De Letra em Letra / Departamento de Letras, Universidade Federal de São Paulo UNIFESP (2016). - Guarulhos: Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, 2016 - v. : il. Semestral, julho 2012 — v. 3, n. 2 (2016) Inclui bibliografia ISSN: 2317-3610 1. Linguística; 2. Linguística Aplicada; 3. Literatura I. Universidade Federal de São Paulo - Departamento de Letras.
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Departamento de Letras da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo—EFLCH-UNIFESP Chefe de Departamento Rita Jover-Faleiros Corpo Editorial Editora-chefe Karina Menegaldo
Auxiliar de Edição Fernando Leite Morais
Conselho Editorial Carlos Henrique Vieira Karina Menegaldo Luis Octavio Rogens de Melo Alves Mayra Martins Guanaes
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Comitê Científico Dra. Ana Luiza Ramazzina Ghirardi (UNIFESP) Dra. Ana Rosa Ferreira Dias (USP/PUC-SP) Dra. Bianca Fanelli Morganti (UNIFESP) Dr. Carlos Renato Lopes (UNIFESP) Dr. Edson Correia (FMU) Dra. Graciela Alicia Foglia (UNIFESP)
Dr. Janderson Luiz Lemos de Souza (UNIFESP) Dra. Leila de Aguiar Costa (UNIFESP) Dra. Leonor Lopes Fávero (PUC–SP) Dra. Ligia Fonseca Ferreira (UNIFESP) Dr. Márcio Rogério de Oliveira Cano (UFLA) Dra. Maria Lúcia Dias Mendes (UNIFESP) Dra. Mirhiane Mendes de Abreu (UNIFESP) Dra. Paloma Vidal (UNIFESP) Dr. Paulo Eduardo Ramos (UNIFESP)
Dr. Rafael Dias Minussi (UNIFESP) Dra. Raquel dos Santos Madanelo Souza (UNIFESP) Dr. Sandro Luis da Silva (UNIFESP) Dra. Sofia Maria de Sousa Silva (UFRJ) Dra. Sueli Cristina Marquesi (PUC-SP/UNICSUL) Dra. Sueli Salles Fidalgo (UNIFESP) Dra. Vanda Maria Elias (Editora Contexto)
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Revisores Ana Paula de Macedo Brum André Felipe Barbosa Caique Franchetto Debora Christofoleti Fábio Fernandes de Lima Francielle de Queiroz Zurdo Giovanna F. Rossinhole
Jéssica Máximo Garcia Lincoln Carneiro Mariana Pimentel Nelson Flávio Moraes de Oliveira Equipe Técnica Diagramação Eric Frade Capa Karina Menegaldo Coordenação tecnológica e website Karina Menegaldo Eric Frade Assessoria tecnológica Éric Frade Secretário Nelson Oliveira Agradecimento especial à Professora Dra. Lucia Santaella
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Expediente da edição Comitê científico Apresentação
HIPERMIDIA E TRANSMIDIA: LINGUAGENS DO NOSSO TEMPO Autora convidada: Lucia Santaella BLACK BLOCS’ NA FOLHA DE S.PAULO: A RELAÇÃO ENTRE GÊNERO DISCURSIVO E DISPOSITIVO-K NO CONTROLE DA EXPLICITUDE/IMPLICITUDE DE SIGNIFICADOS Autor: Alvaro Magalhães Pereira da Silva PALESTRA SOBRE OS NOVOS TEMPOS: ASPECTOS DA PIADA NOS QUADRINHOS Autora: Catia Regina Ribeiro Artur REFERENCIAÇÃO NAS LETRAS DE FUNK: UMA ANÁLISE SOBRE CONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DE OBJETOS-DE-DISCURSO Autor: Fernando Leite Morais O DISCURSO JOCOSO NA MANCHETE ‘COM MÃO NA VAGA’ DO JORNAL POPULAR NOTÍCIA JÁ Autora: Maria Helena Corrêa da Silva Matei A CENOGRAFIA EPISTOLAR NO DISCURSO JORNALÍSTICO Autoras: Patrícia Ferraz, Miriã Soares do Santos
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HIPERMÍDIA E TRANSMÍDIA: LINGUAGENS DO NOSSO TEMPO HYPERMEDIA AND TRANSMEDIA: LANGUAGES OF OUR TIME Lucia Santaella Pontifícia Universidade Católica de São Paulo lbraga@pucsp.br RESUMO Este artigo desenvolve um breve percurso histórico que vai da oralidade até a hegemonia da cultura letrada que dominou da invenção de Gutenberg até a revolução industrial. Nesta, com o advento das imagens foto e cinematográficas, as letras foram perdendo sua hegemonia, uma perda que se acentuou com a emergência da cultura eletroeletrônica do rádio e da televisão. O marco fundamental da passagem da escrita do papel para a tela eletrônica se deu com a explosão da cultura mediada por computador, na qual se instauraram a hipermídia como estrutura de linguagem que é própria das redes digitais e a transmídia que é definida como a passagem do texto narrativo de uma mídia a outra, através de recursos que ampliam a experiência narrativa do receptor. Palavras-chave: oralidade, Gutenberg, redes, hipermídia, transmídia ABSTRACT This article develops a brief historical survey that goes from orality to the hegemony of literacy which dominated from the invention of Gutenberg to the industrial revolution. With the advent of photo and film images, literacy began to lose its hegemony, a loss that was accentuated after the emergence of the electronic culture of radio and television. The cornerstone of the passage of writing from paper to the electronic screen occurred with the explosion of computer-mediated culture, which has established hypermedia as the structure of language which is characteristic of digital networks and transmedia which is defined as the passage of a narrative text from one medium to another, by means of strategies that expand the narrative experience of the receiver. Key words: orality, Gutenberg, networks, hypermedia, transmedia.
1. A ONIPRESENÇA DA PALAVRA Da palavra depende a nossa comunicação com o outro e conosco mesmos. Vivemos com as palavras, vivemos nas palavras, estamos nas palavras. Já fomos falados por elas, antes mesmo de existirmos, quando nossos pais discutiam a escolha do nosso nome, pois o nome de família estava dado de antemão.
As palavras antecedem a nossa existência e sobrevivem para muito além de cada uma de nossas existências. É por isso que o famoso linguista, Ferdinand de Saussure, criador do estruturalismo linguístico no início do século XX, afirmava que a língua, sistema de regras que preexiste e possibilita as nossas falas, é um tesouro coletivo. Mesmo que todos os falantes de uma língua estivessem dormindo em um dado momento, ela, a língua, continuaria sendo um tesouro coletivo. A partir disso, já se pode estabelecer uma diferença importante. A língua é social e pertence a todos os que adquiriram competência em internalizá-la pelo convívio coletivo. A fala, por outro lado, é o desempenho que cada um de nós tem do saber adquirido de uma língua. Não há nada mais encantador do que testemunhar o gradativo, mas célere desempenho da língua pelas crianças a partir de um ano de idade e Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
o domínio surpreendente que já revelam por volta de três anos de idade, quando apresentam estruturas sintáticas complexas, antes mesmo de terem a ponta da língua no ponto exato, exigido pela articulação fonética. Outra diferença importante é aquela que se estabelece entre a palavra falada e a palavra escrita. Há muitas formas de escrita: ideográfica, pictográfica, hieroglífica e outras. Essas formas de escrita não apresentam correspondência com a palavra falada. São, na realidade, formas muito complexas de representação dos significados da fala. Já a linguagem escrita, que conhecemos no ocidente, são formas de escrita alfabética. O que isso quer dizer? Cada letra do alfabeto desenha o som correspondente na linguagem falada. Com poucas letras,
pode-se representar visualmente tudo o que somos capazes de falar. ABCDEFGHIJKLMNOPKRSTUVXWYZ Pronto: bastam 26 letras para tudo que se já escreveu, se escreve e se escreverá em língua portuguesa. Para perceber a terceira diferença, deve-se ter em mente a distinções entre os suportes da linguagem escrita. Esses suportes são históricos. Para gravar a escrita, os sumérios utilizavam tijolos de barro; os indianos, folhas de palmeira; os maias e astecas usavam uma matéria-prima que era encontrada entre a casca e a madeira das árvores, enquanto os romanos faziam uso de tábuas de madeira cobertas com cera.
2. A GALÁXIA DE GUTENBERG Foram os chineses que deram início à confecção do papel produzido com fibras vegetais. Para passar da China para o Ocidente, o papel precisou da mediação dos árabes. Sem o papel, os tipos móveis de Gutenberg não teriam função. Estes precisavam de uma superfície a um só tempo resistente para suportar o peso do chumbo e porosa para absorver a tinta. Tipos móveis e papel constituem um encontro feliz, uma aliança que deu certo, reinou soberana e quase exclusiva por quatro séculos. Dessa aliança nasceu a história do livro impresso que, até a explosão do jornal, no século XIX, era o único meio de armazenamento, memória e transmissão do conhecimento e
da informação letrada. A história do livro no decorrer desses séculos foi primorosamente tratada, entre outros, por Roger Chartier. Desde o século XVI, junto com as formas mais nobres de livros, começaram a surgir publicações precárias, pouco cuidadas e pouco custosas, vendidas por mascates e destinadas àqueles que não queriam entrar nas livrarias. O conjunto dessas coleções e séries veio dar impulso à multiplicação dos livros garantida pela invenção de Gutenberg. Mesmo assim, a produção do livro não tinha ainda a dimensão que viria adquirir no século XIX e início do século XX com a industrialização da atividade gráfica e com a proliferação das tiragens graças aos livros de bolso (CHARTIER, 1994; 2002).
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As implicações do livro para os ambientes socioculturais que dele decorrem foram exploradas por Ong (1986; 1999) e Havelock (1988; 1995; 1997), autores que estudaram os contrastes nas relações entre oralidade e escrita. Para Ong (1998, p. 17), por exemplo, a escrita está atada ao espaço e a oralidade está ligada ao tempo. Enquanto a escrita está presa a suportes materiais externos, a oralidade não depende disso. Por isso, a escrita, ao contrário da linguagem oral, é linear e completamente artificial. Para o autor, enquanto a oralidade é espontânea e natural, o processo de colocar a expressão oral em sua forma escrita é conscientemente governado por procedimentos articulados (Ong, 1986). O discurso tipográfico desenvolve uma gramática mais elaborada, fixada na dependência da estrutura linguística. Assim como as sociedades orais possuem formas específicas de transmissão do conhecimento, com a introdução de sistemas de
escrita, novas formas de transmissão, aprendizagem e memorização da cultura foram também introduzidas. Segundo Galvão e Batista (2006, p. 423), muitos pesquisadores, entre eles, Eisenstein (1985, 1998), têm questionado a tradição que vai de Ong a McLuhan e ao seu antológico tratado sobre A Galáxia de Gutenberg (1972). O que é criticado é a oposição muito nítida que essa tradição estabelece entre oralidade e escrita. Tais dicotomias não são capazes de explicar as intrincadas relações existentes entre as diferentes formas de linguagem e as características e os modos de pensamento distintos que elas adquirem em culturas diversas. Por isso, não fazem muito sentido afirmações peremptórias de que somente os letrados apresentam a capacidade de abstração; “que a introdução da escrita e, mais tarde, da imprensa, constituíram marcos divisores na história da humanidade; ou, ainda, que as culturas podem ser divididas em ‘orais’ e ‘escritas, sem que seja considerada a coexistência do oral e do escrito na mesma época e no
mesmo lugar”. Tais considerações não podem minimizar, contudo, o fato de que foi a escola canadense que introduziu o fator, que foi levado a consequências notáveis por McLuhan, de que os meios de comunicação não são apenas meios, mas muito mais que isso, são criadores de ambientes psico-socioculturais que lhes são correspondentes. Todas as mídias trabalham sobre nós completamente. Elas são tão persuasivas em suas consequências pessoais, políticas, econômicas, estéticas, psicológicas, éticas e sociais que não deixam intocadas, inafetadas e inalteradas quaisquer partes que nos constituem. O meio é a massagem. Qualquer entendimento de mudanças sociais e culturais é impossível sem o conhecimento do modo como as mídias funcionam como ambientes (McLuhan, 1967, p. 26).
3. A PERDA DA HEGEMONIA DO LIVRO O jornal e suas máquinas rotatórias foram contemporâneos da revolução industrial. Esta trouxe um marco de transformação cultural cuja profundidade não pode ser ´desprezada. Com ela vieram o vapor, os trens, o telégrafo, a popularização dos correios, o surgimento dos cartões postais, a eletricidade, a fotografia, a gravação sonora, o telefone e a cinematografia. Tudo isso acontecia no novo cenário de um novo ambiente, o das cidades que cresciam no ritmo das novidades. Com a chegada das redes de eletricidade, os centros urbanos começaram a se iluminar e a expor, sob efeito das luzes, as diversas Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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configurações materiais da metrópole, principalmente nos objetos produzidos pelo progresso técnico. Nas construções arquitetônicas, nos traçados urbanísticos das ruas, nos grandes magazines, nas galerias, nos cassinos, nas exposições, nos museus de cera, e principalmente na moda, a febril imaginação moderna ia se forjando (SANTAELLA, 2004, p. 25-26). No final do século XIX, a alfabetização já começava a ser obrigatória em alguns países e o público feminino emergia como público leitor. Portanto, a revolução industrial deve ser também lembrada no contexto da palavra escrita porque foi nessa época que a palavra começou a viajar do livro para os jornais, para a publicidade, para os cartões postais. Além disso, começou a sofrer a concorrência e competição com o mundo da imagem fotográfica e especialmente da cinematográfica. Enquanto a fotografia era empregada
na função de coadjuvante da palavra impressa nos jornais, o cinema se afirmava na sua autonomia de linguagem narrativa visual e logo a seguir audiovisual. Os modernos encontraram na fotografia e no cinema o que lhes era mais contemporâneo: a velocidade da reprodução e substituição incessante de imagens, pois essas imagens fazem parte de uma cultura organizada sob o signo do choque, de indivíduos que se acostumaram com os desencontros da metrópole. As imagens são, assim, espécies de anúncios e síntese das construções de seu tempo: imagens que fascinam e prendem a visão para, logo em seguida, morrerem prematuramente ao serem substituídas por outras imagens. Com isso, as imagens, além de ajudarem a vender mercadorias, elas mesmas também se transformam em mercadorias. Elas podem ser reproduzidas à exaustão e encontradas em qualquer partejornais, revistas, panfletos, vitrines, letreiros e esquinas das cidades. Ao mesmo tempo em que exercem
poder sobre os modernos, para exercer esse poder, as imagens precisam se dessacralizar. Como tudo o mais, não passam de poeira fugidia que se desmancha no ar (ibid., p. 28). 4. O ADVENTO DA CULTURA DIGITAL Entretanto, o grande marco de transformação da linguagem escrita se deu quando, já nos anos 1980, no videotexto, ela saltou do papel para a tela eletrônica. Trata-se de um sistema multimídia que incorporou a escrita como um de seus sistemas componentes. O videotexto incorporava o monitor da televisão, uma tela de varredura muito lenta como suporte para a produção da linguagem alfanumérica que se estruturava em pixels dilatados, formando imagens. O monitor, acoplado a linhas telefônicas, utilizava essas linhas
como meio de transmissão (SANTAELLA, 1996, p 138-139). A par da produção multimídia que propiciava, o que interessa aqui destacar é o fato de que esse novo meio inaugurou a passagem da escrita, daí para frente irreversível, do suporte papel para o suporte da tela eletrônica. Por isso mesmo, deve ser considerada a paternidade do videotexto em relação à internet na incorporação do código escrito que nesta passou a vigorar. De fato, foi na tela eletrônica que a escrita veio encontrar seu novo habitat promissor a partir do advento da cultura digital que emergiu quando o computador se transformou em um meio de comunicação planetário.
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Antes da digitalização, os suportes das diferentes linguagens eram incompatíveis, cada linguagem possuía o seu próprio suporte e mídia: papel-texto, película-fotografia ou filme, fita magnética-som ou vídeo. Atualmente, a transmissão da informação digital é independente do meio de transporte (fio do telefone, onda de rádio, satélite de televisão, cabo etc.). Sua qualidade permanece perfeita e sua estocagem é barata. Enquanto a televisão e o rádio nos trazem notícias e informação em massa de todo o mundo, as tecnologias sondadoras, como o telefone ou as redes de computadores, permitem-nos ir instantaneamente a qualquer ponto e interagir com esse ponto. Essa é a qualidade da profundidade, a possibilidade de tocar aquele ponto e ter um efeito demonstrável sobre ele através das nossas extensões eletrônicas. Já não nos
contentamos com superfícies. Estamos mesmo tentando penetrar o impenetrável: os interiores da tela do vídeo. São inumeráveis as consequências do universo digital. No que diz respeito às questões da escrita, decidi destacar duas. A primeira é aquela que o estado da arte atual coloca no topo do iceberg: as redes sociais e os novos gêneros discursivos que inauguram. De fato, temos aí o hype do momento. Não há quem esteja envolvido, de uma forma ou de outra, nas questões da cultura digital, que não tenha as redes sociais como primeira na lista de suas preocupações ou ocupações. Nos primeiros tempos da internet, nos anos 1990, no estágio da Web 1.0, alguns dos tópicos centrais relativos à comunicação digital eram: a digitalização como esperanto das máquinas, a convergência das mídias, a interface, o ciberespaço, a interatividade, todos eles componentes da emergente
cibercultura. Logo depois, em plena Web 2.0 já entrando no estágio da Web 3.0, as novas palavras-chave passaram a ser: blogosfera, wikis, aplicativos e redes sociais digitais, estas últimas incrementadas pela explosão da comunicação móvel. No ciberespaço, conversamos e discutimos, engajamo-nos em intercursos intelectuais, realizamos ações comerciais, trocamos conhecimento, compartilhamos emoções, fazemos planos, trazemos ideias, fofocamos, brigamos, apaixonamo-nos, encontramos amigos e os perdemos, jogamos jogos simples e metajogos, flertamos, criamos arte e desfiamos um monte de conversa fiada. Fazemos tudo que fazem as pessoas quando se encontram, mas o fazemos com palavras, imagens, vídeos e nas telas das interfaces computacionais. Milhões de nós pertencem a alguma rede social digital, na qual nossas identidades se misturam e interagem eletronicamente, independente do tempo e do local.
A cultura digital não pode ser vista como uma subcultura on line única e monolítica, mas como um “ecosistema de subculturas” (Rheingold, 1993), uma mistura de micro, macro e megacomunidades, abrigando milhares de microcomputadores que vivem em seus interiores, usufruindo de conexão imediata, interação, comunicação ubíqua, quer dizer, em quaisquer lugares e a qualquer hora do dia ou da noite. Em suma, no nível das interfaces de usuários, o ciberespaço reinventa o corpo, a arquitetura, o uso do espaço urbano e as relações complexas entre eles naquilo que chamamos de “habitar” (Di Felice, 2009). Quando McLuhan declarou que “o meio é a massagem”, ele mal podia imaginar a internet como a conhecemos hoje, muito menos a pletora de dispositivos digitais que nos rodeiam e que nos pertencem Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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desde que se deu o acesso à internet na primeira metade dos anos 1990. Redes sociais, blogs, games, compartilhamento de textos, imagens, músicas, falas e vídeos, telefones celulares inteligentes, YouTube, Twitter, Facebook, Linkedin foram se tornando partes inseparáveis de nossas vidas. Mal se pode crer que, há duas décadas, todos esses aplicativos não eram sequer vislumbrados. Enquanto para as gerações mais maduras, parece que o chão está sempre tremendo à mercê de tantas mudanças, para as novas gerações esse é o mundo que lhes é familiar (ver ROCHA; SANTAELLA, orgs, 2015).
5. A ESCRITA NA CONVERGÊNCIA MIDIÁTICA A segunda consequência do universo digital é ainda mais profunda e localiza-se nas bases do iceberg. Por ser menos gritantemente visível, é menos lembrada e tratada, a saber, as mudanças substanciais na constituição das linguagens humanas que o mundo digital introduziu e que se manifestam nas misturas inextricáveis entre o verbal, o visual e o sonoro, justamente aquilo que, em outro trabalho, chamei de Matrizes da linguagem e pensamento (Santaella, 2001) e que hoje encontram a expressão de suas misturas e hibridações na linguagem hipermidiática das redes digitais. Quando apertamos o botão de um computador ou tocamos na tela de um dispositivo móvel, o que temos diante de nossos olhos? Um fluxo organizado de sinais e signos, pistas, cascatas, imagens e mesmo sons, tudo isso compondo um complexo sígnico inteiramente novo que passamos a chamar de hipermídia,
ou seja, a mistura inextricável do hipertexto (nós e conexões entre partes de um campo informacional) com a multimídia (pontos de conexão não necessariamente compostos de textos, mas também de imagens fixas ou animadas, sons, vídeos etc.). A mistura densa e complexa de linguagens, feita de hiper-sintaxes multimídia -- povoada de símbolos matemáticos, notações, diagramas, figuras, também povoada de vozes, música, sons e ruídos -inaugura um novo modo de formar e configurar informações, uma espessura de significados que não se restringe à linguagem verbal, oral ou escrita, mas se constrói por parentescos e contágios de sentidos advindos das múltiplas possibilidades abertas pelo som, pela visualidade e pelo discurso verbal, algo que parece dar guarida à hipótese de que, nas raízes de todas as misturas possíveis de linguagens, encontram-se sempre as três matrizes fundamentais: a verbal, a visual e a sonora, em todas as variações que cada uma
delas realiza. O ciberespaço se apropria, sem nenhum limite, de todas as linguagens pré-existentes: a narrativa textual, a enciclopédia, os quadrinhos, os desenhos animados, o teatro, o filme, a dança, a arquitetura, o design urbano etc. Nessa malha híbrida de linguagens, nasce algo novo que, sem perder o vínculo com o passado, emerge com uma identidade própria. Trata-se de uma reconfiguração radical das linguagens, responsável por uma ordem simbólica específica que afeta nossa constituição como sujeitos culturais, nossos hábitos de vida e os laços sociais que estabelecemos.
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6. A NARRATIVA TRANSMIDIA A narrativa, o ato de contar estórias, acompanha a humanidade desde tempos imemoriais. Pode-se até afirmar que a ficção faz parte integrante da vida humana. Algumas das inscrições nas cavernas já eram flagrantes narrativos, fragmentos congelados de uma narrativa subjacente. Então, os mitos e os ritos, responsáveis pela representação e reencenação mágica do mundo, são formas narrativas que, no ocidente, se tornaram mais complexas na epopeia, canto falado dos feitos heroicos do homem, em contraponto com as tragédias, tramas de submissão do ser humano aos incontornáveis enigmas do destino.
