: UMA LEITURA DE FÁBULAS NO ÂMBITO DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO Maria Jaciara de Azevedo Oliveira e Nanci Gonçalves da Nóbrega

SHAKESPEARE EM QUADRINHOS: UM OLHAR SOBRE MACBETH Rebeca Pinheiro Queluz

TRANSCODIFICANDO A OBRA DE FERNANDO PESSOA DA LITERATURA PARA OS QUADRINHOS Roberto Elísio dos Santos e

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O CORVO - INTERTEXTUALIDADE, TÉCNICA E TECNOLOGIA NAS ADAPTAÇÕES DA OBRA DE EDGAR ALLAN POE POR RICHARD CORBEN Rodrigo Stromberg Guinski A MORTE DE IVAN ILITCH EM QUADRINHOS: TRADUÇÃO OU ILUSTRAÇÃO? Silvia Carvalho de Almeida Joaquim

INTERMIDIALIDADE NA ADAPTAÇÃO DE ROMEU E JULIETA PARA A HQ DA TURMA DA MÔNICA Valdinei Pedro Sales Vieira, Erika Viviane Costa Vieira

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A LEITURA DE ADAPTAÇÕES LITERÁRIAS NAS ESCOLAS BRASILEIRAS THE READING OF LITERARY ADAPTATIONS IN BRAZILIAN SCHOOLS Carolina dos Reis Salomão Universidade Federal de São Paulo

RESUMO Este artigo tem como objetivo analisar como as histórias em quadrinhos, principalmente as adaptações literárias, podem contribuir no aprendizado do aluno. Também serão analisadas as reações dos estudantes após a leitura dos textos em quadrinhos e seus interesses em leituras posteriores, inclusive das próprias obras que serviram de originais para as adaptações e quais são os benefícios de sua utilização em sala de aula. Palavras-chave: história em quadrinhos; adaptações literárias; leitura ABSTRACT This article aims to analyze how comic books, and mainly literary adaptations contribute to student's learning. It will also be analyzed the reactions of students after reading texts in comic books and their interests in subsequent readings, including their own works that formed the original to adaptations and what are the benefits of its use in the classroom Key words: comics; literary adaptations; lecture

INTRODUÇÃO A utilização de histórias em quadrinhos (HQs) na educação brasileira vem sendo estudada e debatida por diversos estudiosos da linguagem, do ensino da língua portuguesa e também de suas literaturas. As HQs, por mais que já sejam utilizadas em diversas escolas brasileiras em aulas de leitura ou de língua portuguesa, ainda não são bem aproveitadas, isto é, os professores ainda sentem algumas dificuldades em sua utilização, por não aceitarem que os quadrinhos são recursos válidos de ensino e por tratá-los somente como uma narrativa ilustrada, não dando seu real valor, o de um texto que se utiliza de palavras e de imagens.

O ensino por meio dos quadrinhos pode e deve ser completo, trabalhado de forma mais aprofundada, analisando minuciosamente cada detalhe, cada componente da obra. Esse trabalho enriquece a didática, desperta no aluno o interesse pelos mais diversos assuntos e o faz descobrir novos mundos, novas narrativas. Romances de séculos passados que foram adaptados para os quadrinhos são um novo olhar para essa história. O professor, ao se utilizar de adaptações literárias em quadrinhos nas aulas de literatura, por exemplo, pode abordar diversos pontos para fortalecer e incrementar a compreensão do aluno quanto àquela obra, desde a análise da forma como a história foi transposta na adaptação até quantos elementos foram acrescidos nessa adaptação e se esses elementos alteraram ou não o sentido do texto fonte. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016


As HQs não são apenas para serem contadas para crianças e com função somente de entretenimento. Elas, além disso, colaboram para um aprendizado mais simples, com maior interesse dos alunos, pois motiva a leitura, devido às figuras e à linguagem utilizada. Ao longo deste artigo, serão expostos resultados colhidos com alunos que têm contato com diversos tipos de textos, sejam eles literatura ou histórias em quadrinhos, e quais foram suas reações ao lerem adaptações literárias em quadrinhos, já que estas contribuem para um aprendizado mais atrativo e dinâmico e que são acessíveis a todos os públicos de todas as idades.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA As histórias em quadrinhos são elementos que, de uns anos para cá, ganharam maior visibilidade nas salas de aula das escolas brasileiras. Essa visibilidade se deu pela introdução de livros com adaptações literárias em quadrinhos que foram cedidos às escolas por intermédio do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), do Governo Federal, que entende essa atitude como um incentivo ao aluno para que ele se interesse cada vez mais por obras literárias que atualmente não são lidas com frequência, conforme vemos no edital do PNBE 2009, em que 300 obras foram destinadas aos alunos do ensino fundamental e outras 300, aos alunos do ensino médio. Destes números, 15 títulos em quadrinhos foram para o ensino fundamental e seis para o ensino médio.

É importante ressaltarmos que os quadrinhos não podem ser classificados como literatura ou algum derivado. Os quadrinhos são textos multimodais, isto é, utilizam-se de conjuntos de signos verbais e não verbais para compor um sentido. A literatura pode se utilizar das histórias em quadrinhos para facilitar o acesso aos alunos, mas isso não transforma uma na outra. De acordo com Ramos (2012, p. 17) Quadrinhos são quadrinhos. E, como tais, gozam de uma linguagem autônoma, que usa mecanismos próprios para representar os elementos narrativos. Há muitos pontos comuns com a literatura, evidentemente. Assim como há também com o cinema, o teatro e tantas outras linguagens.

Com esse raciocínio, chega-se à ideia de que tanto a literatura como a história em quadrinhos possuem pontos comuns, mas com linguagens diferentes. A linguagem utilizada, ou até mesmo a adaptação do enredo para os quadrinhos, mantém o sentido principal da narrativa. De acordo com Pina (2012, p. 65) Essas adaptações não devem, necessariamente, copiar a obra-fonte. Enquanto arte, a linguagem quadrinística agrega aspectos e valores à linguagem literária. Então, conceber os quadrinhos como arte autônoma — e a literatura em quadrinhos como um gênero dessa arte — é o primeiro passo para discutir seu potencial de formação de gosto, de criação simbólica de um leitor diferenciado.

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Nesse excerto, a autora reforça a ideia de que os quadrinhos compreendem um ramo e literatura outro, mas que esta pode ser escrita no formato daquela e permite que sejam incluídos novos valores e novas características ao novo texto. Os quadrinhos ainda são vistos apenas como um recurso que pode ser usado para complementar uma aula, seja no aspecto da análise sintática do texto escrito, ou somente como materiais de diversão de crianças e adolescentes, porém o uso das HQs vai muito além. Sua análise não se prende somente ao texto escrito, mas se completa com as imagens, já que ambos compõem esse gênero. As adaptações literárias em quadrinhos não são produzidas para um público específico, como, por exemplo, jovens e crianças. São produzidas para qualquer faixa etária que quer conhecer uma nova visão

de uma obra literária, até mesmo daquelas que já tenha lido quando jovem. Pina (2012, p. 124) defende que as adaptações literárias são produzidas para qualquer idade, pois, Assim, entendo que as adaptações dos clássicos para a linguagem dos quadrinhos podem, sim, entrar com grandes vantagens no infinito jogo da formação do gosto pela leitura literária na contemporaneidade, acercando-se não apenas dos pequenos leitores, mas viabilizando a interação com diferentes segmentos etários e sociais do potencial leitorado brasileiro.

Os quadrinhos seriam sim recursos que podem e devem compor o leque de leitura de estudantes e também de toda a sociedade de um modo geral, já que possuem uma gama de variedades, que satisfazem

os mais variados gostos de leitura e que podem ser utilizados em qualquer atividade que envolva leitura e análise dos elementos textuais. Para Vergueiro e Ramos (2013, p. 40), a leitura de diversos gêneros também é defendida, visto que, Leitura não é só livro. Leitura é tudo. Como já dizia o educador Paulo Freire (1988), “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Assim, pode-se dizer que uma leitura sempre é o caminho para outras mais, numa espiral sem começo ou fim. Um outdoor leva a uma fotografia, que leva a um vídeo, que leva a um programa de televisão, que leva a um desenho animado, que leva a uma história em quadrinhos, que leva a um livro, que leva a um filme, que leva a um outdoor anunciando a estreia do longa-metragem.

Com isso, é possível perceber que todo indivíduo está cercado de leitura. Portanto, os alunos nas escolas precisam entrar em contato com todo e qualquer tipo de leitura que fortaleça e amplie seus conhecimentos e seu gosto pela leitura, seja ela em quadrinhos ou de literatura, assim como vemos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), do Governo Federal, que também defendem que cada cidadão está rodeado de linguagem e que isso contribui para o exercício de sua cidadania. Já que o ser humano se comunica diariamente com todos a sua volta, utilizando-se dos diversos meios de linguagem.

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ANÁLISE Para analisar a leitura das adaptações literárias em quadrinhos com os alunos das escolas públicas brasileiras, foi realizada uma pesquisa no dia 22 de julho de 2014 em uma escola estadual do município de Guarulhos, São Paulo. Os requisitos de escolha foram: que a escola tivesse recebido nos últimos cinco anos o acervo do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) e que tivesse ensino fundamental II e ensino médio, visto que os livros recebidos são destinados aos alunos das séries correspondentes. Foram escolhidas duas séries: o 8º ano do ensino fundamental e o 3º ano do ensino médio. De cada uma dessas séries foram selecionados dez alunos, sendo cinco meninos e cinco meninas.

Todos os alunos selecionados responderam a um questionário com dez perguntas sobre seus hábitos de leitura, como o que costumam ler, o que gostam de ler e onde, normalmente, leem. Após o preenchimento do questionário, os alunos do 8ª ano do ensino fundamental leram a adaptação literária em quadrinhos de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, e os alunos do 3º ano do ensino médio leram a adaptação literária em quadrinhos de “Sonho de uma noite de verão”, de William Shakespeare. Depois da leitura, os alunos responderam a outro questionário, com nove perguntas específicas, de interpretação da leitura realizada e seus interesses em próximas leituras. Começaremos com a apresentação dos resultados do 3º ano do ensino médio. Iremos nos ater apenas ao segundo questionário, que traz as informações mais relevantes à pesquisa. Logo na primeira pergunta que era “O que você achou do livro ‘Sonho de uma noite de verão’?”,

obtivemos como respostas que: 90% dos alunos gostaram da adaptação literária e 10% dos alunos não gostaram. Na segunda pergunta, “Depois de ler essa obra, você teria interesse em ler a história original de ‘Sonho de uma Noite de Verão’, escrita por William Shakespeare?”, os resultados obtidos foram: 70% sim; 10 % não e

20% não, porque já li a obra agora. Da terceira à sexta pergunta, obtivemos respostas positivas, já que eram questões interpretativas da obra lida. Isso mostra que os alunos compreenderam de modo satisfatório, o conteúdo da adaptação literária. A partir da sétima pergunta, pudemos observar o verdadeiro intuito da pesquisa, analisar se os alunos lerão ou não as obras originais depois de lerem as adaptações literárias em quadrinhos. A sétima questão era “Depois do contato com essa obra, você teria interesse em ler (pode assinar mais de uma opção, se julgar necessário):”. As respostas foram: Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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80% leriam outra adaptação literária em quadrinhos; 70% leriam a obra original escrita por Shakespeare; 50% leriam uma história em quadrinhos; 60% leriam uma obra literária e 10% não teriam interesse em ler nenhuma das opções indicadas. Com isso, percebemos que os alunos se sentiram atraídos em ler a obra original após o contato com a adaptação, mas que a adaptação em quadrinhos também foi muito aceita. Os alunos demonstraram que

tanto as HQs como a literatura possuem espaço em seus hábitos de leitura, que eles não devem ser comparados, ou até mesmo que um seja depreciado em benefício do outro. As duas últimas perguntas foram respondidas em razão da sétima questão, já que nesta os alunos disseram quais tipos de leitura fariam após a adaptação literária lida. Na oitava pergunta, “Se você assinalou a opção ‘histórias em quadrinhos’, quais delas você gostaria de ler? Se não assinalou essa opção, passe, por favor, para a questão seguinte.”, tivemos as seguintes respostas: 50% leriam adaptação literária; 10% leriam charges;

20% leriam graphic novels; 10% leriam histórias em quadrinhos infantis; 20% leriam mangás; 20% leriam super-heróis e 10% leriam tiras. E na nona e última pergunta, “Se você assinalou a opção ‘obra literária’, quais delas você gostaria de ler? Se não assinalou essa opção, deixe em branco.”, as respostas foram: 40% leriam contos;

30% leriam crônicas; 20% leriam literatura infantojuvenil; 20% leriam poemas; 70% leriam romances; 40% leriam romances de aventura; 10% leriam romances policiais e 30% leriam teatro.

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Diante dos resultados colhidos com os alunos do ensino médio, foi constatado que as histórias em quadrinhos, independentemente do tipo, ainda permanecem no cotidiano dos alunos, juntamente com diversos tipos de literatura. Com os alunos do ensino fundamental, obtivemos respostas semelhantes, mas que também merecem ser analisadas com mais afinco. À primeira pergunta, “O que você achou do livro ‘Dom Casmurro’?”, as respostas colhidas foram: 70% dos alunos gostaram e 30% dos alunos gostaram mais ou menos. Na segunda pergunta, “Depois de ler essa obra, você teria interesse em ler a história original de ‘Dom Casmurro’, escrita por Machado de Assis?”, as respostas obtidas foram: 80% sim; 10% não e 10% não, porque já li a história agora. Nas questões 3, 4 e 6, que eram de interpretação da história relatada, as respostas foram 100% corretas, enquanto na quinta questão houve uma divergência de respostas. A questão era “Após a leitura da

história, há uma dúvida que fica no ar:”. Como respostas, tivemos: 20% o destino de Bentinho se tivesse sido padre; 0% o motivo da morte de Escobar; 60% se Capitu traiu Bentinho; 10% a razão de o casamento de Capitu e Betinho ter terminado e 10% o motivo de a história ter sido escrita. Ao analisarmos essa pergunta, vemos que os alguns alunos sentiram dificuldade em compreender qual é a dúvida que realmente fica no ar, já que somente 60% dos alunos disseram ser a possível traição de

Capitu. Esse resultado mostra que uma parcela dos alunos com faixa etária entre 13 e 14 anos não está apta para entender com perfeição uma trama mais elaborada como, por exemplo, “Dom Casmurro”, de Machado de Assis. Ou, então, que histórias como essa não prendem a atenção de adolescentes. Voltando ao questionário, a sétima pergunta “Depois do contato com essa obra, você teria interesse em ler (pode assinar mais de uma opção, se julgar necessário):”. As respostas foram:

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60% leriam uma adaptação literária em quadrinhos; 80% leriam o romance original escrito por Machado de Assis; 30% leriam uma história em quadrinhos; 20% leriam uma obra literária e 0% não teria interesse em ler nenhuma das opções indicadas. As duas últimas perguntas, assim como no questionário do ensino médio, fazem menção à sétima pergunta e só foram respondidas de acordo com as respostas dadas na questão anterior.

Na oitava questão, “Se você assinalou a opção ‘histórias em quadrinhos’, quais delas você gostaria de ler? Se não assinalou essa opção, passe, por favor, para a questão seguinte.”, as respostas foram: 40% leriam adaptações literárias; 10% leriam charges; 20% leriam graphic novels; 10% leriam histórias em quadrinhos infantis; 40% leriam mangás; 30% leriam super-heróis e 10% leriam tiras. Na nona e última questão, “Se você assinalou a opção ‘obra literária’, quais delas você gostaria de ler? Se não assinalou essa opção, deixe em branco.”, obtivemos as seguintes respostas: 40% leriam contos; 40% leriam crônicas; 40% leriam literatura infantojuvenil; 20% leriam poemas; 30% leriam romances; 40% leriam romances de aventura;

0% leriam romances policiais e 20% leriam teatro. Com todos esses dados em mãos, vimos que os alunos do ensino fundamental possuem hábitos de leitura diversificados e que abrangem literatura e HQs. Isso mostra que eles não se prendem somente a um estilo de leitura, mas que ainda esses números podem melhorar e muito, pois ainda há certo preconceito que circunda as HQs dizendo que estas não são recursos que podem ser utilizados no ensino de uma forma mais complexa, com mais profundidade, mas Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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que são somente materiais supérfluos, em que são analisados os textos escritos sem fazerem menção ao texto não verbal. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de todos os resultados apresentados, é possível analisar que a escola tem uma grande parcela de responsabilidade na vida leitora do aluno, visto que a maioria do que é lido por um jovem em sua adolescência e juventude é pedido em sala de aula. E que nem sempre é aquilo de que o jovem realmente gosta de ler.

Também é preciso desmistificar a ideia de que a história em quadrinhos não é um bônus no ensino da língua portuguesa ou de uma aula de leitura, mas que possui muito conteúdo para ser trabalhado em sala de aula, haja vista que possui inúmeros elementos que podem ser analisados por professores e alunos, como as imagens foram dispostas nas páginas, como os textos conversam com as imagens para dar o sentido correto da narrativa. Segundo Zeni (2013, p. 127) As produções em quadrinhos baseadas em obras literárias devem ser avaliadas por seu valor como arte autônoma, e não à sombra da produção original. Podemos, entretanto, aproveitar a proximidade dessas adaptações e do texto que lhe serviu de base para buscar uma leitura diferenciada, uma outra visão da obra literária.

Outro aspecto importante merece nossa atenção: as histórias em quadrinhos também podem ser usadas para incentivar novas leituras, como obras literárias que já não são lidas com frequência atualmente, pois o aluno pode ter um primeiro contato com a adaptação literária em quadrinhos e com isso, se interessar em ler a obra original.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Klick Editora, 1997.

BRASIL. Ministério da Educação. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Edital de convocação para inscrição de obras de literatura no processo de avaliação e seleção para o Programa Nacional Biblioteca da Escola — PNBE 2009. Disponível em: <ftp://ftp.fnde.gov.br/web/ biblioteca_escola/edital_pnbe_2009.pdf>. Acesso em: 08 set 2014. GUERINI, Andreia; BARBOSA, Tereza Virgínia (orgs.). Pescando imagens com rede textual: HQ como tradução. São Paulo: Peirópolis, 2013. JAF, Ivan. Dom Casmurro. 4 imp. Machado de Assis; roteiro Ivan Jaf; arte Rodrigo Rosa. São Paulo: Ática, 2013.

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PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS. Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental. Língua Portuguesa. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/portugues.pdf>. Acesso em 08 set 2014. PARRA, Lillo. Sonho de uma noite de verão / roteiro de Lillo Parra; ilustrações de Wanderson de Souza. Belo Horizonte: Nemo, 2011 (Coleção Shakespeare em Quadrinhos). PINA, Patrícia Kátia da Costa. Literatura em quadrinhos: arte e leitura hoje. Curitiba, Appris, 2012. RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2012. SHAKESPEARE, William. Sonho de uma noite de verão. Porto Alegre: L&PM, 2002. VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo. Os quadrinhos (oficialmente) na escola: dos PCN ao PNBE. In: VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo (orgs.). Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. 1 reimp. São Paulo: Contexto, 2013, pp. 9-42. ZENI, Lielson. Literatura em quadrinhos. In: VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo (orgs.). Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. 1 reimp. São Paulo: Contexto, 2013, pp. 127-158.

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SIMULAÇÃO DA REALIDADE E SIMULACRO NA HISTÓRIA EM QUADRINHOS CIDADE DE VIDRO SIMULATION OF REALITY AND SIMULACRUM IN THE COMICS CITY OF GLASS Daniela dos Santos Domingues Marino

RESUMO O presente artigo busca identificar marcadores que possam confirmar a presença dos conceitos de simulação de realidade e simulacro na história em quadrinhos Cidade de Vidro, baseada na obra homônima de Paul Auster. Platão tratou os conceitos de simulação da realidade e simulacro em obras como O Sofista e A República, onde procurou estabelecer as particularidades que distinguem um objeto de sua imagem semelhante ou mimética de suas reproduções e simulacros, mas suas ideias são questionadas pelo filósofo Gilles Deleuze em Platão e o Simulacro ao citar o termo reversão do platonismo de Nietzche e expandidas em conceitos sobre hiper-realidade de Jean Baudrillard em Simulações e Simulacros. Palavras chave: quadrinhos; simulação; simulacro. ABSTRACT The aim of this article is to identify markers that may confirm the presence of concepts of simulation and simulacrum in the Comics City of Glass, based on the homonym work of Paul Auster. Plato first talked about the concepts of simulation and simulacrum in works such as Sophist and The Republic, in which he tried to establish the particularities that distinguish an object and its similar or mimetic image from its reproductions and simulacrums, but his ideas are questioned by the philosopher Gilles Deleuze in Plato and the Simulacrumwhen he coined the term reversal of Platonism and then expanded to the hyper-reality concept of Jean Baudrillard in Simulations and Simulacrum. Keywords: comics; simulation; simulacrum.

INTRODUÇÃO Um telefonema errado, a pessoa errada e a vida do escritor de romances policiais Daniel Quinn

toma um rumo que o leva a uma investigação digna de seus livros. Não sabemos muito sobre Quinn, a não ser que teria perdido esposa e filho e que a partir deste evento resolve assumir um pseudônimo para continuar publicando seus livros. Sua fuga da realidade através da invenção de um nome e de suas andanças aleatórias pela cidade de Nova York encontra fundamento nas teorias de Freud sobre a perda da realidade na neurose e na psicose, onde o psicanalista afirma que toda neurose perturba a relação do paciente com a realidade e que em casos mais graves, significaria uma fuga concreta da vida real (FREUD, 1924, p. 1): “Onde quer que eu não esteja é onde me sinto eu mesmo” (KARASIK; MAZZUCHELLI, 1998, p. 104). Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016


Se Quinn já havia obliterado sua existência através do pseudônimo William Wilson, ao receber um telefonema misterioso procurando o detetive Paul Auster ele assume uma terceira personalidade. Embora este processo se dê de forma consciente uma vez que Quinn decide como deve agir de acordo com as circunstâncias, a realidade é percebida por ele conforme a identidade que assume.

Fig. 1 - Reprodução - Mazzucchelli. Daniel Quinn – Fonte: HQ Cidade de Vidro (1998)

Ao aceitar o caso de Peter Stillman como o detetive Paul Auster, Quinn é levado a uma busca de resultado tão inconclusivo quanto sua própria história, deixando o leitor com dúvidas sobre a ocorrência dos fatos ou mesmo sobre a existência dos personagens envolvidos. Este questionamento acerca da realidade e a percepção dos personagens sobre ela nos remete às teorias de Jean Baudrillard que teriam influenciado a criação de roteiros de filmes como Cidade das Sombras(1998),13º Andar(1999) e Matrix (1999), obras cujos fundamentos mantêm um diálogo constante com a HQ de Cidade de Vidro. Da mesma forma que conceitos de simulação da realidade e seus simulacros podem ser identificados na adaptação de Cidade de Vidro para os quadrinhos, estes conceitos também podem ser aplicados à comparação da obra original com sua versão a partir das ideias de Platão, Deleuze e Hutcheon onde o questionamento se relaciona muito mais com o valor de cada uma do que propriamente com a percepção da realidade dos personagens, mas cujas raízes estão na discussão sobre a importância de uma obra em relação às suas cópias, principalmente após o advento da litografia, da imprensa, da fotografia e do cinema, que teriam possibilitado a reprodução de obras em escala industrial. Independentemente da conclusão que possamos chegar, é possível dizer que não só os conceitos de simulação e simulacro permitem leituras múltiplas da obra de Paul Auster, de acordo com autor escolhido, como também possibilitam a comparação da obra original e sua versão para HQ sob a perspectiva dos valores estabelecidos em obras clássicas e contemporâneas.

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SIMULAÇÃO E SIMULACRO “Todo ponto de vista é a vista de algum ponto”. Leonardo Boff A famosa Alegoria da Caverna usada por Platão em seu livro A República serviu de referência para diversas obras e interpretações desde que foi contada pela primeira vez. O filósofo grego demonstra que em situações específicas, o ser humano tomaria como verdade algo que não é real, mas que de acordo com a perspectiva de onde observa, tal concepção é a única a que tem acesso, portanto, não seria a realidade um

conceito relativo? Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçada e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora? (PLATÃO, 2000, p. 298)

Em relação ao pensamento platônico é válido lembrar que em sua concepção a realidade é uma representação do mundo das ideias, ou seja, o que vemos e experimentamos é uma simulação da verdade que só seria conhecida por Deus, mas sendo o homem sua imagem e semelhança, a realidade nada seria além de uma cópia perfeita, uma reprodução fiel da ideia original.

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Fig. 2- Reprodução - Mazzucchelli. Visão de Quinn sobre o panfleto de Stillman. Fonte: HQ Cidade de Vidro (1998)

No entanto, o que Platão parecia buscar não se limitava em distinguir a verdade de suas versões, mas em selecionar, filtrar. Tratava-se de fazer a diferença. Distinguir a “coisa” mesma e suas imagens, o original e a cópia, o modelo e o simulacro. (DELEUZE: 2000, 259). Se dizemos do simulacro que é uma cópia de cópia, um ícone infinitamente degradado, uma semelhança infinitamente afrouxada, passamos à margem do essencial: a diferença de natureza entre o simulacro e cópia, o aspecto pelo qual formam as duas metades de uma divisão. A cópia é uma imagem dotada de semelhança, o simulacro, uma imagem sem semelhança. O catecismo, tão inspirado no platonismo, familiarizou-nos com esta noção: Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, mas, pelo pecado, o homem perdeu a semelhança embora conservasse a imagem. Tornamo-nos simulacros, perdemos a existência moral para entrarmos na existência estética. (DELEUZE, 2000, p. 263)

Nesse sentido, o que Deleuze propõe ao citar o termo reversão do platonismo de Nietzche é mostrar que as unidades escolhidas por Platão nem sempre são equivalentes e que sua filtragem se refere muito mais à linhagem das coisas do que propriamente aos gêneros aos quais pertencem. Um exemplo é o longo diálogo travado em O Sofista, onde o principal objetivo, após categorizar todas as divisões possíveis do Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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que pode ser considerado real e verdadeiro, é provar que o conhecimento atestado pelos sofistas não passava de simulacros, longe da ideia original do que quer que fosse.

Fig. 3- Reprodução - Mazzucchelli. Visão de Quinn sobre o panfleto de Stillman Fonte: HQ Cidade de Vidro (1998)

Este diálogo não parece muito diferente da explicação de Peter Stillman à Quinn quando defende a criação de uma nova linguagem para que possamos voltar a nos aproximar de Deus. Em sua loucura, Stillman (pai) acreditava que quando da queda do homem, a linguagem havia se separado de sua versão original divina, portanto, seria necessário que uma nova linguagem fosse criada, substituindo a que conhemos. Se Deleuze afirma que ao final de O Sofista o próprio Platão põe em questão as noções de cópia e de modelo, não é diferente em Cidade de Vidro, quando ao final da história, Quinn não tem certeza se o caso Stillman aconteceu e o leitor, guiado pelo narrador e personagem Paul Auster (nunca existiu um detetive Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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com esse nome), não consegue decidir se qualquer fato mencionado teria ocorrido e se Daniel Quinn teria existido em algum momento. O caminho percorrido por Sócrates é tão vago quanto o de Quinn. A realidade é igualmente líquida nas duas obras, mas será que tudo isso importa?

Fig. 4 - Reprodução - Mazzucchelli. Fala do escritor Paul Auster (Personagem) Fonte: HQ Cidade de Vidro (1998)

HIPER-REALIDADE O filme Matrix (1999) é considerado um marco do cinema mundial, não só por seus efeitos especiais inovadores, mas pelo enredo que pode ser considerado no mínimo impactante, porém, não foi o único a se inspirar nas teorias de Jean Baudrillard e Platão sobre a simulação da realidade e simulacro. Na mesma época em que foi lançado Matrix, filmes como O show de Truman (1998) e O 13º andar (1999) propunham que a realidade que experimentamos só existe a partir dos meios de comunicação de massa e que na verdade, qualquer referência do real é apenas um eco, um conjunto de fluidos que chega a nós através da TV ou do computador. Não se pode mais falar em realidade, uma vez que ela já não é mais

referência. O que acreditamos ser real é uma reprodução mal feita e infinitamente mais atraente do que o que realmente existe, é um simulacro. (BAUDRILLARD, 1981, p.62) “O simulacro nunca oculta a verdade. É a verdade que oculta que não existe. O simulacro é verdadeiro.” (Eclesiastes). O ponto em comum entre os filmes é o fato de seus protagonistas conseguirem despertar em algum momento para escolher entre o simulacro fantasioso ou a realidade que é apresentada de forma insossa. Truman (Show de Truman) vive em um reality show e tem sua vida acompanhada diariamente por milhões de espectadores no mundo todo; Neo (Matrix) vive em um receptáculo, ligado por fios, sonhando estar vivendo, quando na verdade, seus fluídos vitais servem de energia para os robôs que dominaram o mundo; Thomas Hall (13º andar) descobre que a simulação que havia criado não passa de um simulacro já que sua Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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vida também não passa de um programa de computador. Em todos os casos, a fantasia, o simulacro nos é apresentado de forma mais atraente que a realidade dura e cheia de conflitos, ao contrário da alegoria de Platão, onde os prisioneiros acreditam que as sombras são reais e na verdade, o mundo exterior ofereceria mais atrativos que a caverna. O que Truman preferiria? Qual é a escolha de Neo? E Tomas Hall? Seria capaz de destruir o software que lhe comanda, mesmo correndo o risco de deixar de existir? Que pílula tomar: a azul ou a vermelha? No real, como no cinema, houve uma história mas já não há. A história que nos é entregue hoje em dia (justamente porque nos foi tomada) não tem mais relação com o real histórico que a neofiguração em com a figuração clássica do real. A neofiguração é uma invocação da semelhança, mas ao mesmo tempo a prova flagrante do desaparecimento dos objetos na sua própria representação: hiper-real. Os objetos têm aí, de alguma maneira, o brilho da hipersemelhança (como a história do cinema atual) que faz com que no fundo não se assemelhem em nada senão à figura vazia da semelhança, à forma vazia da representação. (BAUDRILLARD, 1981, p.62)

Em Cidade de Vidro a escolha de Quinn se resume em aceitar ou não o caso de Stillman e a partir daí, a realidade que se apresenta está diretamente ligada a este evento. Se não tivesse assumido a identidade de detetive, não haveria uma história e no fim, após passar meses de vigília esperando que seu cliente fosse assassinado pelo pai e nada ter acontecido, não sabemos se qualquer evento realmente ocorreu ou se tudo não passou de um delírio do protagonista. Quando ele finalmente resolve procurar o verdadeiro Paul Auster, descobre que ele é um escritor, não detetive. Os Stillman também vivenciam realidades

particulares: o pai por acreditar ser uma espécie de messias e o filho por ter sido cobaia das teorias do pai; ambos enclausurados de formas diferentes precisam se adaptar à vida após a clausura; um precisa recuperar a linguagem para se situar no mundo e o outro coleciona itens danificados e lhes renomeia para criar uma nova linguagem divina. A realidade de cada um não é a mesma, o que pode ser justificado tanto pelas teorias de Platão e Baudrillard se acreditarmos que não há realidade alguma, apenas uma ideia da realidade, algo que se assemelhe a ela ou pelas teorias psicanalíticas sobre a personalidade: O segundo passo da psicose, é verdade, destina-se a reparar a perda da realidade, contudo, não às expensas de uma restrição com a realidade – senão de outra maneira, mais autocrática, pela criação de uma nova realidade que não levanta mais as mesmas objeções que a antiga, que foi abandonada. (FREUD, 1924, p. 2)

Se a escolha de Quinn em abandonar sua personalidade e qualquer coisa que o faça relembrar de sua vida pregressa é consciente, não podemos dizer o mesmo sobre os eventos relacionados ao caso Stillman. De qualquer maneira, tanto em Platão como em Baudrillard, é nítida a preocupação em se estabelecer um modelo de referência do real para que se possa tratar a simulação e o simulacro, porém, como categorizar um conceito que se mostra relativo e subjetivo a cada leitura?

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Fig. 5 - Reprodução - Mazzucchelli. Conversa com Stillman (filho) Fonte: HQ Cidade de Vidro (1998)

Sendo a realidade relativa, sua percepção é diferente para cada um e, portanto, como determinar o que é real? O psicanalista brasileiro Fábio Herrmann, criador da Teoria dos Campos, defende que entre a realidade e nossa percepção há vários campos cuja relevância depende da história e experiência pessoal. Não é possível experimentar o real em sua totalidade, mas é possível experimentar a sensação da realidade através de campos que correspondem à esfera da moralidade, esfera social, esfera familiar, esfera profissional. Quanto mais definidos estes campos são, maior a sensação de proximidade da realidade. Realidade é a representação aparencial do mundo, compartida pelos homens, a face do real que se pode mostrar e que, frequentemente, nos ilude e desilude. Real é a profundidade produtora, que possui o vício de esconder-se por trás de seus produtos: identidade e realidade. (HERRMANN, 2001, p.10)

A representação de Nova York para Quinn é de um grande labirinto, onde pessoas arruinadas completam a paisagem, incógnitas, desconhecidas, como se fossem parte dos muros da cidade. Uma grande torre de Babel, como na visão de Stillman e no fim, o próprio Quinn se torna um tijolo qualquer na construção da cidade, como se desmaterializasse, como se nunca tivesse existido.

MODELO, CÓPIA, SIMULACRO: VALOR E REPETIÇÃO. Quando Deleuze aborda a preocupação de Platão em estabelecer um modelo e seu semelhante para que então possa se falar de cópias e simulacros no intuito de desmerecer e diminuir o que ele chamava de falsos pretendentes, podemos identificar a raiz do pensamento que define as adaptações como obras de pouco valor ou secundárias. “Todo o platonismo, ao contrário, é dominado pela ideia de uma distinção a ser feita entre "a coisa mesma" e os simulacros. ”(DELEUZE, 2008, p. 73)

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Hutcheon afirma que, embora uma adaptação seja de fato derivativa de outra pré-existente, seu valor não pode ser medido através das concepções platônicas notadas nos discursos acadêmicos ou em resenhas jornalísticas. Se assim o fossem, não justificariam sua popularidade e o fato de serem responsáveis por cerca de 85% das premiações da academia de cinema, por exemplo (2013,p. 24). Reverter o pensamento platônico implicaria em reconhecer o valor destas obras, ainda que não guardem semelhança com o modelo original, mesmo porque, o próprio Platão teria indicado a inconsistência de seu pensamento ao tentar estabelecer os conceitos de realidade, modelo, cópia... Reverter o platonismo significa então: fazer subir os simulacros, afirmar seus direitos entre os ícones ou as cópias. O problema não concerne mais à distinção Essência-Aparência, ou Modelo-cópia. Esta distinção opera no mundo da representação; trata-se de introduzir a subversão neste mundo, “crepúsculo dos ídolos”. O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução. (DELEUZE, 2000, p.268)

Em O Sofista, embora o objetivo do diálogo entre Teeteto e o estrangeiro fosse de esclarecer a posição do Sofista em relação aos filósofos, o método de divisão usado busca estabelecer o valor das cópias e simulacros em relação ao modelo original. Mesmo que o conceito de modelo e realidade não seja totalmente claro, é notável a tentativa de desmerecer suas versões diante do que seria a verdade. Sobre a adaptação, Linda Hutcheon não só defende que toda adaptação é na verdade uma tradução, mas que o processo é tão importante quanto o resultado e que este processo envolve não só a interpretação de quem o lê, também envolve criatividade, sofisticação. Entre as palavras que definem as adaptações, Hutcheon se deparou com termos pejorativos como “traição”, “deformação”, “perversidade” e “profanação”. (HUTCHEON, 2013, p. 23 apud STAM, 2011: 23). E então? E o que dá a impressão de belo, por ser visto de posição desfavorável, mas que, para quem sabe contemplar essas criações monumentais em nada se assemelha com o modelo que presume imitar, por que nome designaremos? Não merecerá o de simulacro, por apenas parecer, sem ser realmente parecido? (PLATÃO, 2003, p. 27)

O objetivo aqui, porém, não é de estabelecer o valor de uma adaptação em relação à obra que o originou, mas de trazer à tona a discussão que pode ser levantada sobre ela, seja para as HQs ou para qualquer outro meio. Hutcheon diz que nenhuma adaptação pode preencher um espaço que é representado

nos romances literários, o espaço da mente (2013, p. 38), ainda assim, porque desmerecer a capacidade das imagens de nos fornecer uma ideia que talvez não fossemos capazes de imaginar somente com o auxilio do texto? QuandoPaul Karasik e David Mazzucchelli adaptaram o romance verbal e narrativamente complexo de Paul Auster, Cidade de Vidro [City of Glass](1985), para os quadrinhos (2004), eles tiveram que traduzir a história para o que Art Spiegelman chama de “linguagem original dos Comics” – “uma grade de painéis regular e exata com “a grade como janela, porta da prisão, quarteirão ou tabuleiro de jogo da velha; a grade como metrônomo que dá a medida para as mudanças e impulsos da narrativa”(HUTCHEON, 2013, p. 63) Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Alguns exemplos usados por Hutcheon são os Orcs de Os Senhor dos Anéis e o jogo de Quadribol de Harry Potter: embora talvez não possa recuperar as imagens que tinha antes de conhecer as versões cinematográficas, ao menos ela sabe com o que devem parecer (2013, p. 56) e o mesmo acontece em relação às cenas de Cidade de Vidro. Por mais que o leitor possa imaginar uma pessoa falando a partir do texto literário, é bem improvável que concebesse as imagens surreais usadas na HQ para o monólogo de Stillman.

Fig. 6 - Reprodução - Mazzucchelli. Fala de Stillman (filho) Fonte: HQ Cidade de Vidro (1998)

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Assim sendo, se a crítica acadêmica e a resenha jornalística têm suas raízes no pensamento platônico de que toda adaptação possa ser culturalmente inferior, Nietzche, Deleuze e Hutcheon não estão sozinhos ao afirmarem o contrário. As organizadoras do livro Pescando Imagens com Rede Textual – HQ como Tradução, Andreia Guerini e Tereza Virgínia Barbosa, compartilham da mesma convicção de Hutcheon sobre o processo de adaptação como uma tradução. Ora, se ao tradutor cabe compor um poema análogo ao original em outra linguagem e com signos diferentes, isso é factível com a transposição da linguagem literária para HQ. Todavia, essa tradução é fruto de um exercício sofisticado, que propõe recuperar os grandes clássicos e deles gerar imagens, e não somente uma tarefa que se limite a reproduzir sentidos e enredos de forma linear e descritiva, relatando-os de maneira direta e sem obstáculos. Não, nesse nosso processo de transpor a literatura para a HQ, a norma é nunca narrar conteúdos de forma reduzida e ilustrada para facilitar a tarefa do receptor, pois isso é ofendê-lo em sua inteligência. (GUERINI; BARBOSA, 2013, p. 16)

CONCLUSÃO Após o primeiro contato com a HQ de Cidade de Vidro, minha impressão foi de familiaridade com a situação dos personagens. Sentia que havia um ponto comum entre a história de Paul Auster e filmes como Matrix e O Show de Truman. O caminho natural seria então confirmar esta hipótese através do estudo das obras que teriam inspirado os roteiros: A Alegoria da Caverna de Platão e Simulação de Simulacros de Baudrillard. No decorrer das leituras teóricas e da releitura da HQ, no entanto, minha percepção sobre a história foi alterada: os discursos dos personagens me soavam esquizofrênicos, desconexos, de forma que as teorias sobre a personalidade encontradas na Psicanálise parecessem mais sintonizadas com o enredo de Paul Auster. É possível que se conhecesse apenas a obra literária, minha percepção fosse diferente, mas as imagens surreais fornecidas por Karasik e Mazzucchelli me diziam que o problema dos personagens era muito mais psiquiátrico que filosófico, ou seja, Cidade de Vidro é uma HQ que permite uma leitura diferente dependendo do viés usado para analisá-la: sob a perspectiva de Platão e Baudrillard, a realidade apresentada parece distante do conceito que comumente estamos acostumados a imaginar, porém, também é possível que toda história não tenha passado de um delírio da mente doente de Daniel Quinn. Delleuze encontra nos diálogos de Platão não só uma inconsistência em relação ao conceito de modelo, mas também uma vontade de atribuir valor a este modelo de forma desmerecer suas versões, que ele chamaria de simulacros por não se assemelharem à obra original. Dentro desta perspectiva também foi possível chegar às considerações sobre romances e suas adaptações a partir de contribuições feitas por Linda Hutcheon e Walter Benjamin. Benjamin, em seu texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1985, p. 165), nos fala sobre a aura que envolve um objeto considerado autêntico e em como essa ideia teria influenciado o pensamento sobre suas reproduções, porém, o que Hutcheon e Deleuze propõem é que este tipo de pensamento “engessado” de muitos críticos acadêmicos já não condiz com a realidade que é o mercado das adaptações. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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O que é de importância decisiva é que esse modo de ser aurático da obra de arte nunca se destaca completamente de sua função ritual. Em outras palavras: o valor único da obra de arte “autentica” tem sempre um fundamento teológico, por mais remoto que seja: ele pode ser reconhecido, como ritual secularizado, mesmo nas formas mais profanas do culto do Belo. (BENJAMIN, 1985, p. 170)

Por mais que uma adaptação seja um produto derivado de outra obra, seu processo é tão complexo e sofisticado quanto uma tradução, por exigir do tradutor que ele faça uma interpretação da obra lida e a reproduza de forma manter a essência e as características mais importantes do original. Independentemente do valor que uma adaptação possa ter em relação à obra que a originou e da

opinião que críticos acadêmicos e jornalistas tenham a respeito dos quadrinhos, Paul Auster parece não se preocupar com estas questões quando empresta sua voz ao personagem homônimo de Cidade de Vidro: “Até que ponto as pessoas toleram blasfêmias, mentiras e absurdos se forem um bom entretenimento? A resposta: Até qualquer ponto. Afinal, é isso que qualquer pessoa quer de um livro... Ser entretida.” (KARASIK; MAZZUCCHELLI, 1998, p. 93) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUSTER, PAUL. Cidade de Vidro. Trilogia de Nova York. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Antropos, 1981.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. DELEUZE, Gilles. Platão e o Simulacro. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000. ______________. Diferença e Repetição. 2000. Disponível em: http://minhateca.com.br/heleno/ Documentos/Gr+Pesquisa+Filosofia+Juridica+Contemporanea/Deleuze/ DELEUZE*2c+Gilles.+Diferen*c3*a7a+e+Repeti*c3*a7*c3*a3o,9952141.pdf Acesso em: 10 jul. 2014, 11:23. FREUD, Sigmund. Perda da Realidade na Neurose e na Psicose. 1924. Disponível em: http:// www.freudonline.com.br/category/livros/volume-19/ Acesso em 12 jul. 2014, 10:30. GUERINI, Andreia; BARBOSA, Tereza V. R. Pescando Imagens com rede textual – HQ como Tradução. São Paulo: Peirópolis, 2013.

HERRMANN, Fábio. O mundo em que vivemos. Andaimes do Real : Psicanálise do Quotidiano. 2001. Disponível em : http://www.teoriadoscampos.med.br/ Acesso em 14 jul. 2014, 9:20. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Florianópolis: UFSC, 2013. KARASIK, Paul; MAZZUCCHELLI, David. Cidade de Vidro. São Paulo: Via Lettera, 1998. PLATÃO. Livro VII – A Alegoria da Caverna. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000. ________. O Sofista. Domínio Público. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br Acesso em 15 jul. 2014, 11:10.

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DA CANUDOS SERTANEJA À CANUDOS PÓS-HUMANA: OS SERTÕES E BIOCYBERDRAMA SAGA Danielle Barros Silva Fortuna FIOCROZ Edgard Silveira Franco Universidade Federal de Goiás

RESUMO Esse artigo objetiva estabelecer relações conceituais e estéticas entre duas obras: o livro Os Sertões, de Euclides da Cunha (1995), e o álbum em quadrinhos Biocyberdrama Saga de Edgar Franco e Mozart Couto (2013). Em Os Sertões, o epicentro narrativo é a Guerra de Canudos, o protagonista Antônio Conselheiro é um líder sertanejo que se assenta no arraial de Canudos com seus seguidores no interior da Bahia, BioCyberdrama Saga recontextualiza a história de Canudos para um futuro pós-humano. A análise das obras tomou como base a teoria de Barthes (1999), que propõe o mergulho no texto literário, o reconhecimento do leitor e obra para compreensão dos sentidos do texto, evitando a superficialidade de análises puramente estéticas. A metodologia consistiu na leitura orientada buscando traçar paralelos entre as obras, tomando como base 3 eixos que dividem a obra de Cunha: 1) A terra, 2) o homem e 3) a luta. Palavras-chave: Adaptações literárias de Quadrinhos; Os Sertões; Ficção Científica. ABSTRACT This paper aims to establish conceptual and aesthetic relationships between two works: the book “Os Sertões”, by Euclides da Cunha (1995), and the comic’s album “Biocyberdrama Saga”, by Edgar Franco and Mozart Couto (2013). In “Os Sertões”, the narrative epicenter is the “Canudos” war, the protagonist Antonio Conselheiro is a leader who lives with his followers in Bahia’s state backcountry , “BioCyberdrama Saga” contextualises the Canudos’ story to a post-human future. The analysis of the works was based on the theory of Barthes (1999), which proposes the dip in the literary text, the recognition of player and work to understand the meanings of text, avoiding only an esthetic analysis'. The methodology consisted of guided reading seeking to mark parallels between the works, based on three axes that divide the Cunha’s book: 1) the land, 2) the man and 3) the fight. Keywords: Literary Adaptations of Comics; Os Sertões; Science fiction.

1. INTRODUÇÃO Nas últimas décadas houve um crescimento de publicações no mercado de quadrinhos no Brasil, sobretudo no segmento educacional e as adaptações de obras literárias tem tido destaque (VERGUEIRO, 2007). No âmbito dos quadrinhos autorais, o gênero poético filosófico, que surgiu associado conceitualmente a um paralelo com a literatura, - onde “os quadrinhos tradicionais estariam para a prosa assim como os quadrinhos poéticos estariam para a poesia” (FRANCO, 1997, p.54) - existem trabalhos que tomam como inspiração conceitual e filosófica não somente obras literárias, mas também fábulas, lendas e mitologia, sendo considerado, segundo Santos Neto (2009), um gênero genuinamente brasileiro.

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O termo “quadrinhos poético-filosóficos” foi criado por Franco (1997, p.54), por verificar que a maioria dos quadrinhistas desse gênero apresentavam trabalhos com a pretensão filosófica de levar o leitor a refletir sobre alguma questão existencial, utilizando a expressão poética nas histórias em quadrinhos. Santos Neto (2009, p.90) sintetiza as características principais dessas HQs: São, portanto, três as características que principalmente definem uma história em quadrinhos poético-filosófica: 1. A intencionalidade poética e filosófica; 2. Histórias curtas que exigem uma leitura diferente da convencional; 3. Inovação na linguagem quadrinhística em relação aos padrões de narrativas tradicionais nas histórias em quadrinhos.

A arte em suas mais variadas expressões, como as histórias em quadrinhos e obras literárias, é fruto

da criação humana e tais obras são permeadas por influências da cultura, em determinado contexto e época, podendo refletir como um retrato etnográfico de um período, sociedade e pensamento. Neste artigo abordaremos duas obras, uma clássica, “Os Sertões” de Euclides da Cunha (1995) e uma contemporânea, o álbum de quadrinhos Biocyberdrama Saga (2013) de Edgar Franco e Mozart Couto. O clássico literário “Os Sertões” apresenta uma narrativa cujo epicentro é a Guerra de Canudos, tendo como protagonista Antônio Conselheiro, um líder sertanejo e figura carismática que se assenta no arraial de Canudos com seus seguidores no interior da Bahia. A trama se desenvolve em torno da batalha de Conselheiro contra a opressão das elites governamentais lidando com os paradoxos da condição do ser humano e a aridez da terra. A obra, rica em apresentar elementos da complexidade humana, demonstra a sensibilidade e conhecimentos em antropologia, filosofia, poética, história, geografia, política, psicologia e

tantas outras facetas da multi persona de Euclides da Cunha. A obra está dividida em 3 tomos: A terra (meio), O homem (raça) e A luta (momento). O livro é mais do que uma obra de ficção, podendo ser considerado também um relato etnográfico na perspectiva de Cunha do Brasil no fim do século XIX, descortinando questões decisivas de uma época, de um povo e até mesmo as próprias crenças e alma do autor. A obra Biocyberdrama é uma Saga de ficção científica ambientada na Aurora Pós-Humana, um universo hipertecnológico imaginado daqui a cerca de novecentos anos. Os habitantes deste novo mundo são criaturas, que hibridizadas em suas bases animal, vegetal e mineral dão origem aos seres pós-humanos: os Extropianos e Tecnogenéticos e os Resistentes, casta humana oprimida em vias de extinção. As histórias trazem dilemas que enfatizam e problematizam as implicações morais, éticas e socioculturais dos novos comportamentos, percepções e paradigmas advindos das inovações biotecnológicas, ressaltando aspectos da espiritualidade, intuição, arte e transcendência. As tramas vivenciadas pelos personagens giram em torno dos conflitos entre as duas espécies de culturas antagônicas que disputam poder e hegemonia em cidades-estado no universo. A obra foi considerada uma das grandes produções brasileiras em quadrinhos pela crítica e público, e foi indicada ao troféu HQMIX 2014 na categoria “Edição Especial Nacional”. Embora Biocyberdrama não se proponha a ser uma adaptação literária do livro Os Sertões, Franco através do deslocamento conceitual conforme Philip K. Dick (apud QUINTANA, 2004), se inspirou e tomou como referência explícita a obra de Euclides da Cunha para a saga recontextualizando-a no futuro Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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pós-humano, trazendo questões filosóficas e existenciais vivenciadas por Antônio Euclides (cujo nome faz dupla referência a Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha), um resistente que vive em um arraial onde lidera o grupo que luta pela causa “resistente”. O presente estudo tem como objetivo estabelecer relações conceituais e estéticas entre duas obras literárias: Os Sertões de Euclides da Cunha (1995) e o álbum de quadrinhos Biocyberdrama Saga de Edgar Franco e Mozart Couto (UFG, 2013). A proposta de análise metodológica consistiu na leitura das obras tomando como base a perspectiva de Barthes (1999) e Barthes e Compagnon (1987, p.192), que propõem o mergulho no texto literário, o reconhecimento do leitor e obra para compreensão dos sentidos do texto, evitando a superficialidade de

análises puramente estéticas. O procedimento metodológico consistiu na leitura orientada buscando traçar paralelos entre as obras, tomando como base 3 eixos que dividem a obra de Euclides da Cunha: 1) A terra, 2) o homem e 3) a luta. Na seção seguinte as apresentamos as obras estabelecendo as relações em que se tangenciam.

2. OBRAS ANALISADAS 2.1 Os Sertões

Os Sertões é uma obra de autoria de Euclides da Cunha, publicado em 1902 e teve diversas edições. O livro, de domínio público, tem como epicentro narrativo a Guerra de Canudos (1896-1897), no interior da Bahia. O protagonista Antônio Conselheiro é um líder sertanejo que se assenta no arraial de Canudos com seus seguidores no interior da Bahia. A trama se desenvolve em torno da batalha de Conselheiro contra a opressão das elites governamentais; lidando com os paradoxos da condição humana e a aridez da terra. A obra, rica em apresentar elementos da complexidade humana, destila reflexões de ordem antropológica, filosófica, histórica e política. Foi escrita por Euclides da Cunha na oportunidade em que esteve como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo. A obra é considerada um relato etnográfico e artístico.

2.2 BioCyberDrama Saga Saga de ficção científica ambientada na Aurora Pós-Humana, em um mundo futuro hipertecnológico habitado por criaturas que hibridizam humano, animal e vegetal, onde os “resistentes” são a casta humana oprimida e em vias de extinção. Aborda dilemas e conflitos num futuro hipertecnológico “Aurora Pós-Humana”. A narrativa apresenta dilemas que amplificam e problematizam as implicações morais, éticas e socioculturais das inovações tecnológicas.

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Edgar Franco e Mozart Couto, Capa de Biocyberdrama Saga, Editora UFG, 2013, Álbum de HQ

A saga se divide em 3 tomos, que foram reunidos no volume publicado pela Editora UFG: BIOCYBERDRAMA I – As Dúvidas de Antônio. O álbum narra o dilema de Antônio Euclides, um jovem "resistente" humano que aos poucos vai sendo seduzido pelas promessas de vida eterna ou plena oferecidas pelas culturas predominantes desse

universo futurista, os tecnogenéticos – seres híbridos de humano com animal, e extropianos – ciborgues com a consciência de um humano transplantada em um chip. Antônio se depara com a grande questão de sua vida, qual opção deve fazer: tornar-se extropiano, tecnogenético ou continuar resistente. A história se passa em uma das grandes cidades-estado chamada Thule, contando com cerca de 500 mil habitantes, localizada próxima a uma floresta preservada nas cercanias do antigo Planalto Central Brasileiro, local dominado por um dos grupos extropianos mais fortes do planeta. Assim como em Biocyberdrama, em Os Sertões, há logo na primeira parte do livro a referência ao planalto central do Brasil, assim é possível estabelecer a primeira relação entre as obras, a de lugar. Conforme o trecho “o planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas (...) desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio

Grande a Minas” (CUNHA, 1995, p.5). Em Biocyberdrama, o domínio dos extropianos resulta em uma crescente tensão entre estes e tecnogenéticos. Esses últimos chefiados por Rosen, um tecnogenético radical extremamente agressivo e adepto de uma política violenta contra o domínio extropiano. Isso resultou na criação de uma guerrilha urbana, baseada em táticas de terror, mantendo a cidade em um constante clima de tensão, devido aos atentados quase diários sempre objetivando alvos extropianos, mas com resultados imprevisíveis, tirando também vidas de tecnogenéticos e resistentes. Em meio a essa guerra de classes e espécies, subsiste na cidade uma população considerável de resistentes. Cerca de 90 mil habitantes pertencem a essa espécie, constituindo uma das maiores populações Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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resistentes em uma cidade-estado do planeta no Século XXX. Essa população fora ainda maior, mas a onda de atentados tem gerado um êxodo gradativo dos humanos. Os líderes resistentes têm tentado insistentemente diminuir esse processo de evasão, de outra forma terão menos representatividade no conselho administrativo de Thule, podendo perder muitos dos benefícios arduamente conquistados por eles. Vale ressaltar que este aspecto em Biocyberdrama Saga, de guerra entre classes e espécies, remonta a questão da luta entre “raças”, o estado de guerra em Canudos em Os Sertões e denota também a situação de opressão vivenciada pelos resistentes nas duas tramas - seres humanos em Biocyberdrama e os sertanejos em Os Sertões.

Em meio a toda essa turbulência da saga futurista vive Antônio Euclides, um jovem resistente de 25 anos de idade, filho de uma família de resistentes de classe média – a mãe é professora na única Universidade Resistente de Thule, e o pai artista plástico. Antônio é rodeado de amigos tecnogenéticos e extropianos, estando cada vez mais fascinado pelos princípios e conceitos que envolvem essas duas tecnoculturas. Uma de suas principais amigas é Orlane, uma jovem tecnogenética que aos poucos vem lhe apresentando as “maravilhas” de seu tecnoculto. Antônio tem um romance desde a pré-adolescência com a jovem resistente Michelle, mas este romance está abalado pelo desinteresse de Michelle por extropianos e tecnogenéticos. Ela adotou uma postura radical em defesa da humanidade e da cultura Resistente, o que desagrada seu namorado. Os pais de A ntônio Euclides desaprovam o seu interesse pelas tecnoculturas dominantes, mas preferem dar-lhe o

livre-arbítrio para escolher o seu destino. A história do álbum retrata um momento turbulento na vida de Antônio, suas dúvidas e conflitos diante da iminente escolha que deverá fazer e que definirá o seu futuro. Antônio se vê envolvido com Orlane, a tecnogenética por quem nutre uma paixão secreta e por outros amigos extropianos e pensa em fazer a transição para uma dessas culturas, mas ao final do álbum recebe com surpresa a visita de Michelle que está grávida de 5 meses dele e lhe faz uma surpresa, diante do milagre de uma nova vida, Antonio opta por continuar humano. BIOCYBERDRAMA II – A Inocência de Arcimboldo. Antônio ainda é perseguido pela lembrança de Orlane e agora vive com Michelle, grávida de 8 meses. Orlane se desespera de paixão e busca a ajuda de Tetsuo para realizar uma operação proibida para

os tecnogenéticos em laboratório clandestino visando adquirir aparência humana - retirando suas pernas de canguru e seu membro masculino e implantando pernas humanas. Orlane é operada clandestinamente por Gepeto. Após a operação, Orlane vai para casa, nesse mesmo momento Michelle entediada liga para Suzete e resolve experimentar uma das cavernas de realidade virtual e entra em contato com uma entidade digital chamada Raelio durante sua conexão. Tetsuo paga Gepeto pelo Golem que apelidam de Arcimboldo e pede para implantar nele uma bomba e indica que o leve até a Catedral Tecnogenética que ele mesmo se encontrará com o Golem lá. Orlane desconfia das intenções de Tetsuo ao receber uma mensagem de Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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despedida dele e resolve ir até a Catedral Tecnogenética onde seus pais também estariam. Michelle sob influência da entidade digital Raelio acaba entrando em trabalho de parto e é levada para o hospital resistente. Antônio é avisado e segue desesperado ao encontro da esposa. Orlane desmaia de fraqueza pela operação e não consegue seguir para a Catedral. Tetsuo entra com o golem Arcimboldo no interior da Catedral que está lotada e senta-se ao lado dos mentores e Orlane. Na cena final ele aciona a bomba implantada em Arcimboldo e a catedral vai pelos ares matando centenas de tecnogenéticos. No mesmo momento Antônio chega ao hospital e pega seu filho nos braços enquanto vislumbra pela janela a explosão terrorista.

BIOCYBERDRAMA III – O Conselheiro O álbum começa exatamente 33 anos depois do término de BCD II. Antônio já é um homem de meia idade, ele coordena uma comunidade resistente longínqua que ocupa há 30 anos uma área rejeitada e degradada no interior de seu continente. A referência a Antônio Conselheiro, o mártir do Arraial de Canudos é clara. Antônio é um líder admirado, chamado pelos seguidores de “O Conselheiro”, ele mantém uma atitude messiânica em sua comunidade resistente que fica isolada e que recebe seguidores resistentes humanos peregrinos de vários lugares. O lugarejo procura resgatar valores arcaicos e abolir o máximo possível de tecnologia. Antônio abandonou sua esposa humana Michelle quando o filho deles Anton ainda era um bebê por tê-la encontrado na cama com um extropiano. Esse acontecimento deflagrou seu radicalismo em prol da

causa humana e o fez se isolar do mundo nessa localidade remota, mas ele pensa sempre no filho que nunca mais viu. Outro aspecto que vale destacar em Biocyberdrama Saga é a traição de Michelle a Antônio Euclides que remete à situação vivenciada pelo próprio Antônio Conselheiro ao flagrar sua mulher Brasilina de Lima traindo-o com um sargento de polícia em sua residência, fato que corroborou o início de suas peregrinações pelos sertões do nordeste. Mesmo motivo que motivou Antônio Euclides em suas peregrinações na trama de Biocyberdrama Saga. O mesmo liame entre o personagem Antônio Euclides e Conselheiro une também o autor de Os Sertões, Euclides da Cunha, que em sua vida pessoal também vivenciou a mesma situação ao ser traído por sua esposa Anna de Assis com um tenente militar, Dilermando de Assis. Motivado por vingança, Cunha enfrentou Dilermando de Assis, invadindo sua casa

armado disposto a matar ou morrer, Dilermando reagiu e matou Euclides da Cunha. Conhecida como a “Tragédia de Piedade”, este acontecimento encerrou a vida do escritor. Anos mais tarde, o filho de Cunha ao tentar vingar a morte do pai enfrenta Dilermando de Assis e também é morto pelo militar. Em Biocyberdrama Saga, o segundo homem no controle da vila de Conselheiro, é Virílio, um humano radical e nada pacifista que prega atitudes terroristas contra as outras espécies que aos poucos vão se aproximando e criando comunidades contíguas ao arraial. Virílio é partidário de ações terroristas e Antônio sempre tenta impor uma atitude pacífica, sem sucesso. Virílio prepara uma ação contra a comuna tecnogenética de Quimera e a realiza, matando mais de 200 tecnogenéticos. Os espiões tecnogenéticos Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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descobrem que as ações terroristas partem do arraial de Conselheiro e decidem armar uma ação contra eles. A general tecnogenética Orlane, antiga paixão de Antônio que tem um desejo de vingança por ter sido rejeitada, é convocada para coordenar a ofensiva contra Conselheiro – ela, a antiga paixão de Antônio que chegou a se operar para tentar ficar com ele, sem obter sucesso – ela não envelheceu como Antônio, pois usa tecnologia tecnogenética para manter uma aparência mais jovem. Orlane reúne uma pequena equipe de tecnogenéticos – todos com corpo modificado para formas humanas - e se infiltra entre um grupo de peregrinos que seguem para o arraial de Conselheiro, o objetivo é uma ação terrorista que mate todas as lideranças do arraial, principalmente o Conselheiro. Orlane consegue se aproximar de Conselheiro sem que ele perceba quem ela é e passa a receber sua confiança, no entanto

ela desde o momento que o vê se sente abalada emocionalmente, pois o antigo amor parece ressurgir. Alguns minutos antes do atentado que matará Antônio, Orlane recebe um bilhete do Conselheiro, dizendo que ela lhe lembrava do único amor verdadeiro que teve na vida. A tecnogenética se arrepende e decide tentar salvá-lo, ela está com braceletes antigravitacionais e consegue adentrar o edifício e abraçar Antônio, eles saem flutuando e o edifício explode, mas um detrito da explosão atinge as costas de Antônio ferindo-o gravemente. Orlane resolve levar Antônio para rever o seu filho que é uma pessoa muito especial, um importante líder sincrético que tenta unir as três culturas de forma pacífica: resistentes humanos, extropianos e tecnogenéticos. O final da saga deixa no ar se Antônio sobreviverá e sugere o anúncio de uma nova era de paz.

3. ANÁLISE COMPARATIVA E DISCUSSÃO 3.1 A TERRA – O paralelo entre a geografia e geopolítica As reproduções fotográficas foram obtidas da própria caderneta de anotações de campo do autor, ora sob a guarda do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Galvão, 1995, p. XIX) e atualmente sob o domínio público. Euclides da Cunha se empenhou em detalhar as conformações dos terrenos, o relevo, o solo, a fauna e suas espécies (em descrições textuais e desenhos), a flora e o clima da região nordestina, e para obter maior precisão, utilizava papel milimetrado, de acordo com a formação em engenharia que

possuía. Além disso, o autor relatava o dia e a noite no sertão, em uma descrição poético-dramáticoliterária em que ora o sertão era um tormento, ora um paraíso. Suas descrições são repletas de um teor psicológico, a partir da intensidade de quem vivencia. Se por um lado, a dita “objetividade cientifica” positivista requer e exige que se tenha um distanciamento do observador ao produzir seu relato de campo, por outro, o mergulho etnográfico de Cunha e seu envolvimento é o que torna rica sua descrição reunida na complexa obra Os Sertões. Assim descreve a flora:

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Os mandacarus (cereus jaramacaru) atingindo notável altura, raro aparecendo em grupos, assomando isolados acima da vegetação caótica, são novidade atraente, a princípio” (...) Os xiquexiques (cactos paruvianus) são uma variante de proporções inferiores, fracionando-se em ramos fervilhantes de espinhos, recurvos e rasteiros, recamados de flores alvíssimas” (CUNHA, 1995, p. 32).

Euclides da Cunho, Distribuição da Flora sertaneja. 1995 Os Sertões, p. 55. Domínio público

Euclides da Cunha, Um trecho das caatingas. 1995 Os Sertões, p. 33. Domínio público

Sobre o clima e vegetação: O sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono. Despois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera asfixiadora; o empedramento do solo; a nudez da flora; e nas ocasiões em que os estios se ligam sem a intermitência das chuvas – o espasmo assombrador da seca (CUNHA, 1995, p. 38).

Euclides da Cunha. Esboço Geographico do Sertão de Canudos. 1995. Os Sertões, p. 17. Domínio Público

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Edgard Franco, Mapa geográfico da Aurora Pós-Humana, Editora UFG, 2013. Biocyberdrama Saga, p. 40

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Em Biocyberdrama Saga, Franco descreve minuciosamente a “nova geografia planetária da Aurora Pós-Humana”, logo após o degelo dos polos e os efeitos da camada de ozônio teriam dizimado populações e ocasionado catástrofes naturais. Aqui o poder do Estado é exercido por um conselho de regentes que cada cidade-estado possui. A noção de “país” não existe nesse universo. No contexto da Aurora PósHumana, no século XXVIII a população extropiana, superior a 60% do total era o grupo majoritário no poder, do outro lado em minoria, os resistentes (humanos) tinham uma representatividade de apenas 15% nessa configuração geopolítica. A geosfera desse universo possui 6 continentes: Vitea; Kacnea; Orlania; Christea; Stalarquia e Ascotia. A região onde se desenvolve a história é o planalto central brasileiro, agora a região central do continente da Kacnea. 3.2 O HOMEM - A sociedade de os Sertões e a de Biocyberdrama Saga. Em sua obra, Cunha buscou retratar o sertanejo, as agruras do sertão nordestino e o massacre da guerra de Canudos. O texto minucioso com forte traço literário, descrição científica, torna a obra o documento um relato etnográfico de uma época, um relato como denúncia social e política. Euclides da Cunha tem seu conhecimento originário da escola militar, positivista, com grande fé na ciência, no determinismo, evolucionismo, pensamentos estes que balizaram sua forma de ver e apreender tudo que ele vivenciou e registrou em seu caderno de campo, em suas reportagens. Embora Cunha tivesse boas intenções em compreender, explicar e denunciar a revolta de Canudos e ter tomado partido explícito

em prol dos rebeldes e seus ideais, conforme Galvão (1995), a todo tempo na narrativa demonstra suas convicções racistas em relação aos rebeldes os quais defende: A fé na ciência, a iluminação pelas matemáticas, o determinismo e o evolucionismo – estas interpretações imperialistas da História – são outras vigas-mestras do pensamento de Euclides, que só poderia ficar, como ficou, perdido em suas boas intenções de compreender, explicar e justificar a revolta de Canudos. Com estes moldes teóricos na cabeça, tentou mostrar que os rebeldes eram o resultado de mestiçagens, o que de fato eram, pois a história da humanidade nada mais é do que uma história de mestiçagens. E sua análise se baseia na noção de que no mestiço brigam a raça mais forte e a raça mais fraca, sendo que, nos momentos de crise, predominam as características inferiores da raça mais fraca. Então, ao descrever a resistência ímpar dos rebeldes canudenses, com quem simpatiza, vê-se atribuindo suas proezas a aleijões raciais. Aí de detém a análise, quando Euclides se surpreende desservindo à causa que queria servir. Por outro lado, Euclides lamenta que a guerra tivesse irrompido, sem dar tempo à mestiçagem para se estabilizar, em prosseguimento ao processo de formação da nova raça brasileira, de que o rebelde de Canudos, pelo acúmulo de virtudes que demonstrava, era um pioneiro e promissor sinal (1995, p.IX).

