De Letra em Letra / Departamento de Letras, Universidade Federal de São Paulo UNIFESP (2016). - Guarulhos: Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, 2019 - v. : il. Semestral, julho 2012 — v. 6, n. 1 (2019) Inclui bibliografia ISSN: 2317-3610 1. Linguística; 2. Linguística Aplicada; 3. Literatura I. Universidade Federal de São Paulo - Departamento de Letras.
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Departamento de Letras da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo - EFLCH-UNIFESP Chefe de Departamento Lucia Sano
Editora-chefe Karina Menegaldo Editora associada da edição Marie Flesch (Universidade de Lorraine) Conselho Editorial Ana Luiza Ramazzina Ghirardi Ana Rosa Ferreira Dias
Alexandra Geraldini Karina Menegaldo Maria Lúcia Dias Mendes Viviane Veras
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Comitê Científico Dra. Alexandra Geraldini (PUC-SP) Dra. Ana Luiza Ramazzina Ghirardi (UNIFESP) Dra. Ana Rosa Ferreira Dias (USP/PUC-SP) Dra. Bianca Fanelli Morganti (UNIFESP) Dr. Carlos Renato Lopes (UNIFESP) Dr. Edson Correia (FMU) Dra. Graciela Alicia Foglia (UNIFESP) Dr. Janderson Luiz Lemos de Souza (UNIFESP) Dra. Leila de Aguiar Costa (UNIFESP) Dra. Leonor Lopes Fávero (PUC–SP) Dra. Ligia Fonseca Ferreira (UNIFESP) Dra. Márcia Rodrigues de Souza Mendonça (UNICAMP) Dr. Márcio Rogério de Oliveira Cano (UFLA) Dra. Maria Lúcia Dias Mendes (UNIFESP)
Dra. Mirhiane Mendes de Abreu (UNIFESP) Dra. Paloma Vidal (UNIFESP) Dr. Paulo Eduardo Ramos (UNIFESP) Dr. Rafael Dias Minussi (UNIFESP) Dra. Raquel dos Santos Madanelo Souza (UNIFESP) Dr. Rodrigo Esteves de Lima Lopes (UNICAMP) Dr. Sandro Luis da Silva (UNIFESP) Dra. Sofia Maria de Sousa Silva (UFRJ)
Dra. Sueli Cristina Marquesi (PUC-SP/UNICSUL) Dra. Sueli Salles Fidalgo (UNIFESP) Dra. Vanda Maria Elias (UNIFESP) Dra. Viviane Veras (UNICAMP)
Capa Karina Menegaldo
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Deixo registrado o meu agradecimento à Profa. Dra. Ana Luiza Ramazzina Ghirardi e à Profa. Dra. Maria Lúcia Dias Mendes, membros do conselho editorial, pela colaboração especial nesta edição. Karina Menegaldo Editora chefe
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Expediente da edição Comitê científico Apresentação
A TRANSPOSIÇÃO TRANSMODAL E MIDIÁTICA DA LINGUAGEM QUENELIANA PARA O CINEMA Gabriela Sant’Anna Santos e Ana Luiza Ramazzina Ghirardi A RECEPÇÃO LEITORA CRUZANDO FRONTEIRAS NA SALA DE AULA Marinete Tavares Caputo Silva POLIFONIA E MODERNIDADE EM OS 120 DIAS DE SODOMA, OU A ESCOLA DA LIBERTINAGEM, DO MARQUÊS DE SADE Rosivan dos Santos Bispo e Fernando Simplício dos Santos NOS FIOS DO DIZER: ENTRE O PROTESTO, O POLÍTICO E OS DIFERENTES ESPAÇOS DE ENUNCIAÇÃO Emanuel Angelo Nascimento
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Os tópicos que circundam a área de Letras – e, por conseguinte, de humanidades – merecem atenção destacada nesta edição da revista De Letra em Letra. Se, num primeiro momento, essa diversidade provoca certa instabilidade no que tange ao encaminhamento “objetivo” dos estudos – e, por isso, transforme em legítima certa crítica oriunda das ciências duras –, num segundo instante, é evidência mais do que significativa da capacidade interdisciplinar desse campo de pesquisa – promovendo, assim, uma análise dos fenômenos mais complexos à nossa volta. Assim, no artigo A transposição transmodal e midiática da linguagem queneliana para o cinema, a obra de Raymond Queneau, autor que é expoente de um momento de vanguarda da produção literária francesa na década de 1960, ganha uma leitura que abrange as possibilidades de adaptação do romance Zazie no metrô para o audiovisual, fundamentando-se, para tanto, nas abordagens propostas por Genette (com os conceitos de hipertextualidade, transmodalização e transestilização); Hutcheon (para tratar de adaptação); e Rajewsky (para intermidialidade). Ainda no campo da intermidialidade, mas agora investigando a recepção leitora da obra O caçador de pipas, de Khaled Hosseini, editada em 2005; a HQ de mesmo nome, lançada em 2011; e a adaptação para o cinema, dirigida por Marc Forster em 2008. Ganha relevo aqui o diálogo proposto a partir das teorias, com a de Jouve (para recepção leitora); de Clüver (para intermidialidade); de Elleström (para midialidade); e de Maingueneau (para competência leitora). Já no texto Polifonia e modernidade em os 120 anos de Sodoma, ou a escola da libertinagem, do Marques de Sade, o tema é como as vozes narrativas das duas obras citadas desse autor francês se constroem a partir da polifonia bakhtiniana. Com o objetivo de compreender os diversos efeitos que as vozes narrativas despertam na obra de Sade (situando-a como moderna à frente do seu tempo), o artigo se fundamenta, entre outros, nas leituras de autores como Kellogg & Scholes, Reuter, Bakhtin e Marshall Berman.
Por fim, em Nos fios do dizer: entre o protesto, o político e os diferentes espaços de enunciação, o exercício da leitura e da interpretação, sob os contextos político, social e histórico, aqui é discutido, levando-se em consideração a Análise do Discurso e a Teoria Semântica do Acontecimento. O propósito é estabelecer diálogo para o estudo da constituição, da formulação e da circulação do enunciado #elenão, publicizado em forma de protesto em setembro de 2018. Como se vê, é exatamente graças a essa múltipla abordagem temática, que garantimos a possibilidade de refletir não apenas as questões que envolvem imediatamente o campo dos estudos de Letras, mas as tensões do tempo presente que se conectam à nossa área de estudos.
Fábio Silvestre Cardoso
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A TRANSPOSIÇÃO TRANSMODAL E MIDIÁTICA DA LINGUAGEM QUENELIANA PARA O CINEMA LA TRANSPOSITION TRANSMODAL ET MÉDIATIQUE DU LANGAGE QUENEAULIEN VERS LE CINÉMA Gabriela Sant’Anna Santos - Universidade Federal de São Paulo Ana Luiza Ramazzina Ghirardi - Universidade Federal de São Paulo
RESUMO O principal escopo desse artigo é analisar as transposições transmodal e midiática do romance de Raymond Queneau, Zazie dans le métro (1959), para a linguagem cinematográfica de Louis Malle (1960). Portanto, faz-se necessário analisá-la respondendo às seguintes questões: 1) a linguagem queneliana foi transposta de maneira eficiente para a linguagem cinematográfica? e 2) as figuras de duplicidade que causam constante hesitação no leitor ao longo do romance são eficientes/operantes na transposição midiática operada por Louis Malle? Para elucidá-las, iremos nos apoiar nos aspectos de hipertextualidade, transmodalização e transestilização estabelecidos por Genette (1982) bem como a partir dos conceitos de adaptação, segundo Hutcheon (2011), e de intermidialidade, de Rajewsky (2012). Para que possamos melhor compreender as figuras de duplicidade e linguagem dentro do romance, serão utilizados como embasamento teórico Barthes (1964) e Bernard (1994). Para as hipóteses sobre intransponibilidade de Zazie dans le métro (1959) para a linguagem fílmica, dossiês e análises da transposição de Louis Malle (1960), serão considerados os estudos de Canérot (2012) e Fourcaut (2016). Palavras-chave: transposição, cinema, adaptação. RÉSUMÉ Le but principal de cet article est d’analyser la transposition transmodal et médiatique du roman de Raymond Queneau, Zazie dans le métro (1959), vers le langage cinématographique de Louis Malle (1960). Dès lors il faut analyser la transposition médiatique opérée par Louis Malle (1960) en répondant aux question suivantes: 1) est-ce que le langage queneaulien a été transposé de façon efficace à l’égard du langage cinématographique? 2) les figures de duplicité qui font que le lecteur hésite au long du roman sont-elles opérantes dans la transposition médiatique de Louis Malle? Pour ce faire, on utilise les concepts d’hypertextualité, de transmodalisation et de transtylisation établis par Genette (1982) et aussi les notions d’adaptation, selon Hutcheon (2011) et intermédialité d’après Rajewsky (2012). Afin de mieux comprendre les figures de duplicité et le langage queneaulien nous nous appuy(er)ons sur Barthes (1964) et Bernard (1994). Et pour les hypothèses d’intransponibilité du roman vers le langage filmique, nous étudierons avec des dossiers et des analyses de la transposition de Louis Malle (1960) de Canerot (2012) et Fourcaut (2016). Mots-clé: transposition, cinema, adaptation.
Esse artigo analisa a transposição do romance Zazie dans le métro, 1959, de Raymond Queneau para a versão fílmica de Louis Malle, 1960. Duas hipóteses são aqui levantadas: 1) a linguagem queneliana foi transposta de maneira eficiente para a linguagem cinematográfica? e 2) as figuras de duplicidade que causam constante hesitação no leitor ao longo do romance são eficientes/operantes na transposição midiática operada por Louis Malle?
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Norteados pelos conceitos de transtextualidade, hipertextualidade, transmodalização intermodal e transestilística definidos por Genette (1982) na sua obra Palimpsestes: La littérature au second dégré, analisamos as mudanças operadas por Louis Malle ao adaptar o romance de Raymond Queneau para as telas cinematográficas. Foi necessária, também, a utilização de embasamento teórico sobre os conceitos de intermidialidade, segundo Rajewsky (2012), e as implicações no ato da adaptação levantadas por Hutcheon (2011). Para que pudéssemos compreender a obra fonte utilizada como base para a adaptação de Louis Malle, utilizaram-se Barthes (1964) e Bérnard (1994). Para as questões de intransponibilidade do romance Zazie dans le métro para o cinema, recorremos a dossiês e análises fílmicas feitas por Canérot (2012) e Fourcaut (2016). Para essa investigação, é importante conhecer a figura por trás do romance que iremos analisar neste artigo. Raymond Queneau possui uma obra vasta e de extrema riqueza, ainda que tão pouco conhecida no Brasil, tendo apenas uma de suas obras traduzidas para o português e publicada pela então editora Cosac Naify. Filho único de uma família de antigos camponeses, Raymond Queneau (Le Havre, 21/02/1903), desde os 8 anos de idade, demonstra curiosidade pelas línguas antigas e, em 1915, começa a estudar grego. No ano de 1916, descobre o árabe, o hebreu e o hittite (língua indo-europeia) (FOURCAUT, 2006, p. 272273). Em 1917, desperta sua paixão pela matemática, a qual ele irá cultivar por toda sua vida. Nos anos de 1919 e 1920, ele obtém seu baccalauréat1 , se inscreve em filosofia na Sorbonne e, em 1926, obtém também um diploma em letras (FOURCAUT, op.cit, p. 273). Vale destacar a experiência de Raymond Queneau em seu serviço militar (novembro 1925 - março 1927), nos Zouaves2, na Argélia e na guerra do Rife3, no Marrocos. Essas experiências representaram para ele a oportunidade de conhecer outras realidades e também o francês popular, aspecto que contribuiu para seu estilo narrativo (FOURCAUT, 2006, p. 273). Na mesma época, ele obtém um certificado de inglês por correspondência o que lhe proporciona o acesso à literatura anglo-saxônica (FOURCAUT, 2006, p. 274). Depois de sair da vida militar, ele se instala em Paris (1927) e começa a frequentar o grupo de la rue du Château4, onde conhece Jacques Prévert, o pintor Yves Tanguy e Marcel Duhamel, criador da Série Noire (FOURCAUT, 2006, p. 274). De julho a novembro de 1932, Raymond Queneau viaja para a Grécia, onde
redige seu primeiro romance, Le Chiendent, publicado pela editora Gallimard, em 1933, no qual ele ousa empregar o francês tal como é falado (FOURCAUT, 2006, p. 275). [...] Eu fiz uma viagem para a Grécia. No barco, eu comecei a estudar o grego moderno, a falar com os gregos sobre a luta entre a catarévussa e o demótico, entre a língua que se esforça para não se diferenciar do grego antigo e da língua realmente falada. (FOURCAUT, 2006, p. 275, tradução nossa).5 1
Exame feito pelos franceses no final do liceu (ensino médio) para ingressar no ensino superior. Corpo de infantaria criado na Argélia em 1830 e decomposto em 1962. 3 Também conhecida como Segunda Guerra Marroquina, conflito que ocorreu de 1920 a 1926, entre as forças marroquinas das tribos rifenhas e jebala e a Espanha (mais tarde, a França também entrou no conflito). 4 54, rue du Château, em Montparnasse, casa de Marcel Duhamel, editor, tradutor, ator e roteirista francês. 5 Je fis un voyage en Grèce. Sur le bateau, je me mis à étudier le grec moderne, à parler avec des Grecs de la lutte entre la catharevousa et la 2
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A experiência vivida por Queneau nos zouaves (ver nota nº 2) e na guerra do Rife (ver nota nº 3), além de sua viagem à Grécia, representou pontos chave para que ele pudesse perceber a irracionalidade do código gráfico, o que mais tarde Roland Barthes observará ao analisar o romance Zazie dans le métro (BARTHES, 1964, p. 132). No ano de 1959, Queneau publica Zazie dans le métro, romance adaptado para o teatro por Olivier Hussenot (1959), para o cinema por Louis Malle (1960) e, em 2008, o livro é adaptado por Clément Oubrerie para história em quadrinhos. Em setembro de 1960, juntamente com seu amigo matemático, François Le Lionnais, Raymond Queneau funda a OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle), cujo princípio essencial é o da violência produtora através de constrangimentos literários (FOURCAUT, 2006, p. 279). Raymond Queneau morre em 25 de outubro de 1976, na cidade de Paris, deixando uma vasta obra: 18 romances publicados, 11 poemas e coletâneas, uma peça de teatro, entre outros escritos, como artigos, músicas e diálogos para filmes. Após uma passagem pela história do autor do romance que analisamos neste artigo, o leitor pode se perguntar por que conhecer a história do escritor que pensou todo o universo de Zazie seria importante para a compreensão do que segue. Os motivos são claros e um já foi apresentado no começo desta seção: embora com uma vasta obra, o autor é pouco conhecido no Brasil. Nesta seção (3) e, na próxima (4), partiremos da reflexão de Fourcaut (2006) para entendermos melhor a complexa teia narrativa de Queneau criada a partir de uma nova linguagem. Mesmo que Zazie dans le métro (1959) não pertença a uma corrente ou movimento literário, como afirma Fourcaut (2006), essa obra faz parte do conjunto de obras romanescas que, no pós-guerra, como diz Fourcaut (2006, p. 209), “após o desabamento dos valores da civilização ocidental cristã” (FOURCAUT, 2006, p. 209, tradução nossa)6, se empenharam, cada um a sua maneira, em desconstruir o gênero romanesco. Segundo Fourcaut (2006, p. 209), Zazie dans le métro, extremo desse processo de desconstrução, opera com um tom humorístico e de modo paródico. O que inicialmente era para ser uma história que se desenrola nos corredores de uma estação de 7
metrô , acaba resultando na história de Zazie, uma pequena garotinha do interior da França que vai visitar
Paris pela primeira vez e sonha em andar de metrô. Contudo, ao chegar na cidade-luz, ela descobre que o metrô está fechado por conta de uma greve. Ao chegar na cidade e encontrar seu tio Gabriel, a garota mergulha em uma aventura frenética por uma Paris caótica, no táxi de Charles. Após escaparem do trânsito, os três chegam ao restaurante de Turandot, La Cave; em cima do restaurante, mora o tio de Zazie e sua esposa, Marceline. No dia seguinte de sua chegada, Zazie acorda antes de todos, escapa pela janela do banheiro e vai se aventurar sozinha por Paris.