As narrativas orais, os contos maravilhosos e as novelas medievais culminaram na estória crepuscular do fidalgo Don Quixote, desencontrado em um mundo transmutado que não podia mais dar acolhida aos seus ideais. Quebrada a casca do ovo da novela, dela emergiu a história secular do romance e da dramaturgia do herói e do anti-herói numa explosão de gêneros: fantasia, aventura, ficção científica, detetive, mistério, horror, guerra etc. Então, a narrativa encontrou morada no cinema, nos quadrinhos, no rádio e nas telenovelas. Por fim, hoje, ela também habita confortavelmente as mais variadas formas, sempre interativas, dos games. Para os games convergem adaptações, traduções e misturas dos mais distintos tipos de narrativas, especialmente das fantasias medievais e dos filmes. De fato, a conversação dos games com outras mídias, especialmente filmes, é abusivamente frequente. Muitos designers de games configuram elementos da
estória a partir de filmes existentes ou gêneros literários porque os games são muito aptos para se apropriar deles. Os games não apenas recontam as estórias, mas expandem nossa experiência prévia das estórias e o modo de interpretá-las, por meio da imersão e interação. A conexão entre filmes e games intensifica-se cada vez mais. Muitas produções, desenvolvimentos e campanhas de filmes e games tornaram-se agora interconectados. Um bom exemplo é a série dos filmes Matrix, cujos games foram complementos dos filmes, expandindo certas cenas que não foram exploradas no cinema. Segundo Henry Jenkins (2008), estamos cada vez mais vivendo em um mundo em que contar estórias se tornou transmidiático. Com isso, as narrativas pouco dependem de um talento individual, dependendo muito mais da contribuição que cada trabalho traz para uma economia narrativa muito maior. Contos, novelas, romances, filmes, quadrinhos, telenovelas, séries televisivas e games encontram seu lugar
em um sistema narrativo amplo e híbrido em que cada mídia contribui com o que tem de melhor, cada uma delas constituindo uma experiência relativamente autônoma, de modo que a mais rica compreensão de uma estória é obtida por aqueles que seguem a narrativa através de vários canais. Assim, a narrativa transmídia é compreendida como estórias cujas partes significativas são contadas no intercurso de diferentes mídias, ou seja, uma história contada numa mídia pode e deve ser expandida para outra e seu universo pode ser ampliado por meio de um romance, assim como seu mundo pode ser vivenciado e explorado no formato de um videogame. Introduzida num romance ou num filme, a estória é transposta e recontada pela televisão, quadrinhos, games etc. Assim, a compreensão da estória, Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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obtida por meio de diversas mídias, sustenta a experiência narrativa do receptor e motiva o consumo simbólico continuado. Não resta dúvida de que a transmídia produz uma dispersão textual por diferentes linguagens e mídias, mas promove também reformulações no ecossistema audiovisual, ao criar novas formas de envolvimento que englobam e expandem as antigas práticas de produção e consumo de conteúdos. Neste processo, a centralidade de uma mídia é substituída por múltiplas plataformas que intensificam o trânsito de conteúdos entre as diversas mídias. Assim, um produto midiático como um filme transita para um game, ou uma telenovela, produzida para ser veiculada na TV, transita pelas diversas telas dos dispositivos móveis, além de sites como Youtube e as redes sociais, o Facebook e o Twitter, entre outras.
As novas audiências assistem à televisão na internet, acessam conteúdo pelo celular e trocam informações nas redes sociais, de forma simultânea. Assistir a uma telenovela e, ao mesmo tempo, acessar o Twitter ou o Facebook tornou-se uma experiência bem divertida, pois os comentários que surgem nas redes aumentam a temperatura da narrativa pela participação online de um público que deseja, sobretudo, colaborar e vivenciar um mundo de estórias em tempo real, por meio de múltiplas telas. A portabilidade e a multiplicidade de telas já fazem parte de uma realidade compartilhada (SANTAELLA, 2013) Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games ou experimentado como atração de um parque de diversões. Ao fim e ao cabo, a compreensão obtida por meio de diversas mídias sustenta uma profundidade de
experiência que motiva mais consumo é o que Jenkins (2008) defende. 7. NOTAS FINAIS Tudo isso nos leva a concluir que a hipermídia e a transmídia se constituem inegavelmente nas linguagens do nosso tempo. Isso não significa -- e tenho chamado atenção com veemência para essa questão – que essas linguagens dominantes no estado a arte atual tenham levado as formas de linguagem e de cultura preexistentes ao desaparecimento. Felizmente, nenhuma nova formação de linguagem leva as anteriores ao desaparecimento. A escrita não fez desaparecer a oralidade. A comunicação massiva não conduziu ao fim do livro, assim como a
cultura digital não levou a cultura massiva ao seu fim. Ao contrário, essas formas de linguagem e ambientes culturais que criam estão em convivência, nem sempre idílica, muitas vezes conflituosa, mas continuam todas elas vivas. Isso explica a hiperdensidade e riqueza potencial da cultura contemporânea.
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‘BLACK BLOCS’ NA FOLHADE S.PAULO: A RELAÇÃO ENTRE GÊNERO DISCURSIVO E DISPOSITIVO-K NO CONTROLE DA EXPLICITUDE/ IMPLICITUDE DE SIGNIFICADOS ‘BLACK BLOCS’ IN FOLHADE S.PAULO: THE RELATIONSHIP BETWEEN SPEECH GENRE AND K-DEVICE IN THE CONTROL OF EXPLICITNESS/ IMPLICITNESS OF MEANINGS Alvaro Magalhães Pereira da Silva1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP alvaromps@yahoo.com RESUMO Com base na teoria dos gêneros discursivos fundada por Bakhtin e na teoria acerca dos dispositivos-K proposta por Van Dijk, o presente artigo procura verificar a correlação entre gêneros e mecanismos que controlam, durante a produção de um enunciado, a explicitude ou a implicitude de uma determinada informação. Para isso, foram analisados os casos de explicitude e implicitudeda significação da expressão “black bloc” em 63 textos publicados na Folha de S.Paulo a partir de junho de 2013. Concluiu-se que o jornal usa estratégias distintas no gênero relato e no gênero comentário. Palavras chave: gêneros discursivos; dispositivos-K; imprensa escrita ABSTRACT Based on the theory of speech genres founded by Bakhtin and on the theory of K-devices proposed by Van Dijk, this article seeks to verify the correlation between genres and mechanisms that control, during the production of a statement, the explicitness or the implicitness of certain information. For this, it was analyzed the explicitness’s cases and the implicitness’s cases of the meaning of the expression "black bloc" in 63 texts published by Folha de S.Paulo from June 2013. It was concluded that the newspaper uses different strategies on genre report and on genre comment. Keywords: speech genres; K-devices; written press
1. INTRODUÇÃO A submissão deste artigo à revista De Letra em Letra, do Departamento de Letras da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-UNIFESP), pretende contribuir para o debate a respeito dos mecanismos que controlam, durante a produção de um enunciado, a explicitude ou a implicitude de uma determinada informação, considerada ou não, pelo enunciador,
conhecimento compartilhado por seus receptores. Mais especificamente, minha intenção é colaborar com as discussões a respeito dos dispositivos-K, conforme propostos por Van Dijk (2003; 2012a; 2012c), relacionandos-os à teoria dos gêneros discursivos, fundada por Bakhtin (2011)2. 1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com financiamento pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Bacharel em Ciência da Comunicação, com ênfase em Jornalismo, pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). 2
As ideias expostas neste artigo são fruto de estudos e discussões realizados ao longo do segundo semestre de 2014 dentro da disciplina “Texto e contexto: perspectivas para a pesquisa e o ensino”, ministrada pela Profa. Dra. Vanda Elias, pelo Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa da PUC-SP. É por considerar, como propõe Van Dijk que a escolha do tópico de pesquisa científica não é neutra, mas depende do engajamento do pesquisador (VAN DIJK 2012b, p.15), que decidi redigir o artigo predominantemente na primeira pessoa do singular. De todo modo, ressalto que o que exponho é resultado de um esforço coletivo de aproximação de conceitos teóricos, discutidos e aplicados, semana após semana, durante todo um semestre.
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O objeto central deste artigo é, portanto, a correlação entre dispositivos-K e gêneros discursivos. Para isso, decidi me debruçar sobre um corpus que me permitisse acompanhar o processo de atualização de estratégias de enunciação que levam um enunciador a explicitar ou deixar implícita determinada informação. Creio que a imprensa escrita é uma fértil base de estudos a respeito de transformações discursivas, pois as rotativas, que dia após dia imprimem novas páginas de jornais, eternizam nuances de mudanças. Talvez seja possível considerar essas páginas como fotografias de momentos de uma crise. Não de uma crise que beire à hecatombe, mas de uma crise corriqueira, com as hesitações que costumam anteceder tomadas de decisão. No presente artigo, analiso, então, variações causadas pelo uso massivo da expressão “black bloc”3,
a partir das manifestações de junho de 2013 no Brasil, nos textos da Folha de S.Paulo. Não que, em 2013, a expressão “black bloc” fosse inédita no jornal. Há registros esporádicos dela desde o início dos anos 2000, ao menos. Mas o que era raro tornou-se frequente – não só no jornal, como na sociedade brasileira. E a quantidade cobrou seu preço: a partir de determinado momento, a Folha de S.Paulo teve de decidir se a expressão já era familiar a seus leitores. Pretendo, em linhas gerais, esboçar uma resposta à seguinte questão: a Folha de S.Paulo adota, de forma homogênea em textos de diferentes gêneros discursivos, os dispositivos-K como estratégia para controlar a explicitação ou não da significação da expressão “black bloc”? Gostaria de esclarecer que a análise que proponho é apenas uma aproximação inicial ao problema. Vou-me deter em um curto período de três meses, contatos a partir da primeira aparição da expressão
“black bloc” no jornal após o início das manifestações contra o aumento da tarifa de ônibus, metrô e tremem São Paulo, em junho de 20134. A seguir, no item 2 deste artigo, procuro fazer uma breve revisão sobre teorias acerca dos dispositivos-K e a respeito dos gêneros discursivos, nas quais apoiarei a análise. Posteriormente, no item 3, exponho mais detalhadamente o corpus que será analisado e explicito o procedimento metodológico. Os resultados constam do item 4. No item 5, o último deste artigo, faço as considerações finais. 2. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS Iniciarei as considerações teóricas deste artigo com uma breve revisão, no subitem 2.1, das
proposições de Van Dijk (1999, 2003, 2012a, 2012c) a respeito dos dispositivos-K inseridos na teoria dos modelos de contexto. Posteriormente, no subitem 2.2 discorrerei resumidamente acerca da teoria dos gêneros discursivos, fundada por Bakhtin, e sua aplicação à imprensa escrita, conforme proposições de Chaparro (1998) e Charaudeau (2012). 3
A expressão, importada da língua inglesa, significa “bloco preto” ou “bloco negro”. Surgiu na imprensa inicialmente em textos relativos a protestos anticapitalistas internacionais. Como mencionarei adiante, passa a ser usado em 2013também em textos ligados às manifestações que tiveram início no país em junho daquele ano. 4
Após o prefeito Fernando Haddad (PT) e o governador Geraldo Alckmin (PSDB) anunciarem o reajuste do preço das passagens de ônibus, metrô e trem de R$ 3,00 para R$ 3,20, no final do primeiro semestre de 2013, uma série de protestos, convocados pelo Movimento Passe Livre (MPL), tomaram a cidade e, em seguida, diversas regiões do País. As tarifas acabaram revertidas ao valor inicial, mas as manifestações continuaram, incorporando novas demandas.
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2.1. Dispositivo-K e controle de conhecimento compartilhado A administração do conhecimento compartilhado é, para Van Dijk (2012a), um fator central na produção do discurso. O que sabemos, ou acreditamos saber, a respeito do conhecimento de nossos receptores influencia, segundo o autor, o modo como falamos ou escrevemos, fazendo com que explicitemos ou não determinadas informações. Essa influência, porém, depende da maneira como interpretamos uma situação comunicativa. Ou seja, é controlada por o que Van Dijk chama de modelo de contexto.
Koch, Morato e Bentes (2011) apontam que o conceito de modelo de contexto foi introduzido, na obra de Van Dijk, no final dos anos 1990. No artigo “Context and Experience Models in Discourse Processing”, publicado em 1999, Van Dijk afirma: Cada participante de um evento comunicativo tem seu próprio modelo de contexto, que define a sua interpretação pessoal da situação. Entretanto, interação discursiva e comunicação só são possíveis quando tais modelos são ao menos parcialmente compartilhados, sincronizados ou negociados. Na realidade, os participantes podem produzir em conjunto e atualizar continuamente os modelos de cada um. Falantes podem ter modelos parciais dos modelos de contexto de receptores e vice-versa, especialmente sobre o conhecimento que eles compartilham.5 (VAN DIJK, 1999, p.130)
Pode-se dizer que é com base no modelo de contexto que desenvolvemos estratégias discursivas.
Em 2003, ao analisar o discurso proferido logo após os atentados de 11 de Setembro pelo então primeiroministro britânico Tony Blair na House of Commons, a câmara baixa do Reino Unido, Van Dijk (2003, p.120) enfatiza: “Não há virtualmente nenhum nível ou dimensão do discurso que não seja (também) controlada pelos modelos de contexto6”. É nesse artigo que Van Dijk (2003, p.94) introduz uma sigla técnica para se referir ao mecanismo que, dentro do modelo de contexto, regula a expressão ou não de um determinado conhecimento no discurso. Trata-se do dispositivo-K7. Em linhas gerais, o dispositivo-K tenderia a deixar implícitos conhecimentos considerados compartilhados e a explicitar conhecimentos que o enunciador acredita serem desconhecidos por seus receptores. Três anos mais tarde, em 2006, na obra Discurso e Contexto, traduzida para o português em 2012, o
autor aborda o modo de funcionamento do dispositivo-K: 5
Trecho original em inglês: “Different participants in a communicative event each have their own, personal context model, defining their personal interpretation of the current situation. However, discursive interaction and communication is possible only when such models are at least partly shared, synchronized, or negotiated. Indeed, participants may jointly produce and ongoingly update each other's models. Speakers may have partial models of the context models of recipients and vice versa, especially about the knowledge they share”. Traduzido pelo autor deste artigo. 6
Trecho original em inglês: “There is virtually no level or dimension of discourse that is not (also) controlled by context models”. Taduzido pelo autor deste artigo. 7
Em inglês, a sigla técnica é chamada de “K-device”. Em Discurso e Contexto, Rodolfo Ilari ora traduz a expressão com mecanismo-K, ora como dispositivo-K. Optei pela segunda forma para, ao mesmo tempo, manter um padrão e não fugir ao modo como o conceito já foi tratado em português. No entanto, creio que a expressão talvez pudesse ser traduzida como estratagema-K. O Cambridge dictionary of American English for speakers of Portuguese sugere essa tradução nos casos em que “device” se refere a um método, e não a um objeto.
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O problema teórico e empírico é como o mecanismo-K atua de fato. Como é que os falantes sabem o que os receptores sabem? Obviamente, não podemos supor que o enorme conjunto de conhecimentos dos receptores faça parte do mecanismo-K dos modelos de contexto (relativamente simples) dos falantes (para começar, se assim fosse, não teríamos como explicar de que modo esse enorme conjunto de conhecimentos foi parar aí, sem comunicação prévia). (VAN DIJK, 2012a, p.123)
Van Dijk, então, propõe cinco estratégias do dispositivo-K, duas delas para casos de conhecimento pessoal, uma para casos de conhecimento social específico e outras duas para casos de conhecimento sociocultural geral. As duas estratégias de conhecimento pessoal referem-se a conhecimentos da vida privada expressos
ou não em discursos inseridos em situações de comunicação cotidianas. As estratégias K1 e K2 são definidas da seguinte forma: K1: Assuma que os receptores sabem o que eu lhes disse antes. [...] K2: Assuma que os receptores não sabem do conhecimento pessoal que eu adquiri desde minha última comunicação com eles. (VAN DIJK, 2012a, pp.124-125)
Já a estratégia de conhecimento social específico, ou seja, conhecimento sobre eventos públicos pontuais, é particularmente interessante para os fins deste artigo: “o que acontece quando estão em jogo outros tipos de conhecimentos e pessoas que não conhecemos?”, questiona Van Dijk (2012a, p.126). Para responder, o autor cita o caso dos jornais: “K3: Assuma que os receptores conhecem aquilo de que nós (isto é, o jornal) já os informamos antes”. As duas últimas estratégias referem-se ao conhecimento sociocultural geral, ou seja, eventos públicos de longa duração. Ainda usando a imprensa como exemplo, diz o autor: [...] o jornalista pode noticiar fatos novos do Iraque, e não se supõe normalmente que essas notícias sejam conhecidas pelos leitores. Mas o jornalista pressupõe que os leitores, em sua maioria, sabem que o Iraque é um país, sabem o que vem a ser um presidente, o que são soldados e o exército, além de uma grande soma de ‘conhecimentos gerais sobre o mundo’ (VAN DIJK, 2012a, pp.126-127)
A questão crucial, segundo Van Dijk (2012a, pp.126-127), é a mesma do conhecimento social específico: “como os jornalistas sabem que os leitores sabem essas coisas gerais?” Para resolver o problema, o autor parte do princípio de que “o conhecimento adquirido pelos jornalistas e pelos leitores tende a ser mais ou menos o mesmo numa mesma cultura ou comunidade”. Tais comunidades são chamadas de comunidades epistêmicas. A estratégia é, então, formulada da seguinte forma por Van Dijk (2012a, p.128): “K4: Assuma que os leitores têm o mesmo conhecimento sociocultural que você”. A regra, segundo Van Dijk, se aplica também a comunidades epistêmicas diferentes. Nesse aspecto, o autor chama a atenção para a importância da representação das identidades sociais no modelo de contexto. É por meio dessa representação que o enunciador poderá pressupor determinado conhecimento de seus receptores. Com base nessa observação, a quinta e última estratégia é proposta por Van Dijk Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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(2012a, p.129) nos seguintes termos: “K5: Assuma que os receptores compartilham o conhecimento de todas as comunidades epistêmicas mais abrangentes de que fazem parte.” Ao revisar as bases teóricas a respeito do conhecimento em artigo mais recente, “Discourse and Knowledge”, de 2012, Van Dijk utiliza também uma sigla técnica para comunidade epistêmica, que passa a ser chamada de comunidade-K. O autor define conhecimento como um “justificada crença compartilhada pelos membros de uma comunidade (epsitêmica)”8 e prossegue: A justificativa (validação etc) de crenças baseia-se nos critérios epistêmicos ou padrões de uma comunidade de conhecimento (comunidade-K), tais como observação confiáveis, fontes ou inferências. Diferentes comunidades-K podem ter diferentes critérios-K. Os critérios-K podem ser formulados por organizações reconhecidas, instituições ou especialistas da comunidade9. (VAN DIJK 2012c, p.587)
Tendo feito esse breve esboço da teoria de Van Dijk acerca dos modelos de contexto e dos dispositivos-K, vamos às considerações a respeito dos gêneros discursivos da imprensa escrita.
2.2. Gêneros discursivos na imprensa escrita Ao propor a teoria dos gêneros discursivos, Bakhtin (2011, p.262) os define como “tipos relativamente estáveis de enunciados”. Tais tipos, porém, não surgem do nada: são, segundo o autor,
reflexos dos diferentes campos de atividade humana. Cada gênero relaciona-se a um campo. E essa relação entre gênero e campo possui um significativo papel comunicativo: por meio do gênero, um ouvinte responsivo reconhece o campo e, também por meio do gênero, posiciona-se diante de um enunciado. A imprensa escrita, como um produto socialmente complexo, comporta diversos tipos de atividades. A discussão a respeito do assunto excede os objetivos deste artigo, mas vale ressaltar que tal complexidade pode ser constatada por meio da análise de atos de fala (AUSTIN 1990; SEARLE 1981) dos enunciados jornalísticos: o ato de fala de crônica, por exemplo, não é o mesmo que o de uma reportagem. Ancorado na pragmática, Chaparro (1998, p.123) sugere a divisão da produção jornalística em dois grandes gêneros: o relato e o comentário. A proposição surge em substituição à dicotomia entre texto informativo e texto opinativo. Segundo o autor, informação e opinião aparecem simultaneamente tanto no
relato como no comentário jornalístico: [...] a consistência do relato jornalístico exige cada vez mais a elucidação opinativa, assim como a clareza e o sentido do comentário dependem da qualidade das informações que lhe dão sustentação. (CHAPARRO 1998, p.115)
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Trecho original em inglês: “[…] justified belief shared by the members of an (epistemic) community”. Traduzido pelo autor deste artigo.
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Trecho original em inglês: “Justification (validation, etc.) of beliefs is based on the epistemic criteria or standards of the knowledge community (K-community), such as reliable observation, sources or inference. Different K-communities may have different K-criteria. K-criteria may be formulated by recognized organizations, institutions or experts of the community.” Traduzido pelo autor deste artigo.
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Artigos, crônicas, caricaturas e charges estariam, segundo Chaparro (1998), dentro do gênero comentário, enquanto reportagens, quadros de indicadores econômicos e roteiros de cinema, por exemplo, se enquadrariam no gênero relato. Embora essa classificação pareça mais satisfatória do que divisão entre gênero informativo e gênero opinativo, ainda suscita problemas em relação a algumas produções limítrofes, como entrevistas e cartas de leitores. Um caminho para solucionar o impasse foi sugerido recentemente por Charaudeau (2012). Ao propor uma tipologia dos textos de informação midiática, o autor acrescenta ao relato e ao comentário um terceiro tipo discursivo: a provocação. A atividade jornalística pode ser dividida, então, entre relatar
acontecimentos, comentar acontecimentos e provocar acontecimentos (CHARAUDEAU, 2012, p.207). A entrevista se enquadraria no terceiro caso. Charaudeau (2012) também chama a atenção para o tipo de instância enunciativa, caracterizada pela origem do sujeito falante, que pode estar na própria mídia (instância interna) ou fora dela (instância externa). Embora essa subdivisão conforme a instância enunciativa não esteja contemplada pelas propostas originais de Bakhtin (2011, p.262), ela se aproxima do modo como Van Dijk trata da questão. Para Van Dijk (2012a), além dos gêneros reconhecidos por sua estrutura, há gêneros reconhecidos contextualmente. Dessa forma, ainda que um comentário feito por uma instância interna e outro feito por uma instância externa possam se assemelhar em conteúdo temático, estilo e construção composicional, é possível diferilos pelo contexto. Nos casos dos jornais, uma série de elementos textuais, gráficos e semióticos dá pistas
sobre a origem do sujeito falante. Tanto Chaparro como Charaudeau expandem suas classificações. Para cada gênero, Chaparro define espécies, enquanto Charaudeau ainda leva em consideração, na constituição do gênero, entre outros fatores, o tipo de dispositivo. Mas creio que, para os fins deste artigo, podemos, com base na bibliografia citada, nos limitarmos à seguinte classificação dos gêneros discursivos da imprensa escrita: (a) relatos; (b) comentários, subdivididos em comentários internos e comentários externos; e (c) provocações.
3. APRESENTAÇÃO DO CORPUS E PROCEDIMENTO METODOLÓGICO
O corpus principal que compõe este artigo – ao qual chamarei apenas de corpus – é composto por 63 textos da edição impressa do jornal Folha de S.Paulo publicados entre 11 de junho e 10 de setembro de 2013 em que aparece a expressão “black bloc”. Para chegar a ele, inseri no mecanismo de busca do site da Folha de S.Paulo destinado a encontrar ocorrências na edição impressa do jornal as expressões “black bloc” e “black blocs”. Como uma pesquisa prévia havia revelado que a grafia da expressão demorou certo tempo para se estabilizar, fiz buscas também por “black block” e “black blocks”. Após recolher 67 ocorrências, apresentadas Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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descontextualizadas de suas páginas, procurei uma a uma na versão digital da edição impressa do jornal 10, contida em arquivo oferecido a assinantes. Acabei por descartar quatro dos 67 textos que não se encontravam na versão digital da edição impressa. É importante salientar que a Folha de S.Paulo possui duas versões diárias. A primeira delas é impressa por volta das 20h e distribuída para as regiões mais distantes do parque gráfico, sobretudo para outros estados (que não São Paulo). A segunda versão é impressa por volta das 23h e distribuída para as regiões mais próximas, caso da capital e da Grande São Paulo. Até a 1h, quando o processo de impressão da segunda versão está em andamento, algumas páginas ainda podem ser substituídas, sem a paralisação total das rotativas, atualizando o conteúdo do jornal que chega aos bairros mais centrais da capital paulista.
Tal esquema, adotado para tornar a distribuição viável, não é exclusivo da Folha de S.Paulo e pode ser notado particularmente no caderno de Esportes nos dias seguintes a partidas noturnas: jornais vendidos em outros estados não costumam noticiar o resultado de jogos da noite anterior que tenham terminado após as 20h. A versão digital da edição impressa é a reprodução da edição impressa às 23h. Embora não tenha confirmação, acredito que os quatro textos descartados por não constarem da versão digital da edição impressa tenham sido publicados na edição das 20h e acabaram por ser substituídos por outros mais atualizados. Optei pelo descarte dos textos não encontrados por considerar que eles poderiam duplicar variáveis, já que, por se tratarem de atualizações, os textos que os substituíram foram, provavelmente, escritos a partir dos mesmos pressupostos acerca do conhecimento compartilhado pelos leitores.