Em sua visão de mundo, Cunha traçava uma separação da nação brasileira entre os povos litorâneos e os interioranos. Tinha como uma de suas bases teóricas a do determinismo racial, na ideia de que o homem é produto de três fatores: meio ambiente, raça e momento histórico. Em suas próprias palavras “(...) em graus variáveis, três elementos étnicos, a gênese das raças mestiças do Brasil é um problema que por muito tempo ainda desafiará o esforço dos melhores espíritos” (CUNHA, 1995, p.49). Neste trecho, uma clara referência ao “homem do sul” e os “fora do litoral”, Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Os homens do Sul irradiam pelo país inteiro. Abordam as raias extremas do Equador. Até aos últimos quartéis do século XVIII, o povoamento segue as trilhas embaralhadas das bandeiras. Seguiam sucessivas, incansáveis, com a fatalidade de uma lei, porque traduziam, com efeito, uma queda de potenciais, as grandes caravanas guerreiras, vagas humanas desencadeadas em todos os quadrantes, invadindo a própria terra, batendo-a em todos os pontos, descobrindo-a depois do descobrimento, desvendando-lhe o seio rutilante das minas. Fora do litoral, em que se refletia a decadência da metrópole e todos os vícios de uma nacionalidade em decomposição insanável, aqueles sertanistas, avantajando-se às terras extremas de Pernambuco ao Amazonas, semelhavam uma outra raça, no arrojo temerário e resistência aos revezes (CUNHA, 1995, p.62).

Como foi dito, era contra miscigenação entre “raças”, e via os sertanejos como uma subraça. Apesar de deter essa ideia de divisão de raças e hieraquizá-las, Cunha acreditava que tanto os povos litorâneos

quanto os interioranos, cada qual em suas especificidades, se encontravam em um estádio bárbaro de sociedade, o que seria prova disso, a crueldade com que se reprimiu o movimento de Antônio Conselheiro. Em um trecho do livro intitulado “Abramos um parêntese...”, Cunha discorre sua visão sobre as raças, a mistura entre raças, o que para ele é algo prejudicial. De acordo com as palavras de Cunha: A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso (CUNHA, 1995, p.77).

Em Biocyberdrama Saga, no universo ficcional da Aurora Pós-Humana, existem as seguintes espécies: os Tecnogenéticos (dividem-se em radicais, tradicionais, livres) – são híbridos de humanos,

animais e vegetais (são cerca 35% população); os Extropianos (dividem-se em avançados, neófitos, iniciados) – são organismos pós-humanos abiológicos, resultado do transplante da consciência humana para chips de computador (são cerca de 60% população); os Resistentes (dividem-se em fundamentalistas, humanitas, transitórios) – são seres humanos que resistem às mudanças extropianas e tenogenéticas (são cerca de 5% da população); e os Golens orgânicos, golens de silício e digigods, são robôs e não chegam a desfrutar de nenhum status de cidadãos no mundo pós-humano. Os Tecnogenéticos e os Extropianos são tecnoculturas antagônicas que estão em constantes disputas pela hegemonia de poder. Estabelecendo relação com as questões abordadas sobre as espécies, em Biocyberdrama Saga, - que em seu nome original, Biocyberdrame, vocábulo formado pela contração de “biológico”, “cibernético” e “drama”-, tem na sua imagem colorida de abertura uma alusão ao clássico verso de Hamlet “Ser ou não

ser, eis a questão”, metáfora emblemática que traz o dilema do personagem Antônio Euclides em “ser ou não ser” resistente, extropiano ou tecnogenético. Essa problematização sobre a mistura ou a hibridização entre raças e espécies, que para Euclides da Cunha era visto como algo negativo, emerge também em Biocyberdrama, em outro contexto, porém suscita reflexões de implicações éticas, bioéticas, culturais, psicológicas, políticas que são motivações similares nas lutas por domínio geopolítico que permeiam as narrativas nas duas obras analisadas.

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3.3 A LUTA – Paralelo entre a Guerra de Canudos e a Luta de Antônio Euclides Euclides da Cunha sempre esteve empenhado nas causas políticas de seu tempo, sobretudo o abolicionismo e o republicanismo. Porém, a despeito da conjuntura mundial (como a proclamação da independência norte-americana em 1776 e pela Revolução Francesa em 1789), no Brasil houve uma situação peculiar, pois mesmo abstendo-se da condição de colônia conservou a monarquia escravocrata, assim todos os movimentos de libertação anteriores arrefeceram, mantendo uma nação fortemente centralizada e monárquica. Apenas 8 anos depois da queda do Império no Brasil, o levante de Canudos

apresenta-se como uma frente de restauração monarquista, porém, convenientemente, a rebelião dos canudenses foi considerada como “opositora” aos ideais democráticos do regime republicano e da Revolução Francesa, o que foi um equívoco, segundo afirma Galvão (1995). Mais um episódio na formação do Estado brasileiro, o arraial de Canudos foi levado de roldão nesse processo, A continuidade do fortalecimento do poder central não admitia qualquer contestação, mesmo que insabida pelos contestadores, como foi o caso. A mobilização nacional contra o inimigo interno fez milagres – e milagre de Antônio Conselheiro!- pela consolidação do novo regime. Aniquilado o arraial, numa chacina incomparável, desfez-se o equilíbrio do consenso: os setores sociais que tinham clamado pelo extermínio começaram a se penitenciar e a fazer acusações, movimento geral da inteligência de que Os Sertões é o fruto exemplar. A voz que sobressai nessa tomada de consciência é a de Euclides, o mesmo Euclides abolicionista e republicanista, crente ferrenho do progresso, entendido este como uma mistura legítima de luzes com técnica (1995, p.IX).

Em Biocyberdrama Saga, a luta gira em torno dos conflitos políticos e sociais entre duas tecnoculturas dominantes, os extropianos, diplomáticos e pacifistas, detém maior poder por sua maior representatividade nas cidades-estado, e os tecnogenéticos, intransigentes e radicais nas negociações. Os humanos são apenas 5% da representatividade global. No mapa há a representação gráfica do domínio de cada tecnocultura nos continentes da Aurora Pós-Humana.

Flávio de Barros, 40th Infantry Batallion Canudos, 1987. Domínio Público.

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Mozart Couto, Edgard Franco, [sem titulo] Editora UFG, 2013, Biocyberdrama Saga.

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Símbolo da luta, Antônio Conselheiro e Antônio Euclides são líderes messiânicos, ambos com ideário utópico da resistência ante a opressão das elites hegemônicas e de poder. Em Biocyberdrama, Antônio Euclides é líder de um arraial que luta pela causa “resistente”, é o protagonista da trama, cujo nome faz dupla referência – e explícita pelo autor - a Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha. E Antônio Conselheiro, o Antônio Vicente Mendes Maciel (1893-1897), cearense, místico rebelde e líder espiritual do arraial de Canudos, retratado com destaque na obra de Euclides da Cunha.

Mozart Couto, Edgard Franco [sem título]

Artista desconhecido, [sem título] representação

Editora UFG, 2013. Biocyberdrama Saga, p. 166.

de Antônio Conselheiro, 1987. Domínio Público.

De acordo com Cunha, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, ainda que em seguida, afirme “a sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário” (CUNHA, 1995, p.81). Aos olhos do autor, o sertanejo não tem boa aparência, contudo tem força.

Mozart Couto, Edgard Franco [sem título] Editora UFG, 2013, Biocyberdrama Saga. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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O Arraial de Canudos conforme descrito em Os Sertões, é situado em uma velha fazenda de gado à beira do Vaza-Barris. As cercanias de Canudos, que conforme Cunha (1995, p. 128) tinha uma peculiaridade própria: Fechado ao sul pelo morro, descendo escancelado de gargantas até o rio, fechavam-no, a oeste, uma muralha e um valo (...) feito um canyon profundo a sua curva forte rodeava, circunvalando-a, a depressão em que se erigia o povoado, que se trancava a leste das colinas,a oeste e norte pelas ladeiras das terras mais altas (...).

Na imagem acima, a página que abre o capítulo, uma referência direta à luta e Canudos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na perspectiva teórica adotada neste trabalho, segundo Barthes e Compagnon (1987), mergulhar em um texto extrapola o reconhecimento dos sistemas linguísticos e um pretenso sentido objetivo da obra, para problematizar outros fatores, como a relação da obra literária com a época em que foi escrita, a recepção do leitor e as distintas apropriações de sentidos compreendidas na complexidade do corpo social. Nesse sentido, concluímos que dentre a diversidade de adaptações literárias em quadrinhos que tem sido publicada, e embora Biocyberdrama Saga não se proponha a ser uma adaptação do livro Os Sertões, trouxe uma nova proposta ao tomar como base a obra clássica de Euclides da Cunha como referência e apresentá-la recontextualizada no universo da Aurora Pós-Humana, comprovando o potencial de recriação e releitura, uma vez que a questão do dilema humano permanece, bem como a saga pela terra, entre os homens, em eterna luta entre espécies e consigo mesmo, constituindo um tema sempre atual seja no século XIX ou nos próximos séculos.

5. BIBLIOGRAFIA BARTHES, R. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1999. BARTHES, R. COMPAGNON, A. "Oral/Escrito". In: Enciclopédia Einaudi. v.11. Trad. Teresa Coelho. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1987. CUNHA, E. Os Sertões. Campanha de Canudos. 36 ed. Rio de Janeiro: F.Alves; Brasília, 1995. BARROS, F. 40th Infantry Batallion Canudos 1987. In: Vasquez, Pedro Karp. O Brasil na fotografia oitocentista. São Paulo: Metalivros, 2003. FRANCO, E. S. “Panorama dos Quadrinhos subterrâneos no Brasil.” In. CALAZANS, F. M. A. (Org.) As histórias em Quadrinhos no Brasil: Teoria e Prática. São Paulo: Intercom/Unesp/Proex, 1997, p. 51-65. FRANCO, E. S; COUTO, M. Biocyberdrama Saga, Goiânia: Editora UFG. 2013.

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GALVÃO, W.N. A Terra – Introdução. In: CUNHA, E. Os Sertões. Campanha de Canudos. 36 ed. Rio de Janeiro: F. Alves; Brasília, 1995. QUINTANA, H. G. “Os Discursos da Ciência na Ficção”, in: Revista On-line Com Ciência (Tema: Ficção e Ciência, nº 59, outubro), Url: http://www.comciencia.br/reportage.shtml, 2004. REPRESENTAÇÃO de Antônio Conselheiro, Autoria Desconhecida, 1987. SANTOS NETO, E. “O que são Histórias em quadrinhos Poético-Filosóficas?” Um olhar brasileiro. In Visualidades. Revista do Programa de Mestrado em Cultura Visual da FAV/UFG. v.7 n.1. Jan/Jun 2009, Goiânia, GO: UFG, FAV, 2009, p.68-95. VERGUEIRO, W. A atualidade das histórias em quadrinhos no Brasil: a busca de um novo público. História, imagem e narrativas, n. 5, ano 3, setembro, 2007.

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LITERATURA E QUADRINHOS: ESTUDO SOBRE O IMPACTO DE ADAPTAÇÕES LITERÁRIAS NA ESCOLA LITERATURE AND COMIC BOOKS: A STUDY ON THE IMPACT OF THE LITERARY ADAPTATIONS AT SCHOOLS Denise de Paula da Silva Ferreira Universidade Federal de São Paulo

RESUMO Essa pesquisa tem como objetivo estudar o impacto da utilização de histórias em quadrinhos no âmbito escolar, especificamente as obras que são distribuídas em escolas públicas do nível básico pelo Governo Federal através do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE). Como recorte metodológico, foram escolhidos para participarem da pesquisa alunos voluntários de uma escola da rede estadual que cursavam o nono ano do ensino fundamental e o terceiro ano do ensino médio. Eles teriam que passar por três etapas: 1) aplicação de um questionário sobre leitura; 2) leitura de obra selecionada; 3) aplicação de um segundo questionário sobre a interpretação e leitura futura. Este estudo pode indicar que é preciso reconsiderar a forma com que encaramos os quadrinhos no atual cenário de ensino brasileiro. Palavras-chave: quadrinhos; literatura; educação. ABSTRACT This research aims to study the impact of utilizing comic books in schools, specifically works that are distributed in public schools of basic level by the Federal goverment through the Programa Nacional Biblioteca na escola. (PNBE). As a methodological clipping were choosen volunteers students from a state school that attended the ninth year of the fundamental level and the third year of the high school level. They had to pass to three steps of application: 1-application of a survey about reading; 2reading of a selected work; 3 application of a second survey about interpretation and further reading. This study may indicate that it is necessary to reconsider the way we view the comics in the current scenario of Brazilian education. Keywords: comic books; literature; education.

Por muito tempo as histórias em quadrinhos foram fortemente discriminadas. Elas eram associadas a vários tipos de desvios de conduta e formação de jovens delinquentes, além de gerarem “preguiça mental” nos estudantes e afastá-los da chamada “boa leitura” (VERGUEIRO, RAMOS, 2009, p.9). Essa concepção surge a partir da publicação, em 1954, do livro Seduction of the innocent, do psiquiatra alemão Frederic Werthan. Nesta obra, ele insere vários argumentos que penalizam a leitura das histórias em quadrinhos e explicita os alguns supostos malefícios causados por esse tipo de leitura. Hoje esse panorama está muito mudado e os quadrinhos conseguiram aos poucos desmistificar essa imagem errônea. Recobraram sua popularidade e conseguiram até mesmo adentrar as esferas educacionais. Podemos ver a presença de várias charges e tiras em livros didáticos, vestibulares, provas de concursos públicos, dentre outros.

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Tornaram-se, inclusive, parte da politica educacional do Brasil, sendo reconhecidos pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases) e pelos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) devido aos seguintes argumentos: Os estudantes querem ler quadrinhos; palavras e imagens, juntos, ensinam de forma mais eficiente; existe um alto nível de informação nos quadrinhos; as possibilidades de comunicação são enriquecidas pela familiaridade com as histórias em quadrinhos; os quadrinhos auxiliam no desenvolvimento do hábito de leitura; os quadrinhos enriquecem o vocabulário dos estudantes; o caráter elíptico da linguagem quadrinhística obriga o leitor a pensar e imaginar; os quadrinhos tem um caráter globalizador; os quadrinhos podem ser utilizados em qualquer nível escolar com qualquer tema. (VERGUEIRO, 2014)

Diante desse cenário, este artigo pretende estudar o impacto da utilização de histórias em quadrinhos no âmbito escolar, especificamente as adaptações literárias que são distribuídas em escolas públicas do nível básico pelo Governo Federal através do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE). Este programa desde 2006 leva até as escolas públicas acervos em que as histórias em quadrinhos, parte delas adaptações literárias, estão inseridas com o intuito de que através deles os alunos tomem gosto pela leitura e se interessem pelas obras originais. Uma vez inserido no ambiente escolar, quais seriam os impactos dessas adaptações literárias na prática de leitura dos estudantes do nível básico? Essas obras realmente servem de intermédio para a leitura dos cânones? São elas o método mais eficiente de incentivo à leitura? Em busca de dados mais concretos para responder a tais perguntas, pesquisadores do Grupo de Pesquisa sobre Quadrinhos (Grupesq) do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) elaboraram uma metodologia de pesquisa em campo na tentativa de traçar um panorama da leitura de histórias em quadrinhos na escola, especificamente as adaptações literárias. Expomos aqui parte dos resultados do estudo. Atenderam ao critério de escolha da escola duas características: a primeira é que esta deveria estar situada na cidade de Guarulhos, segunda maior cidade do estado de São Paulo e na qual se situa o campus de humanas da Unifesp, atendendo, assim, a tríade ensino, pesquisa e extensão proposta pela academia; e segundo a escola deveria ter recebido pelo menos um acervo do PNBE nos últimos cinco anos. Foram selecionados dez alunos do nono ano do ensino fundamental II e dez alunos do terceiro ano do ensino médio, regularmente matriculados na escola escolhida, voluntários a participarem da pesquisa durante o horário de aula e que não tivessem lido a obra original e nem a obra adaptada com a qual trabalharíamos durante a aplicação da pesquisa. A dinâmica de aplicação foi dividida em três partes: 1) Aplicação de um questionário sobre leitura; Nesta primeira etapa, os alunos selecionados deveriam responder um questionário contendo perguntas que delineiam o perfil deles como leitores.

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2) Leitura de obra selecionada; Após responderem ao primeiro questionário cada aluno recebeu uma adaptação literária para leitura. Os alunos do ensino fundamental receberam Dom Casmurro, de Machado de Assis, adaptado por Ivan Rosa e Ivan Jaf, e os estudantes do ensino médio receberam Sonhos de uma noite de verão, de William Shakespeare, adaptado por Lillo Parra e Wanderson de Souza. Entendemos adaptação literária como: [...] gênero que se origina da intenção de traduzir uma história construída primariamente em um discurso literário para um discurso quadrinhístico, e pode ou não ter fins didáticos, compreendendo-se didático não como a aplicação de um objeto em sala de aula, mas no uso de um objeto para a propagação do conhecimento. (PIROTA, 2014, p. 108)

3) Aplicação de um segundo questionário sobre a leitura da obra. Nesta terceira e última etapa, os alunos deveriam responder algumas perguntas acerca do conteúdo e das impressões sobre obra lida e quais os interesses de leitura após ler a obra selecionada. Vale apontar que todas as etapas aqui descritas foram consentidas pela direção e acompanhadas por um professor efetivo da escola. De acordo com as respostas à principal questão, que traça o perfil de leitura dos alunos na primeira etapa de aplicação, podemos afirmar que o que os estudantes mais leem são os textos de suporte virtual e/ ou digital, ou seja, redes sociais e sites, como mostram os gráficos abaixo:

Gráfico I - Perfil de leitura dos estudantes (números em porcentagem) Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Gráfico II - Local de leitura dos estudantes (números em porcentagem)

Se os estudantes possuem como prática habitual esse tipo de leitura, podemos dizer que eles estão “acostumados” aos textos multimodais. Entendo como textos multimodais aqueles que são “construídos numa orientação de multissistemas, ou seja, envolve tanto aspectos linguísticos como não linguísticos no seu processamento” (MARCUSCHI, 2008, p. 80). Por se tratar de um texto, a leitura dos quadrinhos é também um “evento comunicativo” no qual, segundo Koch e Elias (2010), o sentido é construído na interação texto-sujeitos, sendo, então, uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza com base nos elementos linguísticos da superfície textual e na sua forma de organização. A construção de sentido requer, também, a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo a partir das experiências e os conhecimentos do leitor. Logo, a leitura dos clássicos, em comparação com a leitura das adaptações, não corresponde às “experiências e conhecimentos” desse leitor, dificultando a efetivação da interação texto-sujeitos, comprometendo a construção de sentido desse evento. Lembrando que essa interação está atrelada a um recorte espacial e temporal. O estudante hoje é o sujeito do século XXI que está imerso no mundo dos aparatos tecnológicos. É o estudante internauta, que o tempo todo é bombardeado com informações no formato verbovisual a partir de várias fontes diferentes, internet, televisão, revistas, outdoors, placas de sinalização, etc. Dessa forma, o papel que as adaptações literárias cumprem é o de se aproximar da carga habitual de leitura dos alunos possibilitando uma quantidade maior de associações e inferências, tornando-se uma atividade mais prazerosa e “fácil”. Dessa forma, o texto adaptado pode comunicar ao aluno, a partir da sua própria linguagem, o que os clássicos não conseguem. Daí a falsa ideia de “facilitador”, já que os códigos constituintes da linguagem dos quadrinhos são mais familiares ao aos hábitos de leitura dos alunos do que a linguagem dos clássicos. De acordo com Pina: Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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O problema que cerca, na contemporaneidade, a literatura, especialmente a canônica, é que por sua linguagem, por seus pertencimentos históricos e culturais, as obras estão distantes do universo tecnológico, visual e informatizado que cerca as crianças e os jovens. (PINA, 2014, p. 216)

Ainda de acordo com a autora, uma parte desse problema consiste no fato de que o repertório histórico cultural criado pelos alunos não acontece a partir dos clássicos literários, mas sim, a partir de novelas de TV, filmes, gibis, games, chat, blog, sites da internet etc. Portanto, as adaptações literárias podem dialogar com os leitores a partir de uma linguagem mais contemporânea. As adaptações quadrinísticas de textos literários tornam-nos divertidos, acessíveis, aproximando-os das possibilidades de compreensão e produção de sentidos das crianças e dos jovens estudantes hoje. (PINA, 2014, p. 218)

Alguns resultados da terceira etapa dessa pesquisa mostraram que a maioria dos estudantes, após lerem as adaptações literárias, tendem a ler outra adaptação ao invés do romance original. Contradizendo a proposta governamental. Como mostra o gráfico a seguir:

Gráfico III --Interesses para leitura futura (resultados em porcentagem)

De acordo com os resultados, as adaptações literárias não cumprem de maneira tão eficiente a função de ponte para uma literatura de maior prestígio, uma vez que eles preferem a leitura que mais se aproxima do seu repertório de práticas socioculturais. Algumas vertentes defendem que a leitura dos quadrinhos não só podem servir de facilitadores, mas também que a leitura do cânone literário pode ser substituída pelas adaptações, uma vez que o autor-artista adentra o universo da obra original e traz ao leitor os elementos pertinentes à obra com uma linguagem mais interessante, como afirma Barroso (2013): Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Para além das críticas acerca da “leitura facilitadora” aplicada às HQs, que pode (e pode mesmo) fazer o livro, o clássico, ser dispensado e substituído por uma leitura mais rápida, menos exigente e quiçá desmotivadora [...] nota-se que as adaptações em quadrinhos, se inseridas de forma devida e correta dentro do ambiente escolar, funcionam como uma porta de entrada para o universo da obra literária, que não se resume e não se encerra na obra em si. (BARROSO, 2013. p. 103)

Durante a aplicação da segunda etapa da pesquisa, a professora que acompanhava a dinâmica me chamou atenção para um fator interessante: os alunos estavam quietos e completamente concentrados na leitura. Essa situação, segundo ela, não seria possível se estivesse tratando de um clássico. Foi quando nos demos conta do potencial contido nos quadrinhos. Logo que dissemos aos alunos que eles deveriam ler Dom Casmurro, houve uma série de

reclamações e resmungos. Porém, quando eles perceberam que se tratava da obra adaptada a recepção se tornou diferente. Prontamente começaram a ler e sem demora estavam profundamente submersos no universo da história em quadrinhos. Se por um lado a linguagem dos clássicos não alcança e captura esse nível de atenção prolongada para o interior da narrativa, por outro lado a linguagem dos quadrinhos pode ser capaz disso. Assim, apesar das semelhanças entre os quadrinhos e a literatura, eles não podem ser encarados como produção inferior ou de menor relevância, uma vez que alcançam resultados pedagógicos tão legítimos quanto o uso dos cânones. Chamar quadrinhos de literatura, a nosso ver, nada mais é do que uma forma de procurar rótulos socialmente aceitos ou academicamente prestigiados (caso da literatura, inclusive a infantil) como argumento para justificar os quadrinhos, historicamente vistos de maneira pejorativa, inclusive no meio universitário. (RAMOS, 2010, p. 17)

Várias características podem diferenciar os quadrinhos da literatura, por isso, considero que se trata de duas linguagens distintas, cada uma com suas particularidades. Assim, é muito comum entender as adaptações literárias como forma de “tradução”. Uma vez que há a transposição dos significados de uma linguagem pra outra. Quadrinhos são quadrinhos. E, como tais, gozam de uma linguagem autônoma, que usa mecanismos próprios para representar os elementos narrativos. Há muitos pontos em comum com a literatura, evidentemente. Assim como há também com o cinema, o teatro e tantas outras linguagens. (RAMOS, 2010, p. 17)

A partir desta exposição de dados e reflexões é possível aludir o caráter ampliador dos textos multimodais, em especial os quadrinhos, no âmbito educacional. Uma vez que, por se tratar de um texto composto de duas modalidades, verbal e não verbal, é exigida do aluno a articulação de diferentes semioses, ampliando suas habilidades de compreensão textual. A capacidade de articulação entre diferentes modalidades textuais e artísticas, bem como diferentes gêneros, dá ao educando diferentes chances de fruir e agir sobre o texto, encontrando, ele próprio, em algum momento a sua própria “voz” como leitor, logo, consciente de que é um sujeito capaz de compreender o que está além da superfície. (RODRIGUES, p 258)

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Observamos aí um importante valor pedagógico e efetivo com relação ao uso dos quadrinhos. De acordo com os resultados dessa pesquisa, os alunos não tiveram problemas com a interpretação do texto. Perguntas sobre quais eram os temas predominantes nas obras, ou quais os principais conflitos no enredo foram facilmente respondidas, e alcançaram quase cem por cento de acertos nos questionários de ambas as séries. As adaptações literárias inseridas na escola, como vimos, funcionam melhor como ponte para a leitura de outras adaptações do que para a leitura do cânone, contudo, funcionam como um aparato incentivador de leitura. Sendo esta, não só literatura, mas todos os tipos de texto. Somente um aluno dentre todos os participantes, como ilustrado na tabela II, declarou não ter interesse em nenhuma das opções

indicadas. Um dos maiores equívocos que se pode cometer é encarar os quadrinhos não como uma forma de leitura por si só, mas sim como um instrumento de intermédio entre o aluno e a “boa leitura”. Todavia os resultados mostram que os textos multimodais são parte da formação leitora dos estudantes, portanto, essa pode ser a porta de entrada pra instiga-los a prática de leitura. Poderíamos dizer, então, que as adaptações literárias apesar de irem para o meio educacional com base em frágeis premissas, cumprem o resultado desejado. Os alunos se sentem provocados a ler, o que no fim das contas é o grande objetivo das politicas educacionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, Fabiano Azevedo. Quadrinizar a literatura ou literaturizar o quadrinho?. In: GUERINI, Andreia; BARBOSA, Tereza Virgínia (orgs.). Pescando imagens com rede textual: HQ como tradução. São Paulo: Peirópolis, 2013. JAF, Ivan; ROSA, Rodrigo. Dom Casmurro. São Paulo: Ática, 2013. KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender os sentidos do texto. 3 ed. São Paulo. Contexto, 2010. MARCUSCHI, Luiz Antonio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.

PARRA, Lillo; SOUZA, Wanderson. Sonho de uma noite de verão. Belo Horizonte: Editora Nemo, 2011. PINA, Patrícia Kátia da Costa. A literatura em quadrinhos e a formação do leitor hoje. In: RAMOS, Paulo; VERGUEIRO, Waldomiro; FIGUEIRA, Diego (orgs.). Quadrinhos e literatura: diálogos possíveis. São Paulo. Criativo, 2014. PIROTA, Patrícia. Palimpsestos machadianos: adaptações para os quadrinhos da obra O Alienista. In: RAMOS, Paulo; VERGUEIRO, Waldomiro; FIGUEIRA, Diego (orgs.). Quadrinhos e literatura: diálogos possíveis. São Paulo. Criativo, 2014. RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. 1 reimpr. São Paulo: Contexto, 2010. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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RODRIGUES, Vinicius da Silva. Os potenciais da narrativa gráfica na formação do leitor literário: hibridização e autonomia. In: RAMOS, Paulo; VERGUEIRO, Waldomiro; FIGUEIRA, Diego (orgs.). Quadrinhos e literatura: diálogos possíveis. São Paulo. Criativo, 2014. VERGUEIRO, Waldomiro. O uso dos HQs no ensino. In: RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro (orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos no ensino. 4 ed., 2 reimpr. São Paulo. Contexto, 2014 ________; RAMOS, Paulo (orgs.). Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. São Paulo: Contexto, 2009.

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POEMAS EM QUADRINHOS: ILUSTRAÇÃO OU TRADUÇÃO? POÈMES EN BANDE DESSINÉE : ILLUSTRATION OU TRADUCTION ? Dennys da Silva Reis Universidade de Brasília

RESUMO Este artigo é uma reflexão sobre a quadrinização de poemas. Discute-se os conceitos de Ilustração, História em Quadrinhos e Tradução não-verbal a fim de diferenciá-los. Como corpus, utiliza-se dois poemas de Victor Hugo (Demain, dès l’aube e Le soleil s’est couché ce soir) publicados na coleção Poemas de Victor Hugo quadrinhos em 2002 na França. Palavras-chave: Poema: quadrinhos; Victor Hugo; Tradução, Ilustração. ABSTRACT Cet article est une réflexion sur la mise en bande dessinée de poèmes. On discute les concepts d’illustration, bande dessinée et traduction non-verbale pour les différencier. À propos du corpus, on utilise deux poèmes de Victor Hugo (Demain, dès l’aube, et Le soleil s’est couché ce soir) publiés dans la collection Poèmes de Victor Hugo en bande dessinée en 2002 en France. Mots-clés: Poème; Bande dessinée; Victor Hugo; Traduction; Illustration.

INTRODUÇÃO São muito comuns as adaptações de textos narrativos para os quadrinhos; todavia, outros gêneros literários começam a ser quadrinizados como, por exemplo, o texto teatral e o texto poético. No Brasil, encontramos poucas peças de teatro e quase nada de poesia em quadrinhos; já em outros países esses dois gêneros são tão adaptados quanto o narrativo. Se é fato que existem adaptações de peças teatrais e poemas para a linguagem dos quadrinhos, também é fato que faltam reflexões a respeito da adaptação de tais textos no âmbito quadrinístico. A editora Petit à Petit é uma das estreantes na publicação de poemas e peças teatrais em quadrinhos na França. Sua coleção é sobretudo de textos consagrados da Literatura Francesa. Dentre estas publicações,

encontramos a coleção ‘Poemas em quadrinhos’ (Poèmes en bandes dessinées) da qual Poèmes de Victor Hugo en bandes dessinées faz parte. O presente trabalho visa analisar a obra Poèmes de Victor Hugo en bandes dessinées a fim de refletir sobre os possíveis processos da adaptação de poemas para os quadrinhos. Poèmes de Victor Hugo en bandes dessinées 2 A obra Poèmes de Victor Hugo en bandes dessinées tem duas edições pela editora Petit à petit : a primeira dispõe de 13 poemas (Jolies femmes; A un homme partant pour la chasse; L’enfant; Après la bataille; Vieille chanson du jeune temps; Sur une barricade; Oceano Nox; Chanson des pirates; Bivar; Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016


Demain, dès l’aube; Le mendiant; Le mot e Le soleil s’est couché ce soir) e foi publicada em 2002; já a segunda, tem 20 poemas (todos da primeira edição somados aos poemas Cent mille hommes; Quinze février; On vit, on parle, on a le ciel et les nuages; Un groupe tout à l’heure; Tu me vois bon, charmant et doux; Bon conseil aux amants e Garde à jamais à ta mémoire) e foi publicada em 2011; o que faz com que de uma edição para outra haja uma diferença de extensão da obra. Além da diferença mencionada, a obra apresenta, antes de cada história em quadrinhos, o poema e também um texto contextualizador do mesmo. Todavia, na primeira edição o poema e o texto contextualizador vinham juntos e, na segunda, eles vêm separados - poema antes da quadrinização e texto contextualizador ao final do livro intitulando uma seção de Petite biographie sympathique.

A primeira orelha da segunda edição de Poèmes de Victor Hugo en bandes dessinées traz as seguintes palavras do editor da coleção : 20 poèmes, entre grands classiques et petites perles, représentatifs du talent de l’exilé de Guernesey ont été mis en images par de jeunes scénaristes et dessinateurs de bandes dessinées. [...] Une manière originale et ludique de (re)découvrir le texte intégral de chaque poème !1

Esta afirmação nos revela tanto o porquê de se quadrinizar poemas – a redescoberta do poema pelo lúdico - quanto o modo como os poemas foram escolhidos – os mais representativos e clássicos de Victor Hugo. Para o presente trabalho escolhemos analisar apenas 2 poemas por causa da limitação de tempo, para podermos descrever os principais processos da tradução de poemas para a linguagem quadrinística. Porém, vale ressaltar aqui a diferença entre Ilustração e Histórias em quadrinhos. Do conceito de Ilustração e Histórias em quadrinhos Segundo a professora Isabelle Daunais, L’illustration désigne toute une image qui, dans un livre, accompagne le texte dans le but de l’orner, d’en renforcer les effets ou d’en expliciter le sens. Elle recouvre des pratiques multiplex, depuis l’enluminure jusqu’à la photographie en passant par la gravure, l’estampe, la lithographie, toutes les formes du dessin, et peut servir des fonctions diverses d’ordre rhétorique, argumentatif ou institutionnel, variable selon les époques et les genres (DAUNAIS, 2002, p. 365)2.

Isto é, a ilustração é uma espécie de paratexto ou discurso de acompanhamento que pode tanto complementar quanto ter uma relação de paridade com o texto principal. Ela pode enaltecer, comentar ou tornar o texto mais atraente. Igualmente, ela é capaz de orientar ou fornecer elementos visuais para a imaginação do leitor. 1

20 poemas, entre grandes clássicos e pequenas pérolas, representativos do talento do exilado de Guernsey foram colocados em imagens por jovens roteiristas e desenhistas de histórias em quadrinhos. […] Uma maneira original e lúdica de (re)descobrir o texto integral de cada poema. [Tradução nossa.] . 2

A ilustração designa toda imagem que, em um livro, acompanha o texto com o objetivo de orná-lo, de lhe reforçar os efeitos ou de lhe explicitar o sentido. Ela recupera as práticas múltiplas, desde a iluminura até a fotografia passando pela gravura, a estampa, a litografia, todas as formas do desenho; e pode servir de diversas funções de ordem retórica, argumentativa ou institucional variável segundo as épocas e os gêneros. [Tradução nossa.]

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Já a história em quadrinhos, o professor Benoît Denis define da seguinte forma: La bande dessinée (en abregé, BD), est une forme de récit fonctionnant à partir d’une suite d’images fixes (à la différence du cinéma) organisées en séquences (à la différence de la fresque). Elle est en outre caractérisée par l’association de l’image et du texte (de l’iconique et du linguistique) dans une relation de complémentarité (DENIS, 2002, p. 57).3

Conforme a citação, percebemos que a história em quadrinhos é uma narrativa que combina elementos verbais e não-verbais totalizando-se em uma só arte: a quadrinística. Logo, compreendemos que a ilustração não compreende uma narrativa, o que a diferencia completamente da história em quadrinhos. Uma está inteiramente voltada para a linguagem visual, enquanto a outra tem uma linguagem autônoma onde elementos visuais e verbais estão em equilíbrio e têm convenções. Visto que os poemas de Victor Hugo não foram somente ilustrados, mas seguiram as convenções da linguagem dos quadrinhos (o ritmo visual, o balão, a paginação, etc.) concebemos neste trabalho que o texto verbal (o poema) foi transformado, transmutado, transcodificado em um texto quadrinístico: uma história em quadrinhos. E a este processo, nomeamos aqui de tradução. Vejamos a seguir a tradução de dois poemas de Victor Hugo. A tradução de Demain, dès l’aube Demain, dès l’aube, à l’heure où blanchit la campagne..., ou simplesmente Demain, dès l’aube é um dos poemas mais conhecidos de Victor Hugo publicado em 1856 na compilação de poemas intitulada Les Contemplations. Este poema faz parte do quarto livro de Les Contemplations chamado Pauca Meae onde estes versos são dedicados a sua filha Léopoldine Hugo. Eis o poema em francês e a tradução de Jamil Almansur Haddad: Demain, dès l’aube, a l’heure où blanchit la campagne Je partirai. Vouis-tu, je sais que tu m’attends. J’irai par le forêt, j’irai par la montagne. Je ne puis demeurer loin de toi plus longtemps.

Amanhã, desde a aurora a clarear a campanha Eu partirei. Bem vês, eu sei que tu me esperas, Irei pela floresta, irei pela montanha. Eu não posso ficar longe das tuas terras

Je marcherai les yeux fixés sur mes pensées. Sans rien voir au dehors, sans entendre aucun bruit, Seul, inconnu, le dos courbé, les mains croissés, Triste, et le jour pour moi sera comme la nuit.

Andarei, olhos fixos na cimas descuidadas Sem nada ver lá fora, sem ter o que me acoite Desconhecido só, curvado, as mãos cruzadas, E para mim o dia será como uma noite

Je ne regarderai ni l’or du soir qui tombe, Ni les voiles au loin descendant vers Harfleur, Et, quand j’arriverrai, je mettrai sur ta tombe Un bouquet de houx vert et de bruyère en fleur.

Eu não hei de fitar nem o ouro do crepúsculo, Nem as velas ao longe, de trêmulo fulgor, Quando chegar porei no sepulcro um ramúsculo Florido de azevinho e outro de urze em flor.

Hugo, 1985, p. 410

Hugo, 1960, p. 327

Observemos agora o poema em quadrinhos com roteiro e desenhos de Alfred4:

4

ALFRED. Demain, dès L’aude. In: PETIT, O. (org.) Victor Hugo en bande dessinnées. 2002.

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O narrador do poema, em primeira pessoa do presente e do futuro, anuncia de que maneira ele partirá no dia seguinte ao encontro de uma pessoa querida. Ao final do poema, descobrimos que essa pessoa a quem o narrador vai encontrar está morta. O sentimento de solidão, saudade e perda são transmitidos à medida que construímos o sentido do poema por meio da leitura. As imagens dadas pelo poema verbal nos fazem imaginar o lugar e os gestos da pessoa que fala no poema. Ao lermos/observarmos o poema quadrinizado, notamos que o ambiente é sombrio e solitário, ao começar por folhas ao vento e um pássaro negro que passa. O homem vestido de preto tem gesto de cabeça baixa que faz referência a uma pessoa em reflexão. Seus olhares para o lado, para cima e para baixo sugerem que tais reflexões são introspectivas. Mesmo o fato de fumar um cigarro, se assustar com o vento

e se surpreender com a chuva propõe que seu pensamento está fixo em algo. Além disso, a sequência de cenas nos sugere que o homem caminha sem parar até chegar ao seu destino. Ao término do quadrinho, o vemos de frente a uma tumba onde há dois ramos (um verde e um roxo) supostamente colocados por este homem vestido de preto, de luto. Verificamos que na leitura do poema verbal e na leitura do poema quadrinístico há um entrelaçamento de sentimentos e imagens. Enquanto em um isso é feito pelo ato da leitura somente, da construção de imagens mentais; no outro, é feito pelo ato da leitura e da imagem visual pronta, sugestiva. No poema em quadrinhos, a imagem visual condiz com a imagem mental do poema verbal, mesmo que esta tenha alguns acréscimos como por exemplo: a descrição do personagem, o ato de fumar, a chuva, o pássaro negro.

Examinemos agora um outro poema quadrinizado. A tradução de Le soleil s’est couché ce soir Le soleil s’est couché ce soir é a sexta e última parte de um poema intitulado Soleils couchants de Victor Hugo publicado em 1831 na coletânea de poemas Les Feuilles d'automne. Eis o poema em francês e a tradução de Jamil Almansur Haddad: Le soleil s'est couché ce soir dans les nuées; Demain viendra l'orage, et le soir, et la nuit ; Puis l'aube, et ses clartés de vapeurs obstruées ; Puis les nuits, puis les jours, pas du temps qui s'enfuit !

O sol adormeceu esta tarde nas nuvens. Amanhã hão de vir borrasca e tarde e noite; A aurora e seus clarões de vapor obstruídos; Depois noites e dias, todo o tempo eterno.

Tous ces jours passeront ; ils passeront en foule Sur la face des mers, sur la face des monts, Sur les fleuves d'argent, sur les forêts où roule Comme un hymne confus des morts que nous aimons.

Passarão estes dias – passarão em turba Sobre a face do mar, sobre a face dos montes, Sobre os rios de prata e o bosque em rola Como um hino confuso de mortos que amamos.

Et la face des eaux, et le front des montagnes, Ridés et non vieillis, et les bois toujours verts S'iront rajeunissant ; le fleuve des campagnes Prendra sans cesse aux monts le flot qu'il donne aux mers.

Como a face das águas e a fronte das montanhas, Enrugadas e moças, e os bosques sempre verdes Jovens serão; e o rio das campinas Traz dos montes o fluxo que oferece aos mares.

Mais moi, sous chaque jour courbant plus bas ma tête, Je passe, et, refroidi sous ce soleil joyeux, Je m'en irai bientôt, au milieu de la fête, Sans que rien manque au monde immense et radieux !

Mas eu que cada vez mais curvo a minha fronte, Eu passo e estimulado pelo sol alegre. Logo mais partirei, bem no meio da festa, E sem que nada falte ao mundo imenso e belo !

Hugo, 1985, p. 653

Hugo, 1960, p. 307-8

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Olhemos agora o poema em quadrinhos com roteiro de Céka e desenhos de François Duprat5:

5

CÉKA & DUPRAT. Le soleil s’est couché ce soir. In: PETIT, O. (org.) Victor Hugo en bande dessinnées. 2002.

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O narrador do poema menciona como ele vê os pores do sol e e os dias que passam ao seu redor. Alguns estudiosos dizem que este poema faz menção à passagem do tempo face à condição humana (GADENNE, 1948; GÉLY, 1985). Ao ler o poema somente na forma verbal o sentido do texto nos sugere imagens das paisagens descritas e também do tempo que passa, especialmente pela a ideia do sol que se põe e amanhece continuamente. O fato do poema inferir ou insinuar que o tempo é passageiro, que a vida é breve, que nós morremos e que a natureza permanece pode ser entendido após algumas leituras reflexivas do poema, mas talvez não à primeira vista. Entretanto, ao lermos o poema em quadrinhos, a primeira impressão que se tem é que o poema não

tem nexo com os quadrinhos ali desenhados. Após chegarmos ao final do poema em quadrinhos é que compreendemos a ideia do roteirista e do desenhista do poema. O que era para ser inferido ou subentendido após algumas leituras mais reflexivas do poema é oferecido em primeira instância ao leitor da história em quadrinhos. O poema quadrinizado provavelmente só faz sentido ao associarmos a ideia dos seus autores ao poema de Victor Hugo. Todavia, o poema em quadrinhos é uma das possíveis traduções não-verbais deste poema hugoano. CONCLUSÃO Ao analisarmos os dois poemas notamos que ambos foram primeiramente interpretados de uma arte para outra, a saber, da literatura para a história em quadrinhos. E podemos conceber Poèmes de Victor

Hugo en bandes dessinées como uma das possíveis traduções de poemas de Victor Hugo. Também foi possível observar que entre os dois poemas quadrinizados um tem um alto grau de simetria com o poema verbal e outro tem um baixo grau de simetria. Isso pode ser devido ao nível de interpretatividade do roteirista e desenhista no processo de tradução. Segundo os postulados da teoria da interpretação da tradução, o processo de tradução é divido em três etapas: a apreensão do texto – momento em que há uma compreensão do texto-; a deverbalização – momento da tomada de consciência da compreensão do texto -; e a reexpressão – o processo de tradução em si (ALBIR, 2011). Cabe lembrar que, segundo esta teoria, não se traduz “as palavras” mas sim “o sentido” (LEDERER, 1994). Parafraseando a teoria da interpretação da tradução, poderíamos dizer que, no que tange à tradução

do poema verbal para o poema quadrinístico, os tradutores apreenderam o texto de Hugo, deverbalizaramno em roteiro e o reexpressaram em imagens. Sendo que no processo de deverbalização o desenhista e o roteirista do poema Le soleil s’est couché ce soir se 18 conscientizaram tanto do texto original que clarificaram demasiadamente a tradução/o poema quadrinizado. Acreditamos que é necessário haver um processo de deverbalização sério na transposição da Literatura para a história em Quadrinhos a fim de evitar grandes distanciamentos ou distorções, especialmente no caso de poemas. Contudo, o ato de reexpressão de uma arte à outra não precisa anular margens de interpretações já existentes no texto original ou mesmo ficar preso ao sentido denotativo evitando outras possiblidades de interpretação. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBIR, A. H. Traduccion y traductología. 5. ed. Madrid : Cátedra, 2011. DAUNAIS, I. “Illustration”. In: ARON, P.; SAINT-JACQUES, D.; VIALA, A. Le dictionnaire du littéraire. 2. ed. Paris : PUF, 2012. DENIS, B. “Bande dessinée”. In: ARON, P.; SAINT-JACQUES, D.; VIALA, A. Le dictionnaire du littéraire. 2. ed. Paris : PUF, 2012. GADENNE, P. A. “Notice”. In : HUGO, V. Les feuilles d’automne et Les Chants du crépuscule. Paris : Librairie Larousse, 1948.

GÉLY,C. “Préface”. In : HUGO, V. Oeuvres Complètes. Poèsie 1 : Premières publications, Odes e ballades, Les orientales, Les Feuilles d’automne, Les chants du crépuscucle, Les Voix intérieures, Les Rayons et les ombres. Paris : Robert Laffont, 1985. HUGO, V. Obras completas de Victor Hugo. Tomo 41. Tradutor Jamil Almansur Haddad. São Paulo : Editora das Américas, 1960. ______. Obras completas de Victor Hugo. Tomo 42. Tradutor Jamil Almansur Haddad. São Paulo : Editora das Américas, 1960. ______. Oeuvres Complètes. Poèsie 1 : Premières publications, Odes e ballades, Les orientales, Les Feuilles d’automne, Les chants du crépuscucle, Les Voix intérieures, Les Rayons et les ombres. Paris : Robert Laffont, 1985. ______. Oeuvres Complètes. Poèsie 2 : Châtiments, Les comtemplations, La legende des siècles, Les chansons des rues et des bois, La voix de Guernesey. Paris : Robert Laffont, 1985. LEDERER, M. La traduction aujourd’hui. Paris : Hachette, 1994. PETIT, O. (org.) Victor Hugo en bande dessinnées. 1. ed. Darnétal : Petit à petit, 2002. ______. Victor Hugo en bande dessinnées. 2. ed. Espanha : Petit à petit, 2011

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O GÊNESIS EM QUADRINHOS: AIZEN, CARIELLO E CRUMB UM BREVE COMPARATIVO THE GENESIS IN COMICS: AIZEN, CARIELLO AND CRUMBA BRIEF COMPARISON Ed Marcos Sarro Universidade de São Paulo

RESUMO O objetivo deste artigo é fazer um breve comparativo de três adaptações do Gênesis, primeiro livro da Bíblia, para os quadrinhos, representadas pelos trabalhos “A Bíblia em quadrinhos- Antigo Testamento” publicada pela extinta Editora Brasil-América Limitada, de Adolfo Aizen, a “Bíblia em Ação” do quadrinista brasileiro Sergio Cariello e “The Book of Genesis” do cartunista norteamericano Robert Crumb. A proposta é analisar o viés filosófico-ideológico de cada obra, evidenciado pelas soluções estilísticas usadas na transposição do texto sagrado para a linguagem verbo-visual dos quadrinhos, comparando também as principais similaridades e diferenças nas três versões no tocante ao seu uso final. Para tanto buscamos ferramental nos estudos intertextuais, na semiótica e em textos acadêmicos sobre quadrinhos. Ao final, esperamos ter contribuído para a discussão do papel dialógico da tradução do texto sagrado para outras linguagens, especificamente a visual. Palavras-chave: bíblia; quadrinhos; adaptação ABSTRACT The objective of this article is to make a brief comparison of three versions of the Genesis, the first book fo the Bible, into comics, represented by the works “The Bible in Comics – Ancient Testament” published by the former Editora Brasil-America Limitada, owned by Adolfo Aizen, the “Action Bible” by the Brazilian artist Sergio Cariello and “The Book of Genesis” by the American cartoonist Robert Crumb. Our proposal is to analyse the philosophic and ideologic bias of each work, enhanced by stylistic solutions used in the transposition of the Holy Text into the verbal-visual language of comics, also comparing main similarities and diferences in all the three versions regarding their final purpose. Thereunto, we seek theoric tools in the cross-textual studies, in Semiotcs and in academic studies on comics. At the end, we hope to contribute for the discussion of the dialogic role played by the translation of the Holy Scripture into other languages, specifically the visual one. Keywords: bible; comic books; adaptation

INTRODUÇÃO O livro de Gênesis é o primeiro livro da Bíblia (tanto hebraica quanto cristã) levando-se em conta que o termo Biblia, no grego, quer dizer coleção de livros, sendo, portanto, não um livro único, mas uma biblioteca de textos sagrados. O livro de Gênesis é o primeiro dos cinco livros que os judeus chamam de “Torá” ou “A Lei” e os cristãos de “O Pentateuco”, literalmente “Os Cinco Rolos” (ou Livros) em grego. Também Gênesis é uma palavra grega, que quer dizer origem ou início, tendo recebido essa designação na antiga tradição grega e latina porque trata das origens do mundo, da humanidade e do povo de Deus. Seu nome em hebraico, Bereshit ,)‫(בראשית‬quer dizer “No princípio” e remete à frase de abertura no livro: “No princípio criou Deus os céus e a terra” (Cap.1, v.1). Sua autoria é atribuída a Moisés e é uma compilação Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016


escrita de narrativas transmitidas oralmente de geração em geração. É o texto fundador da nação judaica e formador da civilização judaico-cristã ocidental. Ainda que não sendo religioso e mesmo que desinformado dessa tradição, o homem contemporâneo não pode existir sem influências diretas ou indiretas dessa literatura. Escrito em forma de saga, o texto de Gênesis narra o mito-poético da Criação e as origens do mundo, da humanidade e do povo de Israel desde sua formação nômade, a partir de núcleos familiares e patriarcais, até a sua constituição como nação. Das fontes originais orais até sua versão na forma de texto escrito vemos aqui um esforço de transposição do conteúdo, que também já é uma forma de tradução.

O TEXTO BÍBLICO ILUSTRADO Até o advento da oficialização do Cristianismo como religião do Império Romano a relação com o texto sagrado permaneceu na mesma instância da tradição judaica, ou seja, restrita ao código verbal, escrito ou falado. As traduções da Bíblia (e do Gênesis em particular) para as línguas dos povos aos quais o Evangelho passa a ser apresentado, por meio do esforço dos primeiros missionários cristãos (BLAINEY,2012), se torna uma tarefa facilitada pela difusão do grego koiné como lingua franca e também pelo uso do latim na liturgia da Igreja, por conta da primazia do episcopado de Roma sobre as demais províncias do Império, o que culminou com a fundação do Papado, apesar de disputas posteriores com outras sedes como Bizâncio (Constantinopla) e Avignon. A versão latina de Jerônimo, a Vulgata, foi feita diretamente do hebraico e do grego e se tornou a referência para outras traduções feitas para línguas dos

povos bárbaros cristianizados1. A partir da cristianização do Império, a necessidade de difundir a Fé e propagá-la (daí o termo propaganda) bem como fixá-la, motivou o uso da arte da Antiguidade e toda sua herança no esforço de conquistar corações, mentes e almas dos pagãos. A posterior fragmentação do Império Romano, com a decadência das cidades e a constituição dos mosteiros como depositários da herança cultural do Ocidente, incluindo os textos sagrados, levou a um processo de empobrecimento cultural da sociedade feudal, com grandes populações analfabetas e que dependiam ainda mais dessas traduções visuais para a compreensão mínima das tradições da Igreja e da doutrina cristã como apresentada pelo Catolicismo (GOMBRICH,1999). Aqui as artes visuais vão dar não somente materialidade às Escrituras mas o farão também dentro do repertório imagético dos interlocutores, às vezes interferindo nas próprias feições de personagens

bíblicos2, iniciando um processo de deslocamento geopolítico da tradição cristã cujo eixo deixa de ser o Oriente Próximo e passa a ser a Europa, onde o Cristianismo passa a ser visto como autóctone. Além da arte sacra propriamente dita, também o espaço de culto passou a ser moldado para o fim de inculcar no fiel as verdades da Fé, levando em conta as limitações intelectuais (e até mesmo se aproveitando delas) da grande massa. Um exemplo disso é o vitral (Fig.1) nas catedrais medievais: os vitrais, junto com as pinturas sacras e a música, funcionavam como elementos audiovisuais que 1

Séculos depois, com o advento da Reforma Protestante, esse movimento de versão e tradução seria decisivo para dar um status libertador à capacidade de ler e interpretar o texto sagrado na própria língua . 2

É nesse momento que Jesus é “traduzido” (no dizer de Stuart Hall) e deslocado de sua origem judaica e de traços semitas para a figura nórdica difundida na iconografia da Cristandade Ocidental.

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complementavam a liturgia, incutindo no fiel uma atmosfera diáfana e mística, pela filtragem colorida da luz no interior do templo (BRIVIO, 1998).

Figura 1: Vitral do Duomo de Milão, Itália, com ilustrações de passagens bíblicas. Fonte:”Le vetrate del Duomo di Milano – un itinerario di fede e luce”,

Mas apenas o vitral amplo e colorido, embutido na arquitetura dos templos, talvez não bastasse ao trabalho de catequese e um novo passo é dado no sentido de traduzir o conteúdo das Escrituras para algo mais próximo da dimensão humana, como escreve Manguel (2000, p. 121, 123): [...] em algum momento do começo do século XIV, as imagens que São Nilo pretendia que os fiéis lessem nas paredes foram reduzidas em forma de livro. Nas regiões do baixo Reno, vários iluminadores e gravadores começaram a representar as imagens em pergaminho e papel. Os livros que criaram eram feitos quase exclusivamente de cenas justapostas, com poucas palavras, às vezes como legendas nas margens da página, às vezes saindo da boca das personagens em cártulas semelhantes a bandeiras, como os balões das histórias em quadrinhos de hoje.

A transposição do suporte ambiental (que interagia com a própria arquitetura do espaço) para o suporte gráfico possibilitaria a portabilidade da informação relevante e supostamente a sua rápida assimilação por meio de imagem-texto convenientemente estruturados na página desenhada:

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No final do século XIV, esses livros de imagens já tinham se tornado muito populares e assim continuariam pelo restante da Idade Média, em vários formatos: volumes de desenhos de página inteira, miniaturas meticulosas, gravuras em madeira e, finalmente, no século XV, tomos impressos. O primeiro desses volumes que possuímos data de 1462. Com o tempo, esses livros extraordinários ficaram conhecidos como Bibliae pauperum, ou Bíblias dos pobres. Em essência, essas 'bíblias' eram grandes livros de figuras nos quais cada página estava dividida para receber duas ou mais cenas (MANGUEL, 2000, p. 123).

Não que as Bíblias assim confeccionadas fossem economicamente acessíveis aos pobres, de modo que pudessem adquiri-las, mas, como já citado, como na sociedade medieval a maioria da população pobre era também analfabeta, esses livros acabaram sendo muito apreciados por pessoas que de outra forma não

teriam acesso aos textos bíblicos. Entendemos que as Bíblias em quadrinhos vão beber nesta mesma tradição, sendo em alguns momentos comprometidas com os fins de comunicar a mensagem da Palavra de Deus de forma acessível, lúdica e plasticamente engajada, noutros como exercício estético que tem por objeto a riquíssima herança da literatura bíblica, vista como parte de uma herança maior que é a própria produção espiritual da humanidade. DAS VERSÕES ANALISADAS As versões do Gênesis que buscamos analisar são de fato obras de naturezas diferentes, uma vez que duas delas fazem parte de um trabalho maior (“A Bíblia em quadrinhos” e “Bíblia em Ação”),

enquanto a última (“Gênesis”) é uma obra independente com densidade e extensão próprias. Entretanto, apesar se basearem no mesmo texto de saída e de compartilharem de características comuns no que diz respeito ao núcleo da narrativa e se pautarem no mesmo meio (os quadrinhos) para fazer uma tradução intersemiótica desse conteúdo (PLAZA,1987), cada uma acaba escolhendo uma maneira de fazer essa passagem no que tange a relação forma, conteúdo e uso, a partir do viés filosófico-ideológico, tanto do artista quanto do público ao qual o trabalho se destina: 1.

“A Bíblia em Quadrinhos”: Adolfo Aizen (1907-1991) era um imigrante judeu russo, editor e dono da Editora Brasil América Limitada (Ebal) pioneira e durante anos a principal casa publicadora de histórias em quadrinhos no Brasil. Tendo forjado sua naturalidade brasileira,

vivia sob a ameaça de ser deportado do país por conta da Lei de Imprensa vigente no país à época, segredo que carregou por anos e que foi uma das motivações para a edição de quadrinhos religiosos e históricos – Aizen precisava não chamar a atenção para si e esse tipo de publicação deveria acalmar seus opositores (GONÇALO JR. 2003). “A Bíblia Em Quadrinhos”, foi um projeto de Aizen visando especificamente conter a fúria da opinião pública e da Igreja Católica contra as histórias em quadrinhos, que eram vistas como desestabilizadoras da moral e dos bons costumes, além de tornar as crianças violentas e atrapalhar seu desempenho escolar, principalmente quanto a leitura. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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2.

A “Bíblia em Ação” é um projeto do quadrinista pernambucano, radicado nos Estados Unidos, Sergio Cariello de Mello (1964), concebido para ser entretenimento e ferramenta para evangelismo de crianças e jovens. Cariello, que é evangélico, tem treinamento teológico formal (formado pelo seminário Palavra da Vida) e estudou na Joe Kubert School of Cartooning and Graphic Art, nos Estados Unidos. A “Bíblia em Ação” é um projeto de fôlego com mais de 700 páginas e nele Cariello encara o trabalho artístico como um canal para a veiculação da mensagem do Evangelho por meio da linguagem visual e de entretenimento dos quadrinhos. Sergio Cariello vem de uma vertente de artistas que buscam validar sua fé por meio da arte, mas dando a ela um fim funcionalista a e não tanto expressivo

ou autoral. Neste contexto, a Bíblia em quadrinhos deve cumprir uma função principal enquanto divulgadora da mensagem cristã. Pensada para o público jovem principalmente, em alguns momentos apresenta certas passagens do texto sagrado pelo viés da sugestão e da metáfora e não da citação literal; em outros momentos o visual procura manter-se dentro dos limites do texto conforme foi escrito. A versão de Cariello opta pela narrativa de ação e aventura, como já anuncia a apresentação do editor Doug Mauss. Foi primeiro publicada nos Estados Unidos em 2010 e depois traduzida para o português e publicada no Brasil. 3.

“The Book of Genesis” é trabalho do cartunista underground americano de origem judaica Robert Crumb (1943), mais como tributo às suas raízes étnicas do que por uma relação religiosa com o livro sagrado. É a versão mais literal das três. Apresentando-se como ateu Crumb desenha o Gênesis muito em função de sua herança étnica e cultural do que religiosa. Apesar de não crer na Bíblia como um livro inspirado por Deus, procura ser fiel à estrutura do livro, inclusive pontuando capítulo a capítulo e mantém os textos praticamente como na obra original. Não se preocupa muito em amenizar ou suavizar passagens mais pesadas, uma vez que não desenha para crianças ou para um público necessariamente religioso 3. Usa como referência a tradução de Robert Alter e também a King James, versão da Bíblia mais difundida nos países de língua inglesa.

SOLUÇÕES ESTILÍSTICAS E DE FORMA: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

Em “A Bíblia em Quadrinhos” Aizen contou com a consultoria do Cônego Antônio de Paula 4

Dutra , popular capelão do Presídio de Niterói, e a série, publicada incialmente em 1952, tinha capa colorida e miolo em preto e branco e sua realização foi encomendada à uma editora italiana com a recomendação de que seus ilustradores utilizassem como referência obras da Pinacoteca do Vaticano (GONÇALO JR. 2003).

3

A capa da edição americana contém uma advertência de que a leitura do livro por crianças envolve o acompanhamento dos pais ou responsáveis. 4

A consultoria de um religioso católico aliviou Aizen de um conflito de consciência: sendo judeu não se sentia confortável em editar publicações de teor basicamente cristão católico.

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Figura 2: Semelhanças entre ilustração sobre a Criação do Mundo e afresco de Michelangelo na Capela Sistina sobre o mesmo tema. Fontes: “A Bíblia em Quadrinhos” e Pinacoteca Vaticana.

Figura 3: Semelhanças entre ilustração sobre o Dilúvio na Bíblia da Ebal (esquerda) e gravura de Gustave Doré (direita) sobre o mesmo tema. Fontes: A Bíblia em Quadrinhos e http://www.creationism.org/images/DoreBibleIllus/dore_pt.htm

Isso pode ter sido uma forma de dar legitimidade e credibilidade à versão em quadrinhos do texto sagrado. Também pode ser uma forma de manter o trabalho dentro da estética católica, talvez buscando desvincular a obra do tipo de desenho em quadrinhos praticado à época, com forte influência de artistas americanos. É possível identificar semelhanças e citações visuais a afrescos de Michelangelo da Capela Sistina e gravuras de Gustave Doré (Figuras 1 e 2). Se por um lado, o uso do referencial erudito é positivo pois colaborou para divulgar o legado da Arte Ocidental junto a um público que normalmente não teria

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acesso a ele, por outro lado, essa solução tem um quê de kitsch pois reproduz em escala industrial algo que tem um sentido circunscrito ao universo da obra de arte de contemplação. Por sua presença na grande imprensa e na comunicação de massa, as histórias em quadrinhos foram responsáveis não só por dar uma noção geral de cidadania e por encorajar o direito à crítica, mas também colaboraram para a educação mínima do olhar e para uma formação estética básica de diversas gerações (CARDOSO, 2004). Por meio da simplificação da forma e da iconicidade, os quadrinhos conseguem resumir séculos de história da arte e da cultura mundial e torná-los acessíveis à grande massa (BERINGER; ECKE; HABERKORN; PALUMBO, 2010). Ao passo que Cariello e Crumb trabalham mais com a síntese verbo-visual das HQ, “A Bíblia em quadrinhos” da Ebal é uma sucessão de imagens com

legendas. Neste aspecto “A Bíblia em quadrinhos” é um fruto do seu tempo, pois acaba lembrando um pouco o Príncipe Valente de Hal Foster, expoente da Era de Ouro dos quadrinhos americanos (Fig.4). Como escreve Cristina de Oliveira: Estendendo esse conceito [a intertextualidade] para a produção artístico-comunicativa como um todo, podemos ainda acrescentar que a elaboração de uma obra traz em si os ecos da época e do contexto social em que foi realizada. São as influências intra e extratextuais que integram o fazer artístico. (OLIVEIRA, 2014, p.40).

Figura 4: Semelhanças estruturais entre uma página de “A Bíblia em Quadrinhos”, da Ebal (esquerda) e uma página de “O Príncipe Valente”, de Hal Foster (direita). Fontes: “A Bíblia em Quadrinhos” e http://berlinercomicmesse.de/galerielaqua/seiten_deutsch/doauscs01.html

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Na “Bíblia em Ação” Cariello parece querer apresentar um traço autoral, mas a impressão é que as influências da escola de Joe Kubert e a sua vivência como quadrinista profissional da Marvel e da DC Comics tendem a tornar o seu desenho muito parecido com o de outros tantos artistas que trabalham para o mercado americano (Fig.5).

Figura 5: Páginas internas da edição brasileira da “Bíblia em Ação”, desenhadas por Sergio Cariello. Fonte: “Bíblia em Ação”.

Seu desenho tem um quê de livro didático, apesar da proposta de ser um álbum de ação. Já o nome “Action Bible” parece fazer referência à revista “Action Comics”, que trouxe no seu primeiro número nada mais nada menos que Super Homem. Cariello tem um traço elegante e fluído, que flerta com os altocontrastes e com enquadramentos que visam enfatizar a dramaticidade. Faz bom uso da cor. É um álbum bonito e agradável de se folhear. Como tem compromisso moral com a mensagem que prega não pode se permitir excessos, nem romancear muito a narrativa, apesar de se valer da paráfrase em praticamente todo o texto. Apesar da proposta de trazer um conteúdo dinâmico, voltado para contar uma história milenar ao jovem de hoje, Cariello ainda assim pratica um discurso parecido com o de Escola Dominical ou da Catequese. No seu Gênesis, Crumb mantém o traço que o notabilizou em “Fritz the Cat”, em “Super Natural” e no “Anti-herói Americano”: uso profuso da hachura no trabalho em preto e branco, figuras robustas e atarracadas, com troncos largos e membros avantajados, olhos esbugalhados e o detalhamento de dentes e outras particularidades da anatomia, tanto no desenho de figuras masculinas quanto no desenho de figuras femininas (Fig. 6).

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Figura 6: Página de Fritz the Cat e página do Gênesis de Crumb, ilustrando a passagem da destruição de Sodoma e Gomorra. Fontes: “Fritz Superstar” e “The Book of Genesis”.

Nos cinco anos em que esteve às voltas com o projeto, além de ter acesso a bancos de imagens, Crumb buscou ajuda de pessoas que conhecessem melhor que ele a realidade e a cultura material de sociedades tradicionais como eram as do contexto bíblico (Crumb conta no prefácio que um amigo que vivera no Marrocos disse ao ver os primeiros originais que as túnicas dos seus personagens pareciam roupões de banho e que as tendas que ele desenhara estavam mais para barracas de camping) 5. Enquanto Cariello busca dar mais velocidade à sua narrativa, Crumb parece desenhar seguindo o ritmo do texto bíblico original. Já a edição da Ebal sintetiza grandes porções de texto numa única imagem, uma vez que a âncora está no escrito e não tanto na parte visual. Enquanto Crumb brinca com detalhes, do tipo usar

hieróglifos (Fig. 7) para representar o patriarca José falando na língua egípcia 6 (que na história se vale de um intérprete na sequência em que se reencontra com seus irmãos após anos de sua venda como escravo)7, as Bíblias de Cariello e a da Ebal optam por um discurso mais direto, com pouco espaço para esse tipo de ludicidade.

5

De fato, a grande maioria dos ilustradores de histórias bíblicas vai encontrar suas referências e inspirações na arte sacra ocidental e mais recentemente na iconografia do cinema épico, cujo maior expoente foi o diretor americano Cecil DeMille. 6

Algo parecido foi feito em “Asterix e os Godos”, de Uderzzo e Gosciny. Não fica claro se os hieróglifos de Crumb de fato são texto legível ou apenas elemento decorativo. 7

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Figura 7: Ilustração para passagem do Gênesis na qual José, agora governador do Egito, reencontra seus irmãos e se dirige a eles na língua egípcia, o que Crumb representou colocando hieróglifos dentro dos balões de fala. Fonte: “The Book of Genesis”.

Apesar de mais dinâmico o desenho de Cariello não expressa violência de forma explícita, no que Crumb é um pouco mais escancarado: ao retratar a perversidade da humanidade pré-Dilúvio, tanto Crumb quanto Cariello representam cenas de violência, de luta, de abuso físico e de idolatria, sendo que em Crumb há ferimentos expostos, sangue e corpos nus (Fig.8), enquanto que em Cariello temos apenas abordagens mais veladas (Fig.9). Já na versão da Ebal, a mesma sequência fica reduzida à um único quadro mostrando apenas Noé e a arca, com uma explicação escrita à guisa de legenda (Fig.10).

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Figura 8: Decadência humana pré-Dilúvio segundo Crumb. Fonte: “The Book of Genesis”

Figura 9: A mesma temática por Cariello. Fonte: “Bíblia em Ação”.

Figura 10: Solução dada para a mesma passagem pelo artista da Ebal. Fonte: “A Bíblia em Quadrinhos – Antigo Testamento”

Tanto Cariello quanto Crumb apresentam soluções visuais intessantes: “capota” para os dromedários de Jacó (Fig. 11) no desenho de Cariello, na passagem em que os irmãos Esaú e Jacó se reencontram após anos de rompimento8, e a representação de uma espiga de trigo engolindo outra no sonho do Faraó: uma passagem que normalmente seria difícil de traduzir em desenho9 o que Crumb faz com certo humor (Fig. 12). 8

Gênesis 32:13-23.

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Figura 11: “Capotas” para dromedários no desenho de Cariello. Fonte: “Bíblia em Ação”.

Figura 12: As espigas ruins engolindo as boas, no sonho de Faraó, pelo traço de Crumb. Fonte: “The Book of Genesis”.