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après l’effondrement des valeurs de la civilisation occidentale chrétienne (FOURCAUT, 2006, p. 209). Ideia deixada de lado por Queneau ao descobrir que existia uma história semelhante publicada por Madeline Truel em 1943 (FOURCAUT, 2006, p. 229). 7
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O enredo do livro pode parecer, à primeira vista, inocente, mas Raymond Queneau (1959) zomba da sociedade francesa além de criticá-la duramente, principalmente aquela de Paris que está em plena transição entre o que há de mais moderno e os velhos costumes. Isso pode ser notado logo no começo do livro em que o tio de Zazie diz que apenas 11% dos apartamentos em Paris têm banheiro (QUENEAU, op.cit., p.7). Podemos observar ainda a crítica do autor à americanização da sociedade francesa: “teus troços americanos”8 (QUENEAU, idem, p. 35), os cobiçados “djins”9 (QUENEAU, ibidem, p. 42) e a “cacocalo”10 (QUENEAU, 1959, p. 15) que Zazie tanto quer. Como observa Fourcaut (2006, p. 227), a americanização também se traduz pela proliferação do uso de palavras anglo-americanas e “Queneau tinha um malicioso prazer em transcrever a pronúncia popular e, também, a rápida apropriação dessas palavras pela pequena burguesia da qual esses personagens faziam parte”11 (FOURCAUT, 2006, p. 229, tradução nossa). Raymond Queneau também faz surgir, de uma maneira ácida, os vestígios da ocupação alemã na França durante os meses de maio e junho de 1940. Segundo Fourcaut (2006), Queneau recusa toda heroicização dos franceses durante essa época crítica. Ele sabe que a resistência era minoria. [...] a confirmação do fato de que os franceses estavam acomodados durante a ocupação nazista12 (FOURCAUT, 2006, p. 228, tradução nossa). Fourcaut (2006) aponta que os personagens do romance fazem parte dessa maioria e o confessam sem sentir nenhuma vergonha, como podemos observar nos trechos, a seguir, quando Gabriel declara: “No fundo, a vida até que não era ruim”13 (QUENEAU, 1959, p. 33), que não trabalhou na resistência durante a ocupação e sim na “ésstéo” (QUENEAU, op.cit., p. 70), (STO) serviço obrigatório que os alemães impuseram à França ocupada (FOURCAUT, 2006, p. 228). Por mais que Zazie dans le métro seja uma rica fonte para pesquisas em diversos domínios, neste artigo, daremos atenção às duas principais características que fazem de Zazie dans le métro, romance tão complexo, tanto do ponto de vista linguístico quanto do ponto de vista da teoria literária: 1)
as duas linguagens utilizadas por Raymond Queneau: linguagem oral x linguagem escrita e
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as figuras de duplicidade.
A linguagem é, para Queneau, desde suas experiências nos zouaves (ver nota nº2) e na Grécia, um constante material de estudo, onde ele busca observá-la em todas as suas formas. Em Zazie, isso não é diferente. No decorrer do romance, podemos notar a presença de duas linguagens: de um lado, o francês que é falado popularmente nas ruas e, do outro, o francês escrito. 8 9 10 11 12
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le trucs automatiques américains (QUENEAU, 1959, p.39) bloudjinnzes (QUENEAU, 1959, p. 48) . cacocalo (QUENEAU, 1959, p. 17) 4 54, rue du Château, em Montparnasse, casa de Marcel Duhamel, editor, tradutor, ator e roteirista francês. Queneau prend un malin plaisir à en transcrire la prononciation populaire, façon de dire la rapide appropriation de ces mots par la petite bourgeoisie à laquelle appartiennent ses personnages” (FOURCAUT, 2006, p. 229). Queneau refuse toute héroïsation des Français durant cette époque critique. Il sait que la Résistance n’a été le fait que d’une minorité. [...] la confirmation du fait que bien des Français s’était accommodés de l'occupant nazi (FOURCAUT, 2006, p. 228). “Au fond on avait pas la mauvaise vie” (QUENEAU, 1959, p. 37)
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Como observa Fourcaut (2006, p. 246), Queneau combina de uma maneira virtuosa duas línguas completamente diferentes: Queneau reivindicou ao direito, pelo romance e, mais além, por todos os escritos “sérios”, de renunciar ao “francês esclerosado”, ou “paralisado” deixado pela tradição, para adotar uma “nova linguagem”, “uma linguagem verdadeira”: “o neofrancês”, a língua efetivamente usada na vida atual, “o francês falado contemporâneo” ou ainda, “a verdadeira língua francesa, a língua falada”. (FOURCAUT, 2006, p. 246, tradução nossa).14
Para renunciar à língua “esclerosada” e “fixa”, Raymond Queneau faz uso de “coagulações fonéticas”, termo definido por ele em Batons, chiffres et lettres (1950) para denominar aglutinações de palavras pronunciadas em uma só emissão como, por exemplo, segundo Fourcaut (2006, p. 246), a primeira palavra-frase do romance: “Doukipudonktan”15 que, na gramática normativa, quer dizer: “D’où qu’il pue donc tant?”16 QUENEAU, 1959, p. 7). Como também observado por Fourcaut (2006, op.cit., p. 246), o autor mistura sistematicamente o francês culto mumificado pelo tempo e as formas populares, para assim “de um modo humorístico (segundo o antigo princípio do Castigare ridendo mores ‘corrigir a moral pelo riso’), a obsolescência do primeiro [...]”17 (FOURCAUT, 2006, p. 247). Queneau também transcreve tal como são pronunciadas diversas palavras e frases: “Oh, voui, msieu.”18 (QUENEAU, op. cit., p. 44), “Si çui-la”19 (QUENEAU, idem, p. 42), “Chsuis Zazie”20 (QUENEAU, op. cit., ibidem, p. 9), “Àr voir, ma
chérie”21 (QUENEAU, 1959, p. 10), “C’est hun cacocalo que jveux et pas autt chose”22 (QUENEAU, op. cit., p. 17). Efetivamente, Raymond Queneau, como aponta Fourcaut (2006, p. 247), faz uso de diversos recursos estilísticos, assim como de um léxico popular e até mesmo, segundo Fourcaut (2006) op.cit., argotique23 como, por exemplo: “ «a malocha»24 (Queneau, op. cit., p. 10), «les roussins»25 (idem, p. 38), «un pourliche»26 (idem, p. 99), «un litron» (idem, p. 143), etc” (FOURCAUT, 2006, p. 247). Queneau também inventa palavras, principalmente mots-valises:27 “« une euréquation» (p. 14, eurêka et équation), « squeleptique» (p. 139, sceptique et squelettique), «téléphonctionner » (p. 139, téléphone et fonctionner)” (FOURCAUT, 2006, p. 247). 14
Queneau a revendiqué le droit, pour le roman et, au-delà, pour tous les écrits « sérieux », de renoncer au « français sclérosé », ou « figé » légué par la tradition, pour adopter « une langue nouvelle », « un langage vrai »: « le néo-français », à savoir la langue effectivement utilisée dans la vie d’aujourd’hui, « le français parlé contemporain », ou encore, « la langue française véritable, la langue parlée » (FOURCAUT, 2006, p. 246). 15 Dondekevemtantofedô (QUENEAU, 1959, p.7) 16 De onde vem tanto fedor? (tradução nossa) 17 sur un mode humoristique (selon le principe ancien du Castigare ridendo mores: « corriger les mœurs par le rire»), l’obsolescence du premier [...] (FOURCAUT, 2006, p. 247) 18 Na sua tradução publicada pela Cosac Naify, Paulo Werneck não reproduz a oral traduzindo assim essa frase “- É, sim, senhor.” (QUENEAU, 1959, p.39) 19 idem. Quero ver esse aí (QUENEAU,1959, p. 37) 20 idem. - Eu sou a Zazie (QUENEAU, 1959, p. 9) 21 idem. - Até mais, meu amor. Até mais, Gaby. (QUENEAU, 1959. p. 9) 22 idem. - O que eu quero é uma cacocalo e não outra coisa. (QUENEAU, 1959, p.16, grifo nosso) 23 Gíria 24 «la valoche» 25 a polícia (QUENEAU, 1959, p. 34, tradução Paulo Werneck) 26 gorgeta (QUENEAU, 1959, p. 91, tradução Paulo Werneck) 27 termo guarda-chuva.
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Quanto à linguagem escrita, Raymond Queneau modifica a ortografia de certas palavras para “sugerir que ela é na maior parte do tempo artificial”28 (tradução nossa), como observa Fourcaut (2006, op.cit., p. 247). Em dado momento do romance, lemos, sucessivamente, em três linhas “conarde” e “connarde” (QUENEAU, 1959, p. 55), porque as duas ortografias são aceitas. Além de utilizar, nas mesmas, frases construções arcaicas, como tempos verbais que caíram em desuso em língua francesa como o imperfeito do subjuntivo, de termos raros e científicos para zombar do uso de um vocabulário tão raro e ultrapassado (FOURCAUT, 2006, p. 248). Segundo Fourcaut (2006, p. 248), com a crítica à sobrevivência de uma linguagem obsoleta e o incessante confronto entre suas duas formas (oral x escrita) resulta em um efeito decisivo: De um lado, ele demonstra, por exemplo, que a estabilidade da língua é uma ilusão, que ela é, na realidade, o lugar, o objeto de um incessante trabalho, e que o verdadeiro escritor é aquele que funda sua obra em uma participação deliberada nesse trabalho (FOURCAUT, 2006, p. 248, tradução nossa).29
Portanto, para Queneau, a língua é o objeto de incessante trabalho e resulta em uma presença constante do autor na obra. Além da presença de uma linguagem dual que transita entre oral e escrito, o romance Zazie dans le mêtro, está repleto de figuras de duplicidade, seja nas figuras de pensamento ou nas idades e sexo dos
personagens. Uma incerteza paira sobre o leitor do romance, afinal, o tio de Zazie é ou não homossexual? Marceline é homem ou mulher? Pedro-Surplus é um farsante ou um policial? Barthes (1964) define essas figuras de duplicidades como pontos de decepção que acompanham o leitor durante toda a leitura do livro, tornando-o incapaz de concluir qualquer coisa em relação às personagens e ao enredo. [...] Cada elemento do universo tradicional, uma vez reduzido (como se diz de um líquido que fica mais espesso), Queneau o depreende, submete a segurança do romance a uma decepção: o ser da Literatura gira sem parar, à maneira de um leite que se decompõe; aqui, cada coisa é provida de uma dupla face, irrealizável, alvejada pela luz lunar que é o tema essencial da decepção e tema próprio de Queneau. O acontecimento nunca é negado, ou seja, posto e depois desmentido; ele é sempre dividido, à maneira do disco selenita, miticamente provido de duas figuras antagonistas. (QUENEAU, op.cit., p. 178)30
Mais adiante, no texto ensaio escrito por Barthes em 1964, o autor enumera e define quais são essas figuras e de que maneira elas funcionam no texto:
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suggérer qu’elle est souvent artificielle (FOURCAUT, 2006, p. 247). D’une part, il démontre par l’exemple que la stabilité de la langue est une illusion, qu’elle est en réalité le lieu, l’objet d’un incessant travail, et que le véritable écrivant est celui qui fonde son œuvre sur une participation délibérée à ce travail-là (FOURCAUT, 2006, p. 248). 30 [...]Chaque élément de l’univers traditionnel une fois pris (comme on dit d’un liquide qui s’épaissit), Queneau le déprend, il soumet la sécurité du roman à une déception : l’être de la Littérature tourne sans cesse, à la façon d’un lait qui se décompose ; toute chose est ici pourvue d’une double face, irréalisée, blanchie de cette lumière lunaire, qui est thème essentiel de la déception et thème propre à Queneau. L’événement n’est jamais nié, c’est-à-dire posé puis démenti ; il est toujours partagé, à la façon du disque sélénien, mythiquement pourvu de deux figures antagonistes. (BARTHES, 1964, p.130). 29
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Primeiro, as figuras do pensamento: as formas de duplicidade são inumeráveis aqui: a antífrase (como o próprio título, pois Zazie jamais pegará o metrô), a incerteza (é o Panthéon ou a Gare de Lyon, os Invalides ou o quartel de Reuilly, a Sainte-Chapelle ou o Tribunal de Comércio?), a confusão dos papéis contrários (Pédro-Surplus é ao mesmo tempo tarado e policial), das idades (Zazie envelheceu, palavra de velhos), a dos sexos, duplicada por sua vez por um enigma suplementar, já que nem a inversão de Gabriel é uma certeza, o lapso que é verdade (Marceline se torna por fim Marcel), a definição negativa (a tabacaria que não é da esquina), a tautologia (o policial preso por outros policiais), o escárnio (a criança que maltrata o adulto, a senhora que intervém) etc. (BARTHES, 2009, p. 178)31
Mesmo que possamos encontrar essas formas de dualidade em diversos elementos do texto, esse artigo foca principalmente nas personagens, mais precisamente em Gabriel, tio de Zazie e Marceline,
companheira de Gabriel. Ao longo do romance, essas duas personagens têm constantemente sua identidade sexual negada e afirmada diante do leitor. No trecho a seguir, o primeiro em que Marceline aparece no romance, podemos vê-la claramente sendo tratada por pronomes femininos: “ - Está na mesa - disse suavemente Marceline, trazendo a sopeira. - Zazie - ela grita -, está na mesa.”32 (QUENEAU, 1959, p. 19). Aqui, vale a pena lembrar que se trata da primeira aparição de Marceline, e em nenhum momento, ela foi apresentada para o leitor e nem para Zazie, portanto, aqui a narrativa já nos mostra como o autor opera com suas figuras de duplicidade. Quando falamos de Gabriel, tio de Zazie, ele é questionado ao longo do romance sobre sua sexualidade, como podemos ver no trecho seguinte: “Como é que você sabe?, replicava o sujeito, ela pode ter tido a ideia, com um marido que tem jeitão de hormossecsual.”33 (QUENEAU, 1959, p. 57). Todo esse questionamento gira em torno do fato dele trabalhar em uma boate como transformista, usando vestidos e maquiagem. Ao ouvir o tio sendo chamado de “hormossecsual”, Zazie questiona Marceline, sobre o que significa isso e ela responde: “É um homem que usa calça djins - disse suavemente Marceline”34 (QUENEAU, op.cit., p. 57). Desse modo, a transposição da linguagem queneliana e das figuras de dualidade compostas por Queneau representam um grande obstáculo para Louis Malle, ao transpor o filme em 1960, um ano depois da publicação do livro, porém, como ele mesmo disse, isso lhe permitiu brincar com a linguagem cinematográfica assim como Queneau faz com a linguagem escrita: Eu acreditava que a aposta que consistia em adaptar Zazie para as telas me daria a oportunidade de explorar a linguagem cinematográfica. Era uma obra brilhante, um inventário de todas as técnicas literárias além, com certeza, de numerosos pastiches. Era como brincar com a literatura e disse a mim mesmo que seria interessante tentar fazer o mesmo com a linguagem cinematográfica (CANÉROT, 2012, p. 308, tradução nossa). 35 31
D’abord les figures de pensée: les formes de duplicité sont ici innombrables : l’antiphrase (le titre même du livre en est une, puisque Zazie ne prendra jamais le métro), l’incertitude (s’agit-il du Panthéon ou de la Gare de Lyon, des Invalides ou de la Caserne de Reuilly, de la SainteChapelle ou du Tribunal de Commerce ?), la confusion des rôles contraires (Pédro-Surplus est à la fois satyre et flic), celle des âges (Zazie vieillit, mot de vieux), celle des sexes, doublée à son tour d’une énigme supplémentaire puisque l’inversion de Gabriel n’est même pas sûre, le lapsus qui est vérité (Marceline devient finalement Marcel), la définition négative (le tabac qui n’est pas celui du coin), la tautologie (le flic embarqué par d’autres flics), la dérision (la gosse qui brutalise l’adulte, la dame qui intervient), etc. (BARTHES, 1964, p.130) 32 “- À table, dit doucement Marceline en apportant la soupière. Zazie, crie-t-elle doucement, à table” (QUENEAU, 1959, p. 21). 33 “Qu’est-ce que vous en savez? répliquait le type, l’idée put lui en être venue avec un mari qui a des façons d’hormosessuel” (QUENEAU, 1959, p. 65). 34 “C’est un homme qui met des bloudjinnzes, dit doucement Marceline.” (QUENEAU, 1959, p. 65). 35 Je trouvais que le pari qui consistait à adapter Zazie à l’écran me donnerait l’occasion d’explorer le langage cinématographique. C’était une œuvre brillante, un inventaire de toutes les techniques littéraires, avec aussi, bien sûr, de nombreux pastiches. C’était comme jouer avec la littérature et je me suis dit que ce serait intéressant d’essayer d’en faire autant avec la langage cinématographique (CANÉROT, 2012, p. 308, grifo do autor).