É importante também destacar que, no levantamento, não considerei as ocorrências de primeira página. Creio que a análise de tais ocorrências mereça uma atenção especial, pelo fato de possuírem, com maior intensidade, uma função de captação de leitores. Charaudeau chama a atenção para o fato de que essa função, denominada por ele de visada de captação, apresenta-se em tensão com a função informativa do jornal, que o autor chama de visada de informação (CHARAUDEAU, 2012, pp.86-87). O período de três meses foi delimitado por dois motivos. O primeiro é empírico: ao recolher o corpus, notei que esse lapso de tempo foi suficiente para que determinadas transformações emergissem. O segundo é estatístico: o período ofereceu um número ocorrências suficiente para que fosse possível analisar tendências11. Como um corpus de apoio, para que pudesse confirmar a intensidade da disseminação da expressão
“black bloc” a partir de junho de 2013, levantei também as ocorrências do termo desde o ano 2000 até essa data. Para realizar a análise, classifiquei os textos do corpus conforme a data em que foram publicados e conforme os seguintes gêneros discursivos:
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A versão digital da edição impressa da Folha de S.Paulo é a transposição do jornal impresso para o meio digital. Não se trata, portanto, da versão on-line da Folha de S.Paulo, que, embora possua um número maior de textos, não contém toda produção publicada na edição impressa. 11
Uma amostra costuma ser considerada estatisticamente relevante quando contém um número de unidades igual ou superior a 30. Como falei anteriormente, o corpus deste artigo é composto por 63 textos.
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(a) Relatos: reportagens, notas e boxes explicativos (b) Comentários internos: colunas e artigos de autores que pertencem ao quadro de profissionais do jornal (c) Comentários externos: artigos de autores que não pertencem ao quadro de profissionais jornal (d) Provocação: entrevistas e sabatinas (e) Cartas de leitores Ainda que as cartas possam ser inseridas, conforme a revisão bibliográfica, na categoria comentário externo, preferi separá-las por considerar uma produção bastante peculiar e rica em pistas a respeito de
como os leitores processam o discurso do jornal. Saliento ainda que, embora tenha inserido as colunas, em geral, dentro gênero comentário, uma delas foi considerada relato, pelo fato de a expressão “black bloc” ter sido usada dentro de uma nota em que a informação predomina sobre a opinião. Trata-se da nota “Boato” publicada na coluna de Keila Jimenez em 23 de agosto. Eis a íntegra do texto: Circulou ontem nas redes sociais que um produtor do jornalismo de São Paulo da Globo teria sido espancado pelos "Black Blocs" durante a cobertura de uma manifestação no centro da cidade. Segundo funcionários da Globo, o produtor realmente feriu-se durante a cobertura, mas não foi vítima de espancamento. Ele caiu sozinho com o equipamento e quebrou o maxilar. (FOLHA DE S.PAULO, 23 ago. 2013, p.E10).
A classificação de coluna tanto como comentário quanto como relato, dependendo de seu teor, foi
prevista por Chaparro (1998, p.123). A partir dessas subdivisões, busquei a primeira citação da expressão “black bloc” em cada texto e procurei identificar, em adjetivações ou apostos, se a significação de “black bloc” era ou não explicitada – ou seja, se havia ou não alguma definição de “black bloc”. Acrescentei, então, essa variável (significação implícita/significação explícita) a cada texto do corpus. Para analisar as tendências no corpus, adotei um método estatístico. Inicialmente, para confirmar a intensificação do uso da expressão, comparei a incidência de “black bloc” no corpus principal com a incidência no corpus de apoio. Em um segundo momento, procurei verificar a incidência da expressão nocorpus principal conforme o gênero discursivo. Dividi, então, o período analisado em seis quinzenas e me detive nos dois gêneros discursivos mais comuns – o relato e o comentário interno – para
verificar como em cada um deles é tratada, ao longo do tempo, a necessidade de explicitar ou não a significação de “black bloc”. 4. RESULTADOS A comparação do corpus de apoio, composto pelos textos que utilizam expressão “black bloc” de janeiro de 2000 a maio de 2013, com o corpus principal, composto pelos textos que utilizam a mesma expressão entre 11 de junho e 10 de setembro de 2013, confirma a intensificação do uso da expressão no jornal. Enquanto, no período de quase 14 anos abarcado pelo corpus de apoio, a expressão “black bloc” foi Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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usada em 10 textos, nos três meses que compõem o corpus principal, há, como já foi dito, 63 textos com ocorrências do termo. É interessante notar que, após a expressão ter sido usada em nove textos publicados entre 2001 e 2003, todos ligados a protestos internacionais antiglobalização, ela desaparece por um período de 10 anos, ressurgindo em janeiro de 2013, em relato a respeito de eventos da chamada Primavera Árabe12, seis meses antes de eclodirem os protestos no Brasil. A partir de julho, a expressão passa a ser usada para se referir a acontecimentos nacionais. Ao longo dos três meses, nota-se também um uso crescente da expressão, sobretudo a partir da segunda metade de julho, como mostra o Gráfico 01: Gráfico 01: O corpus, segundo o número de textos
Em relação aos gêneros discursivos, a análise do corpus indicou que, apesar da predominância do relato, o jornal empreende um esforço significativo em comentários internos, como mostra o Gráfico 02: Gráfico 02: O corpus, segundo o gênero discursivo
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Primavera Árabe é o modo como ficou conhecida a série de protestos a partir de 2010 em países do norte da África e do Oriente Médio. As manifestações tinham em comum um descontentamento geral com os governos vigentes e o uso da web, sobretudo de redes sociais, como forma de articulação. Os resultados foram bastante diversos: na Tunísia, o presidente Zine el-Abdine Ben Ali teve de fugir do país; na Líbia, o presidente Muammar Gaddafi foi morto após rebeldes invadirem a sede do governo; no Egito, o presidente Hosni Mubarak foi preso depois de renunciar; na Síria, o presidente Bashar al-Assad segue no poder, em meio a uma guerra civil.
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No período analisado, há quase um comentário interno para cada dois relatos. Percebe-se, porém, que a Folha de S.Paulo recorre pouco a instâncias externas. Em todo período analisado, há apenas um artigo de opinião produzido por um autor que não pertence aos quadros da empresa: “Para entender a violência”, de Rafael Alcadipani, publicado em 16 de agosto (FOLHA DE S.PAULO, 16 ago. 2013, p.A10). Mesmo considerando as quatro cartas de leitores, o número de comentários externos não passa de cinco. Entre as provocações, além de duas entrevistas, destaca-se uma sabatina, evento de grande porte, realizado fora da sede do jornal13 e aberto ao público. A quantidade de provocações, porém, também é pouco significativa. Em relação à explicitude ou implicitude da significação de “black bloc”, parece prudente, então,
nos determos aos dois gêneros discursivos de maior incidência: os relatos e os comentários externos. No gênero relato, pode-se identificar três períodos. Durante as três primeiras quinzenas, entre 11 de junho e 25 de julho, nota-se que explicitar era regra. A partir de 26 de julho, surgem os primeiros textos em que a significação fica implícita, mas ainda com predominância da explicitude. A partir de 11 de agosto, ocorre uma inflexão de tendência, que se mantém na quinzena final, como mostra o Gráfico 03: Gráfico 03: O gênero relato, segundo a explicitude da significação de “black bloc”
A alta incidência de significação explícita nos dois primeiros meses analisados nos leva a crer que, quando se trata de um conhecimento social específico, ligado a eventos públicos pontuais, o jornal não utiliza, no gênero relato, a estratégia K3, conforme proposta por Van Dijk, que determina assumir “que os receptores conhecem aquilo de que nós (isto é, o jornal) já os informamos antes” (VAN DIJK, 2012a, p.126). A Folha de S.Paulo parece seguir regras próprias. O Manual da Redação, que reúne uma série de normas e recomendações, afirma:
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O evento ocorreu em 27 de setembro no auditório do Museu da Imagem e do Som, no Jardim Europa, zona sul de São Paulo.
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É importante partir do princípio de que o leitor pode não conhecer, necessariamente, fatos que precederam a notícia que se divulga. Assim, é preciso sempre fornecer a ele contextos claros e uma perspectiva histórica recente dos acontecimentos. (FOLHA DE S.PAULO, 2010, pp.29-30)
É interessante notar que a tendência de explicitar a significação de “black bloc” se mantém mesmo após ser publicado um relato que se aproxima do gênero didático. Sob o título “Filosofia 'black bloc' prega desobediência” (FOLHA DE S.PAULO, 12 jul. 2013, p.C6), o texto é o único do corpus que aparece sob a epígrafe “Saiba Mais” – padrão para matérias explicativas na Folha de S.Paulo – e, ao longo de seu conteúdo, busca expor o que vem a ser “black bloc”.
É difícil, com base apenas nos relatos extraídos do corpus, tentar compreender por que ocorre a inversão de tendências a partir de agosto. Mas a leitura das cartas fornece pistas. Em 28 de julho, o jornal publica o primeiro texto cujo enunciador é uma instância externa. Trata-se de uma carta, sob título “Protesto” (FOLHA DE S.PAULO, 28 jul. 2013, p.A3), que explicita a significação de “black bloc” como “protestos anarquistas” que “utilizam a chamada propaganda pela ação, muito em voga no final do século 19 e início do século 20, que consiste na realização de uma ação de grande visibilidade a fim de que ela se torne referência e inspiração para ações semelhantes”. Em 2 de agosto, outra carta é publicada, sob o título “Black blocs”: “Não defendo a ‘estratégia black bloc’, até porque sou muito velho para isso”, diz o texto, que já não explicita a significação da expressão (FOLHA DE S.PAULO, 2 ago. 2013, p.A3). As outras únicas duas cartas publicadas no período analisado também optam pela implicitude (FOLHA DE
S.PAULO, 31 ago. 2013, p.A3; FOLHA DE S.PAULO, 9 set. 2013, p.A3). Ou seja, entre o final de julho e o início de agosto, os leitores da Folha de S.Paulo começam a demonstrar, por meio de missivas, que conhecem não só a significação de “black blocs” como também debatem o assunto. Voltando ao Gráfico 01, é nesse período que mais que dobra o número de textos do jornal que falam em “black bloc”, saltando de 6 para 15. Considerando apenas os relatos, o Gráfico 03 aponta que a incidência de textos que usam a expressão com significação implícita ou explícita passa de 4 para 8. Ao que parece, o fenômeno deixa de ser pontual. A expressão repete-se a ponto de não ser mais considerada um conhecimento social específico para ser enquadrada como um conhecimento sociocultural geral. A partir desse momento, então, o jornal parece adotar, na maioria de seus textos, a estratégia K5,
que, conforme proposição de Van Dijk (2012, p.129), preconiza assumir “que os receptores compartilham o conhecimento de todas as comunidades epistêmicas mais abrangentes de que fazem parte”. Diferentemente do caso da estratégia K3, aqui o modelo proposto pelo autor é confirmado pela análise do corpus. Já nos comentários internos, a tendência de deixar significação inicialmente explícita não é clara, como mostra o Gráfico 04:
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Gráfico 04: O gênero comentário interno, segundo a explicitude da significação de “black bloc”
É reduzido o número de comentários internos que tentam definir “black bloc”. No gênero, talvez mais voltado a estimular a reflexão, os textos tendem a deixar em aberto a significação. Vamos, então, nos deter brevemente nas exceções. A primeira menção a “black bloc” em comentários internos aparece em artigo de Ruy Castro, publicado em 19 de julho, sob o título “Más companhias” (FOLHA DE S.PAULO, 19 jul. 2013, p.A2). O
texto define a expressão como grupo radical notável "pelos capuzes, máscaras e roupas pretas e armamento pesado". A segunda vez em que a significação do termo é explicitada ocorre em coluna de Alan Gripp, publicada em 1º de agosto sob o título “Herança Maldita” (FOLHA DE S.PAULO, 1º ago. 2013, p.A2). Para o autor, “black bloc” é uma “estratégia de protesto anarquista”. Em 5 de agosto, Ruy Castro, no artigo intitulado “Por trás das burcas”, aproxima sua definição da de Gripp ao retornar ao tema, mas troca “estratégia” por “grupo”. (FOLHA DE S.PAULO, 15 ago. 2013, p.A2) Embora faça questão de dar sua definição do que entender ser “black bloc”, o autor pressupõe que seus leitores já conheçam o termo: Há três meses, quando me falaram dos "black blocs", achei que eram uma nova versão do extinto grupo New Kids on the Block. Hoje, ninguém faria essa confusão. De tanto vê-los na TV ou nos jornais, atacando vidraças, carros e orelhões, ou atirando bombas na polícia, sabemos que são um grupo anarquista. (FOLHA DE S.PAULO, 5 ago. 2013, p.A2).
A última significação explícita de “black bloc” em comentários internos aparece na coluna “Futebol de crianças e gigantes”, de Vinicius Torres Freire, publicada em 3 de setembro (FOLHA DE S.PAULO, 3 set. 2013, p.B4). O autor, porém, não é enfático em sua definição, deixando opções a seu interlocutor em forma de perguntas: “Falsos anarquistas? Embrião fascista?” A análise nos leva a crer, portanto, que nos comentários internos a recomendação do Manual de Redação – desempre fornecer ao leitor “contextos claros e uma perspectiva histórica recente dos Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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acontecimentos” (FOLHA DE S.PAULO, 2010, pp.29-30) – é deixada de lado. Predomina, então, a estratégia K3, conforme proposta por Van Dijk (2012a, p.126), que determina assumir “que os receptores conhecem aquilo de que nós (isto é, o jornal) já os informamos antes”. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, procurei esboçar resposta à seguinte questão: a Folha de S.Paulo adota, de forma homogênea em textos de diferentes gêneros discursivos, os dispositivos-K como estratégia para controlar a explicitação ou não da significação da expressão “black bloc”? Para respondê-la, analisei 63 textos
publicados no jornal entre 11 de junho e 10 de setembro de 2013. Concluí que, no gênero discursivorelato, a Folha de S.Paulo,enquanto considera a significação de “black bloc” como um conhecimento social específico, não utiliza a estratégia K3 proposta por Van Dijk (2012a, p.126) – que estabelece: “assuma que os receptores conhecem aquilo de que nós (isto é, o jornal) já os informamos antes”–, mas uma norma interna, prevista no Manual da Redação – que determina o fornecimento de uma “perspectiva histórica recente dos acontecimentos” ao leitor (FOLHA DE S.PAULO, 2010, pp.29-30). Ainda em relação ao gênero relato, minha hipótese é que o jornal só tenha mudado de estratégia quando passou a considerar a significação de “black bloc” um conhecimento sociocultural geral. A partir de então começou a adotar a estratégia K5 proposta por Van Dijk (2012a, p.129) – que preconiza: “assuma que os receptores compartilham o conhecimento de todas as comunidades epistêmicas mais
abrangentes de que fazem parte”. Já nos comentários internos, a tendência à explicitude da significação não se mostrou predominante em nenhuma parte do período analisado, o que indica que, diferentemente do que ocorre com os relatos, a estratégia K3 superaa norma interna descrita no Manual da Redação. Parece, portanto, haver correlação entre o gênero discursivo e os mecanismos que controlam, durante a produção de um enunciado, a explicitude ou a implicitude de uma determinada informação.Novos cruzamentos de dados, levando em conta, por exemplo, o caderno, o autor e o local de produção do discurso podem lançar novas luzes sobre essa questão. Corpora maiores também precisam ser analisados. Gostaria de apontar também que, embora não seja esse o assunto deste artigo, notei durante a análise do corpus que a significação de “black bloc” é instável: por vezes a expressão é definida como
“tática” e, em outras ocasiões, como “grupo”. Essa instabilidade, que pode ser percebida inclusive quando a significação não está explícita, também merece ser analisada, já que está diretamente relacionada à constituição da expressão “black bloc” como objeto de discurso. Além disso, no período em que a explicitude predomina, ainda cabe analisar, conforme sugestão da Profa. Dra. Vanda Elias, o complemento dessa definição, seja ela “tática” ou “grupo”. Que tipo de “tática”? Que tipo de “grupo”? Tal abordagem ajudaria a identificar o posicionamento ideológico do jornal e as suas possíveis variações. Entraríamos, então, em um novo campo também bastante presente na obra de Van Dijk (2012b): a análise crítica do discurso da Folha de S.Paulo. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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6. REFERÊNCIAS 6.1. Livros e artigos AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. CHAPARRO, Manuel Carlos. Sotaques d’aquém e d’além mar: percursos e géneros do jornalismo português e brasileiro. Santarém, Portugal: Edições Jortejo, 1998. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2012. FOLHA DE S.PAULO. Manual da Redação. São Paulo: Publifolha, 2010. KOCH, Ingedore G.; MORATO, Edwiges M.; BENTES. Ana C. Ainda o contexto: algumas considerações sobre as relações entre contexto, cognição e práticas sociais na obra de Teun van Dijk. In: Revista Latinoamericana de Estudios del Discurso. Caracas: Universidad Central de Venezuela, v.11, n.1, 2011. LANDAU, Sidney I. Cambridge Dictionary of American English for Speakers of portuguese. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. SEARLE, John R. Os actos de fala. Coimbra, Portugal: Livraria Almeida, 1981. VAN DIJK, Teun A. Context and Experience Models in Discourse Processing. In: VAN OOSTENDORP, Herre; GOLDMAN, Susan (eds.). The construction of mental representations during reading. Hillsdale, NJ: Erlbaum, 1999. ______. Knowledge in parliamentary debates. In: Journal of Language and Politics:Special issue on identity politics. Reino Unido: Ed. by Paul Chilton, v.2,2003. ______. Discurso e Contexto:uma abordagem sociocognitiva. São Paulo: Contexto, 2012a. ______. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, 2012b. ______. Discourse and Knowledge. In: GEE, James Paul; HANDFORD, Michael (eds.). Handbook of Discourse Analysis. Londres: Routledge, 2012c. 6.2. Corpus de apoio FOLHA DE S.PAULO. Sangue se espalhou por corredores. Mundo, 23 jul. 2001. ______. Polícia italiana invade QG de ativistas durante a madrugada e deixa 57 feridos. Mundo, 23 jul. 2001. ______. Pelas ruas de Gênova, lá vamos nós. Ilustrada, 02 ago. 2001. ______. Itália liberta manifestantes de Gênova. Mundo, 15 ago. 2001. ______. Ativistas crêem que repressão vai aumentar. Especial, 16 set. 2001. ______. Prefeito usará 3.500 policiais no fórum. Brasil, 28 jan. 2002. ______. Ativistas protestarão contra os dois fóruns. Brasil, 30 jan. 2002. ______. Caos organizado. Ilustrada, 30 jan. 2002. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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______. Grupo invade Câmara do Rio e volta a cercar casa do governador. Poder, 01 ago. 2013. ______. 'Black blocs' e moradores da Rocinha se unem em passeata. Poder, 02 ago. 2013. ______. Colunista ninja? Cotidiano, 02 ago. 2013. ______. 'Black blocs'. Painel do leitor, 02 ago. 2013. ______. Para especialistas, ideário 'black bloc' permanecerá ativo. Cotidiano, 04 ago. 2013. ______. Ativistas cariocas discordam sobre o uso da violência. Cotidiano, 04 ago. 2013. ______. Por trás das burcas. Opinião, 05 ago. 2013. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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______. Desconfio que Bruno Barreto seja lésbico. Cotidiano, 09 ago. 2013. ______. Guerras biológicas. Saúde + Ciência, 11 ago. 2013. ______. Questão de igualdade. Opinião, 11 ago. 2013. _____________. PMs e manifestantes têm novo confronto no Palácio Guanabara . Poder, 13 ago. 2013. _____________.'Black blocs' se unem a anarcopunks e pichadores. Poder,15 ago. 2013. _____________. Uau! Agora é Black Bloc in Rio! Ilustrada, 15 ago. 2013. _____________. Para entender a violência. Opinião,16 ago. 2013. _____________. 'Black blocs' se perdem ao procurar ponto de ônibus durante ato em SP. Poder,16 ago. 2013. _____________.Policial 'gente boa' atenua conflitos no Rio. Poder,18 ago. 2013. _____________. Dilma e Marina! Luta no gel! Ilustrada, 18 ago. 2013. _____________. "Em um Mundo Melhor". Ilustrada,19 ago. 2013. _____________. Manifestação contra Alckmin termina em tumulto no metrô. Poder, 21 ago. 2013. _____________.Sob aplausos, grupo de manifestantes deixa Câmara do Rio. Poder,22 ago. 2013. _____________. Boato. Ilustrada, 23 ago. 2013. _____________. Protesto em frente à sede da Editora Abril acaba em confronto. Poder, 24 ago. 2013. _____________.'Black blocs' agem com inspiração fascista, diz filósofa a PMs do Rio. Poder, 27 ago. 2013. _____________.Novo protesto termina em confronto no Rio. Poder,28 ago. 2013. _____________. A cidade é deles. Opinião, 30 ago. 2013. _____________.Protestos. Painel do leitor, 31 ago. 2013. _____________. Grupo faz protesto em frente à sede da TV Globo. Poder, 31 ago. 2013. _____________. PM usa minicâmera contra black blocs. Cotidiano,01 set. 2013. _____________.Dilma aumenta a segurança no dia 7 por temer violência. Poder, 02 set. 2013. _____________.Projeto quer banir máscaras dos protestos no Rio. Poder,02 set. 2013. _____________. Planalto recebe alerta de protesto violento em desfile militar no DF. Poder, 03 set. 2013. _____________. Futebol de crianças e gigantes. Mercado, 03 set. 2013. _____________. Ação da polícia para registrar mascarados tem confusão no Rio. Poder, 04 set. 2013. _____________. Baile de máscaras. Opinião, 05 set. 2013 Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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_____________. Suspeitos de incitar protestos violentos são detidos no Rio. Poder,05 set. 2013. _____________. Onda de protestos no Rio deve esvaziar desfile de militares. Poder,06 set. 2013. _____________. Passeata de 'black blocs' em SP termina em tumulto no metrô. Poder, 06 set. 2013. _____________. Expectativa e dúvida. Opinião, 07 set. 2013. _____________. 'Black blocs' protestam no Rio sem utilizar máscaras. Poder, 07 set. 2013. _____________. Protestos causam tumulto e prisões nas principais cidades. Poder, 08 set. 2013. _____________. 'Black blocs' assumem linha de frente em SP. Poder, 08 set. 2013.
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PALESTRA SOBRE OS NOVOS TEMPOS: ASPECTOS DA PIADA NOS QUADRINHOS LECTURE ABOUT NEW TIMES: ASPECTS OF JOKE COMICS Catia Regina Ribeiro Artur catia.artur@gmail.com
RESUMO Este trabalho se propõe a analisar tiras dos Malvados, de André Dahmer, geralmente publicadas nos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, para identificar em que medida suas características remetem aos aspectos comuns às piadas e quais estratégias discursivas foram utilizadas para gerar comicidade. Além disso, procurar-se-á observar as diferenças entre os gêneros, tendo em vista identificar as características próprias das tiras que confirmem sua especificidade genérica. As tiras cômicas selecionadas para análise receberam o título Palestra sobre os novos tempos e foram publicadas em outubro de 2014. Os principais referenciais teóricos que embasam a análise são a caracterização de tiras cômicas e piadas proposta por Ramos (2011) e os estudos sobre a comicidade e o riso de Bergson (2001) e Propp (1992). Palavras-chave: Análise do discurso; humor; quadrinhos. ABSTRACT This work has the objective analyzing strips of Evil, by André Dahmer, usually published in newspapers Folha de S. Paulo and O Globo, in order to identify to what extent its features refer to aspects common to the jokes and what discursive strategies were used to generate comicality. In addition will be observed the differences between genders, in order to identify the characteristics of the strips that confirm its generic specificity. The selected comic strips for analysis received the title Lecture about new times and were published in October 2014. The main theoretical frameworks that support the analysis are featuring comic strips and jokes proposal by Ramos (2011) and studies on the comicality and laugh of Bergson (2001) and Propp (1992). Keywords: Analysis of speech; humor; comics.
INTRODUÇÃO Neste artigo, procurou-se identificar características das tiras cômicas, comumente publicadas em jornais, comparando tiras e piadas. Em contrapartida, também se buscou evidenciar particularidades das tiras, tendo em vista sua especificidade genérica atrelada ao hipergênero histórias em quadrinhos.