Em maior ou menor escala, os três tomam cuidados quanto à representação da nudez e sexo em um contexto de narrativa religiosa: nas passagens que tratam de Adão e Eva usa-se o velho truque de desenhar genitais e seios entre madeixas de cabelo ou por detrás de arbustos e folhagens. A mesma preocupação já podia ser vista nesta figura de uma Bibliae pauperum (Figura 13):

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Figura 13: Parte da ilustração da história da tentação do primeiro casal em uma Biblia Pauperum, Codex Palatinus Latinus 871, Biblioteca Apostolica Vaticana. Fonte: http://www.kettererkunst.com/

Apesar de desenhar de forma mais declarada essas partes dos personagens e de eventualmente representar cenas de intercurso sexual, Crumb procura ângulos mais discretos. Cariello e a Ebal simplesmente não incluem o sexo nas suas versões do Gênesis para os quadrinhos. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de exposto, entendemos que as versões apresentadas do Gênesis se prestaram cada qual a fazer uma tradução intersemiótica do texto bíblico verbal para a linguagem verbo-visual das HQ, tendo como base critérios individuais na relação entre forma, conteúdo e uso, tanto a partir do alinhamento ideológico-filosófico dos autores quanto do repertório e das preferências do público leitor. Nos três casos, de maneira mais livre em uns do que em outros, as soluções encontradas se deram em função da necessidade de tornar o texto sagrado acessível por outros meios que não apenas o formato escrito, verbal, mas também por meio do código visual do desenho, da cor e das convenções gráficas, como a sequencialidade, que envolve a representação da passagem do tempo na narrativa visual dos quadrinhos pela alternância de quadros (EISNER,1995). Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Não temos aqui como avaliar a eficácia de cada obra pelo viés do leitor final original, uma vez que nossa análise foi feita a partir de uma leitura crítica e se ateve a aspectos de forma, conteúdo e uso implícito. Entretanto, do ponto de vista objetivo é possível comprovar que cada autor foi capaz, ao seu modo, de contar histórias com começo, meio e fim, de forma satisfatória, lançando mão dos recursos narrativos de que dispunham, cada qual no seu contexto. Entendemos que isso também só foi possível porque, além das competências inerentes ao trabalho de transpor um texto verbal corrido para a linguagem das histórias em quadrinhos (conhecimento do conteúdo, habilidades com o desenho e com a escrita e atitude de compromisso e vínculo pessoal - e personalista - com o projeto), há também o reforço de um caldo de cultura visual e de familiaridade com o meio quadrinhos (além da aceitação geral do gênero como

um tipo válido de produto cultural) por parte do público leitor, o que sugere sua assimilação natural. Ao analisarmos a versão do Gênesis em três diferentes sistemas religiosos e ideológicos (católico, protestante e judaico) esperamos ter contribuído, mesmo que timidamente, para destacar o papel dos quadrinhos como meio válido para o diálogo entre diferentes tradições textuais, possibilitando o enriquecimento espiritual, estético e cultural de todos os interlocutores envolvidos no processo de contar histórias do Sagrado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AIZEN, Rodolfo (Ed.), A Bíblia em Quadrinhos – Antigo Testamento. Rio de Janeiro: Editora BrasilAmérica Limitada. 1952.

BERNINGER, Mark; ECKE, Jochen; HABERKORN, Gideon; PALUMBO, Donald E. Comics as a Nexus of Cultures: Essays on the Interplay of Media, Disciplines and International Perspectives (Critical Explorations in Science Fiction and Fantasy). Jefferson: McFarland Editions. 2010. BLAINEY, Geoffrey. Uma breve História do Cristianismo. São Paulo: Editora Fundamento. 2012. BRIVIO, Ernesto. Le vetrate del Duomo di Milano – un itinerario di fede e di luce. Milão: Veneranda Fabbrica del Duomo di Milano. 1998. CARDOSO, Rafael. Uma introdução à história do design. São Paulo: Edgard Blucher 2004. CARIELLO, Sergio de Mello. Bíblia em Ação – A História da Salvação do Mundo. Santo André: Editora Geográfica. 2010. CRUMB, Robert. The Book of Genesis– Illustrated by R. Crumb. Nova York: W. W. Norton & Company. 2009. ____________. Quadrinhos e Arte Sequencial. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora. 1995. GOMBRICH, Ernest. A História da Arte. São Paulo: LTC Editora. 2000.

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JUNIOR, Gonçalo, A Guerra dos Gibis - formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos (1933-64). São Paulo: Companhia das Letras, 2003. MANGUEL, Alberto, Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras,1997. OLIVEIRA, Cristina de. Quadrinhos, Literatura e um Jogo Interxtural, in Quadrinhos e Literatura – Diálogos possíveis. São Paulo: Editora Criativo. 2014. PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Editora Perspectiva. 1987.

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A Caverna: A Alegoria de Platão em uma Adaptação para os Quadrinhos Poético-Filosóficos The Cave: The Plato’s Allegory in an Adaptation to the Poetic-Philosophical Comics Edgar Silveira Franco Universidade Federal de Goiás Danielle Barros Silva Fortuna FIOCRUZ RESUMO No âmbito dos quadrinhos autorais, e especificamente do gênero poético filosófico, existem trabalhos que tomam como inspiração conceitual não somente obras literárias, mas também fábulas, poemas, lendas e mitos, sendo considerado, segundo Elydio dos Santos Neto (2009), um gênero genuinamente brasileiro. Esse artigo se propõe a apresentar o processo criativo de uma HQ do gênero poéticofilosófico que toma como base o mito da caverna de Platão, considerada um dos momentos clássicos da história da filosofia grega, e que integra o livro VII de “A República”. A HQ de 7 páginas, inspirada no mito, intitula-se “A Caverna” e foi publicada no número 4 da revista em quadrinhos Artlectos e Pós-humanos (2010). A obra é ambientada no universo ficcional da “Aurora Pós-humana” e conta com roteiro de Gian Danton e arte de Edgar Franco. Palavras-chave: Adaptação Literária; Quadrinhos poético-filosóficos; Alegoria da Caverna de Platão. ABSTRACT In the universe of artistic comics, and specifically in the poetic-philosophical genre, there are works that take as conceptual inspiration not only literary works, but also fables, poems, legends and myths, being considered, according Elydio dos Santos Neto (2009), a truly Brazilian comics genre. This article present the creative process of a poetic-philosophical comic inspired by the Cave Myth’s of Plato, considered one of the classic moments in the history of Greek philosophy, and part of the Book VII of "The Republic" . The comic with 7 pages is entitled "The Cave" and was published in number 4 of the comic book “Artlectos e Póshumanos” (2010). The work is set in the fictional universe of "Posthuman Dawn" and was written by Gian Danton with art of Edgar Franco. Key words: Literary adaptation, Poetic-philosophical Comics; Plato's Allegory of the Cave

1. QUADRINHOS POÉTICO-FILOSÓFICOS E A REVISTA ARTLECTOS E PÓSHUMANOS

Esse artigo tem como proposta apresentar o processo criativo de uma HQ do gênero poético-filosófico que toma como base o mito, ou a também chamada “alegoria” da caverna de Platão, considerada um dos momentos clássicos da história da filosofia grega, e que integra o livro VII de “A República”, no qual Platão aborda teoria do conhecimento, linguagem e educação na formação do estado ideal. A HQ de 7 páginas inspirada no mito, intitula-se “A Caverna” e foi publicada no número 4 da revista em quadrinhos Artlectos e Pós-humanos (2010), título anual publicado pela editora Marca de Fantasia (UFPB). A narrativa visual foi desenvolvida a partir de um roteiro poetizado na forma de texto criado pelo roteirista Gian Danton. Na quadrinhização, desenvolvida por Edgar Franco, o artista lança mão de experimentos gráficos no letreiramento, enquadramento e balonamento e investe em metáforas visuais Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016


inusitadas recontextualizando o mito para um futuro pós-humano, e ainda assim reforçando o seu caráter universal e atemporal. O artigo revela as relações diretas da adaptação quadrinhizada com o texto filosófico clássico e destaca os passos da criação da história em quadrinhos, apresentando a proposta conceitual das imagens e do texto desenvolvidas para cada página e suas intenções poéticas e estéticas. A revista Artlectos e Pós-humanos é um título autoral de quadrinhos com periodicidade anual. Ela se propõe a editar HQs desenvolvidas por Edgar Franco no contexto do universo ficcional da Aurora Póshumana. Ela tem um formato próximo ao meio-ofício lembrando os gibis tradicionais e apresenta capa colorida e miolo preto e branco, somando 32 páginas a cada número. Até o momento a revista já teve 8 edições publicadas, as duas primeiras pela editora paulista SM e os 6 números recentes pela editora

paraibana Marca de Fantasia, ligada ao NAMID – Núcleo de Artes Midiáticas do Programa de Pósgraduação em Comunicação da UFPB. O diferencial dos trabalhos presentes na revista está em sua proposta: HQs curtas sempre com novas personagens e sem uma conexão aparente, a não ser o fato de se passarem em distintas fases temporais do futuro pós-humano. O neologismo "Artlectos", que compõe parte do título da série, se refere à junção dos termos "Artificial " & "Intelectos". Os 8 números de 32 páginas, somam mais de 200 páginas de quadrinhos. Nesses 7 números Artlectos ultrapassou as expectativas de seu criador, pois foi pensada simplesmente como um laboratório criativo de HQs poético-filosóficas, baseadas no universo ficcional da Aurora Pós-humana, mas sem nenhum compromisso com o mercado dos quadrinhos. No entanto, a revista recebeu, em seu terceiro número, o troféu nacional "Bigorna" como melhor publicação de quadrinhos de

Aventura e Fantasia, e foi escolhida pelo respeitado crítico Dr. Edgar Smaniotto como uma das 10 mais importantes histórias em quadrinhos de todos os tempos. Além disso, algumas das HQs presentes na revista serviram de base analítica e reflexiva para dois pesquisadores escreverem livros sobre a obra de Edgar Franco: Professor Dr. Elydio dos Santos Neto, que escreveu "Os Quadrinhos Poético-filosóficos de Edgar Franco"; e a Drª. Nadja Carvalho, autora de "Edgar Franco e Suas Criaturas no Banquete de Platão", ambos publicados pela editora Marca de Fantasia (UFPB), em 2012. As HQs da revista Artlectos e Pós-humanos se enquadram no gênero de quadrinhos chamado Poético-filosófico. Ainda na década de 1980, numa tentativa inicial de classificar esses trabalhos, eles foram chamados de “quadrinhos poéticos”, fazendo um paralelo com a literatura, ou seja, os quadrinhos tradicionais estariam para a prosa assim como os “quadrinhos poéticos" estariam para a poesia.

Posteriormente a insuficiência conceitual do rótulo “quadrinhos poéticos” levou Edgar Franco a criar o termo “quadrinhos poético-filosóficos” (FRANCO, 1997, p.54), anexando à palavra “filosóficos” a denominação por verificar que a maioria dos quadrinhistas desse gênero também apresentavam trabalhos com a pretensão filosófica de levar o leitor a refletir sobre alguma questão existencial. Esse termo foi adotado pelo Dr. Elydio dos Santos Neto em sua pesquisa de pós-doutorado em artes na UNESP, na qual investigou as “histórias em quadrinhos poético-filosóficas” como um gênero genuinamente brasileiro. Santos Neto (2009, p.90) resume as características principais dessas HQs:

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São, portanto, três as características que principalmente definem uma história em quadrinhos poético-filosófica: 1. A intencionalidade poética e filosófica; 2. Histórias curtas que exigem uma leitura diferente da convencional; 3. Inovação na linguagem quadrinhística em relação aos padrões de narrativas tradicionais nas histórias em quadrinhos.

2. A AURORA PÓS-HUMANA A Aurora Pós-humana é um universo transmídia de ficção científica criado por Edgar Franco com o

objetivo de servir como ambientação a trabalhos artísticos em múltiplas mídias. A poética surgiu do desejo de vislumbrar um novo planeta Terra inspirado em perspectivas pós-humanas. Um mundo futuro onde as proposições de cientistas, ciberartistas e transumanistas tornaram-se realidade, no qual a raça humana, como a conhecemos, está em processo de extinção. O corpo e a mente estão reconfigurados e em constante mutação. Limites entre animal, vegetal e mineral estão se dissipando, a morte não é mais algo inevitável e novas formas de misticismo e transcendência tecnológica, a “tecnognose” (Erik Davis, 1998), substituíram quase por completo as religiões ancestrais. A Aurora Pós-humana é um universo em expansão, já que constantemente estão sendo agregados a ela dados e novas características que regem essa futura sociedade pós-humana. O desejo de Edgar Franco ao criá-la, não foi apenas refletir sobre o que os avanços tecnológicos futuros poderão significar para a espécie humana e para o planeta, mas também produzir uma

ambientação que gere o “deslocamento conceitual” descrito por Philip K.Dick (Apud QUINTANA, 2004) e assim criar obras que discutam a implicação dessas tecnologias no panorama contemporâneo, ou seja, problematizar o presente por meio de narrativas e obras deslocadas para um futuro ficcional hipotético. A idéia inicial foi imaginar um futuro, não muito distante, onde a maioria das proposições da ciência & tecnologia de ponta fossem uma realidade trivial, e a raça humana já tivesse passado por uma ruptura brusca de valores, de forma física e conteúdo - ideológico/religioso/social/cultural. Um futuro em que a transferência da consciência humana para chips de computador seja algo possível e cotidiano, onde milhares de pessoas abandonarão seus corpos orgânicos por novas interfaces robóticas. Também que neste futuro hipotético a bioengenharia avançou tanto que permite a hibridização genética entre humanos, animais e vegetais, gerando infinitas possibilidades de mixagem antropomórfica, seres que em suas

características físicas remetem-nos imediatamente às quimeras mitológicas. Essas duas "espécies" póshumanas tornaram-se culturas antagônicas e hegemônicas disputando o poder em cidades estado ao redor do globo enquanto uma pequena parcela da população, uma casta oprimida e em vias de extinção, insiste em preservar as características humanas, resistindo às mudanças. A abrangência conceitual da “Aurora Pós-humana” tem permitido a Edgar Franco criar, além de histórias em quadrinhos, obras em múltiplas mídias, muitas delas tendo como suporte o computador, convergindo linguagens artísticas diversas. Das HQtrônicas – como “Ariadne e o Labirinto Pós-humano” e “Neomaso Prometeu”, passando pela música eletrônica de base digital, por um site de web arte baseado em Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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vida artificial e algoritmos evolucionários e chegando a performances multimídia com o o projeto musical performático Posthuman Tantra. A produção de histórias em quadrinhos ambientadas na Aurora Póshumana tem sido explorada em dois contextos, a trilogia de álbuns BioCyberDrama, parceria com o lendário quadrinhista Mozart Couto, com o primeiro álbum lançado pela editora Opera Graphica em 2003; e também a revista em quadrinhos anual Artlectos e Pós-humanos, que já teve 7 números publicados pela editora Marca de Fantasia (UFPB). Sendo o sétimo número editado em março de 2013. 3. A CAVERNA: ASPECTOS POÉTICOS E ESTÉTICOS DE UMA ADAPTAÇÃORELEITURA Primeiramente é importante destacarmos o contexto da criação da HQ, o trabalho surgiu de um interesse mútuo do roteirista de quadrinhos Gian Danton e do quadrinista Edgar Franco em realizarem um trabalho conjunto. Gian e Franco eram amigos já de longa data e se conhecerem ainda no início dos anos 1990, quando compartilhavam publicações mútuas em vários fanzines brasileiros. Em entrevista exclusiva a Edgar Franco, realizada no dia 30 de julho de 2014, Gian Danton respondeu qual foi sua razão para quadrinizar uma história tão revista da filosofia como “O Mito da Caverna”, e também como o roteirista conecta o estilo/linguagem das HQs de Franco a proposta estética e conceitual da HQ, Danton (2014, s.p.) respondeu: A ideia de escrever o roteiro surgiu de minha admiração pela arte de Edgar Franco. Edgar tem um traço único, muito mais adequado para transmitir ideias do que de fato narrar acontecimentos. Assim, fiquei longo tempo tentando encontrar uma história que tivesse essa característica: que fosse muito mais filosófica do que narrativa. E qual história seria melhor que o mito da caverna? Além da sua própria celebridade, havia o fato que a história tratava de abrir os olhos para uma nova realidade, ver de maneira diferente, o que, mais uma vez, se adequava ao traço de Franco.

E ao ser questionado sobre sua experiência da adaptação do texto clássico para os quadrinhos, o roteirista emendou: Eu escrevi um roteiro diferente do que normalmente faço, o full script. Achei que o full script deixaria o artista preso e a ideia era exatamente explorar a capacidade que o Franco de nos encantar e fazer pensar com seus desenhos. Assim, o roteiro tinha basicamente o texto com algumas pequenas indicações de acontecimentos. Não havia nenhum direcionamento, de modo que o artista ficou totalmente livre para criar. Ajudou muito também o fato do Edgar ter uma boa base filosófica, o que lhe permitiu ir muito além do texto (DANTON, 2014, s.p.).

Partindo do texto de Gian Danton, que não incluía nenhuma descrição, ou referência estética, Franco teve total liberdade para criar a HQ, recontextualizando-a para o universo ficcional da “Aurora Pós-humana”. A quadrinhização de Edgar Franco lança mão de múltiplos experimentos gráficos, características já existententes em sua produção artística, desse modo percebe-se na HQ um letreiramento autoral, com tipografia manual do próprio artista que dialoga esteticamente com seu traço sinuoso e repleto de movimento, um enquadramento experimental, que ao invés dos tradicionais requadros propõe a fluidez Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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narrativa a partir de conexões fluidas entre as cenas, e finalmente um balonamento diferenciado, como balões que nos remetem imediatamente às filacteras das pinturas medievais. A arte gráfica da quadrinhização explora metáforas visuais inusitadas recontextualizando o mito para um futuro pós-humano, e ainda assim reforçando o seu caráter universal e atemporal. Como já destacamos, a chamada “Aurora Pós-humana” é um universo transmídia de ficção científica criado por Edgar Franco com o objetivo de servir como ambientação a trabalhos artísticos em múltiplas mídias. A poética surgiu do desejo de vislumbrar um novo planeta Terra inspirado em perspectivas pós-humanas. para criar obras que discutam a implicação das tecnologias no panorama contemporâneo, ou seja, problematizar o presente por meio de narrativas e obras deslocadas para um futuro ficcional hipotético.

Nesse contexto, a adaptação de um texto clássico da filosofia grega constituiu-se como um desafio para o artista, buscando manter a essência universal da alegoria da Caverna e ainda assim inseri-la num mundo futuro pós-humano. No contexto da “Aurora Pós-humana”, os humanos na caverna são “resistentes” que se isolaram do mundo de transformações hipertecnológicas e também da natureza. Agora passaremos a uma análise breve de cada uma das 7 páginas da história em quadrinhos, mostrando as relações e recriações em relação ao texto original de Platão. Na primeira página (Figura 1) as sombras já revelam a condição de fantasmas assustados dos habitantes da caverna suas expressões são tristes ou desesperadoras, Contrastando com a conformidade uterina do texto original de Platão, como segue: Sócrates — Agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentadas, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, coisas correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construída um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas (PLATÃO, 1956, p.287).

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Figura 1 – Páginas 1 e 2 da HQ “A Caverna”, de Edgar Franco e Gian Danton. Artlectos e Póshumanos #4, Editora Marca de Fantasia, 2010.

O texto da página é o seguinte: “Estavam lá, desde tempos imemoriais, presos um ao outro de frente para o fundo da caverna. Seus movimentos eram limitados de tal forma que não podiam ver outra coisa que não fossem as sombras que bruxuleavam na parede do fundo.” Na representação visual criada por Franco, as sombras que se movimentam no fundo da caverna, não são as de objetos como os mostrados no texto original de Platão e sim a dos próprios seres aprisionados, e elas são fantasmagóricas, monstruosas e desesperadoras. A metáfora gráfica criada por Franco nessa primeira página dialoga com o mito tradicional, mas inclui novos elementos e reconfigura-o, basta compará-la a outro trecho do texto original: Sócrates — Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio. Glauco — Um quadra estranho e estranhas prisioneiros. Sócrates — Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e dos seus companheiros, mais da que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte? Glauco — Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida? Sócrates — E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo? Glauco — Sem dúvida. Sócrates — Portanto, se pudessem se comunicar uns com as outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam? Glauco — E bem possível (PLATÃO, 1956, p.287-288).

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Na página 2 (Figura 1) os velhos são representados por um ancião fleumático dizendo a palavra “aceitar”, ele tem nas costas signos temporais, o relógio e a ampulheta – reforçando sua condição de experiência e uma pseudo-sabedoria. O texto presente nessa página é o seguinte: “Os mais velhos explicavam que sempre haviam vivido assim, e não havia evidências de que as coisas mudariam. Um dia um deles se libertou sem querer. A princípio teve medo da liberdade.” A parte inferior da página apresenta a imagem do jovem que se liberta dos grilhões em uma atitude serena, percebendo a claramente a fragilidade das correntes. O desenho de um sinal de interrogação presente na testa do personagem muta-se para um círculo com um ponto na região do terceiro olho, símbolo da transição iminente para a liberdade. Ao fundo, em negro, uma grande cruz invertida simboliza a subversão ao

sistema. Na página 3 (Figura 2), depois de libertar-se, ele segue para o exterior da caverna, no texto dessa página lê-se: “Depois, quando se levantou, percebeu que as correntes estavam velhas e gastas e que nada os impedia de se libertarem. Não havia portas, grades ou correntes, nada entre ele e a liberdade”. A arte mostra grandes olhos observadores nas paredes da caverna enquanto ele avança para a saída de braços erguidos num sinal de entusiasmo. Os olhos nas paredes representam já a consciência dos mais velhos que desejam a manutenção do sistema. Ele está subvertendo o estabelecido, quem subverte fica “visado”. Em seus braços, pernas e corpo aparecem anéis como os de planetas - símbolo do retorno a uma condição cósmica de reconexão com a natureza e o universo. A paisagem destaca a grandiosidade e sinuosidade da natureza, algo jamais imaginado por ele. No texto original de Platão, Sócrates faz uma série de conjecturas a Glauco e transforma a possibilidade de um desses prisioneiros escaparem em uma hipótese com algumas variáveis, já na história em quadrinhos, como visto, a sequência narrativa acompanha diretamente a experiência do personagem liberto. Segue o trecho do mito:

Sócrates — (...) Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar -se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentas sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçada e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora? Glauco — Muito mais verdadeiras. Sócrates — E se a forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram? Glauco — Com toda a certeza (PLATÃO, 1956, p.288).

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Figura 2 – Páginas 3 e 4 da HQ “A Caverna”, de Edgar Franco e Gian Danton. Artlectos e Póshumanos #4, Editora Marca de Fantasia, 2010.

Na página 4 (Figura 2), o texto de Gian Danton é: “Viu animais que voavam e outros que corriam

sobre quatro patas, e compreendeu que tudo o que conhecera até ali não passava de sombras do mundo real. Era como se estivesse dormindo e, de repente, acordasse.” Na arte metafórica criada por Edgar Franco a página destaca simbolicamente a reconexão do personagem com a natureza, pois ao ver a fauna e flora do exterior da caverna ele sente-se ligado ao todo cósmico e a todas as espécies animais e vegetais, por isso seu corpo, metaforicamente, torna-se um híbrido de humano, animal e vegetal. Em sua testa abre-se um terceiro olho. A criatura híbrida que ele representa tem relação direta com a espécie tecnogenética do universo ficcional da “Aurora póshumana”. Na página 5 (Figura 3), temos o seguinte texto: “Teve dúvida, ficaria ali experimentando o orvalho das plantas, sentindo o calor do sol, ou voltaria para trazer consigo os outros. Talvez antes tivesse optado pela primeira opção, mas o que passara o havia mudado. Queria compartilhar com os outros a liberdade que sentia.” Na arte de Edgar Franco, a integração total à natureza é representada pelo toque da borboleta, pelas asas que aparecem em suas costas e pelo vislumbre de uma paisagem idílica de uma cachoeira. A beleza que ele experiencia o faz lembrar-se de seus semelhantes. Ele tem dúvidas se deve avisá-los, pois recorda seu tempo sombrio na caverna - a dúvida é simbolizada por um prego no terceiro olho. Ao resolver que deve compartilhar com seus antigos companheiros a liberdade, essa decisão é representada por uma metáfora gráfica na forma de uma rosa que ocupa o lugar do prego em seu terceiro olho, demonstrando a generosidade de seu espírito.

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Figura 3 – Páginas 5 e 6 da HQ “A Caverna”, de Edgar Franco e Gian Danton. Artlectos e Póshumanos #4, Editora Marca de Fantasia, 2010

Segue o trecho original do mito correspondente às páginas 4 e 5 da história em quadrinhos, obviamente todas as metáforas visuais criadas por Franco e apresentadas nas duas páginas, como já foram

descritas, são criações do quadrinista ao interpretar livremente o mito e inventar símbolos para dar a ele uma nova visão: Sócrates — Por fim, suponho eu, será o Sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal como e. Glauco — Necessariamente. Sócrates — Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com os seus companheiros, na caverna. Glauco — E evidente que chegará a essa conclusão. Sócrates — Ora, lembrando-se da sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que aí foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram? Glauco — Sim, com certeza, Sócrates (PLATÃO, 1956, p.289-290).

A página 6 (Figura 3) inclui um texto narrado, e também duas falas, a do personagem principal que

retorna à caverna para conclamar seus companheiros à liberdade, e a resposta deles. A narração é: “A caverna lhe pareceu triste e sombria quando entrou nela.” A fala do personagem principal a seus antigos colegas de caverna é: “- Ouçam, a um mundo lá fora, um mundo de maravilhas. Tudo que conhecemos até agora não passa de sombras.” E eles respondem: “- Mas estamos presos!”, ao que ele retruca: “As correntes estão velhas e se soltam com facilidade se vocês as forçarem.” Nessa página a metáfora visual para representar os seres ainda presos no interior da caverna são pinos de boliche, elas lembram pinos de boliche inertes. Ainda na arte gráfica da página uma fêmea grávida, em destaque, simboliza a eterna condição uterina dos habitantes da caverna. O seu feto tem corpo adulto e um prego nas costas. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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A página 7 (Figura 4), final da narrativa, apresenta o seguinte texto: “Pularam sobre ele e o mataram com as pedras que encontraram no chão da caverna, depois voltaram para o fundo, para a comodidade de suas vidas de sombras e grilhões.” A arte da página 7 mostra inicialmente a fúria dos habitantes da caverna que o chamam de louco. Ele é retratado morto e sangrando, estirado no chão, em posição crítica, seus braços são como asas, ele é o anjo caído, o Lúcifer que provou da luz e foi punido por isso. O seu sangue forma na parte inferior da página alguns dos habitantes da caverna, eles mesmos sombras. Um deles está ejaculando em um ato onanista, representando seu egocentrismo. A página como se vê, é repleta de metáforas visuais imaginadas por Franco e que não estão diretamente contidas n o trecho do texto original que se segue: Sócrates — Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol? Glauco — Por certo que sim. Sócrates — E se tiver de entrar de nova em competição com os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que os seus olhos se tenham recomposto, pois habituarse à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se a alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazêlo? Glauco — Sem nenhuma dúvida (PLATÃO, 1956, p.291).

Figura 4 – Página 7 da HQ “A Caverna”, de Edgar Franco e Gian Danton. Artlectos e Póshumanos #4, Editora Marca de Fantasia, 2010. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao considerar os resultados da adaptação do mito da caverna para os quadrinhos realizada por ele e Edgar Franco, Gian Danton (2014, s.p.) destacou: Em meu roteiro já tinha ido além, ao contar, por exemplo, a morte daquele que se libertou. Edgar Franco avançou ainda mais ao fazer jogos visuais que, em si também trazem grande significado, como na página final, em que o sangue do liberto torna-se tanto o quadro quanto os personagens que o mataram. É um resultado que instiga o olhar e nos leva a pensar e a questionar nossos conceitos, inclusive de realidade, dois temas muito caros a mim e ao artista.

A pesquisadora da obra de Edgar Franco, Dra. Nadja Carvalho, em livro que trata das relações entre as HQs de Edgar Franco e o também clássico “Banquete de Platão”, ressalta a polissemia dos textos, não só os verbais, mas também os que unem imagem e palavra, como as histórias em quadrinhos criadas por Franco, e suas criaturas pós-humanas: Acreditamos que a imagem sempre diz algo, exatamente o algo ou alguma coisa que nós leitores alcançamos amparados em nossos repertórios. Nada é impossível à palavra, à imagem e a conexão entre as idéias, suscitadas pela imagem e atribuídas por nós leitores, que materializamos as leituras e abrimos passagens para as significações.(...) No ponto de encontro entre os códigos distintos em que vamos empreender nossas leituras, as criaturas de Edgar Franco comparecem ao Banquete de Platão e nós leitores fomos convidados (CARVALHO, 2012, p.11-12).

A adaptação livre do mito da caverna, criada por Gian Danton e Edgar Franco, apresenta conexões diretas com o texto clássico, mas se permite também à reinvenção e reconfiguração, criando novas metáforas visuais que não estão presentes no mito original, e enquadrando-se perfeitamente nas diretrizes estipuladas por Elydio dos Santos Neto (2012) como as bases das HQs experimentais do gênero Poético-filosófico, investindo na brevidade da narrativa, em um experimentalismo sem amarras na criação da arte e do texto, assim como em uma evidente intenção filosófica. Assim a história em quadrinhos “A Caverna”, configurase como uma nova obra que se inspira no texto clássico de Platão, mas possui características novas e singulares. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARVALHO, Nadja. Edgar Franco e suas criaturas no Banquete de Platão: João Pessoa: Marca de Fantasia, 2012. DANTON, Gian. Entrevista a Edgar Franco, 30 de julho de 2012. FRANCO, Edgar Silveira. Artlectos e Pós-humanos nº6, João Pessoa: Marca de Fantasia, 2012. ______________. HQtrônicas: Do Suporte Papel à Rede Internet, São Paulo: Annablume & Fapesp, 2ª Ed, 2008. ______________.“Panorama dos Quadrinhos subterrâneos no Brasil.” In. CALAZANS,

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F. M. A. (Org.) As histórias em Quadrinhos no Brasil: Teoria e Prática. São Paulo: Intercom/Unesp/Proex, 1997, p. 51-65. PLATÃO. A República. São Paulo: Ed. Atena, 1956, 6ª Edição, p. 287-291 SANTOS NETO, Elydio dos. “O que são histórias em quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.” In Visualidades – Revista do Programa de Mestrado em Arte e Cultura Visual da FAV/UFG, Vol. 7 n. 1, Jan/Jun 2009, - Goiânia - GO: UFG, FAV, 2009, p.68-95. SANTOS NETO, Elydio dos. Os quadrinhos poético-filosóficos de Edgar Franco: textos, HQs e entrevistas. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2012.

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DEMÔNIOS DE ALUÍSIO AZEVEDO: METAMORFOSE DA OBRA-BASE À QUADRINIZADA DEMONS PAR ALUISIO AZEVEDO: METAMORPHOSES DE L´ŒUVRE ORIGINELLE EN BANDES DESSINEES DEMÔNIOS, BY ALUÍSIO AZEVEDO: METAMORPHOSIS FROM THE ORIGINAL INTO COMICS Edilaine Correa Gonçalves Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Carlos Daniel S. Vieira Universidade de São Paulo

RESUMO O presente artigo resulta de pesquisa sobre processos envolvidos em adaptações literárias. Pretende-se analisar em que medida o desenhista atua como agente na revivificação da obra em sua essência. Como objeto de pesquisa, analisamos o conto Demônios de Aluísio Azevedo conhecido como autor literário de Casa de Pensão, O Mulato e O Cortiço acreditando oportuna a pesquisa de outra faceta artística menos conhecida. Partimos do pressuposto que obras literárias podem ser adaptadas para os quadrinhos; contos, por sua menor extensão textual, oferecem maior facilidade para adaptações e, que ambos, podem ser oferecidos ao público leitor com vantagens. Assim, o papel da literatura transposta para os quadrinhos será investigado a partir de bibliografias específicas tais como Cirne (1972 e 2000), Cagnin (1973), Luyten (1984), Eisner (1999), Moya (1993) e Vergueiro (2009) dentre outras. Palavras-chave: Adaptação em quadrinhos; Demônios (Aluísio Azevedo); Eloar Guazzelli RESUME Le présent article a resulté de la recherche sur les processus contenus dans les travaux d´adaptations littéraires. Nous avons eu la prétension d´analyser de quelle façon le dessinateur est l´agent dans la revivification de l´œuvre dans son essence. Comme objet de recherche, nous avons analysé le conte Demônios de l´auteur Aluísio Azevedo connu par les œuvres Casa de Pensão, O Mulato e O Cortiço en croyant comme une opportunité parfaite de présenter un autre coté de ses aptitudes artistiques moins connues de cet auteur appartenu au Naturalisme au Brésil. Nous avons préssuposé que : l´œuvres littéraires peuvent être adaptées en bande dessinée ; les contes, à cause d´une extension textuelle pas grande, offre une facilité en plus pour les travailles de transpositions de langage dans ce que concerne les adaptations et, que les deux formes peuvent être offertes au publique lecteur avec des avantages. De cette façon, le rôle de la littérature transposée en bandes dessinées sera investiguée à partir d´une bibliographie spécifique tel comme Cirne (1972 e 2000), Cagnin (1973), Luyten (1984), Eisner (1999), Moya (1993) e Vergueiro (2009) parmi d´autres. Mots-clés: Adaptations en Bande Dessinée; Demônios (Aluísio Azevedo); Eloar Guazzelli.

ABSTRACT This article brings a research on the processes involved in literary adaptations. We intend to analyze the extent to which the artist acts as agent in the revival of the original, as keeping its essence. Our research object is the short story Demônios, written by Aluisio Azevedo, known as the author of Casa de Pensão, O Mulato and O Cortiço. We believe this article brings an interesting research of his less known artistic work. We assume that literary works can be adapted for comics; short stories, for their lower extension, would offer an easier adaptation, and both forms can be provided to the reading audience with their own benefits. Following that thought, the role of the literary work transposed into comics will be investigated from specific bibliographies such as Cirne (1972 e 2000), Cagnin (1973), Luyten (1984), Eisner (1999), Moya (1993) and Vergueiro (2009), among others. Key words: Comic Adaptations; Demônios (Aluísio Azevedo); Eloar Guazzelli.

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INTRODUÇÃO Alguns preferem a literatura; outros, os quadrinhos. Nós preferimos os dois. Em alguns momentos, a literatura nos diz mais ou muito mais; em outros, o bom quadrinho nos é mais significativo. Aqueles que só preferem a literatura (e o cinema) deixam de fora uma parte do saber cultural; aqueles que só preferem os quadrinhos perdem a possibilidade de se enriquecerem culturalmente. (MOACY CIRNE)

Iniciamos a apresentação do artigo trazendo logo pelo título o conceito metamorfose, que sugere a ideia de mudança completa de uma forma ou estrutura; de algo, para outra. Assim, apresentamos nossa

pesquisa utilizando-o por analogia, pois entendemos que devemos investigar em que medida a passagem da obra literária ou obra-base (como passaremos a intitulá-la a partir desse momento) para a quadrinizada é uma transposição de linguagens para sua reapresentação em arte sequencial. Pretendemos colaborar com estudos do meio acadêmico sobre a leitura dos clássicos em seu formato original ou mais especificamente, o quadrinístico, pois acreditamos ser essa apresentação um convite atraente aos leitores de todas as idades para participarem de resultados sempre comemoráveis, quando se trata de incentivar a leitura em um país em que o número de alfabetizados funcionais ainda se mantém alto3. Compreendemos ainda que existem alguns trânsitos presentes nos trabalhos que envolvem a adaptação para os quadrinhos, ideais para investigação. Afinal, tão importante quanto analisar o estilo do

autor em sua apresentação, conteúdo e contexto histórico, é vislumbrar o projeto editorial, currículo artístico do desenhista, técnicas quadrinísticas utilizadas, dentre outras variáveis que serão apresentadas nas próximas páginas. Nesse âmbito, vemos a adaptação como uma transcodificação, tal como Cirne (1972) faz menção: uma transposição entre práticas estéticas, assumindo “semiologicamente os signos de uma nova linguagem” (p. 93). A obra que nos despertou maior interesse quando divulgado evento específico4 em meio acadêmico foi o conto Demônios (Fig. 1) de Aluísio de Azevedo, conhecido autor literário de obras como Casa de Pensão, O Mulato e O Cortiço, acreditando oportuna a pesquisa de outra faceta artística dele menos conhecida, porém não menos importante. Então, munimo-nos de informações sobre o autor do século XIX, tais como contexto histórico, obras e estilo literário, através de autores como Mérian (1988) com inúmeras

informações sobre vida e obra ou Lavin (2005), organizadora das obras completas do referido autor em dois volumes, servindo-nos como nossas principais fontes de referências. Nelas, encontramos afirmações como a de Coelho Neto, mencionando que Azevedo

3

A Unesco divulgou que há 774 milhões de adultos analfabetos no mundo, resultando na 53ª. Colocação nesse ranking para o Brasil. Este artigo não pretende investigar a eficiência ou não dos quadrinhos em uma mudança mais que desejável para melhorar nossa sociedade. Porém, estamos convencidos que os quadrinhos devam ser utilizados como recurso pedagógico para atender essa missão. 4

Jornada Temática de Histórias em Quadrinhos e Adaptação Literária promovida pela Universidade Federal de São Paulo em 5 e 6 de Ago. 2014 (Disponível em <http:www2.eca.usp.br/jornadaquadrinhos> Consulta em: 11 Ago. 2014).

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Tinha mais orgulho do lápis do que da pena e a qualquer dos seus romances preferia uma tela de figuras hirtas, um monte de cadáveres entre casas de uma rua estreita debaixo de um céu cor de zinco [...] Costumava dizer que se fizera romancista não por pendor, mas por se haver convencido da impossibilidade de seguir a sua vocação que era a pintura. Quando escrevo – afirmava – pinto mentalmente. Primeiro desenho os meus romances, depois redijo-os. (COELHO NETO, 1920 apud MÉRIAN, 1988, p. 171)

Há homenagens que atestam que Azevedo se dedicava a representações desestabilizadoras, tanto por meio de seus escritos como de imagens que inquietavam o público. Um deles foi de seu amigo Bilac, em artigo especial publicado no periódico O Álbum, em que atesta que Aluísio abalançou-se a tomar quantas encomendas de retrato a óleo lhe apareceram. Começou a transportar para a tela todas as oleosas faces da burguesia maranhense: chegou a dedicar-se especialmente a retratar defuntos. Nesse tempo já o dominava a ardente preocupação com a verdade na Arte. Os outros retratistas pintavam os seus mortos como “cocottes”, lábios tintos a vermelhão, olhos cuidadosamente cerrados, faces barbeadas de fresco indo para o fundo da cova como para um salão de baile. Nas telas de Aluísio, o pavor e a fealdade da morte se mostravam sem disfarce: um olho mal fechado, a cor terrosa da face descomposta, um dente cariado entre os lábios do morto, tudo aparecia fielmente reproduzido no quadro. Imagine-se o escândalo produzido na província por essas espantosas telas! Um dia, contando-me isso, dizia-me Aluísio: “Ah! Meu caro! Imagine que um desses retratos era tão feio, na sua crua verdade, na sua horripilante representação horror da morte, que serviu muito tempo, em São Luis do Maranhão, para intimidar as crianças manhosas... Não ria! Digo-lhe a verdade! O retrato era emprestado de casa em casa, entre famílias. Assim que as crianças começavam a fazer manha, as mães intervinham: ‘Olha que vou buscar o tabelião!’ Oh! Ainda hoje há lá no Maranhão muita gente que deve a boa criação que tem à sinistra influência do retrato do tabelião. (BILAC, Jan. 1895, n. 54) Destaques nossos

Fig.1 – Capa do livro Demônios, Livraria Editora Martins S.A., 1961

Fig.2 – Capa de Demônios em Quadrinhos por Guazzelli, Editora Peirópolis, 2010

Assim, abastecidos de informações como as elencadas, visitamos tanto a obra-base Demônios em sua versão impressa em livro, pela Livraria Editora Martins em edição de 1961 (Fig. 1), como também a publicada pela Editora Peirópolis em 2013 (Fig. 2), adaptada pelo artista Eloar Guazzelli, crentes de que a Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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adaptação literária em quadrinhos se apresentava como um convite a sua leitura, por tratar-se de uma representação artística híbrida (texto e imagem). Entendemos que o trabalho de profissionais em adaptações deva atender ao objetivo principal de "tornar as condições de representação de um cenário em que a principal ‘qualidade’ é de respeitar ao máximo possível o estilo do autor e manter intacta a força da obra original [...] a fim de manter nela o gosto e o perfume" conforme se expressa Khoury, pesquisador francês sobre a arte. (apud Berthou, 2014, p. 2) Dessa forma, visitamos obras seminais que nos serviram de embasamento para compreender as peculiaridades pertencentes à arte em quadrinhos: Cirne (1972 e 2000), Cagnin (1973), Luyten (1984),

Eisner (1999), Moya (1993) e Vergueiro; Ramos (2009); sobre literatura: Massaud (1984), Sodré (1978) e Teles (2012) e, mais especificamente sobre o conto e seus tipos existentes: Propp (1997), Todorov (2010), Roas (2014) e Poe (2001). Paralelos entre Literatura e Quadrinhos: adaptação como metamorfose Devemos comemorar espaços oferecidos para refletirmos sobre novas apresentações de cânones da literatura, analisando em que medida estas representam as obras clássicas. Confirmamos que no Brasil, em 1966, graças à militância do jornalista e crítico especializado Sérgio Augusto, era possível ler artigos sobre os quadrinhos como cultura de massa, originando uma série de questionamentos sobre sua estrutura,

técnica, formas de representação e outros assuntos relacionados à arte. Em uma das edições especiais dedicadas à Nona Arte dessa época, encontramos editorial que corrobora com a importância que muitos pesquisadores têm a respeito do que significa uma produção em quadrinhos, enriquecendo nossa reflexão ao mencionar que A linearidade do livro foi ultrapassada pela maior carga de surpresa e informação da revista quadrinizada. O quadrinho é a solução tipográfica presente/futuro até que chegue a hora e vez do livro-cineminha-de-bolso universalizado. (In: Revista Cultura Vozes, 1969, Editorial)

Gonçalo Jr. (2004), em capítulo intitulado Política e Literatura: romances em quadrinhos5, informa que Adolfo Aizen6 também teve participação importantíssima no segmento editorial em quadrinhos nas décadas entre 50 a 70, quando começou com a Ideia de quadrinizar romances consagrados da literatura brasileira, porém não conseguiu agradar a todos, e a polêmica em torno de Edição Maravilhosa continuou a dividir os escritores. E acabou por envolver vários deles na discussão sobre a legitimidade das versões simplificadas de livros e a eficiência da narrativa ilustrada. (GONÇALO JR., 2004, p. 284) 5

O livro em questão é A Guerra dos Gibis - pp. 271-291.

6

Segundo artigo Literatura em Quadrinhos no Brasil: uma área em expansão de autoria de Nobu Chinen, Waldomiro Vergueiro e Paulo Ramos publicado no livro Quadrinhos e Literatura: Diálogos possíveis (2014), Adolfo Aizen foi um dos pioneiros e maior editor nacional de histórias em quadrinhos.

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Jorge Amado7, José Lins do Rego8 e Gilberto Freyre são mencionados como autores influentes na sociedade da época e defensores de trabalhos relacionados à adaptação literária para os quadrinhos publicados pela Ebal - Editora Brasil-América, fundada por Aizen em 1945. A Ebal escolhia títulos destinados à adaptação, seguindo critérios como grau de popularidade do romance, valor como obra literária, possibilidade de adaptação para os quadrinhos e critério moral, i.e., sem menções ao erotismo ou ofensa aos princípios da igreja católica – tal como qualificariam, após análise, enquadrarem-se Casa Grande & Senzala ou Iracema9. Somamos aos elementos citados anteriormente, portanto, o projeto editorial como item importante, tencionando conferir os objetivos da casa publicadora com adaptações, pois estes parecem definir o caráter

e a qualidade da obra como um todo. Buscamos em Propp (1997) e Todorov (2010) um conceito para conto e constatamos que representa uma série de gêneros literários impossíveis de classificação, sobretudo em razão da quantidade de textos já produzidos ou em constante produção. Considerando as indicações que os autores sugerem, dentre os vários tipos de contos existentes, Demônios, em termos de construção textual, narratividade e estética, pertence ao gênero literário fantástico. Essa peculiaridade nos faz acreditar que exija certa dose de talento adicional do artista na transposição do conto para os quadrinhos. Roas (2014) define bem em que consiste esse gênero afirmando que A literatura fantástica é o único gênero literário que não pode funcionar sem a presença do sobrenatural. E o sobrenatural é aquilo que transgride as leis que organizam o mundo real, aquilo que não é explicável, que não existe, de acordo com essas mesmas leis. Assim, para que a história narrada seja considerada fantástica, deve-se criar um espaço similiar ao que o leitor habita, um espaço que se verá assaltado pelo fenômeno que transtornará sua estabilidade. É por isso que o sobrenatural vai supor sempre uma ameaça à nossa realidade, que até esse momento acreditávamos governada por leis rigorosas e imutáveis. A narrativa fantástica põe o leitor diante do sobrenatural, mas não como evasão, e sim, muito pelo contrário, para interrogá-lo e fazê-lo perder a segurança diante do mundo real. (ROAS, 2014, p. 31)

Refletir sobre os trabalhos que envolvem adaptações literárias para os quadrinhos fez com que partíssemos do pressuposto de que um conto, por sua menor extensão textual, ofereceria maior facilidade, ansiando descobrir em que medida o artista, agente na revivificação do clássico em sua essência, conseguiria transpor da linguagem textual para a arte sequencial, sem trair o original. Não a título de comparação, mas apenas para melhor entender o gênero fantástico, consultamos alguns escritores conhecidos que têm obras similares à Demônio, tais como Edgar Allan Poe e Théophile Gautier. Do primeiro, sabemos que Machado de Assis, prolífero escritor, traduziu vários contos poeanos publicados no Brasil, seguindo mesma tendência que na Bélgica, Rússia, Espanha, Portugal e França. 7

Terras do sem fim, São Jorge dos Ilhéus e Mar Morto foram suas três obras adaptadas para os quadrinhos.

8

De José Lins do Rego foram publicados: Menino de engenho, Doidinho, Bangüê e Cangaceiros. Outros títulos como Canãa de Graça Aranha, A morgadinha dos canaviais de Júlio Dinis, A muralha de Dinah Silveira de Queiroz, O Guarani, Iracema, O tronco de ipê e Ubirajara de José de Alencar e outros ainda da literatura estrangeira. A moreninha de Joaquim Manuel de Macedo, Cabocla de Ribeiro Couto, apenas para citar algumas das publicações. 9

Para o primeiro título, não houve publicação. Para o segundo, resolveu-se o caso da nudez com longos cabelos escondendo partes do corpo da índia em questão.

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Devemos lembrar que Assis e Azevedo eram amigos e que escreveram e publicaram, em regime de coautoria. Do segundo, Azevedo em prefácio na obra A Mortalha de Alzira, confirma ser ela uma versão estendida de La Morte Amoureuse de Gautier10, ambas pertencentes ao mesmo gênero. Sinalizando uma das respostas que buscávamos na pesquisa, Assis (1870), em seu Contos Fluminenses, menciona que se trata de “gênero difícil a despeito de sua aparente facilidade e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.” (apud Teles, 2002, p. 10). Vimos que Cirne (1972), um dos pioneiros em estudar a arte sequencial no Brasil, teoriza sobre adaptação em quadrinhos como sendo o que parte de um meio para outro e transforma, usando nova

linguagem ou criando novo gênero, explorando técnicas e transposição de linguagens quando afirma que São muitos os polos, quer educacionais ou jornalísticos, quer comunicacionais ou artísticos, que se voltam para as raízes metalinguísticas, políticas, sociais e econômicas dos quadrinhos, testando as vertentes criadoras que os formam [quadrinhos] e os projetam no espaço-tempo gráfico das revistas e jornais. (CIRNE, 1972, p.12)

Em Luyten (1984), vimos itens que participam da arte sequencial e que tornam os quadrinhos instrumento de criação, tais como Forma como são apresentadas as personagens, dinamismo na ação história, quantidade de quadrinhos por página (equilíbrio e dinamismo), enquadramentos, uso de cores e efeitos de iluminação, registro de impressão em cores (imagens duplas, contornos mal definidos), qualidade do papel impresso, uso adequado de títulos, legendas, balões e onomatopeias e como o desenhista faz uso de técnicas para dar mais movimento à história e conteúdo ou ainda, como mantém o suspense e ação narrativa, aspectos físicos em combinações com o psicológico; sentimentos que desperta no leitor (LUYTEN, 1984, pp. 85-86)

Dessa maneira, em Demônios, podemos constatar como a evolução da ação manifesta-se de forma tensa, semelhante à provocada por Edgar Allan Poe em seu conto O Corvo, fazendo com que o artista da adaptação em quadrinhos busque estratégias para passar, quadro a quadro, suas impressões desde que leu o conto, caso esse testemunhado em entrevista por Guazzelli11. Curioso foi visitar Poe (2001) em Filosofia da Composição, artigo publicado em jornal em que relata seu processo de criação do conto, nos direcionando assim à análise da obra que escolhemos. Ao discorrer sobre as características necessárias e presentes para produzir um bom conto, menciona que é necessário o uso de efeito poético tal como em um poema para estimular a emoção do leitor. Diz que a extensão não pode comprometer a unidade textual, devendo ser calculada para que a brevidade da emoção e a razão direta da intensidade do efeito pretendido sejam mantidas (p. 913). Afirma ainda que a escolha das palavras garante a beleza final apresentada, assim como a sonoridade, a presença de uma bela mulher, a existência da morte, do amor impossível de ser vivido e da combinação de ideias que são apresentadas sequencialmente, permitindo atingir o clímax, envolvendo o leitor em uma espécie de 10

Narrativa fantástica publicada em Chronique de Paris de 23 a 26.06.1836, cujo texto integral encontra-se disponível para leitura em:< http:// www.llsh.univ-savoie.fr/gautier/> oferecido generosamente pela Sociedade Théophile Gautier. Consulta em: 03. Jun. 2014. 11

Em Clássicos em HQ cada um dos artistas envolvidos em adaptações literárias escolheu a obra que mais lhe impressionou tendo a oportunidade de usar seu talento para apresentá-la em quadrinhos. Eloar Guazzelli é um deles (2013, p. 79). O livro também está disponível em: <http://www.editorapeiropolis.com.br>. Consulta em: 15. Mai. 2014.

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máxima concentração possível de tristeza e de desespero (p. 916). Poe adiciona ainda que a escolha do local em que a história acontece é determinante como circunscrição fechada do espaço e absolutamente necessária para o efeito de incidente insulado e tem força de uma moldura para um quadro (p. 917-918). Tal qual Poe técnica e metodologicamente atesta, vemos em Demônios que o local escolhido para o encontro dos enamorados na história também é um quarto, lugar sagrado para os amantes; e que o momento de encontro com Laura, a noiva do protagonista, atiça a curiosidade do leitor, pois fica-se apreensivo por saber se ela está ou não viva. Poe complementa que, para produzir esse tipo de texto, aproveita-se da força do contraste, tendo em vista aprofundar a impressão derradeira [e que] de todos os temas melancólicos, qual segundo a compreensão universal da humanidade, é o mais melancólico? –

[que] A Morte. (POE, 2001, p. 915). Vimos que Azevedo também faz alguns usos muito próximos ao contrastar vida e morte, luz e escuridão, som e silêncio; isso provoca no leitor a sensação angustiante ou torturante pela qual passa o protagonista, com expressões repetidas como: “grande e sombria casa de pensão”, “atmosfera de catacumba”, “cidade afogada em trevas”, “as ideias, que nem um bando de demônios”, “cidade deserta e muda”, “minhas queridas plantas e suas tristes folhas”, “membros de um cadáver ainda quente”, “manchas esverdeadas de carne que vai entrar em decomposição”, “tateava corpos enregelados e hirtos, perdidos e abandonados no meio daquele tenebroso campo de mortos”, entre outras. Exploramos até o momento o grau de popularidade da referida obra em forma de conto, muito em voga na época, publicadas em jornais, revistas e livros. Agora, pensemos na possibilidade de adaptação

para os quadrinhos a ser verificada de acordo com a proposta da casa publicadora. Peirópolis e seu Projeto Editorial A próxima etapa de nossa pesquisa foi a de buscar informações que pudessem orientar um olhar mais aprofundado a respeito dos muitos processos envolvidos em uma adaptação literária para os quadrinhos. Após conhecer, ainda que resumidamente, a obra-base, os fatos históricos que envolveram sua produção, as tendências literárias da época, de apreender minimamente as técnicas quadrinísticas existentes, vimos como é imprescindível a consulta do projeto editorial. Por meio dele, podemos ver as possíveis razões para escolhas ou renúncias feitas do início dos trabalhos até a publicação, quais teriam

sido os objetivos principal e secundário almejados, os profissionais envolvidos, a liberdade ou exigência oferecida ao artista/ilustrador, quem seria o ilustrador e por quê, além de outros questionamentos que surgiram à medida em que nos dispúnhamos à análise aprofundada sobre a metamorfose da obra-base à quadrinização. Encontramos algumas das respostas em Borges (2013) e vimos que editores, quadrinistas, roteiristas e consultores convidados, envolvidos na apresentação dos mais de 16 títulos atualmente adaptados, seguiram critérios que nortearam a produção, tais como: a exigência de que o artista, incumbido de executar a adaptação, fosse um leitor apaixonado pela obra, a ideia da coleção para apresentar ao público uma leitura possível da obra, a de manter nos quadrinhos, em seus balões recordatórios, apenas Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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textos originários da obra literária matriz [com] escolha de traduções consagradas em língua portuguesa de obras em outros idiomas (p. 6), dentre outras informações. O volume Clássicos em HQ ainda apresenta respostas sobre Por que ler os clássicos, discorre sobre tradução e quadrinização da literatura ou literaturização do quadrinho e lista todos os títulos até então publicados ou que estão em processo de produção. Traz ainda textos teóricos de pesquisadores sobre a temática, apresentando de maneira transparente os propósitos profissionais dessa editora. Para exemplificar, trazemos um trecho do colaborador sobre a importância da adaptação de um clássico da literatura em quadrinhos: De todo modo, lendo ou relendo, o que de fato importa é que a leitura de um clássico é antes de qualquer coisa um passaporte seguro que pode muito bem conduzir o leitor a um saber reflexivo e (por que não?) ao prazer. E, no caso brasileiro, cuja democratização universal ao acesso à cultura letrada, a despeito dos progressos, ainda está por vir, ela é ainda mais necessária. País justo é o que prima pela educação e disseminar livros (clássicos ou não) já é um bom começo. (MARQUES, 2013, p.11)

Um tour em Demônios na versão conto original O conto Demônios traz a narração, em primeira pessoa, de um rapaz solteiro que divaga em seu quarto de pensão. Descreve-nos ele como certa vez acordara, “sem consciência de nada”, e pusera-se a escrever uma série de reflexões por longas horas. E quando termina, surpreende-se de não ver o nascer do

dia: tudo está escuro. Num clima onírico, vagueia pela pensão, apenas para descobrir que estão todos mortos. Em meio às sombras (e à fraca luz de sua lamparina), caminha desesperado, segue seu rumo até a casa de sua amada, Laura... e a encontra igualmente sem vida. Em prantos, presencia sua querida reanimarse, levantar-se. E com ela caminha, metamorfoseando-se de maneira surreal ao longo do caminho. Tornam -se diversas criaturas distintas; passam do reino animal ao mineral; e daí para gases, que desaparecem “espaço afora em busca do ideal”, como afirma o narrador. E conclui o conto, voltando ao seu quarto e – para agradável confusão do leitor –, afirma terem sido esses os capítulos que escreveu numa certa e peculiar noite. Acreditamos importante adicionar a informação de que o mesmo conto foi publicado originalmente em jornais da época como Gazeta Literária (1883), Gazeta de Notícias (1891) e O Combate (1892), assim

como republicado por editoras como Teixeira Irmãos12 (1893), Garnier (1888), Briguiet (1937) e Martins. Após aquisição dos direitos autorais dos romances de Azevedo, até 197313, a obra passou a ser de acesso público14.

12

A publicação de 1893 é resultante da compilação de uma série de contos, encadernados com outros títulos como: O macaco azul, Cadáveres insepultos, Aos vinte anos, Das notas de uma viúva, Uma lição, Músculos e nervos, O madeireiro, Os passarinhos, Politipo, No Maranhão e Como o demo os arma em um total de 264 páginas. 13

Segundo informações contidas em Mérian (1988, p. 636-640).

14

Disponível em: www.domíniopublico.gov.br

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O enredo do conto apresentado pelo autor literário possibilita a reflexão sobre sua construção, em que parece transparecer certa dose do estilo romântico fantástico. Azevedo, ainda que precursor do Naturalismo no Brasil, apresenta algumas obras calcadas no Romantismo, como Uma lágrima de Mulher (187415) ou até mesmo O Mulato (1881). Constatamos em Demônios a contramão da teoria da evolução defendida por Darwin, tornando-se justamente por isso possível rotulá-lo como um conto fantástico. Assim, ora com inclinação para o Romantismo, ora para o cientificismo ou o fantástico, sua narrativa em primeira pessoa parece-nos que notadamente propicia uma adaptação em quadrinhos. Veja-se o tamanho curto, ideal, ou a trama onírica que inspira um traço de cunho surrealista; a plasticidade própria do autor, talvez de modo especial nesse

conto; o "golpe final" de Azevedo, num arrebatamento de tensão semelhante a Poe e Machado, que cede uma conclusão forte à criação gráfica. Batalha (2011) menciona em seu artigo que Azevedo Através de uma série alucinante de metamorfoses grotescas que se desenvolvem ao longo da narrativa, a atmosfera de pesadelo contamina e preenche todo o espaço, invade a paisagem e todas as formas de vida, esbarrando nos limites da razão. Ao misturar os elementos e os materiais, o humano e o vegetal, a forma e o conteúdo, o grotesco que transforma o espaço “real” em espaço fantasmático, ilustra o fracasso da simples orientação do mundo e promove a denúncia de uma concepção antropomórfica, que faz do homem o soberano do universo. As formas grotescas, que compõem o quadro onde se desenvolve a ação, desestabilizam os vetores da percepção, infligindo velhos de leitura. (BATALHA, 2011, p. 45)

Inferências a partir da apresentação do conto quadrinizado - Demônios Ao analisarmos como a adaptação de Guazzelli mantém o caráter onírico do conto por meio de uma perspectiva em primeira pessoa e um traço surrealista, manipulando a velocidade da narrativa e utilizandose de aspectos similares aos do cinema (plongé, contra-plongé, plano-detalhe, entre outros), notamos que, a princípio, Guazzelli transpõe de forma “fiel” a narrativa textual, transformando-a em visual, ainda que com certa parcela de legendas adicionadas. No entanto, presenciamos que não há "facilitação" para o leitor mais jovem, nem do ponto de vista sintático (mantendo-se a formalidade do século XIX), tampouco do lexical (vejam-se termos como: "lassa", "trôpegos", "borbotão", "arribadas", "hercúleo", "pujança", "pletórica", "plúmbeo", "azotado", "vergônteas", "brácteas", entre outros).

Tal opção, na nossa perspectiva, aproxima o leitor atual da literatura do autor naturalista, por mostrar-lhe o texto tal como o da obra-base. Mesmo porque, grande parte desses lexemas reflete a mentalidade racionalista, cientificista e materialista do período. Além disso, nota-se uma submissão estilística, tradicional em adaptações, que valoriza a obra-base, atribuindo-lhe um valor pregresso (Silva, 2009, p.3). Mas isso não significa, obviamente, que os aspectos formais das HQs tenham sido pouco trabalhados por Guazzelli, pois 15

Olavo Bilac mencionou em artigo publicado em periódico que: "Aos 17 anos (1874) Aluísio Azevedo escreveu o romance Uma Lágrima de Mulher, publicado em 1879, e um livro ilustrado, Minhas Memórias, ainda hoje inédito. Foi então que o Rio de Janeiro começou a atrai-lo com a sua fama de cidade civilizada." (In: Bilac, O Album, n. 54, Rio de Janeiro: jan.1895, p.13 apud Mérian, 1988, p. 197).

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As HQs revelam em sua constituição, uma linguagem inter-sígnica que se dá através de corelações, co-referências, analogias, e muitas outras possibilidades interativas. A presença ou não de cores, o tipo de traço, o tamanho das figuras, a disposição da linguagem verbal nos balões (ou a ausência deles), a alternância entre a luz e as sombras, e muitos outros recursos são utilizados na composição dos quadrinhos, que se configuram como um mix de diferentes linguagens e recursos compositivos. (OLIVEIRA, 2008, p.45)

Sendo o conto original uma narrativa de sensações que se passa num mundo de aspectos oníricos, Demônios parece antecipar aspectos estéticos dos vindouros Expressionismo e Surrealismo. Assevera Eisner (2001, p. 38) que “o artista, para ser bem sucedido nesse nível não-verbal, deve levar em consideração a comunhão da experiência humana e o fenômeno da percepção que temos dela, que parece

consistir em quadrinhos e episódios”. No plano gráfico de Guazzelli, constatamos que as cenas são ilustradas sob a ótica do narrador, literalmente: a arte gráfica mostra o que seus olhos são capazes de ver ou não – são páginas escurecidas com círculos amarelados para os momentos em que o narrador segura uma vela em meio às trevas (Fig. 3); tem-se um zoom in nos cadáveres analisados de perto, retratados com o aspecto de decomposição (Fig. 4); os desenhos da janela acompanham a perspectiva baixa do narrador que tenta, quase às cegas, se locomover (Fig. 5); e, no clímax da história, se o narrador afirma que seus olhos escorrem, temos páginas gradativamente enegrecidas com pontos brancos, compartilhando a mesma sensação de limitação do personagem/narrador (Fig. 6).

Fig. 3 – Demônios, 2010, p. 21

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Fig. 4 – Demônios, 2010, p. 23

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Fig. 5 – Demônios, 2010, p. 27

Fig. 6 – Demônios, 2010, p. 48

Mas não se trata (e nem poderia) de uma transposição gráfica exata da perspectiva do narrador. O campo simbólico, novamente típico das vanguardas europeias, enche páginas de amebas e seres peculiares que denotam mais o estado conturbado do protagonista do que seu campo de visão. Exemplo semelhante surge logo ao início da HQ, quando Guazzelli opta por um close in nos olhos do narrador (Fig. 7), abandonando excepcionalmente a "câmera mental" para mostrar um indivíduo cujo olhar vacila, abre-se, fecha-se e o leitor não consegue, de modo algum, saber se ele está dormindo, acordado, ou um pouco de cada.

Fig. 7 – Demônios, 2010, pp. 12-13 Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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A esse respeito, uma passagem do livro de Eisner nos serve para melhor explicarmos como se dá a técnica do artista quando faz referência ao formato (ou ausência) do requadro [que] pode se tornar parte da história em si. Ele pode expressar algo sobre a dimensão do som e do clima emocional em que ocorre a ação, assim como contribuir para a atmosfera da página como um todo. (EISNER,

2001,

p.

46)

Assim, constatamos que a sagacidade e o talento do artista enriquece a leitura do conto, que se mantém fiel16 ao original, revelando-se um trabalho que objetiva despertar a própria reação do leitor à ação, criando assim um envolvimento emocional na narrativa. (idem, p. 59) Mas isso, é claro, ocorre em um momento de maior objetividade, ainda anterior ao delírio, motor principal da trama - um silêncio angustiante com ausência de falas, opção de Azevedo que parece

proposital para impedir maior compreensão objetiva do conto, representada por quadrinhos sem balões. A escolha por cores frias, o excesso de sombras, a fusão entre formas extremamente sinuosas e outras, muito retas e angulares - tudo isso mostra a transposição do universo onírico no plano gráfico. As divagações do narrador-protagonista ora surgem em caixas, sobrepostas aos elementos gráficos, ora fundem-se a eles: é a própria confusão de realidades, marca do delírio. De maneira análoga, a confusão de imagens acompanha a velocidade da confusão mental do narrador, desenvolvendo-se lentamente quando a trama desacelera, tensa (ao procurar por sua noiva, sem saber se está viva ou morta), mas aglomerando-se em imagens num golpe único, quando a narrativa acelera no ápice do caos, durante a transformação corporal do protagonista, retratado numa página dupla (Fig. 8). E se o conto encerra trazendo o leitor subitamente para a realidade, Guazzelli busca fazer o mesmo no

plano visual: aproveitando-se do corte gráfico da página17, traz o leitor de volta à construção tradicional, à página clara com cercadura e à construção tradicional do início do quadrinho (Fig. 9). Se Azevedo utilizou -se de um final forte em seu conto, “lançando” o extasiado leitor de volta ao quarto de pensão do protagonista, o quadrinista aqui buscou repetir o feito, adaptando-a ao código verbo-visual típico dos quadrinhos.

Fig. 8 – Demônios, 2010, pp. 40-41. Fig. 9 – Demônios, 2010, p. 52 16

Aqui o conceito de fidelidade diz respeito à adaptação da obra-base sem mudança em sua identidade

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Cirne (1972) chama de corte gráfico a passagem espaço-temporal entre os planos de um quadrinho. O teórico afirma que o corte gráfico é mais forte entre páginas, pois leva em conta o movimento físico do leitor que a vira, surpreendendo-se com a nova imagem.

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CONCLUSÃO Longe de criarmos juízos de valor que favoreçam determinado gênero, percebemos que a adaptação em quadrinhos oferece uma nova forma de contato da obra. Ocorre algo similar ao que visualizamos dentre do próprio enredo do conto Demônios: é um processo de metamorfose duplo, tanto dos personagens, “criaturas” imaginadas por ele, como a passagem de uma forma a outra, do texto para os quadrinhos. Acreditamos que comumente registramos mentalmente tudo o que escutamos, vemos ou lemos, em imagens. Por isso, contemplar outras formas de representação do mesmo referencial parece ser uma

oportuna forma de expansão de nosso próprio repertório imagético. Vimos que a hipótese elaborada inicialmente neste trabalho - a saber, de que o conto apresentaria uma suposta facilidade de quadrinização, em virtude de sua curta extensão – mostrou-se inocentemente equivocada. O exercício da reflexão a esse respeito nos permite concluir que o grau de dificuldade diz respeito mais às emoções e percepções, causadas no artista ou em envolvidos com trabalhos relacionados ao meio editorial como leitores, representando verdadeiros desafios a serem superados na transcodificação das linguagens. Assim, nota-se a preocupação do ilustrador Guazzelli em transcodificar impressões que teve na infância ao ler a obra-base, num respeito mútuo ao código de ambos os gêneros. Mas essa oportunidade do artista é oferecida de forma generosa, elaborada em projeto editorial da Peirópolis, o que parece

representar um critério de valorização do artista/quadrinista como leitor, dando-lhe, talvez, mais cores àquilo que lhe é particular e raro: sua condição apaixonada pela obra. Acima de tudo, acreditamos que todas as realizações artísticas correlacionam-se. Parodiamos as palavras do próprio artista como ideal para a finalização deste trabalho. Acredito que toda literatura no fundo é fantástica porque transcende os limites do real. Realmente as histórias em quadrinhos constituem um território onde as narrativas fantásticas encontram enorme potencial de expansão. (GUAZZELLI, 2010, p.79)

Afinal, é necessário ter em mente que a adaptação em quadrinhos também é uma obra per se, com seus próprios códigos e, nessa instância, com relativo direito de independência da obra que se toma por

base.

Agradecimentos aos Profs. Drs. Waldomiro Vergueiro e Nobu Chinen, pelo auxílio incessante e pela generosa possibilidade de fecharmo-nos em um casulo como possibilidade de voarmos em outros jardins.