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Porém, mesmo com as dificuldades no processo de transposição intermodal e intermidial, existia um grande preconceito em relação a elas, pois, mesmo com os avanços sobre os estudos de adaptações, o grande público ainda vê, nas adaptações (principalmente quando se tratam de transposições midiáticas de romances para o cinema) um impasse, seja ele de captar a essência da obra utilizada como base ou, simplesmente, vê nas adaptações uma categoria inferior. Segundo Robert Stam (2006), “a linguagem convencional da crítica sobre as adaptações tem sido, com frequência, profundamente moralista, rica em termos que sugerem que o cinema, de alguma forma, fez um desserviço à literatura” (STAM, op.cit., p. 19). Como aponta o autor, essas visões negativas resultam de aspectos enraizados em nossa cultura, “o senso intuitivo da inferioridade da adaptação deriva, eu especularia, de uma constelação de preconceitos primordiais” (STAM, 2006, idem, p. 20). Stam (2006) aponta e enumera as origens dessa hostilização: Em outros textos, eu resumi esses preconceitos nos seguintes termos: 1) antiguidade (o pressuposto de que as artes antigas são necessariamente artes melhores); 2) pensamento dicotômico (o pressuposto de que o ganho do cinema constitui perdas para a literatura); 3) iconofobia (o preconceito culturalmente enraizado contra as artes visuais, cujas origens remontam não só às proibições judaico-islâmico-protestantes dos ícones, mas também à depreciação platônica e neo-platônica do mundo das aparências dos fenômenos); 4) logofilia, (a valorização oposta, típica de culturas enraizadas na “religião do livro”, a qual Bakhtin chama de “palavra sagrada” dos textos escritos); 5) anti-corporalidade, um desgosto pela “incorporação” imprópria do texto fílmico, com seus personagens de carne e osso, interpretados e encarnados, e seus lugares reais e objetos de cenografia palpáveis; sua carnalidade e choques viscerais ao sistema nervoso; 6) a carga de parasitismo (adaptações vistas como duplamente “menos”: menos do que o romance porque uma cópia, e menos do que um filme por não ser um filme “puro”) (STAM, 2006, p. 21, grifos nossos).
O último preconceito enumerado por Stam, a carga de parasitismo, é um dos problemas enfrentados por Louis Malle e Jean- Paul Rappeneau no processo de transposição midiática do romance de Raymond Queneau, Zazie dans le métro (1959). Louis Malle, um dos precursores da Nouvelle Vague36, tinha sobre ele o olhar rigoroso de seus contemporâneos. Não à toa que, em 1954, François Truffaut publica na revista Les Cahies du cinema, o artigo Une certaine tendance du cinéma français, onde ele [...] denigre violentamente os diretores ditos da “qualidade francesa”, atacando de fato seus roteiristas em nome da “política dos autores” que faz do diretor o autor, - para não dizer o artista - do filme. A questão da adaptação está constantemente, em 1960, no coração da estratégia polêmica da Nouvelle Vague. (CANÉROT, 2012, p. 303-304, tradução nossa)37
O culto ao autor é o principal pilar da Nouvelle Vague, onde se reivindica que o diretor de um filme seja visto também como um artista e um gênio criador, portanto, ele deve roteirizar e dirigir seus próprios filmes, o que leva à ideia de que fazer uma adaptação de uma obra literária, por exemplo, mostraria uma incapacidade de criar. O ser da literatura, o ato da escritura, sempre esteve presente nas obras da Nouvelle Vague, como observa Robert Stam:
36
Criada na França, em 1958, a Nouvelle Vague contrariava a estética hollywoodiana e as produções de grandes estúdios, sendo assim conhecida por fazer filmes com baixo orçamento, onde os próprios diretores escreviam e dirigiam seus filmes. 37 “[...] dénigre le plus violemment les réalisateurs dits de « la Qualité Française », en s’attaquant en fait à leurs scénaristes au nom de la « politique des auteurs ». Cela revient à faire du seul réalisateur l’auteur – pour ne pas dire l’artiste – du film. La question de l’adaptation est toujours, en 1960, au cœur de la stratégie polémique de la Nouvelle Vague. (CANÉROT, 2012, p. 303-304)
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Os filmes dos diretores da Nouvelle Vague “encarnavam” essa teoria escritural. Não por acaso, por exemplo, o primeiro filme de Truffaut, Os incompreendidos, está repleto de referências à escritura: o plano de abertura com os alunos escrevendo; a imitação de Antoine da Caligrafia de sua mãe; seu furo de uma máquina de escrever; seu pastiche de Balzac que lhe rende a acusação de plágio – todos remetem a esse tropo que subjaz sua visão do cinema. Ao mesmo tempo, a Nouvelle Vague se mostra extremamente ambivalente com relação à literatura, que era tanto um modelo para ser imitado como, quando na forma de roteiros literários e adaptações convencionais, o inimigo a ser repudiado. (op.cit, 1941, p. 105-106)
Ainda que o pensamento da nouvelle vague seja por nós considerado, nesse artigo, adotaremos outra óptica e analisaremos a adaptação de Louis Malle sob a ótica dos conceitos de transtextualidade, transposição transmodal e hipertextualidade levantados por Genette (1982). Genette (1982) define transtextualidade como: “tudo o que o [texto] coloca em relação, manifesta ou secreta, com outros textos” (GENETTE, op.cit., 1982, p.13). Em relação ao objeto de nosso estudo, a transposição intermodal (Genette, idem) nos interessa em relação ao quarto dos cinco tipos de transtextualidade: a hipertextualidade, um texto que deriva de outro. Portanto, a união de um texto B (hipertexto) a um texto A (hipotexto) (GENETTE, ibidem): Esta derivação pode ser de ordem descritiva e intelectual [...]. Ela pode ser de uma outra ordem, em que B não fale nada de A, no entanto não poderia existir daquela forma sem A, do qual ele resulta, ao fim de uma operação que qualificarei, provisoriamente ainda, de transformação, e que, portanto, ele evoca mais ou menos manifestadamente, sem necessariamente falar dele ou citá-lo (GENETTE, 1982, p. 13)
A hipertextualidade é uma transformação e, portanto, requer a mudança da estrutura do hipotexto, podendo ser um simples e mecânico gesto de redução ou de escolher quais personagens serão mantidos no novo texto (GENETTE, 1982). A adaptação de Louis Malle (1960) também se enquadra nas definições de transposição, que é uma das práticas hipertextuais mais importantes definidas por Genette (1982), pois ela pode abranger obras de várias dimensões e domínios (GENETTE, op.cit., p. 223). A transposição operada por Louis Malle (1960) se enquadra no tipo de transposição denominada temática, que acontece por intenção, portanto, ela ocorre de maneira proposital, assim como a transposição operada por Louis Malle (1960), do romance, Zazie dans le métro de Raymond Queneau (1959). Além dessas duas categorias, ainda existem subcategorias, que
servem apenas para diferenciar subclasses, gêneros, espécies e variedades, de modo que um texto pode possuir diversas dessas operações (GENETTE, 1982). Sendo assim, podemos classificar a adaptação de Louis Malle (1960) como uma transposição transmodal, pois ela opera a mudança de modo, então, “será qualquer tipo de modificação feita no modo de representação característico do hipotexto” (GENETTE, op.cit., p. 322). Além disso, Genette (idem) separa as transposições transmodais em dois tipos: intermodal, mudança de modo e a intramodal, mudança de modo interno. Por consequência, a adaptação de Louis Malle se enquadra no tipo de transposição intermodal, pois é a passagem do modo contar (linguagem escrita) para o modo mostrar (linguagem cinematográfica).
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As transformações modais podem ser, a priori, de dois tipos: intermodais (passagem de um modo a outro) ou intramodais (mudança que afeta o funcionamento interno do modo). Essa dupla distinção nos fornece, evidentemente, quatro variações. Duas são intermodais: a passagem do narrativo ao dramático, ou dramatização, e a passagem inversa, do dramático ao narrativo, ou narrativização. E duas são intramodais: as variações do modo narrativo e as variações do modo dramático (GENETTE, 1982, p. 322, grifos do autor).
Todavia, não é apenas o filme de Louis Malle que se encontra nos conjuntos de transposições que Genette (1982) classifica; a obra de Raymond Queneau, Zazie dans le métro, também se enquadra como transposição transestilística que, segundo Genette (idem) se define como uma reescritura estilística, que tem como objetivo a mudança de estilo, como Queneau (1959) faz ao tentar transcrever a linguagem oral
para a linguagem escrita. Além da mudança de modo, narrativo para o dramático, houve também uma mudança de mídia, do livro para as telas do cinema, o que nos leva também ao domínio das relações intermidiais. Como observa Rajewsky (2012): Nesse sentido, intermidialidade pode servir antes de tudo como um termo genérico para todos aqueles fenômenos que [...] de alguma maneira acontecem entre as mídias. ‘Intermidiático’, portanto, designa aquelas configurações que têm a ver com um cruzamento de fronteiras entre as mídias (RAJEWSKY (op.cit., p. 18, grifo da autora).
Além disso, a autora propõe três subcategorias, para que possamos analisar cada tipo de relação de uma maneira mais restrita: transposição midiática (1), combinação de mídias (2) e referências
intermidiáticas (3) (RAJEWSKY, 2012, p. 24-25). A adaptação de Louis Malle (1960) do livro de Raymond Queneau (1959) faz parte da primeira categoria, a transposição midiática que, segundo a autora, representa uma relação de intermidialidade “cuja formatação é baseada num processo de transformação específico da mídia e obrigatoriamente intermidiático” (RAJEWSKY, 2012, p. 24). Consequentemente, as mudanças de mídia observadas por Rajewsky (op.cit.) assim como as mudanças de modo definidas por Genette (1982), acarretam algumas perdas ou mudanças no produto final, pois há elementos que não podem ser transpostos de um livro para as telas do cinema. Segundo Hutcheon (2011): Contar uma historia [...] é descrever, explicar resumir, expandir; o narrador tem um ponto de vista e um grande poder para viajar pelo tempo e espaço [...]. Mostrar uma história, como em filmes [...] envolve uma performance direta, auditiva e geralmente visual, experienciada em tempo real (op.cit, p.35).
Visto que, ao operar esse processo, características principais do hipotexto podem ser perdidas, pode -se pensar que, por conta disso, uma obra possa ser intransponível. É isso que indica Bérnard que, em 1994, escreveu um artigo observando que “ [...] nos diálogos do filme, não sentimos mais os esforços da escrita queneliana para se adaptar ao oral e subverter o sistema ortográfico”38 (BÉRNARD, 1994, p. 137, tradução nossa) e que, por conta disso, a obra de Raymond Queneau (1959) é intransponível.
38
[...] dans les dialogues du film, on ne sent plus les efforts de l’écriture quenalienne pour coller à l’oral et subvertir le système orthographique” (BÉRNARD, 1994, p. 137).
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Levando isso em conta, analisaremos alguns trechos para que assim possamos responder às duas hipóteses que levantamos no começo deste presente artigo: 1) a linguagem queneliana foi transposta de maneira eficiente para a linguagem cinematográfica? e 2) as figuras de duplicidade que causam constante hesitação no leitor ao longo do romance são eficientes/operantes na transposição midiática operada por Louis Malle? Em relação à primeira hipótese levantada, houve a análise e comparação: - da primeira palavra ou primeira coagulação fonética que encontramos no início do romance de Raymond Queneau: “Doukipudontktan” (QUENEAU, op. cit., p. 7) com a minutagem 01’20, da transposição intermidial e transmodal de Louis Malle, feita em 1960. -
da
cena
de
Gabriel,
tio
de
Zazie,
a
espera
na
estação
de
trem,
quando
diz
“Médoukipudontktan” (QUENEAU, idem, p. 7). Essa comparação indicou que os traços da linguagem queneliana, apesar das dificuldades, foram esforçadamente mantidos na adaptação de Louis Malle, 1960. A segunda hipótese foi analisada a partir dos seguintes trechos do romance (enumerados, pois se tratam de três momentos diferentes) e das cenas correspondentes do filme (representados pelos trechos do filme, por exemplo (1.1) – trecho do filme que corresponde ao trecho 1 do romance): (1) -Está na mesa - disse suavemente Marceline, trazendo a sopeira. - Zazie – ela grita -, está na mesa.[...] - Também não vamos exagerar - disse Marceline, suavemente. (QUENEAU, 1959, p. 19)39 (2) Mas Marceline viu um objeto jogado na cômoda, pega, vai correndo abrir a porta, se pendura para gritar s uavemente na escada: - Gabriel, Gabriel. - O quê? Quê que foi? - Você esqueceu o seu batom. (QUENEAU, op.cit., 1959, p. 26)40 (3) [...] Pouco depois, vinha Zazie, acompanhada por um sujeito que levava a malocha dela. - Olha só! - disse Jeanne Lalochère - Marcel. [...] - Entendo. Mas e o Gabriel? - Não tá muito bem. Tô indo. Témais, menina. - Tchau - disse Zazie, muito ausente. (QUENEAU, idem, 1959, p. 171) 41
Os trechos citados acima foram comparados com os seguintes trechos retirados da decupagem feita por Laurent Canérot (2012):
39
-À table, dit doucement Marceline en apportant la soupière. Zazie, crie-t-elle doucement, à table.[...] - N'egzagérons rien, dit doucement Marceline (QUENEAU, 1959, p. 21). 40 Mais Marceline a vu un objet qui traîne sur une comode, elle le prend, court ouvrir la porte, se penche pour crier doucement dans l'escalier - Gabriel, Gabriel. - Quoi? Qu'est-ce qu'il y a? - Tu as oublié ton rouge à lèvres. (QUENEAU, 1959, p. 29). 41 [...] Peu après, Zazie s'amenait accompagnée par un type qui lui portait sa valoche. - Tiens, dit Jeanne Lalochère. Marcel. [...] - Je comprends. Mais Gabriel? - C'est pas brillant. On s'éclipse. Arvoir, petite. - Au revoir, meussieu, dit Zazie très absente. (QUENEAU, 1959, p. 193)
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(1.1) Capitulo 4. Minutagem: 07’43 Título: Serei astronauta.... Resumo: [...] A noite caiu. No apartamento, Albertine, a mulher de Gabriel, serve o jantar para Zazie et Gabriel (CANÉROT, 2012, p. 295, tradução nossa)42 (2.2) Capítulo 4. Minutagem: 07’43 Título: Serei astronauta… Resumo: Gabriel, ajudado por Albertine, se prepara cuidadosamente, depois sai, esquecendo seu batom. (CANÉROT, 2012, p. 295, tradução nossa)43 (3.3) Capítulo 18. Minutagem: 01’25’57 Título: Eu envelheci. Resumo: [...] o trem começa a partir, quando ela (Jeanne Laloreche) salta dentro dele e Albertine/Albert lhe dá Zazie. (CANÉROT, 2012, p. 303, tradução nossa)44
Ao analisarmos os três trechos (do filme e do livro) e compararmos uns aos outros, pudemos verificar que, ao transpor o romance de Queneau, Zazie dans le métro (1959) para a linguagem cinematográfica, algumas figuras de duplicidade encontradas no romance se concretizam. No trecho 1 do romance, Marceline, ao servir o jantar, sempre é acompanhada pela frase “dit
doucement”, portanto, ela é apreendida pelo leitor como uma figura doce e feminina. No trecho 1.1 do filme, a mulher de Gabriel, não se chama Marceline e, sim, Albertine, interpretada por uma atriz mulher (Carla Marlier). A linguagem visual indica que a personagem na produção cinematográfica é representada como uma mulher, o que no romance não fica claro para o leitor. Já no trecho 2 do romance, vemos novamente Marceline acompanhada do advérbio “doucement” e aqui o leitor se encontra em uma situação que o leva a crer que Marceline, esposa de Gabriel, talvez seja uma mulher. Nessa passagem, Gabriel, que durante todo o romance, tem sua sexualidade questionada, ao sair para trabalhar, esquece seu batom (que bem sabemos em uma sociedade em que o gênero é dividido entre masculino e feminino, o batom representa então que Gabriel possui traços de feminilidade). No final desse trecho, o leitor se questiona e se encontra em um impasse ao tentar entender o gênero ou a preferência sexual do tio de Zazie (o batom pode ser para seu uso pessoal, mas também pode ser para o seu trabalho). Já no filme, o mesmo aspecto permanece, pois, no trecho 2.2, podemos perceber que a cena se 42
Chapitre 4. Minutage : 07’43 Titre: Ch’rai astronaute... Résumé: [...] La nuit est tombée. Dans l’appartement, Albertine, la femme de Gabriel, sert le dîner à Zazie et Gabriel. (CANÉROT, 2012, p. 295) 43 Chapitre 4. Minutage: 07’43 Titre: Ch’rai astronaute... Résumé: Gabriel, aidé d’Albertine, se prépare soigneusement, puis sort, en manquant d’oublier son rouge à lèvres. (CANÉROT, 2012, p. 295) 44 Chapitre 18. Minutage: 01’25’57 Titre: J’ai vieilli. Résumé: [...] le train commence à partir, lorsqu’elle saute dedans et qu’Albertine/Albert lui remet Zazie. (CANÉROT, 2012. p. 303)
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desenrola como no romance. A diferença de mídia aqui ajuda o espectador a entender que os papeis feminino e masculino estão definidos, pois podemos visualizar uma mulher interpretando Albertine (Marceline no romance) e um homem interpretando Gabriel. Ao analisarmos finalmente o trecho 3 do livro, que se encontra na última página do romance, podemos observar que o leitor, ao terminar o romance, novamente se depara com mais uma incógnita. Já na estação de trem, a mãe de Zazie, Jeanne, espera por ela e avista um homem trazendo sua filha. Será Gabriel? Não. Quem traz Zazie é Marcel. Mas quem é Marcel? Pelo diálogo que se segue, podemos supor que Marcel é companheiro de Gabriel, pois Jeanne pergunta por ele: [...] Pouco depois, vinha Zazie, acompanhada por um sujeito que levava a malocha dela. - Olha só! - disse Jeanne Lalochère - Marcel. [...] - Entendo. Mas, e o Gabriel? - Não tá muito bem. Tô indo. Témais, menina. - Tchau - disse Zazie, muito ausente. (QUENEAU, 1959, p. 171)45
O leitor termina o romance com uma dúvida que, talvez, faça-o recomeçar sua leitura para tentar achar em que ponto ele se perdeu e não percebeu que Marceline virou Marcel. A figura de duplicidade, podemos supor, mais impactante do livro, ao ser transposta para a linguagem cinematográfica, causaria o mesmo impacto como no romance? Ao analisarmos o trecho 3.3 do filme, podemos inferir que acontece da mesma forma do romance, com Albertine/Albert aparecendo vestido de homem mas, ao retornarmos na minutagem 01’12’02, podemos ver Albertine se vestindo/
fantasiando de homem: “ Troscaillon se junta a Albertine, que estava sozinha no camarim, e tenta seduzila. Mas Albertine, indiferente aos seus avanços, se veste de motoqueiro e sai do camarim” (CANÉROT, 2012, p. 301, tradução nossa)46. A transformação de Albertine em Albert é anunciada e não ocorre da mesma maneira que no livro, pois Queneau, sem jamais anunciar, apenas apresenta Marceline sendo tratada como Marcel. Portanto, como observa Bérnard (1994), a passagem do modo contar para o modo mostrar quebra toda a dualidade existente no romance, pois o espectador vê Albertine/Albert vestido de homem, no final do filme e ouve Albertine sendo chamada de Albert. O efeito surpresa aqui está descartado; deste modo, podemos concluir que as figuras de duplicidade que causam constante hesitação no leitor, não são concretizadas na transposição intramodal e intermidial do romance para as telas do cinema. Além disso, não sentimos mais os efeitos causados pelas coagulações fonéticas de Queneau, como também vimos nas análises dos trechos acima.