Para tanto, foram investigados aspectos característicos das piadas na construção das tiras cômicas Malvados, intituladas Palestra sobre os novos tempos, que foram publicadas no jornal Folha de S. Paulo nos dias 22, 23 e 28 de outubro de 2014. Além disso, foram observadas as estratégias discursivas que geraram comicidade, os recursos visuais que complementaram a sequência narrativa cômica, o objeto de humor que provocou o riso e o tipo de riso gerado. Os principais referenciais teóricos que embasam a análise são: a caracterização de tiras cômicas e piadas proposta por Paulo Ramos (2011), os estudos sobre a comicidade e o riso de Henri Bergson (2001) e Vladímir Propp (1992), a noção de hipergênero desenvolvida por Dominique Maingueneau (2004) e a de Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
enquadre proposta por Erving Goffman (2001). O estudo está dividido em quatro partes: inicialmente, evidenciaram-se os referenciais teóricos que contribuíram para a análise; em seguida, apresentou-se o corpus selecionado; depois, realizou-se a investigação proposta e a discussão dos resultados; e, para terminar, foram feitas algumas considerações. A importância do estudo está em colaborar para uma melhor compreensão do gênero de discurso tira cômica, examinando suas principais características e como se constrói o cômico de seu enunciado para causar o riso do leitor. Seus resultados indicaram que os elementos verbo-visuais se complementaram no processo de representação da narrativa cômica para mudar inesperadamente o enunciado em construção, a partir de um elemento disjuntor, causando uma quebra de expectativa que gerou o humor, como ocorre em
piadas. Por outro lado, a tiras reafirmaram sua especificidade genérica por meio de sua composição verbovisual atrelada às HQs. A construção do humor nas tiras cômicas O humor faz parte do nosso dia a dia e circula nas interações pessoais a partir do uso da linguagem verbal ou não verbal. Ele surge em diferentes gêneros de discurso, com características próprias ou similares entre si, mas sempre ligados a um contexto de produção discursiva que influencia na construção de sentido e no efeito cômico. As piadas e algumas histórias em quadrinhos, por exemplo, apresentam estratégias semelhantes para produzir humor, conquanto tenham características próprias que as definem e
identificam. Embora as características das piadas e histórias em quadrinhos remetam a gêneros do discurso, elas podem ser classificadas como hipergêneros. De acordo com que Maingueneau (2004), hipergêneros são modos de organização textual com fracas coerções dos quais podem desenvolver-se diversos enunciados; eles também permitem formatar um texto, colaborando para as “etiquetas formais”. A piada, como hipergênero, é entendida num sentido amplo, com diversas possibilidades, englobando piadas prontas e piadas conversacionais, que serão discutidas a seguir. Já a história em quadrinhos é vista como uma espécie de “guarda-chuva” para diferentes produções quadrinísticas: a tira de jornal, a revista e o álbum em quadrinhos. As histórias em quadrinhos são formas narrativas iconográficas sequenciais curtas ou longas, com ou
sem diálogos, com personagens fixas ou não fixas e formatos variáveis (quadrados ou retângulos). Suas informações de ordem visual são somadas e articuladas com as de ordem verbal, para construção de sentido, e é dessa maneira que se constituem como um texto. Para que esse texto se constitua como um discurso humorístico, como já mencionado, pode fazer uso de estratégias comuns às piadas. As piadas, por sua vez, são formas de humor orais ou escritas tendencialmente curtas, essencialmente narrativas, com diálogos ou sem diálogos e com um desfecho inesperado. Costumam, ainda, fazer uso de personagens estereotipadas e do recurso da adivinha para provocar humor. Para Attardo (1994), essas são as piadas prontas. Contrapõem-se a elas as piadas conversacionais, que surgem no processo interacional Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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oral por meio do improviso, podendo ser narrativas ou não. O final inesperado das piadas, geralmente, obedece a três funções classificadas por Morin (1974): 1. Função de normalização: apresenta os personagens; 2. Função locutora de deflagração: situa um problema a ser resolvido; 3. Função interlocutora de distinção: resolve de maneira cômica o problema. A última função conteria um elemento disjuntor que separaria a situação inicial séria da situação final cômica inferida pelo interlocutor. A disjunção revelaria uma narrativa parasita. As tiras cômicas, objeto de estudo deste trabalho, são histórias em quadrinhos que compartilham características das piadas prontas. Logo, conforme Ramos (2011, p. 208), são um híbrido de piada e quadrinhos. O autor sintetiza os aspectos comuns às piadas e tiras da seguinte maneira: são textos
narrativos tendencialmente curtos; apresentam duas leituras, uma séria e outra não séria ou jocosa; apresentam leitura única, que leva ao humor; têm desfecho inesperado; demandam inferência do efeito de humor provocado; tendem ao uso de diálogo no processo de construção e condução do texto; tendem ao humor focalizado em atitudes (verbais ou gestuais) centradas nas personagens; apresentam personagens fixos ou não fixos na narrativa; tendem a apresentar atitudes e personagens estereotipados; fazem uso de elementos verbais escritos (em piadas escritas e tiras cômicas), verbo-visuais (em piadas orais e tiras cômicas), prosódicos e cinésicos (em piadas orais e tiras cômicas) para a produção de humor; demandam acionamento de conhecimentos compartilhados e de mundo de diversas ordens para produção de sentido. As situações cômicas nas piadas e tiras ainda podem ser “emolduradas” em enquadres, termo introduzido por Gregory Bateson e desenvolvido por Erving Goffman, que pode ser considerado
“molduras” de natureza psicológica que contêm um conjunto de instruções para que o interlocutor possa entender uma mensagem. Em outras palavras, são quadros mentais preparatórios para um evento sociolinguístico posterior. Durante a interação, os participantes introduzem ou mantêm diversos enquadres para organizar o discurso e os papéis sociais ou papéis discursivos. Em contrapartida, Ramos também aponta algumas especificidades das tiras: possuem um espaço restrito, em formato retangular; têm recursos visuais específicos (quadrinhos, desenhos das personagens e dos cenários, balões de falas etc.); apresentam hiatos entre um quadrinho e outro que demandam capacidade de inferência da sequência narrativa; apresentam o nome dos autores aos leitores geralmente na própria tira; constituem uma linguagem autônoma capaz produzir um efeito de humor pelo uso da metalinguagem – uma metatira.
O humor das tiras cômicas, muitas vezes, apresenta críticas ligadas a acontecimentos de um momento histórico ou a um tipo de comportamento social. Nesse caso, incitam um riso que cumpra uma função social. Segundo Bergson (2001), a função social do riso seria buscar corrigir elementos que desviam do curso esperado pela sociedade: a imperfeição do vivo, que seria o mecânico e autômato; o antissocial, que seria o inflexível ou desajustado; os vícios, que seriam defeitos do espírito etc. O autor sintetiza: Sempre um pouco humilhante para quem é seu objeto, o riso é de fato uma espécie de trote social. (p. 101). O riso como forma de crítica social pode ser indignado, inteligente, soberbo, depreciativo, hostil, Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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irônico, sarcástico, grosseiro, mas é, antes de tudo, zombeteiro. De acordo com Propp (1992, p. 28), o riso de zombaria está permanentemente ligado à esfera do cômico. E complementa que tanto a vida física quanto a vida moral e intelectual do homem podem tornar-se objeto do riso. (p. 29). Os objetos do riso das tiras cômicas dos Malvados serão investigados a seguir, bem como as estratégias empregadas para gerar efeitos de humor, considerando os diversos aspectos supramencionados. Malvados A tira cômica Malvados foi desenvolvida por André Dahmer, considerado um dos maiores
quadrinistas da atualidade. Carioca, de 40 anos, Dahmer, inicialmente, obteve grande sucesso com suas personagens na internet, ao se apropriar das redes sociais para divulgar seu trabalho. Posteriormente, passou a publicar seus quadrinhos nas páginas do Jornal do Brasil, da Revista Bizz e da Folha de S. Paulo. Na atualidade, as tiras ocupam páginas diárias dos jornais O Globo e Folha de S. Paulo. A divulgação dos quadrinhos, no entanto, não parou por aí. Após ocupar telas, tablets, celulares, páginas de revistas e de grandes jornais do país, o Malvadão e o Malvadinho, como são conhecidos pelos fãs os personagens da série, tiveram suas histórias reunidas em uma coletânea, em 2007, com o título O Livro Negro de André Dahmer, pela editora Desiderata. Os Malvados tratam de assuntos comuns, como política, vida e comportamento social, uso da internet, mas de uma maneira peculiar, com humor negro, sarcasmo e cinismo, o que conquistou inúmeros
leitores. O corpus sob análise O corpus analisado foram quatro tiras cômicas dos Malvados, publicadas no Caderno Folha Ilustrada, do jornal Folha de S. Paulo, nos dias 23, 24 e 28 de outubro de 2014. As tiras receberam o título de Palestra sobre os novos tempos. Cada tira foi analisada individualmente, para que, posteriormente, pudessem ser indicados os seus aspectos comuns. A seguir, apresenta-se a tira 1.
André Dahmer, Malvados, 23/10/2014, Folha de S. Paulo
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A tira 1 recebe um título, que traz ao leitor o enquadre de uma palestra. No primeiro quadrinho, aparece um personagem frente a um microfone, que traz a imagem estereotipada de um palestrante pelo seu comportamento. O suposto palestrante inicia sua fala com uma afirmação que prevê o esgotamento da água em São Paulo, trazendo um tema da atualidade do contexto de produção discursiva. No segundo quadrinho, a imagem do palestrante é retomada, e ele lança uma questão a qual envolve a si e outras pessoas, perceptível pela desinência do verbo “estamos”; infere-se que essas outras pessoas sejam as presentes na plateia da palestra. Parece que procura incitar a reflexão dos ouvintes sobre uma situação que considera tão grave e, nesse momento, faz uma breve pausa marcada pelo intervalo de uma vinheta para
outra. No terceiro quadrinho, a imagem do palestrante permanece e ele mesmo elabora uma resposta à sua questão, recurso comum em palestras. Entretanto, sua resposta é inusitada e, por isso, gera um efeito de humor. Assim, o personagem quebra a expectativa do leitor, rompendo um assunto sério (crise da água em São Paulo) pela indicação de um comportamento desinteressado em relação a esse assunto (fazer piadas na internet). O riso de zombaria provocado viria a punir esse comportamento. Quanto aos aspectos de ordem corporal da personagem em cena, são pouco variáveis. Geralmente, observa-se apenas uma pequena mudança na expressão facial do palestrante nos quadrinhos, assinalada, especialmente, pelos olhos e pela boca. Na primeira cena, o personagem tem um ângulo de visão inferior, ou seja, olha de baixo para cima, simulando um olhar distante. Em seguida, no segundo quadrinho, seu olhar passa para um ângulo de visão superior, de cima para baixo, possibilitando a inferência de que olha
para o chão, refletindo sobre a questão lançada ou lastimando a constatação. Nesse momento, parece esboçar um sorriso sem graça. Para terminar, no terceiro quadrinho, seu olhar fica em ângulo de visão mediano, em linha reta, aparentemente, direcionado ao público, que recebe sua resposta sarcástica. Pode-se pensar em um esboço de sorriso no canto da boca, nesse momento. As nuances da expressão facial do personagem, embora sutis, contribuem para a construção do desfecho inesperado da tira e da comicidade. A seguir, apresenta-se a tira 2.
André Dahmer, Malvados, 24/10/2014, Folha de S. Paulo
A tira 2 também recebe um título, que traz o enquadre de uma palestra. No primeiro quadrinho, novamente aparece um personagem frente a um microfone, com a imagem estereotipada de um palestrante, que também segue nas demais vinhetas. Mais uma vez, o suposto palestrante inicia sua fala com uma Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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afirmação, mas desta vez trata de um assunto diferente: os empregos gerados na guerra. Esse também é um tema da atualidade do contexto de produção discursiva. No segundo quadrinho, ele recebe uma pergunta que se infere ter partido de uma pessoa da plateia, pela direção do apêndice, questionando-o sobre a carreira na guerra. O palestrante parece ouvir com atenção a pergunta e refletir sobre ela; por conseguinte, faz uma breve pausa. No terceiro quadrinho, responde prontamente à questão e, novamente, sua resposta é inusitada, gerando um efeito de humor. O personagem quebra a expectativa do leitor, desta vez, rompendo o assunto sério (empregos na guerra) com um aspecto negativo desse assunto (carreira de curta duração), de maneira sarcástica. O riso de zombaria provocado viria a ridicularizar a guerra e a carreira bélica. Em relação aos aspectos de ordem corporal da personagem em cena, ainda são pouco variáveis.
Observa-se, outra vez, apenas uma pequena mudança na expressão facial do palestrante nos quadrinhos, assinalada pelos olhos e pela boca. Na primeira cena, o personagem tem um ângulo de visão inferior, simulando um olhar distante. Em seguida, no segundo quadrinho, seu olhar passa para um ângulo de visão superior e se infere que olha para o chão, refletindo sobre a questão lançada ou aguardando seu momento de retomar a palavra. Nesse momento, parece mais uma vez esboçar um sorriso sem graça. É possível que o sorriso sem graça, desta vez, represente uma quebra de expectativa do palestrante causada por uma interrupção em sua apresentação. Para terminar, no terceiro quadrinho, seu olhar fica em ângulo de visão mediano, aparentemente, direcionado ao leitor, que recebe sua resposta zombeteira juntamente com a plateia. O esboço de sorriso no canto da boca, nesse momento, parece reaparecer. As expressões faciais do personagem permanecem sutis, mas significativas para a construção do desfecho inesperado e humor da
tira. A seguir, apresenta-se a tira 3.
André Dahmer, Malvados, 28/10/2014, Folha de S. Paulo
A tira 3 segue muitas das características das tiras anteriores, especialmente da tira 2. Ela recebe um título que remete a um enquadre de palestra; apresenta um personagem frente a um microfone, com a imagem estereotipada de um palestrante; o palestrante inicia sua fala com uma afirmação; em seguida, recebe uma pergunta que se infere ter partido de uma pessoa da plateia; por fim, responde à pergunta de modo zombeteiro. No primeiro quadrinho, o personagem em cena classifica o tempo conforme os sentimentos das pessoas da atualidade do contexto de produção discursiva. No segundo quadrinho, ele recebe uma pergunta questionando-o sobre como as pessoas se sentem. Nesse momento, o palestrante Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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parece faz uma breve pausa para ouvir com atenção a pergunta e refletir sobre ela. No terceiro quadrinho, então, responde prontamente à questão e, mais uma vez, sua resposta é inusitada, o que gera o efeito cômico. O personagem quebra a expectativa do leitor, agora, rompendo um assunto sério, que é uma situação ruim (tempo de sofrimento), indicando quem leva vantagem com essa situação (indústria de remédios), de modo zombeteiro. O riso de zombaria viria a evidenciar os “aproveitadores” de uma situação indesejada socialmente. Os aspectos de ordem corporal da personagem continuam pouco variáveis, com pequenas mudanças na expressão facial do palestrante assinaladas pelos olhos e pela boca. No terceiro quadrinho, no entanto, ele repete a expressão da tira 1, parece olhar para a plateia, e não para o leitor, como ocorre na tira
2. Os ângulos de visão e os esboços nos lábios permanecem os mesmos mencionados nas tiras anteriores. Portanto, as expressões faciais do personagem permanecem sutis, mas sempre contribuindo para a construção do desfecho inesperado da tira e da comicidade. As tiras cômicas analisadas são muito similares em seus formatos, recursos visuais e estratégias para gerar humor. Elas recebem o mesmo título, o mesmo personagem, os mesmos aspectos de ordem corporal, o mesmo enquadre, as mesmas imagens estereotipadas e, assim, facilitam o seu reconhecimento e a sua interpretação pelo leitor. Seus assuntos são variáveis, mas geralmente estão ligados à atualidade do contexto de produção discursiva e a uma crítica social provocada pelo riso de zombaria. O palestrante e seu microfone, únicas imagens presentes na cena, formam objetos-de-discurso visuais. São instaurados no primeiro quadrinho e retomados nos próximos com poucas variações. A
variação é muito sutil e se dá, especialmente, apenas nas expressões faciais da personagem. Logo, a cena narrativa altera-se mais pelas falas presentes do que pela variação das imagens. Um aspecto curioso na representação das falas é a ausência de balões, muito comuns em tiras; as falas são ligadas às personagens apenas por apêndices. Todas as tiras analisadas estão organizadas em três vinhetas: a primeira apresenta uma afirmação sobre um tema atual, que parte do personagem presente na tira; a segunda apresenta uma pergunta sobre a afirmação anterior, que parte de uma reflexão da personagem em cena ou de uma pessoa da plateia e funciona como um disjuntor do humor; a terceira traz o desfecho inesperado, que gera o efeito de humor. Tal efeito é produzido pela resposta inusitada do palestrante em cena. Cabe mencionar que quando a pergunta parte de uma pessoa da plateia, geralmente, ela não é identificada nos quadrinhos, mas exerce o
papel de coadjuvante que, pela sua fala, leva à situação inesperada no último quadrinho. Essa forma de organização remete à sequência narrativa das piadas prontas, que, geralmente, obedecem às três funções classificadas por Morin (1974): função de normalização, função locutora de deflagração e função interlocutora de distinção. O elemento disjuntor que separa a situação séria da situação não séria, inferida pelo interlocutor e presente nessa sequência, eram as questões lançadas ao palestrante na interação. As tiras também se assemelharam às piadas por serem narrativas curtas; apresentarem duas leituras, uma séria e outra não séria; apresentarem leitura única, que levou ao humor; terem desfecho inesperado; Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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demandarem inferência do efeito de humor provocado; tenderem ao uso de diálogo e ao humor focalizado em atitudes das personagens; apresentarem personagem fixo; apresentarem atitudes e personagens estereotipados; fazerem uso de elementos verbo-visuais para a produção de humor; demandarem acionamento de conhecimentos de diversas ordens para produção de sentido. A interação nas tiras está subentendida desde o primeiro quadrinho, pela fala do palestrante envolta no enquadre de uma palestra. A interação, em todas as tiras, segue no segundo e terceiro quadrinho por meio do par pergunta/ resposta. Na tira 1, no entanto, a interação se dá, essencialmente, de maneira monologal, pois o palestrante indaga a si próprio e ele se responde. Por outro lado, o enquadre ainda sustenta a ideia de interação com uma plateia. Nas demais tiras, infere-se que a interação ocorra entre o
palestrante e uma pessoa da plateia, que lhe direciona a pergunta, de modo direto, e entre o palestrante e a plateia, de modo indireto. No segundo quadrinho, quando surge o questionamento, cria-se a expectativa de resposta no leitor. Cabe ressaltar, mais uma vez, que as tiras cômicas apresentadas neste trabalho abordaram uma mesma situação em todas as tiras. A cada dia houve uma tira cômica com um final inesperado, com um novo efeito de humor, mas o enquadre de uma palestra foi retomado. Esse procedimento relembra as tiras criadas com uma mesma temática ou tópico para mais de uma tira; elas trazem uma ideia de continuidade ou série. Nesses casos, conforme Ramos (2011, p. 210), há dois níveis de leitura: quem não leu a história do dia anterior consegue entendê-la com os dados que têm à mostra; a pessoa que leu a narrativa da véspera consegue ligar tematicamente as duas histórias e vai, possivelmente, acrescentar e articular
informações. Nas tiras analisadas, a pessoa que não leu a história do dia anterior também consegue entender a tira; já a pessoa que leu a narrativa da véspera consegue relacionar o enquadre da palestra, antecipando a sequência narrativa da tira, o tipo de disjuntor que separa a situação séria da situação não séria e o comportamento da(s) personagem(ns) na interação e no final da história.
Considerações finais No estudo realizado, foi possível verificar o percurso de construção das tiras cômicas selecionadas e as estratégias discursivas para a construção do humor. De modo geral, todas as tiras analisadas receberam
um título, foram organizadas em três quadrinhos, com uma sequência narrativa em que se apresentou uma situação séria e uma situação não séria separadas por um elemento disjuntor. O disjuntor deveria ser inferido pelo interlocutor, a partir de seus conhecimentos de diversas ordens, para acionar o desfecho inesperado e o efeito cômico. Essa composição remete ao processo de construção das piadas prontas, levando a compreender as tiras como “uma piada em quadrinhos”, o que fora sugerido por Ramos. As tiras cômicas receberam um título a partir do qual foi possível remeter ao enquadre palestra. Nesse caso, pôde-se inferir que na tira existia um palestrante e um público para a palestra, levando em conta a capacidade de projeção de enquadres mentais das pessoas. Nos quadrinhos, foi possível confirmar a presença do palestrante, mas a imagem do público não. A presença do público, todavia, foi confirmada a Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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partir da segunda vinheta (exceto na tira 1) pelos elementos verbais escritos, com uma pergunta elaborada e direcionada ao palestrante. Na tira 1, embora não aparecesse a fala da plateia, ainda se pôde acreditar na formulação discursiva do palestrante direcionada ao público, incitando sua reflexão. O humor das tiras foi construído a partir de uma situação inusitada no enquadre palestra, que gerou um desfecho inesperado. A situação inusitada consistiu em uma resposta sarcástica a uma questão formulada sobre um assunto da atualidade do contexto de produção discursiva, que estava em pauta naquele momento. Essa formulação jocosa buscou apontar incorreções ou “defeitos” sociais de determinada sociedade e promover um riso de zombaria deles, como uma forma de criticá-los. A crítica social por meio do riso reafirmou a função social do riso proposta por Bergson.
O riso de zombaria e a crítica social por meio do riso também são frequentes em piadas prontas ou piadas conversacionais, o que novamente aproxima as tiras cômicas das piadas. Por outro lado, pode-se indicar que, essencialmente, as tiras se diferenciam das piadas, de modo geral, por estarem atreladas ao hipergênero histórias em quadrinhos, ou seja, elas seguem uma composição verbo-visual própria, com um espaço restrito, em formato retangular, e geralmente são publicadas na mídia impressa com a indicação de seus autores. Assim se confirma a especificidade genérica das tiras cômicas, apesar das muitas semelhanças entre tiras e piadas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ATTARDO, Salvatore. Linguistic theories of humor. Berlin/New York: Mounton de Gruyter, 1994. BERGSON, Henri. O riso – ensaio sobre a significação da comicidade. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2001. GOFFMAN, Erving. A representação do Eu na vida cotidiana. Trad. Maria Célia Santos Raposo. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. MAINGUENEAU, Dominique. Diversidade dos Gêneros de Discurso. In: MACHADO, I. L.; MELLO, R. (orgs) Gêneros: Reflexões em Análise do Discurso. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2004. P. 43-58. MORIN, Violette. A historieta cômica. In: BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 174-200. PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. Trad. Aurora Fornori Bernardini e Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Ática, 1992. RAMOS, Paulo. Faces do humor: uma aproximação entre piadas e tiras. Campinas, SP: Zarabatana Books, 2011.
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REFERENCIAÇÃO NAS LETRAS DE FUNK: UMA ANÁLISE SOBRE CONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DE OBJETOS-DE-DISCURSO REFERENCING THE FUNK LETTERS: AN ANALYSIS OF CONSTRUCTION AND RECONSTRUCTION AND RECONSTRUCTION OF DISCOURSE OBJECTS Fernando Leite Morais 1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP fndo.l.m@gmail.com
RESUMO Este artigo tem como objetivo realizar uma análise do processo de referenciação em letras de funk. Ao analisar um corpus de uma letra de funk, pretende-se, à luz da Linguística Textual, apresentar as ocorrências de construção e reconstrução de elementos discursivos e justificá-las como tal. Almejamos também com este trabalho compreender como os integrantes do grupo funk categorizam e recategorizam o referente para expressar seus conceitos. Palavras-chave: Linguística Textual; Referenciação; Funk. ABSTRACT This article aims to conduct an analysis of the referral process funk letters. By analyzing a corpus of a funk letter, it is intended , in the light of Linguistics Textual, present the construction of occurrences and reconstruction of discursive elements and justify them as such. Too long for this work to understand how the members of the funk group categorize and recategorize the referent to express his concepts. Keywords: Textual Linguistics; Referencing; Funk.