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MAIS DO MESMO – REPRESENTAÇÕES GRÁFICAS DA MEMÓRIA E SOLIDÃO DE BENTINHO NO SÉCULO XXI CASMURROS A LOT – GRAPHICS REPRESENTATIONS OF BENTINHO’ MEMORIES Eliane Dourado

RESUMO Dom Casmurro, de Machado de Assis, recebeu várias adaptações para linguagens artísticas. Música, cinema, TV e literatura são alguns exemplos. Mas a esta pesquisa interessa a crescente adaptação do clássico machadiano para a linguagem dos quadrinhos (HQs). No lugar de uma leitura simplista, os ciúmes do protagonista ilustrados nessas publicações contribuem para o que Eisner (2010) diz sobre uma reflexão preocupada em investigar a experiência humana. Desde 2005, já são quatro adaptações que se encarregaram de ilustrar a representação das reminiscências de Bentinho, exprimindo suas angústias e seu estado de solidão. Nesse sentido, o intuito desta pesquisa é desvendar como a memória é representada na linguagem das HQs em quatro adaptações de Dom Casmurro publicadas no século XXI, evidenciando suas relações com tempo e narrativa, a fim de validar essas Graphic Novels como obras autênticas, capazes de comunicar, com propriedade, os valores do século XIX, conferindo atualidade às publicações. Palavras-chave: Literatura; Adaptação; Graphic Novel ABSTRACT Dom Casmurro’, from Machado de Assis, was adapted for many artistic languages. Music, cinema, TV and literature are some examples. But what matters to this work is the increase on adaptations from classic Machado’s work to HQ or comics language. Replacing a simplistic reading, the jealousy of the main character portrayed on these works contributes to what Eisner (2010) called a reflection that cares about investigating the human experience. Since 2005, there are four adaptations current illustrating the representation of Bentinho’s memories expressing his loneliness state. In this sense, this work’s purpose is to reveal how memory is represented on Comic language in four adaptations from Dom Casmurro published on XXI century, making clear it’s relation with time and narrative, as to validate the adaptations like authentic pieces of work, capable of communicating, with property, the values of XIX century, granting the work a fresh present tone. Keywords: Literature; Adaptation; Graphic Novel

Pensando em valores estéticos, uma obra é capaz de tornar-se eterna. Justamente um quesito como esse é que faz algumas delas insuperáveis e permanentes no imaginário das pessoas. Talvez por isso haja diálogos entre as artes no sentido de remontar um novo olhar sobre elementos artísticos consagrados. É o

que se pode perceber quando se pensa em Dom Casmurro, de Machado de Assis. O célebre romance do bruxo do Cosme Velho, mesmo se tratando de uma narrativa do século XIX, tem elevado conceito na atualidade. Com isso, o número de adaptações dessa obra para outras linguagens artísticas tem só crescido. Música, como “Capitu”, de Luiz Tatit, cinema, como o filme Dom, de Moacyr Góes, televisão, como a minissérie Capitu, de Luiz Fernando Carvalho, teatro, como Dom Casmurro, da Cia Monicreques, novela, como O bom ladrão, de Fernando Sabino, são apenas alguns exemplos que engordam essas estatísticas e confirmam a permanência desse enredo. Mas o que interessa a esta pesquisa é a crescente adaptação de Dom Casmurro para a linguagem das HQs. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016


No lugar de uma simples leitura infantil, como pensariam os leigos no assunto, os ciúmes da personagem protagonista ilustrados em Graphic Novels contribuem para o que Cirne (1970) evidencia ao mostrar que a arte dos quadrinhos não se destina apenas ao público infantil, nem que essa linguagem é apenas mais um artefato da cultura de massa. Há, sim, uma arte peculiar em que imagem e palavra fundem -se numa forma única de comunicar, capaz de formar um público cada vez mais exigente. Mais que efemeridade, essas releituras de Dom Casmurro em Graphic Novels oferecem ao leitor a possibilidade de aguçar seu imaginário no sentido de levá-lo a divagações sobre questões inerentes a ele. Enredo como esse, que revolucionou a Literatura no século XIX, tem ainda espaço na atualidade por tratar de uma das questões mais comuns condizentes ao ser humano: os ciúmes. Bento Santiago, já

velho, no intuito de (re)constituir suas memórias, constrói, no Engenho Novo, a casa de sua infância, passada na Rua de Matacavalos. Lembrar por lembrar não fazia jus à senhora a quem descreve com veemência ardilosa. Era necessário estar imerso no mesmo espaço onde tiveram início todas as delongas dos ciúmes que lhe levaram à solidão. Nesse sentido, o intuito aqui é desvendar como a memória, que se configura como tempo passado, é representada na linguagem das HQs em quatro adaptações de Dom Casmurro publicadas no século XXI, evidenciando suas relações com tempo, narrativa e imagem, a fim de validar as adaptações como obras autênticas e não como meras reproduções para adolescentes em fase escolar, como defendem alguns pesquisadores. Mais que isso, cada Graphic Novel, apesar do mesmo enredo, expõe sua originalidade. Essas adaptações são traduções do texto machadiano para a linguagem dos quadrinhos. Constituem

o mesmo Dom Casmurro sem sê-lo. São outros Casmurros que, às suas maneiras, se constroem como um novo. São mais de um mesmo. Nesse sentido, é importante lembrar que Uma adaptação pode ser entendida como uma tradução que, em vez de línguas, utiliza-se de mídias ou linguagens distintas. Isso influencia, muitas vezes, o processo de choque cultural, alterando o significado do original e requerendo a criação de uma cultura que substitua o que causa problema à adaptação. Porém, a substituição, o novo é que agrega valores diferentes à adaptação (HUTCHEON, 2011, p. 9).

Isso justifica também o número cada vez maior de adaptações de clássicos literários em Graphic Novels. O fato de obras de outros séculos ficarem esquecidas nas estantes é mais um motivo para que as editoras invistam nesse tipo de publicação, apostando no sucesso garantido que os clássicos tiveram e têm entre os leitores. Além disso, um clássico em HQs é uma aposta de levar esta leitura a públicos distintos: os fãs de quadrinhos e novos leitores dessa linguagem atraídos pela aura da narrativa clássica, que é atemporal. Com isso, o desejo de inovar os enredos permanentes, como o caso de Dom Casmurro, dá cada vez mais margem à arte desejar lançar olhares vários sobre o que deve ser cultivado na memória cultural de um povo. A partir daí, justificam-se as quatro adaptações do romance machadiano para a linguagem das HQs, que, por suas temática e extensão, são classificadas como Graphic Novels. A primeira delas é de Ruy Trindade, publicada em 2005 sob o título Dom Casmurro em quadrinhos sem cortes. O artista plástico baiano tem em seu currículo, além da grande paixão pelos quadrinhos, vários Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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trabalhos entre guaches, nanquins, óleos, incluindo o projeto de incentivo à leitura que contempla adaptações de romances inteiros para a linguagem das HQs. A publicação, feita pela Editora Bureal, é constituída de 280 páginas, ilustrações em preto e branco impressas em papel offset. Em seguida, veio a publicação da Graphic Novel Dom Casmurro por Wellington Srbek e José Aguiar. Lançada em 2011 pela Editora Nemo, a versão em quadrinhos – como foi frisado na capa – alcançou a graça do público e da crítica. São 80 páginas, impressas em papel couché, com ilustrações em preto e branco, que exprimem, numa dinâmica que contempla o casamento entre texto e imagem, a desconfiança de Bentinho por Capitu. Já em 2012, foi a vez de Felipe Greco e Mario Cau lançarem a Graphic Novel Dom Casmurro. Das

adaptações analisadas, é a mais luxuosa. São 227 páginas de narrativa, sem fôlego, dinâmica, cheia de diálogos e com interessantes recursos intertextuais ao início de cada capítulo, lembrando muito a técnica utilizada por Machado de Assis, que faz referências a textos bíblicos, filosóficos e literários em sua obra. A ilustração é feita em preto e branco, impressa em papel offset, encadernada em capa dura, a publicação foi lançada pela Editora Devir. Por fim, em 2013, Rodrigo Rosa e Ivan Jaf publicaram a Graphic Novel Dom Casmurro, pela Editora Ática. É a mais recente das adaptações em HQ do clássico machadiano, que traz 77 páginas de narrativa, com ilustração colorida e impressão em papel couché. Além disso, há algumas páginas a mais dedicadas a uma espécie de make in of, após o término do enredo, que explicam como a Graphic Novel foi produzida, destacando técnicas de composição de enredo e desenho.

Não faria sentido aqui a descrição de cada narrativa gráfica e seus pormenores em separado. Isso tornaria o trabalho enfadonho e cansativo. O interesse, então, está em desvendar como alguns aspectos foram abordados especificamente em cada Graphic Novel. Assim, questões como a representação da memória de Bentinho, a construção da personagem Capitu e as consequências desastrosas dos ciúmes do protagonista é que são alvo desta investigação. Para tal, um estudo comparativo entre as quatro Graphic Novels será apresentado no intuito de evidenciar como cada uma delas pôde (re)contar a história machadiana, agregando algo novo, inusitado, que a narrativa original não havia ainda proporcionado. Com isso, os pressupostos de Eisner (2010), McCloud (2005) e Ricoeur (2012) servirão de base para as análises deste estudo.

Recordatórios – memória e reflexões em imagens Para entender as reminiscências de Bentinho, é necessário primeiro saber como se constitui a memória. Por sua vez, esta, inevitavelmente, encontra-se ligada ao tempo que necessita, de alguma maneira, ser medido. A (im)possibilidade de medi-lo é que faz da memória uma reflexão interessante, do ponto de vista da linguagem. Dessa forma, explicar o que é ou não é o tempo e perceber como ele pode ser representado em imagens é o que configura o novo, nas Graphic Novels adaptadas do romance machadiano, no que parece familiar do enredo em questão. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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A partir das reflexões de Santo Agostinho, Ricoeur (2012) faz uma análise coerente sobre as aporias do tempo, no intuito de explicar o que ele é e representa. Nesse sentido, entre várias impossibilidades – como medir ou explicar exatamente o que é a eternidade –, por meio de raciocínio lógico, o filósofo dá a ideia de passado figurado na memória e a de futuro, na expectativa. O legado sobre o futuro não se faz importante nesta análise, mas o que se diz sobre o passado é que importa para a representação gráfica da memória de Bentinho nas narrativas em questão. As quatro Graphic Novels analisadas nesta pesquisa têm modos específicos de transpor para imagens a construção dessa memória. Mais que simplesmente ilustrar, a linguagem das HQs é responsável pela dinâmica dada ao clássico enredo machadiano em cada narrativa. Em atitudes reflexivas ou de ação,

traduzidas apenas no ato de escritura, Bentinho se mostra aflito e ansioso ao decidir contar a história de suas reminiscências. Da mais simples a mais complexa, as quatro representações do protagonista conduzem o leitor ao enigma Capitu. Para Ruy Trindade, que resguarda o texto original, há apenas a representação de Bentinho em atitude de reflexão ou mesmo dialogando com o leitor, como é feitio de Machado de Assis. Ora de pena na mão, ora de mão no queixo, o protagonista recria seu passado, que se traduz em requadros de sua memória numa sequência lógica de eventos, que é quebrada apenas quando essa narrativa é interrompida para que, no presente, o narrador possa fazer suas reflexões sobre a matéria narrada, como se pode ver na Figura 01.

Figura 01 – Trindade, p. 401

É importante lembrar que há certo interesse em mostrar algumas vezes como se configuram as reflexões do narrador. Isso se dá como um acesso à imagem mental que Bentinho tem de suas reflexões. Uma das poucas representações gráficas do presente da narrativa, e bem óbvias, mas não menos humorada dessa Graphic Novel – já que esse é um recurso bem comum a Machado de Assis e à linguagem das HQs – , diz respeito ao diálogo que o narrador trava com os vermes que roem os livros. Aqui, em vez de simplesmente colocar Bentinho em atitude de reflexão, os desenhos se preocupam mais em materializar as ideias do narrador no presente da narrativa. 1

Todas as figuras dispostas aqui estão publicadas nas quatro adaptações de Dom Casmurro, de Machado de Assis, para a linguagem dos quadrinhos e encontram-se devidamente referendadas nas Referências bibliográficas desta pesquisa.

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O rosto assustado do narrador e a cara moleca do verme petulante (Figura 01), que lhe dá explicações sobre roeduras, são responsáveis pelo humor da cena, que só poderia se configurar nas mentes de Bentinho e do leitor. A narrativa gráfica, neste caso, dá ao leitor uma possibilidade de acesso à imaginação do narrador pela representação física do pensamento, da reflexão. O que mais se passa na mente do personagem diz respeito a seu passado e é retomado com a linearidade das lembranças do narrador nos requadros que se seguem. Como afirmou Ricoeur (2012), o passado só pode se materializar no presente por meio da linguagem – isso se dá com a narrativa da memória. E os requadros de Trindade (2005) remontam isso, alternando a figura de Bentinho no presente – já velho, de cavanhaque opulento – e no passado, com a

narrativa linear de suas reminiscências com Capitu. É importante frisar que essa linearidade a todo tempo é quebrada nesta Graphic Novel, pelo fato de ter sido adaptada exatamente como propõe o texto original que alterna o tempo presente, com as reflexões do narrador, e o tempo passado, com a figuração de suas lembranças. Essa complexidade narrativa de representar presente, passado e reflexões em imagens é responsável por agregar novos valores ao enredo do século XIX, tornando-o atrativo ao leitor do século XXI. A esse respeito, Eisner (2010) afirma que o quadrinho em si pode ser usado como parte da linguagem não verbal da arte sequencial, privilegiando, assim, uma nova maneira de enxergar o fato narrado. Em vez de tolher a criatividade do leitor, os requadros darão a ele uma possibilidade a mais do que o texto original lhe permite imaginar.

A esse propósito, em Srbek & Aguiar (2011), apenas 11 requadros, nas 80 páginas, mostram Bentinho no presente. Isso acaba por deixar a narrativa mais dinâmica e linear: são muitos balões de diálogos que dão mais velocidade ao enredo. Os recordatórios – termo utilizado para designar as caixas de texto que acompanham os quadrinhos, funcionando como uma espécie de legenda – têm a função de evidenciar a memória de Bentinho no tempo presente, que é o momento da narrativa. Nesse caso, os desenhos em sua maioria representam o que o personagem vê em suas lembranças. Poucos são os recursos que expressam, em imagens, as reflexões do narrador nessa obra. Há apenas um requadro que denota essa ideia de reflexão no tempo presente: é o que está à página 41, demostrado na Figura 02. As rugas na testa e a mão no queixo apontam para o ato de perscrutar sobre as mortes de Otelo e Desdêmona. Nesse sentido a personagem se vê brincando com uma maquete de um castelo, onde bonecos

representam a discussão entre os protagonistas de Shakespeare, ao passo que Iago, o traidor da trama, escondido no castelo, espreita os dois.

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Figura 02 – Srbek & Aguiar, p. 41

É perceptível a ausência de moldura no requadro. Para Eisner (2010), o ato de enquadrar ou emoldurar a ação não só define seu perímetro, mas estabelece a posição do leitor em relação à cena e pode indicar a duração do evento, que neste caso é o tempo presente, exprimindo a percepção que o leitor tem da materialização da memória de Bentinho. Colocar os indivíduos como bonecos, fantoches, denota a

possibilidade de materialização do desejo da personagem em resolver de forma simplista seu impasse. A ausência da moldura no requadro, então, dá ideia de uma maior duração da cena, evidenciando a crescente angústia de Bentinho e o tempo que dedica a suas reflexões. Isso fica perceptível ao leitor no sentido em que as linhas de expressão dão ao rosto da personagem a tônica da melancolia e da tristeza. Além disso, o fato dele tocar o castelo, como quem deseja controlar as peças de um jogo, transparece seus pensamentos em relação à Capitu – ideia que fica subentendida nas entrelinhas dos balões e das hachuras, que sempre aparecem para representar o tempo presente da narrativa dessa publicação. Sobre isso, Srbek & Aguiar (2011) demarcaram bem a narrativa. O presente é sempre hachurado, ao passo que as memórias são representadas, em sua maioria, por desenhos limpos numa sucessão cronológica de eventos. Talvez o contrário fosse mais coerente, mas afetaria a ideia de um presente

malogrado, penalizado pela paga da solidão e da melancolia de Bentinho. Com isso, o que resta a ele é lembrar-se de Capitu para saber se a mulher da praia da Glória já estava dentro da menina de Matacavalos, mesmo que essa conclusão não lhe levasse a lugar algum. Coisa semelhante ocorre em Greco & Cau (2012). Porém, há peculiaridades. O tempo presente nessa narrativa é sempre marcado pela escuridão. Essa solução apresentou uma coerência pertinente com a angústia de Bentinho expressa no enredo. Seu olhar vago e suas rugas na testa, em desenhos que mais se parecem com pinturas aquareladas, indicam, além de sua velhice, a pena, o ônus a que ele mesmo se submetera, como se percebe logo no início da Graphic Novel, estampados na Figura 03. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Figura 03 – Greco & Cau, p. 11

A construção do cenário nos requadros do presente da narrativa é bem cuidada, no intuito de que o leitor entenda a passagem do tempo presente que oferece ao protagonista muito pouco: cama, leitura, boa comida, solidão e a necessidade de re(vi)ver Capitu. Sem a possibilidade física de que isso pudesse concretizar-se, lembrar e registrar em letras essas memórias seria a ele o alento que poderia ajudá-lo a amenizar o peso de sua solidão, anunciada logo no início da Graphic Novel.

Um fato curioso em Greco & Cau (2012) é que há desejo expresso em marcar o tempo presente como noite. A vela sobre a mesa e o negro ao fundo expressam isso com categoria (Figura 03). Ademais, a velhice de Bentinho é escondida pela escuridão. Mesmo quando ele é representado de frente, suas feições não são bem demarcadas, evidenciando seus atos reclusos. Na abertura da Graphic Novel, sua testa enrugada transparece também sua fragilidade. O esconder-se de Bentinho exprime seu desejo de fuga de si mesmo, ao não se conformar com seu destino escuro e solitário. Sobre a demarcação da noite como o presente da narrativa, é curioso pensar nas definições de Ricoeur (2012) acerca do tempo. Para ele, a impossibilidade de medi-lo traduz-se na ideia de sua não existência, pois o tempo não tem ser, já que o futuro ainda não é, o passado já não é, e o presente não permanece. Mas essa materialidade medida se transparece na demarcação do tempo presente em Greco &

Cau (2012), uma vez que o momento de escritura de Bentinho é mostrado no requadro como noite, tendo início às 22h35 estampados no relógio (Figura 03). Apesar disso, não se sabe ao certo quantas noites Bentinho levou para escrever suas memórias, já que suas lembranças mais recentes, que poderiam ser entendidas como seu presente há pouco passado, como a referência de sua ida ao teatro e a companhia de suas amigas recentes, também são representadas pelo mesmo recurso que marca o presente da narrativa: a escuridão. Se, de acordo com os postulados de Ricoeur (2012), esse passado recente representar o presente, é possível pensar na duração de uma noite para as lembranças do narrador. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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De qualquer forma essa ideia não se faz absurda, visto que Greco & Cau (2012) colocam Bentinho, ao final da Graphic Novel, a caminhar pelas ruas do Rio de Janeiro, com a lua já próxima à linha do horizonte, exprimindo a nuance de uma madrugada. Talvez ele tenha passado a noite escrevendo ou mesmo passado mais de uma noite registrando suas memórias. Esse fato só confirma o pressuposto de Ricoeur (2012) da impossibilidade de mensurar o tempo, mesmo que ele seja ficcionalizado. No entanto, não é leviano afirmar que a duração da narrativa de suas memórias corresponde ao tempo gasto na leitura. Mas, do ponto de vista da representação ilustrativa das reflexões do narrador, Rosa & Jaf (2013) levam vantagem, pois apresentam de forma bem peculiar o que se passa no pensamento de Bentinho no tempo presente. Há aqui uma criatividade em relação às demais adaptações, visto que é importante mostrar

que se trata de uma Graphic Novel de memórias e que, neste caso, os desenhos preocupam-se em dar forma, materialidade não só ao passado, mas também às reflexões feitas no presente sobre o passado narrado. Para Rosa & Jaf (2013), que têm a seu favor as cores, os recursos foram expandidos. Por vezes, misturam o presente e o passado em um mesmo requadro. Há também o cuidado de demarcar o presente com cores diferentes das cores do passado, que é a representação de suas memórias, deixando, algumas vezes, Bentinho velho, em tons lúgubres, sentado a uma poltrona ou em pé assistindo a alguma cena de suas reminiscências, sempre representadas em tons de sépia. Isso fica claro logo no início da Graphic Novel, quando são mostradas as mãos de Bentinho, em tons acinzentados, escrevendo suas lembranças. Mas o que parece mais interessante nessa publicação é a

maneira com que os autores se utilizaram de recursos inusitados para a representação de algumas reflexões do protagonista, como, por exemplo, a justificativa da reconstrução da casa de sua infância em Matacavalos no seu presente, como se pode perceber na Figura 04.

Figura 04 – Rosa & Jaf, p. 06

A ideia de espelhamento que coloca as duas casas uma ao lado da outra é perfeita para indicar a quebra da linearidade narrativa que é, a todo tempo, explorada pelas reflexões de Bentinho no seu presente de velhice. A casa de mesma estrutura, em vez de um menino a sua frente e três viúvos na varanda, apresenta um homem maduro, sisudo com um calhamaço de papel a tiracolo. Há neste caso uma referência à metalinguagem, visto que o menino é o homem que escreve suas memórias, representado em tons lúgubres, diferenciando-se dos desenhos em sépia, que representam o passado, distinguindo-o do presente. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Há ainda outro recurso em Rosa & Jaf (2013) que exprime a materialização do pensamento de Bentinho no presente, e deixam os autores dessa Graphic Novel em vantagem comparados aos demais, pois ganham em dinâmica, uma vez que esses traçados só poderiam ser imaginados pelo leitor. No entanto, eles podem ser acessados graças à materialidade das linhas da ilustração. Mais uma vez, a ideia de prolongamento do instante presente se dá com a utilização de uma página cheia, sangrando a imagem. É o que ocorre na sequência apresentada na Figura 05 que se conclui com o primeiro beijo dos adolescentes.

Figura 05 – Rosa & Jaf, p. 20

Em primeiro plano, aparece Bentinho no presente, de pena na mão, num ato de quem escreve, refletindo sobre os olhos de sua amiga, lembrando-lhes no passado, que é arrolado na sequência de imagens mostrando o protagonista em afogamento na vaga dos olhos de ressaca de Capitu. Essa definição exprime nas imagens o desespero de quem não é dono de si e precisa se agarrar ao nariz, à boca e aos cabelos da amada, buscando apoio. Esse recurso denota bem a ideia de Ricoeur (2012) das possibilidades de inserir, no presente, o passado. Isso ocorre aqui por meio da exploração das imagens que mostram Bentinho tragado pela ressaca dos olhos de Capitu. Como transição de cena, e consequentemente do tempo, Bentinho deixa as reflexões e se debruça novamente em suas memórias. Daí a necessidade de delimitação de tempo expressa pela utilização do requadro. Isso ocorre quando o protagonista deseja pentear os cabelos de sua amiga. Segundo McCloud (2005), os quadrinhos se utilizam de alguns tipos específicos de transição, a fim de despertar no leitor diferentes conclusões que se pode esperar de um leitor. Nesse caso, a sequência se utiliza de quatro deles especificamente. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Do último requadro da página 20 para o primeiro da página 21, há exploração de transição intitulada, segundo McCloud (2005), ação-pra-ação. Capitu entrega o pente a Bentinho e, na sequência, ele penteia-lhe os cabelos. Em seguida, observa-se a transição cena a cena, pois há um retorno abrupto ao presente da narrativa em que Bentinho aparece, já velho, escrevendo e se imaginando coberto pelas tranças de Capitu. Daí para frente, a transição passa a ser de aspecto-pra-aspecto, visto que há a exploração da ideia de materialização da reflexão. O fato de Bentinho jovem e velho serem representados num mesmo instante, montados no pente que desliza sobre a trança de Capitu, exprime mais uma vez a impossibilidade, levantada por Ricoeur (2012), de mensurar o tempo, visto que essa imagem aparece livre de requadros, sangrando a página, ou

seja, ultrapassando seus limites e se fundindo com a última imagem da sequência final, que expressa, numa transição momento a momento, a cena do primeiro beijo entre eles. A fusão das duas imagens – velhice e juventude – transfigura a ideia de perpetuação dos dois momentos na mente do narrador. É como se ele não pudesse desprender-se das emoções que esses eventos lhe causaram e continuam a lhe causar em seu presente. Nesse caso, é impossível precisar quanto tempo Bentinho ficou visualizando, em sua mente, essa cena. Os recursos escolhidos pelos autores dão a noção do peso e da significância que têm esses momentos que se fixaram na mente do narrador. Até mesmo as cores dos personagens que representam a cena foram alteradas: Bento e Capitu aparecem ruborizados. Essa é uma tradução para a intensidade que o momento propõe. O torpor que envolve a emoção do primeiro beijo é capaz de levar a cena para o presente, como se o beijo estivesse

acontecendo no momento da narrativa e não expressasse somente uma lembrança e, sim, um fato. Isso pode ser inferido dado o abandono dos tons sépia nessa cena. Com isso é possível perceber que as quatro Graphic Novels, apesar de apresentarem o mesmo enredo, são constituídas a partir de diferentes recursos gráficos que determinam sua velocidade. Delas, a que mais se preocupa em apresentar Bentinho no presente tende a deixar a narrativa mais lenta, ao passo que, a que se foca no enredo, denota uma lembrança mais fugaz. Em aspectos diferentes, cada publicação tem suas graça e peculiaridade, proporcionando ao leitor possibilidades diferentes de acesso às memórias e reflexões de Bentinho. Os desenhos hachurados de Trindade (2005) algumas vezes transparecem descuido com a imagem, mas isso não passa do estilo underground eleito pelo autor. Para ele, o presente da narrativa é representado

em sua grande maioria pela exploração de diversas posições de Bentinho velho escrevendo suas memórias. É o ato da lembrança. A maioria de suas transições são o que McCloud (2005) classifica como momento a momento, muitas vezes prolongando um instante, simplesmente repetindo a mesma imagem em posições diferentes e exprimindo maior duração narrativa, como se percebe na Figura 06.

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Figura 06 – Trindade, p. 90

Esse recurso nada mais é que o prolongamento da duração da narrativa, visto que nesse caso ela ilustra o texto original. Assim, justificam-se as 280 páginas da Graphic Novel que, com a exploração massiva da transição de momento a momento, dão ideia de permanência de certos eventos lembrados na memória do narrador. Apesar do estilo underground, destaca-se a construção do narrador-personagem que tem suas fases da vida bem demarcadas: a infância de cabelos escorridos sobre a testa, a vida adulta ditada pelo bigode e a velhice pelo uso dos óculos e do cavanhaque opulento. Num contraponto interessante, Srbek & Aguiar (2011) têm a narrativa mais veloz. Isso não se dá somente pelo número de páginas, já que Rosa & Jaf (2013) têm quantidade semelhante, mas pelos recursos utilizados, como as transições momento a momento e cena a cena. Para McCloud (2005), esse primeiro recurso exige pouquíssima conclusão, ou seja, o entendimento da relação existente entre os requadros, promovido pela presença da sarjeta, que é o espaço em branco existente entre as molduras. Já o segundo exige um pouco mais de interpretação do leitor. Talvez, por explorar pouco a ideia do narrador no presente, Srbek & Aguiar (2011) se detiveram ao passado, que se configura como a memória de Bentinho, na tentativa de tornar a narrativa mais linear possível. Ela em si é leve, clara, objetiva. Traz em sua concisão a essência da obra machadiana, sem desprivilegiá-la. A construção imagética das personagens é muito bem cuidada. Não há confusão entre elas. Os diálogos e recordatórios são ilustrados em imagens dinâmicas que se preocupam em traduzir bem os signos do século XIX, como roupas, penteados e costumes. A ilustração é impactante, açula o leitor com requadros imponentes e bem desenhados.

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Essa linearidade, em partes, também foi o foco de Greco & Cau (2012). Porém, aqui ela é contemplada com a exploração da riqueza de detalhes. Há nessa Graphic Novel a preocupação expressa com um dado proposto pelo romance machadiano que é a casualidade das semelhanças. Sancha por vezes se confunde com Capitu e Escobar difere-se de Bentinho pelo uso de uma barba. Os traços, em alguns momentos, lembram o estilo mangá, que traz grande semelhança entre suas personagens. São as minúcias dos detalhes que se encarregam de distingui-las. A narrativa em si é cheia de diálogos, dando dinamicidade ao texto, apesar de suas 227 páginas. Ela é dividida em capítulos que trazem epígrafes de clássicos da Literatura. William Shakespeare, Marcel Proust, Caio Fernando Abreu, Arthur Rimbaud e Clarice Lispector anunciam as fases da vida de Bentinho

até o início de sua solidão. Apesar de ser de escolha dos autores da Graphic Novel, esse recurso é uma referência expressa à intertextualidade machadiana, que se configurou como uma de suas marcas, e nisso essa narrativa se destaca em relação às demais. Além disso, essa é a única Graphic Novel das analisadas que traz um prefácio escrito pelo Prof. Dr. Paulo Ramos, que, além de ser jornalista, é professor do Departamento de Letras da USP e nome importante da atualidade na pesquisa da produção de quadrinhos no Brasil e no exterior. Em seus apontamentos, Ramos, apud Greco & Cau (2012), destaca a validade da adaptação como um exercício de reconstrução do dito e consagrado por Machado de Assis. Ele ainda coloca em evidência a autonomia da obra ao revelar recursos possíveis apenas em uma leitura verbo-visual. Mas a Graphic Novel que mais explora os recursos que as HQs podem oferecer na criação,

sobretudo nesse caso de transposição de um clássico da Literatura Brasileira para outra linguagem, trata-se da adaptação de Rosa & Jaf (2013). Apesar de as personagens não terem a mesma beleza que as demais publicações sugerem, o que coloca essa narrativa em expoente é a forma com que seus autores encontraram para materializar as reflexões de Bentinho. Mesmo com a complexidade narrativa sempre entrecortada por presente e passado, as imagens em Rosa & Jaf (2013) permitem ao leitor invadir o pensamento de Bentinho não apenas para ver suas memórias, que se traduzem no enredo linear de seu passado, trazido para o presente por meio da linguagem verbo-visual, mas, também, pela materialização de pensamentos absurdos do narrador, evocados no presente acerca do passado, como conversar com um verme, nadar nos olhos de Capitu ou cavalgar em suas tranças.

Essas reflexões só confirmam as ideias de Ricoeur (2012) sobre a memória. Ela constitui-se pelo acesso do tempo passado por meio da linguagem, que, neste caso, privilegia também a imagem. Para ele, o tempo passado só pode adentrar o presente materializado pela linguagem, figurado em uma narrativa que, neste caso, é contemplada pela visualidade. Reviver, por meio da lembrança, está intimamente ligado ao espaço vinculado à ação. Daí a necessidade de Bentinho de reconstruir a casa da infância na vida adulta. Isso lhe facilitaria a memória que precisava construir. Os olhares vários sobre um mesmo ato narrado é que possibilitaram a construção dessas quatro Graphic Novels. Cada qual, a seu modo, lançou seu olhar sobre as reminiscências de Bentinho, oferecendo Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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ao leitor as nuances dos olhos de cigana oblíqua e dissimulada de sua amiga. Sem desmerecer a narrativa machadiana, quatro mulheres foram (re)criadas a fim de apresentar ao leitor o que eram os olhos de Capitu, que tanto incomodaram o narrador e intrigam o leitor, solidificando sua dúvida. Casmurros do século XXI A partir das reflexões acerca da transposição do clássico enredo machadiano para a linguagem dos quadrinhos, é possível perceber então que a adaptação constitui-se em sua própria originalidade, exprimindo recursos que o texto original não dispõe, e por isso não deve ser julgada negativamente por seu

menor tamanho. É preciso antes saber se, dentro de uma perspectiva semiótica, há relação de correspondência válida entre o original e o texto adaptado, como polos que compõem uma metáfora. O sucesso do enredo machadiano, pela dúvida constante que levanta, emite reflexos na atualidade, motivando os autores das quatro Graphic Novels a mostrar Capitu nas reminiscências de Bentinho aos leitores. Dizer o mesmo como outro é que constitui a originalidade de cada uma das adaptações analisadas nesta pesquisa. Os recursos selecionados por cada autor, ora primando pela velocidade, ora pela demora, apresentam ao leitor possibilidades várias de compreender os ciúmes de Bentinho. A narrativa gráfica dá ao enredo machadiano o floreio capaz de ligá-lo aos leitores do século XXI, sem que isso lhes pareça um menosprezo ao texto original. Cada narrativa, a seu modo, comunica os impropérios dos ciúmes de Bentinho, evidenciando possibilidades de olhares vários sobre a mesma

matéria. O cuidado de cada autor se dá no sentido de proporcionar ao leitor uma identificação com o fato narrado, fazendo-lhe perceber que o enredo lida com algo que lhe é muito comum: os ciúmes. Por vezes, sarcástico ou complacente, Bentinho se mostra a seu leitor angustiado por não poder reviver seus amores com sua amiga. Sua velhice, velada em Grego e Cau (2012) e exposta nos demais autores, é a representação da impossibilidade da vida feliz, visto que seus ciúmes lhe legaram a solidão. O medo, a insegurança de perder Capitu lhe renderam tristeza e melancolia no presente, que, nas narrativas analisadas, têm representações inteligentes e peculiares. Sentado diante de seus escritos ou assistindo à sua vida como num filme, o narrador apresenta a seu leitor um tratado sobre os ciúmes. E o que são os ciúmes senão um dos mais seculares sentimentos humanos? Daí a justificativa de tantas adaptações no século XXI do enredo machadiano que se mostra de temática atemporal. As quatro

Graphic Novels analisadas aqui traduzem, para uma linguagem dinâmica, privilegiando a visualidade, o que Cirne (1970) afirmou sobre quadrinhos como publicações infantis: as experiências do protagonista serão melhores alcançadas por um público leitor mais exigente, que busca em narrativas como essas uma identificação entre ficção e realidade, que tem servido a tantas outras Graphic Novels publicadas neste século, incluindo as que são adaptadas de clássicos da Literatura. Nessas quatro representações gráficas, Bentinho apresenta a seus leitores o que os seus ciúmes lhe renderam. Ironicamente, pensando num recurso machadiano, pode-se pensar no sucesso das releituras. O gravame, ou seja, o ônus, a paga que eles renderam ao narrador foi uma multiplicidade de representações Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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possíveis para suas memórias que se permitiram ser acessadas pelo leitor, presenteando-o com possibilidades várias da percepção de um enredo canônico que permite a reflexão sobre um sentimento comum entre os seres viventes: os ciúmes. Com isso, as quatro Graphic Novels analisadas nesta pesquisa representam mais do mesmo: várias possibilidades de enxergar o enredo canônico machadiano, considerando elementos importantes ao século XXI, como a imagem que, aliada ao discurso verbal, é capaz de tornar outro, o mesmo; novo, o velho e clássico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICAS ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Disponível em www.dominiopublico.gov.br. Acesso em 01.06.2013. _____________. Dom Casmurro em quadrinhos sem cortes. Adap. TRINDADE, Ruy. Salvador: Bureal, 2005. _____________. Dom Casmurro. Adap. SRBEK, Wellington & AGUIAR, José. Belo Horizonte: Nemo, 2011. _____________. Dom Casmurro. Adap. GRECO, Felipe & CAU, Mario. São Paulo: Devir, 2012. _____________. Dom Casmurro. Adap. ROSA, Rodrigo & JAF, Ivan. São Paulo: Ática, 2013. CIRNE, Moacy. A explosão criativa dos quadrinhos. 3. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1970. EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. Trad. Luiz Borges e Alexandre Boige. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução de: André Cechinel. Florianópolis: Ed. UFSC, 2011. McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. Trad. Helcio de Carvalho. São Paulo: M.Books, 2005. RICOIEUR, Paul. “As aporias da experiência do tempo”. Tempo e Narrativa. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

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POR QUE (NÃO) TRABALHAR ADAPTAÇÕES LITERÁRIAS EM QUADRINHOS EM SALA DE AULA? ¿POR QUE (NO) TRABAJAR ADAPTACIONES LITERARIAS A HISTORIETAS EN CLASES? Francielle de Queiroz Zurdo Universidade Federal de São Paulo

RESUMO Este artigo tem o objetivo de apresentar os resultados de uma pesquisa sobre a recepção de leitura de adaptações literárias em quadrinhos por parte de educandos das séries finais da Educação Básica, ou seja, 9º ano do Ensino Fundamental II e 3º ano do Ensino Médio. A pesquisa foi realizada numa Escola Estadual da cidade de Guarulhos, em São Paulo e apresentou que mais da metade dos leitores procurariam outra adaptação literária em quadrinhos após a leitura de duas obras, “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, e “Sonho de uma Noite de Verão”, de William Shakespeare. Palavras-chave: Quadrinhos; adaptações literárias; educando RESUMEN Este artículo se propone a presentar los resultados de una pesquisa acerca de la recepción de lectura de adaptaciones literarias en historietas por parte de los educandos de los años finales de la Educación Básica, es decir, del 9º año de la y del 3º año de la Enseñanza Media. Se realizó el estudio en una Escuela Estadual de la ciudad de Guarulhos, en São Paulo y se presentó que más de la mitad de los lectores buscarían otra adaptación literaria en historietas seguido de la lectura de dos obras, “Dom Casmurro”, de Machado de Assis y, “Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare. Keywords: Historietas; adaptaciones literarias; educando

CONVERSA INICIAL Começamos este artigo com algo que pode ser considerada uma das maiores inquietações na esfera da Educação no Brasil hoje, a leitura. Esta última é compreendida, muitas vezes, como um dos temas discutidos no que se refere a maior parte das escolas. No entanto, o que estamos habituados a ouvir, por parte de alguns pais e professores, é que os “educandos não leem”, ou que “não têm interesse algum pela leitura”, “que leem coisas apenas para

‘passar o tempo’”, etc. Mas será que isso realmente ocorre desta maneira? Se o tema da leitura já se apresenta como polêmico no que diz respeito à literatura e aos mais diversos tipos de texto, como seria entendida, então, a leitura de adaptações literárias em quadrinhos? E, ainda, qual seria o lugar ocupado por esse gênero nas escolas? Essas são algumas das indagações que almejamos responder ao longo deste artigo, sob a perspectiva que os educandos têm sobre as adaptações literárias em quadrinhos. Dessa maneira, sabemos que não é segredo que as escolas mantêm, em grande escala, um discurso que privilegia a leitura dos clássicos da literatura no ensino básico e médio. Melhor dito, há, ainda hoje uma tendência já apontada há anos por Todorov: Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016


existe um perigo na forma como a literatura tem sido oferecida aos jovens, desde a escola primária ate a faculdade: o perigo está no fato de que, por uma estranha inversão, o estudante não entra em contato com a literatura mediante a leitura dos textos literários propriamente ditos, mas com alguma forma de crítica, teoria ou de história literária. Isto é, seu acesso à literatura é mediado ela forma disciplinar e institucional. Para esse jovem, literatura passa a ser então muito mais uma matéria escolar a ser aprendida em sua periodização do que um agente de conhecimento sobre o mundo, os homens, as paixões, enfim, sobre sua vida íntima e pessoal. (TODOROV, 2009, p. 10)

No entanto, o que tem sido muito comum na voz desses enunciadores é que as obras literárias clássicas são “difíceis” e que seria preferível tornar a linguagem desses textos mais “simples” para que os educandos pudessem ler, por exemplo, com as adaptações literárias das obras consideradas como clássicas.

É provável que parte dos professores tenha esse ponto de vista, como afirma Cecília Correia Sampaio em texto escrito por Ramos (2012), que os quadrinhos, do ponto de vista do governo, são vistos como uma ferramenta mais atraente para estimular a leitura. ‘O papel apelo visual, a figura, é algo que atrai demais a criança, é uma forma de ela se interessar para a leitura por um outro formato’, diz Cecília Correia Sampaio, coordenadora substituta do departamento de seleção de obras do PNBE. (RAMOS, 2012, p. 225)

Para isso, e com a finalidade de democratizar o acesso ao livro e à leitura, em 1997 foi criado o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) e, embora o programa exista desde 1997, como bem apontam Vergueiro e Ramos (2009), “somente dez anos depois de iniciado, passou a adquirir quadrinhos para distribuir às instituições de ensino”. (VERGUEIRO; RAMOS; FIGUEIRA, 2009, p. 29). A partir de 2006, as adaptações literárias em quadrinhos tomaram grande espaço nas salas de leitura, mas ficam, por vezes, nas prateleiras e empacotados. Não é à toa que basta passarmos a frequentar essas salas de leituras que vamos notar a grande quantidade dos best-sellers que estão nas prateleiras frontais, como um convite à leitura. Por que isso não ocorre com as adaptações? Enquanto isso, em muitas escolas, por ser considerado um gênero menor, os quadrinhos e, consequentemente, as adaptações literárias quadrinizadas, ficam, por vezes, nos plásticos, como se fossem, de certa maneira, suprimido, vetado, censurado ou desautorizado. No entanto, houve também outro agravante: se por um lado o PBNE passou a ser entendido como estímulo para a edição de obras em quadrinhos, por outro, foi entendido como um catalisador pelo mercado editorial, ou seja, passou-se a produzir demasiadamente obras em quadrinhos. Ramos atenta para o fato de que, “no início do século, viam-se mais de 30 produções do gênero no final da década. Mesmo editoras sem nenhuma tradição com quadrinhos passaram a apostar no filão”. (VERGUEIRO; RAMOS; FIGUEIRA, 2014, p. 29). Foi o momento em que as adaptações literárias em quadrinhos atingiram seu ápice no mercado editorial. Mas, como bem afirmam Vergueiro, Ramos e Figueira, “o PNBE passou a servir de incentivo para a edição de obras em quadrinhos, notadamente aquelas que têm um forte potencial para serem adotadas pelo programa”. (VERGUEIRO; RAMOS; FIGUEIRA, 2014, p. 29).

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O que muitos profissionais da educação não conseguem refletir é que essas adaptações “potencializam a capacidade de significação do verbal e do não-verbal, até porque relacionam características artísticas básicas de cada uma dessas linguagens, transformadas em uma só linguagem no âmbito dos quadrinhos”. (PINA, 2012, p. 65). É discutível que, para muitos professores, quadrinhos, ainda hoje, sejam vistos como gibis ou como gêneros entendidos tão pura e somente, como entretenimento. Acrescenta a autora que as adaptações de obras literárias promovem, sim, certa condução do ato de ler, por concretizarem, no papel impresso, uma leitura já feita. Mas, também, permitem que os leitores, que ainda não têm um grande repertório a ser posto em ação no ato da leitura, se identifiquem mais intensamente com as personagens e suas ações, com a trama e suas ideias. (PINA, 2012, p. 92)

Parece-nos, pensando no educando, que a escola menospreza o fato de que eles já são leitores de textos verbais e não-verbais, como bem afirma Pina (2012), “que a escola pensa que basta ter livros e ensinar técnicas de leitura para formar leitores”. Quando, na verdade, parte dos professores não está preparada “para trabalhar com essas múltiplas textualidades, o que os leva a entender que as mesmas habilidades podem servir para ler qualquer texto e que os sujeitos já nascem com elas”. (PINA, 2012, p. 12) Pensando que os quadrinhos tendem a ser compreendidos como apenas entretenimento e que a inserção de adaptações literárias em quadrinhos em programas governamentais de fomento à leitura ou de composição de acervos de bibliotecas escolares ocorreu de maneira significativa no Brasil a partir de 2006

(VERGUEIRO; RAMOS; FIGUEIRA, 2014, p. 6), este artigo tem por objetivo apresentar os resultados de uma pesquisa acerca da recepção de leitura de adaptações literárias em quadrinhos e mostrar o ponto de vista por parte dos educandos das series finais do ensino básico e médio, ou seja, 9º ano do Ensino Fundamental II e 3º ano do Ensino Médio. Ou dito em outros termos, o que será que pensam os educandos? QUEM? ONDE? POR QUÊ? PARA QUÊ? Conforme já explicitamos no início deste artigo, a pesquisa foi realizada na região de Guarulhos com educandos dos anos finais do Ensino Fundamental, 9º ano, e do Ensino Médio, 3º ano, numa escola estadual, a fim de eles pudessem contribuir com um ponto de vista sobre as adaptações literárias em quadrinhos. Desse modo, a pesquisa foi realizada em cinco etapas. A primeira compreendeu a visita e apresentação do projeto à direção da escola e, após a aceitação, partimos para a segunda etapa. Nosso segundo passo foi o primeiro contato com os educandos, ou seja, visitamos as salas de aula dos 9º e dos 3º anos, explicamos brevemente o projeto, e perguntamos se alguém estava interessado em participar. Nosso recorte era de dez participantes de cada série, totalizando 20 educandos. Pedimos permissão para a saída desses alunos e os levamos até a sala de leitura para que conseguíssemos explicar, mais detalhadamente, o que eles fariam. Marcamos uma data para iniciarmos a Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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terceira parte de nosso estudo, isto é, a aplicação de um questionário pré-leitura, que tinha o intuito de delinear um perfil leitor desses participantes. Entre as questões estavam algumas como informações pessoais, ou seja, nome, idade, sexo, gostos e predileções de leitura, lugares onde costumam ler, etc. Depois desse primeiro conhecimento sobre os educandos participantes da pesquisa, propusemos a quarta etapa da investigação, ou seja, a leitura de duas adaptações literárias em quadrinhos: para o 9º ano, a obra escolhida foi “Sonho de uma Noite de Verão”, de William Shakespeare, adaptada por Lillo Parra e Wanderson de Souza e, para o 3º ano, “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, adaptada por Ivan Jaf e Rodrigo Rosa.

Imagem 1 – Capa da obra em quadrinhos

Imagem 2 – Capa da obra em quadrinhos

Vale lembrar que em dos prerrequisitos para que os educandos participassem da pesquisa era que não tivessem lido a obra literária na íntegra. Pensamos nisso na intenção de que uma obra não influenciasse, a priori, na leitura da adaptação literária em quadrinhos. Ao término dos questionários de pré-leitura, cada um recebeu uma obra para a leitura individual. Esse mesmo procedimento foi realizado com os dois grupos, tanto no 9º como no 3º ano. Seguidamente à leitura, entregamos o questionário pós-leitura, que compreendia a quinta etapa com os participantes deste estudo. Nesse último passo, a ideia era tabular algumas questões próprias de

interpretação e saber a impressão que esses educandos tiveram ao ler uma adaptação literária em quadrinhos. Após esses cinco passos, tabulamos os dados que vamos apresentar neste estudo. O PONTO DE VISTA DO EDUCANDO Não há como afirmarmos, neste estudo, o que os professores opinam sobre as adaptações literárias em quadrinhos, mas sabemos que, apesar de os quadrinhos serem bem-vindos no acervo das bibliotecas das escolas, parece, ainda, não haver um uso significativo para os educandos por parte dos professores. Mas vamos poder responder, com um universo de 20 educandos, qual é o parecer que eles têm sobre o gênero em questão. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Concordamos com o que diz Ramos, ao se referir ao lugar dos quadrinhos, que “houve um tempo no Brasil em que levar histórias em quadrinhos para a sala de aula era algo inaceitável. Era um cenário bem diferente do visto no início deste século” (RAMOS, 2012, p. 13). No entanto, quando o autor completa dizendo que “Quadrinhos, hoje, são bem-vindos nas escolas e que há até estímulo governamental para que sejam usados no ensino”, notamos, onde aplicamos o projeto, que parece que tanto para a maioria dos professores como a maior parte dos educandos, o uso dos quadrinhos ainda é, de certa maneira, negligenciado, como um gênero menor, menos importante que outros. O que vimos na escola onde realizamos a pesquisa e em outras que visitamos, com o intuito de aplicar inicialmente o projeto, foi que, por um lado, há uma sala de leitura vasta de adaptações literárias em

quadrinhos e, por outro, que essas obras são, até então, um tanto menosprezadas. Uma das hipóteses é que a leitura de produções em quadrinhos seria “muito fácil” em relação às obras literárias, e como se a leitura literária fosse uma habilidade inata. Não é. Sobre isso, Pina diz que “a leitura literária não é uma habilidade inata, é resultado de uma aprendizagem e denuncia os valores e as marcas dessa distinção”. (PINA, 2012, p. 39) A ideia que muitos professores têm da leitura de quadrinhos parece ser, pelo menos na escola onde aplicamos o projeto, de certa forma engessada. Há uma aparente resistência em aceitar que ler quadrinhos não é caracterizá-los como uma leitura fácil, como uma linguagem simples e permeada por “desenhos”. É mais do que a imaginação dos profissionais da educação possa querer dar conta. E, sobre isso, Ramos diz que “ler quadrinhos é ler sua linguagem, tanto em seu aspecto verbal quanto visual (ou não

verbal). A expectativa é que a leitura – da obra e dos quadrinhos – ajude a observar essa rica linguagem de um outro ponto de vista, mais crítico e fundamentado”. (RAMOS, 2012, p. 14) Confortin, por sua vez, diz que “não é fácil ler e entender quadrinhos. A sua leitura pressupõe um ato complexo de abstração e de síntese por parte do leitor. É o leitor quem dá movimento e continuidade em sua imaginação, uma vez que os elementos que definem, compõem e integram-se nos quadrinhos são enquadramentos [...] que reforçam suas expressões”. (CONFORTIN, 1999, p. 86)

E, no que diz respeito à arte, Guerini e Barbosa firmam que “não se trata somente de desenho gráfico com letras, mas, sobretudo, de imagens pensadas e materializadas em linguagem capaz de provocar um desvio do que seria o esperado, produzindo um estranhamento que chama a atenção”. (GUERINI; BARBOSA, 2013, p. 20). Pensando nessas questões levantadas em relação à tríade escola, quadrinhos e educandos, um dos dados que nos chamou muito a atenção no primeiro questionário, que vamos tratar a partir de agora como (Q1), foi que apenas dois (2) dos vinte (20) participantes de ambas as séries já tinham lido uma adaptação literária, mas apenas um (1) respondeu já haver feito a leitura “Dom Quixote”, adaptação de Leonardo do Amaral Chianca, da obra de Miguel de Cervantes Saavedra, que foi proposta pelo PNBE em 2006. Ao responderem o Q1, havia uma pergunta que dizia respeito ao costume e outra ao gosto pela leitura e em ambas as perguntas e séries os resultados foram os seguintes: Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Tabela 1: Referente à pergunta do questionário 1 sobre o costume de leitura.

Tabela 2: Referente à pergunta do questionário 1 sobre o gosto pela leitura.

O que podemos perceber, nitidamente, é que o gosto pela leitura de Histórias em Quadrinhos prevalece o maior em ambos os questionários entre 80% e 90%. Queremos dizer, com isso, que o número dos educandos que gosta de ler HQs é bem distinto do número dos educandos que gosta de ler livros didáticos ou teóricos, por exemplo. Sabemos que se faz necessária a leitura de livros teóricos, mas, a depender do enfoque dado à leitura, passa a não ser significativo para o educando. Pensamos que todo ato de leitura deve ser guiado, orientado, pois ler, como diz Pina, é bem mais que decifrar caracteres impressos em preto na página branca. Ler é dirigir os olhos, o corpo e a alma a um texto – seja ele uma tessitura de palavras, seja uma escultura, uma pintura, uma expressão facial ou corporal de uma pessoa, um prédio, uma praça, uma vitrine, um filme, um grafite no muro da escola – e começar a namorá-lo, acercar-se, apropriar-se dele, inventando sentidos de significância. (PINA, 2012, p. 29)

Outro dado que nos salta aos olhos com a pesquisa é que, posterior à leitura da obra, apesar de todos terem dito que gostaram da leitura da adaptação literária em quadrinhos, os participantes tiveram tanto o interesse em ler a obra literária na íntegra, quanto ler outra adaptação literária, como podemos visualizar nos dados que seguem: Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Tabela 3: Sobre o interesse em ler as histórias originais escritas pelos seus respectivos autores.

Tabela 4: Sobre o interesse em ler outros gêneros.

O que esses dados nos mostram é que, como pensam muitas pessoas, os quadrinhos “substituiriam” a leitura das obras e, não é isso que ocorre com esses educandos. O que nos parece claramente é que eles tendem a ler as duas linguagens, pois como Ramos bem salienta, “quadrinhos e literatura são linguagens diferentes, que abrigam uma gama de gêneros diferentes”. (RAMOS, 2012, p. 19). E, em outra obra, Ramos também esclarece que chamar quadrinhos de literatura, a nosso ver, nada mais é do que uma forma de procurar rótulos socialmente aceitos ou academicamente prestigiados (...). Quadrinhos são quadrinhos. E, como tais, gozam de uma linguagem autônoma, que usa mecanismos próprios para representar os elementos narrativos. (RAMOS, 2012, p.17)

Em diálogo com a citação anteriormente apresentada de Ramos, Pina acrescenta que supera, em minha perspectiva, o paradoxo que o pensamento tradicional pode lhe atribuir [aos quadrinhos]. Essas adaptações literárias não são simples instrumentos pedagógicos eficazes para o ensino da literatura e a formação do leitor. Sua linguagem, como aponta Paulo Ramos na epígrafe deste capítulo, é seu diferencial, é seu instrumento maior de contato com o consumidor, porque guarda a criatividade ímpar de roteiristas, desenhistas, coloristas e demais profissionais da área. (PINA, 2012, p. 60)

Outra pergunta nos foi muito significativa em relação às respostas dos participantes, pois ao responder que, após a leitura da adaptação literária em quadrinhos, ele leria outra história em quadrinhos, questionamos o que ele leria, então, dentro do bloco de histórias em quadrinhos. Vejamos o que eles contestaram: Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Tabela 5: O que leria do bloco de histórias em quadrinhos?

O que, de fato, podemos perceber é que os participantes são todos leitores e que eles rejeitam, como vimos na Tabela 4, a possibilidade de não ler qualquer um dos outros gêneros, ou seja, algum dos gêneros eles teriam interesse em ler. Não estamos falando de educandos “problemas”, como são, por vezes, tratados. Estamos lidando com leitores de textos verbais e não verbais e que têm interesses em ler outros gêneros, como as adaptações literárias em quadrinhos que lhes foram apresentadas, e, como mostram os resultados, gostaram do que leram. PALAVRAS FINAIS Seria muito mais prazeroso, produtivo e significativo, se as escolas, os professores, coordenadores e até mesmo a diretores soubessem o que chega às salas de leituras e apresentassem essas obras aos seu

público diário, que são os educandos. Uma de nossas hipóteses é que os educandos eles desconheçam a chegada dessas adaptações, por isso, não as leem tanto. Como pensam muitos professores de Língua Portuguesa e Literatura, essas adaptações não devem, necessariamente, copiar a obra –fonte. (...) Então, conceber os quadrinhos como arte autônoma – e a literatura em quadrinhos como um gênero dessa arte – é o primeiro passo para discutir seu potencial de formação de gosto, de criação simbólica de um leitor diferenciado. (PINA, 2012, p. 65)

Assim, como Pina (2012), concordamos que a escola e muitos professores não deram o primeiro passo, pois, enquanto não se mobilizarem para uma discussão e não resistirem tanto às adaptações literárias em quadrinhos e à própria linguagem quadrinística, vão continuar, de certo modo, impedindo os

educandos de conhecerem outras linguagens. Não basta discutir se é legal ou não, se gostamos ou não, mas o que é importante e extremamente pertinente é discutir como podemos utilizar as obras que são propostas pelos próprios programas governamentais. Espera-se que, com este estudo, possamos ter colaborado para que os professores percebam o que seus educandos pensam sobre essas obras. Não é aceitável que nós, como profissionais da área da Educação, ignoremos as múltiplas leituras que nossas crianças, jovens ou adultos precisam conhecer, apenas por um critério trivial de que quadrinhos “não são bons para as salas de aula”. Por que não quadrinhos nas salas de aula? Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1992. CONFORTINI, Helena. Leitura e Humor na mídia. In: BARZOTTO, Valdir Heitor; GHILARDI, Maria Inês (org.). Mídia, educação e leitura. São Paulo: Anhembi Morumbi: Associação de Leitura do Brasil, 1999. GUERINI, Andreia; BARBOSA, Tereza Virgínia Ribeiro (org.). Pescando Imagens com rede textual: HQ como Tradução. São Paulo: Peirópolis, 2013. JAF, Ivan; ROSA, Rodrigo. Dom Casmurro. São Paulo: Editora Ática: 2013. PARRA, Lillo; SOUZA, Wanderson. Sonho de uma noite de Verão. São Paulo: Nemo, 2013. PINA, Patrícia Kátia da Costa. Literatura em Quadrinhos: Arte e Leitura hoje.Curitiba: Appris, 2012. RAMOS, Paulo. A leitura dos Quadrinhos. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2012. RAMOS, Paulo; VERGUEIRO, Waldomiro; FIGUEIRA, Diego (org.). Quadrinhos e Literatura: diálogos possíveis. São Paulo: Criativo, 2014. VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo. Os quadrinhos (oficialmente) na escola: da LDB aos PCN. In: VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo (orgs.). Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. 1 reimpr. São Paulo: Contexto, 2013. SHAKESPEARE, William. Sonho de uma Noite de Verão. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 2004. TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução de Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

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ADAPTAÇÕES LITERÁRIAS NA FORMAÇÃO DE ALUNOS LETRADOS LITERARY ADAPTATIONS IN THE FORMATION OF LITERACY STUDENTS Gabriela Silva Universidade Federal de São Paulo

RESUMO Esta pesquisa busca analisar a relação que a leitura de clássicos da literatura adaptados para quadrinhos pode ter no processo de ensino-aprendizagem e na formação de alunos letrados. Para isso, o estudo foi realizado com dez alunos regularmente matriculados no 9º ano do Ensino Fundamental II e dez alunos do 3º ano do Ensino Médio e uma escola estadual da cidade de Guarulhos. A primeira parte da pesquisa consistiu na aplicação de um questionário sobre o hábito de leitura dos alunos. Em um segundo momento, foi entregue a adaptação literária para que cada um pudesse realizar a leitura silenciosa. Em um terceiro momento os alunos responderam a outro questionário no qual buscamos aferir o nível de compreensão dos alunos sobre a obra lida e possíveis interesses de leitura que a obra tenha despertado neles. Palavras-chave: História em quadrinhos; adaptação literária; letramento ABSTRACT This research sought to analyse the relation reading literary classics adapted to comics might have in the teaching-learning process and in the formation of literacy students. In order to achieve that, the study was conducted with ten regularly participating students of the 8th grade of Ensino Fundamental II, and ten of the 3rd grade of Ensino Médio, in a state school in the city of Guarulhos. The first part of the research consisted in a questionnaire with questions about the students’ reading habits, and following that they were given the literary adaptation to be read in silence. Later the students completed another questionnaire where we sought to measure their comprehension level about the comic book they read and possible interest in the literary work reading the comics might have brought about. Key words: Comic books; literary adaptations; literacy

INTRODUÇÃO

As adaptações de textos da literatura para os quadrinhos não são novas, segundo Chinen, Vergueiro e Ramos (2014) elas começaram na primeira metade do século passado, inicialmente nos Estados Unidos com a coleção Classics Comics, posteriormente Classics Ilustrated, e no Brasil, após outras tentativas, com a Editora Brasil-América Limitada (EBAL), que passou a publicar, traduzindo para o português, a mesma coleção sob o título de Edição Maravilhosa. Com o tempo, a EBAL passou a também produzir algumas adaptações de clássicos da literatura brasileira. A publicação durou até a década de 1960 e teve mais de 200 números publicados. Após esse período, algumas editoras buscaram retomar o sucesso da Edição Maravilhosa, mas não obtiveram êxito. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016


Segundo Vergueiro e Ramos (2009) apesar de os quadrinhos estarem nas aulas de língua portuguesa através dos livros didáticos a partir de 1980 “pode-se afirmar que os quadrinhos só foram oficializados como prática a ser incluída na realidade de sala de aula no ano seguinte ao da promulgação da LDB, com a elaboração dos PCN” (VERGUEIRO; RAMOS, 2009, p. 10). A promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) aconteceu em 1996 e a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) em 1997. Essa oficialização dos quadrinhos na escola pode ser vista como uma possível condição para a entrada de adaptações literárias em quadrinhos nas bibliotecas da educação pública básica. Segundo o portal do Ministério da Educação (MEC), o Programa Nacional Biblioteca da Escola

(PNBE) foi criado em 1997 pelo Governo Federal e tem como proposta garantir que toda escola possua acervo bibliográfico a fim de disseminar o hábito da leitura nos alunos e democratizar o acesso dos estudantes aos livros. Assim, a partir de 1998, o MEC passou a comprar livros para compor os acervos de escolas de todo o país. Apesar disso, segundo Vergueiro e Ramos (2009), quadrinhos no programa só foram aceitos a partir de 2006 e destinados, inicialmente, apenas ao Ensino Fundamental. Segundo os autores, somente no edital de 2009 os quadrinhos foram inseridos no Ensino Médio, sendo possível, segundo Yamaguti (2014), perceber nos dois ciclos a preferência por adaptações literárias e isso se deve ao fato de o MEC concebêlas como ferramentas para que o aluno chegue ao texto literário. O impacto das adaptações no ensino ainda carece de uma investigação mais aprofundada. Em

consequência disso, nossa pesquisa, realizada em uma escola estadual da cidade de Guarulhos, buscou verificar junto a um grupo de alunos do 9º ano do Ensino Fundamental II e outro grupo de discentes do 3º ano do Ensino Médio, seus hábitos como leitores, a capacidade de compreensão após a leitura de uma adaptação literária em quadrinhos e possíveis interesses que essa leitura tenha provocado neles. Também realizamos uma análise dos dados obtidos e, através dela, buscaremos argumentar em defesa do uso de adaptações em sala de aula para a formação de alunos que sejam letrados. A PESQUISA O estudo foi realizado nos dias 4 de junho de 2014 e 12 de agosto do mesmo ano em uma escola

estadual da cidade de Guarulhos, na grande São Paulo, que conta com turmas do 9º ano Ensino Fundamental II e 3º ano do Ensino Médio. Os critérios para a escolha da escola foram que ela tivesse essas duas séries e que já tivesse recebido livros através do Programa Nacional Biblioteca da Escola, a partir de agora PNBE, o que possibilitaria aos alunos terem acesso não apenas a obras literárias, mas a adaptações literárias em quadrinhos. Foram selecionados aleatoriamente dez alunos do 9º ano sendo três homens e sete mulheres. A média de idade do grupo era de 14 anos, o esperado para a série. O único critério para a composição do grupo era que nenhum aluno tivesse tido contato com a obra literária, isso porque uma parte da pesquisa consistiu em observar os conhecimentos sobre a história adquiridos pelos alunos após a leitura da Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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adaptação. A obra escolhida para a pesquisa com esse grupo foi “Dom Casmurro”, do escritor brasileiro Machado de Assis, adaptada por Ivan Jaf (roteiro) e Rodrigo Rosa (arte), trabalho que compõem a Coleção Clássicos Brasileiros em HQ, publicada pela editora Ática e que fez parte do acervo do PNBE de 2013 destinado aos anos finais do Ensino Fundamental II, por isso sua escolha. Para a pesquisa com o 3º ano do Ensino Médio, também foram selecionados, aleatoriamente, dez alunos, quatro homens e seis mulheres, a faixa etária média dessa turma ficou em 16 anos. O critério para a formação do grupo para a realização da pesquisa foi o mesmo, nenhum aluno deveria ter lido o texto literário. Para essa série foi escolhida a adaptação da peça “Sonho de uma Noite de Verão”, da Coleção Shakespeare Em Quadrinhos, publicada pela Editora Nemo e adaptada por Lillo Parra (roteiro) e

Wanderson de Souza (arte). A obra foi selecionada por também ter feito parte do acervo do PNBE destinado ao Ensino Médio em 2013. A metodologia adotada para a pesquisa foi a mesma com os dois grupos. Em um primeiro momento, os alunos responderam a questões que nos forneceram informações para a formação do perfil de leitor de cada grupo. Esse primeiro questionário foi composto por 10 questões, sendo 9 de múltipla escolha e 1 dissertativa, sobre o que e onde costumam ler, se existe ou não biblioteca na escola e se já foram até ela ler ou fazer empréstimo de livros, o que gostam de ler, já que muitas vezes há diferenças entre o que gostam e o que costumam ler, onde costumam ler o que gostam, com essa pergunta podemos aferir em qual ambiente se dá essa leitura por prazer, a partir dessa questão já buscamos averiguar a proximidade dos alunos com os quadrinhos e com a literatura. Assim, caso o aluno tenha dito gostar de ler histórias em

quadrinhos, ele deveria especificar qual gênero costuma ler e se assinalou literatura também deveria nos dizer quais gêneros literários fazem parte de sua leitura. Por fim, perguntamos se já haviam lido alguma adaptação literária e, caso respondessem que sim, pedimos que nos dissessem qual. Ao fim do preenchimento do questionário, as adaptações eram entregues a cada aluno, que deveria fazer a leitura silenciosa da obra. A duração necessária variou entre os discentes de cada grupo, mas foi respeitado o tempo de cada um. Por fim após a leitura, os livros foram recolhidos. A proposta era que o aluno respondesse às questões com base no que havia lido e não fizesse consultas ao material, cada aluno recebeu um segundo questionário para preenchimento. Este último levantamento consistiu em: •

Saber o que o aluno achou do livro e se teria interesse em ler a obra original

Quatro questões de interpretação de texto, para verificarmos a compreensão do aluno diante do que foi lido.

Qual o interesse de leitura dele após ler a adaptação (outra adaptação, o romance original, uma história em quadrinhos, uma obra literária ou não teria interesse em nenhuma das opções).

Poderemos refletir sobre possíveis caminhos para o uso desse material em sala de aula, passando para duas questões desdobradas a partir desta: Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Caso o aluno tenha interesse em ler história em quadrinhos quais gêneros e caso queira ler obras literárias quais gêneros.

Apesar de ser um questionário amplo, o foco central deste artigo será no comportamento leitor dos alunos. Assim, após essa apresentação de como se constituiu a pesquisa, passaremos para a análise dos dados obtidos. PRIMEIRO QUESTIONÁRIO: HÁBITOS DE LEITURA A primeira questão sobre a prática de leitura dos alunos consistiu em averiguarmos o que eles costumam ler. A seguir, o resultado de cada turma:

Gráfico 1 – Dados referentes à primeira pesquisa com o grupo da 8ª série. A questão buscou averiguar o hábito de leitura dos alunos.

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Gráfico 2 – Dados referentes à primeira pesquisa com o grupo do 3º ano. A questão buscou averiguar o hábito de leitura dos alunos.