45
- Tiens, dit Jeanne Lalochère. Marcel. - Comme vous voyez. - Mais elle dort debout ! - On a fait la foire. Faut l’escuser. Et moi aussi, faut m’escuser si je me tire. - Je comprends. Mais Gabriel ? - C’est pas Brillant. On s’éclipse. Arvoir, petite. (QUENEAU, 1959, p.193) 46 “Albertine, restée seule dans la loge, est rejointe par Trouscaillon, qui entreprend de la séduire. Mais Albertine, indifférente à ses avances, s’habille en mourtard et quitte la loge [...]” (CANÉROT, 2012, p. 301)
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Apesar de não observarmos efeitos tão relevantes da narrativa de Queneau na adaptação cinematográfica de Malle, é importante destacar a observação de Genette (1982) - ao se referir principalmente ao teatro -, mas que também pode se aplicar ao cinema, pois aqui também temos a passagem do modo contar para o modo mostrar. Como se pode observar, um considerável desperdício de recursos textuais acontece sempre que a narrativa é transposta para a representação dramática. Pois, desse ponto de vista, e para colocar em termos aristotélicos (“Quem pode mais? Quem pode menos?”), diremos simplesmente que o que o teatro pode fazer, a narrativa pode fazer também, enquanto o contrário não é verdadeiro. Mas a inferioridade textual é compensada por um imenso ganho extratextual, obtido por aquilo que Barthes chamava de teatralidade propriamente dita (“o teatro menos o texto”): espetáculo e jogo de cena. (GENETTE, 1928, op.cit., p. 123)47
Podemos concluir que a transposição de Louis Malle não pode ser considerada um fracasso, como Bérnard (1994) afirma em seu artigo Un cinéma zazique. Como aponta Genette (1982), seria um grande engano dizer quem pode mais ou menos, o cinema ou a literatura. Ambos possuem uma gama de elementos ou linguagens que o outro não tem, porém isso não quer dizer que um seja melhor que o outro. O “ganho extratextual” obtido pela transposição verbal para a linguagem cinematográfica vai além da expectativa de “transponibilidade” e apresenta ao público um novo produto com características diversas, nem melhores nem piores, nem fiéis nem infiéis, daquela da mídia fonte.
REFERÊNCIAS BARTHES, R. Zazie e a literatura. In______ : Zazie no metrô. Tradução de Paulo Werneck.1.ed. São Paulo: Cosac Naify, 2009. BARTHES, R. Zazie et la littérature. In______ : Essais Critiques. Paris: Seuil, 1964. BÉRNARD, J. Un cinéma zazique ?. In______ : Questions sur l’éthique au cinéma. Montréal : Cinémas, vol. 4, nº 3, 1994. CANÉROT, L. Analyse du film: Zazie dans le metró de Louis Malle.In:_____ Zazie dans le métro. Paris: Gallimard, 2012.
FOURCAUT. L. Le texte en perspective. In: ______: Zazie dans le métro. Paris: Gallimard, 2012. GENETTE, G. Palimpsestes: La littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982. GENETTE, G. Palimpsestos: A literatura de segunda mão. Tradução de Cibele Braga, Erika Viviane Costa Vieira, Luciene Guimarães, Maria Antônia Ramos Coutinho, Mariana Mendes Arruda, Miriam Vieira. 2 ed. Belo Horizonte: UFMG, 2010. HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. 2 ed. Florianópolis: UFSC, 2011.
47
On observe donc ici, dans le passage du récit à la représentation dramatique, une considérable déperdition de moyens textuels, car de ce point de vue, et pour mesurer les choses en termes aristotéliciens (« qui peut le plus? qui peut le moins ? »), on dira simplement que, tout ce que peut le théâtre, le récit le peut aussi, et sans réciproque. Mais cette infériorité textuelle est compensée par un immense gain extratextuel : celui que procure ce que Barthes nommait la théâtralité (« le théâtre moins le texte ») proprement dite : spectacle et jeu. » (GENETTE, 1982, p. 324)
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QUENEAU, R. Zazie dans le métro. Paris: Gallimard, 1959. QUENEAU, R. Zazie no metrô. Tradução de Paulo Werneck. 1 ed. São Paulo: CosacNaify, 2009. RAJWESKY, O. I. Intermidialidade, intertextualidade e remediação: Uma perspectiva In______: Intermidialidade e estudos interartes: Desafios da arte contemporânea. Belo Horizonte: UFMG, 2012. STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. In ______: Ilha do Desterro, Florianópolis, UFSC, nº 51, 2006. literária sobre a intermidialidade.
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A RECEPÇÃO LEITORA CRUZANDO FRONTEIRAS NA SALA DE AULA LA LECTURE DE RÉCEPTION AU-DELÀ DES FRONTIÈRES DANS LA SALLE DE CLASSE Marinete Tavares Caputo Silva Universidade Federal de São Paulo RESUMO Este artigo apresenta um recorte de um estudo em andamento o qual busca investigar a recepção leitora das diversas linguagens derivadas do processo de intermidialidade entre o romance “O caçador de pipas” de Khaled Hosseini (2005), a HQ homônima (Hosseini, 2011) e o filme homônimo com direção de Marc Forster (2008). Apresentam-se questões utilizadas na aplicação de uma Sequência Didática a estudantes do Ensino Médio de uma escola pública estadual de São Paulo, estabelecendo um diálogo entre as teorias da recepção leitora de Jouve (2002), da intermidialidade de Clüver (2006), da midialidade de Elleström (2017) e da competência leitora de Maingueneau (2013). Palavras chave: recepção leitora; Intermidialidade; ensino médio. RÉSUMÉ Cet article présente un extrait d’une étude en cours sur la lecture de réception des différents langages issus du processus d’intermédiation entre le roman de Khaled Hosseini «The Kite Hunter» (2005), la bande dessinée du même nom (Hosseini, 2011) et le film éponyme réalisé par Marc Forster (2008). Les questions utilisées dans l'application d'une séquence didactique aux élèves du secondaire d’une école publique de l'état de São Paulo sont présentées, établissant un dialogue entre les théories de la réception en lecture de Jouve (2002), l'intermidialité de Clüver (2006), la midialité de Elleström (2017) et la compétence en lecture de Maingueneau (2013). Mots-clés: réception du lecteur; Intermidialité; lycée.
INTRODUÇÃO A linguagem, para atender às necessidades do seu tempo, do seu emissor e do seu receptor, sempre foi diversificada, constituída de suas variadas formas e tipos. Segundo Saussure, “tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita” (SAUSSURE, p. 17, 2006). No processo de comunicação, pode-se dizer que a recepção da linguagem, dentro de um possível quadro, também foi regida pelo processo cognitivo dos seres envolvidos, uma vez que há a necessidade de conhecimento do código, dos signos e suas representações para que haja o entendimento do que é transmitido. As variações nas formas de transmissão sempre atenderam à demanda de cada época, passando por processos de alterações constantemente. Esta demanda persiste na sociedade atual, pois as formas de comunicação vêm sofrendo mudanças ao longo dos anos e, com a evolução dos meios de comunicação cada vez maiores, verifica-se a inserção
de diversificados modos, meios, canais e mídias1, os quais foram sendo explorados para atenderem às Revista De Letra em Letra—Vol. 6 n. 1, 2019
mudanças impostas à sociedade. Estas mudanças atingem, principalmente, o âmbito escolar, uma vez que é uma esfera na qual há a grande preocupação de se desenvolver aspectos relacionados ao conhecimento, à linguagem em geral e à sua aprendizagem. A própria constituição de texto e sua definição2 sofreram alterações, refletindo na forma de sua exploração e utilização na sala de aula, apresentando-se como um desafio a ser superado para que se desenvolvam as habilidades e competências necessárias para o entendimento do seu código, e, consequentemente, sua interpretação. Nesse sentido, a multimodalidade, tão presente na interação atual, abre um espaço investigativo, por apresentar inúmeras possibilidades de reflexos na aprendizagem. De acordo com estudos sobre Multimodalidade, Ramazzina Ghirardi (2014), chama a atenção no sentido da necessidade de se aprofundar em estudos voltados para a recepção leitora e as novas mídias: (...) é preciso investigar, de um lado, o modo como os atuais leitores se apropriam do texto escrito e, de outro, as formas pelas quais tais textos vão sendo reconfigurados a partir das novas condições tecnológicas e sociais. Isso é, importa refletir sobre o impacto que as novas mídias representam nesse universo de inovações e o papel que a imagem exerce no imaginário dos leitores (RAMAZZINA GHIRARDI, op.cit., p.435).
Neste contexto, o objetivo deste artigo é explorar a relação existente entre a estética da recepção, partindo-se do texto escrito, o texto monomodal, sob a definição de Boutin (2012) “constituído unicamente do modo textual, portanto do seu ‘precioso’ código alfabético”3 (tradução nossa) para o texto multimodal,
composto de linguagem verbal e não verbal, de diferentes recursos semióticos, sob o olhar da intermidialidade. Busca-se construir um possível diálogo existente entre as teorias da recepção leitora de Jouve (2002) e da intermidialidade de Clüver (2006) ao explorar as fronteiras que se cruzam nesse processo. Dessa forma, optou-se por utilizar o texto literário “O caçador de pipas”, romance de Khalled Hosseini (2005) e suas transposições para outras mídias e suas respectivas linguagens. A adaptação do romance resultou na HQ homônima (Hosseini, 2011) e no filme homônimo com direção de Marc Forster (2008). Este artigo está inserido no processo de uma pesquisa feita com alunos, estudantes do segundo ano do Ensino Médio, de uma escola pública estadual, para os quais aplicou-se uma Sequência Didática contendo trechos do romance, do filme e da HQ, além da aplicação de questionários para análise. Para a presente publicação, optou-se por um recorte, limitando-se à apresentação das questões elaboradas a partir do diálogo entre as teorias mencionadas anteriormente.
1
O conceito de mídia adotado neste estudo é o de Wolf (1999): “[M]ídia” pode ser definida [...] como um meio de comunicação convencionalmente distinto, especificado não só por canais (ou um canal) de comunicação particular(es) mas também pelo uso de um ou mais sistemas semióticos que servem para transmitir Mensagens Culturais. (In: CLÜVER, 2006, p. 34) 2
um balé, um soneto, um desenho, uma sonata, um filme e uma catedral, todos figuram como “textos” que se “leem” (CLÜVER, 2006, p. 15).
3
« monomodal » (constitué du seul mode textuel, donc de son « cher » code alphabétique. (BOUTIN, 2012, p. 46)
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A RECEPÇÃO LEITORA E A INTERMIDIALIDADE É possível fazermos uma associação direta com a perspectiva multicultural na sala da aula e a intermidialidade. Encontramos nos Estudos Interartes de Claus Clüver (2006), reforços para esta questão: Se associam hoje aos Estudos Interartes o reconhecimento recente de que a intertextualidade sempre significa também intermidialidade – pelo menos em um dos sentidos que o conceito abrange. E isso vale não apenas para textos literários ou mesmo para textos verbais. Pelo menos quando se trata de obras que, seja lá em que forma, nas Artes Plásticas, na Música, na Dança, no Cinema, representam aspectos da realidade sensorialmente apreensível, sempre existe nos processos intertextuais de produção e recepção textual um componente intermidiático – tanto para a Literatura quanto, frequentemente, nas outras artes (CLÜVER, 2006, p.14).
Segundo Clüver (2006), os componentes intermidiáticos estão presentes no processo de produção e recepção textual nas obras que representam aspectos da realidade sensorialmente apreensíveis. Ressalta-se, dessa forma, a importância de a intermidialidade ser explorada no que diz respeito à recepção leitora, uma vez que, cada vez mais, encontramos reflexos e diferenciações nas interpretações textuais ao se ter o contato com as diversas e múltiplas linguagens midiáticas. O repertório que utilizamos no momento da construção ou da interpretação textual compõe-se de elementos textuais de diversas mídias, bem como, frequentemente, também de textos multimídias, mixmídias e intermídias (CLÜVER, 2006, p. 15).