INTRODUÇÃO O presente estudo pretende realizar uma análise de processo de referenciação em letras de funk. Ao analisar um corpus de uma letra de funk, pretende-se, à luz da Linguística Textual, apresentar as ocorrências de construção e reconstrução de elementos discursivos e justificá-las como tal. Koch (2009, p.59) argumenta que discursivização ou textualização do mundo por intermédio da linguagem não se dá como um simples processo de elaboração de informação, mas de (re) construção interativa do próprio real. Ou seja, o texto constrói-se e reconstrói-se em função de um quere-dizer de um
falante. Esse “querer-dizer’’ é o que objetivamos explicitar ao analisar as letras de funk. Buscamos com este trabalho compreender como os integrantes do grupo funk categorizam e recategorizam o referente para expressar seus conceitos. Três estratégias conduzirão nossa análise das letras de funk: Construção/ativação, reconstrução/ reativação e desfocalização/desativação. Essas estratégias serão explicitadas em nosso capítulo teórico. A organização deste artigo ocorre em quatro partes: primeira parte trata do contexto histórico do funk. 1
Mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP
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A segunda parte apresentará o arcabouço teórico sobre referenciação. Trata-se de tornar perceptível que elementos discursivos novos são introduzidos, e no decorrer do texto podem ser modificados, recategorizados. Também estará presente, nesta parte, a teoria sobre nomes de marcas. Esses nomes de marcas são referentes fundamentais do subgênero ostentação. Terceira parte trata-se da apresentação do corpus e quarta parte é análise do corpus. Nesta última apresentaremos as ocorrências de referenciação nas letras de funk, assim como a funcionalidade dos nomes de marcas encontrados.
1. FUNK, O QUE É? O funk é um estilo musical que se originou na música norte-americana no final da década de 60. Ele surgiu a partir da soul music, tendo uma batida mais pronunciada e influências do R&B, rock e da música psicodélica. As características desse estilo musical são: ritmo sincopado, a densa linha de baixo, uma seção de metais forte e rítmica, além de uma percussão marcante e dançante2. Medeiros (2006, p. 14) informa que James Brown, cantor, produtor, e irreverente performer americano, é apontado como inventor do funk, isso por conta de uma mudança rítmica tradicional de compasso 2:4 para 1:3. Brown acrescentou metais à melodia, e o funk estava criado. Esse gênero musical nasceu, segundo a autora (2006, p.14), como uma “mescla” entre os estilos
R&B, jazz e soul. No início, o estilo era considerado indecente, pois a palavra “funk” tinha conotações sexuais na língua inglesa. Acabou incorporando a característica: música com ritmo mais lento e dançante, sexy, solto, com frases repetidas. Medeiros3 aponta que o termo “funk” sempre teve sua associação ao universo sexual, nos Estados Unidos e no Brasil. Tratava-se de uma gíria dos negros americanos para designar o odor do corpo durante as relações sexuais. O termo também significava apimentar a base musical, como acrescentar riffs (frases musicais repetidas) ao som de uma batida mais rápida. 1.1 O funk no Brasil
1.1.1 Funk carioca O funk tem seu inicio no Rio de Janeiro em 1970 e, de acordo com Medeiros (2006, p. 15), seu primeiro grande palco foi o Canecão – ironicamente tempo da MPB, onde hoje há um cartaz na entrada com a frase: aqui se escreve a história da Música Popular Brasileira. Era o conhecido baile da pesada promovido pelos lendários DJ´s Big Boy e Ademir Lemos, que tocavam soul e lotavam a casa de shows 2
Texto consultado no site Brasil Escola. Disponível em: http://www.brasilescola.com/artes/funk.htm. Consulta em 03/04/2014.
3
Ibid, p.13
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com espetáculos cariocas. Os eventos no Canecão acabaram, pois os DJs tiveram que ceder o espaço para um show de Roberto Carlos. Entretanto, o público continuava e aumentava. Os eventos, conforme nos ensina a autora4, migraram para quadras esportivas e clubes no subúrbio do Rio de Janeiro, que já reuniam 15 mil pessoas na época. O funk, nessa época, era conhecido como Shaft ou Soul funk e outros três Dj´s eram destaques: Mister Funky Santos, Messiê Limá e Maks Peu. No final dos anos 1970 surgiram a Sou Grand Prix e a Black Power, as primeiras equipes de som que passaram a promover festas black. A partir de 1978 o cenário blacki passa por mudanças por dar ascensão aos mais novos
concorrentes: Furacão 2000 (criada em 1977) e Cashbox (criada em 1974), equipes de som que dominaram a cena funk na década de 80. As equipes de som buscavam por vinis recém-lançados nos Estados Unidos, pois nessa época não havia CD, internet ou livre comércio. O acesso a esses vinis era muito difícil, mas era o diferencial nas festas. Todos almejavam por novidades. E no meio disso, surge o Miami Bass: estilo dance americano cujas letras eram repletas de palavrões e sexo. Os frequentadores dessas festas criavam versões próprias em português, utilizando um vocabulário que se aproximasse do contido nas letras originais. Assim, surgem as melôs. Essas melôs foram expressivas na década de 80, agregava gêneros do Pop ao Rock. Exemplos são a Melô da verdade (Girl You Know It´s True, de Milli Vanilli) e a Melô do neném (Back on The Chain Gang, da banda Pretenders). (Medeiros, 2006, p.16)
Medeiros (2006, p.16) conta que em 1989, Fernando Luís Mattos da Matta, o DJ Marlboro, já era discotecário há quase dez anos e acabara de ganhar o concurso nacional de DJs promovido pela Disco Mix Club (DMC). O premio garantiu a Marlboro uma viagem a Londres, onde disputaria a etapa internacional. Não ganhou, porém, teve acesso às últimas novidades dos gêneros: dance, electro e black. Voltou ao brasil com um projeto de nacionalizar o funk. Começava então a produção da Música Eletrônica Brasileira, utilizando as batidas do Volt Mix (da música 808 Volt Mix, do DJ Baterry Brain) e Hassan (da faixa Pump Up the Party, de Hassan) com letras irreverentes em português. O resultado seria lançado no primeiro disco Funk Brasil. A mesma autora (2006, p.17) comenta que foi a determinação de Marlboro, no ano de 1989, que permitiu o funk ganhar características brasileiras. Ele compôs músicas especialmente para o projeto, sozinho ou em parceria com nomes do cenário funk do Rio. Daí saíram desde a Melô da mulher feia (versão de Marlboro para Do Wab Diddy, da banda 2 Live Crew) até músicas que já apontavam uma produção funk carioca original – como a Melô do Bêbado (letra de Marlboro que descreve todos os tipos de cachaça, cantada por MC Batata sobre uma base Miami Bass), Feira de Acari (de Marlboro e DJ Pirata, falando sobre o comércio de produtos roubados na feira que era conhecida como ‘’robauto’’) e Rap do arrastão (de Marlboro, Ademir Lemos e Nirto, que narra o sufoco de sair do baile, pegar condução e enfrentar um arrastão). Outro destaque no disco foi o Rap das aranhas, que sampleou o sucesso de Raul 4
Ibid, p.15.
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Seixas com batida eletrônica e o grito “chuuuuuupa neném”, bordão de Cidinho Cambalhota (apresentador do programa Som na caixa, na TV Corcovado, um dos principais nomes do funk no Rio). Feira de Acari chamou tanta atenção que entrou na trilha sonora da novela Barriga de aluguel, de Glória Perez, exibida pela TV Globo em 1995. Autora que incluiu, dez anos mais tarde, uma funkeira em sua novela intitulada América, popularizando o hit Som de preto de Amilcka e Chocolate (É som de preto/ de favelado, mas quando toca, ninguém fica parado!). (Medeiros, 2006, p. 17)
Medeiros5 escreve que na década de noventa, um ano depois do nascimento do funk carioca com características nacionais, já chagava às lojas o funk Brasil 2. O segundo volume do projeto incluía mais
melôs irreverentes e participações para lá de inusitadas. Entre elas, a falecida atriz Dercy Gonçalves – que gravou a Resposta das aranhas (garotão, que coisa estranha/ a sua cobra não quer mais a minha aranha) – e a dupla de atores Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães – na Melô do terror (composição de Regina, Marlboro e Hubert, do antigo Casseta & Planeta). O projeto Funk Brasil continua. Em 2006, MC Leozinho, com o hit Ela só pensa em beijar, entre outras faixas gravadas no CD, o sétimo volume recebeu disco de platina. 1.1.2 O funk e o Hip Hop O hip-hop surge nos anos setenta nos guetos negros de Nova York. No Bronx especificamente,
onde o Dj americano Afrika Bambaataa residia, também reconhecido como fundador da organização Zulu Nation e criador do movimento hip-hop, termo por ele criado. O termo hip-hop refere-se ao movimento do quadril (hip, em inglês). Bambaataa utilizou muitas gravações já existentes de diversos tipos musicais. Suas inflências iam de James Brown ao ícone da música eletrônica Kraftwerk, misturadas ao rap – canto falado, trazido pelo Dj jamaicano Kool Herc uma década antes. Com todos estes ingredientes juntos à criatividade, Afrika Bambaataa compôs Planet Rock, hoje um clássico do hip-hop mundial. (Medeiros, 2006, p.44)
Semelhante ao funk, o hip-hop possui alguns subgêneros: ingênuo-positivo, político-contestador e o polêmico gangsta rap. Este último, com significação de rap dos gangsters, é um subgênero que equivale ao proibidão do funk. Hoje o rapper está distante da figura do MC de funk – já que o termo “Mestre de Cerimonia” sempre apresentou uma associação ao entretenimento, à diversão e à energia positiva. Existe também uma grande diferença entre rappers americanos e brasileiros. Os rappers americanos estão mais vinculados ao luxo, ostentação de riqueza, violência e drogas – basta conferir alguns clipes para constatar , já os rappers brasileiros ainda preservam forte ligação social com as comunidades carentes de onde vieram6.
5
Op Cit pg. 18
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Ibid, p. 55
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O hip-hop chega ao Brasil na década de oitenta, nas periferias do Rio de Janeiro e São Paulo. Era o ritmo que alegrava as festas black paulistanas, que logo incorporaram o break e o grafite. Elementos que surgiram associados ao movimento e estavam em alta nos Estados Unidos, na época. Funk e hip-hop relacionavam-se bem até o final da década de oitenta, quando surgiu o movimento de nacionalização funkeira promovido por DJ Marlboro. As letras escrachadas e irreverentes dos MCs do Rio se afastaram do engajamento dos rappers de São Paulo – que passaram a incluir reivindicações do movimento negro em seu discurso. A partir deste momento que surge a divergência entre funk e hip-hop7. 1.1.3 O proibidão É o subgênero que, bem ou mal, sempre evidenciou o funk. O proibidão fez com que o funk ganhasse notoriedade, após isso, os artistas adeptos do subgênero vão a outro subgênero que possa ser comercializado mais fácil, é o caso de muitos MCs funkeiros. Orlando Junior (2009, p. 26) argumenta que a vertente mais radical do funk, o proibidão, pode ser enquadrada na lei criminal como apologia ao crime, delito com pena prevista de três a seis meses de prisão. O subgênero faz sucesso nas favelas e se associa às facções criminosas. As letras são reflexos do cotidiano violento nas comunidades, fazem apologias ao tráfico e ao uso de drogas, incentivam ataques a policiais, chamados de “vermes’’ pela linguagem do crime, e exaltam chefes do tráfico, entre eles Fernandinho Beira- Mar.
Na década de noventa, essa vertente se expande e sai das comunidades, ganhando o asfalto e os meios de comunicação. A primeira música desse tipo que se tem notícia é uma paródia da canção “Carro Velho”, de Ivete Sangalo. Orlando Junior (2009, p.31), baseado em Sousa (2006), comenta que essa música gerou polêmica por seu conteúdo violento e exaltação do crime organizado: Os proibidões existem desde a década de 90, sendo que, nessa época, eram mais restritos às comunidades tomadas pelo tráfico de drogas. Porém, a partir de 1999, com o Rap do Comando Vermelho, o proibidão desceu do morro para as manchetes dos jornais. O Rap era uma paródia do Carro Velho, da cantora Ivete Sangalo: “Cheiro de pneu queimado / carburador furado / e o X-9 foi torrado / quero contenção do lado / tem tira no miolo / e o meu fuzil está destravado”. Dali pra cá os Raps proibidos foram descendo cada vez mais as favelas e ganhando o asfalto da classe média. Hoje eles estão disponíveis na internet, nos camelôs e nos carros da garotada... A cultura marginal virou parâmetro e serviu de inspiração para que surgissem os Funks Proibidos da Polícia Militar.
Medeiros (2006, p. 70), a respeito do assunto, escreve que um pequeno grupo de funkeiros anônimos
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Op Cit p. 45
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passou a produzir funks clandestinos dentro das comunidades, cujas letras exaltam traficantes locais e ridicularizam a polícia. Em pouco tempo, a mídia e opinião pública generalizaram o funk consciente assemelhando-o ao proibidão. Fato que contribuiu para reforçar o preconceito e distanciar o reconhecimento do funk como cultura. Opinião pública e polícia defendiam a extinção da produção musical do morro. Duda do Borel, Mr. Catra e até Cidinho & Doca foram intimados a dar declarações sobre suas letras e acusados de apologia ao crime. Nada foi comprovado, mas o estigma entorno do funk continua.
A socióloga Vera Malaguti, citada por Medeiros (2006, p. 107), afirma que mais que uma cultura popular, o funk é visceral. Por esse motivo é que as letras do proibidão mexem com o imaginário social. “O funk é uma cultura, é uma resistência, e é também uma estratégia de sobrevivência. Uma maneira de trabalhar e de se divertir. E acho que se a gente pegasse isso, não pasteurizando, mas dando a voz, seria uma grande solução. Porque a juventude quer se expressar. O funk é a verdade nua e crua dos morros do Rio. Por isso incomoda...”.
Portanto, o funk proibidão é a representação da realidade das periferias/comunidades, sem nenhum tipo de censura, narrada pelo MC quando este está com o poder em mãos, o microfone. 1.1.4 O funk em São Paulo Atualmente, esse gênero musical divide-se em algumas vertentes. São elas: Proibidão, que é um subgênero que faz apologia tanto a crime, drogas quanto apelação sexual; Melody, que é mais popular, como Claudinho e Buchecha, Anita e Naldo, e possui batidas de música eletrônica, batidas leves, com uma
voz bem afinada e compassada; Consciente, que surgiu de influências do RAP brasileiro, e que visa a conscientizar o enunciatário dos problemas sociais e criticar o governo; e, por fim, Ostentação que é a nova moda. A maioria dos MCs segue o subgênero ostentação, que fala mais sobre marcas de roupas, veículos, casas luxuosas e mulheres bonitas. Neste último subgênero é que iremos nos ater para realizar as análises nas letras de funk. 1.1.4.1 Funk Ostentação8 O funk ostentação tem como berço Cidade Tiradentes, extremo leste da capital paulistana. O subgênero ganha forma em festivais de funk promovidos pela subprefeitura, uma forma de organizar os bailes de rua e descaracterizar o estigma de violência no movimento, assim incentivando letras sem apologia a crime, drogas ou sexo. Em São Paulo, é este tipo de funk que tem maior expressão e reúne grande massa de jovens adeptos. As características deste subgênero são nomes de marcas mencionadas enfaticamente nas letras de funk, carros, motocicletas e casas luxuosas, bem como as vestimentas. Observaremos mais a frente, neste estudo, estas características do funk ostentação na letra de funk analisada. 8
Este texto é baseado nos documentários: Funk da CT, dirigido por Renato Barreiro – Produtor Cultural. Na época, o documentário foi lançado pela produtora Mosquito. O outro é Funk Ostentação- O filme, Dirigido por Renato Barreiros e Konrad Dantas, lançado pelas produtoras 3K e Kondzilla
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2 ARCABOUÇO TEÓRICO 2.1 Referenciação: o que é? A produção textual exige em seu desenvolvimento que façamos referência a algo, alguém, fatos, eventos e sentimentos; que mantenhamos em foco os referentes introduzidos por meio da operação de retomada; e desfocalizemos referentes e deixemos em Stand by, para introduzir outros referentes ao discurso. (ELIAS e KOCH, 2012, p. 131) Quando lemos um texto percebemos que elementos discursivos novos são introduzidos, como, por
exemplo, um nome, que no decorrer do texto pode ser modificado, recategorizado. Koch (2009, p.61, apud Koch, 1999, 2002) argumenta que a referenciação constitui, assim, uma atividade discursiva. O sujeito, por ocasião da interação verbal, opera sobre o material linguístico que tem a sua disposição, operando escolhas significativas para representar estados de coisas, com vistas à concretização de sua proposta de sentido. Isto é, processos de referenciação são escolhas do sujeito em função de um querer dizer. Os objetos-de-discurso não se confundem com a realidade extralinguística, mas (re)constroem -na no próprio processo de interação. Ou seja: a realidade é construída, mantida e alterada não somente pela forma como nomeamos o mundo, mas, acima de tudo, pela forma como, sociocognitivamente, interagimos com ele: interpretamos e construímos nossos mundos por meio da interação com o entorno físico, social e cultural.
Como percebemos, o discurso constrói uma representação que funciona por meio de uma memória compartilhada. Essa representação é responsável por boa parte de seleções realizadas pelos interlocutores. Koch (2009, p. 62) nos ensina que no processo de referenciação estão envolvidas algumas estratégias básicas, como: Construção/ativação – pela qual um objeto textual até então não mencionado é introduzido, passando a preencher um nódulo (“endereço” cognitivo, locação) na rede conceitual do modelo de mundo textual: a expressão linguística que o representa é posta em foco na memória de trabalho, de tal forma que esse “objeto” fica saliente no modelo. Reconstrução/reativação – um nódulo já presente na memória discursiva é reintroduzido na memória operacional, por meio de uma forma referencial, de modo que o objeto-de-discurso permanece saliente (o nódulo continua em foco). Elias e Koch (2012, p.135) nos explicam que formas de remissão a elementos já apresentados no texto ou indicados pelo co-texto precedente possibilitam a sua (re)ativação na memória do interlocutor, ou seja, a alocação ou focalização na memória ativa (ou operacional) deste; por outro lado, ao operarem uma recategorização ou refocalização do referente também se identifica uma reativação na memória.
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Desfocalização/desativação – ocorre quando um novo objeto de discurso é introduzido, passando a ocupar a posição focal. O objeto retirado de foco, contudo, permanece em estado de ativação parcial (stand by), podendo voltar à posição focal a qualquer momento; ou seja, ele continua disponível para utilização imediata na memória dos interlocutores. Quando referentes são retomados, ou servem de princípio a novos referentes, constituem o que se denomina de progressão referencial. (Elias e Koch, 2012, p. 132) A retomada de referente pode ser classificada em anafórica ou catafórica. Anafórica quando a retomada é feita de forma retrospectiva, e catafórica quando a retomada ao referente é prospectiva.
Para que a continuidade de um texto seja garantida, precisamos manter um equilíbrio entre a repetição (retroação) e progressão, duas exigências fundamentais na produção textual. Elias e Koch (2012, p. 138) apontam que a escrita de um texto continuamente remete-nos a referentes apresentados anteriormente e já introduzidos na memória discursiva do interlocutor; com isso acrescentam novas informações que constituirão suporte a outras informações. Às retomadas ou remissões a um mesmo referente dá-se o nome de progressão referencial. Uma série de elementos linguísticos pode realizar a progressão referencial, a saber: Formas de valor pronominal Numerais Certos advérbios locativos Elipses Formas nominais reiteradas Formas nominais sinônimas ou quase sinônimas Formas nominais hiperonímicas Nomes genéricos
As autoras (2012, p.152) nos ensinam que, por ocasião de progressão referencial, é possível sumarizar-se todo um trecho anterior ou posterior do texto, por meio de forma pronominal ou nominal: é a isso que se denomina encapsulamento. Assim, o encapsulamento pode ser feito por meio de um pronome demonstrativo neutro, como isto, isso, aquilo, o, ou, então, por meio de uma expressão nominal, ocorrendo o que se denomina rotulação.
2.2 Formas de ativação de referentes Ao produzirmos um texto, podemos recorrer a dois tipos de ativação de referentes: ancorada e não -ancorada. Uma introdução ancorada acontece quando um elemento novo é introduzido no texto, porém possui alguma associação com elementos presentes no cotexto ou contexto sociocognitivo dos interlocutores.
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Uma ativação não-ancorada ocorre quando introduzimos ao texto um elemento de discurso totalmente novo. Este elemento, quando representado por uma expressão nominal, opera uma primeira categorização. (ELIAS e KOCH, 2012, p. 134) Essas ativações na memória, ancoradas e não ancoradas, são construídas por anáforas diretas e indiretas. Opostas às anáforas diretas que reativam referentes já introduzidos no texto, as indiretas são constituídas por expressões nominais definidas, indefinidas e pronomes interpretados referencialmente sem que corresponda um antecendente/subsequente aparente no texto, o que ocasiona uma estratégia de ativação de referentes novos, e não uma reativação de referentes já conhecidos...
2.3 Nomes de marcas e de produtos Nomes de marcas e de produtos são tipos de nomes próprios que dominam o universo do funk, por isso trataremos isoladamente a questão, com mais detalhes. Maingueneau (2013, p.271) escreve que “com essas marcas, nosso mundo se povoa de entidades que não são nem seres humanos, nem animais, nem objetos (“Coca-Cola”, “Renault”, “Chanel”...) e que possuem ainda a particularidade de ser apresentadas como as responsáveis pelos enunciados publicitários. O nome de marca, segundo o autor, somente apresenta sentido quando relacionado a outros dois tipos de denominação: a categoria de produto e a do produto.
2.3.1 Nome de marca É um tipo de nome próprio. Diferente dos nomes próprios, por exemplo, “João” e “Pedro”, e exatamente como nomes de país, a exemplo, “o Brasil”, “a China”, só pode designar uma “única entidade”. A marca, como aponta Maingue (2013, p.272), faz referência a agente coletivo, uma empresa, que possui simultaneamente propriedades ligadas ao indivíduo humano. A marca desempenha o papel de conceptor do produto, responsável por sua qualidade. Existem diversos tipos de nomes de marca. Maingueneau (2013) classifica os tipos da seguinte forma: alguns são tirados do léxico da língua, outros apresentam o nome do fundador.
2.3.1.2 Nome de categoria O nome de categoria se apresenta por meio de nomes “comuns”, que fazem referência às classes às quais podemos associar determinantes como este ou um. Esse processo pode passar por transformações, como um nome de marca se transforme em nome de categoria (“um frigidaire” = um refrigerador, “uma gilete” = “um aparelho de barbear”...).
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2.3.1.3 Nome de produto Trata-se de nome próprio que se diferencia dos nomes de seres humanos, marcas ou obras de arte, não por designar um indivíduo somente, mas sim um número ilimitado de mercadorias idênticas. Maingueneau argumenta que nem todos os produtos possuem um nome específico: perfumes e carros, a exemplo, possuem um nome, já os legumes não, pois, são dificilmente individualizáveis, efêmeros e não possuem privilégio de raridade.
2.3.1.4 Nomes humanos Muitos nomes de marca se apresentam como nomes de seres humanos,
reais ou fictícios.
Maingueneau explicita que uma empresa é categorizada pelo interlocutores espontaneamente como um agente coletivo, por exemplo, o que acontece com nomes de países: “França assinou um contrato com Brasil”, também como nomes de partidos: “PSDB discute com PT”. Os nomes humanos são tipificados em três por Maingueneau (2013, p.283): 1 – “Peugeot”, “Thomsom”... 2 – “Justin Bridou”, “Christian Dior”...