Outras duas questões referentes ao hábito de leitura dos alunos consistiam em saber se existe biblioteca na escola em que estudam. As opções eram “sim”, “não” e “não sei”. As duas turmas responderam que “sim”, há biblioteca na escola. Caso a resposta fosse positiva, o aluno deveria responder à questão seguinte, que buscava averiguar se os alunos possuem o hábito de ir até a biblioteca da escola para ler livros ou pedir obras emprestadas. Novamente a resposta predominante nos dois grupos foi que “sim”, todos os alunos pesquisados já foram até a biblioteca da escola ler ou fazer empréstimo de livros. Com base nessas questões do primeiro questionário, que tinha como objetivo fornecer dados para que pudéssemos criar um perfil de leitor dos grupos pesquisados, podemos concluir que nossos grupos são compostos por leitores. Do 9º ano do Ensino Fundamental II, em que 40% afirmam ler história em quadrinhos, 50% leem jornal e 60% literatura, para o 3º ano do Ensino Médio, em que 40% afirmam ler história em quadrinhos, 50% jornal e 60% literatura, é possível perceber que os índices de leitura não são baixos assim como não houve queda na leitura dos alunos do 9º ano para o 3º ano, ao contrário, ou os índices se mantiveram, ou aumentaram, como foi o caso de redes sociais, revistas informativas e sites, como podemos observar nos gráficos acima. Para a professora Soares “Já não basta aprender a ler e escrever, é necessário mais que isso para ir além da alfabetização funcional (denominação dada às pessoas que foram alfabetizadas, mas não sabem fazer uso da leitura e da escrita).” (SOARES, 2004, p.3). Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Consequentemente compreendemos que se faz necessário falarmos da importância de alunos letrados, visto que leitores eles já são. Em primeiro lugar, o uso que fazemos do termo letrado vem da concepção de letramentos, processo que segundo Kleiman (2005), depende da alfabetização do aluno, contudo vai além dela, ele é responsável por mobilizar a capacidade de observação do discente, faz com ele seja capaz de associar situações de seu cotidiano ao que é pedido na atividade escolar. Um exemplo seria a capacidade de retomar temas vistos em diversas esferas (escolar, familiar, amigos, experiência de leitura, etc.) para associá-los ao que é solicitado. Assim, compreendemos que o uso de adaptações literárias em quadrinhos pode ser, se tiver bom uso, uma excelente ferramenta para a formação de leitores letrados, pois sua constituição verbal e visual

exige do aluno não apenas que ele saiba ler o texto verbal que, normalmente, está presente nas adaptações literárias em quadrinhos, mas que ele leia e compreenda a arte que interage com as falas das personagens, que saiba interpretar a escolha do artista ao optar por usar uma determinada cor para o fundo de uma cena, que possa compreender a troca de cena entre um quadro e outro e inferir que ali houve uma sequência narrativa. Ao tratar de um livro que mistura formas de criptografia e jogos tipológicos Hattnher diz que essa constituição do texto “atualiza não só as formas de inserção da palavra na página, mas também o papel do leitor, que compulsoriamente vê seu exercício de interação com o texto ampliado para níveis que vão além do desvendar intertextual básico” (HATTNHER, 2010, p.152). É o que acreditamos, e defendemos neste artigo, com relação às adaptações literárias em quadrinhos: elas atualizam o texto e levam o aluno não

apenas a ler, mas a compreender todos os elementos que o constituem, imagem, cor, balão de fala, tamanho e formato da fonte, ou seja: o aluno ampliaria o rol de signos no processo de leitura. Segundo Pina “o ato de ler muda no tempo e no espaço” (PINA, 2012, p.43), o que justifica nosso interesse na construção desse perfil de leitor composto pelos gêneros textuais dos quais o aluno da escola contemporânea tem interesse, sendo também uma das razões motivadoras de nossa pesquisa, visto que se o ato de ler não é imutável, mas transforma-se, então também se transformam os gêneros, os suportes, o modo de ler, o que pode explicar o interesse dos alunos por adaptações literárias em quadrinhos e, principalmente, sua relevância para o trabalho pedagógico em sala de aula no processo de ensinoaprendizagem para a formação de alunos que sejam letrados. Apesar do número expressivo de alunos que declarou ler história em quadrinhos (40%) e literatura

(60%) nas duas turmas, e do fato de a escola receber adaptações literárias em quadrinhos através do PNBE, quando questionados se já haviam lido alguma adaptação literária em quadrinhos na escola, 20% do 8º ano disse que “sim”, enquanto 80% afirmaram que “não”. Mas mesmo esses que responderam afirmativamente, não responderam à questão seguinte sobre qual obra adaptada para quadrinhos havia lido. Já no 3º ano, todos os alunos pesquisados responderam que não haviam lido esse gênero na escola.

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DADOS DO SEGUNDO QUESTIONÁRIO Após a leitura da obra, cada aluno recebeu o segundo questionário, que buscou compreender a experiência deles após a leitura da adaptação literária em quadrinhos. No grupo do 9º ano do Ensino Fundamental II, em que os alunos leram a já mencionada adaptação de “Dom Casmurro”, 70% afirmaram ter gostado, 30% disseram ter gostado mais ou menos e a opção “não gostei” ficou em branco. A segunda questão sobre a experiência buscou compreender se a adaptação pode despertar no aluno o interesse em ler a história original publicada por Machado de Assis. O resultado foi

que 90% afirmaram que teriam interesse, enquanto 10% disseram não ter e a alternativa “não, porque já li a história agora” não foi marcada por nenhum aluno. No 3º ano do Ensino Médio, série em que foi passada a adaptação de “Sonho de uma Noite de Verão”, 80% dos alunos afirmaram ter gostado da obra, enquanto 20% dos discentes disseram ter gostado mais ou menos (a opção “não gostei” ficou em branco). Já na segunda questão, sobre se teriam ou não interesse em ler a história original escrita por William Shakespeare, 70% dos alunos afirmaram que teriam interesse, enquanto 10% responderam que não e 20% declararam que não leriam por já terem lido a adaptação. Assim, com base nos dados obtidos com essa pesquisa, podemos observar que a adaptação literária em quadrinhos pode levar o aluno a ter interesse em ler a obra na qual ela foi baseada. Com relação à compreensão do texto lido, trataremos aqui de duas questões destinadas a cada

grupo, sendo uma de interpretação geral da obra e outra sobre algum fato ou acontecimento específico. Para o 9º ano, foram feitas as seguintes questões: Quais os temas predominantes na história? (A) Amor e traição (B) Amor e humor (C) Briga e traição (D) Encenação e humor (E) Razão e escrita Tabela 1 – Compreensão da história a partir da leitura da adaptação de “Dom Casmurro” em História em Quadrinhos.

Cada aluno deveria escolher apenas uma das alternativas, assim, todos os alunos assinalaram a opção “A) Amor e traição”, ou seja, eles compreenderam a trama da história. Uma questão de conhecimento de um episódio específico foi:

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Há uma parte do corpo de Capitu, que, na obra, foi relatada como sendo de ressaca ou então de cigana “oblíqua e dissimulada”. De que parte do corpo se está falando? (A) Do rosto (B) Das mãos (C) Das pernas (D) Dos olhos (E) Da boca Tabela 2 – Compreensão de um momento da história a partir da leitura da adaptação de “Dom Casmurro” em História em Quadrinhos

Novamente nesta questão os alunos acertaram ao assinalarem a alternativa “D) Dos olhos”, pois o narrador se refere a essa parte do corpo da personagem. Já os alunos do 3º ano foram perguntados sobre: Quais os temas predominantes na história?

(A) Amor e humor (B) Amor e traição (C) Briga e traição (D) Encenação e humor (E) Sonho e verão Tabela 3 - Compreensão da história a partir da leitura da adaptação de “Sonho de uma Noite de Verão” em História em Quadrinhos.

Todo o grupo assinalou a alternativa “(A) Amor e humor” o que demonstra que foi realizada a compreensão da trama da história por parte dos alunos. Uma questão sobre um momento específico da obra foi:

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Na história, Hérmia e Lisandro tomam uma decisão ao saberem da possibilidade de não poderem ficar juntos. Essa decisão foi: (A) Passar a morar no bosque (B) Fugir para poderem se casar em outro local (C) Dormirem profundamente para viverem sonhos juntos (D) Aceitar a decisão de não poderem se casar (E) Encenar o caso na forma de uma peça teatral Tabela 4 - Compreensão de um momento específico da história a partir da leitura da adaptação de “Sonho de uma Noite de Verão” em História em Quadrinhos.

Para esta questão a resposta assinalada por todos os alunos foi a alternativa “(B) Fugir para poderem se casar em outro local”, a partir disto podemos depreender que os discentes leram com atenção a adaptação, compreenderam o que foi lido e guardaram algumas informações da obra em suas memórias. Com base nos resultados que essas quatro questões forneceram, podemos dizer que os alunos realizaram uma leitura efetiva da obra, assim como é possível afirmar que, ao ler uma adaptação literária em quadrinhos, se a proposta for seguir a obra original, não há perda na compreensão do aluno sobre a história adaptada. Apesar disso, como frisa Zeni, é necessário ressaltarmos que “a adaptação traz apenas uma leitura da obra original e não a solução ou a interpretação definitiva dela” (ZENI, 2009, p.131).

Por fim, gostaríamos de abordar os interesses que a leitura da adaptação pode ter despertado nos alunos das duas séries pesquisadas. A seguir, dois gráficos referentes às respostas do grupo do 9º ano do Ensino Fundamental II e as respostas do grupo do 3º ano do Ensino Médio, respectivamente.

Gráfico 3 – Dados referentes à segunda pesquisa com o grupo do 9º ano. A questão buscou averiguar os interesses de leitura despertados nos alunos após a leitura da adaptação literária em quadrinhos. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Gráfico 4 – Dados referentes à segunda pesquisa com o grupo do 3º ano. A questão buscou averiguar os interesses de leitura despertados nos alunos após a leitura da adaptação literária em quadrinhos.

Com base nesses dados, podemos fazer algumas afirmações. A primeira, e que tem sido feita desde o começo deste artigo, é que os alunos são leitores, eles leem e têm interesse em ler mais, o que precisa ser

trabalhado é o letramento. O aluno deve ser estimulado não apenas a ler e a escrever, mas a ler diversos gêneros, em diversos suportes, de modo a aumentar sua bagagem de conhecimento e conseguir agir em mais situações na vida em sociedade, só assim formaremos, como propõe Rouxel, “sujeito leitor livre, responsável e crítico” (Rouxel, 2013, p.20), a autora ainda afirma que, para isso, o aluno deve ter acesso aos diversos gêneros literários e aos novos gêneros como as histórias em quadrinhos (ROUXEL, 2013). Outro ponto importante que a pesquisa mostrou foi a receptividade dos alunos diante da adaptação literária em quadrinhos, gênero até então desconhecido para a maioria. O pesar que fazemos a partir desta constatação é que, mesmo havendo interesse dos alunos pela leitura e tendo disponibilidade de adaptações na biblioteca da escola, o primeiro contato da maioria tenha sido somente durante a pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Após a pesquisa realizada e as reflexões feitas, podemos concluir que há, por parte dos alunos, o interesse em ler adaptações literárias em quadrinhos, não apenas elas, mas quadrinhos de um modo geral e diversos outros gêneros textuais. Apesar disso, o gênero não é usado em sala de aula ou em atividades extraclasse. Acreditamos que a adaptação literária em quadrinhos é uma forma de leitura que proporciona “Enriquecimento do imaginário, enriquecimento da sensibilidade por meio da experiência fictícia, construção de um pensamento, todos esses elementos que participam da transformação identitária estão em ato na leitura.” (ROUXEL, 2013, p.24), o que reforça a sua importância na formação de alunos letrados. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Vergueiro e Ramos (2009) ressaltam que uma leitura realizada pode abrir caminhos que levem a outras leituras. Apesar de os alunos pesquisados no 3º ano se considerarem leitores, nenhum deles, ao responder sobre o que costumam ler de literatura, assinalou a opção teatro. Mas, após a leitura da adaptação, 70% afirmaram ter interesse em ler o texto original. Assim, podemos dizer que a leitura da adaptação de “Sonho de uma Noite de Verão” pode ter levado os alunos a lerem o texto teatral no qual ela é baseada e essa leitura pode levar a muitas outras, como a de filmes baseados na peça, contribuindo para o letramento constante dos alunos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TRANSPOSIÇÃO DE POEMAS NA LINGUAGEM GRÁFICA E NARRATIVA DE FERNANDO PESSOA TRANSPOSICIÓN DE POEMAS EN LENGUAJE GRÁFICO Y NARRATIVO DE FERNANDO PESSOA Iêda Lima dos Santos Universidade São Judas Tadeu Ana Paula Rodrigues Ferro Universidade de Cuiabá RESUMO A pesquisa realizada, qualitativa e de nível exploratório, tem como objeto de análise a adaptação da obra poética do escritor português Fernando Pessoa, e seus vários heterônimos, feita pelo roteirista e professor Davi Fazzolari e o desenhista Eloar Guazzelli. O álbum “Fernando Pessoa e outros Pessoas” faz a transposição de diversos poemas para a linguagem e a narrativa das histórias em quadrinhos. O objetivo principal deste trabalho é entender como os quadrinhos, dos pontos de vista gráfico e narrativo, reformularam o texto poético e o ajustaram às suas características específicas. Para atingir esse propósito, procedeu-se à análise de conteúdo, tendo como método teórico a visão estruturalista e a semiologia de linha francesa. A apreciação crítica da adaptação da poesia para os quadrinhos levou em consideração o encapsulamento, ou seja, a formatação dos elementos verbais e pictóricos, tanto no âmbito de cada vinheta, como no contexto de cada página. Também foram destacadas as semelhanças e diferenças entre a obra adaptada e o texto original, a partir de uma análise comparativa. A conclusão a que se chegou com este estudo foi que os autores ampliaram a possibilidade de ler e entender Fernando Pessoa, por meio da intertextualidade entre as linguagens escrita e visual, concretizando uma obra de arte, cujo objetivo é conduzir os diferentes públicos de leitores a desbravarem o mundo do poeta e de seus heterônimos. Na adaptação da obra poética para HQ, Guazzelli e Fazzolari rompem com alguns limites linguísticos intrínsecos na obra primária, possibilitando ao leitor uma aproximação com Fernando Pessoa, por meio de versos originais, fielmente transcritos e reforçados pela linguagem visual, que contribui para melhor decodificação da mensagem. Neste processo, as saudosas avenidas, paisagens, ruas e becos de Lisboa, transportam o leitor a um passeio de descoberta pela riqueza atribuída à obra. A obra é finalizada com um breve relato e ilustrações sobre Fernando Pessoa e seus Pessoas. Palavras-chave: Fernando Pessoa; HQs; imagem, ilustração RESUMEN

La investigación hecha, cualitativa en nível exploratorio, tiene el propósito de analizar la adaptación de la obra poética del escritor portugués Fernando Pessoa, y sus diversos heterónimos, hecha por el escritor y profesor David Fazzolari y por el diseñador, Eloar Guazzelli. El álbun "Fernando Pessoa e Outros Pessoas" es una transposición de distintos poemas, para el lenguaje y narrativa del cómic. El objetivo principal de este trabajo es entender cómo los cómics, desde el puntos de vista gráfico y narrativo, reformulan el texto poético y lo ajusta al conjunto de sus características específicas. Para lograr este propósito, se procedió al método de análisis de contenido, teniendo en cuenta el método teórico de la visión estructuralista y la semiología de la línea francesa. La consideración crítica de la adaptación poética para el cómic tuvo en cuenta la encapsulación, es decir, la formatación de los elementos verbales y pictóricos, en el ámbito de cada lámina, y en el contexto de cada página. También fueron destacada las semejanzas y diferencias entre la nueva producción ajustada para cómic, y la obra original a partir de análisis comparativos. La conclusión que se alcanzó en este estudio fue que los autores han ampliado la capacidad de leer y comprender Fernando Pessoa a través de la intertextualidad entre la escritura y el lenguaje visual, añadiendo vida a una obra de arte, cuyo objetivo es llevar los diferentes públicos de lectores a conoceren el mundo del poeta y sus heterónimos. En la adaptación de la obra poética para el cómic, Guazzelli y Fazzolari romperon con algunos límites linguísticos intrínsecos en el trabajo principal, permitiendo al lector un acercamiento a Fernando Pessoa a través de los Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016


versos originales, fielmente transcritos y reforzados por el lenguaje visual, que aportan para una mejor decodificación del mensaje. En este proceso, las nostálgicas avenidas, los paisajes, las calles y los callejones de Lisboa, conducen el lector a un viaje de descubrimiento por la riqueza aportada a la obra. El trabajo se concluye con una corta descripción e ilustracione acerca de Fernando Pessoa y sus Pessoas. Palabras claves: Fernando Pessoa, Cómic, Imagen, Ilustración

INTRODUÇÃO Adaptar é o ato de criar novamente, de recriar o que havia sido elaborado em uma base específica e de acordo com determinadas normas. O resultado desse processo é um produto híbrido, que possui as linhas gerais do original e sua adequação ao novo meio. Dessa forma, o texto literário obedece aos imperativos da língua e das regras gramaticais e o poético, mais especificamente, busca nas figuras de linguagem o suporte para levar o leitor a descobrir nele novos sentidos. A transposição desse tipo de texto verbal para os quadrinhos implica no uso do componente visual para agregar novos significados à obra. Esse é o caso do álbum “Fernando Pessoa e outros Pessoas”, objeto do estudo que resultou neste texto e que será apresentado abaixo. ANÁLISE DOS QUADRINHOS “FERNANDO PESSOA E OUTROS PESSOAS” Com capa cor de rosa clara em quase sua totalidade, mostrando a silhueta preta do autor de costas com chapéu esobretudo, característicos de Fernando Pessoa, de frente à praia e pés com sapatos na areia, o livro Fernando Pessoa e Outros Pessoas em HQ, com ilustrações de Guazzelli e Roteiro de Davi Fazzolari, apresenta diagramas coloridos misturados ao preto e branco que traz seriedade à obra. Dividido em quatro partes identificadas como “Interlúdio Lisboeta”, as três primeiras contém entre cada uma “A Tabacaria Fora de Mim”, com Álvaro de Campos, “O Desassossego de Bernardo”, com Bernardo Soares, e “O Pastor de Almas”, com Alberto Caeiro. A última apresenta “Sobre Fernando

Pessoa”. A divisão dos quadrinhos traz a compreensão das imagens através do encapsulamento feito de formas diversas dependendo da necessidade de cada parte. “A função fundamental da arte dos quadrinhos (tira ou revista), que é comunicar ideias e/ou histórias por meio de palavras e figuras, envolve o movimento de certas imagens (...) no espaço. Para lidar com a captura ou encapsulamento desses eventos no fluxo da narrativa, eles devem ser decompostos em segmentos sequenciados. Esses segmentos são chamados de quadrinhos.” (EISNER, 1985)

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OS QUADRINHOS As HQ’s são representadas por texto gráfico como legendas ou balões. Mostra a divisão de movimentos em quadros com desenhos representando a história em ordem sequencial, como um encapsulamento de cada parte. Também são chamados de tiras. REPRESENTAÇÃO VISUAL NO LIVRO

O “Interlúdio Lisboeta I” tem apresentação em duas páginas contendo 12 pequenos quadrinhos em cada. Traduz literalmente o texto que diz “Lisboa com suas casas / De várias cores”, já que apresenta cores claras e imagens representando a arquitetura local. Com “A Tabacaria Fora de Mim” dividida em duas páginas com 2/3 em cor branca e 1/3 em preto com desenho em cinza sobre elas é feita a abertura da primeira história. A apresentação de um azulejo português centralizado em uma página e a imagem da tabacaria com rabiscos representando o movimento das pessoas,que completa o espaço da seguinte, no começo da história desempenham fortemente o significado de seu título. O movimento na história é apresentado em sua maioria com um quadro superior horizontal e três abaixo na vertical. Nas páginas 12 e 13 o encapsulamento fica diferente. Quatro partes apresentadas ora em

quadrados e ora em retângulos, tira a monotonia e oferece mais dinâmica à história, mas não abandonando vez ou outra a forma anterior. As cores são sempre claras e variam entre rosa e amarelo, com tons diferentes de roxo e contornos nas imagens na cor preta. O marrom e laranja aparecem também representando os telhados de casas e o sol. O “Interlúdio Lisboeta II” abre com a mesma divisão de doze quadros, mas apenas em uma página, onde são representadas várias casas vistas de lado, mas mais de cima com seus telhados aparentes em laranja e marrom. A seguinte chama atenção em um primeiro momento pela sua cor rosa muito clara e só depois deixa-se ser decifrada como a parede de um pequeno prédio onde aparecem suas janelas e varais entre elas, um deles com roupas verdes claras e lilás penduradas. As duas páginas de abertura do “Desassossego de Bernardo” apresenta as mesmas características

do “A Tabacaria Fora de Mim”, trazendo ao leitor uma apresentação padronizada em suas aberturas. Nesta parte apenas a primeira página tem cores, as demais são apresentadas em preto e branco. Graficamente realçam mais a divisão com movimentação, já que cada uma apresenta uma forma de encapsulamento. Porém, não abandona a forma mais usual no livro de um quadro horizontal superior e outros três abaixo na vertical. Aqui os textos são apresentados ora sobre os quadros ora em balões. Já o “Interlúdio Lisboeta III” tem cores mais fortes. Na primeira página de sua abertura mostra o desenho, sem divisões de quadros, de uma rua com trilhos e movimentação de pessoas, um bar chamado “Galegos Bar” com parede azul celeste em tom fechado e uma porta apresentado parte verde escura, ao fundo a apresentação de outra casa na cor amarela e um muro, que também pode ser de outra moradia, na Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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cor rosa. Ao lado, preenchendo a largura total da folha e mais da metade de sua altura, há o desenho de três homens aparentemente gordos e texto sobre eles na parte de fundo de cor branca e abaixo também. A apresentação de “O Pastor de Almas” segue o padrão dos anteriores. Na primeira página aparece sobre um fundo branco o desenho de uma castelo grande na cor azul sendo segurado com uma linha por uma menina em tamanho muito pequeno como se estivesse correndo e fazendo-o voar. Ao lado um prédio colocado meio de lado apresentando janelas e portas altas. Na parte que fica praticamente de frente, com fundo amarelo claro, tem um texto com letras grossas e assinado por Garcia Lorca. Abaixo mostra um chão com grama e o fundo do prédio tem cor azul muito clara. Todos preenchendo a página por inteiro. Os quadros encapsulados são coloridos, diversificando as cores entre as partes. Mais movimentados

que os anteriores apresentam divisão da página em três partes horizontais com textos sobre eles, mas também misturam a forma padrão sempre utilizada com este. Outras páginas têm os quadros com divisões não encontradas nas outras, como 4 quadros na parte superior, com mais da metade da área útil e uma na horizontal abaixo, mais próxima ao rodapé. O “Interlúdio Lisboeta IV” é visualizado com a representação em página inteira de um prédio rosa com portas e janelas roxas e telhado na metade dele de cor marrom, tem uma placa na parede da parte superior indicando “Museu Nacional da Marionet”. Ao lado segue a divisão de 12 pequenos quadros. Neles contém artes de casas, bonde, pássaro, janelas, telhados, todos muito coloridos e com textos sobre eles em fundo branco e letras pretas. Em seguida não há encapsulamento e sim um desenho ocupando o espaço de duas páginas, onde são representados uma praça com monumento central, ônibus e carros ao

lado de prédios com grande extensão vertical. A abertura de “Sobre Fernando Pessoa” segue o padrão e nas páginas seguintes e finais os quadros se dividem em cor preta, branca e cinza e representam o autor em seus heterônimos. A diferença na divisão dos quadros é a apresentação de um retângulo ocupando o rodapé em duas páginas. Os textos estão sobre as artes em quadros em cor preto com letras brancas ou cinza com letras pretas. ANÁLISE DA OBRA: “FERNANDO PESSOA E OUTROS PESSOAS” O legado poético de Fernando Pessoa transpassa a tipologia narrativa do pensamento metafísico e poético. A obra apresenta um escritor extremamente crítico, dramático, polido, literário, e sobre tudo, um

poeta de múltiplas características intelectuais, o que dá à obra uma riqueza de detalhes e complexidade na interpretação de sua mensagem. Os poemas adaptados para versão HQ rejuvenescem a obra original, em virtude dos autores fazerem uma seleção de versos e estrofes extraídas integralmente dos poemas originais, para adequá-las a um cenário descontraído pelas cores e combinações de falas singelas, caracterizado pelos versos livres. Na produção literária alvo desta pesquisa, os autores retratam os muitos F. Pessoas, para reconstruílos como um todo. “Multipliquei-me, para me sentir, Para me sentir, precisei sentir tudo, Transbordei, não fiz senão extravasar-me, Despi-me, entreguei-me, E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.”. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Guazzelli e Fazzolari apresentam o percurso intelectual de Fernando Pessoa como o relato de uma grande viagem de descoberta em que sempre procurou algo divino e desconhecido. Nela, Pessoa agarra-se a distintos artifícios metafísicos, para conseguiu chegar a uma conclusão definitiva de sua singela significância no mundo. Dessa forma, os autores articulam as imagens à fala de Fernando e nos mergulham no seio do poeta, que conclui que todos os caminhos são verdadeiros, sendo que o que realmente é preciso é navegar pelo mundo das ideias. Em quase toda sua extensão a obra tem luz própria, os versos originais são fielmente transcritos e extraídos de maneiras não linear, reforçados pela linguagem dos traços e pinturas, que contribuem para melhor decodificação da mensagem. As saudosas avenidas, paisagens, ruas e becos de Lisboa, transportam

o leitor a um passeio de descoberta, embalados “pela música” dos versos do mestre da poesia portuguesa, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Alberto Caeiro. Os autores surpreendem o leitor desde a capa, na qual percebe-se o impacto ao ver a obras de Fernando Pessoa adaptada em HQ, rompendo com a tradição que associa HQ aos romances, aventura, terror ou peças de teatro. A dupla cativa ao leitor e o impressiona pela riqueza atribuída à obra, por meio da associação entre palavra e imagem, construindo uma harmonia lírica e visual entre o poeta e seus anseios. Na organização dos poemas e adaptação destes para os quadrinhos, Guazzelli apresenta fragmentos de quatro poemas de Fernando Pessoa. No primeiro capítulo da obra: “Interlúdio Lisboeta”, Guazzelli e Fazzolari distribuem a primeira estrofe do poema de Álvaro de Campos, em dez versos, que

acompanhados pelas imagens desmembram Lisboa e seus encantos. Consequentemente, a dupla nos apresentam trechos de poemas de cada heterônimo, sendo: “A Tabacaria fora de mim”, de Álvaro de Campos, “O Desassossego de Bernardo Soares”, e por fim, “O Pastor de Almas”, de Alberto Caeiro. O Segundo capítulo, “A Tabacaria fora de mim”, é o mais extenso e bem desenvolvido. Já o terceiro “O Desassossego de Bernardo Soares”, é composto por uma narrativa mais impactante, com personagens bem definidos e falas organizadas em balões pretos e brancos. Por fim, o último capítulo retirado do poema original “O pastor Amoroso”, nomeado na HQ como “Pastor de Almas” é o mais singelo e de fácil interpretação, situado em um tempo cronológico, descreve em cores vivas a arquitetura da cidade que mescla a monotonia do campo à cidade.

PRIMEIROS POEMAS “INTERLÚDIO LISBOETA” Guazzelli utiliza de traço e pinceladas depuradas, aliadas os tons de cores luminosas e claras, situando o leitor na reprodução do cenário urbano e saudoso da atmosfera lisboeta. Este primeiro capítulo é o resultado da fragmentação da primeira estrofe do poema, Lisboa, de Álvaro de Campos, organizada em 10 versos, aliados as imagens que retratam o local. Nesta passagem, os autores deixam a imaginação de Pessoa se mesclar à definição de Lisboa que o toma por inteiro, conforme demonstra no poema Lisboa: “Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo, Lisboa com suas casas. De várias cores.” Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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“A TABACARIA FORA DE MIM”, DE ÁLVARO DE CAMPOS Mantendo a mesma descrição da obra poética, “Fernando Pessoa e outros Pessoas”, representa o terceiro momento poético deÁlvaro de Campos, a fase "intimista", na qual o personagem se fecha em seu mundo de pessimismo e desassossegos, para refletir sobre sua insignificância no mundo. Diferente do poema original, que inclina mais para erudição das palavras, a imagem da Tabacaria é o marco que mais prende atenção do leitor, por representar a recordação grandiosa, sublime e definida. Como todo o cenário que a cerca, é tudo que perdurará. Sobre esta visão, o próprio Álvares de Campos, define, que a tabacaria é a única coisa real por fora, já o homem que a contempla é a sensação do sonho

dentro desta. Nas HQ os autores retratam todo o penar de Campos, com um arranjo de versos e imagens que apesar de transparecer a dor do poeta, o faz em um tom menos fúnebre, amenizando o peso da leitura e facilitando a interpretação desta. Os textos visuais ajudam a ampliar nossa interpretação, no sentido de nos permitir ler e compreender as entrelinhas, onde as imagens revelam uma cidade cercada por pessoas sem feição, sem vida, sem distinção e voz. Deixando que as chaminés falem por todas as vozes que se calam. p. 16 e 17. Nas p. 18 e 19, Campos admira a vitalidade de uma garotinha comendo seu chocolate, cena que lhe é dolorosa, haja vista que ele não pode viver a mesma verdade com a qual ela come. “Pudesse eu comer chocolate com a mesma verdade com que comes, come, pequena, suja, come!”

As imagens nesta passagem reforçam, no leitor, a sensação de solidão, na qual as folhas secas voam e a garota é o único ser alocado em um espaço de luz. Como se fosse a única pessoa a ter um caminho a ser percorrido. Nos versos seguintes Guazzelli e Fazzolari introduzem o pensamento desiludido do poeta em cenas cinza, cheias de questionamentos, triste, sem vida. Neste momento a imagem de uma banheira configura a sensação de vazio sentida por Pessoa, em um recipiente onde a água é vetada por correntes. p. 20 e 21. “Vivi, estudei, amei, e até cri / E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.” Conseguintemente, nas p. 24 e 25, as cores em tons azuis e amarelos reforçam o cenário noturno, onde a tabacaria, o sistema solar e a Via Láctea, passam a ser a únicas verdades que permanecerão eternas. Logo nas páginas seguintes: 28 e 29, a cidade solitária e Tejo, ancestral – mudo, traduzem a insignificância

e sentimento de nada ser do eu lírico. “Ó macio Tejo ancestral e mudo... Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.” “O DESASSOSSEGO DE BERNARDO”, DE BERNARDO SOARES A obra base para a adaptação desta HQ, “O Livro do Desassossego” é considerado como uma das mais emblemáticas da literatura portuguesa, tendo Bernardo Soares, o ajudante de guarda livros, como o autor. Trata-se do semi-heterônimos de Pessoa, que questiona e expõe de forma fragmentada as perspectivas que podem ser caracterizadas por seu sentido de destacamento e distância, em relação ao mundo. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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No intuito de representar as mesmas ideias de Pessoa, a obra em HQ se vale da construção visual em tons pretos e brancos, agregando à história o cenário cosmopolita, onde Bernardo Soares, por meio de um “diário íntimo”, reflete histórias de vida, paisagens citadinas e da sua própria condição em relação ao mundo e ao tempo. Os trechos utilizados na HQ são recortes de expressões ricas e polidas, mas com decodificação fácil, devido o auxílio das imagens que as retratam e traduzem à narrativa. Na HQ as falas estão organizadas em balões e a história não segue um percurso linear, da mesma forma que na obra original, porém, a versão em HQ possibilita uma interpretação mais simples do trajeto da narrativa. Em ambas as versões, o discurso transcorre em 1ª pessoa, e inicia por meio do olhar observador e solitário de Bernardo Soares, que analisa a multidão frequentadora dos restaurantes baratos.

p. 33 a 34 Fiel à mensagem da obra poética, “Fernando Pessoa e Outros Pessoas”, nos revela a visão triste do poeta e a condição submissa do homem frente ao labor e a sociedade, expondo uma imagem que não condiz com eles e suas realidades. p. 42 e 43. A obra em HQ não apenas representa uma Lisboa real, mas abarca e compreende principalmente a cidade imaginada, a cidade da intimidade, a cidade da memória, mesmo aquela cidade real que surge no espaço do imaginário de Bernardo. Para ilustrar esse mundo, os artistas, foram procurá-la nas ruas, na geografia urbana, no traçado cotidiano, do lado de fora da janela e nas ruas de Lisboa. Nas últimas páginas da obra, Guazzelli e Fazzolari, instalam Bernardo em uma cena na praia, onde o infinito do mar, o trajeto do barco e o desejo do personagem é navegar rumo a um destino sem fim, além

do saudoso atracadouro do Tejo. Logo as imagens de Bernardo na janela, do trem, da mesa do bar, da máquina de escrever e do mundo como um todo, ficam flutuando a mercê do que realmente tem sentido e que permanecerá. “Um barco parece ser um objeto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontramo-nos navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso.” “O PASTOR DE ALMAS”, DE ALBERTO CAEIRO

No poema “O pastor de almas”, tem-se imagens límpidas e claras. Seguindo o mesmo nível de linguagem do original, a obra em HQ desmembra as 14 estrofes do poema, O Pastor Amoroso, para se concretizar-se em 48 distintas estrofes que configuram O Pastor de Almas. Em ambas as obras, notamos que evocação da fé e da natureza estão presentes em quase todos os cenários dos caminhos. Sempre dando ênfase às expressões: Cristo, amor e ausência. Diferente da obra poética, Guazzelli e Fazzolari, brincam com as imagens e a fala de Caeiro, fazendo uma associação entre nossa realidade e o questionamento do poeta por companhia, estando este em meio a vários prédios habitáveis. Um cenário típico do mundo globalizado. p.63 Nas páginas que transcorrem para o fim da narrativa em HQ, os escritores nos inserem em uma Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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interpretação ainda mais real da mensagem do grande poeta português, traçando paisagens de desconstrução, na quais os barcos voam pela cidade e esta, por sua vez, parece dormir um profundo sono, sob o olhar do pastor das almas. Alberto Caeiro então cai em si, e percebe a dura realidade do mundo, um lugar onde tudo é falso e incongruente. As ilustrações do vento agitando e levando tudo pelo ar, aloca o poeta na realidade árdua, então ele próprio se vê navegando nesta nau das ilusões. p. 68 a 73. A obra é finalizada com um breve relato e ilustrações sobre a história de Fernando Pessoa.

CONCLUSÃO A partir desta análise é possível afirmar que todas as partes têm uma movimentação diferente se relacionada à definição gráfica. A primeira parte, seguindo um padrão de encapsulamento em quase todas suas páginas, mostra uma monotonia, mas sem deixar de chamar atenção com seus desenhos e textos sequenciais. As partes seguintes são mais ativas, diria até animadas graficamente, trazendo um balanço sequencial para ilustrar os poemas, até com o uso de balões na segunda parte misturado com legendas em caixas. Desta forma, cada quadrinho da obra responde fielmente à proposta de agradar ou instigar a leitura chamando atenção pela representação de cada detalhe da história. Quanto à análise geral da obra adaptada para HQ, nota-se queesta segue um padrão não linear, mantendo fidedigno o tom e a essência dos versos originais, fielmente transcritos. Em se tratando

daestrutura do texto, esta ocorre por meio da intertextualidade, relação na qual, palavra e imagem dão corpo à mensagem e facilitam a interpretação desta,possibilitando ao leitoruma aproximação maior do poeta português. Concluí-se ainda, quea linguagem daobra analisada é extremamente rica,lúdica e cuidadosamente selecionada, podendo ser explorada por leitores não proficientes e não conhecedoresdos escritosoriginais de Fernando Pessoa, como, e sobre tudo, por leitores mais críticos, haja vista, queGuazzelli e Fazzolari, por meio da visão acertada das múltiplas linguagens,da ironia, do humor, da imagem que se complementa com o texto e dasutileza dos traços, permitem um retrato nítido da cena relatada, conduzindo o leitor a um mundo que prioriza o conteúdo literário presente nos quadrinhos, e não apenas os quadrinhos em si.

AGRADECIMENTOS: Ao nosso orientador de Mestrado Roberto Elísio dos Santos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS GUAZELLI. FAZZOLARI, Davi. Fernando Pessoa e Outros Pessoas. São Paulo: Saraiva, 2011 PINA, Patricia Kátia da Costa. Literatura em Quadrinhos: Arte e leitura hoje. Curitiba: Appris, 2012. VERONEZI, M. Quadrinhos na internet: abordagens e perspectivas. Porto Alegre: Asterisco, 2010. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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O GÓTICO E A FIGURA DO VAMPIRO NA HQ INTERVIEW WITH THE VAMPIRE: CLAUDIA’S STORY THE GOTHIC AND THE VAMPIRE’S FIGURE IN THE COMIC BOOK INTERVIEW WITH THE VAMPIRE: CLAUDIA’S STORY Jaqueliane Santos Coelho Universidade Católica de Brasília

RESUMO A literatura gótica está presente há 250 anos na cultura literária mundial, é um gênero literário que se renova continuamente e está presente em várias obras e em vários períodos desde o seu começo. A partir da conceituação de características góticas e da figura do vampiro, traçaremos um estudo comparativo do livro Entrevista com o vampiro, de Anne Rice, e a HQ Interview with the vampire: Claudia´s story, adaptada e ilustrada por Ashley Marie Witter. O conceito de tradução intersemiótica será apresentado para mostrar como as autoras usam de diferentes artifícios para retratar o Gótico e a figura do vampiro nas duas linguagens. Na narrativa em prosa, Rice faz uso de descrições detalhadas dos acontecimentos para enfatizá-los, na HQ, Witter, ao escolher somente três cores (branco, preto e vermelho) para as ilustrações, é capaz de traduzir elementos do gótico para a linguagem quadrinística. Palavras-chave: gótico; vampiro; tradução ABSTRACT Gothic literature is present in world’s literary culture for 250 years, it is a literary genre that is constantly renewing itself, it is present in many works of many time periods since its beginning. Starting with the conceptualization of Gothic characteristic and the vampire’s figure, we will delineate a comparative study of the book Interview with the vampire by Anne Rice, and the comic book Interview with the vampire: Claudia’s story adapted and illustrated by Ashley Marie Witter. The concept of intersemiotic translation will be presented to show how both authors use different devices to portray Gothic and the vampire’s figure in both languages. In the prose narrative, Rice uses detailed descriptions to emphasize what is happening, in the comic book Witter, by choosing only three colors (white, black and red) to the illustrations, is able to translate gothic elements to comic book language. Key words: gothic; vampire; translation

1. GÓTICO

Birkhead (1921) afirma que os elementos do terror sempre estiveram presentes na humanidade desde a cultura oral pela qual os homens tentavam explicar o mundo através de mitos, e muitos deles são mitos de terror. Para a cultura oral, esse tipo de mito é muito importante, pois ele consegue prender a atenção do ouvinte ao que está sendo contado. A autora atesta que é parte da natureza humana querer não somente se entreter, mas se impressionar com o medo. O termo gótico tem originalmente o significado de algo “[...] obsoleto, antiquado, ou estrangeiro”1 (CLERY apud HOGLE 2002, p. 21, tradução nossa). Há também ligação do termo com as invasões dos 1

[...] obsolete, old-fashioned, or outlandish.

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visigodos e a Renascença. O escritor inglês Horace utilizou o termo gótico na segunda edição de seu livro The castle of Otranto, mas ele só foi usado para denominar este gênero literário no século XIX, parte porque houve uma volta da arquitetura gótica nesse mesmo período e parte porque o termo apareceu no título do livro de Walpole. Como muitos escritores viam Walpole como o progenitor dessa tradição, o termo ganhou peso acadêmico. Segundo Hogle (2002), o Gótico é um fenômeno inteiramente pós-medieval e pós-renascimento. E de acordo o autor, o primeiro trabalho publicado que pode ser chamado de gótico é o livro The castle of Otranto, de Walpole, publicado em 1764. Alguns outros trabalhos seguiram essa mesma linha iniciada por Walpole, mas foi na década de 1790 que o gênero se espalhou pela Inglaterra, Europa e Estados Unidos.

Esse movimento literário passou pelo que ficou conhecido como Período Romântico, de 1790 até o começo de 1830, período no qual a obra Frankenstein, de Mary Shelley, foi escrita. Durante o século XIX, várias obras góticas foram escritas em vários gêneros como: peças, contos, romances entre outros. Na década de 1890 ocorreu o segundo grande boom da literatura gótica com os clássicos O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, publicado em 1890, Drácula, de Bram Stoker, publicado em 1897, dentre outros. E a partir de 1900, o gótico expandiu-se em filmes, romances escritos por mulheres, programas televisivos, peças, musicais, jogos de computador, etc. Hogle afirma que: Não há agora nenhuma dúvida de que o Gótico, particularmente na narrativa em verso e prosa, teatro e filme – todos estes nós aqui incluímos no termo “ficção Gótica” – se tornou um reino simbólico na cultura ocidental moderna e até pós-moderna duradouro e grandioso, embora altamente variável, mesmo que o rótulo Gótico possa parecer arcaico 2. (2002, p. 02, tradução nossa)

Logo, o gótico perdura na nossa cultura por cerca de 250 anos, e logicamente sofreu várias mudanças, mas existem algumas características que permanecem nas obras desse gênero. Hogle (2002) afirma que uma das principais características presentes em grande parte de obras góticas é que elas geralmente se situam, pelo menos durante algum tempo, em um castelo, uma prisão, um lugar estrangeiro, um cemitério, uma casa ou teatro, uma fábrica, dentre outras localidades. E de alguma forma, nesses lugares há algo que irá assombrar os personagens, geralmente é uma criatura sobrenatural, como um fantasma, uma criatura vinda do mundo dos mortos ou até de outro planeta, ainda é possível acrescentar o vampiro a esta pequena lista de Hogle. O vampiro é uma dessas criaturas com frequente presença em obras góticas, principalmente nas

obras de Anne Rice. É neste ponto que a ficção gótica começa a oscilar entre o mundo real e as possibilidades do mundo sobrenatural. Desta oscilação surgem duas vertentes do gótico: o terror e o horror. No terror, o leitor geralmente é mantido num sentimento de suspense e ansiedade com ameaças à vida e sanidade; já no horror, o leitor é submetido à uma violência física e psicológica crua “[...] destruindo explicitamente as supostas normas (incluindo as repressões) da vida cotidiana com consequências assustadoramente chocantes e revoltantes”3 (HOGLE, 2002, p. 03, tradução nossa). A temática gótica 2

There is now no question that the Gothic, particularly in prose or verse narrative, theatre, and film – all of which we here encompass in the phrase “Gothic fiction” – has become a long-lasting and major, albeit widely variable, symbolic realm in modern and even postmodern western culture, however archaic the Gothic label may make it seem. 3

[…] explicitly shattering the assumed norms (including the repressions) of everyday life with wildly shocking, and even revolting, consequences.

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também trata de contrários “[...] incluindo vida/morte, natural/sobrenatural, antigo/moderno, realista/ artificial, e inconsciente/consciente [...]”4 (Ibidem, p. 09, tradução nossa). Hogle (2002) segue afirmando que esse tipo de narrativa acaba mostrando ou disfarçando os desejos mais internos ou até os mais explícitos do ser humano. Nas obras de Anne Rice, por exemplo, a imortalidade é amplamente explorada, pois ela é um desejo que muitas pessoas têm e que os vampiros alcançam, mas os personagens acabam mostrando o lado ruim desta suposta dádiva. Birkhead (1921) afirma que o romance gótico não é um reflexo da vida real, mas que seu objetivo é despertar emoções nos leitores por meio do medo e pena. O motivo pelo qual esse gênero está há tanto tempo presente de alguma forma na tradição literária

mundial é, para Hogle (2002), porque os mecanismos simbólicos utilizados nessas narrativas mudam de acordo com as condições modernas. Mesmo aquelas obras que foram escritas há muito tempo permanecem na tradição literária atual, como Frankenstein, de Mary Shelley, ou Drácula, de Bram Stoker. Hogle (2002) acredita que esse gênero literário está presente há tanto tempo, pois ele possui mecanismos simbólicos que são utilizados e adaptados de acordo com a condição moderna. Até mesmo obras como Frankenstein, de Mary Shelley, ou Drácula, de Bram Stoker, que foram escritas há muito tempo permanecem na tradição literária atual. 1.1 GÓTICO AMERICANO

Savoy (2002) atesta que na virada do século XVIII para o século XIX começou a se formar uma literatura americana gótica. A formação dos Estados Unidos como uma nação livre e otimista ironicamente propiciou um ambiente fértil para a afloração da literatura gótica que é fascinada pelo passado e por temas considerados mais sórdidos. Há, para Savoy, uma explicação geral na qual o Gótico seria a metáfora que “[...] personifica e dá voz ao pesadelo sombrio que está subentendido no ‘Sonho Americano’. Esta formulação é verdadeira até certo ponto, pois ela revela as limitações da fé americana no progresso social e material5 (2002, p. 167, tradução nossa)”. Essa comparação entre os opostos “sonho e pesadelo” é muito simplória, pois eles têm relação entre si. Uma das grandes características do gótico americano é a recorrência de símbolos e figuras verbais, como metáforas, personificações, dentre outros. Inicialmente os escritores americanos basearam-se nos parâmetros definidos pelo gótico britânico,

mas há características especificamente americanas, não há somente uma adaptação de uma literatura mais aristocrática para o mundo democrático. Como já foi citado anteriormente, há grande importância na tradição gótica americana de figuras de linguagem, sendo que a mais recorrente é a prosopopeia, na qual ideias abstratas são personificadas na figura de um fantasma, por exemplo. Essas narrativas problematizam de um jeito inovador e único o âmbito político e cultural dessa nação que ainda estava constituindo-se.

4

[…] including life/death, natural/supernatural, ancient/modern, realistic/artificial, and unconscious/conscious […].

5

[...] embodies and gives voice to the dark nightmare that is the underside of “the American dream.” This formulation is true up to a point, for it reveals the limitations of American faith in social and material progress.

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2. A FIGURA VAMPIRESCA A vampiróloga Theresa Bane (2010), uma mitóloga que se especializa no estudo de vampiros, afirma que sempre houve nas culturas do mundo uma figura vampiresca, uma figura que causa pragas e mortes. E o ponto em comum que todos estes tipos de vampiros estudados pela autora têm é que estas criaturas são movidas pelo medo humano, não importa o que eles atacam sempre será algo que o ser humano preza ou valoriza. E para a autora “a razão pela qual não há uma única definição de um vampiro é porque cada povo de uma cultura, de diferentes períodos temporais e de suas várias localizações, teme diferentes coisas.”6 (BANE, 2010, p. 2-3, tradução nossa).

A permanência do mito vampiresco na cultura mundial é algo intrigante, e McGinley (1996) investigou o real motivo desse mito ter sobrevivido e ter sido repassado em diversas culturas até mesmo quando a ciência e a razão começaram a prevalecer, o mito sobreviveu. Para a autora, a figura do vampiro está sempre cheia de simbolismo, muitos já a viram como uma metáfora para a AIDS ou para um comportamento vicioso. McGinley afirma que o mito vampiresco tenta responder as perguntas consideradas fundamentais pela humanidade, sendo elas: “O que exatamente é a morte, e o que acontece conosco quando morremos? Qual a natureza do bem e do mal? Como o amor, a culpa e a sexualidade são parte da vida humana”7 (1996, p. 72, tradução nossa). Para a autora, três autores trataram dessas questões com suas obras, Lord Byron, o primeiro a usar a figura do vampiro na literatura, Bram Stoker, cujo vampiro Conde Drácula é sempre lembrado quando a figura do vampiro literário é mencionada, e Anne

Rice, que atualizou a lenda vampiresca para os tempos modernos. William Hughes (2001) analisou a figura do vampiro na ficção nos séculos XIX e XX. Nesta análise, o autor afirma que o Drácula, de Bram Stoker, devido ao seu enorme sucesso neste tipo de ficção, tornou-se um sinônimo da palavra vampiro. William Hughes (2001) faz uma análise da figura do vampiro na ficção nos séculos XIX e XX, o autor refere-se ao Drácula, de Bram Stoker. O personagem Drácula tornou-se quase como um sinônimo da própria palavra vampiro. Os vampiros retratados após esse personagem são sempre julgados por serem iguais ou diferentes dele. O autor cita os vampiros de Rice, pois a mesma faz referências ao Drácula em suas obras. Quando Lestat revela-se vampiro a humanos, eles ficam gratos por Lestat não fingir ser Drácula, pois, segundo ele, todo mundo estava cheio do Conde Drácula. Já Louis demonstra desprezo por

crucifixos e símbolos sagrados e trata muitas coisas presentes no folclore vampiresco como meras bobagens. Muitos críticos recorrem aos vampiros de Rice e de outros autores, pois eles quebram, de forma irônica, o padrão de vampiro presente na literatura até então. Hughes (2001) ainda afirma que Drácula foi colocado como um ponto de divisão entre os anos finais do movimento romântico, no início do século XIX e o pós-modernidade, no final do século XX. Drácula é, portanto, uma referência nos estudos da figura do vampiro. 6

The reason that there is no single definition of a vampire is because each culture of people, from their various time periods and from their various locations, has feared different things. 7

What precisely is death, and what happens to us after we die? What is the nature of good and evil? How are love, guilt, and sexuality part of human life?

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Os contrastes dos vampiros do século XIX e XX se dão na narração. Os vampiros do século XIX geralmente são narrados ao invés de narrarem, só é possível vê-los através do olhar do narrador e há, de alguma forma, algum sentimento predominante do narrador. Já o vampiro do século XX é o narrador de sua própria estória ou é o personagem central na narrativa de terceira pessoa (HUGHES, 2001). O vampiro de Rice é o narrador de sua estória, tudo é visto sob o ponto de vista dele. Por conta disso, a imagem do vampiro sofre uma mudança, o que antes era retratado por uma terceira pessoa como repugnante, uma criatura altamente maligna, agora é vista sob o próprio ponto de vista da criatura. Em Rice, a imortalidade é vista como uma dádiva e uma maldição. Para Wisker (2001) não é possível encaixar os vampiros de Rice em uma só categoria, ao decorrer

da obra eles são descritos como anjos e como demônios. A autora segue afirmando que as inseguranças dos personagens de Rice podem ser vistas como um retrato da sociedade pós-moderna. Os personagens presentes na HQ são: Cláudia, Louis e Lestat. Este é o mais próximo do vampiro literário tradicional, ele é frio e distante. Ele mata por matar, não necessariamente para se alimentar, como Louis, um vampiro criado por ele, o faz. Louis tem uma natureza mais frágil, mais próxima do ser humano, tem mais sentimentos e chega a demonstrar certa repulsa e resistência para se alimentar de sangue humano. Quando Louis está pensando em abandonar seu criador, Lestat cria Cláudia numa artimanha para prendêlo. É no momento da criação de Cláudia que a narrativa da HQ se inicia. 3. TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA

Para definir o que é a tradução intersemiótica Plaza (2010) primeiramente dá a definição de signo de Peirce que afirma que “um signo ‘representa’ algo para a ideia que provoca ou modifica. [...] o ‘representado’ é seu objeto; o comunicado, a significação; a ideia que provoca, o seu interpretante” (1971, p. 99 apud PLAZA, 2010, p. 17). Portanto, a tradução intersemiótica ocorre para Plaza (2010) quando há a transação, ou adaptação de um signo para outro, isto é, quando há a tradução de uma linguagem para outra, no caso da presente pesquisa: a tradução de uma obra literária para a linguagem da história em quadrinho. Plaza ressalta que o processo de tradução é inventivo, pois a tradução é um “[...] trânsito criativo de linguagens [...]” (2010, p. 1), portanto não é dever da tradução ser verossímil, pois há a criação de uma verdade própria. No caso das obras analisadas, esta característica da tradução intersemiótica se faz presente ao longo de todo o desenrolar da estória na HQ, pois Witter, a adaptadora, ao mudar o ponto de vista

narrativo possibilita a inserção de mais elementos na estória. Para a inserção destes elementos, Witter usa de instrumentos próprios da linguagem quadrinística como o balão pensamento, que a adaptadora usa para expressar os pensamentos da vampira Claudia. Enquanto na obra de Rice há o uso da narração em primeira pessoa, onde tudo é visto pelo ponto de vista e emoções de Louis. Para Plaza na “[...] tradução intersemiótica, os signos empregados têm tendência a formar novos objetos imediatos, novos sentidos e novas estruturas que, pela sua própria característica diferencial, tendem a se desvincular do original” (2010, p. 30). Apesar de ter uma relação próxima com o seu original, a tradução dificilmente será literal, uma cópia perfeita do original. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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4. ANÁLISE COMPARATIVA A obra Entrevista com o vampiro, de Anne Rice, foi primeiramente lançada em 1976, esta foi a primeira obra lançada de Rice e alcançou grande sucesso em vendas. Ela ganhou ainda mais visibilidade quando em 1994 foi lançada a sua adaptação cinematográfica. E, somente em 2012, ganhou a sua adaptação para quadrinhos Interview with the vampire: Claudia’s story. A presente análise abordará a obra literária de Rice e a obra quadrinística de Witter de forma comparativa para ver os diferentes elementos que as autoras usam para representações do gótico e da figura do vampiro.

Hogle (2002) afirma que um dos elementos centrais do gótico é o terror, e as duas autoras conseguem trabalhar com o terror dentro de suas linguagens. Enquanto Rice utiliza de descrições detalhadas de cenas fortes, Witter utiliza somente três cores no decorrer de sua obra: preto, branco e vermelho. O vermelho só é usado em cenas onde há fogo e sangue tornando-as assim mais impactantes. Um dos primeiros momentos em que o sangue aparece na HQ pode ser visto na figura abaixo:

Figura 1: Cláudia aprendendo a caçar humanos. (WITTER, 2012, p. 16)

O texto inserido no balão-pensamento da figura 1 é “caçar e seduzir eram as lições de Lestat para mim, e eu cheguei a conhecer e saborear os vários aspectos da morte. Lestat era o tutor perfeito e eu absorvia tudo o que ele estava disposto a oferecer” (WITTER, 2012, p. 16, tradução nossa). Nesta figura também é possível perceber um recurso que a adaptadora usa durante toda a obra: o balão-pensamento usado para dar voz à Cláudia, para fazer o leitor ficar sempre integrado com o que Cláudia está sentindo e pensando. Ao descrever a sede de matar de Cláudia, Rice usa as seguintes palavras na narrativa em prosa “[...] além de ser uma criancinha, também era um terrível matador, capaz agora de procurar sangue com toda a força e exigência de uma criança” (RICE, 1996, p. 96). Esta sede de matador é representada na figura 1 com os olhos de Cláudia, que dão ideia de fome e desejo, e com o sangue, que deixa a imagem com maior impacto. 8

Hunting and seduction were Lestat’s lessons for me, and I came to know and relish death’s many moods. Lestat was the perfect tutor, and I absorbed all that he was willing to offer

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O fogo também aparece na cor vermelha, pois ele é uma figura impactante na descrição da cena em que a casa em que Louis, Lestat e Claudia moram é queimada no livro. Rice chega a comparar o fogo na casa com o inferno: Não posso descrever o que aconteceu. Possivelmente não saberia contar. Lembro-me de ter lançado a lâmpada em Lestat. Ela se partiu a seus pés e as chamas subiram do tapete. Eu tinha uma tocha nas mãos, uma bucha de pano que tinha arrancado do sofá e acendido nas chamas. [...] E de algum ponto vinham os gritos de pânico de Cláudia. E a outra lâmpada estava quebrada. E as cortinas ardiam. [...] A própria sala tinha rapidamente se transformado num inferno [...] (RICE, 1996, p. 149)

Já na HQ, para retratar todo esse cenário com intensidade, esse inferno descrito por Louis é usado o tom de vermelho no fogo, como é possível ver na figura 2 abaixo:

Figura 2: Casa de Louis, Lestat e Cláudia em chamas. (WITTER, 2012 p. 126)

O texto no balão-pensamento da figura 2 é: Não havia alegria desta vez, o segundo assassinato do meu pai... Somente o pesadelo espetacular do lar da minha infância em chamas, a Morte incomensurável surgida desta visão... e os braços de Louis me circundando, me embalando de forma protetiva em seu peito enquanto ele nos afastava daquela cena... (WITTER, 2012, p. 126, tradução nossa) 9

Uma das grandes características do mito vampiresco é a questão da imortalidade que está sempre presente em diversas narrativas que tratam dessa figura. No caso de Rice não é diferente, a questão da imortalidade é tratada dentro de sua narrativa em prosa e igualmente na HQ. Witter traduziu esta problemática da imortalidade e da percepção da passagem de tempo para os vampiros. O tempo e as lembranças são vistos como fragmentos, a figura 3 retrata a passagem de anos do decorrer da narrativa: 9

There was no joy in it this time, the second murder of my father... Only the nightmare spectacle of my childhood home set ablaze, of Death unfathomable risen from the mire… and Louis’s arms encircling me, cradling me protectively against his chest, as he hurried us away from the scene…

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Figura 3: Passagem de anos aos olhos de Cláudia. (WITTER, 2012, p. 31-32)

A narrativa na HQ começa quando Cláudia desperta durante o processo de se tornar uma vampira, o despertar veio no momento depois de Lestat sugar quase todo o sangue de Cláudia, um dos passos para se fazer um vampiro e é considerado o início da vida imortal do mesmo. Na HQ este momento de despertar é visto da seguinte forma na figura 4:

Figura 4: Despertar de Cláudia (WITTER, 2012, p. 01-02)

A primeira página inteiramente preta ajuda a reforçar a morte da parte humana da menina e a luz que é inserida no topo da página representa o início de uma nova vida, o dom da imortalidade. Em contraponto com as duas primeiras páginas estão duas páginas no final da HQ, pois o inverso desse jogo de cores ocorre, vide figura 5: Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Figura 5: A morte de Cláudia e Madeleine. (WITTER, 2012, p. 209-210)

A imagem começa iluminada com a luz do sol, que para os vampiros é uma grande ameaça, e vai escurecendo aos poucos, representando de forma bela a morte das duas vampiras. Na narrativa em prosa de Rice, a cena é descrita quando Louis encontra os restos mortais das duas vampiras: Mas aquelas duas que jaziam na chuva fina eram Madeleine e Cláudia, e o adorável cabelo ruivo de Madeleine se misturava com o ouro dos cachos de Cláudia, que se agitavam e reluziam ao vento que corria pela porta aberta. O que era vivo, porém, havia sido consumido pelo fogo – não o cabelo, não o vestido de veludo comprido e vazio, não a camisinha manchada de sangue com seus olhinhos de renda branca. E a coisa enegrecida, queimada e seca que fora Madeleine ainda conservava os traços de seu rosto vivo, e a mão que agarrava era absolutamente igual à de uma múmia. Mas a criança, a minha Cláudia, era cinza. (RICE, 1996, p. 277)

Como é possível perceber no trecho acima na narrativa, não há a descrição do momento da morte, pois ela é sob o ponto de vista de Louis e ele estava preso no momento da morte de Madeleine e Cláudia, mas como a HQ é do ponto de vista de Cláudia não faria sentido não termos também a cena da morte visto em primeira pessoa. Antes de ver os restos mortais da menina, Louis vê o vestidinho dela manchado com lágrimas de sangue e chega à conclusão de que ela está morta. A cena de Louis encontrando o vestido é descrita da seguinte forma: Meus dedos percorreram lentamente as lágrimas que o sujavam, manchas de sangue, minhas mãos se fechando, trêmulas, ao apertá-lo contra o peito. [...] Lembro-me de ter pensado que queria tapar os ouvidos, mas não poderia largar o vestido, não conseguiria parar de tentar torná-lo tão pequeno a ponto de escondê-lo nas mãos. (RICE, 1996, p. 276)

Na HQ uma única imagem é capaz de traduzir todo este sentimento de remorso, mágoa e dor que Louis está sentindo, a figura 6, contendo as duas últimas páginas da HQ, demonstra isso:

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Figura 6: Louis segurando o vestido de Cláudia. (WITTER, 2012, p. 211-212)

Um dos pontos centrais da adaptação de Witter é a personagem Cláudia, pois além de ser a personagem central da sua adaptação, ela sofre grandes mudanças internas que acabam refletindo na sua aparência e comportamento. Uma das grandes verdades do mito vampiresco de Rice é que um vampiro permanece com a mesma aparência física do momento em que a transformação ocorre. Logo, Cláudia estava fadada a ter sempre a aparência de uma criança de cinco anos, apesar da passagem dos anos e de um amadurecimento intelectual. A maneira como Cláudia é representada durante a HQ também muda, mostrando o amadurecimento de Cláudia que é perceptível na sequência de figuras a seguir:

Figura 7: Cláudia e o cadáver de sua mãe. (WITTER, 2012, p. 72)

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Figura 8: Cláudia momentos após sua transformação vampiresca. (WITTER, 2012, p. 05)

Figura 9: Cláudia tomando o sangue de sua vítima. (WITTER, 2012, p. 28)

Figura 10: O momento que Cláudia envenena Lestat. (WITTER, 2012, p. 101)

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Figura 11: Close dos olhos de Cláudia. (WITTER, 2012, p. 56)

Nas figuras de 7 a 11, é perceptível uma grande mudança na fisionomia de Cláudia, principalmente nos seus olhos, pois até mesmo no romance em prosa Louis cita o fato de perceber a mudança comportamental de Cláudia refletida nos olhos da vampira. O trecho a seguir mostra um dos momentos no

qual Louis fala dessa mudança de Cláudia: E cada vez mais seu rostinho de boneca parecia possuir dois olhos totalmente adultos e conscientes, e a inocência parecia perdida em algum lugar, junto com brinquedos esquecidos e a perda de uma certa paciência. (RICE, 1996, p. 100)

Além dos olhos de Cláudia serem ressaltados em várias ilustrações no decorrer da obra, a metáfora comparativa entre a menina e uma boneca é recorrente. O apelido que Louis dá à Cláudia é boneca, e ela é presenteada com bonecas constantemente tanto por Louis como por Lestat. Mas, conforme ela amadurece, a boneca perde o apelo que tinha sob a menina e em dois momentos a boneca aparece como figura importante e muitas vezes retratando o que a vampira está sentindo, vide figuras 12 e 13:

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Figura 12: Louis consolando Cláudia após a menina descobrir como ela foi criada. (WITTER, 2012, p. 46)

Figura 13: Uma ladydoll quebrada e os pensamentos de Cláudia sobre ela. (WITTER, 2012, p. 165)

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Nas duas figuras, Cláudia compara-se às bonecas, na primeira figura pensando que Louis estava segurando-lhe da mesma forma que ela segurava as suas bonecas. Já a segunda figura retrata uma ladydoll, uma boneca adulta feita por Madeleine a pedidos de Cláudia, mas a menina está passando por um momento de autoconhecimento. Ela acaba quebrando a boneca e chega a pensar “A ladydoll quebrada no chão parecia uma melhor representação do meu verdadeiro eu do que as bonecas com as quais Lestat costumava atormentar-me...”10 (WITTER, 2012, p. 165, tradução nossa). É possível, portanto, perceber que a ideia de fidelidade ao original deve ser esquecida, pois é necessário levarmos em conta a inventividade do adaptador e tradutor intersemiótico. Especificamente na análise comparativa é possível ver que as duas autoras conseguem representar elementos da literatura

gótica nas duas obras, utilizando artifícios próprios de cada linguagem. O terror é, na obra de Rice, composto por descrições detalhadas muitas vezes com o uso de metáforas; já na obra de Witter o terror é mais bem representado nas cenas onde há cor e onde seus desenhos são mais detalhados. Os vampiros de Rice são representados com toda a problemática da imortalidade em ambas as obras, trazendo a complexidade destes vampiros que não são planos, mas multifacetados. Eles são os heróis e os vilões dentro da história, são eles que contam suas aventuras e assim podemos ter uma imagem de um vampiro mais real, que não é mais narrado em terceira pessoa. São criaturas belas e sedutoras e estas são características que Witter consegue deixar transparecer em seus traços.

AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus pais Francisco e Sileide pelo apoio, a Maria de Lourdes e Josiane pelo incentivo e a Alessandra por ser um grande exemplo e me apoiar na elaboração deste trabalho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BANE, Theresa. Encyclopedia of Vampire Mythology. Jefferson: McFarland & Company, 2010. BIRKHEAD, Edith. The tale of terror: A Study of the Gothic Romance. Londres: Constable & Company, 1921.

HOGLE, Jerrold E. (Org.) The Cambridge Companion to Gothic Fiction. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2002. HUGHES, William. Fictional vampires in the nineteenth and twentieth centuries. In: PUNTER, David (Org.). A companion to the Gothic. Oxford: Blackwell Publishing, 2001. p. 143-154. MCGINLEY, Kathryn. Development of the Byronic vampire: Byron, Stoker, Rice. In: HOPPENSTAND, Gary; BROWNE, Ray B. The gothic world of Anne Rice. Bowling Green: Bowling Green State University Popular Press, 1996. p. 71-90.

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The broken ladydoll on the floor seemed a better representation of my true self than the baby dolls with which Lestat used to torment me...

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PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010. RICE, Anne. Entrevista com o vampiro. Tradução de Clarice Lispector. 10. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. RICE, Anne. Interview with the vampire: Claudia's story. Arte e adaptação de Ashley Marie Witter. Nova Iorque: Yen Press, 2012. SAVOY, Eric. The Rise of American Gothic. In: HOGLE, Jerrold E. (Org.) The Cambridge Companion to Gothic Fiction. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2002. p. 167-188. WISKER, Gina. Love bites: contemporary women’s vampire fiction. In: PUNTER, David (Org.). A companion to the Gothic. Oxford: Blackwell Publishing, 2001. p. 167-179.

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OBRIGADO, DR. VAN HELSING: A FICÇÃO VAMPÍRICA NA ADAPTAÇÃO DE EU SOU A LENDA E EM 30 DIAS DE NOITE, DE STEVE NILES THANK YOU, DR. VAN HELSING: THE VAMPIRE FICTION IN STEVE NILES’ I AM LEGEND AND 30 DAYS OF NIGHT Lúcio Reis Filho Universidade Anhembi Morumbi

RESUMO A noveleta Eu Sou a Lenda (I am Legend, 1954), de Richard Matheson, é considerada peça exemplar entre as obras de horror e ficção científica da década de 50 que criticavam o conservadorismo político e a classe média norte-americana. A narrativa segue os passos do herói Robert Neville, que vive em um cenário pós-apocalíptico após a guerra atômica ter causado uma epidemia que transforma os seres humanos em criaturas vampíricas, destruindo a civilização como a conhecemos. Obra influente, tem gerado não apenas adaptações cinematográficas, mas também adaptações literárias, como a minissérie homônima em quadrinhos assinada por Steve Niles e ilustrada por Elman Brown. Além de analisar a adaptação de Niles, considerando sua intertextualidade, buscamos perceber a influência da noveleta sobre outro de seus trabalhos: o projeto 30 Dias de Noite (30 Days of Night, 2002). Palavras-chave: Eu Sou a Lenda; 30 Dias de Noite; Richard Matheson; Steve Niles ABSTRACT Richard Matheson’s I am Legend (1954) is considered an exemplary piece among the horror and science fiction novels from the 50s, which criticized the American middle-class and the political conservatism. The narrative follows the steps of the hero Robert Neville, who lives in a postapocalyptic scenario after the atomic war have caused an epidemic that turns humans into vampirelike creatures, destroying civilization as we know it. This influential novel generated not only screen adaptations, but literary as well, as the eponymous comic book mini-series by Steve Niles and Elman Brown. Besides observing Niles’ adaptation, considering its intertextuality, we seek to perceive the influence of Matheson’s novel over another of his works: the project 30 Days of Night (2002). Key words: I am Legend; 30 Days of Night; Richard Matheson; Steve Niles.