Os estudos sobre a recepção leitora vêm ao encontro destes processos, pois, nas últimas décadas, houve uma mudança significativa: passou-se do estudo das obras, ao estudo de todo o circuito comunicativo literário. Com a “teoria do leitor implícito” de Iser (apud Jouve, 2002), de 1976, passamos a contar com o princípio de que o leitor é o pressuposto do texto. Segundo Jouve (2002), refere-se a mostrar como a organização e direção de uma obra tem relação com a reação do indivíduo-leitor e o plano cognitivo na leitura por meio dos percursos impostos pelo texto. Conforme se vê em Jouve (2002), a estrutura textual vai representar um papel fundamental no processo da recepção, ao direcionar, por meio da sua configuração, a compreensão da obra. De acordo com
Jouve (op.cit), “Uma vez que muitos efeitos de leitura estão ligados à linearidade da obra, os pesquisadores – sem desprezar os outros gêneros – extraem a maior parte de seus exemplos do universo narrativo.” (JOUVE, idem, p. 15). Porém, também dessa forma, partindo-se da literatura e do uso exclusivo da linguagem verbal, ao se incluir as duas outras mídias (HQ e filme), encontramos correspondência sobre a importância da recepção leitura que envolve uma linguagem multimodal em diversificados tipos de suportes. Maingueneau (2013) contribui com nossos estudos a este respeito: Vimos que é necessário reservar um lugar importante ao modo de manifestação material dos discursos, ao seu suporte, bem como ao seu modo de difusão: enunciados orais, no papel, radiofônicos, na tela do computador, etc. (idem, p. 81). Esta importância dar-se-á, não somente pela estrutura narrativa, mas por meio do contato com a linguagem própria e característica de cada uma das mídias. Clüver (2006) nos afirma que: Revista De Letra em Letra—Vol. 6 n. 1, 2019
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As comunidades interpretativas, que determinam e autorizam quais códigos e convenções nós ativamos na interpretação textual, influenciam também o repertório textual e o horizonte de expectativa. Mas o repertório é, em última análise, parte dos contextos culturais nos quais se realizam a produção e a recepção textual. (idem, p.15)
De acordo com Elleström (2017), “enredos e histórias são dois tipos de estruturas narrativas sequenciais que podem ser mais ou menos totalmente transferidas entre mídias” (idem, p. 241), dessa forma, pode-se transferir um pouco do mundo da história, no tocante à temática, às personagens e suas características. O autor cita, inclusive, a literatura e o cinema por conterem signos simbólicos e linguagem verbal. Nesse sentido, soma-se a HQ, por conter a linguagem verbal e a não verbal em sua composição.
A LEITURA E A RECEPÇÃO LEITORA Reflexões sobre o conceito de leitura e o ato de ler estão presentes no nosso dia a dia, principalmente no âmbito escolar, seja pelos professores, seja pelos estudantes. A leitura tem um papel fundamental na formação acadêmica e no desenvolvimento das nossas habilidades e competências como leitores. A leitura “é uma atividade complexa, plural, que se desenvolve em várias direções” (JOUVE, 2002, p. 17). Jouve, em suas contribuições com estudos sobre leitura, baseia-se em uma visão semiótica, que
apresenta uma estreita relação com nosso trabalho. Dessa forma, buscamos, em sua referência a Thérien (1990), as principais abordagens do autor em relação ao processo da leitura (apud JOUVE, 2002). Segundo Thérien (op.cit), há cinco dimensões que constituem esse processo: 1. processo neurofisiológico, para o qual são necessários o funcionamento do aparelho visual e o funcionamento das diferentes funções do cérebro, representado pelas operações de percepção, identificação e memorização dos signos; 2. processo cognitivo, quando ocorre a tentativa de entendimento do que foi lido, após o código ter sido decifrado; 3. processo afetivo, que vai suscitar as emoções do leitor; 4. processo argumentativo, no qual há sempre o engajamento do autor em relação ao mundo, aos seres; 5. processo simbólico, no qual, ao se interagir com a cultura da época, tira-se um sentido da leitura. (id, p. 1-4, apud JOUVE, 2002, p. 17-22).
Diversas esferas entram em questão quando se trata deste assunto; uma leitura pressupõe, minimamente, uma tríade: o narrador, o texto escrito e o sujeito leitor. E pressupõe, também, desde uma subjetividade, que envolve a interação, a disposição, a decifração, o conhecimento e a interpretação até o caráter mais objetivo que envolve a concretude deste ato. O ato de leitura, quando se trata de um texto escrito, possui algumas condições que são geradas pela relação assimétrica entre emissor e receptor, uma vez que ambos estão afastados no tempo e no espaço, acarretando, assim, consequências no entendimento do texto. Podemos afirmar que “é fundamentando-se na estrutura do texto, isto é, no jogo de suas relações internas, que o leitor vai reconstruir o contexto necessário à compreensão da obra” (JOUVE, 2002, p. 23). O caráter diferido traz, além da riqueza dos textos, uma possibilidade de interpretações plurais, dada as contribuições das experiências de cada leitor, sua cultura e seus valores. Revista De Letra em Letra—Vol. 6 n. 1, 2019
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Além disso, Jouve (2002) nos apresenta três abordagens que influenciam na interpretação da leitura. Seguindo os conceitos de Barthes (1966), “uma leitura deve, para ser legítima, satisfazer o critério de coerência interna” (BARTHES, 1966, apud JOUVE, 2002). É preciso que estas interpretações obedeçam a critérios de validação, que são: 1. a interpretação generalizável de acordo com a obra, 2. a lógica simbólica e 3. a sequência sempre do mesmo sentido, sendo uma validação autorizada pelo próprio texto. Riccœur (1986) acrescenta, ainda, o princípio da coerência externa “uma leitura não pode se opor a certos dados objetivos (biográficos, históricos ou outros) que se possui sobre o texto.” (id, apud JOUVE, 2002, p. 26). A terceira abordagem trata-se da semiótica, para a qual a recepção leitora é “em grande parte, programada pelo texto” (JOUVE, 2002, p. 26). Assim, o leitor, a princípio, aceitaria o tipo de leitura que o texto programou. Dessa forma, o leitor passa a ter um papel fundamental sobre a prática da leitura, ganhando um espaço cada vez maior neste processo. O leitor, o texto e sua constituição representam fatores essenciais para construírem a relação de sentido. Nos conteúdos aplicados na sala de aula, a literatura sempre serviu de base para os estudos da leitura e suas relações de sentido. No entanto, com a inserção das novas mídias, é importante verificar que não se pode deixar de perceber as múltiplas linguagens que rodeiam os estudantes nos mais variados lugares e, consequentemente, este fenômeno reflete no ambiente escolar. Como sabemos, a leitura envolve diversos processos, Jouve (2002) afirma que “ler é, anteriormente a qualquer análise do conteúdo, uma operação de percepção, de identificação e de memorização de signos” (idem, p. 17). Entendendo-se a importância dos diferentes signos constituintes dos processos midiáticos em questão envolvendo a leitura, consideramos convergentes os estudos de Elleström (2017), quando este nos propõe que é necessário que haja um novo modelo de comunicação, visto que esta inclui não apenas a fala e outras formas verbais, como também as formas não verbais. Além disso, algumas características que envolvem a comunicação precisam ser incorporadas a essa ideia. Assim, o autor utiliza-se da midialidade
com o auxílio da semiótica. De acordo com Elleström (2017), a midiação vai influenciar na “criação de sentidos nos atos perceptivos e cognitivos da recepção” (idem, p. 182), causando uma forma de interpretação. Encontra-se, nessa definição, uma relação com a recepção leitora das diferentes mídias que compõem o corpus da nossa pesquisa e, dessa forma, poderão servir como justificativas para os possíveis resultados encontrados. Ainda com base nos estudos de Elleström (op.cit), pode-se verificar um modelo de comunicação no qual o autor ressalta a importância das modalidades das mídias, compostas por quatro tipos de traços básicos que podem contribuir para a análise dos produtos de mídia. Essas modalidades são classificadas, segundo o autor, como: material, sensorial, espaçotemporal e semiótica; integrando a materialidade, ainda temos a percepção e a cognição. Revista De Letra em Letra—Vol. 6 n. 1, 2019
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Em especial, iremos tratar mais especificamente da modalidade semiótica proposta por Elleström (2017) “a modalidade semiótica - envolve a criação de significado na mídia concebida de forma espaçotemporal por meio de diferentes tipos de raciocínio e interpretações de signos” (ELLESTRÖM, 2017, p. 95). O teórico baseia-se na tricotomia de Peirce: ícone, índice símbolo (1897 apud ELLESTRÖM, 2017, p. 71), para quem os signos representam objetos e possuem uma relação com os interpretantes que estão na mente do perceptor. Ainda, segundo Peirce (1897, apud ELLESTRÖM, 2017, p. 71), o aspecto determinante de todos os signos está “na mente” de quem os interpreta, os três modos de significação estão sempre misturados, mas podemos dizer que um deles é dominante.
AS MÍDIAS: ROMANCE, HQ E FILME E A MODALIDADE SEMIÓTICA Para as três mídias utilizadas neste estudo, destacamos as considerações de Elleström (2017) em relação à modalidade semiótica, pois servirão de base para as considerações e análises dos questionários aplicados aos alunos. Em relação à modalidade semiótica, o romance possui textos escritos, nos quais – “as funções sígnicas simbólicas das letras e das palavras dominam o processo de significação” (ELLESTRÖM, 2017, p. 71). Já a HQ possui “[...] todos os tipos de imagens visuais (desenhos, números, tabelas e fotografias, por exemplo)” e “são geralmente dominados por signos icônicos” (op. cit., 2017, p. 71). No que diz respeito à produção cinematográfica e sua modalidade semiótica, a imagem em movimento combinada com ondas sonoras, apresenta signos icônicos. De acordo com Elleström (2017) o cinema é visto como “uma mídia qualificada multifacetada” (op. cit., 2017, p. 76). Num primeiro momento, importa ressaltar e reafirmar a concepção de que as diferentes modalidades em questão podem gerar mudanças nos processos cognitivos, perceptivos e receptivos. E isto é o que pretendemos observar por meio da Sequência Didática que foi aplicada e por meio dos resultados
obtidos. Com o intuito de utilizarmos como exemplo e explorarmos as considerações pragmáticas e teóricas que fazem parte deste estudo, elencamos a seguir um exemplo de um dos trechos do romance com os quais os alunos tiveram contato, de acordo com as três mídias. Acabei deixando o livro na pilha de presentes do canto do quarto. Mas não conseguia tirar os olhos dele. Decidi, então, escondê-lo debaixo de tudo. Naquela noite, antes de ir dormir, perguntei a baba se ele tinha visto o meu relógio novo em algum lugar. NA MANHÃ SEGUINTE, FIQUEI ESPERANDO no quarto até que Ali tivesse acabado de tirar a mesa do café na cozinha. Esperei que terminasse de lavar a louça e secar a bancada. Fiquei na janela para ver quando ele e Hassan sairiam para fazer as compras no bazaar, empurrando o carrinho vazio.
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Então, fui até a pilha de presentes e peguei alguns envelopes com dinheiro e o meu relógio de pulso. Saí do quarto pé ante pé. (...) Desci a escada, atravessei o quintal e entrei na casa de Ali e Hassan, perto da nespereira. Levantei o colchão de Hassan e pus ali debaixo o meu relógio novo e um punhado de notas de afeganes. Esperei mais uma meia hora. Depois, bati à porta do escritório e disse o que esperava que fosse a última de uma longa lista de mentiras vergonhosas. PELA JANELA DO MEU QUARTO, vi Ali e Hassan empurrando o carrinho carregado de carne, naan, frutas e legumes pela alameda de entrada. Vi meu pai saindo de casa e caminhando para ir ao encontro deles. Vi suas bocas se mexendo, dizendo palavras que eu não conseguia ouvir. Baba apontou para a casa e Ali assentiu com um gesto de cabeça. Separaram-se. Baba entrou em casa novamente enquanto Ali seguia Hassan até a cabana do quintal. Minutos depois, meu pai veio bater à porta do meu quarto. — Venha até o meu escritório — disse ele. — Vamos sentar e resolver essa história de uma vez. Fui para o escritório e sentei em um dos sofás de couro. Em meia hora, ou mais, Hassan e Ali vieram ao nosso encontro. (HOSSEINI, 2005, capítulo, 9, p. 109)
NA HQ, esta passagem ganhou um bom espaço em páginas e detalhes de imagens, fazendo com que a ação fosse valorizada na narrativa, sendo demonstrado por meio dos detalhes sequenciais. Este trecho da trama ocupa cinco páginas na história, sendo formado na sua maior parte apenas por imagens. As poucas falas são muito próximas das apresentadas no romance. Figura 1 - Excerto da HQ - p. 59
O caçador de pipas (HOSSEINI, 2011). Revista De Letra em Letra—Vol. 6 n. 1, 2019
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Figura 2 - Excerto da HQ - p. 60
O caçador de pipas (HOSSEINI, 2011).
No filme, a cena inicia-se aos 42’34”, logo após o término da festa da noite anterior, mostrando já o dia seguinte com Hassan varrendo o quintal. Na sequência, a câmera mostra Amir em seu quarto olhando o relógio que ganhara de seu pai. Em seguida, ele observa pela janela do quarto, Ali e Hassan saindo com um carrinho para irem às compras.
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Figura 3 - Trecho do filme
Fonte: cena - 43’51’’do filme O caçador de pipas - (FORSTER, 2007) Figura 4 - Trecho do filme
Fonte: cena - 43’52’’do filme O caçador de pipas (FORSTER, 2007)
Figura 5 - Trecho do filme
Fonte: cena - 44’17’’do filme O caçador de pipas (FORSTER, 2007)
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A SEQUÊNCIA DIDÁTICA
A Sequência Didática foi elaborada para ser aplicada para um grupo de estudantes do 2º ano do Ensino Médio, da Escola Estadual Professora Aparecida Rahal, situada em São Paulo. Essa escola foi selecionada para a aplicação da pesquisa, como parte do nosso projeto de pesquisa sobre “A recepção leitora nas diversas linguagens de “O caçador de pipas”: do romance, à HQ e ao filme” desenvolvido no
programa de pós-graduação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP. A SD foi elaborada por meio de uma seleção de trechos dos capítulos do romance, procurando-se, a princípio, obedecer a critérios de escolha que buscassem garantir um contato com o enredo principal. Para a sua aplicação, a sala foi dividida em três grupos (sendo dois com oito alunos e um com nove), pois uma das estratégias da SD era a de que cada grupo iria iniciar a leitura por uma mídia diferente até todos terem contato com as três – o romance, a HQ e o filme. Quanto aos questionários, foram utilizadas orientações teóricas de Fourtanier, Langlade e Mazauric (2006). Os autores nos orientam quanto aos dispositivos de leitura, por meio de atividades voltadas para uma situação escolar com uma perspectiva didática: “estamos interessados na relação estética (no primeiro
sentido), isto é, na maneira como um leitor é afetado por uma obra e na maneira como a obra é afetada por uma leitura” (FOURTANIER, LANGLADE e MAZAURIC, 2006, p. 4, tradução nossa)4. As questões foram baseadas no sentido de explorarmos a reação do leitor, a coerência apreendida e seu entendimento sobre o assunto. Seguimos ainda exemplos baseados nos trabalhos de Claudette Cornaire (1991) na intenção de atingirmos as etapas do entendimento e da interpretação textual. Segundo a autora, a compreensão da leitura se faz por meio da seleção de um esquema5 feito pelo leitor na sua interação com o texto. Dessa forma, buscou-se explorar este processo com perguntas que procurassem garantir o que Cornaire (op.cit, 28) considera como os três fatores que podem influenciar na compreensão leitora: 1. o contexto em que o texto se insere; 2. as características do texto; e 3. o conhecimento do leitor (CORNAIRE, 1991, p. 28, tradução nossa)6. Os questionários aplicados foram divididos em etapas que contaram com: 1. pré-leitura (como estratégia, foi realizado um brainstorming), 2. questões sobre hábitos de leitura, 3. questões sobre o entendimento do texto parte 1 (após o contato com apenas uma das mídias) e 4. Questões sobre o entendimento do texto parte 2 (após terem tido contato com as três mídias). 4
Nous intéresse la relation esthétique (au sens premier), c'est-à-dire la façon dont un lecteur est affecté par une œuvre et la façon dont, en retour l'ouvre est affectée par une lecture (FOURTANIER, LANGLADE e MAZAURIC, 2006, p. 4). 5
le schème est un groupement structuré de connaissances qui représentent um concept particulier, par exemple un objet, une perception, une situation, un événement, une série d’actions, etc. (CORNAIRE,1991, p. 25) – “o esquema é um grupo estruturado de conhecimento que representa um conceito particular, por exemplo, um objeto, uma percepção, uma situação, um evento, uma série de eventos e assim por diante”. ( CORNAIRE,1991, p. 25, tradução nossa) 6
‘1) le contexte dans lequel s’insère le texte; 2) les caractéristiques du texte; et 3) les connaissances du lecteur” (CORNAIRE, 1991, p. 28).
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As questões das fases de pré-leitura e do entendimento do texto após o contato com a primeira mídia, contou com a participação de 25 alunos. Para a realização inicial, houve a divisão em três grupos. O Grupo 1 iniciou com a leitura da HQ, depois fez a leitura do romance e finalizou com o filme. O Grupo 2 iniciou com a leitura do romance, depois assistiu ao filme e finalizou com a leitura da HQ. O Grupo 3 iniciou com o filme, depois fez a leitura da HQ e finalizou com a leitura do romance. As perguntas e as respostas do Questionário da Parte 1 do entendimento foram aplicadas de acordo com o término da leitura de cada uma das formas/mídias. As questões elencadas abaixo seguiram as diretrizes do que consideramos como parâmetros para podermos direcionar nosso estudo de recepção. •
Questões relacionadas à temática da narrativa “fabula” (tema/essência, a história como virtualidade pura): “Qual temática é desenvolvida no enredo?”