3 – “ Paul”, “Marie”… No primeiro caso, tem-se como privilegiado o patronímico (nome de família) e apaga-se o prenome; no segundo caso, existe a associação entre prenome e patronímico, e, por fim, no terceiro caso, aparece apenas o prenome. Ensina-nos Maingueneau (2013, p. 283) que “o apagamento do prenome desindividualiza o nome, colocando em primeiro plano uma coletividade compacta. A manutenção do prenome e do patronímico enfatiza a dimensão individual biográfica (a de um fundador, de um criador...)”. As marcas de automóvel tendem a apagar a dimensão individual suprimindo o prenome, por exemplo, “Ford”, “Nissan”. Por outro lado, as marcas que possuem produtos com uma ligação
frequentemente imaginária com a criação individual, por exemplo, “costura”, “alimentação”, tendem a privilegiar a individualidade criadora. Por fim, o emprego apenas do prenome, por exemplo, “Paulo”, “Maria”, bastante raro, é exclusivo a produtos que apresentam ligação à intimidade, por exemplo, “roupas”, “cozinha”, uma vez que o uso do prenome é reservado às relações de um grupo pessoal: “família”, “amigos”. Assim, a marca apresenta-se com aparência de alguém próximo. Nos capítulos seguintes, referentes ao corpus e análise do mesmo, perceberemos a construção e reconstrução de elementos discursivos nas letras de funk, bem como a funcionalidade e efeitos de algumas marcas encontradas no corpus. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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3. O CORPUS Nosso corpus é constituído por uma letra de música do segmento funk: Plaquê de 100 do Mc Guimê: Contando os plaque de 100, dentro de um Citroën, Ai nois convida, porque sabe que elas vêm. De transporte nois tá bem, de Hornet ou 1100, Kawasaky,tem Bandit, RR tem também. A noite chegou, e nois partiu pro Baile funk, E como de costume, toca a nave no rasante De Sonata, de Azera, as mais gata sempre pira Com os brilho das jóias no corpo de longe elas mira, Da até piripaque do Chaves onde nois por perto passa, Onde tem fervo tem nois, onde tem fogo há fumaça. É desse "jeitim" que é, seleciona as mais top, Tem 3 porta, 3 lugares pra 3 minas no Veloster Se quiser se envolver, chega junto vamo além Nois é os pica de verdade, hoje não tem pra ninguém. Contando os plaque de 100, dentro de um Citroën, Ai nois convida, porque sabe que elas vêm. De transporte nois tá bem, de Hornet ou 1100, Kawasaky,tem Bandit, RR tem também. Nois mantem a humildade, Mas nois sempre para tudo E os zé povinho que olha, de longe diz que absurdo. Os invejoso se pergunta, tão maluco o que que é isso, Mas se perguntar pra nóis, nóis vai responder churisso, Só comentam e critica, fala mal da picadilha Não sabe que somos sonho de consumo da tua Filha. Então não se assuste não, quando a notícia vier a tona, Ou se tormbar ela na sua casa, Em cima do meu colo, na sua poltrona. Contando os plaque de 100, dentro de um Citroën, Ai nois convida, porque sabe que elas vêm. De transporte nois tá bem, de Hornet ou 1100, Kawasaky,tem Bandit, RR tem também.
MC Guime é famoso por ser um cantor e compositor de funk ostentação brasileiro. Guilherme Aparecido Dantas ou apenas MC Guime, nascido no dia 10 de dezembro de 1992, ficou conhecido em 2011 pela música "Tá Patrão". Diferente do funk carioca, que fala principalmente sobre as comunidades de onde surge, o paulistano tem sua música focada na ostentação. Suas letras mostram o poder através dos carros, roupas de grife, dinheiro, perfumes importados e até mesmo joias. Depois do seu primeiro sucesso, o MC lançou o clipe "Plaquê de 100", se tornando um dos vídeos mais assistidos de 2012, com mais de 30 milhões de visualizações no Youtube. A partir de 2013, o funkeiro começou a aparecer nas grandes mídias. No mesmo ano, lançou a canção "País do Futebol" com o rapper Emicida, uma homenagem a Copa das Confederações Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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e ao jogador Neymar. A música fez tanto sucesso que entrou para a trilha sonora da novela "Geração Brasil", da Globo. O cantor ganhou tanta notoriedade no meio musical que, no Carnaval de 2014, foi convidado a cantar com Claudia Leite. Juntos os dois apresentaram o sucesso "Plaquê de 100" e o hit "Claudinha Bagunceira", da artista de axé.
4. Análise do corpus
A partir da fundamentação teórica explicitada anteriormente é que pretendemos analisar as ocorrências de referenciação e nomes de marcas presentes no corpus. Música: Plaquê de 100 Cantor: MC Guimê Contando os plaque de 100, dentro de um Citroën, Ai nois convida, porque sabe que elas vêm. De transporte nois tá bem, de Hornet ou 1100, Kawasaky, tem Bandit, RR tem também.
Percebemos a designação de nomes de produto como formas hipônimas do hiperônimo transporte: Citroën, Hornet, 1100, Kawasaky, Bandit e RR. Os hiperônimos e hipônimos são anáforas especificadoras (ELIAS e KOCH, 2012, p.150). O hipônimo mais genérico, por exemplo, o nome de produto: Hornet; e hiperônimo é mais abrangente, por exemplo, nome de categoria: transporte. Assim, observa-se também que a marca se transforma em produto: Citroën no lugar de nome do produto. A respeito das marcas, econtramos as seguintes ocorrências: A) Contando os plaques de 10 dentro de um Citröen B) De transporte nois tá bem, de Hornet ou 1100 Kawasaky, tem Bandit, RR tem também C) De Sonata, de Azera, as mais gata sempre pira D) Tem 3porta, 3lugares pra 3minas no Veloster Os nomes de marcas são utilizados pelo funk como status, são introduzidos discursivamente para explicitar o poder econômico do narrador.
Retomando Maingueneau (2013), percebemos no caso A) a transformação, como já mencionado, Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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de uma marca em produto. Citröen é o nome da empresa automobilística, e não um nome de modelo de carro. Apagar a dimensão individual, suprimindo o prenome é tendência em marcas de automóvel. Isso faz com que o nome expresse uma coletividade compacta. Também evidencia uma dimensão individual biográfica, a de um fundador ou criador, no caso André Citröen9. Evidencia-se também que dizer um Citröen significa que qualquer carro da empresa é sinônimo de ostentação, sendo assim, não explicitando o nome do produto. No caso B) Hornet é nome de produto da marca Honda. Kawasaki e Bandit são nomes de produtos da marca Suzuki. 1100 é a capacidade de cilindradas de uma moto. O que fica claro pelo discurso é que não se faz
preciso mencionar o nome do produto, pois as cilindradas, sua potência, já evidenciam que não é uma moto popular, mas sim um sinônimo de ostentação. CBR é caso semelhante ao de 1100, pois não se trata de nome de produto, mas elemento que evidencia o produto. Esse elemento, CBR, dita a velocidade das motocicletas da marca Honda. Nos casos C) e D) temos nomes de produtos da marca Hyundai. As marcas aparecem como personagens fundamentais para o discurso no funk, pois são elas que dão o tom de ostentação nas letras. Como diz Maingueneau (2013), os nomes de marcas povoam o mundo de entidades que não são nem seres humanos, nem animais, nem objetos e estão rsponsáveis pelo enunciado durante o discurso. No funk, elas são responsáveis pelo discurso da ostentação, são selecionadas para isso. Não seria
ostentação se, por exemplo, um MC citasse nomes de automóveis populares, como os da Fiat e Wolkswagem, por exemplo, Uno e Gol. As marcas são os temperos da ostentação. O pronome elas é uma anáfora indireta do referente as mais top, que aparecerá adiante no trecho Ai nois convida, porque sabe que elas vêm. Como já mencionado por nós anteriormente, as anáforas indiretas ativam novos referentes discursivos, ou seja, não há uma reativação de elementos já conhecidos no texto. São elementos que apresentam uma referenciação implícita. Elias e Koch (2012, p.136) pontuam que esse processo de referenciação implícita é constituído com base em elementos textuais ou modelos mentais e é muito mais comum a sua produção do que imaginamos. A noite chegou, e nois partiu pro Baile funk, E como de costume, toca a nave no rasante
Nesse trecho, encontramos o elemento discursivo nave que recategoriza a categoria anteriormente apresentada: transporte.
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Citroën é uma fabricante de automóveis francesa fundada em 1919 por André Citroën e hoje é parte da PSA Peugeot Citroën. Sua matriz é situada em Paris, rue Fructidor.Texto retirado de: http://pt.wikipedia.org/wiki/Citröen. Acesso em 23 nov
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Com os brilho das jóias no corpo de longe elas mira, Da até piripaque do Chaves onde nois por perto passa,
O elemento disrcusivo introduzido, piripaque do Chaves, pressupõe que o interlocutor conheça o personagem Chaves e o piripaque10, trata-se de um conhecimento compartilhado. O interlocutor aciona modelos mentais, ou seja, suas experiências vividas, seu conhecimento, para dar significado ao elemento discursivo apresentado. Também aciona um modelo de contexto para rememorar em qual situação a figura Chaves apresenta o piripaque, pois não é algo que ocorra a todo momento, mas em situações específicas. Onde tem fervo tem nois, onde tem fogo há fumaça.
A forma nominal fervo é uma anáfora indireta do objeto Baile funk. Fervo e Baile funk são sinônimos na linguagem dos MCs. É desse "jeitim" que é, seleciona as mais top,
A expressão “desse jeitim” é um encapsulamento/sumarização dos dizeres anteriores, pois retoma uma série de elementos linguísticos que se reduzem ao elemento “jeitim”. Tem 3 porta, 3 lugares pra 3 minas no Veloster
O objeto discursivo aqui trata-se de uma anáfora indireta, pois as expressões definidas 3 porta, 3lugares e 3minas relacionam-se à expressão Veloster que serve de âncora para introduzir as expressões referenciais. E os zé povinho que olha, de longe diz que absurdo. Os invejoso se pergunta, tão maluco o que que é isso,
Nos versos acima, percebemos a recategorização do elemento invejoso por zé povinho. Ao analisar as construções e reconstruções, o conhecimento compartilhado, o encapsulamento e os nomes de marcas, entre outros elementos linguísticos, presentes nas letras de funk, faz com que percebamos como essas letras de funk formam um material riquissimo de estudo da linguagem. Os
referentes são categorizados e recategorizados para enfatizar a intenção e o significado ao ouvinte/receptor da mensagem.
10
O personagem Chaves, do seriado de nome Chaves, tem esse piripaque quando passa por alguma situação de nervosismo, o que acarreta em uma paralisia momentânea de seu corpo que é sanada com borrifões de água em seu rosto.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Constatamos, após as análises, que as letras de funk são grandes objetos de estudo e pesquisa sobre referenciação, pois é constante a construção e a reconstrução de objetos-de-discurso. Os nomes de marca/ produto também apresentam ações discursivas muito relevantes, pois não são introduzidos no discurso para não produzirem efeito no interlocutor, pelo contrário, os nomes de marcas proporcionam o significado da ostentação às letras de funk. Trata-se também de incrível material para estudo de gírias de grupo, o que ficará para uma outra ocasião. Necessário retomar o objetivo. REFERÊNCIAS ELIAS, Vanda Maria & KOCH, Ingedore Villaça. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2012. JUNIOR, João Orlando. Batidão: um estudo da variação discursiva na música FUNK. Dissertação de Mestrado, PUC-SP: 2009. KOCH, Ingedore G. Villaça. Introdução à linguística textual. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Edição? São Paulo: Cortez, 2013. MEDEIROS, Janaina. Funk carioca: crime ou cultura?: o som dá medo. E prazer. São Paulo: Terceiro Nome, 2006. REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS Documentário Funk da CT. Disponível em: http://vimeo.com/15600686. Acesso em 04 de nov. 2014. Documentário Funk Ostentação – O filme. Disponível em: https://www.youtube.com/watch? v=5V3ZK6jAuNI. Acesso em 04 de nov. 2014. Letra de música do Mc Guimê: Plaquê de 100. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/mc-guime/plaque -de-100.html. Acesso em 06 de out. 2014.
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O DISCURSO JOCOSO NA MANCHETE ‘COM MÃO NA VAGA’ DO JORNAL POPULAR NOTÍCIA JÁ THE JOCULAR SPEECH IN HEADLINE ‘COM MÃO NA VAGA’ OF POPULAR NEWSPAPER NOTÍCIA JÁ Maria Helena Corrêa da Silva Matei Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP helenasmatei@hotmail.com
RESUMO Considerando a necessidade de estratégias para a compreensão do sentido de manchetes jornalísticas que levam ao humor, este artigo tem por objetivo analisar algumas marcas linguísticas presentes no texto verbal, quando este é associado ao visual de uma manchete, a fim de conhecer alguns aspectos semântico-linguísticos que desencadeiam o riso e a cumplicidade leitor/jornal. Esses são elementos fundamentais no discurso da malícia presente em manchetes de jornais populares que enfatizam o discurso sensacionalista. O estudo desses mecanismos contribuirá para uma melhor compreensão do funcionamento da linguagem canalizada para a comicidade e o jogo lúdico, adotada no sentido de suscitar a atenção do público de uma determinada classe social. Essa linguagem é a responsável por garantir a expressiva venda do jornal e sua projeção no mercado de consumo de periódicos. Palavras-chave: humor; manchete; jornais populares. ABSTRACT Considering the requirement for strategies for understanding the sense of news headlines that lead to humor, this article aims to analyze some language styles in the verbal text, when it is associated with the image of a headline, in order to meet some semantic-linguistic aspects that trigger laughter and complicity between reader and newspaper. These are key elements in this malice speech on popular newspaper headlines that emphasize the sensational speech. The study of these mechanisms contribute to a better understanding of the functioning of language mechanisms into the comic language and wordplay, adopted in order to draw the public's attention to a particular social class. This language is responsible for ensuring the significant sale of the newspaper and its projection in the consumer magazines market. Keywords: humor; headlines; popular newspapers.
INTRODUÇÃO
Este artigo tem como tema o estudo do discurso da malícia presente em manchetes de jornais populares que enfatizam esse tipo de discurso e, consequentemente, levam a uma situação de humor. Considerando a linguagem sensacionalista destes jornais, o objetivo deste estudo é analisar alguns aspectos textuais – como o jogo lúdico do duplo sentido – presentes no texto verbal, associadas aos elementos visuais, da manchete ‘COM MÃO NA VAGA’ do Notícia JÁ (jornal que circula na cidade de Campinas. O estudo se faz a fim de conhecer alguns aspectos semântico-linguísticos que desencadeiam o riso e a cumplicidade leitor/jornal. Mesmo que algumas manchetes possam apresentar alguns juízos de valor considerados grosseiros, machistas e/ou ofensivos, elas chamam a atenção de um público leitor significativo, conforme dados Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
estatísticos da venda do jornal, os quais demonstram que 85% desse público pertence à nova classe média (B e C)1. Recriando os fatos noticiados, as manchetes sensacionalistas, que carregam em seu bojo o discurso da malícia, utilizam-se de estratégias, como a da ambiguidade, para conquistarem sua parcela de público leitor. A fim de identificar as características do jornalismo sensacionalista e as características do gênero manchete que levam ao humor, utilizar-se-á os fundamentos teóricos de O Discurso da Violência, de Dias (2008); A linguagem proibida, de Preti (2010); O Riso, de Bergson (2001); Faces do Humor, de Ramos (2011) e Malícia e humor: leitura das manchetes de capa do Meia Hora, de Somogyi (2014).
O estudo dos mecanismos semântico-linguísticos favorecerá uma melhor compreensão do funcionamento da linguagem que resulta na comicidade e no jogo lúdico. Como exposto acima, essa linguagem suscita o interesse, pelo jornal, de um público determinado. Esse público, por sua vez, compartilha dos mesmos valores sociais e garante a expressiva venda do Notícia Já e sua projeção no mercado de consumo de periódicos. Jornal Notícia JÁ O jornal Notícia JÁ foi criado pelo Grupo RAC e circula por 30 cidades do interior paulista; entre elas, está a de Campinas, onde foi lançado em 2007. Tem um formato de tabloide – de fácil manuseio,
portanto. É vendido, nessa cidade, por um valor de R$1,00 e conta com uma circulação diária de 30.000 exemplares. Em uma linguagem popular, apresenta textos curtos e, segundo seus fundadores, a tendência seguida é a mesma “adotada por importantes grupos de comunicação de todo o mundo” e “a publicação mantém os princípios editoriais dos outros jornais do Grupo RAC, comprometido com a informação e com a defesa dos interesses da comunidade”2. Retirados do site do jornal, seguem dados estatísticos que conferem o perfil do leitor do Notícia Já: classe social (A:10%, B:50%, C:35%, D e E: 5%); faixa etária (10 a 12 anos: 2%, 13 a 24 anos: 22%, 25 a 34 anos: 18%, 35 a 44 anos: 27%, 45 a 59 anos: 22% e 60 anos ou mais: 9%) e sexo (masculino: 50% e feminino: 50%). Assim, o público leitor deste jornal pertence às classes B e C (com cerca de 56% dessas
pessoas possuindo Ensino Médio completo), é composto por mulheres e homens em igual proporção, em uma faixa etária entre 35 a 44 anos, majoritariamente3. As matérias do jornal trazem notícias relacionadas a trabalho, lazer, esportes, economia popular, personalidades e muita prestação de serviço. A seção de interesse a este estudo é a de esportes que traz a matéria (intitulada ‘Festa, susto e mais festa’) referente ao jogo São Paulo x Emelec, times que disputam 1
fonte: http://www.gruporac.com.br/noticia-ja/, acessado em agosto de 2014.
2
fonte: http://www.gruporac.com.br/noticia-ja/, acessado em agosto de 2014.
3
idem
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uma classificação na Copa Sul-Americana. A notícia (anexo 2) que deu origem à manchete (anexo 1) que compõe o corpus deste trabalho está à p.15 da edição N. 2596, de 31 de outubro de 2014, sexta-feira. Em relação a essa matéria, a capa traz, como manchete, uma vinheta (linguagem verbal e não verbal) em que está em letras garrafais o título seguinte: COM MÃO NA VAGA, associado à imagem de alguns jogadores do time São Paulo. Nessa imagem, o jogador em destaque insinua um comportamento sexual por meio de um gesto obsceno. Logo abaixo da imagem, vem o seguinte subtítulo: ‘Tricolor abre 3, leva 2, marca mais um e vence o Emelec por 4 a 2 no Morumbi para ficar perto da semi da Sul-Americana’ (anexo1). É importante observar que, nessa capa, ao lado dessa manchete, está outra manchete, em que uma modelo, trajando só a parte de baixo do biquíni e cobrindo os seios com as mãos, ocupa lugar de destaque (anexo
1). Acreditamos que o registro linguístico popular, a gíria e os recursos expressivos, como marcas da oralidade na modalidade escrita, utilizados pelo jornal Notícia JÁ, aproximam seus leitores, uma vez que esses traços fazem parte da linguagem desse tipo de público (em que cerca de 44% de seus integrantes não possui Ensino Médio completo). A fim de chamar a atenção para a leitura de uma matéria sobre a Copa Sul-Americana que foi realizada entre os times classificados de países da América do Sul, matéria inscrita na seção esportes, a manchete de primeira página usa como estratégia uma linguagem que, consideramos, configura uma postura machista do jornal frente à ideologia sexual que, implicitamente, veicula na manchete de capa. Quanto à capa e à manchete em si, julgamos obscena a linguagem utilizada, a qual incorpora o verbal e o
não verbal de um modo sensacionalista a fim de buscar, por conta do interesse na venda do jornal, uma perfeita comunhão com o leitor, sugerindo uma inclinação deste em compactuar com a tendência daquele. Sendo assim, consideramos que a manchete em letras garrafais propaga, por meio de um discurso ambíguo, uma afirmação que é, segundo Dias, característica do discurso da malícia. Nessa afirmação, portanto, a “exploração constante da malícia, pelo duplo sentido das manchetes, associada a referentes da vida sexual” (DIAS, 2008, p.67) atrai um tipo de leitor determinado responsável pela venda massificada do jornal. É interessante observar que, apesar de existir esse tipo de manchete, o jornal se qualifica como sendo feito para toda a família, reforçando, em nosso entender, uma sugestão da tendência machista da sociedade brasileira. Texto: linguagem popular e sensacionalista na imprensa Utilizando como pressuposto que as manchetes de um jornal sensacionalista adotam, como estratégias de construção de sentido, os mesmos recursos linguístico-discursivos utilizados pelas tiras (linguagem em quadrinhos), considera-se, neste artigo, que esse tipo de manchete também produz um efeito de humor. Essa constatação se justifica pelo fato de ambas envolverem os diferentes códigos: verbal e visual que, em um diálogo entre si, estabelecem a compreensão do sentido. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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Acrescentamos que a noção de texto defendida por Ramos (2011) parece ser apropriada para o estudo da manchete em questão. Texto, para o autor, “é onde circulam informações tanto de ordem verbal quanto visual que, somadas e articuladas, levam à construção do sentido” (2011, p.11). Nessa visão, Ramos acrescenta que o texto é ainda “o meio onde as pessoas se comunicam e interagem dentro de um contexto sociocognitivo [...]”, no qual “importa saber o momento e a situação de produção textual, bem como as informações de ordem mental (como os conhecimentos prévios e os compartilhados) acionadas por autor/leitor ou falante/ouvinte” (2011, p.11). No contato com uma manchete de jornal, como a analisada neste artigo, haverá uma leitura que associa a linguagem visual à verbal, em que uma série de informações será acionada nos interlocutores
(contexto cognitivo) que é compartilhada pelo enunciador do texto (conhecimento partilhado). No caso da manchete analisada, julgamos que a inferência se dá na medida em que o modo como é encarado o ato sexual é um dado social que faz parte da cultura de determinados povos. Observamos que, segundo Ramos, “O mecanismo de construção do sentido textual passa por esses aspectos mediados por gêneros”, no caso, manchetes de jornal (possuem público específico e características próprias), configurando “situações prototípicas utilizadas no processo comunicativo” (2011, p.12). As manchetes, por envolverem tanto o código verbal escrito quanto o visual (imagens e cores), apresentam um processamento textual complexo, assim como Ramos (2011, p.143) admite ser o processamento textual das tiras. Uma das estratégias para se compreender o sentido desse gênero textual
será situar o texto contextualmente. A manchete ‘COM MÃO NA VAGA’ compreende ¼ da página da capa do jornal, o qual reserva o outro ¼ para a manchete ‘Morenaça arrasa na hora do vuco-vuco’, apresentando como imagem de destaque uma modelo seminua (anexo 1). Dessa forma, totalizando ½ da página de capa, constatamos que o jornal utiliza-se de meios apelativos para atrair, ou seja, chamar a atenção de seu público. A nosso ver, o espaço (metade da página) reservado a essas duas manchetes inscritas na página de rosto do Notícia Já demonstra a importância que o jornal dá ao modo como a notícia é veiculada, isto é, o que mais interessa não é noticiar o fato em si – ele já é divulgado amplamente por outros jornais de circulação nacional/ internacional – e sim passar uma concepção ideológica. É possível conjecturar essa concepção como a de superioridade dos homens em relação à mulher, uma vez que a disposição dos textos, das imagens, e
principalmente a dimensão de destaque dada a elas sustenta esta conotação. Sendo assim, presumimos que o fato propriamente dito (disputa São Paulo x Emelec) serve apenas como pano de fundo para que o jornal, mesmo implicitamente, deixe transparecer uma atitude ideológica sexual em que perpassa uma mentalidade machista (seja por sua própria ideologia ou por acreditar ser a ideologia do leitor). Uma das marcas linguísticas de uma linguagem popular é a presença de traços da oralidade na língua escrita. É muito comum na organização do discurso jornalístico de um jornal, como o que se apresenta neste artigo, a presença de traços similares aos de uma conversação espontânea, que leva ao envolvimento locutor/interlocutor. Acrescenta-se que na organização desse tipo de discurso há também a Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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estratégia do detalhamento, em que pormenores são destacados; há ainda avaliação externa, em que o jornalista-enunciador faz comentários sobre os fatos, além de se utilizar, muitas vezes, do discurso direto. Estes, entre outros traços da oralidade presentes principalmente na linguagem da imprensa escrita popular, são estratégias que, segundo Dias (2008, p.57), propiciam “ao leitor um sentido de proximidade e identificação”. Essa dinâmica da conversação busca estabelecer uma interação entre o jornal e seus leitores, fazendo com que o discurso lhes soe familiar, uma vez que o envolvimento autor/leitor “possibilita a satisfação da necessidade informativa” deste, segundo a mesma autora (2008, p.58). A gíria, por ser uma característica da linguagem popular, é muito empregada na organização do
discurso jornalístico que utiliza desde aquelas comuns, por pertencerem a um grupo social restrito, até aquelas consideradas marginais, por pertencerem a um grupo marginalizado socialmente. O uso desses tipos de gíria, quando ocorre em construções metafóricas, leva a uma situação de humor. A esse exemplo, na capa do jornal em questão encontramos: “mão na vaga”, “morenaça” e “vuco-vuco”. A imprensa sensacionalista, por sua vez, faz uso da linguagem popular com a utilização de vocabulário gírio, já que seu objetivo está voltado para o consumo imediato, não se importando, assim, com a reflexão e o senso crítico do leitor em relação ao que é noticiado. Este tipo de imprensa utiliza-se de uma linguagem coloquial e vulgar. O objetivo desse sensacionalismo, representado pela linguagem popular, segundo Dias (2008, p. 48), é o de buscar identificação entre a linguagem do jornal e a do público leitor, com a preocupação de levar a notícia para o grande público consumidor. O discurso da malícia: obscenidade, erotismo e humor O termo malícia, segundo Somogyi (2014, p.41), pode ter “o sentido relacionado à obscenidade, ao erotismo ou à pornografia”. Para a análise do corpus deste estudo, utilizaremos apenas o primeiro sentido. Enquanto o discurso pornográfico faz referências às relações sexuais de um modo explícito e direto, chegando até a provocar excitação no leitor, o discurso da obscenidade e do erotismo representa as relações sexuais de um modo mais velado. Conforme Somogyi (2014, p.43), A obscenidade é produzida a partir de patrimônio partilhado por uma mesma comunidade cultural. De tradição oral, é disseminada entre as camadas populares, especialmente, entre grupos masculinos, pois apresenta vínculo estreito com sua sexualidade.