HORROR NOS SUBÚRBUIOS Ao longo das últimas décadas do século xx, o último refúgio da classe média norte-americana se transformou no locus preferido das narrativas ficcionais para o encontro com intrusos, assassinos em série e o sobrenatural. De acordo com Sobchack, a família configurou o espaço das convulsões sociais nesse momento histórico, funcionando como um sinal de sua representação (1987, p. 178). Na óptica de Grunenberg, a presença intrusiva de assassinos enlouquecidos e monstros alienígenas no habitat de pacatos cidadãos teria um significado ainda mais amplo: a desintegração da instituição burguesa da família nuclear Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016


(1997, p. 175). No cinema surgiram diversos exemplares dessa tendência: O Bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, dir. Roman Polanski, 1968), O Exorcista (The Exorcist, dir. William Friedkin, 1973), A Fúria (The Fury, dir. Brian De Palma, 1978), The Amityville Horror (dir. Stuart Rosenberg, 1979), Poltergeist – O Fenômeno (Poltergeist, dir. Tobe Hooper, 1982), entre outros. As obras de ficção que instalam o Mal dentro dos lares tradicionais compõem o gótico suburbano, definido por Murphy (2009, p. 2) como “subgênero de toda a tradição gótica norte-americana”. A autora encontra as raízes desse subgênero nos eua do pós-Segunda Guerra, quando os primeiros empreendimentos habitacionais em massa começaram a se expandir pelo país. Iniciou-se, assim, um movimento populacional maciço em direção aos subúrbios, que passaram a ser percebidos como

portadores de conexão inata com os valores basilares da nação, configurando, ao menos parcialmente, espaço dual para escritores, cineastas e comentaristas culturais. Ao mesmo tempo em que o ambiente social foi considerado um paraíso utópico para a geração do baby boom e sua prole crescente, surgiram narrativas paralelas e sombrias a respeito do american dream. Estas dramatizavam as ansiedades decorrentes do processo de suburbanização, encerrando algo sombrio por trás de sua fachada pacífica. Fiedler delimita as principais diferenças entre a ficção gótica europeia e a norte-americana. Na Europa, a apropriação imaginativa do passado feudal forneceu ao gênero muitos de seus cenários, características e sustentáculos. Nos eua, o mesmo foi adaptado devido à ausência dessa tradição (citado por MURPHY, 2009, p. 9). Dessa maneira, ao invés de transcorrer em castelos medievais, casas neogóticas ou vilarejos isolados da Inglaterra, o gótico contemporâneo encontrou lugar em panoramas

tipicamente americanos, como fábricas, armazéns, paisagens urbanas noturnas, estacionamentos abandonados e outros remanescentes da cultura pós-industrial, bem como nos subúrbios de aparente paz e normalidade (GRUNENBERG, 1997, p. 176). Portanto, o chamado “horror nos subúrbios” apresenta cenários, preocupações e protagonistas suburbanos, e o gênero a ele relacionado parece tocar na suspeita perene de que mesmo as casas, famílias ou vizinhanças de aparência mais ordinária têm algo a esconder. Não importa o quão calmo e tranquilo um lugar pareça, ele estará sempre a um passo de um incidente dramático — e sinistro (MURPHY, 2009, p. 2). O tropo da casa suburbana aparentemente pacífica com um SEGREDO TERRÍVEL em seu interior é tão familiar que se tornou clichê. Reflete o medo de que as aceleradas mudanças nos modos e estilos de vida que tomaram forma nos anos de 1950 e no início de 1960 tenham causado danos irreparáveis, não apenas ao ambiente, mas ao estado psicológico das pessoas que migraram para esses novos locais e romperam com os velhos padrões de existência. Deve-se muito à onda de comentários de intelectuais, com frequência cáusticos, que acompanharam essas mudanças e previram a sucessão de terríveis consequências: significativamente, a linguagem e as imagens utilizadas por tais comentaristas, em geral, deviam muito ao estilo gótico (MURPHY, 2009, p. 2).

Ainda segundo Murphy, o gótico suburbano surge pela primeira vez em três histórias curtas do escritor norte-americano Richard Matheson: Eu Sou a Lenda (1954), The Shrinking Man (1956) e A Stir of Echoes (1958). A primeira trata-se de uma noveleta de horror e ficção científica ambientada nos anos 70, numa Los Angeles futurista devastada por uma epidemia. Para Matheson, o que importava era explorar as Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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reações de um indivíduo em particular no cerne de um contexto totalmente transformado. Seu texto constitui peça exemplar dentre as obras de ficção científica que criticavam o conservadorismo político e a classe média dos anos 50. Produzido no contexto da Guerra Fria, evoca o motif do fim do mundo por uma praga, bem como a ideia do último homem sobre a Terra — nesse mundo, os vampiros se tornaram a norma da sociedade, e o último homem o seu anátema, uma mera relíquia do passado. A obra remodela o velho arquétipo do vampiro, oferecendo um tratamento científico para o mito, transportado dos domínios da literatura gótica para as lentes do método científico. “A força do vampiro é que ninguém acreditará nele”. Muito obrigado, Dr. Van Helsing, pensou Neville, pousando o seu exemplar de Drácula. (...) Não podia negar que era verdade. O resto do livro podia ser um amontoado de superstições e frases feitas, mas aquela frase era verdadeira. Ninguém nunca acreditara neles, e como se pode lutar contra algo em que nem sequer se acredita? (MATHESON, 1984, p. 14).

Eu Sou a Lenda segue os passos do herói Robert Neville, que vive em princípios de 1976, após a guerra atômica ter causado uma epidemia que transforma os seres humanos em criaturas vampíricas, destruindo a civilização como a conhecemos. Ambientado em um futuro próximo, a narrativa descreve os dias da vida de Neville, que perdeu a esposa e a filha para a praga. Ele vive em sua casa, protegida por alho e mantida por um gerador, onde leva uma vida autossuficiente. Durante o dia, Neville pesquisa sobre a doença, à qual é imune, estudando células e plasma sanguíneo, luta contra a solidão e vaga pela cidade à procura dos vampiros em seus esconderijos, matando-os com estacas de madeira. Noite após noite, é

perturbado pelas criaturas lideradas por seu vizinho Ben Cortman, as quais o assediam exigindo que saia. Ao longo da narrativa, perpassam os valores da classe-média, em cheque pelo absurdo da situação circundante. A noveleta é de 1954, mas é possível sentir a revolucionária década de 1960 “logo na esquina” — ou apenas a paranoia social típica da era atômica. ADAPTAÇÃO E INTERTEXTUALIDADE Obra influente, Eu Sou a Lenda tem inspirado produções cinematográficas. Dentre elas, destaca-se A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, 1968), conforme atestou o cineasta George A. Romero (REIS FILHO, 2013, p. 101). O horror nas narrativas de ficção parece ter-se instalado

definitivamente nas pequenas cidades suburbanas dos eua desde o lançamento desse filme, que teria florescido a partir de doloroso contraste entre a comunidade pacífica e o caráter ordinário dos personagens (GRUNENBERG, 1997, p. 176). Porém, é importante destacar os precursores do “horror nos subúrbios” na literatura e o papel de Matheson como um de seus fundadores. A ficção especulativa, portanto, já reivindicara os subúrbios como geografia literária antes mesmo dos anos 60 e 70. O texto gerou ao menos três adaptações para o cinema — a produção ítalo-americana Mortos que Matam (The Last Man on Earth, 1964, dir. Ubaldo Ragona e Sidney Salkow), A Última Esperança da Terra (The Omega Man, 1971, dir. Boris Sagal) e Eu Sou a Lenda (I am Legend, 2007, dir. Francis Lawrence) — e também adaptações literárias. É o caso da minissérie em quadrinhos Richard Matheson’s I Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Am Legend (1991), assinada por Steve Niles e ilustrada por Elman Brown. Para Oliveira, o diálogo entre os clássicos da literatura e os quadrinhos constitui um movimento importante e deve ser considerado. Uma vez que o uso de material literário tem possibilitado a elaboração de inúmeros enredos nesse meio, a relação entre ambos se mostra eficiente para a criação das mais diversas narrativas (2014, p. 41). Vale destacar que o processo comumente conhecido como “adaptação” — cujos objetivos passam pela recriação artística — trata-se da chamada tradução intersemiótica (ZENI, 2014, p. 116). Oliveira explica que a adaptação consiste numa transposição intermeios na medida em que o texto-base é recuperado sem que nenhum elemento novo/diferente interfira. Quando ocorre a adição de elementos à narrativa, alterando-a de alguma maneira, tem-se o chamado diálogo intertextual. A intertextualidade2

aponta para o fato de que um texto se constitui por um conjunto de citações de outros textos, adaptando-os e transformando-os. “Estendendo esse conceito para a produção artístico-comunicativa como um todo”, explica a autora, “podemos ainda acrescentar que a elaboração de uma obra também traz em si ecos da época e do contexto social em que foi realizada” (ZENI, 2014, p. 40). Na atualidade, Steve Niles figura entre os mais destacados escritores de quadrinhos de horror. McCloud descreve o contexto em que ele iniciou sua produção. No início dos anos 90 ocorreu o boom dos quadrinhos, alimentado pela especulação gananciosa sobre os itens para colecionadores. Com a expansão do mercado e a gradual proliferação de lojas especializadas também proliferaram criadores independentes e autônomos, muitos dos quais agitavam discussões acerca da liberdade criativa. Alguns ainda recorriam à linguagem dos gêneros familiares; outros, criavam obras mais claramente independentes (2006, pp. 9;63).

Muitos dos criadores mais vendidos deram as costas às grandes editoras e abriram sua própria empresa. Nesse panorama, começaram a emergir editoras menores, inspiradas pelo underground mais libertário, que ofereceram aos criadores de quadrinhos um grau sem precedentes de propriedade e controle. Uma dessas novas empresas seria a importante Image Comics, cujos criadores continuariam a produzir ao estilo do grande mercado (Idem, pp. 61; 63). Niles iniciou sua carreira pelas vias da publicação autônoma, posteriormente se enquadrando no grande mercado. Sua entrada na indústria dos quadrinhos ocorreu com a criação de sua própria editora, a Arcane Comix. Posteriormente, publicou, editou e adaptou diversas antologias para a Eclipse Comics, sendo Richard Matheson’s I Am Legend um de seus primeiros trabalhos. Seu currículo reúne títulos como Criminal Macabre (1990-), 30 Dias de Noite (30 Days of Night, 2002), Dark Days (2004), diversas

edições de Spawn3, entre outros títulos. A trajetória de Niles tem sido marcada por profícuas parcerias com expoentes do gênero do horror, como Clive Barker, Rob Zombie, e Todd McFarlane, este último um dos fundadores da Image. De maneira geral, os trabalhos de Niles o colocam no grupo dos autores que produzem para servir ao mercado. Abordaremos, adiante, a sua adaptação do texto de Matheson, aprovada pelo próprio autor e ricamente ilustrada pela arte de Brown.

2

No que diz respeito à “intertextualidade”, Oliveira refere-se ao termo proposto pela filósofa e crítica literária Julia Kristeva (1968) a partir do conceito de dialogismo, desenvolvido por Mikhail Bakhtin em 1929. 3

Série em quadrinhos criada por Todd McFarlane e publicada mensalmente pela Image Comics.

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Eu Sou a Lenda em Quadrinhos Tem-se considerado Richard Matheson’s I Am Legend muito fiel à noveleta de Matheson. Inclusive, Niles faz uso de passagens extraídas diretamente da fonte. O desfecho da narrativa, em geral pouco respeitado nas adaptações para o cinema, aqui muito se aproxima do original. O final de Eu Sou a Lenda mostra Neville sendo capturado não pelos vampiros que o assediavam, mas por uma “terceira espécie” de vampiros que aprenderam a controlar os efeitos de sua doença por meio de uma droga. Nas mãos dessa “nova espécie”, o personagem enfrenta sua morte com resignação e conclui ter representado,

para a nova humanidade, “uma terrível catástrofe que nunca tinham visto, um flagelo ainda pior do que a doença com que tinham que conviver” (NILES, 2010, p. 243). Numa racionalização que associa a doença a um entendimento sobrenatural coletivo, Neville percebe ser, para os outros, “um espectro invisível que havia deixado como prova da sua existência os corpos sem sangue dos seus entes queridos”. Em sua prisão, “Robert Neville olhou para o novo povo da Terra. Ele sabia que não pertencia ao seu círculo... Sabia que, como os vampiros, ele era um anátema, um terror sinistro, a ser destruído”. E conclui: “Eu sou a lenda” (Idem, p. 243). Em “Adaptação em quadrinhos como tradução”, capítulo de Quadrinhos e Literatura: Diálogos Possíveis, Zeni parte do pressuposto de que não é possível ser fiel a um original, uma vez que o artista se vê obrigado a escolher como vai traduzir uma obra para outro sistema semiótico. “Aceitando a premissa de

que o meio é parte essencial da mensagem” (McLUHAN citado por ZENI, 2014, p. 120), “não é possível pensar em uma tradução intersemiótica sem alterações”. No entanto, em entrevista ao site I Am Legend Archive4, Niles deixou clara a sua escolha em preservar o máximo do texto-base quanto fosse possível, ao contrário de outras obras por ele adaptadas. Essa característica faz da sua versão de Eu Sou a Lenda uma obra realizada a partir da preocupação de aproximar-se do original e manter o teor do texto de partida. A despeito dessa aproximação, todavia, deve-se ressaltar o quanto se faz presente o recurso à intertextualidade — principalmente na arte de Brown. Aspecto importante é o uso do preto-e-branco, que parece fundamental no sentido de atingir o tom do futuro ermo e sombrio que Neville habita. A monocromia tem sido utilizado para aumentar o contraste. Em fins dos anos 60, George Romero optou por esse recurso em A Noite dos Mortos-Vivos — lembrando

que a Hammer e a AIP Gothics já faziam uso do Technicolor há mais de uma década (HERVEY, 2008, p. 19). No filme, o resultado seria “um ambiente plano e tenebroso, perfeito para o cenário gótico norteamericano, em ruínas, no qual os eventos se dão” (STEIN citado por DILLARD, 1987, p. 18). Robert Kirkman e Tony Moore lançam mão do mesmo recurso na série em quadrinhos Os Mortos-Vivos (The Walking Dead, 2003-), praticamente uma homenagem ao trabalho do cineasta norte-americano.

4

Dados de acordo com: <http://iamlegendarchive.blogspot.com.br/p/steve-niles-interview.html>.

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De acordo com a tipologia de McCloud (2005, pp. 52-3) acerca dos estilos de desenho utilizados no universo dos quadrinhos, atestamos um estilo mais realista no trabalho de Brown. A imagem de Robert Neville, conforme foi concebida pelo artista, guarda semelhanças com a de Charlton Heston (1923-2008), encontrando seu “equivalente real” no ator norte-americano que deu vida ao personagem na adaptação A Última Esperança da Terra. Para Oliveira, muitas vezes a relação entre quadrinho e clássico literário é previamente “contaminada” por outros diálogos, de modo que “a trama intertextual abre espaço para criações das mais variadas e cheias de possibilidades inter-relacionais e polifônicas” (2014, p. 48). Portanto, ao efetivar a intertextualidade, o texto não se relaciona apenas com aquele com quem efetua o diálogo, mas também com os demais textos do mesmo gênero e outros correlatos, provenientes de

diferentes obras ou suportes artísticos, como o cinema.

Neville reflete sobre a existência dos vampiros. Fonte: NILES, Steve. Eu sou a lenda de Richard Matheson. Ilustrações de Elman Brown. São Paulo: Devir, 2010.

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Novo enredo, velho texto Conforme declarou Niles ao I Am Legend Archive5, “A influência de ‘Eu Sou a Lenda’ sobre o meu texto é inegável, ou sobre tudo o que escrevo, mas pode-se dizer que realmente vem à tona em ‘30 Dias de Noite’”. Segundo Oliveira, aspecto importante do diálogo intertextual é a relação que se pode estabelecer entre obras e elementos produzidos em diferentes meios artísticos (2014, p. 46). Nesse sentido, observaremos o diálogo entre o texto de Matheson e um trabalho autoral de Niles, a minissérie de horror em quadrinhos 30 Dias de Noite — também adaptada para o cinema, em 2007. Na relação entre as obras,

veremos como uma série de elementos consagrados pelo texto literário emerge num novo meio. As primeiras linhas do texto de Matheson já indicam uma convenção narrativa das ficções vampíricas: “Nesses dias nublados, Robert Neville nunca tinha certeza da hora do pôr-do-sol e, às vezes, eles apareciam nas ruas antes que pudesse entrar em casa (1984, p. 2)”. A trama de 30 Dias de Noite transcorre em Barrow, uma pequena comunidade do Alasca localizada no extremo norte da América. O clima de Barrow é ártico. O Sol não se põe entre 10 de maio e 2 de agosto, e não nasce entre 18 de novembro e 17 de dezembro. A história começa no último dia de Sol, que antecede os trinta dias de escuridão. Nesse interlúdio, a cidade é descoberta e torna-se palco para a ação de vampiros. “Uma cidadezinha remota onde o Sol não nasce durante semanas. (...) O paraíso na Terra para os mortos” (NILES, 2003, p. 29). A prolongada escuridão permite que matem à vontade, em frenesi. “A

invasão foi repentina e fácil. Alguns dos cidadãos... (...) tentaram lutar, mas não havia esperança. O Sol se pôs há muito tempo e não vai voltar por um longo tempo” (Idem, p. 30). Em Eu Sou a Lenda, a desventura de Neville transcorre após a eclosão da praga viral que transforma mortos e vivos em criaturas vampíricas. Em 30 Dias de Noite, o leitmotif do vírus também está presente: mordidas ou arranhões podem converter os humanos. De acordo com Risa Puno, os vírus costumam aparecer, no cinema e na literatura, ora como ameaças literais, ora como metáforas subjacentes aos sintomas de decadência de uma sociedade. Podem ainda indicar para questões sociais específicas. A noção de vírus pode assumir, metaforicamente, uma gama de sentidos pejorativos que giram em torno das noções de corrupção, de declínio moral e de ameaças anti- ou inter-humanas. “Os vírus invadem o corpo e podem usar o corpo hospedeiro para se multiplicar ou infectar outros corpos, transformando pessoas comuns em

monstros irracionais e imprevisíveis em larga escala” (2014, p. 569). Em 30 Dias de Noite, todos os habitantes de Barrow foram emboscados e devorados pelos mortosvivos, à exceção de um pequeno grupo de sobreviventes, que se escondeu numa velha fornalha industrial, assim como Neville refugia-se em sua própria casa. Dentre os diversos pontos de contato existentes entre Eu Sou a Lenda e 30 Dias de Noite, sugerimos que este seja herdeiro do chamado “horror no subúrbio”, inaugurado por aquele. O subúrbio, nesse texto de Niles, é a pequena comunidade do extremo norte. Os protagonistas de ambas as narrativas buscam explicações racionais para o estranho fenômeno que os cerca. 5

Dados de acordo com: <http://iamlegendarchive.blogspot.com.br/p/steve-niles-interview.html>.

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Em contraste, se o vampiro é interpretado no texto de Matheson à luz do método científico, em Niles o mito permanece, até certo ponto, ligado ao sobrenatural. Por exemplo, quando o poderoso vampiro Vicente chega a Barrow, apenas para se deparar com a carnificina comandada por um de seus subordinados, afirma que foram necessários centenas ou milhares de anos para que a sua raça se tornasse um mito e se misturasse ao mundo dos vivos. “Suspeita e medo são a semente da nossa extinção”, exprime antes de punir o lacaio (NILES, 2003, p. 50-1). Esse fragmento da obra parece reforçar a citação de Drácula, parafraseada por Neville: “a força do vampiro é que ninguém acreditará nele” (MATHESON, 1984, p. 14).

REFERÊNCIAS DILLARD, Richard H. W. Night of the Living Dead: It’s not like just a wind that’s passing through. In: WALLER, Gregory A. American horrors: essays on the modern horror film. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1987, pp. 14-29. GRUNENBERG, Christoph (ed.). Gothic: transmutations of horror in late twentieth century art. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1997. HERVEY, Ben. Night of the living dead. London: British Film Institute, 2008. MATHESON, Richard. A última esperança sobre a Terra. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1984. McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: M. Books do Brasil, 2005.

______. Reinventando os quadrinhos. São Paulo: M. Books do Brasil, 2006. MURPHY, Bernice M. The suburban gothic in American popular culture. UK: Palgrave Macmillan, 2009. NILES, Steve. Eu sou a lenda de Richard Matheson. Ilustrações de Elman Brown. São Paulo: Devir, 2010. ______. 30 Dias de Noite. Ilustrações de Ben Templesmith. São Paulo: Devir, 2003. OLIVEIRA, Cristina de. Quadrinhos, literatura e um jogo intertextual. In: RAMOS, Paulo; VERGUEIRO, Waldomiro; FIGUEIRA, Diego. Quadrinhos e literatura: diálogos possíveis. São Paulo: Criativo, 2014, p. 37-56. PUNO, Risa. Virus. In: WEINSTOCK, Jeffrey Andrew (ed.). The Ashgate Encyclopedia of Literary and Cinematic Monsters. Ashgate: Dorchester, 2014, pp. 568-573. REIS FILHO, Lúcio. George Romero: muito além do “padrinho de todos os zumbis”. In: SUPPIA, Alfredo (org). Cinema(s) independente(s): cartografias para um fenômeno audiovisual global. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2013, pp. 95-111. SOBCHACK, Vivian. Bringing it all back home: family economy and generic exchange. In: WALLER, Gregory A. American horrors: essays on the modern horror film. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1987, pp. 175-194. STEVE NILES Interview. The I Am Legend Arquive. Disponível em: legendarchive.blogspot.com.br/p/steve-niles-interview.html>. Acesso em: 10 jun. 2014. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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ZENI, Lielson. Adaptação em quadrinhos como tradução. In: RAMOS, Paulo; VERGUEIRO, Waldomiro; FIGUEIRA, Diego. Quadrinhos e literatura: diálogos possíveis. São Paulo: Criativo, 2014.

DO CONTO AO RECONTO: UMA LEITURA DE FÁBULAS NO ÂMBITO DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO TALE OF THE RECOUNT: A READING OF FABLES IN THE CONTEXT OF INFORMATION SCIENCE Maria Jaciara de Azeredo Oliveira Universidade Federal Fluminense Nanci Gonçalves da Nóbrega Universidade Federal Fluminense

RESUMO Investiga as possibilidades de inserção das Histórias em Quadrinhos no campo da Ciência da Informação a partir da constatação da dificuldade tanto do profissional da informação como da área em lidar com este tipo de material. Busca por meio de pesquisa bibliográfica tecer as relações entre quadrinhos, cultura, educação e informação para defender o fato da narrativa quadrinística ser relevante fonte de informação dos modos de ser e pensar do mundo contemporâneo. Delineia o perfil do leitor de quadrinhos e a natureza de sua relação com esta narrativa com base na análise das categorizações de leitores propostas por Eco (2011) e Vergueiro (1998, 2005). Como resultado apresenta a análise do conteúdo da Série Fábulas de Bill Willingham (2002-), feita em duas partes: a primeira evidenciando suas relações com a cultura do tempo presente; e a segunda enfatizando os elementos arquetípicos da obra. Por fim, traz a percepção dos leitores de Fábulas do universo dos quadrinhos e apresenta propostas de mediação e dinamização deste tipo de acervo. Palavras-chave: Fontes de Informação; Mediação da leitura; Série Fábulas ABSTRACT Investigates the possibilities of integration of Comics in the field of Information Science from the difficulty of finding much of the information professional in the area to deal with this kind of material. Search by means of literature weave relations between comics, culture, education and information to defend the fact that the narrative in comics be relevant source of information on modes of being and thinking of the contemporary world. Outlines the profile of the comic reader and the nature of his relationship with this narrative based on the analysis of readers categorizations proposed by Eco (2011) and Vergueiro (1998, 2005). As a result presents the analysis of the content of the Fables series by Bill Willingham (2002 to), made in two parts: the first evidence of its relationship with the culture of the present time; and the second emphasizing the archetypal elements of the work. Finally, brings the perception of readers of the Fables comics universe and presents proposals for mediation and promotion of this type of collection. Key words: Sources of Information; Mediation of reading; Fables series

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1. INTRODUÇÃO Artigo que se origina das reflexões de pesquisa de Mestrado desenvolvida no Programa de PósGraduação da Universidade Federal Fluminense que teve como tema as possibilidades de se pensar/ trabalhar os acervos de Histórias em quadrinhos (HQs) no campo da Ciência da Informação (CI). A justificativa para uma pesquisa sobre HQs no âmbito da CI se pauta na existência de abordagens

neste campo que permitem um caminho reflexivo mais positivo para os quadrinhos – a Antropologia da Informação e as novas teorias sobre a Leitura que se focam na centralidade dos sujeitos leitores nas práticas informacionais e leitoras. Aportados nestas abordagens elaboramos uma proposta que privilegiou as questões culturais, e que situou as HQs como um produto cultural, socialmente construído e que reflete os modos de ser e pensar do mundo contemporâneo. Investigamos as HQs como fontes de informação que têm muito a dizer sobre seu contexto sóciohistórico de criação, além de se relacionar com a memória e os afetos dos sujeitos através dos mecanismos psicológicos que fazem parte do desenvolvimento humano tais como a identificação e projeções do inconsciente de origem arquetípica.

Nosso objetivo geral na pesquisa original foi refletir sobre a seguinte questão: as HQs podem ser consideradas fontes de informação? Nossos objetivos específicos foram: I- verificar a possibilidade de estudar as HQs no âmbito da CI através com uma proposta multidisciplinar, que dê subsídios para uma pesquisa sobre quadrinhos; II - investigar a existência de uma literatura sobre quadrinhos na CI e qual a natureza das reflexões que nos apresentam através de levantamento nas bases BRAPCI e Lattes; III delinear qual é o tipo de relação que existe entre as HQs e seus leitores e destacar a especificidade deste tipo de leitor; IV - apontar possibilidades de mediação e ação cultural com acervos de quadrinhos. Para atingir nossos objetivos fizemos o seguinte trajeto metodológico. Compreendemos que a natureza desta pesquisa é qualitativa e na sua tipologia, exploratória, por pretender reunir informações e reflexões sobre um problema ainda pouco estudado pela CI

Trabalhamos com levantamento bibliográfico sobre HQs dentro e fora do campo informacional. Elaboramos também, dois questionários semiestruturados com perguntas abertas e fechadas, porém devido ao foco do trabalho foram apresentados resultados ainda parciais apenas do segundo com predominância de perguntas abertas e tom mais informal, como estratégia para que os entrevistados se sentissem mais à vontade em expor suas ideias, aplicado especificamente aos leitores de Fábulas a partir de contatos pessoais e da página na rede social Facebook sobre estes quadrinhos (https://www.facebook.com/ FablesBrasil). Neste caso o objetivo foi através da fala do leitor identificar indícios que reforcem nossa ideia das HQs como fonte de informação, e elementos para a elaboração de propostas de mediação com Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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estes quadrinhos. E também realizamos uma análise do conteúdo da narrativa dos quadrinhos Fábulas em duas camadas – contexto de criação e aspectos simbólicos – como um caminho para aprofundar nossas reflexões. O movimento feito pelo autor de transposição/versão dos contos clássicos para o contexto contemporâneo será ponto focal neste artigo.

2. HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: ENTRE FONTES E

MEDIAÇÕES Antes de falarmos sobre a nossa proposta de pensar os quadrinhos como fontes de informação é preciso trazer alguns elementos conceituais sobre as HQs já que verificamos através da fala de teóricos como Vergueiro (2005) que muitos problemas da relação entre este tipo de material e os profissionais da informação se devem ao desconhecimento de sua especificidade. O quadrinista americano Will Eisner destaca que a comunicação via HQs envolve a ideia de movimento. O fluxo da narrativa então é decomposto em sequências (quadrinhos) que “tenta lidar com os elementos mais amplos do diálogo: a capacidade decodificadora cognitiva e perceptiva, assim como a visual.” (EISNER, 2008 p.38).

A ideia de movimento através da justaposição sequenciada deu origem ao termo Arte sequencial cunhado por Eisner e amplamente aplicado para se referir às HQs. Baseado nesta expressão, Scott McCloud (2005), teórico dos quadrinhos, desenvolve uma definição para HQs. Segundo ele as HQs são como imagens pictóricas e outras justapostas em sequencia deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador.” (MCCLOUD, 2005, p.9). Mas a estética da narrativa quadrinística é muito complexa sendo constituída por uma diversidade de elementos formais. O pesquisador Nobu Chinen (2011, p.10-43) nos apresenta alguns, tais como: formatos de publicação (tiras, revistas, álbuns, etc.), elementos constitutivos (vinheta, balão, recordatório, onomatopéia, etc.), diagramação (distribuição dos quadrinhos na página determinando o ritmo e o sentido da leitura) e arte sequencial (narrativa, sequências, enquadramentos, ângulos, etc.)

Vale aqui indagar qual tipo de informação pode ser veiculada por uma obra de arte, neste caso as HQs? Em busca de uma resposta, procuramos o conceito de Educação pela Arte do pensador inglês Herbert Read (1986) que nos traz uma proposta de “aprendizado” pela via das emoções despertadas no contato com a arte. Segundo ele “a Arte não pode ser aprendida por preceito, por uma instrução verbal qualquer. Ela é, falando com propriedade, um contágio, e se transmite como o fogo de espírito para espírito.” (p.15). Ideia que podemos relacionar com o conceito de cooperação textual de Umberto Eco (2011) no campo artístico literário. Segundo o autor, se pressupõe uma “competência gramatical” por parte do leitor para que o mesmo atualize o texto; é preciso que ele compreenda o signo linguístico. O leitor deve Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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reconhecer-se no sentido criado pelo autor para que as palavras produzam sentido para ele. (2011, p.3536). Ou seja, o leitor se identifica com a narrativa, é contagiado pela leitura e atualiza o texto. Autores como Read (1986) nos dizem que através da fruição artística podemos ter uma experiência transformadora. Em nossas leituras também pudemos constatar que a linguagem das HQs é complexa e composta por diversos elementos formais que, juntos, podem originar obras marcantes que refletem o espírito de seus autores e do seu contexto sócio-histórico de criação. Na obra Narrativas gráficas: princípios e práticas da lenda dos quadrinhos, Will Eisner (2008) destaca o simbolismo como outro elemento importante. Segundo ele “nos quadrinhos, assim como nos filmes, objetos simbólicos não narram apenas, mas ampliam a reação emocional do leitor.” (EISNER,

2008, p.26). Tais reações seriam o “cimento” para os laços de empatia que são construídos entre o leitor e a narrativa? Parece-nos, portanto, que o poder de uma HQ está relacionado em grande parte à reação emocional que provoca no leitor, através dos elementos simbólicos utilizados na narrativa. A simbologia empregada na criação da narrativa, sobretudo imagética, desperta no leitor sentimentos de reconhecimento e identificação com situações e personagens. Ele não apenas compreende a mensagem, mas compartilha as emoções despertadas pela obra. Dito isto, vamos às relações com o conceito de fontes de informação. Na apresentação de um dos livros sobre fontes de informação organizados por Bernadete Campello (1998, p.6) os quadrinhos são inseridos no grupo de manifestações intelectuais criativas, ou seja, uma forma

de expressão do conhecimento. Tal obra é voltada para os profissionais da informação com o objetivo de que os mesmos conheçam melhor a natureza de diversos materiais para “poderem desempenhar com mais eficiência sua função de facilitadores no uso da informação (p.9) Em capítulo específico sobre as HQs na mesma obra Vergueiro (1998, p.198) dá relevo ao fato de não apenas serem um “elemento de destaque no sistema global de comunicação, como também, uma forma de manifestação artística com características próprias” (1998, p.118). Em resumo, os quadrinhos são uma forma de expressão do conhecimento manifestada artisticamente, com características específicas e também um veículo de comunicação e informação. O mesmo autor destaca que, aos poucos, diversas barreiras foram quebradas e o aumento do prestígio das HQs junto à sociedade fez com que ganhassem espaço nas unidades de informação, embora de forma

tímida. Mas alguns profissionais mesmo que bem intencionados ainda carregam um ranço do passado e, ou ignoram a especificidade deste material, ou o tratam como trampolim para a leitura dos livros (VERGUEIRO, 1998; 2005). Concordamos com o autor quando ele ressalta a necessidade dos profissionais da informação conhecerem melhor este tipo de narrativa para uma prática mediadora plena. Quando falamos em prática mediadora queremos destacá-la como um processo de escuta do outro e de trocas (NÓBREGA, 2009, p.103), levando em consideração as várias vozes envolvidas: a especificidade do material e de sua narrativa, assim como a intenção do autor, e o leitor como sujeito social pleno de

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contradições que não apenas pensa, mas também tem emoções. E, é claro, não podemos esquecer a figura do próprio mediador, que diante da impossibilidade da neutralidade deve ser cuidadoso no seu fazer. A autora nos alerta da necessidade de pensarmos a mediação focada no sujeito através de um olhar que não está interessado em somente descrever, mas, sim em interrelacionar(-se), construir junto, compartilhar. Em compreender, informar e ler como formas de reinventar, recriar, reescrever o mundo (NÓBREGA, 2009, p.98). Assim, para falar da relação entre o leitor e as narrativas nos aportamos em Jouve (2002) e em suas teorias sobre a leitura que, segundo ele, é um processo com cinco dimensões: neurofisiológico, cognitivo, afetivo, argumentativo e simbólico.

Embora todos estes processos sejam relevantes no ato da leitura, nos detivemos naqueles que dizem respeito à afetividade e ao simbolismo. Jouve (2002) nos apresenta o processo simbólico da leitura relacionando a cultura ao imaginário coletivo. Na série de quadrinhos Fábulas, com a qual trabalhamos, o roteirista Bill Willingham dá uma nova roupagem aos contos clássicos que reflete seu contexto cultural de criação. Os personagens estão envolvidos com problemas e conflitos do mundo contemporâneo. O leitor da série se reconhece em fatos e personagens. A Cidade das Fábulas, afinal, é bem parecida com o mundo no qual vivemos. Ao se reconhecer nas tramas e nos personagens, o leitor se apropria da história e ressignifica as informações que se perdem e reinventam em suas memórias. A mediação surge como uma ponte entre os leitores e a obra quadrinística para que as informações

que veicula passem de fontes de informação potenciais para reais. Investigar os anseios dos leitores é importante para que a prática mediadora respeite a diversidade dos sujeitos e produza frutos. Como visto em Nóbrega (2009) é preciso escutar o leitor. Em nossa proposta mediar é dar significado aos sentidos da narrativa quadrinística a partir de seus contextos sócio-históricos de produção e das emoções que desperta. E se relaciona com a visão de informação de algumas correntes de pensamento da CI. É neste ponto que acreditamos residir parte da contribuição da pesquisa sobre HQs no campo informacional. A questão cultural, na qual se insere as HQs, é objeto de estudo da CI na abordagem que vê a informação como um construto sócio-histórico. Tal questão é apontada, por exemplo, por Regina Marteleto e Denise Morado Nascimento em seu artigo sobre a informação construída nos meandros da teoria social de Pierre Bourdieu. De acordo com as autoras A literatura da Ciência da Informação (CI) evidencia a ainda incipiente importância dada às dimensões sociais e culturais do seu objeto de estudo. Parte-se do pressuposto de que o tratamento, a captação e a interpretação da informação dentro destas dimensões, fortalecem a visão de que os problemas informacionais de um dado campo de conhecimento estão concatenados aos objetos, operações e relações entre o que os seus participantes percebam como importante dentro do acervo de soluções e experiências acumuladas e daquelas disponibilizadas para a sociedade. (NASCIMENTO; MARTELETO, 2004, p.1, grifo nosso).

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Desta forma, vemos que no âmbito da CI existe fundamentação teórica que dá relevo às dimensões sociais e culturais da informação sob a qual trabalhamos nosso argumento das HQs como importantes fontes de informação. Mas afinal o que podemos entender por mediação da leitura? Segundo Barros, pesquisadora de disseminação da informação da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP) Numa concepção simplista, mediar leitura é fazer fluir a indicação ou o próprio material de leitura até o destinatário-alvo, eficiente e eficazmente, formando leitores. […] Queremos dizer com tudo isso, que a mediação de que estamos falando deve levar em conta fatores extrínsecos e intrínsecos, relativos ao objeto, ao sujeito e ao agente da leitura: o texto, o leitor e o mediador. (BARROS, 2006, p.17-18).

Ou seja, não basta termos um acervo bem organizado primando por uma técnica impecável, se as informações nele contidas não chegam ao leitor. E o mediador deve reconhecer seu papel nesta relação. Tornar o material disponível não é apenas colocá-lo na estante. Nossa proposta implica um trabalho de aproximação não apenas com o leitor mas também com as narrativas mediadas. É este o intuito de nossa investigação do conteúdo da Série Fábulas como uma fonte de informação artística complexa que faz uma leitura inovadora dos contos clássicos.

3. OUTROS MUNDOS OUTRAS HISTÓRIAS: A ARTE DE RECONTAR Como contar uma história? A arte de narrar exige uma série de sutilezas e artimanhas que levam os leitores ao estado de encantamento/transformação pela arte, proposto por Read (1986). E quando a história em questão já foi contada e recontada ao longo do tempo de formas diversas? Como trazer algo novo para antigas histórias já cristalizadas na memória? Este é o desafio do reconto. E o nosso desafio teórico é como analisar uma narrativa. Principalmente uma narrativa que traduz/ adapta o enredo de outra estruturalmente diversa, como é o caso de Fábulas que renova as histórias dos contos de fadas. É importante lembrar que as narrativas são parte do mundo e como tal reproduzem seus contextos de criação. Foi evidenciado em nossa pesquisa como o contexto cultural e sócio-histórico se reflete em

uma narrativa, no caso os quadrinhos, através da ideologia que veicula. Para nortear nossa análise de Fábulas trazemos o conceito de cultura como uma teia de significados de Clifford Gertz (1989) relacionado à cooperação textual de Eco (2005a; 2011). Segundo Gertz (1989) o conceito de cultura parece causar certa confusão, tendo em vista a diversidade de definições encontradas na literatura. No entanto enfatiza que: O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. É justamente uma Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais enigmáticas na sua superfície. (GERTZ, 1986, p.4, grifo nosso).

Foi em busca dos sentidos desta teia de significados descrita por Gertz (1986) que procuramos em Fábulas elementos significativos para descrever em parte o mundo no qual vivemos. Um fato interessante sobre estes quadrinhos é que eles recriam o mundo dos contos de fada que conhecemos de longa data e que, por sua vez, segundo o estudo apresentado pela folclorista Maria Tatar (2004) ao contrário do que muitos pensam não foram compilados e sim adaptados das histórias orais da cultura popular de vários países. Pela biografia apresentada por Tatar de compiladores, de modo geral o objetivo de todos estes

estudiosos foi uma renovação cultural, de seus respectivos países, pautada nas histórias que o povo contava. Os irmãos Grimm, por exemplo, no início tinham um projeto erudito e seus textos eram destinados a estudiosos; com o tempo, no entanto, foram se transformando em leitura para crianças (TATAR, 2004, p.351-352). Podemos constatar que os contos originais vêm se transformando a cada compilação/adaptação, de acordo com aqueles que as escrevem e, principalmente, do contexto cultural em que estão inseridos. Cada história é espelho do mundo em que foi concebida e transformada; talvez possamos dizer que cada povo tem a moralidade que melhor lhe convém. Autores como Propp (2006) e Jolles (1976) nos falam de particularidades destas narrativas que nos permitem compreender sua natureza e estruturas.

O trabalho do estruturalista russo Vladimir Propp tem como objetivo investigar o enredo dos contos populares russos para identificar seus elementos mais simples. Em sua obra Morfologia do conto maravilhoso, ressalta que: “Os contos maravilhosos possuem uma particularidade: as partes constituintes de um conto podem ser transportadas para outro sem nenhuma alteração.” (2006, p.10); é o que o autor chama de lei da permutabilidade, e explica a semelhança estrutural de muitas histórias. Propp define sua proposta de análise do conto maravilhoso da seguinte forma: Nos casos citados encontramos grandezas constantes e grandezas variáveis. O que muda são os nomes (e, com eles, os atributos) dos personagens; o que não muda são suas ações, ou funções. Daí a conclusão de que o conto maravilhoso atribui freqüentemente ações iguais a personagens diferentes. Isto nos permite estudar os contos a partir das funções dos personagens. Será preciso determinar em que medida estas funções representam realmente as grandezas constantes, repetidas, do conto maravilhoso. A colocação de todos os demais problemas dependerá da resposta a esta primeira pergunta: quantas funções pode englobar um conto maravilhoso? Nosso estudo mostrará que a repetição das funções é surpreendente. Assim, tanto Baba-Iagá como Morozko, o urso, o espírito da floresta ou a cabeça da égua põem à prova a enteada e a recompensam. Prosseguindo com estas observações, pode-se estabelecer que os personagens do conto maravilhoso, por mais diferentes que sejam, realizam freqüentemente as mesmas ações. (PROPP, 2006, p.16).

E posteriormente, sintetiza a estrutura dos contos maravilhosos da seguinte forma: As observações apresentadas podem ser formuladas brevemente nos seguintes termos: I. Os elementos constantes, permanentes, do conto maravilhoso são as funções dos Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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personagens, independentemente da maneira pela qual eles as executam. Essas funções formam as partes constituintes básicas do conto. II. O número de funções dos contos de magia conhecidos é limitado. Chegamos à terceira tese fundamental de nosso trabalho, sujeita a desenvolvimento e demonstração ulteriores: III. A seqüência das funções é sempre idêntica. É necessário mencionar que a lei citada refere-se somente ao folclore. Não são uma peculiaridade de gênero do conto maravilhoso como tal. Os contos criados artificialmente não se submetem a elas. [...] IV. Todos os contos de magia são monotípicos quanto à construção. Procedamos agora à demonstração dessas teses, e a seu desenvolvimento mais detalhado. É preciso lembrar aqui que o estudo do conto maravilhoso deve ser conduzido (e realmente isso foi feito em nosso trabalho) de modo rigorosamente dedutivo, isto é, indo do material às conclusões. Mas a exposição pode seguir o rumo inverso, pois é mais fácil acompanhar seu desenvolvimento se o leitor conhecer de antemão as bases gerais deste trabalho. (Op. Cit.p.17-18).

Após expor o que chama de situação inicial deste tipo de narrativa o autor enumera uma série de funções dos personagens, bem como diversos elementos sobre a morfologia do conto maravilhoso. Existem, aliás, diferenças significativas, entre as histórias originais (contos folclóricos contados pelo povo), suas atualizações (compilações dos folcloristas) e histórias como as da série de quadrinhos Fábulas, que reinventam as narrativas, com uma abordagem artística. Sobre este assunto o linguista e historiador de arte holandês André Jolles (1976) em seu livro Formas Simples, que é construído a partir do método da Gestalt (determinação e interpretação das formas, literárias), se propõe a aplicá-lo em alguns

fenômenos. Ele fala especificamente das Formas que não são apreendidas nem pela estilística, nem pela retórica, nem pela poética, nem mesmo pela "escrita", talvez; que não se tornam verdadeiramente obras de arte, embora façam parte da arte; que não constituem poemas, embora sejam poesia; em suma, aquelas formas a que se dão comumente os nomes de Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado, Caso, Memorável, Conto ou Chiste.(JOLLES, 1976, p.20).

O autor faz uma pesquisa literária das “Formas que se produzem na linguagem e que promanam de um labor da própria língua, sem intervenção por assim dizer de um poeta.” (p.20). Recorre às metáforas – O agricultor (o que cria/cultiva), o artesão (o que transforma/fabrica) e o sacerdote (o que interpreta) -

com o objetivo de sintetizar as relações dos sujeitos com a linguagem/cultura enfatizando o importante papel da interpretação. Segundo ele: Todas as forças ativas e todos os atos presentes na cultura, tudo o que nela adquire forma, deve ser consagrado por uma interpretação para que se torne "são" e possa, a todo o instante, tornar-se "sagrado", a partir dessa interpretação; toda ação cultural é, finalmente, um ato de culto; todo objeto de cultura é objeto de culto. (Op. Cit., p.23, grifo nosso).

Jolles, desta forma, situa a linguagem e sua manifestação, no caso literária, como objeto cultural produzido e transformado e pela sociedade, e que o ato de interpretação é o que marca sua importância Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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para este grupo, ou o “sacraliza”, por isto a metáfora do sacerdote. Ainda sobre esta relação diz que: a linguagem atribui um nome a tudo o que foi cultivado, fabricado, interpretado. Depois — e mais profundamente —, a própria linguagem é um princípio de cultura, de fabricação e de interpretação, no qual se produz, com a maior especificidade, a vinculação a uma determinada ordem. (Op. Cit.,p.25).

Dentre seus objetos de estudo do autor destacamos na pesquisa o conto e o mito por se se relacionarem com os contos populares, também conhecidos como maravilhosos, que são transformados artisticamente na série Fábulas. O conto e o mito. De acordo com o autor o trabalho dos irmãos Grimm seria a “expressão essencial” da forma conto. Mas por que Jolles (1976) classifica os contos dentre as formas simples? Assim ele define a diferença entre a novela, por exemplo, e o conto: “para usar a terminologia de Jacob Grimm, diremos que a primeira forma é poesia artística, "elaboração", e a segunda é poesia da Natureza, "criação espontânea". (p. 192). A grande questão é que os eventos e fatos narrados no conto não podem ser aplicados ao universo, pois são incoerentes com as possibilidades reais do cotidiano, no qual os animais não falam, nem cruzamos com criaturas mágicas. É o oposto do que ocorre na novela, cujas leis formativas podem dar uma “forma coerente a todo evento narrado.” (p.194). Jolles ressalta que todos os elementos da narrativa (personagens, lugares, incidentes) na forma simples possuem um “caráter fluido, genérico sempre renovado.” (p.196) . Tal caráter genérico dos personagens, por exemplo, que é uma característica da Forma Simples Conto, como vimos tanto em Propp (2006) quanto em Jolles (1976), é um gancho que o quadrinista Bill Willingham aproveita em Fábulas. O Príncipe Encantado e o Lobo Mau são personagens que nos contos clássicos transitam em mais de uma história mantendo suas características. O primeiro representa o herói nobre que salva a donzela do perigo; o segundo, é a criatura cruel, sempre criando estratégias para devorar suas vítimas. Nos quadrinhos, a explicação dada é que em cada história o Príncipe, por exemplo, que aparecia era o mesmo, o que se justifica no fato de que ele, tendo se divorciado de uma donzela, ia em suas aventuras encontrando outras com quem ia se casando e separando. A solução do quadrinista ao caráter genérico dos personagens, não apenas explica a presença deles em diversas histórias, como atribui uma personalidade e uma individualidade aos mesmos, fazendo com que percam os elementos que os caracterizam como parte

da Forma Simples Conto. Esta roupagem nova dada aos personagens, portanto, é um dos pontos que determinam que os quadrinhos que analisamos apesar de terem como base os contos populares, não podem ser interpretados por metodologias, como as de Propp (2006), que enfatizam certas especificidades de sua estrutura não compartilhadas por uma forma artística. Jolles (1976) nos diz que as atualizações remetem o mais diretamente possível à Forma Simples e se orientam “o menos possível para a solidez, peculiaridade e unicidade” que são características da forma artística. Segundo o autor: “Por isso é que Jacob Grimm deixou de ocupar-se do conto, tal como se apresentava na literatura, e foi diretamente ao povo.” (Op. Cit., p.197) Ou seja, a compilação dos Grimm, mesmo que não seja de todo fiel às histórias coletadas com o Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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povo, já que sofreu adaptações, como vimos em Tatar (2004), de acordo com os seus objetivos e públicoalvo, ao manter as características genéricas da Forma Simples a atualizou sem alterar a estrutura que caracteriza esta forma. Sobre o que chama de disposição mental da Forma Simples Conto Jolles destaca que em primeiro lugar seria a ideia de que “tudo deva passar-se no universo de acordo com nossa expectativa” é o que o autor chama de uma “moral ingênua” (p.95) Jolles (1976) destaca três formas de manifestação do mito, que já citamos ao falar sobre o conto (p.95-97) 1. Forma simples> histórias originais – disposição mental da forma simples (mito, conto) 2. Atualização da forma simples – saga inventada > compilações dos Grimm 3. Forma relativa ou conto artístico > não resulta do mito, mas recorre a ele > HQ Fábulas Sobre esta terceira forma acrescenta que: Toda a vez que uma Forma Simples, resultante de uma disposição mental coerente e concludente, se atualiza, encontramos-lhe ao lado as formas relativas. Tais formas, quando se sabe discerni-las, são habitualmente assinaladas adicionando-se--lhes o adjetivo "artístico"; e, assim, fala-se de "conto artístico" ou de "adivinha artística". Pode-se exprimir assim que se viu perfeitamente não se tratar da disposição mental em si, mas apenas de um reflexo, de uma projeção que foi proposta. (Op. Cit,p.96-97).

Fábulas, como já vimos, se encaixa na definição de Jolles de uma forma relativa ou conto artístico que não resulta do mito, mas recorre a ele. Na pesquisa original de nossa Dissertação a análise de Fábulas foi feita em duas partes: na primeira, mais descritiva que analítica, investigamos a trama do arco narrativo Lendas no Exílio, enfatizando as atualizações feitas pelo autor com elementos da cultura ocidental contemporânea e as adaptações necessárias para o convívio de povos diferentes em um contexto de exílio.

3.1 Cultura e contemporaneidade em Fábulas

O que Bill Willingham fez em sua série de quadrinhos foi dar às antigas histórias não apenas uma nova roupagem. Ele as reinventou a partir de nosso mundo, com os fios da teia que produz sentido em nossa sociedade. Como exemplo da diferença narrativa entre os contos clássicos que se classificaríamos como formas simples (narrativas orais) e atualizadas (compilações dos Grimm) para o conto artístico em Fábulas apresentamos a figura do Lobo Mau que na “Cidade das Fábulas” possui a forma humana e é responsável pela lei e a ordem da comunidade e nos dá a ideia da dualidade presente em todos nós (no caso do personagem a sombra em forma de lobo evidencia tal aspecto – ver Figura 1). Da genérica representação

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do

mal,

ganha

o

elementos

individualizam. “homem”,

personagem que

o

Ele agora é um seu

é o investigador

nome é Bigby do

crime

apresentado.

Figura 1 – O Lobo Mau na forma humana desempenhando um novo papel nas terras mundanas. Fonte: Fábulas. São Paulo: Devir, n.1, abr. 2004. p. 22.

Na medida em que os personagens aparecem com toda sua fragilidade, capazes de atos heroicos e de terríveis traições podemos nos ver espelhados em suas ações, reconhecer nosso mundo, nos identificarmos com seus problemas cotidianos. Assim, surgem os laços de empatia entre a narrativa e os leitores que, “contagiados” pelo que foi lido, saem “transformados” desta relação. Nossa análise também evidenciou o aspecto arquetípico da narrativa de Fábulas. A partir do esquema analítico de Campbell (2007) , extraímos desta releitura os elementos do mito que é recontado

desde longa data por diversos povos, pois parte de um desejo universal da figura de um herói que por nós vença terríveis obstáculos e compartilhe com o mundo os frutos da vitória, seja o fogo, o Graal ou o fim do terrível Adversário, porém como o foco do presente artigo é discutir a questão da adaptação de textos literários para os quadrinhos não achamos pertinente aprofundar esta discussão. Em resumo podemos ver que Bill Willingham em sua releitura insere Fábulas, na categoria não de uma atualização dos contos clássicos, mas de um reconto ou conto artístico (JOLLES, 1976). 3.2 Fábulas e seus leitores Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Mas nos perguntamos: leitores de quadrinhos são iguais e/ou buscam as mesmas coisas? Que caminhos seguir em busca de respostas? Os aspectos da interpretação da leitura e da tipologia de leitores de Eco (2011) nos auxiliam a refletir. Para que o leitor reconheça tais sinalizações é preciso que ele compartilhe com o autor não apenas o conhecimento da língua, mas também seus referenciais culturais. Ou seja, a produção de sentido de um texto requer o funcionamento do mecanismo chamado por Eco (2011) de cooperação textual, que está atrelado ao conceito de leitor-modelo que é aquele “capaz de cooperar para a atualização textual, como ele, o autor, pensava, e movimentar-se interpretativamente como ele se movimentou gerativamente.” (p.39)

Na tentativa de entender a dinâmica da cooperação textual destacamos alguns dados da percepção/ ressignificação dos leitores de Fábulas. Enfatizamos que por pretender uma aproximação maior com o leitor elaboramos um questionário com linguagem leve. Os leitores que responderam as questões são contatos pessoais, conhecidos destes contatos e o idealizador da página do facebook sobre Fábulas. Foram poucos questionários respondidos (nove), portanto não podemos dizer que temos propriamente um perfil do leitor de Fábulas bem como um padrão de comportamento informacional. Nossas perguntas objetivaram verificar os gostos pessoais, como conheceram o quadrinho, personagens e histórias com quais se identificam, etc. De modo geral o personagem com mais simpatia foi o nosso herói príncipe Ambrose, seguido de perto pelo Bigby Lobo Mau.

O mais interessante que pudemos identificar, no entanto, foi que, apesar da grande maioria não acreditar ter aprendido objetivamente algo com a narrativa, em outros momentos demonstram o contrário. Por exemplo, um dos leitores diz não gostar de “coisas com moral implícita”, e que acredita que arte “não precisa ensinar”. E em seguida acrescenta que tal leitura auxilia a “apurar o olhar e a sensibilidade.” Em outro momento o mesmo leitor diz que “o bacana de Fábulas é que todos têm o seu momento de brilhar.” De fato concordamos com o leitor de certo modo, pois o que a arte ensina não é algo necessariamente objetivo é mais a forma de “contágio” de que nos fala Read (1986). É este apurar o olhar e a sensibilidade sobre o mundo citado pelo leitor. E a ideia de que todos têm o seu momento em Fábulas é também de certa forma um “ensinamento” sobre a importância de cada membro da sociedade e/ou de que cada indivíduo a seu modo tem algo que o

faz único e grandioso. E esta é uma mensagem transformadora que pode “impelir” o leitor a um gesto de mudança. 4. PROPOSTAS DE MEDIAÇÃO COM FÁBULAS A partir do conceito de leitor-modelo de Eco, das categorizações de Vergueiro (2005), da fala do 1

A aventura de Role-playing Game (RPG) pode ser desenvolvida em diversos cenários de campanha e com base em diferentes sistemas de regras. Como nossa sugestão é de que os leitores criem suas próprias aventuras eles próprios escolheriam o sistema de que mais gostam. No entanto, indicamos como referência o seguinte livro para a elaboração da aventura e do cenário de campanha: COOK, Mont. Dungeons & Dragons: Livro do Mestre, Livro de regras básicas II, versão 3.5. São Paulo: Devir, 2003. p.43-46 e p.135-146

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bibliotecário Hugo Abud (Gibiteca Henfil) que revelou que tal prática é muito comum no espaço da gibiteca e da verificação, através da conversa com os leitores, que grande parte deles jogava RPG; pensamos na criação de uma aventura de RPG utilizando as ambientações de Fábulas. Nossa sugestão inicial seria uma aventura simples na qual os personagens tentam encontrar um portal mágico para fugir das Terras Natais, mas caberia aos leitores criarem outras histórias e personagens1. A segunda sugestão que trazemos foi proposta por uma leitora em resposta a questão: Se você fosse um bibliotecário o que faria para que seus leitores conhecessem Fábulas? Ou o que acha que eles deveriam fazer para chamar a atenção tanto do publico que já conhece este quadrinho quanto daqueles que não conhecem? Sendo bibliotecário, imaginando ter a liberdade de ‘montar’ a biblioteca, acredito que para chamar a atenção eu usaria a ideia do mundo duplo deles com os personagens mais conhecidos das histórias. Tipo uma porta de vai e vem que de um lado tem o Bigby de Fábulas, um cara “normal” com algum dizer instigante e do outro lado o Lobo Mau na forma clássica com vários toques do Bigby. O mesmo para a Branca também dava para ser. O Charming... Dava para explorar os problemas maritais da Bella como Fera, marcar o chão com as patas dos porquinhos e dos outros animais para um lado e as da fera também e os pés da Bela para o outro e as imagens dos dois na parede com as plaquinhas das partes das cidades. Estas gracinhas em cartazes de ponto de ônibus com vidro davam certo também, mas atualmente acho que propaganda de shopping é o que atrairia mais. (Martha S. Nunes. Leitora de Fábulas)

Ela propõe uma atividade que explore a duplicidade dos personagens. De um lado a imagem do personagem no conto clássico e do outro a sua versão do quadrinho. Acreditamos que uma exposição interativa seria interessante para desenvolver esta ideia. A leitora também traz boas sugestões de

divulgação com a brincadeira das duas versões em cartazes no transporte público e em locais de grande circulação como shoppings, mas neste caso seria necessária a negociação de uma parceria tanto com as empresas de transportes quanto com os responsáveis pelo shopping. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando o objetivo “didático” é posto em plano secundário e as adaptações procuram agregar a riqueza da obra original com a complexidade da narrativa em quadrinhos, temos trabalhos interessantes capazes de “transformar” leitores. Em uma área do conhecimento que visa, entre outras coisas, o estudo da informação como processo

e produto sócio-histórico, um olhar mais atento sobre as possibilidades de pesquisas com HQs se faz necessário. Nesta pesquisa vimos a narrativa como um tecido composto por vários fios. É preciso se colocar diante do tear e pacientemente entrelaçá-los. Mediar a leitura destas narrativas é acrescentar ao tecido outros fios: o leitor, nós mesmos, assim como algumas teorias e metodologias para fundamentar nossa ação. Dar um novo colorido ao fio, provocar mudanças, enfim. Entendemos os quadrinhos como uma fonte de informação que, através dos afetos que desperta, veicula uma cognição integral vinculada à leitura de mundo dos sujeitos. Uma forma de expressão artística complexa em sua estrutura e conteúdo pouco explorada no campo informacional. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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É do contato com o leitor que surge a alquimia que transforma a linguagem em algo dinâmico e vivo. Na nossa pesquisa, a partir dos conceitos de Educação pela Arte (READ, 1986) e cooperação textual (ECO, 2011) constatamos que a leitura das HQs nos proporciona uma experiência transformadora, e o que aprendemos não nos chega através de preceitos ou instruções e sim por contágio, deixando marcas e resíduos no coração e na memória. O que defendemos e verificamos em nossas leituras é que não se trata de um processo de aprendizado fatual que veicule as informações de forma didática. É uma relação de empatia entre leitor e obra que se cimenta na reação emocional do leitor ao entrar em contato com elementos ou símbolos (EISNER, 2008), com os quais se identifique e/ou que remetam à sua própria realidade – palavra-mundo (FREIRE, 2005).

Cabe ao profissional da informação conhecer a comunidade com a qual trabalha, não apenas através de números em um relatório. Mas, sobretudo, procurar “escutar” suas vozes, elaborar projetos, mais do que “para eles”, “com eles”. A mediação dos acervos de HQs se apresenta como uma ponte capaz de trazer aos leitores o contato com o prazer da apreciação artística/crítica a partir da leitura de material complexo e prazeroso que fala do mundo de diversas formas, com diversas cores. Para isso é preciso conhecer a especificidade dos quadrinhos, seus diversos perfis leitores, a indústria editorial e o universo de estilos e temáticas desta narrativa. É importante sobretudo, conhecer o sujeito leitor. Escutá-lo para além de dados frios dos relatórios estatísticos. A pesquisa é um caminho muito rico. Ver o que já foi escrito, refletir e compartilhar a própria experiência faz parte do processo mediador.

Percorremos todos esses caminhos. Lemos. Investigamos. Refletimos. Escutamos. Observamos. Compartilhamos. Obtivemos resultados, e atingimos o nosso objetivo geral evidenciando as HQs como uma fonte de informação vinculada à memória e aos afetos dos leitores. E também nossos objetivos específicos, tendo em vista que é possível a pesquisa com quadrinhos na CI, embora na prática tais estudos sejam ainda tímidos. REFERÊNCIAS BARROS, Maria Helena T. C. A mediação da leitura na biblioteca. In: BARROS, Maria Helena T.C.; BARTOLIN, Sueli; SILVA, Rovilson José da. Leitura: mediação e mediador. São Paulo: FA Editora, 2006.

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SHAKESPEARE EM QUADRINHOS: UM OLHAR SOBRE MACBETH SHAKESPEARE IN COMICS: A STUDY OF THE SCOTTISH PLAY Rebeca Pinheiro Queluz Universidade Federal do Paraná

RESUMO Este trabalho discute a adaptação de 2012 de Macbeth por Marcela Godoy e Rafael Vasconcellos para a “Coleção Shakespeare em Quadrinhos” da Editora Nemo. Para isso, levou-se em conta o conceito de adaptação de Linda Hutcheon (2013) e o conceito de clássico de Anne Ubersfeld (2002), entre outras noções. Procurou-se compreender como a peça foi ressignificada em sua narrativa a partir da linguagem sequencial, de recursos como: a estilização do desenho, a construção dos personagens, a caracterização dos cenários, figurinos e adereços, as ênfases cromáticas, o uso de legendas para os solilóquios, a composição das páginas e dos quadrinhos para criar a simultaneidade dos fatos e sugerir vários pontos de vista de uma mesma cena. A adaptação de Macbethcomprova a atualidade de Shakespeare, dando novos significados para questões contemporâneas como a ambição, traição, medo, loucura, lealdade, integridade e poder. Palavras-chave: Adaptação; quadrinhos; Macbeth ABSTRACT This paper discusses the adaptation of Macbeth, 2012, by Marcela Godoy and Rafael Vasconcellos for “Coleção Shakespeare em Quadrinhos” from Editora Nemo. In order to do so we took into account the concept of adaptation of Linda Hutcheon (2013) and the concept of classic of Anne Ubersfeld (2002), among other notions. We sought to understand how the play was re-signified in its narrative through the visual language of sequential images with resources such as: the stylization of the drawing, the construction of the characters, the characterization of the sets, costumes and props, the chromatic emphases, the useof subtitles for the soliloquies, the composition of the pages and of the images to create the simultaneity of events and suggest several points of view of the same scene. The adaptation of Macbethproves the actuality of Shakespeare, giving new meanings to contemporary issues such as ambition, betrayal, fear, madness, loyalty, integrity and power. Key words: Adaptation; comics; Macbeth

INTRODUÇÃO Este artigo tem por objetivo discutir a adaptação de Macbeth para os quadrinhos, realizada por MarcelaGodoy (roteiro) e Rafael Vasconcellos (desenhos), em 2012, para o projeto “Coleção Shakespeare em Quadrinhos”, da Editora Nemo. Para isso, tomou-se como pressupostos teóricos o conceito de adaptação de Linda Hutcheon (2013) e o conceito de clássico de Anne Ubersfeld (2002), entre outras noções. Nesse sentido, analisamos o modo como a tragédia escocesa foi transposta para as páginas de HQ. Na construção da linguagem gráfica e na relação texto-imagem, examinamos alguns elementos dessa peça, tais como: os temas, o enredo, os personagens (em especial Macbeth, sua esposa, Banquo, Duncan e as Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016


bruxas), os símbolos (as adagas, a coroa, o cálice), as metáforas (o sangue, o sono, as roupas que não servem, o corvo, a coruja, os escorpiões), a ironia. Procuramos compreender como a peça foi ressignificada em sua narrativa a partir da linguagem sequencial, de recursos como: a estilização do desenho, a construção dos personagens, a caracterização dos cenários, figurinos e adereços, as ênfases cromáticas, o uso de legendas para os solilóquios, a composição das páginas e dos quadrinhos para criar a simultaneidade dos fatos e sugerir vários pontos de vista de uma mesma cena. O QUE É ADAPTAÇÃO? A adaptação é um processo complexo que envolve diversas operações, tais quais: areescritura, o

diálogo intercultural, intermidial e intertextual. Nela ocorrem ajustes, alterações, reinterpretação, recodificação, tradução, reconcepção, recriação, apropriação, recuperação e reformatação. Existe uma repetição sem replicação, mas com variação, com diferença. Nas palavras de Linda Hutcheon (2013, p. 24): Todos esses adaptadores contam histórias a seu próprio modo. Eles utilizam as mesmas ferramentas que os contadores de histórias sempre utilizaram, ou seja, eles tornam as ideias concretasou reais, fazem seleções que não apenas simplificam, como também ampliam e vão além, fazem analogias, criticam ou mostram seu respeito, e assim por diante. (…) tal como as paródias, as adaptações têm uma relação declarada e definitiva com textos anteriores, geralmente chamados de “fontes”; diferentemente das paródias, todavia, elas costumam anunciar abertamente tal relação.

A pesquisadora defende que uma adaptação procura “equivalências” em diferentes sistemas de signos para os mais variados elementos da estória, sejam eles: seus temas, eventos, mundos, personagens, motivações, pontos de vista, consequências, contextos, símbolos, imagens, etc. Podem ocorrer inúmeras transformações nesse processo, desde mudanças no compasso, no enredo, no tempo (que pode ser comprimido ou expandido) e na focalização ou no ponto de estória que está sendo adaptada. Assim, os adaptadores são, em um primeiro momento, intérpretes para, posteriormente, tornaremse criadores. Hutcheon compara a ação de adaptar a uma arte cirúrgica, pois nesta há cortes e subtrações. Por outro lado, é relevante pensar que as adaptações garantem a permanência (ou mesmo a sobrevivência) do que está sendo adaptado: A adaptação, tal como a evolução, é um fenômeno transgeracional. Algumas histórias obviamente têm mais “estabilidade e penetração no meio cultural”, como Dawkins diria. As histórias são, de fato, recontadas de diferentes maneiras, através de novos materiais e em diversos espaços culturais; assim como os genes, elas se adaptam aos novos meios em virtude da mutação –por meio de suas “crias” ou adaptações. E as mais aptas fazem mais do que sobreviver; elas florescem (HUTCHEON, 2013, p. 59).

Hutcheon enfatiza que o fato de uma adaptação remeter a uma obra inicial, torna-a palimpséstica. Dito de outro modo, “trabalhar com adaptações significa pensá-las como obras inerentemente palimpsestuosas, assombradas a todo instante pelos textos adaptados” (HUTCHEON, 2013, p. 27). As adaptações são percebidas, desta forma, como intertextualidades e mesmo umplural de ecos, referências e citações. Ao mesmo tempo, a autora atenta para o fato de que as adaptações são trabalhos autônomos, possuem a sua própria aura, sua própria “presença no tempo e no espaço, uma existência única no local onde ocorre” (BENJAMIN,1968 apud HUTCHEON, 2013, p. 27). Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Por último, interpretar uma obra de arte significa: colocar ênfase em certos aspectos e excluir outros: é por esse motivo que, apesar de haver centenas de produções teatrais sobre uma determinada obra literária, as potencialidades do texto, que são infinitas, não se esgotam. Cada produção provê apenas um insight parcial e nenhuma produção, não importa o quão definitiva possa ser, pode realizar todas as potencialidades do texto (MIRANDA, 2008, p. 2).

Consequentemente, haverá sempre um número infinito de possibilidades de reler e repensar uma obra de arte, em diferentes épocas e contextos históricos e sociais. Neste artigo, propôs-se a análise dos quadrinhos do clássico shakespeariano, Macbeth. Segundo Wilton José Marques, a despeito de a própria “elasticidade” do termo comportar várias definições, a obra clássica pode ser pensada como aquela que, ao longo do tempo, acaba por se tornar um referencial fundante para a literatura, seja em termos locais, seja em termos universais. Ou ainda, para usar uma das dezesseis possibilidades de definição do dicionário Aurélio –que, aliás, é um clássico –, “diz-se de ou obra ou autor que, por sua originalidade, pureza de expressão e forma irrepreensível, constitui modelo digno de imitação”. (BORGES, 2013, p. 9).

Em outras palavras, um clássico para este autor seria a obra que obteve reconhecimento ao longo do tempo e que se tornou um modelo para outros autores. Assim, a obra literária considerada 'clássica' transcende seu próprio tempo histórico, suscitando inúmeras discussões, ampliando a capacidade do leitor de perceber e entender o mundo. O clássico, conforme Marques “é um convite permanente à reflexão, seja sobre o mundo, seja sobre o indivíduo” (BORGES, 2013, p.11) e, por isso, não se esgota à primeira leitura. Assim, a literatura clássica coloca inquietações, dúvidas; propõe reflexões, havendo sempre algo a ser percebido ou decifrado. Já para Anne Ubersfeld (2002), um clássico é “tudo aquilo que, não tendo sido escrito para nós mas para outros, reclama uma ‘adaptação’ a nossos ouvidos” (UBERSFELD, 2002, p. 9). Para essa autora, clássico é tudo o que foi escrito numa dada sociedade, em um dado contexto, e em uma sociedade diferente da nossa, precisa ser repensado no novo contexto. Assim, o trabalho do roteirista, do desenhista e de outras pessoas envolvidas no processo de adaptação (neste caso específico da transposição para as histórias em quadrinhos) é encontrar um “equivalente” para as “condições que se tornaram evanescentes” (UBERSFELD, 2002, p. 15). A pesquisadora parte do pressuposto de que “a obra clássica não é mais um objeto sagrado, depositário de um sentido oculto, como o ídolo no interior de templo” (UBERSFELD, 2002, p. 12) e propõe que ler hoje é des-ler o que foi lido ontem. Ubersfeld, assim como a Linda Hutcheon, argumenta que através da adaptação do clássico assegurase sua permanência. Nas suas palavras: “O traço distintivo da representação (e do texto) clássico é a continuidade” (UBERSFELD, 2002, p.29). Isso vai de encontro ao que a pesquisadora Célia Arns de Miranda escreve quando, por meio do diálogo com o texto de Jean I. Marsden (1991), afirma que

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No mundo dos estudos literários, a apropriação textual é um processo necessário e inevitável: uma obra literária estaráexercendo influência, se as pessoas não deixarem de manifestar uma reação diante dela, ou seja, se houver leitores que, novamente, se apropriem da obra do passado, ou autores que desejem imitá-la, excedê-la ou refutá-la. Através do ato de apropriação literária, a respectiva obra torna-se propriedade alheia e essa é uma garantia de sua permanência através de sua re-invenção.(MIRANDA, 2008, p. 1).