•
Questões voltadas à mídia utilizada (suporte expressivo, veículo semiótico). Você utilizou alguma maneira que o deixou mais confortável para percorrer a leitura (estratégia de leitura)? Como foi esse processo para entender a história? Com qual das mídias você mais se identificou? Qual deixou você mais confortável com a história? Por quê?
A diferença de mídia causou um impacto diferente em você em relação ao mesmo trecho? •
As questões a seguir foram elaboradas com o objetivo de investigar como se daria a recepção em relação à syuzhet/syusheticização7 (o que resulta do relacionamento entre narrativa e mídia): O que mais chamou sua atenção em relação aos trechos vistos, em cada uma das mídias pela qual você teve contato com a história? Você percebeu a história de modo diferente por causa do modo como ela foi veiculada? Explique (Detalhadamente) Ao entrar em contato com cada uma das linguagens de cada mídia, houve um impacto diferente do seu entendimento da história? Explique.
Ainda, as questões que seguem neste bloco, atenderam ao levantamento da seguinte proposta: •
“Pretende-se, ainda, elencar os elementos invariáveis que foram selecionados para continuarem compondo a história nos processos intermidiáticos, sua permanência e representatividade além da linguagem verbal”: Qual/quais o(s) trecho(s) chamou (chamaram) mais a sua atenção? Por quê? O que acontece de principal? Quanto às personagens: Quem participa deste trecho? É possível dar detalhes de características físicas/psicológicas de algum (alguns) deles? Cite:
4
“[...] a mesma fabula, o mesmo substrato anedótico, é passível de sofrer várias syuzheticizações [...]” (GAUDREAULT e MARION, 2012, p. 115).
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Onde o referido trecho se passa? Quando ele acontece? •
Ainda, algumas questões foram direcionadas mais para o aspecto pessoal, individual do aluno em relação à sua percepção e recepção: Qual/quais o(s) trecho(s) chamou (chamaram) mais a sua atenção? Por quê? Qual (quais) personagem (personagens) te interessou mais? Por quê? Depois de ter visto as passagens em três mídias diferentes, o(s) mesmo(s) trecho(s) citado(s) anteriormente que haviam chamado a sua atenção, seriam citados novamente como o(s) mais impactante(s) para você? Com qual das mídias você mais se identificou? Se você fosse recomendar esta história para um(a) amigo(a), qual mídia você indicaria? Por quê? Qual das três formas (romance, quadrinhos, filme) te envolveu e/ou emocionou mais? Você apreendeu alguma mensagem dos trechos lidos/vistos? A experiência fez você refletir ou mudar de postura em relação a alguma coisa na sua vida?
Visto que o objetivo deste artigo é o de apresentar um recorte de um estudo sobre uma sequência didática que busca investigar a recepção leitora em diversas linguagens, as questões aqui apresentadas possuem o intuito de descrever a atividade aplicada aos alunos. Por essa razão, as respostas decorrentes dessa SD não são aqui apresentadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao descrever a atividade aplicada aos alunos, procurou-se demonstrar possibilidades de utilização e de interação de diferentes mídias na aplicação de uma SD em uma sala de aula. Um dos objetivos principais foi tornar mais efetiva a utilização da linguagem multimodal a serviço da leitura nas aulas do Ensino Médio. As análises das respostas encontram-se em desenvolvimento, no entanto, já é possível afirmar que o diálogo entre as teorias da estética da recepção e da intermidialidade são de extrema relevância para os estudos da recepção leitora, principalmente no âmbito escolar. O propósito de se investigar as possíveis variações de interpretação e de entendimento do texto – as quais sofrem reflexos das características midiáticas por meio da qual se teve contato – cria uma maior probabilidade de inserções midiáticas diversificadas, voltadas para o uso metodológico na sala de aula. Com isso, ampliam-se as possibilidades de atingir os perfis dos novos leitores, reforçando o papel da escola de aproximar-se do aluno leitor, independentemente do meio/modo/mídia por qual a leitura será feita.
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FILMOGRAFIA FORSTER, Marc. – O caçador de pipas (filme), 2007 – Baseado no romance de Khaled Hosseini.
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POLIFONIA E MODERNIDADE EM OS 120 DIAS DE SODOMA, OU A ESCOLA DA LIBERTINAGEM, DO MARQUÊS DE SADE POLYPHONIE ET MODERNITÉ DANS LE ROMAN LES 120 JOURNÉES DE SODOME, OU L’ÉCOLE DU LIBERTINAGE, DU MARQUIS DE SADE Rosivan dos Santos Bispo - Universidade Federal de Rondônia (Bolsista CAPES) Fernando Simplício dos Santos - Universidade Federal de Rondônia
RESUMO O presente trabalho analisa o modo pelo qual a polifonia bakhtiniana e certo “espírito de modernidade” organizam, cada um à sua maneira, a construção das múltiplas vozes narrativas e um tipo de crítica sui generis, presentes na seção “As cento e cinquenta paixões simples, ou de primeira classe”, do romance Os 120 dias de Sodoma, ou a Escola da Libertinagem (1785), do Marquês de Sade (1740-1814). Assim, uma de nossas hipóteses é a de que a compreensão da polifonia e da modernidade configura-se como importante fator para a (re)contextualização da obra de Sade nos séculos XX e XXI. Como suporte teórico, valer-nos-emos de textos de Kellogg & Scholes (1977), Reuter (2002), Bakhtin (1981), Marshall Berman (1987), entre outros. Sob tal enfoque, buscamos compreender os diversos efeitos que as vozes narrativas despertam na obra do Marquês, qualificandoa como uma narrativa moderna, mesmo tendo sido produzida no final do século XVIII. Palavras-chave: Marquês de Sade; Os 120 dias de Sodoma, ou a Escola da Libertinagem; Polifonia; Modernidade. RÉSUMÉ Ce travail a pour but d’analyser la façon selon laquelle la polyphonie bakhtinienne et la modernité sont organisées dans le chapitre intitulé « Les cent cinquante passions simples, ou de première classe », publié dans le roman Les 120 journées de Sodome, ou L’École du Libertinage, du Marquis de Sade (1740-1814), écrit à la prison de la Bastille en 1785. Ainsi, il est également possible de vérifier une reformulation esthétique qui met en évidence la critique de Sade envers la religion, la morale et la politique. Dans ce but, nous avons étudié les théories de Kellogg et Scholes (1977), Reuter (2002), Bakhtin (1981), Berman (1987), par exemple . Mots-clé: Marquis de Sade; Les 120 journées de Sodome, ou L’École du Libertinage; Polyphonie; Modernité.
INTRODUÇÃO O Marquês de Sade (1740-1814) é uma das figuras centrais para a compreensão da “tradição pornográfica” da moderna sociedade ocidental, bem como para o entendimento de outros temas polêmicos. Suas obras estão vinculadas às áreas da literatura e filosofia, já que, além de escritor de romances, contos, teatro, etc., ele também foi filósofo, elaborando vários escritos desta área, como, por exemplo, La Philosophie dans le boudoir (1795). Suas produções expressam feitos de uma geração marcada por controvérsias e, especialmente, pelo moderno espírito revolucionário, plasmando a possibilidade de maior
liberdade nas ações e no imaginário do homem, que, não mais regido apenas por doutrinas específicas ou Revista De Letra em Letra—Vol. 6 n. 1, 2019
religiões, pôde alcançar a definitiva gratificação, em sentido amplo, na libertinagem. Além das obras citadas, vale destacar: Les Crimes de l’Amour (1780), Dialogue entre un prêtre et un moribond (1782) e Justine ou les Malheurs de la vertu (1791). O livro Os 12 dias de Sodoma, ou A escola da libertinagem, escrito em 1785 e publicado 19311935, representa quatro meses de libertinagem, divididos em quatro classes de vícios, entre os quais, temos: a primeira parte intitulada “150 paixões simples ou de primeira classe”; a segunda, “As 150 paixões de segunda classe, ou duplas”; a terceira, “150 paixões de terceira classe, ou criminosas”; por fim, a quarta, “As 150 paixões assassinas, ou de quarta classe”. Todas essas passagens, como os nomes sugerem,
intensificam-se desde o simples “sexo convencional” até assassinatos e massacres em nome do prazer, da luxúria, da subversão. Os 120 dias foi escrito durante a prisão do Marquês na Bastilha. Neste período, iniciava-se a propagação de ideais revolucionários franceses. Em 1916, Paris é bombardeada e muitas mulheres vão trabalhar nas fábricas em decorrência da Primeira Guerra Mundial. Em 1789, quatro anos após a obra de Sade ter sido escrita, acontece a Revolução Francesa e os ideais iluministas tornam-se mais contundentes; os embates entre comunismo e fascismo invadem a cidade. A partir das décadas de 1920 e 1930, Paris se torna um dos principais destinos de intelectuais e artistas, como, por exemplo, Hemingway, Henry Miller, Gertrude Stein, Guillaume Apollinaire, etc. A partir de então, Os 120 dias de Sodoma fora retomado pela intelectualidade, tornando-se uma das obras mais polêmicas do século XX. Acreditamos que a modernidade deste trabalho esteja vinculada, de certo modo, à evolução do molde romance reconfigurando o que se entendia por tradição, pois se trata de uma obra, extremamente, e experimental. Na esteira das reflexões expostas acima, na primeira seção deste trabalho, intitulada “Conceito de polifonia e voz narrativa na estrutura do romance”, buscamos compreender o conceito de Bakhtin, para, posteriormente, demonstrar como a teoria ajuda a entender a maneira pela qual o romance de Sade foi criticado e, modernamente, estruturado. Assim, partimos do pressuposto de que Os 120 dias de Sodoma questiona, entre outras especificidades, os preceitos de uma sociedade injusta e desigual, em que a moral, a ética e, até mesmo, a razão, contraditoriamente, não se sustentavam como “iluministas”. Na segunda seção, “Os 120 dias de Sodoma, ou A escola da libertinagem: análise das vozes literárias”, aplicamos a teoria explicitada, procurando revelar como as diversas vozes narrativas presentes na obra do Marquês atuam, trazendo compreensões e sentidos distintos que estão, de certa maneira, relacionados com o espírito revolucionário moderno. Este último configura a análise da terceira seção. Nesta, pretendemos discutir a relação entre crítica, estrutura narrativa e modernidade. Por fim, nas outras partes do artigo, analisamos como as diversas construções das vozes narrativas do romance em foco trazem à tona reflexos de âmbitos literários (estruturais e não estruturais), cujas junções colaboram para que possamos compreender a modernidade da produção artística em questão. 1
Segundo Scholes e Kellogg, “a evolução das formas dentro da tradição narrativa é um processo análogo, em alguns sentidos, à evolução biológica. O homem, considerando-se o final de um processo evolutivo, naturalmente vê na evolução uma luta pela perfeição” (Scholes e Kellogg, 1977, p. 6). No entanto, Os 120 dias de Sodoma é uma narrativa, peculiarmente, moderna, entre outros motivos, porque não busca sintetizar uma forma romanesca clássica ou “perfeita”, mas sim a dilui, criticando com contundência certos paradigmas da tradição.
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CONCEITO DE POLIFONIA E VOZ NARRATIVA NA ESTRUTURA DO ROMANCE Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975) foi um teórico da literatura e filósofo da linguagem cujas ideias influenciaram muito do que a intelectualidade desenvolveu no mundo ocidental, em especial, no que se refere ao pensamento sobre linguística, teoria da literatura, estudos culturais e estética. A obra principal que resgataremos para traçar nossas considerações sobre uma de suas teorias será seu ensaio Problemas da poética de Dostoiévski (1963), no qual Bakhtin teoriza o conceito de polifonia a partir da análise da obra do grande romancista russo. Para aprofundar nossas reflexões sobre o assunto, igualmente, utilizaremos os artigos de Artur Roberto Roman (1992-93), de Vera Lúcia Pires e Fátima Andréia
Tamanini-Adames (2010), por exemplo. A polifonia: [do gr. Polyphonía], entre os gregos antigos, significava reunião de vozes ou de instrumentos; simultaneidade de várias melodias que se desenvolvem independentemente, mas dentro da mesma tonalidade (FERREIRA, 2004, p. 1590). Bakhtin se apropriou do conceito resgatado da música para definir a multiplicidade das vozes que se expressam e configuram a poética de Dostoiévski. Como destaca Roman, Estudando Dostoiévski, Bakhtin observou que o seu discurso romanesco não é apenas plurivocal – há algo mais além dessa plurivocidade: as vozes dos personagens apresentam uma independência excepcional na estrutura da obra. Como diz Bakhtin, "é como se soassem ao lado da palavra do autor". Observou mais que as múltiplas consciências que aparecem no romance mantêm-se equipolentes, ou seja, em pé de absoluta igualdade, sem se subordinarem à consciência do autor. Também os mundos que povoam os seus romances se combinam numa unidade de acontecimento, porém mantendo a sua imiscibilidade. (ROMAN, 1992-93, p. 210).
De acordo com o argumento de Bakhtin, como exposto por Roman, a poética de Dostoiévski possui certa uniformização entre o discurso do autor e o discurso das diversas vozes que aparecem em suas obras, de maneira que um não se sobreponha totalmente sobre o outro, criando, por assim dizer, certa igualdade na configuração das vozes que atuam dentro do romance dostoievskiano. Como salientam Pires e Tamanini-Adames: Bakhtin definiu Dostoiévski como o criador do chamado “romance polifônico”, entendido como um texto em que diversas vozes ideológicas contraditórias coexistem em pé de igualdade com o próprio narrador. É um tipo de romance que se contrapõe ao romance monológico. Entretanto, Rechdan adverte que dialogismo não deve ser confundido com polifonia, pois o dialogismo é o princípio dialógico constitutivo da linguagem, enquanto a polifonia se caracteriza por vozes polêmicas em um discurso. (PIRES e TAMANINI-ADAMES, 2010, p. 67).
Sobre a diferença entre polifonia e dialogismo apresentada no fragmento, observemos que Diana Luz Pessoa de Barros (1994), no trabalho Dialogismo, polifonia e enunciação, esclarece que Bakhtin: acredita que o monologismo rege a cultura ideológica dos tempos modernos e a ele opõe o dialogismo, característica essencial da linguagem e princípio constitutivo, muitas vezes mascarado, de todo discurso. O dialogismo é a condição do sentido do discurso. (BARROS, 1994, p. 2).
De modo geral, concordamos com Edward Lopes em Discurso literário e dialogismo em Bakhtin (1994), no momento em que define o romance polifônico, segundo a concepção de Bakhtin. Assim, de forma bastante acessível, Lopes destaca que Revista De Letra em Letra—Vol. 6 n. 1, 2019
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são polifônicos os romances em que cada personagem funciona como um ser autônomo, exprimindo sua própria mundividência, pouco importa coincida ela ou não com a ideologia própria do autor da obra; a polifonia ocorre quando cada personagem fala com sua própria voz, expressando seu pensamento particular, de tal modo que, existindo n personagens, existirão n posturas ideológicas. (LOPES, 1994, p. 74).
Notamos que todos os aspectos sublinhados acima podem ser encontrados em Os 120 dais de Sodoma, pois, no romance, teremos, entre outras, tanto a voz “polêmica” dos libertinos (os senhores Duque de Blangis, o Bispo de..., o Presidente de Curval e Durcet – que demonizam prismas culturais), quanto a problemática em torno da religião, acentuada por contrastes (representados, por exemplo, pela personagem
Zelmire, menina de 15 anos que parte do “harém”, capturada dos amigos, que é repreendida no nono dia em que se encontra presa, já que é surpreendida rogando a Deus). A crítica à moral, à religião e, até mesmo, a doutrinas filosóficas e políticas acentuam as marcas polifônicas, contidas no romance do Marquês de Sade. Definindo as vozes narrativas, Reuter (2002, p. 69) determina que essa “questão (de quem fala e como se fala) remete às relações entre narrador e a história que ele conta”. A seguir, Reuter resgata as considerações de Gérard Genette sobre o narrador heterodiegético e homodiegético. No primeiro caso, o narrador está “ausente da história que conta”; no segundo, o narrador está presente, isto é, como personagem da história que narra (2002, p. 70). Em Sade, teremos os dois tipos de narradores, pois, além
do heterodiegético, que contará grande parte da obra, teremos quatro personagens chamadas de “narradoras” – a Duclos, a Champville, a Martaine e a Desgranges – que são convidadas a ilustrar, a partir das suas vivências específicas, atos de libertinagem (ou paixões) que, por sua vez, deverão servir de inspiração para as ações dos amigos no decorrer dos quatro meses de retiro em que se encontram. Dessa maneira, elas serão narradoras homodiegéticas. Quanto à teoria, Reuter (2002, p. 70-71) argumenta que as duas formas – hetero e homodiegéticas – elucidam a configuração de duas tendências de organização da mensagem: uma demarcada pelo discurso e outra acentuada pela forma da narrativa, sendo que delimitamos, aqui, discurso e ideologias/narrativa e criação literário.