Em um processo enunciativo, pode-se dizer, então, que o discurso em que há obscenidade cria “uma rede de referências baseadas em alusões e enigmas, de modo que o enunciatário seja interpelado a partilhar dessa maliciosidade coletiva” (SOMOGYI, 2014, p.43). O discurso erótico, por sua vez, conforme essa mesma autora (SOMOGYI, 2014, p. 44), “é considerado mais elevado que a pornografia, mais refinado e poético [...]. As passagens eróticas, muitas vezes, revestem o ato sexual de véus – as metáforas e metonímias – [...]”. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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Segundo Preti (2010, p. 84), a linguagem maliciosa que contém um erotismo disfarçado ou obscenidade velada remete ao referente sexual de um modo dissimulado e, dessa maneira, seu enunciador isenta-se da responsabilidade sobre a mensagem transmitida. Neste tipo de discurso, há um jogo de duplo sentido, em que prevalecem as sugestões e ambiguidades, já que não há referência explícita ao ato sexual. Consideramos que é o que acontece no texto da manchete aqui analisada. Preti (2010, p. 85) ressalta que os vocábulos obscenos e grosseiros são associados a uma classe de falantes de baixo nível de escolaridade. Como os termos obscenos e grosseiros são considerados de uso predominante do povo inculto (Preti, 2010, p.85), os jornais populares fazem uso desses termos, uma vez
que seu interesse, como já dito anteriormente, é o de vender o jornal, não se importando com uma linguagem mais elaborada. O autor ressalta ainda que “pode-se dizer que um dos índices do vocábulo grosseiro e obsceno é a sua preferência a uma vida sexual quase sempre deformada, que se fundamenta nos comportamentos de exceção, nos vícios e exageros eróticos” (PRETI, 2010, p.85). Já que, no discurso da malícia, um vocábulo comum pode ter uma conotação licenciosa em que esse vocábulo é “marcado pelo sema do erotismo” (SOMOGYI, 2014, p. 46), esse discurso desencadeia dois tipos de sentido. Um literal, cujo sentido é dicionarizado, e outro obsceno, sentido de significação latente. O discurso da malícia, portanto, possibilita “que se expresse uma ideia de forma indireta, com a possibilidade de se recusar a responsabilidade pelo que foi expresso, ou de se “‘dizer sem ter
dito’” (SOMOGYI, 2014, p. 47). Este é o discurso que tem relação direta com a manchete, foco desta pesquisa. Levando-se em conta que “nosso riso é sempre o riso de um grupo” (BERGSON, 2001, p. 5), o fenômeno do humor presente em um tipo de discurso como este atinge sobretudo um determinado grupo social que considera engraçado quando o discurso aponta para sua sexualidade. Nesse sentido, o riso é uma questão cultural. Segundo Bergson, um leitor ri da mesma forma que outro quando pertence à mesma sociedade desse outro. Para este mesmo autor, “não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano” (BERGSON, 2001, p.2). Dessa maneira, a cultura e a sociedade são de fundamental importância para o desencadeamento do humor, principalmente “quando os participantes do ato cômico partilham dos mesmos valores sociais, das mesmas normas etc.” (SOMOGYI, 2014, p.60).
Citando Raskin em sua dissertação de mestrado, Somogyi observa que a questão do humor “envolve também a noção de superioridade, já que é a partir do que se define como superior ou modelar em si mesmo que se estabelece, por comparação, o defeito, o equívoco”. Isso indica “que o humor é mais eficiente quanto mais se valoriza um grupo em detrimento de outro” (SOMOGYI, 2014, p. 60). No caso de uma sociedade machista, por exemplo, valoriza-se o homem em detrimento da mulher. Citando novamente Raskin, Somogyi observa ainda que os estudos psicológicos postulam “que o humor funciona como uma forma de relaxamento da tensão sob a qual o ser humano vive, por causa das coerções sociais normalmente impostas ao indivíduo pela cultura em que está inserido” (SOMOGYI, 2014, p. 60). Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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Uma análise mais cuidadosa do Corpus Na capa do jornal Notícia Já de 31 de outubro de 2014 (anexo 1), as duas manchetes, foco desta pesquisa, totalizam, juntas, meia página da folha de rosto do jornal. Em um olhar rápido, parece que a imagem do lado direito (modelo) não tem relação alguma com a manchete em questão que está situada no lado esquerdo. Em um olhar mais atento, entretanto, percebe-se que a imagem em que está a modelo foi colocada ali, ao lado da manchete que traz a imagem de um jogador com suposto gesto obsceno, intencionalmente. Na parte verbal da manchete, encontram-se a chamada e o subtítulo:
COM MÃO NA VAGA
(chamada) – Tricolor abre 3, leva 2, marca mais um e vence o Emelec por 4 a 2 no Morumbi para ficar perto da semi da Sul-Americana (subtítulo). É válido ressaltar que as duas últimas palavras (NA VAGA) vêm destacadas com a cor amarela, induzindo o leitor a prestar maior atenção a elas. Partindo de uma leitura em que se considere o sentido literal, o vocábulo “vaga” designa “lugar”, posição dada pela classificação do time São Paulo na Copa Sul-Americana de futebol. Mas o sentido que está em jogo é o figurado, em que o vocábulo pode ser compreendido quando relacionado ao fator sexualizado, em que VAGA tem a conotação de órgão sexual feminino. É possível, aliás, fazer uma associação deste termo ao termo gírio VARA, órgão sexual masculino. Essa alusão pode, inclusive, incorrer de modo inconsciente à mente do leitor haja vista o gesto obsceno que faz o jogador representado na imagem da manchete.
Sendo assim, ao mesmo tempo em que o leitor relaciona “vaga” à classificação do time no campeonato, a imagem de quatro jogadores desse mesmo time aparece acima da linguagem verbal, sendo que um deles está simbolizando o órgão sexual masculino com a mão direita. Acima dessa imagem, vem escrita a palavra GOOOOOOL (prolongamento do /o/, em seis vezes, demonstrando aproximação com a linguagem oral). Assim, o gesto da mão do jogador reforça a ambiguidade do termo “vaga” que conota obscenidade, designando, portanto, a vagina de uma mulher. Outrossim, essa designação pode ser sugerida por uma seta de cor vermelha que, propositadamente, aponta para o órgão sexual da imagem da modelo que está ao lado (anexo 1). Concluímos, então, que o vocábulo comum “vaga” é marcado licenciosamente, nesse contexto, por
um sentido obsceno. Sua referência à vagina deve ser de conhecimento partilhado tanto do leitor quanto do enunciador e, assim, ambos estão em uma relação de proximidade e cumplicidade. Chamado a participar do jogo lúdico da linguagem, o leitor relaciona as duas linguagens – verbal e não-verbal – no momento em que ambas articulam-se entre si e, dessa forma, constituem o discurso da malícia. Inferimos que, para o público do Notícia Já, pode surgir humor quando o leitor percebe que houve um engano, ou seja, que o sentido obsceno de “vaga” é associado à imagem do órgão sexual feminino da modelo, sugerindo, desse modo, o ato sexual. Na visão de Bergson, “o riso esconde uma segunda intenção de entendimento, eu diria quase de cumplicidade, com outros ridentes, reais ou imaginários” (2001, p.5). Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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O texto ‘MORENAÇA ARRASA NA HORA DO VUCO-VUCO’, que está abaixo da manchete sobre a Copa Sul-Americana, ajuda a reforçar a ideia que indica uma relação sexual, pois, além de apontar para a genitália feminina (por meio de uma seta vermelha), ainda apresenta a expressão vulgar “VucoVuco”. Elucidamos a fundamental importância de notar que a notícia propriamente dita (anexo 2) que vem à p.15, no caderno de esportes, não apresenta relação imediata com o que vem noticiado na manchete (anexo 1). Dessa forma, podemos inferir que as estratégias textuais utilizadas, somadas à disposição das imagens na manchete, servem tão somente para atrair o público e garantir a venda do jornal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS O propósito desta análise, calcada nos elementos verbais e visuais da manchete de um jornal da imprensa sensacionalista, foi a reflexão sobre os recursos linguístico-discursivos que, por meio de um jogo lúdico, desencadeia a sexualização dos referentes, podendo causar, para alguns, humor. No discurso da malícia, em que há o jogo do duplo sentido, supõe-se ser necessário o conhecimento da linguagem obscena, por parte do leitor, a fim de que este entenda o sentido que vem subjacente ao sentido literal e que é materializado pela ambiguidade. É preciso acrescentar que, além dessa competência para decifrar o duplo sentido presente na
linguagem verbal, quando associada à não verbal, o leitor deve ter certa competência cômica necessária para julgar os enunciados engraçados. Notamos, então, que a competência linguístico-discursiva, que tem por base recriar os fatos noticiados por meio da leitura da ambiguidade de sentido, e a competência cômica, necessária para julgar uma sequência enunciativa engraçada, são estratégias para a compreensão do sentido em manchetes que levam ao humor. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERGSON, H. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fonte, 2001.
DIAS, A, R, F. O Discurso da Violência: as marcas da oralidade no jornalismo popular, 3.ed. São Paulo: Cortez, 2008. PRETI, D. A linguagem proibida. 2.ed. São Paulo: LPB, 2010. RAMOS, P. Faces do Humor: uma aproximação entre piadas e tiras. Campinas, SP: Zarabatana Books, 2011. SOMOGYI, K. Malícia e humor: leitura das manchetes de capa do Meia Hora. 2014. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2014.
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ANEXO 1
JORNAL NOTÍCIA JÁ. CAPA. 31 out. 2014. ANO VIII. N.2596
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ANEXO 2
JORNAL NOTÍCIA JÁ. CADERNO DE ESPORTES. 31 out. 2014. ANO VIII. N.2596
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A CENOGRAFIA EPISTOLAR NO DISCURSO JORNALÍSTICO THE EPISTOLARY SCHENOGRAPHY IN JOURNALISTIC DISCOURSE Patrícia Ferraz, Miriã Soares dos Santos Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, patricia.ferraz@ymail.com Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, miriasoares1@gmail.com
RESUMO No presente trabalho, analisamos o discurso jornalístico na crônica de Antônio Prata, publicada no Jornal Folha de S. Paulo, com base nos conceitos de cenas de enunciação defendidos por Dominique Maingueneau em seus trabalhos de Análise do Discurso de linha francesa (AD). O discurso objeto de análise, embora jornalístico, apresenta-se com roupagem retórica de carta, o que aponta para um esvaziamento argumentativo. A pretensão é reforçar um posicionamento aparentemente criticado por meio da ironia. A produção dos sentidos demanda um amplo rol de conhecimentos prévios. O resultado da análise demonstrou que a cenografia epistolar, como categoria de análise do discurso, pretende dar uma roupagem retórica irônica ao discurso com o objetivo de desconstruir os argumentos expostos. Palavras-chave: Análise do Discurso; cenografia epistolar; discurso jornalístico. ABSTRACT This article uses Dominique Maingueneau concepts, in the field of Discourse Analysis, to analyze the journalistic discourse of Antonio Prata chronicle published in Folha de S. Paulo. The main concepts are enunciation scene, generic scene and scenography. Despite the reviewed discourse could be classified as journalistic, it has a letter rhetorical garb. The epistolary schenography indicates an argumentative deflation. The focus is to reinforce a political position, criticized through irony. The sense production demands a broad knowledge, built previously. The results of this review shows that the epistolary scenography, as a discourse analysis category, intends to give an ironic rhetorical garb to the journalistic discourse, in order to deconstruct the settled out arguments. Keywords: Discourse analysis; epistolary scenography; journalistic discourse.
INTRODUÇÃO De que serviria todo o esforço acadêmico e científico que se faz nos grandes centros de pesquisa ao redor do mundo se não houvesse aplicação das teorias à vida em sociedade? A ciência, mantida isolada do cotidiano e da comunidade, torna-se ferramenta vazia, como pólvora sem explosão. Ao contrário, quando é possível aplicar categorias de análise e usar o arcabouço teórico-metodológico para refletir sobre os fenômenos que afetam a vida da humanidade, seja em âmbito material, seja intelectual, o trabalho acadêmico ganha vida e, ao que nos parece, institui o sentido mais profícuo para sua existência: contribuir para o progresso. Nesse contexto, situamos a Análise do Discurso de linha francesa, doravante AD, como uma importante ferramenta para construir entendimentos e capturar os sentidos que emanam dos variados discursos presentes na vida cotidiana. Como disciplina situada no campo da Linguística Textual (LT), a AD volta o seu olhar sobre os discursos, mas não se restringe a observar neles os aspectos linguísticos e Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
textuais. A busca é pela construção dos sentidos, pela apreensão dos ditos e dos não ditos, pela observação dos cruzamentos discursivos interpostos numa teia de significados que desafia o analista. Segundo Maingueneau (2007, p. 14), a AD é “um espaço de encontro privilegiado entre os diversos campos das ciências humanas, todos confrontados com a questão da linguagem”. Assim, embora diversas ciências queiram para si o domínio da AD, ela não pertence verdadeiramente a nenhuma delas; antes, faz fronteira e dialoga com todas por seu caráter interdisciplinar. Dessa forma, é à AD que recorremos, em busca de categorias de análise que nos possibilitem decifrar os textos do dia-a-dia. Selecionamos para este trabalho o discurso jornalístico de Antonio Prata, em forma de carta publicada no Jornal Folha de S. Paulo e em seu portal na internet, em 10 de agosto de
2014. Com o título Caro Fernando Haddad1, o discurso institui, a priori, uma etiqueta de leitura, reivindicando o status de carta pública. Pretendemos, no entanto, confrontar a etiquetagem com os conceitos de cenas de enunciação defendidos por Maingueneau e verificar se a carta apresentada no caderno jornalístico constitui-se propriamente como um discurso epistolar ou como um discurso jornalístico. Consideramos a hipótese de que o discurso não pretenda levar adiante a armadilha da cenografia epistolar, mas recorra à sua aparência, apenas inicialmente, como estratégia irônica de argumentação. Dados teóricos
Em sua primeira fase, a AD preocupou-se em analisar os discursos políticos, por pertencerem a um gênero mais estabilizado e apresentarem condições de produção mais homogêneas (Pêcheux). Na segunda fase, incorporou a filosofia e adotou o conceito de formação discursiva2, conforme definido por Foucault. Em sua terceira fase, a AD ampliou o conceito de Foucault, afirmando que todo discurso é atravessado por uma formação discursiva e não apenas os discursos político, teológico, filosófico, chamados discursos constituintes por Maingueneau. A partir daí, a AD ampliou sua abrangência e tem revelado grande flexibilidade e um amplo campo para pesquisadores de várias áreas do conhecimento, em diversos gêneros de discurso, na medida em que permite ao analista fazer o recorte desejado, de acordo com as categorias de análise: condições sóciohistóricas de produção, interdiscursividade, gêneros do discurso, hipergênero, cenas de enunciação,
autoralidade, paratopia, topia e atopia. Toda e qualquer categoria de análise inserida nos estudos da AD deve levar em conta os conceitos fundamentais do referido campo de estudos, quais sejam, o discurso e o interdiscurso. Etimologicamente, a palavra discurso contém a ideia de percurso, de correr, portanto, está implícita uma dinamicidade. O discurso deve ser contextualizado, produzido por um sujeito (enunciador), interativo e dialógico. Trata-se 1
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2014/08/1498376-caro-fernando-haddad.shtml. Acessado em 02.nov.2014. 2
O conceito de formações discursivas é encontrado originalmente em Michel Foucault e acolhido posteriormente na AD por Pêcheux. Nos estudos contemporâneos, considera-se que a formação discursiva é um posicionamento ou uma identidade discursiva refletida por um conjunto de enunciados relacionados entre si.
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de um agir sobre o outro, necessariamente regulado pela interdiscursividade, ou seja, todos os discursos presentes em nossa memória discursiva se atravessam e lutam entre si para se imporem de acordo com a nossa formação discursiva, com o lugar de enunciação e com o momento histórico. Maingueneau estabelece a hipótese do primado do interdiscurso sobre o discurso. Isso significa que todo discurso somente poderá ser estudado se o considerarmos em relação a outros discursos, uma vez que estes não existem independentemente para depois se intercruzarem, mas sim são regulados interdiscursivamente para estruturar sua identidade (POSSENTI e MUSSALIM, 2010). Dessa forma, é quase impossível a um analista debruçar-se sobre seu corpus ignorando o conceito de interdiscurso, que se tornou uma categoria de análise por excelência. No discurso em tela, observamos a
interdiscursividade presente nas referências a discursos publicitários, históricos, políticos, institucionais, dentre outros. Ou seja, aqui também o interdiscurso regula a produção do discurso. Maingueneau (2005a) propõe que o estudo da interdiscursividade seja considerado a partir de três pilares: o universo discursivo, que é um ambiente mais global, heterogêneo no que se refere aos temas e ao conjunto amplo de formações discursivas diversas que o compõem; o campo discursivo, integrado por formações discursivas consonantes e dissonantes, mas sempre relacionadas com a mesma área de conhecimento; e os espaços discursivos, constituídos por associações entre discursos construídas a partir de propósitos específicos de análise. O conceito de interdiscurso está atrelado à noção de gênero do discurso. Para Bakhtin (2003, p. 282), gêneros são “formas padrão relativamente estáveis, determinadas sócio-historicamente”. Essa
definição, amplamente difundida e estudada por pesquisadores, tanto da AD, quanto de outras disciplinas da LT, permanece atual, embora tenha sido atualizada por Maingueneau (2004) no que se refere à sua classificação. Tendo em vista que os gêneros evoluem com a sociedade, Maingueneau procurou expandir a categoria, a fim de dar conta da variedade dos enunciados produzidos. Dessa forma, usaremos o conceito de gêneros de discurso e não gêneros textuais, para fazer referência a uma classificação que não se limita a uma organização textual, mas considera também as condições sócio-históricas de produção, o suporte material, as formações discursivas do enunciador e do coenunciador, etc. Maingueneau (1999) inicialmente classificou os gêneros em: autorais, rotineiros e conversacionais. Posteriormente, porém, reviu essa classificação e distinguiu apenas dois regimes de genericidade: os gêneros conversacionais e os gêneros instituídos.
Os gêneros conversacionais estão ligados a lugares não-institucionalizados e são bem mais instáveis, pois estão sujeitos a restrições locais e horizontais, o que gera uma dificuldade para dividi-los de forma distinta. (MAINGUENEAU, 2004) Os gêneros instituídos, que incluem os antes classificados como rotineiros e autorais, são definidos de acordo com a relação que estabelecem com a cena genérica e a cenografia. O autor define quatro modos de gêneros instituídos: Modo I – pouco sujeitos a variação: catálogo telefônico, fichas administrativas, registros de cartório etc.; Modo II – textos individualizados, submissos a normas que definem o ato comunicacional e seguem em geral a cenografia esperada, embora tolerem desvios: jornais televisivos, Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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guias de viagem, etc.; Modo III – não têm cenografia preferencial e incitam a inovação: textos publicitários, músicas, programas de televisão, etc.; e Modo IV – em geral, esses gêneros são autorais, não seguem um modelo esperado e instauram cena de enunciação original: inclui os textos etiquetados previamente pelo autor. Ainda segundo Maingueneau, os gêneros do discurso são atividades linguageiras e, como tais, implicam ação dos sujeitos envolvidos no ato da comunicação. Assim, os gêneros de Modos I e IV seriam monologais, enquanto os gêneros de Modos II e III seriam quase sempre interativos. Por essa razão, interessa-nos o estudo dos gêneros de Modo IV, pois trazem consigo a etiquetagem, que induz o leitor (coenunciador) à construção de sentidos desejada pelo autor.
Maingueneau (2004) entende a carta como um hipergênero autoral, que comporta variações em sua apresentação, formato, estilo e finalidade. Na carta, como gênero do discurso, algumas características são condicionantes: a comunicação de pessoa a pessoa; a pressuposição de uma resposta; o distanciamento temporal entre enunciador e coenunciador; a natureza única do texto. Por configurar-se como um gênero aberto, no entanto, a carta impõe fracas restrições a variações de conteúdo e situação comunicativa, motivo pelo qual pode ser usada em diferentes contextos como uma cenografia, caso em que as citadas condições de existência não são necessariamente respeitadas. Todo discurso é composto por um quadro cênico e uma cenografia (MAINGUENEAU, 2011). O quadro cênico envolve duas dimensões inter-relacionadas: a cena englobante, determinada pelo tipo de discurso; e a cena genérica, determinada pelo gênero do discurso. A cenografia, por sua vez, distingue-se
da cena genérica, posto que se trata de uma cena reivindicada pelo discurso, sua roupagem retórica. Ao mesmo tempo em que ela é demonstrada a partir do conteúdo de um enunciado, ela também legitima este mesmo enunciado. É algo que pressupõe a identidade dos parceiros, com um enunciador identificado e coenunciadores (identificados ou não), os lugares e os momentos de enunciação, ou seja, uma topografia (espaço) e uma cronografia (tempo). Maingueneau (2011, p. 2) assevera que a cenografia é não só o veículo, mas “algo que define um lugar de discurso para os coenunciadores”, condizente com os sentidos do que é comunicado. A cenografia apoia-se em cenas de fala já validadas a partir de uma memória discursiva coletiva, geralmente baseada em estereótipos descontextualizados e difundidos pelos meios de comunicação. Tais cenas podem ser reiteradas com o objetivo de rejeição, reprovação ou como estratégia de confirmação,
quando se trata de um modelo a ser valorizado. Alguns gêneros de discurso são mais afeitos à escolha de uma cenografia e isso depende de condições intrínsecas de enunciação e da finalidade do discurso. Assim, Maingueneau usa o exemplo da lista telefônica, que não admite uma cenografia afastada de sua cena genérica rotineira. No extremo oposto, encontra-se o discurso político, que pode assumir uma infinidade de cenografias a fim de alcançar sua finalidade persuasiva. Também os gêneros publicitários, literários e filosóficos comportam grande elasticidade quanto às diversas cenografias que podem sobrepor-se à sua cena genérica. No caso do discurso jornalístico, essa elasticidade é relativa. Notícias e reportagens demandam características Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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discursivas mais rígidas e padronizadas, enquanto os textos opinativos, como artigos, análises e, notadamente, crônicas apresentam flexibilidade quanto às cenografias possíveis. A cenografia epistolar, inclusive, é comumente utilizada por cronistas para ambientar seus discursos dentro do campo jornalístico. A cenografia epistolar, via de regra, é usada em discursos que pretendem a adesão do coenunciador. Diz respeito a discursos endereçados ao debate público, geralmente apresentados como se fossem cartas privadas. O discurso apresenta-se como carta a partir de uma estratégia argumentativa, mas não é referendado em tal gênero. Dessa forma, o discurso usa a carta como roupagem retórica, impondo sua pretensão ilocutória de enunciação e, simultaneamente, tentando esconder atrás de si a real cena genérica a que pertence.