Em outras palavras, a capacidade de influenciar e ser influenciada garantem a permanência de uma obra literária. É válido ressaltar que Shakespeare já fazia adaptações em sua época, transferindo histórias da sua própria cultura das páginas para o palco, tornando-as, desse modo, disponíveis para um público

completamente distinto (HUTCHEON, 2013, p. 21). Conforme Marilise Rezende Bertin (2008, p. 56-59), é incontestável o fato de que Shakespeare era um adaptadore imitador, assim como um apropriadorde mitos, contos de fadas e folclore, bem como de trabalhos específicos de escritores variados como Ovídio, Plutarco eHolinshed. O início do século XX testemunhou uma profusão de livros que se dedicaram a encontrar essas fontes(...) Shakespeare fazia uso de fontes clássicas, porém não somente clássicas, mas dispunha também de variado material na época. O dramaturgo tinha onde se alimentar e se apropriava do que lhe interessava; contudo, as mudanças feitas por Shakespeare viriam ao encontro das necessidades do público do teatro elisabetano, ao qual ele queria agradar.

Shakespeare, para a composição de suas peças, utilizava narrativas de várias precedências, tais

como: lendas, mitos, romances gregos, histórias de cavalaria, contos populares e eruditos e recorria a tradições teatrais diversas. Ele bebia no teatro medieval, na comédia antiga e italiana renascentista. Normalmente, o dramaturgo usava uma fonte principal à qual acrescentava ideias, situações e personagens advindas de outras leituras (LEÃO; SANTOS, 2008, p.176). No caso de Macbeth, por exemplo, a principal fonte utilizada foi retirada da obra “Crônicas da Inglaterra, Escócia e Irlanda”, de Raphael Holinshed, lançada em 1577 e reeditada em 1587 (na versão que Shakespeare leu) onde se encontra a história de um rei escocês do século XI chamado Macbeth. Além das Crônicasde Holinshed, Shakespeare utilizou outras fontes para criar Macbeth, entre elas: o trabalho de Hector Boece, Scotorum historiae(1526, 1575) e de George Buchanan, Rerum Scoticarum Historia (1582). Contribuíram ainda para o texto da peça as tragédias latinas de Sêneca, a Bíblia, a Arcadia Reformed(peçaencenada em 1605 em Oxford e publicada

no ano seguinte com o título de The Queenes Arcadia), de Samuel Daniel, as obras de Jaime I, Daemonologiee Counterblast to Tobacco, entre outros. QUADRINIZANDO SHAKESPEARE Em relação às histórias em quadrinhos, interessam, para este artigo, as adaptações que existem de Macbeth. Em língua inglesa, a editora Scholastic lançou, em 1998, uma adaptação para o público jovem intitulada “Tales from Shakespeare”, com sete peças apresentadas e ilustradas por Marcia Williams em 40 páginas. Outras duas adaptações em HQ são a “Graphic Shakespeare” e “Macbeth–The ELT Graphic Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Novel”. A primeira, pela Salariya Book House, apresentou Hamlet, Macbeth, Júlio César, Romeu e Julietae Sonho de uma noite de verãoem uma mesma edição. Cada história vem com uma pequena introdução, a apresentação dos personagens e alguns dos trechos mais conhecidos das peças do bardo. Macbeth, por exemplo, foi ilustrada por Nick Spender e recontada por Stephen Haynes. Cada cena da peça apresenta um título que destaca o que há de mais importante na mesma. Exemplos disso são: “A national hero”, “A prophecy”, “Ambition”, “A royal visit”, “The ghostly dagger” e, avançando na história, “A massacre of innocents”, “Conscience”, “Macbeth stands alone” e, por último, “Death of a tyrant”. O trabalho em parte é narrado e em parte versificado, com direito a definições do dicionário em notas de rodapé. Conforme explicação na contracapa do livro, essa adaptação pretende, através do trabalho com

cores vibrantes, dar vida às cenas e com legendas em inglês moderno fazer com que as histórias sejam fáceis de entender, funcionando como uma introdução às peças shakespearianas. Destacam-se também os balões de fala com os versos mais importantes e mais célebres de Shakespeare. A segunda adaptação de Macbethfoi roteirizada por John McDonald e adaptada para leitores do nível intermediário de inglês por Brigit Viney. A Heinle Cengage Learning, em parceria com a Classical Comics, propôs uma adaptação com um inglês simplificado para facilitar a leitura de pessoas que querem aprender essa língua. O trabalho é direcionado especialmente a cursos de inglês, no intuito de motivar a leitura de uma das obras mais dramáticas das tragédias de Shakespeare. Assim como a outra adaptação, essa releitura apresenta os personagens nas primeiras páginas, indicando suas funções abaixo de cada ilustração: Duncan, “rei da Escócia”, Macduff, Lenox e Rosse, “nobres da Escócia”, e assim em diante. A seguir, há uma introdução

que situa o leitor no ano (1040) e no local da história (Escócia), além de explanar sobre o reinado de Duncan e sobre as rebeliões que têm ocorrido. Finalmente, aponta que o exército do rei é liderado pelo Thanede Glamis, Macbeth. A página seguinte, com fundo preto, contém o título da história, também em preto, apenas com o “t” do Macbeth em forma de uma espada ensanguentada. A história é dividida em cenas e em atos, como na peça. Depois de acabada a tragédia, ao leitor são oferecidos um glossário com definições do dicionário Collins Cobuild, uma breve biografia de William Shakespeare, um relato sobre quem foi o personagem histórico Macbeth, a árvore genealógica do Macbeth histórico, um resumo dos personagens mais importantes, um mapa que cria conexões entre os personagens da tragédia e algumas das mais célebres falas de Macbeth, como a do oceano transformado em sangue, a das adagas nos sorrisos dos homens, a das manchas que não saem das mãos, a da vida, definida como uma história contada por um

idiota, cheia de som e de fúria, significando nada. Há, por fim, um espaço com algumas páginas para notas diversas e um CD com a leitura de cada cena. Em mangá duas coleções se destacam no mercado: a série “Manga Shakespeare” e “The Manga Edition”, ambas com inúmeros títulos das peças shakespearianas. Afigura 1 apresenta as capas das adaptações de língua inglesa, mostrando as variações tipográficas e de composição:

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Figura 1: Capas das adaptações de Macbethem língua inglesa. Fontes: Adaptado de Manga Shakespeare (2014) e Brush up your Shakespeare Blogspot (2014).

Já em português, em dezembro de 1952 a Edição Maravilhosa1 nº 6, publicada pela EBAL, trouxe três obras de Shakespeare adaptadas para os quadrinhos: Romeu e Julieta, Hamlete Macbeth. Cada adaptação era dividida em três ou quatro partes etinha em torno de trinta páginas. Logo no começo da revista recuperam-se algumas passagens de um artigo do The New York Timesintitulado “Shakespeare se apresenta ao público das histórias em quadrinhos”. O artigo afirma que era a primeira vez que se tentava adaptar as peças de Shakespeare para “essa forma popular de leitura juvenil” e que tal tentativa tornou-se possível através da cooperação com a Universidade de Nova York. De acordo com o artigo, seriam realizadas traduções para o português, o italiano, o francês, o chinês, o afrikaans, o hebraico e o tagalog. Além disso, a adaptação dessas obras foi concebida por uma equipe de vinte redatores e custou onze mil dólares. Posteriormente, a Companhia Editora Nacional lançou (em abril de 2010) uma adaptação para quadrinhos de Macbethcom 48 páginas. O trabalho, de Stephen Haynes (argumento) e Nick Spender (arte) foi traduzido por Mário Vilela, e faz parte da coleção “Quadrinhos Nacional”2. Essa edição dispõe de

informações extras para os leitores que buscam entrar em contato com o trabalho do bardo, como: uma pequena biografia de William Shakespeare, com retrato do autor por Martin Droeshout (no frontispício do Primeiro Fólio de 1623) e uma imagem da vista transversal do teatro Globe (em Londres), algumas comparações entre o Macbeth de Shakespeare e o personagem histórico, algumas informações sobre a 1

A EBAL, maior editora de quadrinhos no Brasil na primeira metade do século XX, começou a traduzir e a publicar a série Classics Illustrated(que teve início em 1941 e trazia obras da literatura mundial –os clássicos –para os quadrinhos) em 1948. Segundo Fabiano Azevedo Barroso, “Adolfo Aizen, diretor da EBAL, deu à versão brasileira da série o nome de Edição Maravilhosa […] o aspecto mais importante daquelas adaptações não era a história em quadrinhos em si, mas a obra de que se originavam: as capas, por exemplo, não destacavam o nome do autor da adaptação, apenas o nome do escritor do livro” (BARROSO In: BORGES, 2013, p.15). 2

Outros títulos publicados pela Companhia EditoraNacional são: A ilha do tesouro –quadrinhos; Drácula -quadrinhos; Frankenstein quadrinhos; Moby Dick -quadrinhos; O alienista -quadrinhos; O corcunda de Notre-Dame –quadrinhos; O fantasma de Canterville quadrinhos; O médico e o monstro –quadrinhos; Pindorama -a outra história do Brasil; Raptado –quadrinhos; Oliver Twist –quadrinhos; entre outros.

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dinastia Stuart, um mapa da Escócia de Macbeth, informações sobre os reinos da Escócia e da Inglaterra, a relação entre o rei Jaime I e a feitiçaria, fatos importantes ocorridos na Inglaterra e na Escócia no tempo de Shakespeare, uma listagem de outras peças de Shakespeare (organizada por datas), superstições em torno da peça escocesa, Macbethno cinema e na música. Por fim, há a adaptação que será analisada neste trabalho, Macbeth, da Editora Nemo, da qual falaremos adiante. Através da 2, podem-se ver as opções gráficas para as capas dessas revistas:

Figura 2: Capas das adaptações de Macbethem língua portuguesa. Fontes: Adaptado de Viz (2014) e Grupo Autêntica (2014).

MACBETH –A TRAGÉDIA ESCOCESA A peça é um estudo da ambição, do medo e do Mal; ela investiga a “natureza do mal e os vários modos pelos quais o homem lida com a presença deste em sua existência” (HELIODORA, 2004, p. 176). Apresenta em sua trama a trajetória de um homem com muitas qualidades, o melhor general, um súdito bom, admirado por todos, e que a certa altura da peça é dominado pela ambição, que o leva ao crime, à tirania, ao vazio completo dos valores humanos e naturais: Amanhã, e amanhã, e ainda amanhã Arrastam nesse passo o dia a dia, Até o fim do tempo pré-notado; E todo ontem conduziu os tolos À via e pó da morte. Apaga, vela! A vida é só uma sombra; um mau ator Que grita e se debate pelo palco, Depois é esquecido; é uma história Que conta o idiota, toda som e fúria, Sem sequer dizer nada. (SHAKESPEARE, 1995, p. 273)

A história tem lugar na Escócia e inicia com o retorno dos generais do exército do rei, Macbeth e Banquo, de uma batalha contra os inimigos do rei Duncan. No meio do caminho, os dois guerreiros deparam-se com três bruxas que preveem que Macbeth será Thanede Cawdor e, mais adiante, rei da Escócia. Além disso, as três estranhas irmãs profetizam que Banquo terá reis em sua linhagem. No mesmo momento em que as bruxas desaparecem, chegam mensageiros do rei e proclamam Macbeth Thanede Cawdor e ele começa a pensar na coroa que lhe fora prometida. Quando chegam ao castelo do rei Duncan, ele os elogia por seu desempenho na luta e anuncia que Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Malcolm (filho primogênito de Duncan) herdará o seu trono. Descontente com essa decisão, Macbeth pensa na possibilidade do assassinato e escreve uma carta a sua esposa contando o seu encontro com as bruxas. Lady Macbeth lê a sua carta e descobre através de um mensageiro que o rei está a caminho do castelo de Inverness para visitá-los. Assim, começa a articular um plano para tirar a vida do soberano, invocando os espíritos das trevas e as forças do mal para ajudá-la. Macbeth conversa com a esposa, hesita e quase desiste do plano, mas consegue convencê-lo a prosseguir. O rei dorme, os guardas estão embriagados e Macbeth covardemente o apunhala. Os filhos do rei, com medo das “adagas nos sorrisos dos homens”, refugiam-se em outros reinos. A partir de então, o caminho está livre para que Macbeth reclame o trono para si.

Todavia, para manter sua posição, Macbeth precisa cometer mais assassinatos, tornando-se cada vez mais insensível e desumano. Ele encomenda a morte de Banquo e de Fleance, porém o segundo consegue escapar. Inseguro, Macbeth procura as bruxas para saber seu futuro. Através de uma série de aparições e de visões, Macbeth descobre que Macduff (um nobre escocês) é seu inimigo e que ele, Macbeth, só seria destruído por alguém não nascido de mulher e apenas quando a floresta de Birmham se movesse. Desse modo, ordena a morte da esposa e dos filhos de Macduff, que fugira para a Inglaterra e começara a se armar. Lady Macbeth enlouquece com a culpa, tem episódios de sonambulismo e, por fim, suicida-se. Macduff, Malcolm e Donalbain (irmão de Malcolm) voltam com um exército inglês e contestam a tirania de Macbeth. Eles se camuflam com galhos de árvores e Macbeth tem a impressão de que a floresta está andando. Invadem o castelo e quando Macduff se depara com Macbeth, este descobre que o primeiro não

nascera de parto normal; fora arrancado do ventre de sua mãe. Eles duelam, Macduff vence e decepa a cabeça de Macbeth. Por fim, Malcolm torna-se o rei da Escócia. Apesar de tirar a vida de muitos ao longo da peça, Macbeth não é simplesmente um assassino frio. Podemos ver a complexidade do herói tanto por ele ter qualidades (é um grande guerreiro, por todos respeitado, conquista um título), como por ele ter dúvidas, receios antes de matar o rei, sentir remorso e se arrepender (o que está feito não poderá ser desfeito). A consciência faz com que ele seja diferente; através do processo de corrupção desse indivíduo (que matou seu rei, seu hóspede e parente), da sua perda de consciência e falta de ética, Shakespeare vai fazer um estudo do mal que existe no ser humano. Das quatro grandes tragédias de Shakespeare, Macbethé a mais sanguinolenta: a palavra “sangue”, segundo Barbara Heliodora (2004, p.168), aparece 21 vezes nessa peça, 19 em Hamlet, 12 em Leare em

Otelo. A crítica afirma que palavras compostas com sangue e derivadas de sangue têm muito maior incidência na tragédia escocesa do que nas outras três e, depois do crime, Macbeth é chamado de “tirano” nada menos do que 17 vezes. Nessa história, a tirania e o sangue são vistos como elementos inseparáveis. Além do sangue, outras imagens estão presentes na peça, tais quais: escuridão e noite; inferno; bruxaria e forças sobrenaturais (as bruxas, as aparições, o fantasma de Banquo); opostos difíceis de distinguir. É uma peça que apresenta uma série de discussões, como: livre arbítrio e destino; aparência e realidade; o efeito da culpa sobre a mente humana; a desagregação; ambição; regicídio; traição; busca por poder; assassinatos; loucura; suicídio; violência; tentações. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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COLEÇÃO SHAKESPEARE EM QUADRINHOS Criada em 2011, a coleção da Editora Nemo tem como proposta reapresentar com qualidade a obra de Shakespeare aos leitores jovens, mantendo a dramaticidade das peças. Outro fator crucial na proposta da editora era que as adaptações seriam realizadas por roteiristas e desenhistas brasileiros, de modo que as releituras seriam nacionais. A série conta com seis títulos: Romeu e Julieta (adaptada por Marcela Godoy e Roberto Paes), Sonho de uma noite de verão (com adaptação de Lillo Parra e Wanderson de Souza), Otelo (criada por Jozz e Akira Sanoki), A tempestade (concebida por Lillo Parra e Jefferson Costa), Macbeth (adaptada por Marcela Godoy e Rafael Vasconcellos) e Lear (realizada por Jozz e Octavio Cariello). Na

figura 3 podem ser vistas as capas de cada adaptação, com destaque para o nome de Shakespeare e para a ilustraçãodos principais personagens:

Figura 3: Capas da Coleção Shakespeare em Quadrinhos da Editora Nemo. Fontes: Adaptado de Zine Brasil Wordpress (2014), HQ Maniacs (2014) e UOL Entretenimento (2014).

A ADAPTAÇÃO DE MARCELA GODOY E RAFAEL VASCONCELLOS Macbethda Editora Nemo tem 62 páginas e não dispõe de nenhum para texto, além da apresentação dos autores ao final (na página 63 há o currículo do roteirista e da desenhista e um resumo de quem foi Shakespeare) e do resumo da trama na contracapa do livro. A história não possui nenhum tipo de divisão, seja em cenas e atos ou em partes. Não está em versos; houve uma adaptação da linguagem, procurando facilitar o trabalho do leitor contemporâneo, aproximando-o de uma abordagem mais atual. Começa com uma contextualização: a primeira página se mostra como um quadro em que aparecem inúmeros personagens, como os fantasmas de Duncan e de Banquo, Macbeth e Lady Macbeth (de mãos dadas, Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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segurando um punhal com a mão livre) e as três bruxas e Hécate escondidas na sombra. Aos pés dos personagens há uma quantidade enorme de crânios e acima deles e no centro há uma coroa, símbolo da ambição. Além disso, entre os personagens e os crânios há um pergaminho que informa ao leitor que a história se passa no ano de 1265 em meio à guerra entre a Escócia e a Noruega. O rei Duncan enviou os seus vassalos para defender o reino e, dentre eles, destaca-se Macbeth, barão de Glamis e primo do rei. O personagem é descrito como bravo, obstinado e impiedoso. Para o grande general, antecipa o pergaminho, foi guardada uma profecia de grandeza. Entretanto, o preço desse destino seria muito alto. A adaptação como um todo foi desenhada com traços sombrios e tons terrosos. Mesmo o dia agradável notado por Duncan quando visita o castelo de Macbeth é colorido com um marrom claro meio

alaranjado. Não há espaço para o céu azul nesta adaptação. Parece que as palavras das bruxas no primeiro ato -“voa no ar sujo e marrom” na tradução de Barbara Heliodora (1995, p. 195) e “atravessa a neblina e o ar imundo” nesta adaptação (GODOY, 2012, p.4) -ficaram impregnadas no ambiente em que vivem esses nobres. Do espectro de cores destaca-se ainda o vermelho da bebida dos soldados, do sangue do soldado ferido, presente também na roupa, no rosto e nos punhais de Macbeth, nos corpos dos guardas do rei, na vestimenta do assassino de Banquo, nas mãos de Lady Macbeth. Brilham as joias de Lady Macbeth assim como a coroa de Duncan, que logo será usada pelo marido. A atmosfera mostrada no início (figura 4) é sombria, com raios, trovões e fogo incendiando as árvores. A diagramação da página começa com um plano geral, quebra o enquadramento em vários ângulos e retoma a visão ampla da atuação das bruxas:

Figura 4: Página inicial e detalhe do último quadrinho ao lado. Atmosfera sombria em Macbeth. Fonte: Adaptado de Grupo Autêntica (2014).

As bruxas são envoltas por sombras, vemos apenas as silhuetas, o que aumenta o mistério em torno de suas figuras. Seriam elas moirasou parcas? Bruxas? Seres mágicos? Sobrenaturais? Nessa releitura, a história inicia e termina com as três irmãs, que combinam o seu encontro com Macbeth no começo e, no fim, mexem um caldeirão onde aparecem os vitoriosos da luta contra o tirano Macbeth. Ofinal revela que elas são seres do mal que colhem mentiras das verdades, sementes do fruto da dor. A última frase, “Toda hora é hora de semear o campo”, cria aquela sensação de que tudo não acabou bem, de que o mal foi derrotado naquele momento, mas que logo retornaria de outra forma. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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A caracterização dos personagens, muitas vezes, remete aos gestos e posturas corporais dos heróis de quadrinhos, marcados pela juventude e pela sensualidade. Macbeth, Lady Macbeth e Banquo são desenhados por Rafael Vasconcellos como jovens, ao passo que Duncan é caracterizado como um rei mais velho, com barba e cabelos longos, todo enrugado. A aparência do rei é suavizada pela expressão bondosa, atenciosa e generosa que levaria Lady Macbeth a compará-lo com o pai. Macbeth aparece quase sempre com o uniforme de guerra, a barba por fazer e o cabelo (castanho claro) relativamente longo. Lady Macbeth, por sua vez, é retratada como uma mulher vaidosa de cabelos ruivos longos e soltos, olhos verdes, marcada pela sensualidade, pelo corpo bem delineado. Outra personagem que se destaca pela sensualidade nesta adaptação é a Hécate que, contrastando com as bruxas que estão envoltas em capas, têm

a aparência medonha, cabelos brancos e pele marrom esverdeada, é caracterizada como jovem, comcabelos negros com reflexo vermelho, longos, cacheados nas pontas, veste um topvermelho que deixa sua barriga negativa e suas costas à mostra, tem um monte de braceletes em torno dos braços, possui unhas grandes e afiadas e usa na cabeça uma espécie de coroa com chifres. O desenho, ainda que estilizado, está mais para o realismo do que para a caricatura3. O figurino, à exceção de Hécate, remete à era medieval. A adaptação fez vários cortes na narrativa original. Suprimiu-se, por exemplo, a imagem utilizada por Lady Macbeth, do bebê sendo estraçalhado; o solilóquio da adaga em que não se tem a certeza se Macbeth projetou o punhal ou se ele realmente estava guiando-o para o quarto de Duncan; a parte em que Macbeth não consegue devolver os punhais e a esposa os devolve e vê no rei morto a imagem de seu pai (e isso traz consequências graves para ela, como a loucura); a parte em que o porteiro aparece (caracterizado

como porteiro do Inferno), entre outras. Por outro lado, há cenas, como a do sonambulismo de LadyMacbeth, que aqui (figura 5) são enfatizadas:

Figura -5: Sonambulismo de Lady Macbeth (páginas 41, 42 e 43). Fonte: Autoria própria.

A Lady Macbeth são dadas nada menos que 5 páginas, onde seu tormento é revelado. Ressaltaramse suas mãos, ensanguentadas e que a personagem lava inúmeras vezes, o candelabro que ela segura, para manter a luz continuamente perto de si e o seu vagar inconsciente, sonâmbulo pelo castelo. Lady Macbeth fala durante o sono, age como se estivesse enlouquecendo, abre as janelas, inclina-se no parapeito, 3

Conforme Paulo Ramos (2009, p. 123), “histórias cômicas tendem a ter personagens caricatos, histórias de aventura costumam utilizar-se de uma representação realista dos personagens”.

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indicando que a qualquer momento se suicidará. A moça sente-se sufocada pelo cheiro de sangue, olha para as suas mãos e só vê sujeira, está inconsolável mesmo quando inconsciente e, ao pronunciar as últimas palavras -“Mas a terra nos acolhe... a todos. Indiscriminadamente” -está resolvida a acabar com a própria vida para aliviar o seu sofrimento. No que tange aos apartes, estes são indicados por balões de fala, como na página 11, em que Macbeth descobre quem vai suceder Duncan: “Príncipe Malcolm! Aí está um degrau a ser subido para que eu não tropece!”. Já os solilóquios são representados por legendas (que também indicam os lugares), como as que aparecem na página 14, quando Macbeth está pensando sobre as consequências de seu ato: “Se eu tivesse como saber que a única consequência pelo assassinato de Duncan seria o meu êxito! Uma só a

punhalada e tudo se renova... aqui seria, então, um outro lugar!”.

Figura 6:Solilóquio de Macbeth (página 14) Fonte: Autoria própria.

A adaptação criada por Godoy e Vasconcellos destaca-se pela expressividade demonstrada através do rosto das personagens. Exemplos disso (ilustrados pela figura a seguir) são o olhar de Banquo quando conversa com Macbeth sobre as suas impressões das bruxas, a expressão surpresa de Duncan quando está para ser assassinado por Macbeth e o olhar resoluto de Macbeth e de sua esposa que, combinado, indica a sua união:

Figura 7:Expressividade dos olhares nos desenhos de Rafael Vasconcellos (páginas 8, 15 e 18). Fonte: Autoria própria. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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É necessário ressaltar, ainda, a composição das páginas e dos quadrinhos para criar a simultaneidade dos fatos e sugerir vários pontos de vista de uma mesma cena. Isso ocorre, por exemplo, quando as bruxas aparecem pela primeira vez (figura 4). Primeiro, o leitor tem uma vista panorâmica do lugar. Depois, há uma sombra que fala sobre um encontro e nos próximos quadrinhos vê-se um raio caindo, atingindo uma árvore e a chuva atingindo o chão. Abaixo, as bruxas conversam e combinam suas maldades. Finalmente, tem-se uma visão do todo novamente, desta vez com as bruxas na paisagem. Em outros momentos, vemos um castelo visto de fora, num outro quadrinho aparece uma personagem dentro desse castelo, observando quem chega na janela e, em seguida, a mesma pessoa desceu as escadas e recebe os convidados. Ou então acontece uma situação e o leitor vê a reação de diversos personagens ao acontecimento de modo simultâneo. Ainda, pode-se ver o rei, do alto de seu trono, observando os vassalos que vêm pedir alguma coisa ou atender a um chamado do soberano, e em outro quadrinho tem-se o ponto de vista dos servos, que estão agachados em posição de reverência olhando para o seu senhor. Por fim, foram utilizados nessa adaptação recursos próprios dos quadrinhos, como as onomatopeias (figura 8), para indicar o som da luta, do entrecruzar das espadas, da batida no portão, do corte da adaga, do quebrar da porta, reforçando o dinamismo das cenas:

Figura 8:Onomatopeias em Macbeth (páginas 22, 54 e 59). Fonte:Autoria própria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho procurou examinar os quadrinhos, a partir do pressuposto de Anne Ubersfeld (2002) de que clássicos reclamam uma adaptação por pertencerem a um momento e uma sociedade diferente da nossa, com diferentesprocessos histórico-culturais. Além disso, conforme o estudo de Linda Hutcheon (2013), considerou-se que os adaptadores contam histórias a seu modo, tornando as ideias concretas a partir de determinadas escolhas e seleções (sem com isso reduzir ou “simplificar” o original) e o produto desenvolvido por eles deve ser visto como uma obra autônoma. Dessa forma, analisamos o modo como a Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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tragédia shakespeariana Macbeth foi relida por Marcela Godoy e por Rafael Vasconcellos na HQ que faz parte da coleção Shakespeare em Quadrinhos da Editora Nemo. Pudemos perceber, através da análise da estilização do desenho, da construção dos personagens, da caracterização dos cenários e dos figurinos como a peça foi atualizada e ressignificada em sua narrativa. Nesta adaptação de Macbeth constatou-se a potência do texto shakespeariano nas gestualidades dos corpos, na força das expressões faciais e no uso dramático dos tons de sépia. Além disso, comprovou-se como Shakespeare é atual, como suas peças dão forma e significado para questões contemporâneas, para questões pertinentes ao ser humano: poder, ambição, traição, medo, loucura, lealdade, moralidade, integridade, confiança.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERTIN, M. “Traduções”, adaptações, apropriações:reescrituras das peças Hamlet, Romeu e Julieta e Otelo, de William Shakespeare”. Dissertação de Mestrado. São Paulo, 2008. Disponível em: <http:// www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8147/tde-31072009-153332/pt-br.php >. Acesso em: 06 ago. 2014. BRUSH UP YOUR SHAKESPEARE. Ebook:Macbeth manga edition. Disponível em: <http:// brushupyourshakespeare.blogspot.com.br/2011/10/ebook-macbeth-manga-edition.html>. Acesso em: 20 ago. 2014. GODOY, M.; VASCONCELLOS, R. Macbeth. Coleção Shakespeare em Quadrinhos. São Paulo: Editora Nemo, 2012. GRUPO AUTÊNTICA. Press kit: Macbeth, A Tempestade. Disponível em: <http:// grupoautentica.com.br/fique_por_dentro/releases/editora-nemo-lanca-dois-novos-volumes-da-colecaoshakespeare-em-quadrinhos/73>. Acesso em: 20 ago. 2014. HELIODORA, B. Reflexões shakespearianas. Organização Célia Arns de Miranda, Liana de Camargo Leão. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2004. HQ MANIACS. Nemo lança Shakespeare, Tardi e mais Moebius. Disponível em: <http:// hqmaniacs.uol.com.br/Nemo_lanca_Shakespeare_Tardi_e_mais_Moebius_32575.html>. Acesso em: 20 ago. 2014. HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Tradução: André Cechinel. 2a. ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2013. LEÃO, L. C.; SANTOS,M. S. [org]. Shakespeare, sua época e sua obra. Curitiba: Editora Beatrice, 2008.

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TRANSCODIFICANDO A OBRA DE FERNANDO PESSOA DA LITERATURA PARA OS QUADRINHOS TRANSCODING FERNANDO PESSOA’S WORK FROM LITERATURE TO COMICS ROBERTO ELÍSIO DOS SANTOS JOSÉ LUIZ DOS SANTOS

RESUMO Estuda a transposição de textos literários para o âmbito da narrativa quadrinhográfica, utilizando como objeto de análise a publicação Fernando Pessoa e outros pessoas, criado a partir dos poemas do escritor português e seus heterônimos. Entendendo a adaptação de uma obra de um meio para outro como uma forma de transcodificação, foram examinados os aspectos visuais, gráficos e estéticos dessa história em quadrinhos, e foi realizada a comparação do texto original com sua adaptação para os quadrinhos. Palavras-chave: História em quadrinhos; Literatura; Transcodificação ABSTRACT Studies the transposition of literary texts to the scope of the narrative of comics, using as object of analysis the publication Fernando Pessoa e outros pessoas, created from poems of the Portuguese writer and his heteronyms. Understanding the adaptation of a work from one medium to another as a way of transcoding, the comics’ visual, graphic and aesthetic aspects were examined, and a comparison of the original text with its adaptation for comics was made. Key words: Comics; Literature; Transcoding

INTRODUÇÃO Este texto resulta de pesquisa qualitativa realizada no âmbito do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, tendo como principal objetivo analisar a maneira como o texto literário assume novas formas quando adaptado à linguagem e à narrativa própria

das histórias em quadrinhos. Trata-se de um trabalho de nível exploratório, por meio de análise de conteúdo norteada pelo referencial da semiologia de linha francesa, cujo corpus é composto pelo álbum de quadrinhos Fernando Pessoa e outros pessoas, escrito por Davi Fazzolari e desenhado por Eloar Guazzelli, a partir da obra do poeta português. A obra não é uma adaptação avant la lettre, mas a ambientação dos poemas em imagens sequenciais que evocam lugares e sentimentos do autor. Sobre este aspecto, Pina (2012, p. 151) afirma que “a HQ é uma narrativa ficcional, a literatura em quadrinhos também, mesmo quando a obra-fonte é poética”. E essa autora acrescenta: “Isso porque as histórias em quadrinhos contam histórias imaginadas pelos quadrinistas”. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016


Neste trabalho, para proceder à análise, tornou-se necessário, em primeiro lugar, estabelecer conceitualmente o processo de transposição de uma obra de um meio, que se pauta por um código específico, para outro, cujas regras de combinação são diferentes, envolvendo outros elementos. Em seguida, foi feito o exame dos aspectos visuais, gráficos (encapsulamento) e estéticos, assim como a confronto entre o texto literário original e o adaptado. A transcodificação da literatura para os quadrinhos Narrativas ficcionais são desenvolvidas a partir de códigos e linguagens específicas. Uma mesma

história contada com o emprego da oralidade, da escrita, por meio de imagens ou com recursos audiovisuais assemelha-se quanto aos elementos do relato, mas diferencia-se no que se refere a aspectos específicos de cada forma de comunicação. Dessa forma, quando um texto realizado originalmente para um meio é transposto para outro, ele sofre, necessariamente, alterações. Stam (2008, p. 20) contesta a noção de fidelidade no que se refere a adaptações de uma mídia para outra, uma vez que “uma adaptação é automaticamente [grifo do autor] diferente e original devido à mudança do meio de comunicação”. No caso das adaptações literárias para os quadrinhos, Zeni (2009, p. 127) considera que: As produções em quadrinhos baseadas em obras literárias devem ser avaliadas por seu valor como arte autônoma, e não à sombra da produção original. Podemos, entretanto, aproveitar a proximidade dessas adaptações e do texto que lhe serviu de base para buscar uma leitura diferenciada, uma outra visão da obra literária.

Balogh (1996, p. 45) emprega o termo transmutação para se referir à passagem de um texto de um meio para outro. De acordo com essa autora, há um elemento conjuntivo por excelência presente na transmutação: “o fato de que os textos presentes no processo são narrativas”. Utilizando a perspectiva greimasiana, ela amplia o conceito de estrutura elementar da narrativa – “a significação como resultante de percepção simultânea de similaridades (conjunções) e diferenças (disjunções) – ao processo intertextual”. Já Plaza, focado na produção artística, parte dos referenciais de Jakobson e Peirce. Esse teórico (2008, p. 14) compreende a tradução como“prática crítico-criativa na historicidade dos meios de produção e re-produção, como leitura, como metacriação, como ação sobre estruturas eventos, como diálogo de signos, como síntese e reescritura da história”. Ele faz ainda uma distinção entre a tradução interlingual e a tradução intersemiótica: Na tradução interlingual, o processo tradutório processa-se no mesmo meio, porém em língua diferenciada, tendo, por isso mesmo, tendência a despertar os sentidos latentes na língua de partida. Contudo, os sentidos nas línguas tendem a ficar especializados e adormecidos, pois esses sentidos estão nelas representados por meio da sugestão, alusão e metáfora. Pelo contrário, na Tradução Intersemiótica, como tradução entre os diferentes sistemas de signos, tornam-se relevantes as relações entre os sentidos, meios e códigos. (PLAZA, 2008, p. 45).

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Guerini e Barbosa (2013, p. 16-17) ponderam que “ao falar de HQ como ‘tradução’, estamos admitindo que HQ é um texto que se equipara à fonte”, embora ressaltem que a história em quadrinhos “não é construída somente por ‘literas, letras’, ela não faz uso apenas do alfa e do beta, mas utiliza-se de outros signos para construir a narrativa”. Na visão das duas teóricas: (...) para conceber a HQ como tradução, bastou-nos considerar o significado como um fato semiótico com afinidade mais profunda do que aquela definida na semelhança linguística – superficial e vaga – de duas obras poéticas produzidas em línguas diferentes. (...) Ora, se ao tradutor cabe compor um poema análogo ao original em outra linguagem e com signos diferentes, isso é factível com a transposição da linguagem literária para a HQ.

A transposição de uma história criada no âmbito de uma linguagem (escrita, por exemplo) para outra (como a audiovisual ou a dos quadrinhos) implicasobretudoa adequação a um código diferente. Nesse sentido, pode-se dizer que se verifica um processo de transcodificação, termo que será a tônica deste trabalho. Quando um texto literário, codificado de acordo com as normas gramaticais e as possibilidades denotativas e conotativas da escrita, é adaptado para os quadrinhos, ele é reimaginado e reformulado em fragmentos de imagens e textos, como é próprio a este produto cultural. Narrativa gráfica sequencial, a história em quadrinhoscaracteriza-se pelo amálgama de duas linguagens (verbal e pictórica) que se articulam no espaço da vinheta. Este sintagma elementar – a vinheta composta por texto e desenho – consiste em uma parte de um sistema semiológico mais complexo em que se desenrola a história, baseado na relação sequencial e de continuidade estabelecida pelas vinhetas e pelos

elementos nelas encapsulados1. A despeito da adaptação de textos literários para os quadrinhos no Brasil remontar à década de 2

1930 e de ter sido feita de 1948 a 1979 para as páginas da revista Edição Maravilhosa, publicada pela Editora Brasil-América Ltda., é no século XXI que se verifica uma vasta produção, que visa atender a programas governamentais e às demandas dos estudantes. O álbum Fernando Pessoa e outros pessoas, publicado em 2012, enquadra-se nesse caso. Análise dos elementos visuais A capa do álbum apresenta imagens (desenhos) que se tornam recorrentes ao longo da história em

quadrinhos, que se baseia em poemas de Fernando Pessoa e de seus heterônimos (os “outros pessoas”), como uma síntese da obra. A figura humana, de costas para o leitor, representa o próprio poeta, como pode ser constatado na leitura: lá estão o chapéu de abas largas e o guarda-chuva e o corpo magro e alto do escritor. Este elemento visual encontra-se de frente para o mar – assim como Portugal, país cujo momento de afirmação se deu com as conquistas marítimas, a partir do século XVI. 1

Para Duncan e Smith (2009, p. 131), “o processo de encapsulamento [encapsulation] envolve a seleção de certos momentos da ação principal da história imaginada, encapsulando, ou delimitando pedaços daquele s momentos em um espaço restrito (uma unidade dos quadrinhos que é chamado de vinheta [panel], independente de existirem ou não as linhas do requadro [panelborders])”. 2

Em 1938, o jornal carioca Correio Universal publicou uma edição com a versão para os quadrinhos de O Guarani, romance escrito por José de Alencar em 1857, realizada por Francisco Acquarone.

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Folhas de papel voam dobradas, levadas pelo vento, como se fossem gaivotas, representando os escritos de Fernando Pessoa. Na parte superior da capa, uma caravela se afasta como que flutuando no céu. As imagens descritas relacionam-se às preocupações que Fernando Pessoa tinha em relação a seu país e à existência humana.A paleta de cores, embora reduzida, contempla três elementos básicos: amarelo (terra), azul escuro (mar) e dois tons de rosa (céu, ar), o mais claro próximo às águas e o mais escuro, acima. Em preto e branco foram delineados os postes do cais, a caravela, as folhas de papel e a representação figurativa de Fernando Pessoa. As sombras do poeta e dos postes indicam que o sol está fora do território português. O título do álbum aparece em negativo sobre faixas pretas que atravessam a parte de cima da capa (Figura 1).

Figura 1 –Capa do álbum Fernando Pessoa e outros pessoas

Análise Estética da Obra Fernando Pessoas e outros Pessoas Sobre os autores David Fazzolari nasceu em São Paulo, em 1964, neto de italianos, mudando-se para Lisboa nos anos 1990, tendo nessa época contato com a LX Comics, que muito próxima ao fandom (fanzines) trazia em seus conteúdos as literaturas de Fernando Pessoa, e para ele, já profundo admirador, a aproximação foi

imediata. Atualmente ensina língua Portuguesa para o Ensino Médio, na cidade de São Paulo.3 Eloar Guazzelli4, um dos grandes representantes da produção de HQS no Brasil e América latina, é ilustrador, artista plástico, design e Professor do Instituto Europeo di Design, tendo como um dos focos principais de suas produções a obra de Fernando Pessoa, além de dirigir filmes de animação. Gaúcho, nascido em Vacarias em 1962, ilustra este trabalho escrito por Davi Fazzolari. Guazzelli e Fazzolari, transcodificam a obra literária de Fernando Pessoa, pautada pela linguagem verbal escrita, para outro meio, com códigos textuais e visuais. 3

Fernando Pessoa e outros pessoas /Guazzelli; roteiro Davi Fazzolari – São Paulo : Saraiva, 2011

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Disponível em <http://editora.cosacnaify.com.br/Autor/1307/Eloar-Guazzelli.aspx>

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Do mesmo modo que a linguagem verbal, a linguagem visual possuí seus códigos e representações próprias, organizando determinados elementos num sistema de representação que visa a construir os muitos significados das experiências artísticas do ser humano. O modo visual constitui todo um corpo de dados que, como linguagem, podem ser usados para compor e compreender mensagens em diversos níveis de utilidade, desde o puramente funcional, até os mais elevados domínios da expressão artística. (Donis A. Dondis 1997:3)

Esse sistema de códigos materializa-se em situações ou contextos onde se observa a presença de determinados elementos básicos individuais, o que colabora pra que se dê sentido às manifestações artísticas em diversas linguagens. Dentre eles Dondis destaca em seu livro que: “(...) a importância dos elementos individuais, como a cor, o tom, a linha, a textura e a proporção, o poder expressivo de técnicas individuais , como a ousadia a simetria, a reiteração e a ênfase; e o contexto dos meios, que atua como cenário visual pra as decisões relativas ao design, como a pintura, a fotografia, a arquitetura, a televisão e as artes gráficas.(Donis 1997:4)

Análise Estética da obra O livro é desenvolvido de acordo com a seguinte divisão de capítulos ilustrados:- Interlúdio Lisboeta I, A Tabacaria Fora de Mim, Interlúdio Lisboeta II, O Desassossego de Bernardo, Interlúdio Lisboeta III, O Pastor de Almas, Interlúdio Lisboeta IV, finalizando com um capítulo que trata as pessoas de Fernando Pessoa. Guazzelli explora em seu livro, principalmente os planos de detalhe ou close-up, com alguns planos médios, e raros planos gerais. A obra nos passa, através das suas ilustrações, uma sensação de equilíbrio e de diálogo entre as formas, com imagens que se delineiam sem grandes tensões, proporcionando ao leitor uma viagem tranqüila pelo universo de Fernando Pessoa.

Figura 1

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Como nos indica Vergueiro (2010:40) “Nos quadrinhos, os enquadramentos ou planos representam a forma com uma determinada imagem foi representada, limitada na altura e largura, da mesma forma como ocorre na pintura, na fotografia e no cinema. Os diversos planos serão nomeados conforme se referirem à representação do corpo humano. Nesse sentido os quadrinhos utilizam a denominação utilizada no cinema.”

Os ângulos de visão são predominantemente médios - quando a cena ocorre à altura dos olhos do leitor - sendo observada a utilização em algumas vinhetas de técnicas de perspectiva por sobreposição de imagens e por um ponto de fuga, o que intensifica a sensação de profundidade. Vale salientar que para

Vergueiro (2010:43) “(...) os ângulos de visão representam a forma como o autor deseja que a cena seja observada”.

Figura 2

As linhas são imprecisas e remetem a um momento anterior à obra, ao projeto, ao esboço, dando ao traço de Guazzelli uma característica bastante peculiar e instigante. Dondis (1997:57) nos afirma que “A linha pode assumir formas muito diversas (...) como nos esboços ilustrados, para tirar proveito de sua espontaneidade de expressão”. As linhas desenhadas por Guazzelli são ainda, ao mesmo tempo, carregadas de pessoalidade e emoção, demonstrando talvez um viés expressionista do autor, como num manuscrito, direcionando o olhar do leitor por suas curvas e retas delgadas, numa composição equilibrada e sustentadas por um eixo sentido muito claro.

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Na expressão e interpretação visual, este processo de estabilização impõe a todas as coisas vistas e planejadas um “eixo” vertical, com um referente horizontal secundário, os quais determinam, em conjunto, os fatores estruturais que medem o equilíbrio. Esse eixo visual também é chamado de eixo sentido, que melhor expressa a presença invisível, mas preponderante do eixo no ato de ver. Trata-se de uma constante inconsciente. (Donis 1997:33)

Figura 3

Figura 4

As cores se contrastam numa paleta de cores quentes e frias, com a predominância de tons mais azulados ou arroxeados, além do verde em algumas situações, acompanhados de variações do vermelho em tons de rosa, com a presença sempre marcante e iluminada do amarelo, em diversas tonalidades, que indicam as paisagens, os céus e os campos.

Guazzelli contrapõe os tons de cinza, e o azul (cores frias) ao amarelo e ao rosa, transpondo à obra de Fernando Pessoa, o seu desencanto com o mundo e a sua saudade de Lisboa, carregando assim estas cores de muita emoção e informação. Para Dondis (1997:64) “A cor, está de fato impregnada de informação, e é uma das mais penetrantes experiências visuais que todos temos em comum”.

Figura 5

Figura 6

O preto está presente na quase totalidade das vinhetas, sendo utilizado também em tons de cinza, marcando a direção e a incidência da luz, e as sombras presentes na arquitetura da Lisboa do séc. XVIII, adequando-se ao contexto de significado da obra, e à carga emocional presente no texto.

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Figura 7

As texturas exploradas por Guazzelli nos remetem às paredes descascadas da Lisboa do séc. XVII, aos azulejos portugueses, aos vitrais, que tanto encantam o poeta, e que são intensificadas pelas cores e pelo traço do autor.

Figura 8

Sobre os Capítulos:- “O Desassossego de Bernardo” e “Sobre Fernando Pessoa” Estes são os únicos capítulos do livro, ilustrados exclusivamente em preto e branco, onde o autor imprime uma nova perspectiva às suas ilustrações, e mesmo mantendo os principais aspectos técnicos da

obra, como equilíbrio, linhas, texturas entre outros, um aspecto é inovado; a cor. Utilizando apenas o preto e o branco, e um traço mais objetivo e racional, o autor propõe-se talvez a nos remeter a este universo mais sombrio, de muitas personalidades ou de muitas pessoas, ou “desassossegado” de Fernando Pessoa, ou talvez apenas esteja ampliando os seus estilos e tendências, tendo-se em conta e por suas próprias palavras que: “Até mesmo minha formação é multifacetada: sou artista plástico de formação, o que fez de mim também professor. Sou também profissional de cinema há 25 anos, atuando como diretor de arte, atividade que desenvolvi em paralelo com meus desenhos e roteiros para histórias em quadrinhos. Isso sem esquecer da grande satisfação que encontro ao criar ilustrações e cartuns para festivais e concursos de desenho de humor. Desenhar Pessoa me permitiu, de certa forma, um reencontro com meus múltiplos reflexos como criador.” (Guazzeli e Fazzolari 2011:80) Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Figura 9

Figura 10

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O CORVO - INTERTEXTUALIDADE, TÉCNICA E TECNOLOGIA NAS ADAPTAÇÕES DA OBRA DE EDGAR ALLAN POE POR RICHARD CORBEN THE RAVEN - INTERTEXTUALITY, TECNIQUE AND TECHNOLOGY IN THE ADAPTATIONS OF THE WORK OF EDGAR ALLAN POE BY RICHARD CORBEN Rodrigo Stromberg Guinski Texas A&M University RESUMO O objetivo desse artigo é discutir determinados aspectos das adaptações para quadrinhos de poemas e contos do escritor Edgar Allan Poe realizados pelo artista Richard Corben. Corben publicou essas adaptações em diversos períodos de sua carreira e por diferentes editoras. Serão analisados aspectos como o da transposição do material textual para outras mídias, nesse caso as histórias em quadrinhos, e como isso estabelece relações intertextuais entre os quadrinhos de Corben com obras de outras mídias. Outros aspectos abordados são o uso expressivo de cores, a exploração de variadas técnicas de ilustração, a relação entre a arte e o conteúdo narrativo, e como a evolução da tecnologia de impressão offset influenciou no trabalho de colorização realizado por Corben, com atenção especial aos métodos de separação de cores anteriores e posteriores ao uso do computador pessoal para a realização dessa tarefa a partir dos anos 80. Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos; Literatura; Tecnologia ABSTRACT The aim of this paper is to discuss certain aspects of the comic book adaptations of poems and short stories by the writer Edgar Allan Poe made by the artist Richard Corben. Corben published these adaptations in various periods of his career and through different publishers. Issues such as the transposition of textual material for other media, in this case comics, and how this establishes intertextual relations between Corben's work and other media, will be examined. Other aspects covered are the expressive use of color, the exploration of several illustration techniques, the relationship between artwork and the narrative content, and how the evolution of offset printing technology, with special attention to methods of color separation before and after the use of the personal computer to perform the task in the 1980s influenced Corben's color artwork. Key words: comics; literary; technology

Durante sua carreira, o quadrinista Richard Corben adaptou contos e poemas do escritor Edgar Allan

Poe para as editoras Warren nos anos de 1974 e 1975, Pacific Comics em 1984, Marvel Publishing em 2006, e Dark Horse entre 2012 e 2014, totalizando 28 histórias, com roteiro próprio ou de Richard Margopoulos. O poema The Raven foi adaptado três vezes, já os poemas Conqueror Worm e Sleeper e os contos The Fall of the House of Usher, The Oval Portrait, Shadow e Berenice foram adaptados duas vezes cada. O primeiro contato de Corben com a literatura de Poe aconteceu durante o ensino médio, na segunda metade da década de 1950 (CORBEN, 2014b). Mais tarde, quando cursava faculdade no Kansas City Art Institute surgiram as adaptações de Edgar Allan Poe para o cinema realizadas pelo produtor e diretor Roger Corman. Corben afirma que esses filmes foram uma grande influência em seu trabalho e que apesar de não Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016


serem os “melhores filmes” ele os estudou para ver como poderia fazê-los diferente (CORBEN, 2012). O pesquisador Francisco Saez de Adana, em seu artigo sobre a influência de Corman em House of Usher, de Corben, chega a se referir a este como o alter ego de Corman nos quadrinhos (ADANA, 2013, p. 106). Corman lançou oito filmes baseados nos trabalhos de Poe entre 1960 e 1964: House of Usher (1960); The Pit and the Pendulum (1961); The Premature Burial (1962); Tales of Terror (1962) contendo três histórias curtas: Morella, The Black Cat e The Facts in the Case of Mr. Valdemar; The Raven (1963); The Haunted Palace (1963); The Masque of the Red Death (1964); e The Tomb of Ligeia (1964). Dos contos e poemas adaptados por Corman, Corben não adaptou The Facts in the Case of Mr. Valdemar, The Black Cat, The Pit and the Pendulum e The Tomb of Ligea, os quais ele planejava adaptar para a Dark Horse,

mas isso não se realizou (CORBEN, 2014a). Para Adana, o primeiro marco nas adaptações de Poe para os quadrinhos foram as histórias publicadas pelas revistas de horror da EC Comics, no início da década de 1950. Essas histórias não se identificavam como adaptações e não mencionavam os autores dos textos de origem. Adana chama atenção especial para o trabalho do desenhista Graham Ingels, que adaptou The Facts in the Case of Mr. Valdemar na história intitulada The Living Death (Tales from the Crypt, nº 24, 1951) (ADANA, 2013, p. 106). A maneira estilizada e detalhada de Ingels representar corpos em decomposição foi uma grande influência em desenhistas de terror da geração de Corben, o qual afirma que Ingels é um de seus artistas favoritos desse período (CORBEN, 1981a, p. 11). Esse período entrou em decadência em 1954, com a publicação do livro Sedução dos Inocentes, do

psicólogo Fredric Wertham. Nesse livro, os quadrinhos são condenados como influência negativa e causa da delinquência juvenil. Em abril e junho do mesmo ano, um subcomitê do Senado dos EUA instaurou inquéritos para apurar o efeito dos quadrinhos sobre a delinquência juvenil. Em outubro, um grupo de editoras formou o Comics Magazine Association of America e criaram o Comics Code Authority e seu selo de aprovação. O código não permitia o uso das palavras horror e terror em títulos de revistas e também proibia personagens vampiros, zumbis e lobisomens. Distribuidores se recusavam a trabalhar com revistas sem o selo de aprovação causando drástica diminuição nas vendas das revistas que não se conformaram ao código. A EC Comics decidiu, então, cancelar todos os seus títulos de horror, crime e ficção científica. A última edição (fevereiro/março) da revista Tales From the Crypt foi publicada em 1955 (NYBERG, 2014).

Em 1955, a EC Comics começou a publicar a Mad Magazine em formato revista (22 x 28 cm) e em preto e branco, para escapar das restrições do Comics Code, que apenas possuía autoridade sobre quadrinhos coloridos no formato conhecido no Brasil como formato americano (17 x 26 cm). William Gaines, editor da EC, alegou que Mad não era quadrinhos, mas uma revista, mesmo que 90% do conteúdo se tratasse de quadrinhos, conseguindo distribuir sua revista sem a necessidade e as restrições do selo (ARNDT, 2013, p. 43-44).

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O editor James Warren, em 1964, após a publicação de três adaptações em quadrinhos de filmes clássicos da Universal em sua revista de cinema Monster World passarem despercebidas pelo Comics Code, iniciou a publicação de uma revista totalmente voltada para os quadrinhos de terror, a Creepy, em formato revista e em preto e branco para evitar as restrições do Comics Code (ARNDT, 2013, p. 5-6). Em 1970, após ter publicado quadrinhos underground, Corben começou a ilustrar histórias para as revistas da editora Warren. A sua primeira adaptação de Poe, o conto The Raven, foi publicada em 1974 no número 67 da revista Creepy, durante a era de William Dubay como editor, período no qual a revista começou a publicar histórias coloridas. Em 1975, as edições 69 e 70 da Creepy foram inteiramente dedicadas a Poe, trazendo seis histórias em cada, todas com roteiro de Richard Margopoulos, Corben contribuiu

respectivamente com The Oval Portrait e Shadow. As duas edições da revista apresentavam “Edgar Allan Poe’s” (de Edgar Allan Poe) escrito sobre o título. A prática de indicar o nome do escritor sobre o título de revistas e histórias foi mantida com variada ênfase nas subsequentes publicações de Corben, provando a notoriedade e o apelo comercial do escritor. Sobre o apelo comercial de Poe, Roger Corman, em sua autobiografia, afirma que um produto baseado em Poe possui um público embutido, por ele ser lido em todas as escolas de ensino médio nos EUA (CORMAN; JEROME, 1990, p. 78). Corben afirma que a decisão de adaptar Poe partiu do editor Dubay e do Roteirista Margopoulos. Corben relembra que nessa época ele havia lido apenas algumas histórias de Poe e assistido aos filmes de Corman, mas que posteriormente começou a colecionar filmes e quadrinhos de adaptações do escritor (CORBEN, 2014b). Corben publicou, em 1984, a adaptação de The Fall of the House of Usher em A Corben Special:

House of Usher #1 pela Pacific Comics, editora e distribuidora independente que publicava quadrinhos autorais de propriedade de seus criadores, ao contrário de editoras como Marvel e DC que faziam seus artistas assinarem contratos cedendo a elas o direito de propriedade de suas criações. Como a Pacific era também uma distribuidora independente, possuindo até uma cadeia de lojas, seus quadrinhos não precisavam do selo de aprovação do Comics Code, permitindo que a revista fosse publicada em formato americano e em cores (SANFORD, 2004). Pela natureza autoral da editora podemos presumir que essa adaptação partiu da vontade de Corben e não de uma decisão editorial como na Warren. Richard Margopoulos e Corben se uniram novamente anos mais tarde para realizar adaptações literárias, dessa vez para a editora Marvel. O resultado foram duas coleções de histórias intituladas Haunt of Horror, a primeira de Edgar Allan Poe, publicada em 2006 e a segunda, de H. P. Lovecraft, em 2008.

Nos créditos de cada história dessa série Poe é apresentado de maneira diferente para efeito cômico, por exemplo, “nota: isso não é exatamente...”, “insanidade fornecida por...”, “horror sublime trazido a você por...”, mas na capa das revistas lê-se “Edgar Allan Poe’s Haunt of Horror”. Os contos adaptados são: The Tell-Tale Heart e Berenice; e os poemas: The Raven, The Sleeper, The Conqueror Worm, Spirits of the Dead, The Lake, Eulalie, Israfel e The Happiest Day. O título Haunt of Horror havia sido utilizado pela Marvel pela primeira vez em 1973, em uma série de livros contendo prosa e ilustrações que durou duas edições. Posteriormente o título foi utilizado em uma série de quadrinhos de terror que durou 5 números entre 1974 e 1975. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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A série foi publicada em formato americano e em preto e branco pelo selo Max da Marvel, criado após a empresa abandonar o Comics Code em 2001 e estabelecer seu próprio sistema de classificação. Max é equivalente à classificação R, na qual uma revista só pode ser comprada por maiores de 17 anos, ou menores acompanhados por responsáveis. Para evitar confusão, o design das capas é diferente das linhas direcionadas para leitores jovens e não contém a logo da Marvel (ROSEMANN, 2001). Além disso as capas trazem a mensagem “Aviso aos pais: conteúdo explícito”. Na orelha da jaqueta da edição encadernada lê-se no paratexto que “Algumas adaptações oferecem novas abordagens para contos familiares; outras levam o material em novas direções bizarras e subversivas nunca antes imaginadas”, acrescentando que os textos originais de Poe foram reproduzidos como bônus para que o leitor possa

comparar os originas do século 19 com seus descendentes do século 21 (CORBEN; MARGOPOULOS, 2006). Assim, de maneira condescendente, os paratextos preparam o leitor para algo que pode ser diferente de Poe e disponibilizam os originais caso algum leitor fique insatisfeito com a falta de fidelidade da adaptação. Corben esperava recapturar o antigo entusiasmo de trabalhar com Margopoulos, mas diz que dessa vez algo não funcionou, que as ideias dos dois não se entrosavam mais. Corben afirma não ter ficado muito satisfeito com os resultados e ressente a falta de controle criativo (CORBEN, 2012). A direção dos roteiros foi estabelecida por Margopoulos e pelo editor Alex Alonso que decidiram transportar histórias para a época atual para atrair o público moderno (CORBEN, 2013a, p. 69). Corben manteve todas as suas outras adaptações no período histórico no qual elas ocorrem no texto original ou em que o texto foi escrito, no

século XIX no caso de Poe, e diz não ter mais intenção de transportar histórias para o período atual, uma vez que parte da diversão é desenhar as roupas de época (CORBEN, 2014a). O fato de várias das adaptações da série Haunt of Horror se passarem em épocas diferentes das histórias originais pode ser um dos motivos de Corben ter ficado insatisfeito e ter decidido voltas às adaptações de Poe na série para a Dark Horse. A primeira tentativa de realizar um trabalho baseado na obra de Poe para a Dark Horse se deu em 2012, na minissérie Ragemoor. Para esse projeto, Corben convidou o roteirista Jan Strnad. Corben diz ter ficado satisfeito com o resultado, mas que a história criada em conjunto não era exatamente a que ele queria contar. Corben desejava mais controle para realizar sua visão da obra de Poe. Incentivado pelo editor Scott Allie, Corben decidiu escrever suas próprias histórias. Seu objetivo era realizar o Tales of

Mystery and Imagination, título muito utilizado para coleções de contos de Poe a partir de 1902 (CORBEN, 2012). No Brasil, livros semelhantes foram publicados com o título de Contos de Imaginação e Mistério. Corben publicou essas adaptações em formato americano e em cores, não como série, mas através de várias revistas independentes e da revista de antologias Dark Horse Presents. Em revistas próprias, Corben publicou: The Fall of the House of Usher (2013, em dois volumes), Conqueror Worm (2012), The Raven and the Red Death (2013), Premature Burial (2014, incluindo The Cask of Amontillado), Morella and the Murders in the Rue Morgue (2014). Na Dark Horse Presents: The City and the Sea (vol. 3, nº 9, 2012), Berenice (vol. 3, nº 16, 2012), Sleeper (vol. 3, nº 17, 2012 ), Shadow (vol. 3, nº Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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18, 2012), The Assignation (vol. 3, nº 28, 2013) e Alone (vol. 3, nº 29, 2013). Todas essas histórias serão compiladas sob o título (alterado para) Spirits of the Dead, com publicação prevista para outubro de 2014. Como o Comics Code Authority foi oficialmente extinto em 2011, as revistas publicadas com histórias de Corben pela Dark Horse não apresentam informações sobre classificação etária. Dentro desse contexto, o presente texto propõe uma discussão sobre os diálogos intertextuais dessas adaptações com outras obras em uma variedade de mídias. Será discutida também a evolução técnica da arte de Corben e sua relação com a tecnologia de produção e reprodução de imagens. INTERTEXTUALIDADE A semióloga Julia Kristeva introduziu a noção semiótica de intertextualidade se referindo a textos em termos de dois eixos: um eixo horizontal (autor-leitor) e um eixo vertical (texto-contexto). O eixo vertical estabelece a relação do texto com outros textos (KRISTEVA, 1986, p. 37): ela aponta que “todo texto é constituído por um mosaico de citações; todo texto é a absorção e a transformação de outro” (KRISTEVA, 1986, p. 39). Para ela, intertextualidade denota também a transposição de um ou mais sistemas de signos para outro(s), o que exige uma nova articulação das posições enunciativas e denotativas (KRISTEVA, 1986, p. 111). Durante o processo de adaptação, Corben percebeu essa necessidade de nova articulação, afirmando que a cópia fiel é impossível e que a transposição requer alterações, pois a tradução literal do texto em imagens não produz o mesmo efeito (CORBEN, 2014b). Sobre o processo de adaptação dos

contos e poemas de Poe, Corben comenta: “eu não procuro criar uma adaptação visual exata de suas palavras. Eu acho que consigo um efeito melhor analisando o que eu gosto em uma determinada história, para descobrir o que me inspira, e então uso isso como ponto de partida” (CORBEN, 2014b). Em sua tentativa de preservar o efeito do texto original, Corben desenvolveu uma intenção autoral em suas adaptações. A busca pela representação desse efeito também o levou a adaptações realizadas por outros artistas, algumas dessas que serão combinadas com o texto de Poe em seus quadrinhos. Os quadrinhos de Corben dialogam com obras em uma variedade de mídias, essas obras acabam coabitando suas histórias. Essa relação de co-presença entre dois ou mais textos, ou seja, a presença de um texto em outro é também definida como intertextualidade pelo teórico literário Gérard Genette. Para ele, a forma intertextual mais explícita é a citação, algumas formas menos explicitas são alusão e pastiche

(GENETTE, 1997, p. 2). As adaptações de Corben apontam de maneira explícita para suas relações intertextuais com Poe, de maneira menos explícita para outras adaptações da obra do escritor, para outras obras em um variedade de mídias que não se relacionam com a obra de Poe e para sua própria obra. A seguir serão vistos exemplos de diálogos intertextuais entre os quadrinhos de Corben e outras obras: As primeiras páginas de House of Usher (1984) apresentam o protagonista cavalgando por uma paisagem desolada, de vegetação seca e envolvida por névoa. Chegando a seu destino o cavaleiro se encontra com a casa em um quadro largo que lembra o formato cinemascope do filme feito para o mesmo conto por Corman. Essa sequência também é muito semelhante ao início do filme. Já dentro da casa o rosto Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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do protagonista se revela em mais detalhes e podemos notar a semelhança com retratos de Edgar Allan Poe, o que é confirmado por Roderick Usher quando esse o chama de Edgar. Além de sequências semelhantes às do filme, Adana destaca que a relação da abordagem de Corben com o filme de Corman ocorre principalmente no aspecto visual, que ele herda os elementos introduzidos por Corman devido às necessidades econômicas como o uso de névoa (Adana, 2013, p. 108-109) e cores para criar significado psicológico (Adana, 2013, p. 115). Essa relação será discutida na seção Técnica e Tecnologia. Em Haunt of Horror (2006) Corben procura evocar a atmosfera dos antigos filmes de terror com a sua arte em preto, branco e tons de cinza, para os editores da revista a escolha pelo preto e branco foi feita com intenção de homenagem a época de Corben nos quadrinhos underground (CORBEN, 2013a, p. 70).