“AS VOZES LITERÁRIAS” D’OS 120 DIAS DE SODOMA, OU A ESCOLA DA LIBERTINAGEM Antes de iniciarmos as análises referentes às questões da polifonia nas vozes narrativas na obra de Sade, convém discorrer sobre determinados elementos estruturais d’Os 120 dias, conforme mencionado anteriormente. Comecemos, então, pelo enredo. Na edição com a qual trabalhamos (2006), antes da introdução do autor, há uma seção, incluída a posteriori, chamada “Inventário do abismo”, escrita por Eliane Robert Moraes, na qual, resumidamente em quatro páginas, ela sintetiza alguns aspectos que podem ser considerados difíceis para quem se debruça sobre a obra sadiana pela primeira vez. Vejamos um fragmento de suas considerações:
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Cento e vinte dias... Quatro meses de libertinagem, quatro classes de vícios. A cada dia, cinco modalidades, somando cento e cinquenta por mês. Para dar conta dessas cifras, uma comitiva formada por quarenta e seis pessoas, distribuídas em oito categorias distintas, das quais sete pertencem à classe dos súditos. Oito meninos, oito meninas e oito fodedores. Quatro criadas e seis cozinheiras. Quatro esposas. Quatro narradoras. Por fim, na classe dos senhores, os quatro libertinos que sempre merecem designação individualizada: Curval, Durcet, Blangis e o Bispo. (MORAES, 2006, p. 9).
Este fragmento, de certa maneira, explica de modo geral o que acontecerá n’Os 120 dias, pois, neste livro, relata-se a história de quatro senhores da alta sociedade parisiense que resolvem sequestrar e/ ou convocar um total de 42 pessoas entre alcoviteiras e adolescentes do sexo feminino e masculino. Estes são levados para um castelo quase inacessível, onde, durante quatro meses, cometem os mais distintos atos contra todos os subjugados ali presentes. As alcoviteiras, quatro no total, são chamadas de “narradoras” e, a partir de seus respectivos relatos que versam sobre variadas aventuras sexuais de determinadas etapas de suas vidas, desenvolvem-se as ações dentro do romance – as quais exercem a função de escalar, gradualmente, o “sexo comum” (ou paixões simples), até este último ser transfigurado em formas de esquartejamentos e outros tipos de assassinatos brutais, por exemplo. Dito isto, é importante mencionar a hierarquização das personagens do romance de Sade. Quadro explicativo: hierarquização das personagens.
Nota-se que os principais personagens são os “senhores”; em seguida, temos as “narradoras”, tão ou mais cruéis que os “amigos”; logo após, em terceiro lugar na hierarquia, teremos os “oito fodedores”, dos quais quatro serão os principais: Hércules, Antínoo, Quebra-cu e Vara-ao-céu; os outros quatro serão referenciados como “secundários” e não terão nomes ou destaques no romance; em seguida, teremos as criadas responsáveis pelo castelo em que todos estão e, além disso, por vigiar os demais, que são os oito meninos e oito meninas, além das quatro “esposas”; por fim, “seis cozinheiras” e “sete súditos”, que, por seu turno, não serão descritos detalhadamente na narrativa. Já o espaço em que ocorre a maioria dos acontecimentos narrados na obra será principalmente o Château de Silling, propriedade de Durcet na Suíça, local de difícil acesso, com obstáculos que impedem a chegada de qualquer um que não faça parte desta comitiva. Depois de todos estarem em Silling, a única Revista De Letra em Letra—Vol. 6 n. 1, 2019
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ponte que dava acesso ao castelo é derrubada e, desta forma, enclausuraram-se neste “templo sagrado da libertinagem” para os quatro meses de luxúria, orgias e mortes representados, minuciosamente, na obra. O tempo enquanto elemento da narrativa é importante fator para a compreensão de muitas obras do Marquês de Sade, pois, geralmente em seus trabalhos, ele cria uma micro-sociedade com regras e leis próprias, em que as questões temporais devem ser pontualmente arquitetadas e respeitadas. No caso d’Os 120 dias, quem ousar a desobedecer às regras sofrerá severas punições, desde os senhores mais bem respeitados até os súditos mais simples. Assim, Os 120 dias têm uma seção intitulada “Regulamentos”, a qual trata justamente destes elementos pertinentes ao tempo, aos códigos de conduta, às infrações e, consequentemente, às punições e seus graus de aplicação. Sob tal perspectiva, vejamos uma passagem retirada desta seção do romance: Levantaremos todos os dias às dez da manhã. Nesta hora, os quatro fodedores que não estiveram de serviço durante a noite irão visitar os amigos, cada um levando consigo um garotinho; passarão sucessivamente de um aposento a outro. Agirão ao bel-prazer e segundo o desejo dos amigos, embora nas preliminares os meninos servirão apenas para o prazer dos olhos, pois está decidido e acertado que as oito mocinhas somente perderão o cabaço das conas no mês de dezembro, e o de seus cus, assim como o dos meninos, só serão sacrificados no decorrer de janeiro, e isto de modo a deixar a volúpia mais irritada pelo aumento de um desejo constantemente inflamado e nunca satisfeito, estado que deve necessariamente levar a um certo furor lúbrico que os amigos gostam de provocar como uma das situações mais deliciosas da lubricidade. (SADE, 2006, p. 54).
Desta forma, serão configuradas todas as horas dos dias em que os amigos estarão confinados no
castelo, e raro algumas exceções, essas normas serão seguidas ao pé da letra conforme especificação. Dito isto, para este artigo, acreditamos que o elemento final da narração será o mais importante na análise desta obra do Marquês, pois é através dele que são organizados todos os atos libidinosos nos quatro meses deste retiro peculiar e, por meio destes últimos, conseguiremos compreender melhor a relação entre polifonia, modernidade e a estruturação d’Os 120 dias de Sodoma. Assim sendo, convém que descrevamos as quatro personagens que ditarão aquilo que ocorrerá no castelo de acordo com suas próprias experiências de vida, são elas em ordem de atuação na narrativa: Duclos: “tem quarenta e oito anos, beleza bem conservada, muito frescor, e a bunda mais bela que se possa ter. Tem cabelos escuros, e é cheia e carnuda”. (Sade, 2006, p. 65). Duclos é a primeira narradora que constituirá as “150 paixões simples”. Já sobre a narradora das “150 paixões de segunda classe”, Champville, diz o sujeito da enunciação: “cinquenta anos, é magra, bem-feita e tem olhos lúbricos; é tríbade, tudo nela a denuncia. Trabalha como alcoviteira. Já foi loira, tem olhos lindos, o clitóris longo e sensível, a bunda gasta pelo serviço e no entanto ainda virgem” (op.cit). Já sobre a narradora das “150 paixões criminosas”, Martaine, o relator dos fatos explica-nos: A Martaine, cinquenta e dois anos, é cafetina, é gorda uma matrona cheia de saúde e frescor; lacrada, desconhece outro prazer que o de Sodoma, para o qual parece ter sido especialmente criada, pois, apesar da idade, tem a bunda mais bela possível: é tão grande e acostumada às introduções que aguenta os mais grossos instrumentos sem pestanejar. Ainda conserva traços bonitos, embora comecem a fenecer. (SADE, 2006, p. 65).
E, finalmente, sobre a quarta e última narradora, das “150 paixões assassinas”, Desgranges, o
sujeito da enunciação comenta: Revista De Letra em Letra—Vol. 6 n. 1, 2019
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A Desgranges, cinquenta e seis anos, é a maior celerada que jamais existiu. Alta, magra, pálida, já teve cabelos castanhos escuros; é a imagem do crime em pessoa. Sua bunda murcha com seu imenso orifício lembra papel furta-cor. Ela tem uma mama, três dedos e seis dentes a menos: fructus belli. Não existe um único crime que não tenha praticado ou mandado executar. Conversa agradavelmente e possui espírito; atualmente, é uma das alcoviteiras favoritas da alta sociedade. (SADE, 2006, p. 65-66).
Cada descrição destas personagens singulares exemplifica os ciclos em que cada narradora está inserida dentro da obra, fornecendo-nos uma ideia do que poderemos encontrar em capítulo; perpassando as práticas pornográficas da mais simples às mais complexas; desvelando, desta maneira, o grau de
violência exposta em cada ciclo de narrativas distintas. Aqui, a polifonia aparece com seu esplendor, em meio a um intercruzamento de vozes, cujo coral destaca a crítica contra a moral, a ética e os dogmas de uma sociedade considerada iluminista e racionalista; religiosa e cristã. Expostas as questões elementares da narrativa sadiana, analisemos agora como se acentua a relação polifônica n’Os 120 dias de Sodoma, conforme a teoria de Bakhtin explicitada na primeira seção deste trabalho. Para tanto, retomemos o episódio de Zelamire citado de modo superficial anteriormente, no qual ela é flagrada durante a inspeção da manhã rezando a Deus. Na inspeção do café da manhã, sua aia acusou-a de ter sido surpreendida, na véspera à noite, rezando a Deus antes de ir deitar. Trouxeram-na, perguntaram-lhe o assunto de suas rezas. Ela começou por se recusar a falar, mas em seguida, vendo-se ameaçada, confessou chorando que rogava a Deus que a livrasse dos perigos em que se encontrava e, sobretudo, antes que perdesse a virgindade. O Duque, então, declarou que ela merecia a morte, e mandou que lessem o artigo expresso dos regulamentos sobre este quesito. (SADE, 2006, p. 145).
Isto ocorre no nono dia em que eles estão no castelo: a menina, percebendo o perigo no qual se encontra, acaba por expressar sua fé, mesmo tendo o artigo ao qual se refere o Duque que, terminantemente, proíbe qualquer forma de manifestação religiosa, com penalidade de morte a quem quer que seja surpreendido realizando este ato. Assim, como os amigos não queriam perder uma vítima cedo demais, vejamos o motivo por que eles resolveram penalizar a jovem Zelmire sem a condenação imediata à morte: Mas o Duque, lembrando-lhes os compromissos invioláveis que tinham assumido, contentou-se em condená-la, o que foi... aceito por seus compares, a uma violenta punição no sábado seguinte; por enquanto, viria de joelhos chupar quinze minutos o pau de cada um dos amigos com sua boca, sendo advertida que, em caso de recidiva, ela perderia decididamente a vida e seria julgada com todo o rigor das leis. (SADE, 2006, p. 145-146).
Esta passagem não será a única que tratará da polêmica dicotomia libertinagem versus religião. Vejamos outro fragmento em que, o Presidente, tendo por companhia sua filha Adélaïde, ao procurá-la, não a encontra e forma-se um grande tumulto no castelo, em virtude da audácia da jovem deixar seu posto. O primeiro movimento foi o de passar ao aposento das moças; inspecionaram todas as camas, e acabaram encontrando a interessante Adélaïde, em roupas de baixo, sentada perto de Sophie. Essas duas moças encantadoras, unidas por um caráter de ternura igual, uma piedade, sentimentos de virtude, de candura e de amenidade perfeitamente iguais, tinham se afeiçoado uma pela outra com a mais bela ternura e consolavam-se mutuamente da sorte pavorosa que as afligia. (SADE, 2006, p. 172).
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Este episódio se passou no décimo terceiro dia e explica-nos como resultado como ambas as meninas tiveram seus nomes inscritos no livro das punições do sábado seguinte, já que, conforme as regras, todo sábado, na parte da manhã, há um “casamento simbólico” entre os jovens que constituem o harém dos meninos, e à noite, os libertinos tratam de punir todos os infratores da semana de acordo com as forças e a idade do delinquente. Esta, no entanto, não será a única ocorrência desse gênero. Há, em Os 120 dias, várias passagens nas quais as punições são contadas por narradoras singulares, de modo a chocar o leitor da obra que, até hoje, é considerada revolucionária. Tais exemplos ilustram, de certo modo, o que Bakhtin teorizou sobre a polifonia nos romances, uma vez que as narradoras, comentando suas experiências de vida e anunciando “punições exemplares”, deixam suas vozes ecoarem no decorrer da obra, de modo a formar um tipo de “coral da libertinagem”. Temos, além das passagens polêmicas já mencionadas, de um lado, os senhores demasiados devassos e extremistas contrários a qualquer ato ou crença religiosa, e, de outro, jovens fiéis como Adélaïde e Zelmire. Assim, o confronto ideológico discursivo se instaura entre a fé e a descrença, a razão e a loucura, a moral e perversão. Por exemplo, destaca-se Adélaïde, que, mesmo sofrendo as mais severas punições, não deixa de lado sua visão de mundo e se impõe, não de modo explícito ou por meio da força, pois sabemos que não lograria sensibilizar os amigos, mas por meio de subterfúgios planejados de modo que continue com suas orações e não perca sua esperança em seu Deus. Contudo, a narradora impõe à força as contradições da libertinagem, fazendo com que Adélaïde se transforme ou acate o ideal sádico de seus senhores. Estes embates constituintes de visões de mundo particulares e, neste caso, contrárias, perpassam todo o romance e, entre outras coisas, trazem um certo caráter de modernidade à narrativa – a qual será a temática sobre a qual nos debruçaremos na próxima seção deste trabalho. Antes de iniciarmos as análises sobre a tema da modernidade, há outra questão que devemos lançar à luz. Trata-se da caracterização das vozes narrativas propriamente ditas d’Os 120 dias de Sodoma. Portanto, os narradores heterodiegético e homodiegético intercruzam vozes e pensamentos, a fim de acentuar o embate “ideológico-discursivo-polifônico”. Comecemos, desta maneira, com algumas distinções entre os personagens que narram suas histórias em primeira pessoa. Como já citado, Os 120 dias
são configurados em quatro círculos específicos, que serão ilustrados pelos relatos pessoais das quatro narradoras, o que diferencia estes círculos é a intensidade das paixões que cada uma vai representar ou encenar. O primeiro círculo, ilustrado pela narração da Duclos, vai iniciar com relatos sobre padres pedófilos que abusaram dela e da sua irmã em troca de alguns vinténs, desde que elas tinham cinco anos de idade. Duclos vai gradativamente intensificando seus relatos. Neles, poderemos encontrar peculiaridades sexuais, como, por exemplo, golden shower2 – que será o fetiche do primeiro padre com o qual Duclos iniciará sua vida “pelo universo da libertinagem”, além de atos que, essencialmente, necessitam algum tipo de sofrimento a alguma pessoa, seja ao próprio libertino, seja de sua parceira, seja, enfim, de qualquer outro indivíduo que esteja ou não engajado no ato sexual. Revista De Letra em Letra—Vol. 6 n. 1, 2019
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Já os relatos de Champville são muito mais violentos que os da Duclos, por tratar do mês em que os libertinos irão deflorar as conas das meninas. Assim, suas histórias já iniciarão com testemunhos de estupros em meninas muito novas. A própria Champville é estuprada aos cinco anos de idade, e atos carregados de profanação, que, em certo momento da narrativa, deixarão de ser o ponto principal e passarão a ser apenas acessórios para o intuito de sua narração que é o de ilustrar orgias, sem abstrair da intensificação dos atos violentos e fetichistas de anteriormente. Por seu turno, a Martaine, narradora das “Cento e cinquenta paixões de terceira classe, ou criminosas”, caberão os relatos sobre as paixões de Sodoma, portanto dos prazeres anais, já que as meninas e alguns dos meninos serão deflorados por este lado corporal neste mês. Além disso, como o próprio nome sugere, acaba por discorrer sobre atos mais extremos como torturas e assassinatos. Vê-se que a obra de Sade não só trata da dessacralização de ritos religiosos ou crenças, mas visa constituir, paulatinamente, a representação de uma micro-sociedade particular. Nas “Cento e cinquenta paixões assassinas ou de quarta classe”, ilustradas pela narração de Desgranges, haverá apenas assassinatos. Estes serão compostos por vários tipos de fetiches, levados ao extremo: cenas de esquartejamentos e de torturas estarão presentes desde o primeiro dia de seus relatos, sendo, por vezes, ironicamente sublinhadas. Estas distinções de caráter, de vivências, de temas, organizam as diferentes vozes narrativas homodiegéticas presentes na obra sadiana, e são antagônicas ao narrador heterodiegético que apenas relata a narrativa, porém, mesmo nos rastros ideológicos dele, é possível encontrar aspectos modernos, no momento, por exemplo, em que o sujeito da enunciação interrompe a narração para conversar com o leitor sobre o que está acontecendo naquele ponto da narrativa. A MODERNIDADE PLASMADA NAS VOZES NARRATIVAS D’OS 120 DIAS Sabe-se que Os 120 dias de Sodoma foi composto em um pergaminho, frente e verso, que, após negociações massivas, hoje está exposto na França, porque o mesmo manuscrito se encontrava em Genebra. Por causa desta forma de escrita, Sade não pôde terminar sua obra, uma vez que a tira acabou e houve um incêndio na Bastilha. Talvez seja por conta disso que, a partir do segundo ciclo da narrativa, teremos apenas o “plano” das narrações e os diários “escandalosos” dos três meses seguintes no castelo. No que diz respeito à teoria utilizada por nós, no capítulo intitulado “Reflexões sobre o romance moderno” (1976), ao refletir sobre a história do gênero romanesco, Rosenfeld defende a hipótese de que, em cada fase histórica, existe certo zeitgeist: “um espírito unificador que se comunica a todas as manifestações de culturas em contato, naturalmente com variações nacionais”. (1974, p. 75). Se observarmos esta hipótese e pensarmos na temporalidade em que Os 120 dias foi escrito, veremos que se trata de um período de arcadismo na França, em que os ideais revolucionários configuram muito do que é produzido; época, também, em que se rompe com ideais barrocos e tentam aproximar a arte da natureza. De certo modo, alguns aspectos do referido período, invariavelmente, estão presentes na obra do Marquês, porém, por mais que esteticamente a forma da narrativa tenha a ver com “o espírito do tempo”, os temas 1
Fetiche por urinar
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tratados nesta obra são tão polêmicos que não seriam aceitos em seu contexto de produção, e, até hoje, muitos ainda a excluem do acervo de literaturas “canônicas”. Nesse sentido, acreditamos que Os 120 dias de Sodoma configura-se em uma crítica, talvez, contra os ideais iluministas. Trata-se de uma obra que está muito além de seu tempo. E que, talvez, ainda não foi completamente compreendida. Por exemplo, não seria a obra de Sade um modelo literário do desaparecimento da posição central “divina”, perante a qual se debruçavam muitos os indivíduos? A violência e a aproximação do homem aos seus instintos mais naturais, ou animalescos se preferir, são a base temática de todo o romance que, aqui, nos propusemos a apreciar, de modo que (de acordo com nosso ponto de vista) esta narrativa carrega em si traços de uma desestruturação temporal e crítica que se opõe à concepção clássica iluminista. E, mesmo tendo sido escrita no fim do século XVIII, vários aspectos que a inserem no “catálogo” de produções modernas da literatura mundial são, nela, contundentemente destacados. Em uma aproximação com Lucien Goldmann, momento em que este desenvolve a “Introdução aos problemas de uma sociologia do romance”, uma seção de A sociologia do romance (1990), destaca-se que o herói, neste caso os quatro senhores da narrativa do Marquês, é um louco ou criminoso; é um: personagem problemático cuja busca degrada e, por isso, inautêntica de valores autênticos num mundo de conformismo e convenção, constitui o conteúdo desse novo gênero literário que os escritores criaram na sociedade individualista e a que chamaram “romance”. (GOLDMANN, 1990, p. 9).