ANÁLISE A cidade de São Paulo viveu, no primeiro semestre de 2014, um momento de intensas transformações em sua engenharia de tráfego: criação de faixas e pistas exclusivas para ônibus, redução das vagas de estacionamento nas ruas, estabelecimento de ciclovias3, ciclofaixas4 e estações de bicicletas. Essas mudanças encontram eco no bojo dos objetivos da administração de Fernando Haddad (do Partido dos Trabalhadores), que assumiu o município em janeiro de 2013. O carro-chefe das propostas é o projeto Dá licença para o ônibus, que implantou, no primeiro ano e meio de gestão, 360 km de faixas exclusivas
para ônibus coletivos. Também no segundo ano do mandato, Haddad aprovou um novo Plano Diretor Estratégico5 para o município, que, em linhas gerais, promove o adensamento populacional vertical e o alargamento das calçadas em regiões centrais mais servidas pelo transporte coletivo, enquanto dificulta, nessas áreas, a construção de mais do que uma vaga de garagem por apartamento. Por outro lado, busca atrair empresas com isenções fiscais para regiões periféricas que hoje são muito povoadas, a exemplo da zona leste da cidade, e limita a construção de prédios a oito andares nos miolos dos bairros. Além disso, o Plano prevê medidas que visam a regularização de favelas, com construção de moradias populares. As mudanças surgem no mesmo momento em que vários terrenos da cidade são ocupados por manifestantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que reivindicam a construção de
moradias populares; enquanto a imprensa noticia6 a existência de uma articulação entre os governos municipal e federal, a fim de atender a esses anseios. 3
Ciclovia, segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), é “uma pista de uso exclusivo para circulação de bicicletas, segregada fisicamente do restante da via, dotada de sinalização vertical e horizontal. Pode estar na calçada, no canteiro central ou na própria pista por onde circula o tráfego geral.” 4
Ciclofaixa, de acordo com a CET, é “uma faixa de uso exclusivo para circulação de bicicletas, sem segregação física em relação ao restante da via e caracterizada por sinalização vertical e horizontal. Normalmente, situa-se nos bordos da pista por onde circula o tráfego geral, mas pode também situar-se na calçada e no canteiro central.” 5
Lei que determina o conjunto de diretrizes urbanísticas para os próximos dezesseis anos.
6
Informações do site: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,haddad-ja-admite-dar-area-para-sem-teto,1173058. Acessado em 02.nov.2014.
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Paralelamente às ações no campo do planejamento urbano, Haddad criou, por meio de um decreto7, em abril de 2014, um programa de recuperação de usuários de drogas, batizado de Operação Braços Abertos. O programa promove a retirada de barracas da região central da cidade, conhecida como Cracolândia e ocupada por moradores em situação de rua, geralmente viciados em crack, transferindo essa população para hotéis da região. As diárias são pagas pela Prefeitura, que oferece um emprego de zeladoria aos usuários de drogas nas ruas e nos parques da cidade. Cada participante recebe quinze reais pelo trabalho, além de café, almoço e jantar. Na medida em que todas essas iniciativas tomaram corpo, pesquisas que aferem a popularidade do prefeito mostraram que Fernando Haddad registrou uma queda das avaliações positivas de sua gestão e
aumento expressivo da rejeição. Os levantamentos feitos pelo Instituto Datafolha entre junho e julho de 2014 revelaram que a insatisfação subiu de 36% dos entrevistados para 47%. A avaliação positiva caiu de 17% para 15%. Em meio a essas condições, Caro Fernando Haddad é publicado no caderno Cotidiano do Jornal Folha de S. Paulo, no dia 10 de agosto de 2014, que reproduzimos a seguir, na íntegra: Caro Fernando Haddad 10/08/2014 10h00 Quem te escreve aqui é Espírito Paulistano. O senhor não me conhece, como deixa claro a sua rejeição por 47% dos motoristas, quero dizer, dos cidadãos de nossa pujante metrópole. Não votei no senhor, mas tampouco me apavorei com a sua vitória. Apesar de vir do PT, o senhor aparenta ser de boa família, tem essa pinta de pai em propaganda do Itaú Personnalité, chama-se Fernando e traz o sobrenome Haddad, que me remete ao Maluf, ao Kassab, ao Habib's: três marcas das quais São Paulo pode se orgulhar. Desde que assumiu a prefeitura e começou com as faixas de ônibus, contudo, percebi que por trás da pinta Personnalité se escondia um administrador démodé. "Non ducor duco" ("Não sou conduzido, conduzo") é o lema da nossa cidade, mas, em vez de valorizar a livre iniciativa dos bandeirantes, que se perpetua no direito inalienável ao transporte individual, a ultrapassar pela direita, a trafegar pelo acostamento, o senhor quer nos botar em fila dentro de coletivos, como índios cativos. São Paulo é uma cidade de vencedores, prefeito. Se o cidadão não conseguiu sequer comprar um carro, não deveria ser ajudado, deveria ser expulso. Isso, sim, melhoraria o trânsito. Depois das faixas, o senhor me vem com este Plano Diretor. Proíbe, entre outras coisas, prédios altos no miolo dos bairros. Ora, eu trabalho, pago meus impostos, tenho direito a uma varanda com espaço gourmet e vista para as casinhas geminadas, lá embaixo, não? O senhor afirma que, se todas as casinhas derem lugar a prédios altos, o trânsito vai piorar. OK. Eu me mudo pra outro prédio, no miolo de outro bairro: é assim que a nossa cidade funciona, estimulando a construção civil, gerando empregos, intensificando o aquecimento global, quero dizer, da economia. Que saudades do doutor Paulo, quando os tapumes de obras viárias estampavam o slogan "São Paulo crescendo, São Paulo não pode parar". Saudades da época em que a rua era da Rota, não de japoneses "black blocs" com bombas incendiárias não inflamáveis.
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Íntegra do decreto 55.067 disponível em: https://www.leismunicipais.com.br/a/sp/s/sao-paulo/decreto/2014/5507/55067/decreto-n-550672014-regulamenta-o-programa-de-bracos-abertos-e-altera-o-decreto-n-44484-de-10-de-marco-de-2004-que-regulamenta-o-programa-operacao -trabalho. Acessado em 02.nov.2014.
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O senhor me acha reacionário. Diz que São Paulo quer uma revolução "desde que não se mexa em nada". Mentira! Quero uma revolução mexendo no cerne dos nossos problemas, como fez o Kassab ao criar cupons padronizados para todos os valets da cidade. Há questão mais séria, numa metrópole, do que os valets? Senhor prefeito, caso haja algo de Personnalité por trás de todo esse ranço da FFLCH, escute-me: se vossa excelência continuar a priorizar o transporte público em vez do individual, se continuar a negociar com movimentos populares e a limitar a atuação das construtoras, se seguir criando espaço para as bicicletas e empregos para craqueiros, corremos o sério risco de ver, em alguns anos, uma pequena diminuição na distância entre ricos e pobres nesta cidade –e tudo o que eu, Espírito Paulistano, menos quero, é pobre perto de mim. Sem mais, subscrevo-me, E.P. *Obs.: Este é um texto de ficção. As ideias do E.P. não representam as crenças do autor, e qualquer semelhança entre as mesmas e opiniões de pessoas vivas ou mortas é apenas uma boa razão para eu me mudar pra Reykjavík.
O autor, Antonio Prata, é um colunista do jornal, que escreve geralmente aos domingos, descrito como escritor que publicou livros de contos e crônicas. Quem acompanha o trabalho do cronista semanalmente sabe que suas publicações costumam pertencer ao campo jornalístico. No entanto, o discurso de que trata este artigo começa com um título que, a priori, busca estabelecer uma aparência de carta. Quando o autor define o destinatário ─ Fernando Haddad ─, é como se ele estivesse identificando um coenunciador. A frase que abre o discurso completa a ambientação, identificando um remetente, que
seria enunciador: designado Espírito Paulistano. Note-se que o termo é grafado com iniciais maiúsculas, pretendendo fazer parecer que se trata de um cidadão ou de um coletivo, já que o sentido da palavra permite inferir um conjunto de cidadãos identificados sob uma mesma formação discursiva. A assinatura com as iniciais e a expressão “subscrevo-me”, ao fim da suposta carta, também contribuem para compor a cenografia epistolar do discurso. Assim, está posta a etiqueta formal, que determinaria sua forma de organização (uso de vocativo, escrita em 1ª. pessoa, assinatura, etc.). A análise que será empreendida adiante, porém, permitirá discernir que não se trata dos sujeitos de discurso, propriamente, mas de entidades pretendidas para esse discurso. Quem escreve, como sabemos, não é o Espírito Paulistano, mas o escritor e cronista. E o destinatário é muito mais o cidadão, os leitores do jornal, do que o prefeito. Trata-se, portanto, de uma cenografia epistolar, nos dizeres de Maingueneau, que faz passar para um segundo plano a cena englobante e a cena genérica, a fim de criar uma ambientação para a sua existência, a partir de armadilhas que levem o leitor a acreditar que se trata de uma carta. É preciso ressaltar, todavia, que, embora o discurso tenha uma cenografia e empreenda esforços discursivos para ocultar inicialmente sua cena genérica, seu objetivo não é persuadir o leitor com argumentos literais, mas causar uma espécie de sarcasmo. Tanto assim que, ao final, a cenografia epistolar é desfeita por uma observação em que se esclarece: trata-se de um texto de ficção, conforme se verifica no recorte:
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Obs.: Este é um texto de ficção. As ideias do E.P. não representam as crenças do autor e qualquer semelhança entre as mesmas e opiniões de pessoas vivas ou mortas é apenas uma boa razão para eu me mudar pra Reykjavík.
Assim, as ideias do E.P. provocam no autor um sentimento refratário, de oposição. Ou seja, se o escritor não comunga com as opiniões do enunciador, que chamou Espírito Paulistano, ele, na verdade, concorda com as iniciativas do Prefeito. A estratégia, portanto, é às avessas: recorrer aos argumentos contrários ao seu posicionamento, promovendo o seu esvaziamento. O discurso da “observação”, portanto, ao desfazer a ironia, confirma as estratégias de persuasão baseadas na negação, inicialmente apenas inferidas. Temos aí o que Maingueneau (2004, p. 55) define como “enquadramento interpretativo”, ou seja,
“a etiqueta é destinada não a descrever a forma do texto, mas a condicionar sua interpretação”. Se a cenografia é, reconhecidamente, epistolar, quais seriam, então, as cenas genérica e englobante? Esta última pode-se inferir a partir da análise do suporte e das condições sócio-históricas de produção. Trata-se de um jornal diário e a publicação ocorre semanalmente, numa coluna do caderno Cotidiano, que retrata os acontecimentos urbanos. A cena englobante, aqui, é o discurso jornalístico, abrangido por todas as nuances que pode assumir quando se trata de uma coluna de opinião. A cena genérica, por sua vez, é de uma crônica jornalística, que recorre a estratégias discursivas próximas à literatura para construir seu discurso. Assim como a reportagem, a crônica está inserida no discurso jornalístico e lança o olhar do escritor sobre o cotidiano da cidade. A diferença é que ela pode ser mais autoral e não se restringe a trazer informações e serviços. Trata-se de um gênero de discurso aberto,
com possibilidades amplas de explorar a ficção, a fantasia. O discurso jornalístico de Antônio Prata facilmente assumiu a cenografia de carta, não para persuadir o leitor de que se trata de uma carta formal do escritor endereçada ao prefeito. Não parece ser essa a intenção do discurso. A cenografia, neste caso, configura-se como um recurso usado para tornar o discurso mais interessante e assim expor as ideias do colunista, sem que para isso seja necessário ocultar de forma contundente sua cena genérica. Ao mesmo tempo em que propõe a cenografia epistolar, o discurso deixa entrever que o seu verdadeiro destinatário não é o prefeito, mas o grupo de pessoas que se identifica sob a formação discursiva refratária às ações de distribuição de renda, coletivismo, desenvolvimento sustentável. A intenção é sugerir que os argumentos desse grupo são fracos, autointeressados e podem ser facilmente refutados.
A observação final contribui para o entendimento do discurso como jornalístico, mas não é prérequisito para tal. Ainda que não houvesse uma seção autoexplicativa, seria possível depreender do discurso a sua cena genérica de discurso jornalístico, dadas as condições sócio-históricas de produção, explicitadas anteriormente. A apreensão dos sentidos mais profundos do discurso pressupõe um vasto repertório, notadamente no que diz respeito aos últimos acontecimentos em São Paulo, já explicitados, e a alguns conhecimentos históricos, geográficos e institucionais da cidade. Para o que, sem o conceito de interdiscurso, que traz para dentro do discurso uma multiplicidade de formações discursivas, não seria possível a produção dos sentidos. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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O primeiro dado estatístico, exibido neste recorte: Quem te escreve aqui é Espírito Paulistano. O senhor não me conhece, como deixa claro a sua rejeição por 47% dos motoristas, quero dizer, dos cidadãos de nossa pujante metrópole.
remete-nos para a supracitada pesquisa de popularidade do prefeito, cujo resultado é usado aqui para contribuir na construção da identidade do que se supõe autor da carta. Ou seja, o Espírito Paulistano é parte integrante dos cidadãos que reprovam Fernando Haddad. No trecho seguinte: Não votei no senhor, mas tampouco me apavorei com a sua vitória. Apesar de vir do PT, o senhor aparenta ser de boa família, tem essa pinta de pai em propaganda do Itaú Personnalité, chama-se Fernando e traz o sobrenome Haddad, que me remete ao Maluf, ao Kassab, ao Habib's: três marcas das quais São Paulo pode se orgulhar. Desde que assumiu a prefeitura e começou com as faixas de ônibus, contudo, percebi que por trás da pinta Personnalité se escondia um administrador démodé.
são retomados outros discursos que integram a memória coletiva, também no intuito de caracterizar o enunciador. Trata-se de um eleitor que aprovou as iniciativas de Paulo Maluf8 e de Gilberto Kassab9, ambos envolvidos em escândalos de corrupção e conhecidos por uma atuação política mais conservadora. A adição da lanchonete Habbib’s ao conjunto de sobrenomes de origem árabe dos quais “São Paulo pode se orgulhar” constitui-se uma ironia que garante o humor da enunciação, também porque a rede de restaurantes não existe apenas em São Paulo e é reconhecidamente popular. A ironia, aliás, é marca recorrente no discurso: ‘Non ducor duco’ ("Não sou conduzido, conduzo") é o lema da nossa cidade, mas, em vez de valorizar a livre iniciativa dos bandeirantes, que se perpetua no direito inalienável ao transporte individual, a ultrapassar pela direita, a trafegar pelo acostamento, o senhor quer nos botar em fila dentro de coletivos, como índios cativos. São Paulo é uma cidade de vencedores, prefeito. Se o cidadão não conseguiu sequer comprar um carro, não deveria ser ajudado, deveria ser expulso. Isso, sim, melhoraria o trânsito.
Nesse recorte, o E.P. inverte a lógica instituída pela legislação de trânsito, que proíbe a ultrapassagem pela direita e o tráfego pelo acostamento, para definir ironicamente essas atitudes como um direito, contrapondo-as ao uso do transporte coletivo estimulado pelas iniciativas recentes da Prefeitura. Outras contraposições estão presentes em:
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Paulo Maluf foi prefeito da capital e governador do Estado de São Paulo, além de deputado federal por quatro mandatos, sendo que o último desses começará no próximo ano. É acusado por vários crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e improbidade administrativa, além de já ter sido condenado a restituir valores desviados aos cofres públicos. Maluf consagrou-se nos anos 80 com o bordão: Rota na rua, que valoriza a presença e a ação ostensivas do grupo de elite da Polícia Militar, conhecido pela truculência em vários episódios de mortes de suspeitos. 9
Gilberto Kassab foi prefeito de SP por duas vezes (2006 e 2012) e deputado federal. Fundou o Partido Social Democrático (PSD), em 2011. Na prefeitura de SP, foi acusado de enriquecimento ilícito e suspeita de financiamento ilegal.
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Depois das faixas, o senhor me vem com este Plano Diretor. Proíbe, entre outras coisas, prédios altos no miolo dos bairros. Ora, eu trabalho, pago meus impostos, tenho direito a uma varanda com espaço gourmet e vista para as casinhas geminadas, lá embaixo, não? O senhor afirma que, se todas as casinhas derem lugar a prédios altos, o trânsito vai piorar. OK. Eu me mudo pra outro prédio, no miolo de outro bairro: é assim que a nossa cidade funciona, estimulando a construção civil, gerando empregos, intensificando o aquecimento global, quero dizer, da economia.
É a contraposição entre a varanda gourmet, à qual o Espírito Paulistano diz ter direito, e “as casinhas geminadas lá embaixo” que garante o deboche. Aqui, também são acrescentadas nuances que ajudam a construir a imagem do que seria o Espírito Paulistano, enunciador do discurso: trata-se da classe
média alta, moradora de condomínios de luxo, individualista, alheia ao aquecimento global e reacionária. Quando o enunciador recorre à construção civil e à geração de empregos para falar da economia e, como que acidentalmente, cita o aquecimento global, a ironia também está configurada. O que está implícito no deboche é o desejo de chamar a atenção para os perigos do modelo de desenvolvimento econômico adotado há vários anos em São Paulo, que prioriza a produção, o consumo e lucro desenfreados, em detrimento de um desenvolvimento sustentável. Também neste ponto é preciso destacar a presença de um interdiscurso anticapitalista, que tende à esquerda da arena política. Observando este outro recorte: Que saudades do doutor Paulo, quando os tapumes de obras viárias estampavam o slogan "São Paulo crescendo, São Paulo não pode parar". Saudades da época em que a rua era da Rota, não de japoneses "black blocs" com bombas incendiárias não inflamáveis.
é possível perceber que a estratégia sarcástica retoma referências ao deputado federal Paulo Maluf, citando o seu bordão famoso na década de 80, Rota na rua, em contraponto às manifestações de black blocs10. O que se pretende com essa comparação é questionar o posicionamento de grupos que criticam a ação dos black blocs, enquanto apoiam a truculência policial que já se viu nas ruas em numerosos episódios de confrontos entre manifestantes e agentes da lei ou entre estes e suspeitos de crimes. A reiteração do deboche, que perpassa todo o discurso, ocorre quando a questão dos cupons usados pelos valets11 da cidade é apontada como o “cerne dos problemas”, como se pode verificar a seguir: O senhor me acha reacionário. Diz que São Paulo quer uma revolução "desde que não se mexa em nada". Mentira! Quero uma revolução mexendo no cerne dos nossos problemas, como fez o Kassab ao criar cupons padronizados para todos os valets da cidade. Há questão mais séria, numa metrópole, do que os valets?
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Black blocs são grupos de pessoas mascaradas, geralmente vestidas de preto, de tendência anarquista e sem uma hierarquia rígida, que se reúnem para promover ações de protesto direto nas ruas, desafiando as forças estabelecidas e, em muitos casos, depredando patrimônios públicos e privados. 11
Em 2012, o então prefeito Gilberto Kassab determinou o uso obrigatório de cartões elaborados pela prefeitura por todas as empresas que prestam serviço de estacionamento em SP. O objetivo da medida era padronizar o serviço.
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Quanto aos últimos argumentos do discurso, exibidos neste recorte: Senhor prefeito, caso haja algo de Personnalité por trás de todo esse ranço da FFLCH, escute-me: se vossa excelência continuar a priorizar o transporte público em vez do individual, se continuar a negociar com movimentos populares e a limitar a atuação das construtoras, se seguir criando espaço para as bicicletas e empregos para craqueiros, corremos o sério risco de ver, em alguns anos, uma pequena diminuição na distância entre ricos e pobres nesta cidade –e tudo o que eu, Espírito Paulistano, menos quero, é pobre perto de mim.
pode-se perceber que o Espírito Paulistano assume não desejar ver diminuída a distância entre ricos e pobres.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Caro Fernando Haddad é carregado por um discurso rico em interdiscursos, todos eles pertencentes a um espaço discursivo que pretende apontar as incongruências do modo de vida capitalista, configurado pelo desenvolvimentismo, individualismo e concentração da riqueza. Tal argumentação não constitui tentativa inédita, já tendo sido explorada à exaustão por filósofos, sociólogos, historiadores, antropólogos e jornalistas. O que de novo há no discurso de Antonio Prata é a maneira sarcástica com que se vale de um lugar de enunciação preestabelecido, configurado por estereótipos reconhecidos e validados
pelos meios de comunicação e na memória coletiva, invertendo a lógica da defesa argumentativa. O escritor cria um sujeito enunciador com formação discursiva oposta à que realmente defende, para escolher os argumentos mais fracos desse espaço discursivo e, com isso, reforçar à sua maneira os argumentos em favor da política de planejamento urbano e promoção social desenvolvida pelo prefeito Fernando Haddad. Trata-se de uma clara crítica ao comportamento reacionário. A produção de sentidos entre enunciador e coenunciadores só é garantida se houver um compartilhamento concreto do rol de conhecimentos sobre a cidade, que emergem da superfície discursiva, como nas citações a seguir: “Senhor prefeito, caso haja algo de Personnalité por trás de todo esse ranço da FFLCH [...]”, ‘“Non ducor duco" ("Não sou conduzido, conduzo") é o lema da nossa cidade [...]’. Não à toa, o discurso foi publicado no caderno Cotidiano, no qual o leitor do jornal pode esperar
reportagens e colunas voltadas para a rotina da cidade de São Paulo, ainda que se trate de um jornal de circulação nacional. Certamente, para moradores de outras cidades, estados e países, fica muito mais difícil capturar os sentidos do discurso. A pretensão ilocutória da enunciação aqui não depende de convencer o leitor quanto à realidade da cenografia. Nesse caso específico, quanto mais o coenunciador avança na produção de sentidos, mais claro fica o deboche criado pela cenografia epistolar e mais evidente se torna a fantasia da carta. O leitor atento sabe que não se trata de uma carta para Fernando Haddad, mas sim de um discurso construído cuidadosamente para desconstruir o discurso da parcela da população representada pelo Espírito Paulistano, que é contra os projetos do prefeito. Revista De Letra em Letra—Vol. 3 n. 2, 2016
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Importante observar que não teria sido possível aplicar as categorias teórico-metodológicas propostas sem considerar a especificidade do discurso. A cenografia epistolar, aqui, não surgiu soberana, ultrapassando os dados concretos do discurso jornalístico que parecia tentar ocultar. Pelo contrário, foi usada como recurso à ironia, no intuito de revelar o discurso jornalístico, mas de uma maneira irreverente, pouco óbvia, apenas acessível para coenunciadores capazes de apreender os sentidos que emanavam dos interdiscursos presentes nesse discurso. Tal observação nos permite entrever um sem número de contribuições e possibilidades de análise, que, ao que parece, a AD tem todo o potencial de empreender.
REFERÊNCIAS
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_________________, Dominique. Doze Conceitos em Análise do Discurso. (org.) Sírio Possenti, Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva., Trad. Adail Sobral, São Paulo: Parábola, 2010. Capítulo Sete: Hipergênero, gênero e internet. FERREIRA, Sandra. A poesia do perecível. In: Jornal Proleitura. UNESP: Ano 5. n.20, junho de 1998. Ação da Prefeitura já mudou cara da cracolândia. Disponível no site G1: <http://g1.globo.com/sao-paulo/ noticia/2014/01/acao-da-prefeitura-ja-mudou-cara-da-cracolandia-diz-haddad.html> Acessado em 02 de novembro de 2014. Avaliação negativa da gestão Haddad sobe de 36% para 47%. Disponível no site do jornal Folha de São Paulo: <http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2014/07/1488993-avaliacao-negativa-da-gestaohaddad-sobe-de-36-para-47.shtml>. Acessado em 02 de novembro de 2014.
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