As histórias dessa série se combinam em pastiches com várias épocas e gêneros diferentes, entre eles: faroeste (The Raven), vampiro/zumbi (The Sleeper), ficção científica pós-apocalíptica (The Conqueror Worm), guerra civil americana (Spirits of the Dead) e gangsta rap (Izrafel, a grafia incorreta de Israfel remete a nomes de rappers). Sobre a série para a Dark Horse, Corben afirmou que desejava criar uma antologia de horror completa com anfitrião sinistro (CORBEN, 2014b). Corben não expressou intenção de imitar os quadrinhos de terror da EC, mas de “imaginar como poderia ter sido se eles houvessem estabelecido seus objetivos um pouco mais alto”, e seus anfitriões limitados, segundo ele, a diálogos astutos e a satirizar o sofrimento dos personagens. Segundo ele em séries antológicas as histórias normalmente não se relacionam e o anfitrião cria um elemento de familiaridade e um sentido de continuidade entre as histórias

e revistas. Corben diz que tentou usar o anfitrião com parcimônia para que ele não separasse demais o leitor do conteúdo emocional da narrativa. Em algumas histórias, Corben usa Mag the Hag não apenas como narradora e comentadora, mas como personagem participativo (CORBEN, 2014a). As revistas de terror da EC Comics, como Tales from the Crypt, eram coletâneas de histórias curtas apresentadas por três anfitriões sinistros: Crypt Keeper, Old Witch e Vault Keeper. A revista Creepy seguiu esse formato com Uncle Creepy. Nenhuma das adaptações de Poe publicadas pela revista Creepy nos númeos 67, 79 e 70 utiliza o anfitrião na história, como era comum em outras histórias da Warren e da EC. Uncle Creepy, desenhado por Bernie Wrightson, apenas apresenta a revista. Na série Haunt of Horror Corben criou o irônico Uncle Deadgar, um E. A. Poe decomposto para apresentar as revistas. Para as adaptações para a Dark Horse ele criou Mag the Hag. Esse método de utilizar um apresentador para

conectar as histórias também foi utilizado por Roger Corman em Tales of Terror, onde isso é feito com a voz de Vincent Price. Em 2013, Corben revisitou The Fall of the House of Usher para a Dark Horse, combinando-a com The Oval Portrait como no filme francês La Chute de la Maison Usher (1928), dirigido por Jean Epstein e com roteiro de Luis Buñuel. Corben afirma que de certa maneira sua adaptação é uma readaptação desse filme (CORBEN, 2014a) e também uma readaptação de sua adaptação anterior. Corben redesenhou uma página inteira: a sequência de sonho que sucede Roderick Usher cantando The Haunted Palace é igual nas duas versões, com o mesmo leiaute e composição, apenas os personagens são diferentes. Em The Masque Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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of the Red Death, Corben expande a história com o uso do poema The Haunted Palace, assim como fez Poe e Corman. Poe incluiu o poema em The Fall of the House of Usher como uma canção escrita por Roderick Usher. Esse mesmo poema foi usado como título para um dos filmes de Roger Corman, que na verdade é uma adaptação do Caso de Charles Dexter Ward de H. P Lovecraft. O título do filme foi alterado para explorar o sucesso das adaptações de Poe, para justificar essa mudança foi incluída uma cena do ator Vincent Price lendo o poema. No caso de Premature Burial, no último quadro de sua adaptação Corben redesenhou uma ilustração de Harry Clarke que acompanha a edição de 1916 da antologia de contos Tales of Mystery and Imagination. Em The Conqueror Worm, um personagem examina um cadáver infestado por vermes recitando “Certa assembleia de vermes políticos se ocupa justamente dele”, de

Hamlet de William Shakespeare. Como é comum nos quadrinhos, a citação é indicada em nota de rodapé. The Raven merece atenção especial por ter sido adaptado três vezes por Corben, talvez por ser o poema mais famoso de Poe. A versão do quadrinista pode ser vista como um palimpsesto, um texto que se sobrepõe a outro sem o esconder, mas permitindo que ele se mostre (GENETTE, 1997, p. 399). Essa relação é estabelecida não apenas com o poema original e suas ilustrações, mas também com cada uma das adaptações do poema realizadas por Corben, com cada nova adaptação preservando elementos das anteriores. Na primeira versão, para a revista Creepy (1974), Corben transformou o poema em imagens, interpretando, mas não se desviando do conteúdo original. O poema em rima foi transformado por Margopoulos em um diálogo em prosa, parafraseando, mas mantendo o conteúdo original. Nos diálogos, o

personagem se dirige ao corvo, que responde apenas “Nunca mais”. A história começa com uma imagem de página inteira, uma casa cercada por neve e vegetação seca e a onomatopeia “Tap! Tap! Tap!” indicando a presença do corvo. Esse recurso foi usado também na próxima versão, publicada pela Marvel. Na terceira versão, para a Dark Horse, a onomatopeia é substituída pelo primeiro verso do poema e três quadros com monólogo do personagem e comentários de Mag The Hag. A casa retratada foi substituída pela casa do filme Psicose (1960) de Alfred Hitchcock. O personagem narrador é o mesmo nas três versões, o que pode ser notado por suas costeletas, e a variação acontece no estilo de desenho de Corben. Na versão para a Haunt of Horror, a única história escrita por Corben para a série, o texto é totalmente retrabalhado, mantendo poucas citações do texto original. O corvo, nesse caso, lembra o narrador que foi ele quem, em fúria alcoólica, matou Lenore. O protagonista atira no corvo, mas a bala

acaba revelando o corpo decomposto de Lenore, o que o leva ao suicídio. Na terceira versão do poema, Corben optou por transformar o conflito com o pássaro em algo físico. A presença de Lenore lembra as ilustrações de Gustav Doré para o poema, publicadas em 1884, nas quais ele retrata Lenore presente nas cenas, mas ignorada pelo narrador. Nessa adaptação, Lenore está presente em forma imaginada e interage com o narrador, até o corvo surgir (em seu olho um crânio) e trazer o narrador de volta à realidade, fazendo Lenore desaparecer. Ele grita: “Monstro, você a espantou”. Em vingança contra o corvo que destruiu sua ilusão, ele o ataca com intenção de matá-lo. O corvo, nessa versão, torna-se antropomórfico como o de Roger Corman, o qual se transforma em um mago inofensivo Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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representado pelo ator Peter Lorre (com uma fantasia de penas e asas negras), mas, ao contrário deste, se transforma em um monstro sobrenatural de ossos e penas. Corben admite uma interpretação literal da metáfora chegando a ilustrar a frase “Tire seu bico do meu coração”, com o corvo atacando o narrador a bicadas (CORBEN, 2013c). Os dois últimos quadros da página final se assemelham aos da primeira versão, na qual o personagem contempla a sombra do corvo (e sua alma) no chão, com a diferença que aqui o personagem se encontra caído sobre a sombra, sangrando, morrendo e estendendo a mão em direção ao corvo. O quadro seguinte cria continuidade e ambiguidade com a mão do personagem estendida em direção à lapide, em forma semelhante (cruz) à sombra do quadro anterior, criando uma ligação formal (cruz) e de significado (morte) entre o corvo, a sombra e a lápide. Na primeira versão essa associação da

forma de cruz, do corvo, da sombra e da lápide também foi feita de maneira mais sutil. TÉCNICA E TECNOLOGIA Corben desenvolveu um sistema próprio de colorização para alcançar resultados que eram impossibilitados pelas limitações orçamentárias das editoras. Esse novo sistema permitiu que ele explorasse cores de maneira mais expressiva, produzindo efeitos e moldando as narrativas em função das possibilidades e impossibilidades do meio, nesse caso, a impressão offset. Corben diz tentar ser inventivo não apenas nas histórias, mas também nas técnicas que utiliza, o que faz seu interesse em tecnologia uma necessidade do ofício (CORBEN, 1981b, p. 11). Corben expande: Como a adição de cor em páginas de quadrinhos pode alterar completamente o seu sentido, muitos artistas gostariam de ter o máximo controle sobre esse aspecto de sua arte. Mas a indústria de quadrinhos é um negócio no qual é vantajoso subdividir as diferentes fases da produção para que sejam realizadas por especialistas. Assim, o produto pode ser finalizado de maneira mais rápida. Muitos desenhistas aceitam essa divisão de trabalho e se concentram no desenho. Poucos, como eu, insistem em ter controle de todos os aspectos possíveis do processo. Isso significa desenvolver as habilidades necessárias e dedicar tempo à realização do trabalho. Eu estou disposto e aprecio esse trabalho. (CORBEN, [2012])

A impressão offset é capaz de reproduzir imagens a traço ou meio-tom. Para reprodução de variedade tonal, é necessária a conversão de tons em pontos através de um processo fotográfico no qual uma tela composta de um grid de linhas, colocada entre a lente e o filme, que decompõe a imagem em pontos produzindo um fotolito em meio-tom. A resolução da imagem é determinada pelo número de linhas por centímetro. Quanto menos linhas mais grosseira a impressão. A qualidade de impressão da revista Creepy pode ser considerada grosseira quando comparada com a alta resolução das revistas impressas atualmente pela Dark Horse, por exemplo, nas quais os pontos de retícula são quase imperceptíveis a olho nu. A reprodução de originais coloridos requer a separação de cores por processo fotográfico através de filtros para a produção de fotolitos de cada umas das quatro cores do processo de impressão CMYK (ciano, magenta, amarelo e preto). (BANN, 1989, p. 34-40)

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Variação tonal também pode ser obtida pelo uso de retículas de decalque fabricadas por empresas como a Letraset, mais conhecida no Brasil, ou Zip-A-Tone, utilizada por Corben. Segundo Beatty, os coloristas de quadrinhos no período anterior à separação de cores eletrônica se limitavam ao uso de retículas de 25%, 50% e 75% combinadas também com a cor em 100%. Este é um dos fatores determinantes da paleta de cores limitada utilizada anteriormente ao uso de computadores nos anos 80. Alguns artistas independentes, como Corben, decidiram colorir suas próprias histórias devido à grande variedade de padrões de pontos disponíveis por essas empresas, incluindo gradientes. Esse processo permitiu que a combinação de retículas com densidades e padrões diferentes fosse fotografada diretamente, sem o uso de filtros ou telas, para a geração do fotolito (BEATTY, [201-?]).

A falta de verba das editoras para a separação fotomecânica (CORBEN, [2012]) levou Corben a desenvolver uma técnica própria de sobreposição de retículas para criar um colorido mais complexo para representação de volume tridimensional. Para isso, Corben criava uma arte diferente em preto e branco para cada uma das quatro cores CMYK e, ao contrário do padrão industrial, utiliza uma variedade tons e gradientes criando ricas combinações tonais. Para maior controle do processo, Corben comprou uma máquina para gravar seus próprios fotolitos, permitindo a própria regulagem de exposição. Ele atribuiu os tons vibrantes de seu colorido aos fotolitos que gravava em contraste mais alto que o padrão da indústria, produzindo uma maior saturação de cores, mas também uma leve perda de resolução na imagem (CORBEN, 1981b, p. 11). O uso desse sistema de criação de colorido através da combinação de artes em preto e branco produzia resultados inesperados, sendo vistos apenas na revista impressa quando o

orçamento não permitia a tiragem de provas e o ajuste de cores, ainda, somam-se os comuns erros de registro (quando uma ou mais cores são impressas deslocadas em relação às outras). Corben admite que por vezes os resultados eram desastrosos (CORBEN, [2012]). Parte do apelo da técnica de colorização criada por Corben pode se dever aos adventos do televisor colorido e da fotocopiadora colorida, tecnologias que possuem semelhanças estéticas com seu trabalho. Corben chega a comentar que o colorido criado por ele é como uma imagem de televisor com a intensidade regulada no máximo (CORBEN, 1993, p. 51). Assim como a arte de Corben, a televisão de tubo de raios catódicos e a fotocópia colorida apresentam alta saturação de cores e texturas granuladas de baixa resolução. Os efeitos e os defeitos desse processo de natureza experimental se unem às técnicas de ilustração e temas para criar uma atmosfera fantástica e irreal. Irreal como as imagens criadas pela

descalibragem de cores e contraste em fotocópia; e por distorções, desajustes, falhas de transmissão, sintonia e deterioração de fita magnética nas imagens televisivas. O que podemos dizer com certeza é que a técnica de colorização de Corben teve apelo suficiente para que fosse contratado para colorir trabalhos de outros artistas da Warren, como as reedições de The Spirit, de Will Eisner. A seguir serão discutidas algumas obras de Corben que exemplificam o seu uso de técnicas e tecnologias, e também suas relações intertextuais: Em The Oval Portrait (1975), Corben utiliza uma variedade de técnicas de ilustração, incluindo colagem fotográfica, aerografia e desenho a traço com hachuras. Fotografias de céu e nuvens foram Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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utilizadas como fundo de em vários quadros de cenas externas. Aerógrafo foi utilizado na representação do retrato; a jovem é retratada em suaves gradientes em tons de cinza criando uma modelagem tridimensional próxima ao realismo fotográfico, enquanto o restante da história foi desenhada a traços e hachuras com tons de cinza mais limitados. O mesmo retrato foi reproduzido fotograficamente no decorrer da história. Corben também utilizou a cópia e reprodução de imagens de maneira expressiva em uma sequência em que o personagem admira o retrato. Seu rosto é ampliado progressivamente até revelar o rosto da mulher retratada refletido em seu olho. A imagem continua a ser ampliada e a sequência termina com a imagem do rosto do personagem como no primeiro quadro, mas agora refletido no olho da retratada. A ideia de ciclo criada por essa sequência amplia a ilusão de que o retrato é tão realista que parece estar vivo

para o personagem, mostrando que o retrato também olha para ele. O interessante nessa sequência é que Corben amplia as imagens por processo fotográfico ao invés de redesenhá-las e, assim como o artista Pop Roy Lichtenstein, ele amplia os pontos de retícula expondo a natureza da reprodução mecânica de imagens. Existe um grande contraste entre o retrato e os outros desenhos, sendo o retrato mais trabalhado e iluminado de maneira difusa com suaves tons de cinza, ao passo que o restante dos desenhos se apresentam mais simplificados do que a arte que Corben produz regularmente. Não há como saber se o desenho foi simplificado intencionalmente ou se foi uma questão de falta de tempo para um desenho mais trabalhado, independentemente do motivo, o resultado é fiel ao conto de Poe, no qual o narrador descreve o retrato como algo quase vivo. O retrato de Corben comparado aos personagens se apresenta como maior que a

vida, o que acentua o efeito do processo de definhamento da personagem retratada. Em seu conto Poe se utiliza de surpresa revelando o destino da mulher retratada apenas na última frase “Ela estava morta”, Corben mostra o processo passo a passo criando um diálogo intertextual com O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, no qual o retrato envelhece progressivamente no lugar do personagem. A variação de tons na arte aerografada e nas fotografias utilizadas em The Oval Portrait foi reproduzida pelo processo de meio-tom, já em Shadow foi utilizado o processo de sobreposição de retículas, tanto para a versão original em preto e branco (1975) quanto para a reedição em cores (1985). A diferença marcante entre as duas versões está na página final da versão em cores, nela Corben acrescenta camadas de retículas para criar um rosto cadavérico para a sombra que dá nome ao conto, transformando a metáfora para pestilência de Poe, amorfa na versão original, em um monstro antropomórfico.

A primeira versão de The Fall of the House of Usher (1984), foi publicada em cores no período em que a editora Pacific Comics passa a imprimir em um papel branco que permite maior qualidade de impressão (SANFORD, 2008), possibilitando maior sutileza e variedade de tons, além de maior resolução nos detalhes. As cores são mais suaves e variadas que os tons primários e saturados que predominavam nas revistas da Warren, denotando uma evolução na técnica de sobreposição de retículas de Corben, que aqui foi executada por seus assistentes Herb e Diana Arnold. O colorido remete às sequências de sonhos dos filmes de Corman, onde ele usa géis sobre as luzes ou filtros coloridos nas lentes das câmeras para tingir as cenas de azul e magenta, névoa para criar uma atmosfera assombrada e bordas desfocadas para deslocar as Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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imagens da realidade. Todos esses efeitos foram reproduzidos por Corman em suas sequências nas quais o personagem sonha e alucina. O efeito criado pela névoa, iluminação e desfoque é reproduzido por Corben pela ausência do requadro, predomínio das cores azul e magenta em baixo contraste e pela transformação do preto do desenho a traço em tons coloridos mais leves. O colorido cria também um diálogo intertextual com os filmes de terror giallo italianos. Sob influência dos filmes de Corman, diretores como Mario Bava e Dario Argento também utilizam névoa, filtros e géis para criar senso de irrealidade em suas cenas em filmes como, respectivamente The Whip and the Body (1963) e Suspiria (1977). Com a popularização do computador pessoal, Corben passou a colorir com auxílio de softwares, diretamente no computador ou escaneando a arte colorida e utilizando o computador para retoques e

separação de cores (CORBEN, 1993, p. 58). A série Haunt of Horror foi publicada em preto e branco, com tons de cinza criados com o uso de software. Uma das características do trabalho de Corben é não se limitar a colorir ou, nesse caso, aplicar tons de cinza apenas às áreas brancas do papel. Com o uso de software ele também transforma detalhes em nanquim preto de sua arte em tons mais claros para criar efeitos de iluminação, desfoque e modelagem. Os tons de cinza são utilizados de variadas maneiras: em The Raven, ele cria texturas que lembram grafite para detalhar o exterior e interior da casa, criando um ambiente decrépito e contrastando com os personagens modelados em gradientes suaves para efeito tridimensional, que lembra seu trabalho com aerógrafo. Essa modelagem também é utilizada no poema The Lake. No restante das histórias, o foco é colocado no desenho a traço e os tons de cinza são pouco utilizados para modelagem tridimensional, o número tons é limitado. A preferência é por tons chapados e

gradientes, que em certos casos são tão suaves que se tornam quase imperceptíveis. Os tons de cinza, nesse caso, funcionam para agrupar e separar elementos, criar profundidade de campo e guiar o olhar. Um dos motivos para a série publicada pela Dark Horse ser colorida foi a baixa quantidade de vendas da série anterior, Ragemoor, impressa em preto e branco por decisão de Corben contra a recomendação dos editores (CORBEN, [2012]). Corben admite que em muitas ocasiões em sua carreira a decisão sobre cor foi resultado de custos ou mercado, preto e branco para quando o orçamento é baixo e colorido voltado para a parcela do mercado que não compraria quadrinhos preto e branco (CORBEN, 1993, p. 57). O colorido dessas histórias é mais naturalista, mas mantém relação com o cinema de Corman pela predominância de cinzas e ocres em contraste a detalhes em vermelho vivo, como a roupa de Roderick Usher (semelhante à de Vincent Price no filme) e sangue. Corben utiliza uma variada gama de

técnicas desde o uso de cores chapadas até a modelagem tridimensional. Uma grande variedade de texturas é utilizada para representar diferentes materiais, como pele, ossos, madeira, rochas e tecidos. O efeito dessas texturas é expressivo na representação do processo de decomposição da casa de Usher. Corben utilizou vários tipos de modelos e maquetes para o desenvolvimento de estudos. Ele criou modelos em argila das cabeças dos irmãos Usher para estudos de iluminação e anatomia, e diz ter utilizado modelos vivos vestidos como os personagens como referência para certos quadros (Corben, 2013b, p. 2324). Corben também criou cenários em programas 3D para estudos de iluminação e perspectiva, e, anteriormente ao uso se softwares, construía maquetes com esse propósito (CORBEN, [2012]). Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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CONSIDERÇÕES FINAIS A análise das adaptações de contos e poemas de Edgar Allan Poe por Richard Corben revela uma mudança na abordagem do artista em relação à adaptação literária para os quadrinhos. Inicialmente, Corben procurava representar o texto visualmente, sem se desviar do conteúdo original; em seguida, ele desenvolve intenções autorais nas quais o texto passa a ser um ponto de partida do qual ele não busca reproduzir o conteúdo com exatidão, mas sim reproduzir o efeito criado pelo texto. Na busca por esse efeito, Corben estuda outras adaptações em várias mídias, entre elas: literatura, ilustração, quadrinhos e

cinema. Algumas dessas obras estudadas por ele acabaram coabitando suas histórias, criando diálogos intertextuais não apenas entre a obra de Corben e a de Poe, mas também com outras obras, das quais a presença mais marcante no aspecto visual é o cinema de Roger Corman. Esses diálogos intertextuais se apresentam de diversas maneiras, entre elas o redesenho de ilustrações, o pastiche com outros gêneros narrativos, a apropriação de estruturas narrativas de outros textos e o uso de cores e tons de cinza inspirados pela iluminação e efeitos cinematográficos. Além disso, durante o período de quarenta anos entre a primeira e a última adaptação, podemos observar várias mudanças na tecnologia de produção e reprodução de imagens, tendo como principal fator a popularização do computador pessoal, o que proporcionou maior fidelidade e resolução na reprodução de originais de arte, paleta de cores mais ampla e maior praticidade para colorização e separação de cores. Corben se manteve atualizado com relação a essas

novas tecnologias para manter o máximo controle de sua arte e tirou proveito delas adaptando suas técnicas trabalhosas de colorização, iluminação e modelagem tridimensional para a praticidade dos meios digitais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARNDT, Richard J. Horror Comics in Black and White: A History and Catalog, 1964-2004. Jefferson, North Carolina: McFarland & Company, Inc., 2013. ADANA, Fernando Saez de. The influence of Roger Corman in Richard Corben’s The Fall of the House of Usher. Studies in Comics, v. 4, n. 1, p. 103-118, 2013. BANN, David. The Print Production Handbook. Cincinnati, Ohio: North Light Books, 1989. BEATTY, Gary Scott. Coloring Comic Books Before Computers. www.comicartistsdirect.com/articles/coloring.html> Acesso em: 24 ago. 2014.

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A MORTE DE IVAN ILITCH EM QUADRINHOS: TRADUÇÃO OU Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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ILUSTRAÇÃO? A MORTE DE IVAN ILITCH IN COMICS: TRANSLATION OR ILLUSTRATION? Silvia Carvalho de Almeida Joaquim Universidade Municipal de São Caetano do Sul

RESUMO O objetivo deste artigo é analisar se a história em quadrinhos (HQ) A morte de Ivan Ilitch em quadrinhos (Peirópolis, 2014), do quadrinista Caeto, pode ser considerada uma tradução conforme os critérios de Guerini e Barbosa (2013). Os métodos utilizados serão a comparação com a novela original traduzida por Boris Schnaiderman (Editora 34, 2006) e análise de conteúdo, a fim de descobrir quais são os itens constitutivos da linguagem em quadrinhos empregados. Palavras-chave: História em quadrinhos; Adaptação literária; HQ como tradução ABSTRACT

The objective of this paper is to analyze if the comic A morte de Ivan Ilitch em quadrinhos (Peirópolis, 2014), from comic artist Caeto, can be considered a translation according Guerini and Barbosa (2013). The methods include the comparison with the original novel translated by Boris Schnaiderman (Editora 34, 2006) and content analysis in order to discover which are the constituent items of employed comic language Key words: Comics; Literary adaptation; Comic as translation

INTRODUÇÃO Este trabalho é fruto de uma pesquisa qualitativa de nível exploratório composta de comparação entre a HQ A morte de Ivan Ilitch em quadrinhos (Peirópolis, 2014), do quadrinista e ilustrador paulista Caeto, e a tradução para o português de Boris Schnaiderman (Editora 34, 2006) da novela A morte de Ivan Ilitch, do escritor russo Lev Tolstói (1886). O objetivo é analisar se a HQ pode ser considerada uma tradução conforme os critérios de Guerini

e Barbosa (2013) no livro Pescando imagens com rede textual: HQ como tradução. Também será verificado como se dá a tradução intersemiótica, já que, ao mesmo tempo que se perdem informações na transposição de um sistema a outro, outras novas são agregadas de acordo com a interpretação/leitura do adaptador/tradutor. Outro método empregado será a análise de conteúdo, dividida aqui em duas categorias: elementos narrativos e elementos estéticos, a fim de descobrir quais são os itens constitutivos da linguagem em quadrinhos empregados nesta adaptação/tradução.

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1. A TERMINOLOGIA DE HQ COMO TRADUÇÃO Guerini e Barbosa (2013) preferem adotar a terminologia de HQ como tradução em vez de adaptação ou reescrita, mesmo que admitam com isso que a HQ seja “um texto que se equipara à fonte”. Pelo contrário, ela “não é construída somente por ‘literas, letras’, ela não faz uso apenas do alfa e do beta, mas utiliza-se de outros signos para construir a narrativa” (GUERINI; BARBOSA, 2013, p. 17). E complementam: [...] para conceber a HQ como tradução, bastou-nos considerar o significado como um fato semiótico com afinidade mais profunda do que aquela definida na semelhança linguística – superficial e vaga – de duas obras poéticas produzidas em línguas diferentes. (GUERINI; BARBOSA, 2013, p. 17).

Citando Octavio Paz (GUERINI; BARBOSA, 2013, p. 17), as autoras ainda defendem que a atividade do tradutor é como a do leitor e do crítico, uma vez que cada leitura é uma tradução e, consequentemente, uma interpretação. Mas enquanto para o leitor a tradução ocorre dentro do mesmo idioma e para o crítico o poema é o ponto de partida para um novo texto (o seu), o tradutor compõe com outra linguagem e signos diferentes um poema análogo ao original. Thaís Diniz (2001) compartilha do mesmo pensamento, destacando a provável falta de fidelidade desse tipo de processo: Toda tradução irá [...] oferecer sempre algo além ou aquém do chamado original, e o sucesso não dependerá apenas da criatividade nem da habilidade, mas das decisões tomadas pelo tradutor, seja sacrificando algo, ou encontrando a todo custo um equivalente. Se nos lembrarmos de que o sentido é o resultado de uma interpretação, de uma leitura, e da função que o texto/tradução terá para a audiência à qual se destina, nunca poderemos avaliar uma tradução com critérios de fidelidade. (DINIZ, 2001, p. 10).

Guerini e Barbosa (2013) vão mais além ao sustentar que essa tradução deve ser um exercício sofisticado, recuperando os grandes clássicos e deles gerando imagens, e não apenas se limitando a reproduzir sentidos e enredos de forma linear e descritiva, direta e sem obstáculos (GUERINI; BARBOSA, 2013, p. 17). Com isso, concluem que “a norma é nunca narrar conteúdos de forma reduzida e ilustrada para facilitar a tarefa do receptor, pois isso é ofendê-lo em sua inteligência” (GUERINI; BARBOSA, 2013,

p. 17). 2. Original vs. tradução Conforme os conceitos de Guerini e Barbosa, vamos verificar se a A morte de Ivan Ilitch em quadrinhos pode ser considerada uma tradução. Lançada em julho de 2014, a HQ é uma adaptação da novela A morte de Ivan Ilitch do escritor russo Lev Tolstói (1886), com tradução para o português de Boris Schnaiderman (Editora 34, 2006). Ambientada na Rússia do século XIX, a novela conta a história de Ivan Ilitch, um juiz ambicioso e Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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burocrata, ligado a aparências, que se casa por conveniência e tem sua carreira interrompida por uma doença grave sem diagnóstico, culminando em sua morte. Um dos princípios norteadores da Peirópolis, com sua série “Clássicos em HQ”, é que o artista aprecie e seja fã da obra que for adaptar, conforme salienta a editora Renata Farhat Borges na apresentação do livro Clássicos em HQ, compilação disponível para download gratuito no site da editora que reúne artigos acadêmicos, trechos das obras da série, entrevistas com os quadrinistas e informações sobre os próximos lançamentos: [...] O primeiro deles é o de que os artistas que se aventuram nas traduções para quadrinhos são leitores apaixonados pela obra clássica escolhida para adaptar, ou recriar, ou traduzir, ou tudo isso junto. A ideia da coleção é apresentar ao público uma leitura possível da obra, e não, logicamente, a única – mas ela deve ser a leitura de um leitor sagaz. (BORGES, Renata. In: Clássicos em HQ, 2013, p. 5).

No caso de Caeto, o artista não conhecia a obra, mas comenta em entrevista na mesma compilação que foi uma sugestão da editora, pela qual ele logo se interessou: Recebi o convite para participar da coleção “Clássicos em HQ” e a Renata Borges sugeriu esse texto. Eu li e gostei bastante, tem tudo a ver com os temas pelos quais costumo me interessar; acho que o texto é um relato profundo de certos comportamentos humanos e creio que vai ser sempre atual. (CAETO. In: Clássicos em HQ, 2013, p. 217).

Outro provável motivo da escolha foi a semelhança temática com sua obra de estreia, a HQ autobiográfica Memória de elefante (Quadrinhos na Cia, 2010), em que Caeto aborda a morte de seu pai, vítima da aids. Sobre essa semelhança, o artista comenta: Fazendo o livro, inevitavelmente me coloquei mais na pele do meu pai, que passou os últimos dias da vida doente numa cama, assim como o personagem do livro. Talvez se tivesse lido o livro antes teria conduzido nossas últimas conversas de outra forma. Mas assim como no texto, mesmo diante da morte ainda existe uma esperança de cura, e às vezes a gente não se dá conta de que aquelas serão suas últimas conversas com determinada pessoa. (CAETO. In: Clássicos em HQ, 2013, p. 217).

A HQ mantém o mesmo texto do original, sendo essa a segunda exigência da coleção “Clássicos em HQ”: O segundo critério é que se mantenham nos quadrinhos, em seus balões ou recordatórios, apenas textos originários da obra literária matriz – daí a escolha de traduções consagradas em língua portuguesa de obras em outros idiomas, o terceiro princípio da coleção. (BORGES, Renata. In: Clássicos em HQ, 2013, p. 5).

Levando-se em conta esse segundo critério, nota-se que a adaptação contém bastante texto do original, sendo que este foi utilizado quase na íntegra. Isso se comprova começando pela quantidade de páginas das obras: enquanto o original tem 76 páginas, a adaptação não fica atrás, com 69 páginas (sem contar prefácio, posfácio e outros). O artista explicou por que manteve considerável quantidade de texto do original: Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Como a proposta da coleção é manter o texto original do tradutor, inicialmente fiz uma edição do texto que iria entrar no livro e do que iria se transformar em imagem, tentando eliminar a maior quantidade de texto. Como o livro é muito bem escrito, fica difícil tirar muita coisa, porque a graça do texto está na construção sofisticada das ideias e observações de Tolstói sobre a alta sociedade de aristocratas na Rússia do século XIX. (CAETO. In: Clássicos em HQ, 2013, p. 217).

A transposição foi feita, em geral, da seguinte forma: os textos do narrador onisciente foram transformados em recordatórios (Figura 1), que, segundo Chinen (2011), é um recurso utilizado para “incluir falas ou lembranças dos personagens, mas seu uso mais comum é o de passar alguma informação

como se fosse um narrador externo” (CHINEN, 2011, p. 18), o que é o caso desta HQ.

Figura 1 – Exemplos do uso de recordatório. Fonte: CAETO, 2014, p. 8.

Também foram empregadas legendas com “apêndice em formato de seta” (RAMOS, 2009, p. 48), que servem para indicar o que está escrito em papel ou para apresentar algum personagem (Figura 2).

Figura 2 – Uso de legendas com apêndice em formato de seta para indicar o que está escrito e para apresentar personagens. Fonte: CAETO, 2014, p. 7 e 16.

Já os textos de diálogos e pensamentos (ou reflexões) viraram, respectivamente, “balões-fala” e “balões-pensamento” (RAMOS, 2009, p. 37), como mostra a Figura 3.

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Figura 3 – Balões-fala e balões-pensamento substituem diálogos e reflexões, respectivamente. Fonte: CAETO, 2014, p. 8 e 7.

Os exemplos descritos acima foram os recursos básicos de transposição que dominaram a maior parte da obra. Se fosse só por eles, não poderíamos considerar a HQ como tradução. Mas houve casos em que a transmutação foi realizada, que aqui trataremos como tradução intersemiótica, cuja definição é dada por Thaís Diniz (2001) em comparação com a tradução intralingual e a tradução interlingual: [...] não é demais lembrar que, contrastada com “tradução intralingual” e “tradução interlingual”, a expressão “tradução intersemiótica” foi cunhada por Roman Jakobson em 1959 para conceituar a “transmutação” ou “interpretação de signos verbais por meio de signos não verbais”. A “tradução intralingual” pode ser definida como a re-escrita de um texto dentro da mesma língua e a “tradução interlingual”, como recriação de um texto numa língua verbal diferente. A tradução intersemiótica incluiria, portanto, como em outros tipos de tradução, também a procura por equivalentes, ou seja, a busca, em um determinado sistema semiótico, de elementos cuja função se assemelhe à de elementos de outro sistema de signos. (DINIZ, 2001, p. 9).

Vale lembrar que esta obra é primeiramente uma tradução interlingual feita por Boris Schnaiderman direto do russo, mas nosso intuito aqui é destacar alguns exemplos de tradução intersemiótica, conforme o conceito de Diniz. Por exemplo, no trecho do original “Piotr Ivanovitch não cessava de fazer o sinal da cruz e inclinava-se ligeiramente, numa direção intermediária entre o caixão, o sacristão e os ícones colocados a um canto da mesa” (TOLSTÓI, 2006, p. 10), o quadrinista optou por fazer a tradução intersemiótica conforme a Figura 4. Já o trecho “[...] e ficou olhando-se no espelho: de frente, depois de lado. Apanhou o seu retrato com a mulher e comparou-o com o que via no espelho. Era enorme a mudança. Depois, desnudou os braços até o cotovelo, olhou, desceu as mangas [...]” (TOLSTÓI, 2006, p. 44) foi representado conforme a

Figura 5.

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3. ELEMENTOS NARRATIVOS A morte de Ivan Ilitch em quadrinhos possui o mesmo gênero textual que o original, ou seja, a novela. Segundo Gancho (2002), trata-se de: [...] um romance mais curto, isto é, tem um número menor de personagens, conflitos e espaços, ou os tem em igual número ao romance, com a diferença de que a ação no tempo é mais veloz na novela. Difere em muito da novela de TV, a qual tem uma série de casos (intrigas) paralelos e uma infinidade de momentos de clímax. (GANCHO, 2002, p. 7-8).

Também são encontradas semelhanças nos “cinco elementos narrativos” (GANCHO, 2002, p. 9-29): enredo, narrador, personagens, tempo e espaço. 3.1 Enredo

O enredo começa com o anúncio da morte de Ivan Ilitch no Foro Criminal, com seus colegas de trabalho lendo a notícia no jornal, entre eles seu amigo Piotr Ivanovitch. No velório, somos apresentados a outros personagens, como a esposa Prascóvia Fiódorova, a filha, o noivo dela, o filho e o empregado Guerássim. A narrativa volta ao passado para contar a vida de Ivan Ilitch desde o seu nascimento. Considerado o bon enfant e a phenix de la famille, era o filho do meio agradável, inteligente e decente, bem-sucedido nos estudos, que, ligado a aparências, busca por meio da profissão uma forma de ascensão social. Forma-se em Direito e casa-se por interesse. Até aí temos a apresentação ou exposição do enredo, que é “a parte na qual se situa o leitor diante da história que irá ler” (GANCHO, 2002, p. 11). Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Começa a enfrentar crises conjugais logo após o nascimento dos filhos. Seu trabalho se desestabiliza e ele espera uma promoção em vão, que só consegue depois da indicação de um amigo. Aqui há a complicação ou desenvolvimento, parte do enredo onde se desenvolve o conflito, ou seja, “qualquer componente da história que se opõe a outro, criando uma tensão que organiza os fatos da história e prende a atenção do leitor” (GANCHO, 2002, p. 11). Em comemoração, compra um apartamento luxuoso para se mudar com a família. Durante as reformas, cai e se machuca, mas esquece o fato. O clímax acontece com essa queda, pois ela será “o ponto de referência para as outras partes do enredo, que existem em função dele” (GANCHO, 2002, p. 11). Depois de algum tempo, começa a sentir fortes dores no rim e no ceco. Passa por diversos médicos,

mas nenhum chega a uma conclusão sobre o diagnóstico. Os sintomas vão piorando e ele começa a emagrecer. Tenta se lembrar de quando começou a dor e conclui que foi após o tombo que levou durante as reformas do apartamento. A família ignora sua doença e ele vive em meio à hipocrisia. Os únicos que não lhe mentem são o filho adolescente Vássia, que o compreende e dele sente pena, e Guerássim, um criado que o auxilia pacientemente, erguendo suas pernas para aliviar a dor. Após três dias gritando e revendo toda a sua vida, ele finalmente aceita a morte, que é o desfecho do enredo, ou seja, “a solução dos conflitos, boa ou má” (GANCHO, 2002, p. 11). 3.2 Foco narrativo e personagens

O foco narrativo é em terceira pessoa, com narrador onisciente. “Neste caso, temos bem clara a onisciência do narrador, pois ele não apenas narra o que se passa com os personagens, mas também o que sentem” (GANCHO, 2002, p. 27). Os personagens principais são Ivan Ilitch (protagonista), Piotr Ivanovitch (amigo), Prascóvia Fiódorovna (esposa) e Guerássim (empregado). Os secundários são a filha Lisa, o noivo da filha Piétrischev, o filho Vássia, Fiódor Vassílievitch, o bonachão Schwartz, os médicos que o consultam, empregados e outros colegas do Foro Criminal. 3.3 Espaço e tempo Sendo o espaço “o lugar onde se passa a ação numa narrativa” (GANCHO, 2002, p. 23), neste caso

é a Rússia (São Petersburgo e outras províncias próximas cujos nomes não são citados). Quanto aos espaços internos, são eles: o Foro Criminal, a casa de Ivan Ilitch e o quarto onde ele está moribundo e permanece o tempo todo até sua morte. A época em que se passa a história é o século XIX. O tempo é não linear ou “psicológico” (GANCHO, 2002, p. 21), visto que começa no presente, com a morte de Ivan Ilitch, volta para o passado e termina no presente de novo. Enfim, contendo elementos narrativos idênticos aos do original, não podemos considerar a HQ como tradução neste caso. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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4. ELEMENTOS ESTÉTICOS Mesmo que encontremos em A morte de Ivan Ilitch em quadrinhos bastante texto do original, há de se ressaltar alguns elementos estéticos utilizados, tais como onomatopeias, hachuras, metáforas visuais e a maneira escolhida pelo autor para representar a morte. 4.1 Onomatopeias

Paulo Ramos (2009) cita Cirne (1970) para dar sua definição da onomatopeia nos quadrinhos: “O ruído, nos quadrinhos, é mais do que sonoro, é visual” (CIRNE, 1970 apud RAMOS, 2009, p. 78). Já para Vergueiro (2006), “as onomatopeias são signos convencionais que representam ou imitam um som por meio de caracteres alfabéticos” (VERGUEIRO, 2006, p. 62). Nobu Chinen (2011) acrescenta que as onomatopeias “quase sempre servem para representar sons ambientais ou que não são produzidos pelas cordas vocais” (CHINEN, 2011, p. 20). É o caso das seguintes onomatopeias encontradas no livro: “SMAC!”, “TOC!”, “PLAC!” e “TUM!”.

Figura 6 – Exemplos de onomatopeias. Fonte: CAETO, 2014, p. 54, 29, 31 e 44.

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4.2 Hachuras Como afirma Barbosa (2006), as hachuras são uma forma de representação gráfica para efeitos de luz e sombra, utilizadas sobretudo nas primeiras HQs, “já que não havia técnica barata o suficiente para produção de peças coloridas em larga escala” (BARBOSA, 2006, p. 142). O autor ainda ressalta que as hachuras também são um meio de simular os meios-tons de cinza. Alguns autores, no entanto, mesmo tendo à disposição técnicas mais avançadas hoje em dia, ainda preferem utilizar somente o preto e branco, sendo uma marca de seu estilo, como é o caso de Caeto. O

artista faz uso das hachuras não só para representar listras ou meios-tons de cinza em roupas (Figura 8), mas também para delimitar ambiente escuro ou com pouca luz (Figura 9), chuva (Figura 7), entre outros.

Figura 7 – Hachuras representando chuva. Fonte: CAETO, 2014, p. 24.

Figura 8 – Hachuras marcam as listras nas roupas. Fonte: CAETO, 2014, p. 26

Figura 9 – Hachuras representando ambiente escuro ou com pouca luz. Fonte: CAETO, 2014, p. 59

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4.3 Metáforas visuais De acordo com Santos, metáforas visuais “são elementos icônicos que recebem nova significação” (SANTOS, 2002, p. 23). Já para Chinen (2011, p. 22), elas funcionam como as figuras de linguagem, quando estas utilizam palavras para tornar um conceito mais claro ou exagerá-lo. O autor completa: “As metáforas visuais [...] costumam substituir ou sintetizar conceitos apenas com uma simples imagem, mas esse sentido depende de uma convenção” (CHINEN, 2011, p. 23). Caeto costuma adotar a convenção na metáfora visual do redemoinho, que geralmente representa a loucura e o desespero (Figura 10), assim como na metáfora visual de suor, estrelas e redemoinho novamente para representar dor, febre e vertigem (Figura 12). Somente foge um pouco do convencional ao utilizar a metáfora visual de estrelas, geralmente relacionada à dor, para representar a embriaguez (Figura 11), mas que facilmente é compreendida pelo leitor.

Figura 10 – Redemoinho: Metáfora visual para desespero. Fonte: CAETO, Figura 11 – Estrelas: Metáfora visual para embriaguez. Fonte: CAETO, 2014, p. 20

Figura 12 – Suor, redemoinhos e estrelas: Metáforas visuais para febre, vertigem. Fonte: CAETO, 2014, p. 49.

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4.4. Representações da morte Vale destacar também como Caeto representa a morte, que quase chega a ser uma personagem na narrativa. Em um dos momentos, ela é representada como o símbolo clássico da caveira com o manto preto e a foice (Figura 13), que era como ela aparecia nas visões de Ivan Ilitch e como ele a temia. A morte de verdade, no entanto, é mostrada diferentemente, como ausência, representada por um requadro em branco. O branco também representa a paz, denotando que Ivan Ilitch enfim encontrou a paz ao aceitar a morte.

Figura 13 – Como símbolo (como ele a via). Fonte: CAETO, 2014, p. 48.

Figura 14 – Como ausência (requadro em branco). Fonte: CAETO, 2014, p. 69.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo procurou analisar a HQ A morte de Ivan Ilitch em quadrinhos, do quadrinista Caeto, a fim de saber se pode ser cunhada como tradução conforme a definição de Guerini e Barbosa (2013). Em um primeiro momento da análise, notou-se que a transposição de literatura para HQ foi realizada em sua maior parte transformando os textos do narrador em recordatórios, os diálogos em balõesfala e os pensamentos em balões-pensamento. Em um segundo momento, foram selecionados trechos em Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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que houve a transmutação de texto para imagem, mas esses trechos foram poucos, dos quais destacamos alguns, nominando-os como tradução intersemiótica segundo o conceito de Diniz (2001). Nessas traduções também foi possível notar o uso da sequencialidade típico da linguagem de quadrinhos. Passando para a análise dos elementos narrativos, utilizando os cinco conceitos literários de Gancho (2002) – enredo, foco narrativo, personagens, tempo e espaço –, descobriu-se que, devido ao critério da editora Peirópolis em sempre utilizar o texto original da tradução em sua coleção “Clássicos em HQ” (no caso a tradução direta do russo de Boris Schnaiderman pela Editora 34), o artista acabou não tendo muita liberdade ao fazer a adaptação, seguindo à risca o enredo do original. Somente por meio da análise estética é que foram descobertos outros elementos dos quadrinhos,

como onomatopeias, hachuras, metáforas visuais e a maneira escolhida pelo artista para representar a morte, que nesta história é quase uma personagem. Conclui-se que, mesmo contendo a linguagem dos quadrinhos em alguns momentos, A morte de Ivan Ilitch em quadrinhos ainda não pode ser considerada totalmente como tradução, pois na maior parte do tempo ela apenas seguiu o enredo do original, ilustrando a história. Ainda assim, a vantagem da HQ, para além da literatura, é trazer recursos estéticos que podem ser trabalhados em sala de aula, próprios da linguagem dos quadrinhos, tais como recordatórios, legendas, balões, metáforas visuais etc. Além disso, sendo uma adaptação literária, ela pode atrair os leitores (principalmente jovens) para o texto original, ou mesmo pode substituí-lo, já que o contém quase na íntegra.

REFERÊNCIAS BARBOSA, Alexandre. Os quadrinhos no ensino de Artes. In: RAMA, Ângela; VERGUEIRO, Waldomiro (Org.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 131-149. CAETO. A morte de Ivan Ilitch. São Paulo: Peirópolis, 2014. (Clássicos em HQ) CLÁSSICOS em HQ. Renata Farhat Borges (Org.). São Paulo: Peirópolis, 2013. Disponível em: <http:// www.editorapeiropolis.com.br/arquivos/classicosemhq.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2014. CHINEN, Nobu. Aprenda e faça arte sequencial: linguagem HQ: conceitos básicos. São Paulo: Criativo, 2011. DINIZ, Thaís Flores Nogueira. Apresentação. In: Cadernos de Tradução, Florianópolis, SC: UFSC, v. 1, n. 7, 2001. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/viewFile/5742/5376>. Acesso em: 20 ago. 2014. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2002. (Série Princípios) GUERINI, Andreia; BARBOSA, Tereza Virgínio Ribeiro (Org.). Pescando imagens com rede textual: HQ como tradução. São Paulo: Peirópolis, 2013.

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RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009. SANTOS, Roberto Elísio dos. Leitura semiológica dos quadrinhos. Revista Imes Comunicação, São Caetano do Sul, SP, p.19-31, jan.-jun. 2002. Disponível em: <http://seer.uscs.edu.br/index.php/ revista_comunicacao_inovacao/article/viewFile/786/642>. Acesso em: 20 ago. 2014. TOLSTÓI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2006. VERGUEIRO, Waldomiro. A linguagem dos quadrinhos: uma “alfabetização” necessária. In: RAMA, Ângela; VERGUEIRO, Waldomiro (Org.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 31-63.

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INTERMIDIALIDADE NA ADAPTAÇÃO DE ROMEU E JULIETA PARA A HQ DA TURMA DA MÔNICA INTERMEDIALITY IN THE ADAPTATION OF ROMEO AND JULIET FOR MONICA’S GANG COMIC BOOK Valdinei Pedro Sales Vieira e Erika Viviane Costa Vieira Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri

RESUMO Com base no termo intermidialidade proposto por Rajewsky (2012), o objetivo deste artigo é analisar a transposição intermidiática e apontar as relações existentes entre a peça de Shakespeare, Romeu e Julieta (SHAKESPEARE, [1595] 2012) e a adaptação homônima para HQ da Turma da Mônica (SOUZA, [1978] 2009). Segundo Rajewsky, a transposição midiática é um processo adaptativo que trata do modo de criação de um novo produto midiático, pois trata-se da transformação de um determinado produto de mídia (texto, filme etc.) em outra mídia (filme, texto, quadrinhos etc.) (RAJEWSKY, 2012). Deste modo, reconhecer a proximização e a transposição intermidiática é importante para compreendermos como a adaptação literária para HQs problematiza a questão das práticas de ressignificação de textos canônicos para o público contemporâneo. Palavras chave: intermidialidade; histórias em quadrinhos; Shakespeare ABSTRACT Based on the term intermediality as proposed by Rajewsky (2012), the purpose of this article is to analyze the intermedial transposition and to point out the relationship between Shakespeare's play, Romeo and Juliet (SHAKESPEARE, [1595] 2012) and its homonymous adaptation for Monica’s Gang (SOUZA, [1978] 2009). According to Rajewsky, mediatic transposition is an adaptive process that comes in the way of creating a new media product, as it is the transformation of a product of a media (text, movie etc.) into another media (film, text, comics etc.) (RAJEWSKY, 2012). Therefore, recognizing proximization and intermedial transposition is important to understand how literary adaptations for comics discusses the question of resignification practices of canonical texts for contemporary audiences . Keywords: intermediality; comics; Shakespeare

As histórias em quadrinhos (HQs) no Brasil ganharam destaque quando passaram a ser reconhecidas como um gênero específico a ser estudado e utilizado em propostas pedagógicas escolares. Entretanto, o que mais chama a nossa atenção é o espaço que essa modalidade de narrativa vem ocupando nos últimos anos, não somente nas abordagens pedagógicas e no ambiente do entretenimento, mas também no meio acadêmico. Se antes as HQs eram, em sua maioria, um meio para exposição de questões sóciopolíticas, hoje contemplam diferentes áreas, dentre essas destacamos a literatura. Como exemplo, podemos citar a obra adaptada de Romeu e Julieta, de Shakespeare, para a Turma da Mônica, de Maurício de Souza. A questão é: como ocorre o processo de adaptação literária para as HQs e quais práticas estão envolvidas na ressignificação de textos canônicos para o público infantil contemporâneo? Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016


O objetivo deste artigo é analisar a transposição intermidiática e apontar as relações existentes entre a peça de teatro Romeu e Julieta e a adaptação para a HQ da Turma da Mônica. Antes de abordar as especificidades presentes na relação que existe entre a peça teatral e a HQ da Turma da Mônica torna-se necessário definir o termo intermidialidade, que aqui é situado como referência teórica da análise. Segundo Rajewsky (2012), intermidialidade é um termo ainda em formação, mas que é muitas vezes utilizado de forma variada como midialidade, hibridização, multimodalidade, entre outros. Devido a essa variação, na qual áreas do conhecimento como estudos literários, história da arte, cinema, sociologia, entre outras se apropriam desse tema segundo seus interesses, a definição restrita do conceito se torna confusa e imprecisa (RAJEWSKY, 2012, p. 17). De acordo com Rajewsky, para formular uma concepção

mais específica é preciso usar algumas estratégias. A primeira estratégia parte do debate entre as perspectivas sincrônica e diacrônica; a segunda, seria a análise de produtos ou configurações de mídias individuais e específicas; e, por último poderíamos estudar os fenômenos intermidiáticos particulares. Esses últimos, os fenômenos intermidiáticos, têm a ver com o cruzamento de fronteiras entre as mídias em que duas ou mais mídias se convergem em um novo produto, tais como quadrinhos, adaptação cinematográfica de obras literárias, poesia visual, ópera etc. Para a autora, o estudo das subcategorias intermidiáticas também oferece pontos de partida para a compreensão do termo. Rajewsky (2012, p. 24-25) aponta três subcategorias. A primeira delas é a transposição midiática que trata da transformação de um produto de mídia em outra mídia, como por exemplo, a adaptação de um texto literário em HQ. A segunda é a combinação de mídias que se constitui

como um produto de mídia que é resultado da combinação de duas ou mais mídias, tais como as HQs que combinam imagem e texto. Por último, há as referências intermidiáticas que é a evocação ou a imitação de certas técnicas de uma mídia em outra, como algumas técnicas cinematográficas, tal como o zoom, utilizadas em algumas HQs. Portanto, o que se reconhece que seja intermidialidade refere-se a “um termo genérico para todos aqueles fenômenos que (como indica o prefixo inter-) de alguma maneira acontecem entre as mídias” (RAJEWSKY, 2012, p. 18). Adaptar implica produzir um novo produto, para um novo público, para uma outra época. A proposta de analisar uma HQ sob a perspectiva da intermidialidade apóia-se, sobretudo, no conceito de que a adaptação é um processo de transposição midiática. Ao transformar a peça teatral Romeu e Julieta em

HQ, Maurício de Souza cria um “novo produto de mídia, cuja formação é baseada num processo de transformação específico da mídia e obrigatoriamente intermidiático” (RAJEWSKY, 2012, p. 24). Outro ponto que merece ser considerado é a questão da proximização. Em Adaptation and Appropriation, Julie Sanders (2006) discute a noção de proximização tal como foi desenvolvida por Gérard Genette em Palimpsests e diz que: “(...) o hipertexto transpõe a diegese do seu hipotexto ao atualizá-lo e aproximá-lo de seu público (nos aspectos temporais, geográficos e sociais). Sei que não há exceções para esta característica onipresente” (SANDERS, 2006, p. 20 apud GENETTE, 1997, p. 304). Desse modo, o processo de transposição midiática, ao trabalhar com a adaptação de uma mídia em outra, Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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torna evidente que as mudanças ocorrem em dimensões variadas, seja por causa de um movimento de atualização do conteúdo de uma dessas mídias, seja devido a um movimento de aproximação com determinado público, ou mesmo por ambas as causas. Ainda de acordo com Julie Sanders (2006, p. 21), o motivo por trás da atualização é bastante óbvio: o movimento de aproximação traz o trabalho para perto do público em termos de referência temporal, geográfica ou social. Além disso, a adaptação de Shakespeare, invariavelmente faz com que ele se “encaixe” em novos contextos culturais ou em diferentes ideologias políticas do que aqueles da sua própria época. Assim o faz Maurício de Souza em sua versão de Romeu e Julieta que realiza com clareza este movimento de aproximação, trazendo Romeu e Julieta da Verona renascentista para o universo infantil

brasileiro. O estudo da adaptação pressupõe um impulso comparativo em sua base metodológica. A partir deste ponto, assim, retomaremos nosso objetivo, ou seja, iniciar uma análise da adaptação do texto dramático de Romeu e Julieta, que passa pelos processos de transposição midiática e de proximização para adequar-se à nova mídia (HQ), ao público-alvo e ao estilo de Maurício de Souza, autor da adaptação. O PRÓLOGO Para Genette (1997), o hipotexto é “um texto anterior A”, enquanto o hipertexto é aquele produzido no devir. Percebe-se que, logo na primeira página da HQ, o autor manteve um elemento que faz parte da

estrutura textual do hipotexto: o prólogo. Tanto no texto Shakespeariano quanto na HQ, sua função é oferecer ao leitor elementos precedentes ou elucidativos da trama que vai se desenrolar. Vejamos como ele se dá no texto de Shakespeare: Duas casas, duas famílias com a mesma dignidade na aprazível Verona, onde se desenrola esta história, que parte de antigas rixas e chega a um novo motim, quando sangue civil mancha mãos civis. Pois da prole dessas duas casas, inimigas fatais, um casal de amantes traídos pelo destino toma sua própria vida; seus desanventurados gestos, dignos de nossa pena, resultam em que, com sua morte, também a luta de seus pais. A terrível história de seu amor, marcado pela morte, e a permanência do ódio de seus pais, que tão somente teve um basta com o trágico fim de seus filhos, constituem o que passa a narrar agora neste palco, por duas horas. Esta peça, se ouvida com paciência, tentará, com nosso esforço, prover-lhe todos os detalhes. (SHAKESPEARE, 2012, p. 11).

O texto Shakespeariano está impregnado de significantes e códigos da época elisabetana, isto é, contempla uma carga dramática trágica ao usar termos como “sangue civil mancha mãos civis” (SHAKESPEARE, 2012, p. 11). Dessa forma, o trecho enfatiza a atmosfera de rixa, inimizade, ódio e morte. A diferença ente as mídias parece evidente tanto no tratamento das palavras, quanto no acréscimo imagético oferecido pela HQ. A cena escolhida para ilustrar o prólogo da HQ – a cena do balcão – é ontológica, fazendo com que o leitor contextualize e ambientalize a narrativa segundo seu conhecimento prévio.

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Apresentado na forma de versos, o prólogo da HQ oferece leveza e harmonia ao convite feito pelo personagem Romeu Montéquio Cebolinha. Este personagem acrescenta características pessoais ao prólogo ao demonstrar seu ar de superioridade intelectual e também por não conseguir pronunciar a letra “r” de algumas palavras, usando “l”. A atenção da cena é dividida com Julieta Monicapuleto, uma garotinha de gênio forte, que, ao ser chamada de “golducha” (sic), se irrita e intervém na apresentação do tema. Essa intervenção da personagem não é despropositada visto que está investida de humor, uma particularidade que irá percorrer todas as cenas da HQ, bem como revelar a preservação das características dos personagens de Maurício de Souza na adaptação.

FIG. 1 – Prólogo da HQ da Turma da Mônica. Maurício de Souza, [sem título].

Analisando este quadrinho sob a ótica da transposição e da proximização, podemos destacar dois elementos importantes: a introdução de um personagem (Cebolinha) para a declamação do prólogo e a inserção de um cenário (cena do balcão) como plano de fundo. Esses dois elementos apontam que a disposição de um mesmo item, o prólogo, sendo tratado de forma diferenciada quando transposta para o novo gênero. Em Shakespeare não há personagem que declame o prólogo, bem como não há menção ao contexto espacial em que ele é feito. Percebemos que, na tentativa de proximização com o público infantil, interessa apresentar os personagens consagrados pela Turma da Mônica e também inserir um cenário lúdico que retome a história em um formato mesclado por conteúdo verbal e não-verbal (fala e imagem), o que também é um aspecto da HQ. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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A RIVALIDADE ENTRE AS FAMÍLIAS

FIG. 02 – A disposição dos castelos. Maurício de Souza, [sem título].

A rivalidade entre as famílias é marcada pela disposição dos castelos e seus elementos. De um lado, temos a bandeira verde dos Montéquio e do outro a bandeira vermelha dos Capuleto. A separação feita

pelo castelo do Príncipe Xaveco em relação aos castelos vizinhos mostra que o Príncipe ocupa uma posição intermediária entre as famílias. Aparecendo nos modos verbal e imagético, o leitor tem uma dimensão simbólica da rivalidade. A imagem assume a função de complemento e reforço da descrição verbal.

FIG. 03 – A simbologia das janelas. Maurício de Souza, [sem título].

Nos quadrinhos seguintes (FIG. 03), a centralidade do Príncipe é representada pelo foco nas três janelas do castelo. As duas janelas laterais são ocupadas cada uma por uma família: à esquerda Romeu Montéquio Cebolinha, à direita Hiro e, na do meio, o príncipe. Em Shakespeare, ele demonstra sua atitude de mediador por meio da seguinte fala: Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Príncipe – Súditos rebeldes, inimigos da paz, profanadores do aço dessas lâminas manchadas com o sangue dos vossos próprios vizinhos! (...) Se perturbarem a paz de nossa cidade uma vez mais, pagarão com vossas vidas por terem quebrado a quietude. Por hora, dispersai-vos. (...) Uma vez mais, sob pena de morte, dispersai-vos todos! (SHAKESPEARE, 2012, p. 18).

As provocações entre as famílias, que no hipotexto levam às brigas armadas em praça pública, na HQ não passam de caretices infantis que terminam com o arremesso de objetos à janela da família rival. A função apaziguadora do príncipe é bastante semelhante nas duas mídias, porém ganha um caráter infantil na HQ. Enquanto em Shakespeare (2012, p. 18) ele decreta pena de morte aos “perturbadores da paz”, na HQ menciona-se um “severo castigo aos reincidentes” (SOUZA, 2009, p. 8). Percebe-se que a adaptação

mantém a proposta de minimização da discórdia entre as famílias. Ao continuar a análise da HQ, percebemos que além da proximização dos elementos da cena houve preocupação com a própria abordagem da rivalidade. As brigas são recriadas em um cenário lúdico: duas janelas opostas por onde se arremessam objetos. Lembram ainda atitudes próprias da infância – o “fazer careta” para ofender o outro. Mais adiante, quando o arauto anuncia a proibição das brigas, outro elemento chama atenção: os personagens estão em um jogo de bolinhas de gude. Portanto, a preocupação em introduzir elementos novos tem uma referência bastante clara: o mundo infantil, que é adaptado não apenas às imagens, mas também à fala, à narrativa, à atitude, às brincadeiras.

FIG. 04 – A representação das brigas no jogo de bolinhas de gude: um espaço infantil. Maurício de Souza, [Sem título].

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Enquanto no texto de Shakespeare as brigas de rua entre as famílias refletem um ambiente adulto, na HQ a partida de bolinha de gude serve como ponto de equivalência às cenas de conflito, que aqui são infantis. No primeiro capítulo, quando o mensageiro chega e anuncia o decreto do príncipe pelo fim das brigas, acaba atrapalhando a brincadeira e gerando uma nova confusão. No terceiro capítulo, a semifinal do campeonato de bolinha gude serve de justificativa para Frei Cascão apressar o casamento entre Julieta Monicapuleto e Romeu Cebolinha Montéquio. Acrescenta-se ainda a briga gerada na brincadeira, entre Chico Bento, Teobaldo e Romeu Montéquio Cebolinha: fator decisivo para que o príncipe Xaveco decretasse a expulsão deste último da cidade.

A CENA DO BALCÃO O primeiro encontro a sós entre Romeu e Julieta – ela à janela e ele no jardim – é uma cena clássica no imaginário coletivo. Para além do suspense gerado pela audácia de Romeu ao se arriscar, pulando o muro dos inimigos, o drama da cena se deve, principalmente, às juras de amor carregadas de emoção e cumplicidade. No hipotexto, ao se aproximar da janela de Julieta, Romeu diz em voz baixa: Romeu - Que luz é essa, que brilha através daquela janela? Vem do leste, e Julieta é o sol! – levanta ó belo sol, e acaba com a lua ciumenta, que já se encontra doente e pálida de dores virginais, porque tu, sua serva, és muito mais bonita que ela. Não aceites ser dela a serva, já que ela é invejosa.” Julieta - Ai de mim! (...) Ah, Romeu, Romeu! Por que tinhas que ser Romeu? Renega teu pai, rejeita teu nome; e se assim não quiseres, jura então que me tens amor e deixarei de ser uma Capuleto. (...) Romeu, livra-te de teu nome; em troca dele, que não é parte de ti, toma-me inteira para ti. Romeu - Tomo-te por tua palavra: chama-me de teu amor, e serei assim rebatizado; nunca mais serei Romeu. (SHAKESPEARE, 2012, p. 51-52).

Na HQ, amor e humor são apresentados lado a lado. Os personagens atrapalhados fazem de “A cena do balcão” uma mistura de declarações, discussões e pedido de casamento. Mas, sobretudo, o caráter romântico se mantém e é representado pelas imagens, expressões e fala dos personagens.

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FIG. 05 – A cena do balcão. Maurício de Souza, [sem título].

A direção cenográfica deixada por Shakespeare diz que: “Julieta aparece mais acima, a uma janela.”. Na HQ, essa cena é representada pela imagem em foco do balcão. Ao passo que a fala de Julieta: “Ai de mim! (...) Ah, Romeu, Romeu!” (SHAKESPEARE, 2012, p. 52) é adaptada à HQ com a preservação de alguns elementos, tal como o caráter romântico. A fala de Julieta Monicapuleto: “Onde está que não o acho?” (SOUZA, 2009, p. 19), associada à imagem do seu rosto, disposto em três ângulos distintos, causa a impressão de movimento à imagem e também de desespero pela procura da pessoa amada. Ao avistar o então empolgado Romeu Cebolinha Montéquio sua fala se assemelha àquela presente no hipotexto. Julieta diz: “Porque tinhas que ser Romeu? Renega teu pai, rejeita teu nome; e, se assim não quiseres, jura então que me tens amor e deixarei de ser uma Capuleto” (SHAKESPEARE, 2012, p. 52). Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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Enquanto isso, na HQ, a fala se apresenta da seguinte forma: “Se você não puder, por amor a mim, deixar de ser um Montéquio Cebolinha, nosso amor chegará ao fim” / “Mas se assim não for, tenho algo a propor, não sou mais a Julieta e sim o seu amor” (SOUZA, 2009, p. 19). Essa fala de Julieta Monicapuleto é marcada pela rima e pela sonoridade, elementos que, ao lado do requadro ilustrado de flores, corações e notas musicais, reproduzem o romantismo dedicado à cena. Os olhos da personagem, desenhados de forma estratégica, ganham destaque ao reproduzir a sensação de alguém que está deveras apaixonado (cf. Figura 5). Quando analisamos a cena do balcão na HQ, conseguimos compreender como a dimensão do amor romântico é trabalhada de forma bem-humorada e divertida. Por meio da proximização, temos uma

adaptação do amor adolescente para um amor infantil, cujas cenas do enamoramento, por exemplo, são substituídas pelas cenas de confusão e discussões entre o casal. A transposição, portanto, é feita de modo cuidadoso, ou seja, Maurício de Souza faz uma adaptação criativa de elementos como falas, cenário e personagens, sem diminuir a referência ao hipotexto. O CASAMENTO No fim do segundo ato, na cela de Frei Lourenço encontram-se Romeu e Julieta. Frei Lourenço diz: “Venham, venham comigo, e nós vamos tornar a cerimônia mais curta.” (SHAKESPEARE, 2012, p. 78).

FIG. 06 – O casamento entre Julieta Monicapuleto e Romeu Montéquio Cebolinha. Maurício de Souza, [Sem título].

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De pouco destaque no hipotexto, a cena do casamento na HQ recria a imagem que o público brasileiro tem de uma “noiva” – e do ambiente do matrimônio – de forma muito detalhada. Para ativar essa imagem é preciso recorrer ao que é essencial, como por exemplo, a grinalda com suas flores, o vestido branco com suas rendas e o buquê, a igreja com o tapete vermelho, o piano, a disposição dos bancos, o altar onde o celebrante se situa, o noivo que aguarda a entrada da noiva, entre outros. Contudo, podemos observar que na época de Shakespeare e no próprio texto não se menciona toda essa ambientação, e ainda: as noivas não se vestiam de branco e não havia piano. Deste modo, essa ambientação é um recurso de proximização, pois os leitores atuais identificam casamentos desta maneira. Como afirma Oliveira (2007, p. 3), a compreensão de uma HQ está diretamente ligada à associação de elementos que fazem com que o

leitor consiga “concluir” os fatos narrados. Assim, nenhum dos elementos é colocado de forma aleatória, pois, quando visualizados juntos, produzem uma sensação coerente com a narrativa, embora essa percepção seja, geralmente, inconsciente. Por isso, ao ler uma HQ é preciso desautomatizar o olhar. A riqueza de uma HQ está além dos fatos narrados, envolve uma complexa (e organizada) composição de elementos explícitos e implícitos. (...) a montagem não apresenta todos os enquadramentos num fluxo contínuo como acontece em um filme, mas revela em poucos elementos o essencial para que o leitor, através de sua imaginação, complete os quadros colaborando decisivamente para o processo de montagem. Este movimento, aliás, realizado pelo leitor, é o que McCloud (2002) chama de “conclusão”, e que permite conectar momentos dissociados e concluir mentalmente uma realidade contínua e unificada. A transição entre os quadros nas HQs se revela, portanto, fator decisivo para garantir a composição da narrativa. (OLIVEIRA, 2007, p. 3).

Embora dispersos ao longo do texto dramatúrgico, a HQ preserva elementos de grande representatividade do hipotexto. Para citar um exemplo, temos o canto da cotovia. Em Shakespeare, o canto dessa ave aparece no segundo encontro entre Romeu e Julieta e anuncia a chegada do amanhecer e também simboliza o momento triste da partida de Romeu para Mântua. Na HQ, o canto da cotovia aparece como uma imitação da ave, feita por Romeu Montéquio Cebolinha. Distante do caráter melancólico da cena, o canto aparece como um disfarce para que o pai de Julieta Monicapuleto não desconfie da presença do Montéquio em seu jardim. Assim, um elemento que deveria remeter ao enamoramento é substituído pela paródia e pelo humor.

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FIG 07 – Romeu Montéquio Cebolinha imita a cotovia. Maurício de Souza, [sem título].

O DESFECHO Ao adaptar a peça teatral para a HQ, o último ato, no qual Romeu e Julieta se matam, precisou ser transformado em um final feliz. Com o título: “e o amor nasceu”, Maurício de Souza elabora outro tipo de adaptação com o efeito de proximização para o público infantil. Em um espaço lúdico e infantil, os personagens principais não morrem no final (isso significaria que os personagens consagrados de Maurício de Souza, Mônica e Cebolinha, morreriam). Assim, ao contrário do hipotexto, o desfecho é marcado por uma “explosão de amor” (SOUZA, 2009, p. 53) entre Romeu Montéquio Cebolinha e Julieta Monicapuleto.

FIG. 08 – A narração do fim da peça por Frei Cascão e a encenação por Julieta Monicapuleto e Romeu Montéquio Cebolinha. Maurício de Souza, [Sem Título].

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Quando Shakespeare é lido pelo Frei Cascão e as cenas do teatro representadas por Monica e Cebolinha, a palavras que remetem à “morte” são substituídas pela expressão “os dois apaixonados chegaram ao fim” (SOUZA, 2009, p. 49). Entretanto, a dimensão trágica é substituída pela dimensão humorística quando Julieta Monicapuleto, ao descobrir o triste fim do seu casal inspirador, se recusa a seguir o desfecho da peça Shakespeariana. Preservando sua característica de garota indelicada e de modo desafiador ela diz: “Shakespeare que me desculpe, mas eu vou dar outro jeito no fim desta história” (SOUZA, 2009, p. 51).

FIG. 09 – A recusa de Julieta Monicapuleto. Maurício de Souza, [Sem Título].

CONSIDERAÇÕES FINAIS A intermidialidade, com base nessa análise, pode ser entendida como um processo amplo no qual os fenômenos midiáticos acontecem entre as mídias. Entretanto, o que percebemos é que a transposição midiática não é um processo simples pelo qual se transforma um determinado produto de mídia em outra

mídia. A adaptação exige um conhecimento apurado dos elementos que compõem o hipotexto, para que, ao adaptá-los à nova mídia, o seu rearranjo não seja feito de modo aleatório, mas sim de forma articulada e coerente. Quando falamos em transposição midiática compreendemos a importância de transformar um determinado elemento de uma outra maneira, pois isso definirá a capacidade referencial que a nova mídia mantém com o hipotexto. A HQ de Maurício de Souza recorre ao texto Shakespeariano ao preservar elementos tais como o prólogo, a estrutura textual em capítulos, o canto da cotovia, as roupas do período renascentista usadas pelos personagens, a relação entre os personagens etc. Ao lermos a HQ nossa Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 1, 2016

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memória consegue ativar, por vezes inconscientemente, as linhas da narrativa do hipotexto. Essa ativação não se deve somente a menções verbais de partes do texto Shakespeariano, pelo contrário, exige também a assimilação das configurações não-verbais presentes no texto, o que exige uma postura ativa e crítica por parte do leitor. A proximização, bem como o reconhecimento dos valores culturais e sociais atuais adquire importância relevante, pois, como esta adaptação se dirigia ao público infantil, Maurício de Souza trabalhou com o redimensionamento do aspecto trágico para o aspecto humorístico. Ao adaptar um texto, principalmente para esses leitores, deve-se ter em mente que o propósito da nova mídia não deve ser de facilitar o entendimento do hipotexto por meio de uma adaptação menos elaborada. Ao aproximar o texto

de Shakespeare à literatura infantil, Maurício de Souza não reduz a importância daquele, apenas usa recursos do gênero HQ, como a associação entre texto verbal (falas, onomatopéias) e não-verbal (imagens, expressões), que são mais próximos, interessantes e de melhor compreensão por parte do pequeno leitor. Além do conhecimento apurado dos elementos que compõem o hipotexto, dois fatores foram considerados nesta adaptação para a Turma da Mônica, como as características do gênero HQ e a não facilitação do hipotexto, que foi reinterpretado de modo criativo e coerente. Por fim, o cuidado com os personagens já consagrados por Maurício de Souza se fez pela preservação de suas características que foram adaptadas aos personagens do hipotexto: Julieta Monicapuleto não é delicada, Romeu Montéquio Cebolinha não é tão romântico, Amagali está sempre com fome, Frei Cascão joga talco nos noivos, pois tem “medo” d’água. Seja por meio do conhecimento prévio

do leitor ou pela associação das imagens, todos conseguem manter, de forma feliz, a referência à peça através da subversão do aspecto trágico. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GENETTE, Gérard. Palimpsests: literature in the second degree. Lincoln: University of Nebraska, 1997. OLIVEIRA, Maria Cristina Xavier de. Histórias em quadrinhos e suas múltiplas linguagens. Revista Crioula, São Paulo, n. 2, Nov. 2007. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/crioula/article/ viewFile/55785/59195> Acesso em: 19 jul. 2014. RAJEWSKY, Irina. Intermidialidade, intertextualidade e “remediação”: uma perspectiva literária sobre a intermidialidade. Trad. Thaïs Flores Nogueira Diniz e Eliana Lourenço de Lima Reis. In: DINIZ, Thaïs Flores Nogueira (Org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. Belo Horizonte: UFMG, 2012, p. 15-45. SANDERS, Julie. Adaptation and Appropriation. London: Routledge, 2006. SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2012. SOUZA, Maurício de. Turma da Mônica: Romeu e Julieta. Barueri, SP: Panini Brasil, 2009.

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