Deste modo, situando a obra de Sade entre a primeira e segunda da fase da modernidade teorizada por Marshall Berman (1987), percebemos estas contradições fortemente arraigadas ao texto do Marquês, que representará, de certo modo, reflexos do mundo futuro. Aqui, como sugere teoricamente Donaldo Schüler: A multiplicidade estilhaça as unidades do tempo... Entre os estilhaços ergue-se o romance com a tarefa de nomear o mundo instável. Os gêneros clássicos, assentados sobre o passado, repetiam o ritual da origem. O romance, sem tradição e sem compromissos, volta-se aos contínuos desafios do futuro. Sem estilo, está exposto a todos os estilos. (SCHÜLER, 1989, p. 76).
Assim, adaptando as considerações de Schüler, podemos dizer que a obra do Marquês, carregada de polêmicas e controvérsias durante todos os períodos históricos a que foi apresentada, traz tanto em sua estrutura (nos elementos internos) quanto em sua relação com o mundo (nos elementos externos) reflexos de uma modernidade artística e social que expõe o homem tal como é: sem ingenuidades, sem esperança, envolto a um mundo sem luz. Neste romance, polifonia e modernidade traçam o perfil estrutural de uma obra que, além de desfigurar outros gêneros, a fim de se firmar como um tipo de romance sui generis, desestabiliza, entre outras características, a crença religiosa, filosófica e política de toda uma “era das luzes”.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho, buscamos, primeiramente, compreender a teoria da polifonia e o conceito de vozes narrativas, apoiando-nos, principalmente, em Bakhtin e Reuter, para então chegarmos ao segundo momento em que apreciamos a obra do Marquês de Sade em seus elementos internos, sobretudo no que concerne à narração e suas respectivas ramificações teóricas, pondo em evidência determinadas contradições do universo moderno. Aqui, finalmente, compreendemos, em parte, a analogia crítica entre polifonia e modernidade plasmada n’Os 120 dias. Em outras palavras, a partir do discurso das narradoras Duclos, Champville, Martaine, Desgranges, bem como por meio de outras vozes que se intercruzam em Os 120 dias de Sodoma, compreendemos que alguns reflexos da polifonia estão presentes nessa produção literária e, assim, representam, com contundência, as apontadas marcas da modernidade. Enfim, entendemos que as críticas presentes na obra de Sade elucidam os processos pelos quais a sociedade francesa e, por conseguinte, o mundo ocidental passou antes e depois da revolução de 1789, de modo que possamos assimilar aspectos da “modernité”, por intermédio do senso comum, os quais imaginaríamos erroneamente como sendo representantes do ápice da civilização, mas que, em Os 120 dias de Sodoma, são representados, na verdade, pelo impasse entre as luzes versus sombras; a fé versus a descrença; a razão versus a loucura; a
moral versus a devassidão.
REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1981. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Dialogismo, polifonia e enunciação. In___: Dialogismo, polifonia, intertextualidade: Em torno de Bakhtin Mikhail. Diana Pessoa de Barros e José Luiz Fiorin (orgs.). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. BERMAN. Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Trad. Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Schwartz, 1987. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa / Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 3. ed. Curitiba: Positivo, 2004. GOLDMANN, Lucien. A sociologia do romance. Rio de janeiro: Editora Paz e Terra S/A, 1990. LOPES, Edward. Discurso literário e dialogismo em Bakhtin. In___: Dialogismo, polifonia, intertextualidade: Em torno de Bakhtin Mikhail. Diana Pessoa de Barros e José Luiz Fiorin (orgs.). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. MORAES, Eliane Robert. “Inventário do Abismo”. In: SADE, Marquês de. Os 120 dias de Sodoma, ou a Escola da Libertinagem. Tradução de Alain François. São Paulo: Iluminuras, 2006, pp. 9-12. PIRES, Vera Lúcia & TAMANINI-ADAMES, Fátima Andréia. “Desenvolvimento do conceito bakhtiniano de polifonia”, Estudos semióticos, vol. 6. n. 2. pp. 66-76, nov. 2010. Revista De Letra em Letra—Vol. 6 n. 1, 2019
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REUTER, Yves. A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Tradução: Mario Pontes. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. ROMAN, Artur Roberto. “O conceito de polifonia em Bakhtin – o trajeto polifônico de uma metáfora”, Letras, Curitiba, n°. 41-42, pp. 195-205.1992-93, Editora da UFPR. ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In___: Texto/contexto. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 1976. (pp. 75-98). SADE, Marquês de. Os 120 dias de Sodoma, ou a Escola da Libertinagem. Tradução de Alain François. São Paulo: Iluminuras, 2006. SCHOLES, Robert; KELLOGG, Robert. A Natureza da Narrativa. Tradução: Gert Meyer. São Paulo: Mcgraw-Hill do Brasil, 1977. SCHÜLER, Donaldo. Teoria do romance. São Paulo: Editora Ática S.A., 1989.
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NOS FIOS DO DIZER: ENTRE O PROTESTO, O POLÍTICO E OS DIFERENTES ESPAÇOS DE ENUNCIAÇÃO DANS LES FILS DU DIRE: ENTRE LE PRETESTATION, LE POLITIQUE ET LES DIFFÉRENTES ESPACES D’ENONCIATION Emanuel Angelo Nascimento Universidade Estadual de Campinas emanuellangelo@yahoo.com.br
RESUMO Ao se assistir a uma aula na Universidade, a um debate político na televisão (quando o há), ou quando se depara com dizeres, cores formatos de/em faixas e cartazes em uma passeata ou ato de protesto, os indivíduos não apenas se veem diante da tarefa de leitura, mas se inscrevem em gestos que demanda interpretação, em uma relação afetada por sentidos sociais, políticos e históricos atravessados pela ideologia nas fronteiras entre diferentes formações discursivas e diferentes modos de produção de enunciados em jogo. Ao falar, ler, escrever, escutar, o sujeito é demandado por diferentes modos de constituição dos sentidos na relação com a língua e com os processos de enunciação. Este funcionamento da linguagem é o que movimenta a proposta intelectual em que se situa a Análise de Discurso e a Teoria da Semântica do Acontecimento com as quais aqui buscamos dialogar para o estudo da constituição, da formulação e da circulação do enunciado #elenão. Palavras-chave: enunciação; semântica do acontecimento; discurso; #elenão . RÉSUMÉ Lorsqu'ils assistent à une conférence à l'université, à un débat politique à la télévision (lorsqu'il y en a un), ou lorsqu'ils sont confrontés à des dictons, des formats de couleurs de banderoles et de pancartes lors d'une marche ou d'un acte de protestation, les individus ne se voient pas face à la tâche de la lecture, mais ils sont inscrits dans des gestes qui exigent une interprétation, dans une relation marquée par les significations sociales, politiques et historiques croisées par l’idéologie aux confins de différentes formations discursives et de différents modes de production d’énoncés en jeu. En parlant, en lisant, en écrivant, en écoutant, le sujet cherche différentes manières de constituer les sens en relation avec le langage et les processus d'énonciation. C’est ce fonctionnement du langage qui motive la proposition intellectuelle dans laquelle se situent l’analyse du discours et la théorie sémantique de la théorie du devenir, avec laquelle nous cherchons à dialoguer pour l’étude de la constitution, de la formulation et de la circulation de l’énoncé # elenão.
Mots-clé: énonciation; sémantique des événements; discours; #elenão .
INTRODUÇÃO A circulação dos sentidos a partir de sua constituição e formulação se relaciona intrinsecamente com diferentes modos de dizer, considerando os diversos espaços de enunciação. Ao falar, ler, escrever, escutar, o sujeito é demando por diferentes modos de constituição dos sentidos na relação com a língua,
com a história, com o simbólico e com o político. O político este que, segundo Guimarães (2002): Revista De Letra em Letra—Vol. 6 n. 1, 2019
[...] se constitui pela contradição entre a normatividade das instituições sociais que organizam desigualmente o real e a afirmação de pertencimento dos não incluídos. O político é a afirmação da igualdade, do pertencimento do povo ao povo, em conflito com a divisão desigual do real, para dividi-lo, para refazê-lo incessantemente em nome do pertencimento de todos no todos. (op.cit., p. 17).
Considerando esta reflexão de Eduardo Guimarães e aquelas feitas pela professora Mónica Graciela Zoppi Fontana, no primeiro semestre de 2019, junto à disciplina A Semântica de Enunciação realizada pelo programa de pós-graduação em Linguística, este artigo pretende mostrar como se relacionam as diferentes materialidades significantes que atravessam o enunciado “#EleNão” e que relação se estabelece com diferentes modos de enunciação. Nesse sentido, a imbricação1 entre diferentes materialidades significantes2 (cartazes, estampas de camisetas com dizeres, imagens de perfil e postagens nas redes sociais) e o acontecimento enunciativo de “#EleNão” a partir dos protestos contra a eleição de Bolsonaro, durante a campanha política de 2018, no Brasil, possibilitam, por exemplo, discutir e analisar a circulação desse enunciado na relação com aquilo que Guimarães (2002) define como sendo atravessados pela língua e pelos falantes (sujeitos divididos) em seus direitos ao dizer e tomados por diferentes modos de dizer. Nesse entendimento, é interessante pensar pelo viés da semântica do acontecimento de Eduardo Guimarães, que considera o enunciado como materialidade histórica do real. Assim, de acordo com o
autor, “enuncia-se enquanto ser afetado pelo simbólico e num mundo vivido através do simbólico” (ibidem, p. 11). A ideia é poder refletir em alguma medida sobre, por exemplo, o (entre)lugar das posições-sujeito (eleitores, manifestantes) a partir da ideologia política contra a qual se luta : a luta contra a direita extremista, contra o conservadorismo que prega a violência. Assim, o enunciado “#EleNão” é tomado enquanto um enunciado inscrito nessa injunção ao dizer e nesse ‘direito’ de dizer frente a uma causa e a uma luta que colocam em jogo sentidos tais como o de repulsa, reprovação, resistência, entre outros, produzidos nos fios do dizer a partir dos espaços de protesto. Portanto, nas relações de protesto, há a questão sempre presente da alteridade (o outro, no caso,
contra o qual se protesta). O então candidato em 2018 à presidência da República, Jair Messias Bolsonaro, membro de extrema-direita do Partido Social Liberal (PSL), se tornou (desde que era deputado parlamentar) uma figura muito conhecida por suas declarações inflamatórias. Ele fez, publicamente, comentários misóginos, homofóbicos e racistas, apoiando a tortura e tendo, entre suas propostas políticas, a de restabelecer a pena de morte.
1
Tomamos aqui a noção de imbrição formulada por Suzy Lagazzi, professora do departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP. 2
Suzy Lagazzi, contribuindo de forma importante para os estudos em Análise do Discurso, na perspectiva do materialismo-histórico, formula a noção materialidade significante, a partir de seu texto O recorte significante na memória, de 2009.
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Mas há uma oposição vibrante e de resistência à sua popularidade. Movimentos surgiram para garantir que ele nunca entrasse em determinados espaços, como o do escritório “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro!!!”. Restrita àqueles que se identificam como mulheres, embora a solidariedade dos homens seja bem-vinda, esta organização, (que possui um grupo secreto fechado no Facebook como sua sede) tem mais de 3,86 milhões de membros. O grupo está alinhado com o movimento # elenão, que convoca os eleitores brasileiros a votarem nas próximas eleições presidenciais baseadas na moral e não na política. O movimento tem sido criticado como sendo nada mais que uma hashtag, ou uma "guerra de memes". No entanto, # elenão, junto com os #elenunca e #elejamais relacionados estão ativos em todas as redes sociais, visíveis nas ruas, e ouvidos frequentemente como um canto, por pessoas declarando sua oposição a Bolsonaro. Entre o grupo, há uma firme convicção de que o movimento ajudou diretamente a impedir uma vitória definitiva de Bolsonaro no primeiro turno das eleições presidenciais. Tudo isso, mesmo que o movimento # elenão e seus seguidores tenham sofrido uma onda de violência de partidários pró-Bolsonaro. Ao observar, desse modo, o enunciado “#EleNão”, pode-se lançar olhar sobre (i) os sentidos que estão aí em funcionamento, (ii) como estão estruturados e (iii) que estruturas são essas. Desse modo, considerando a questão da resistência inscrita no embate com a dominação exercida por uma determina forma de conservadorismo, extremismo e machismo, observa-se como o enunciado aparece em cena, demandando diferentes sentidos tomados pela injunção ao dizer e ao ‘direito’ de dizer.
O APARECIMENTO DE UM ENUNCIADO Oswald Ducrot construiu procedimentos de formalização da semântica das línguas naturais, considerando
a
enunciação
como
o
acontecimento
“constituído
pelo
aparecimento
do
enunciado” (DUCROT, 1984, p. 168), descentralizando o sujeito. A partir do sujeito desfragmentado, Ducrot desconstrói a ideia de unidade do sujeito enunciador e, depois passa por mudanças em seu pensamento,
passando
a
considerar
a
enunciação como
o
acontecimento
constituído
pelo
aparecimento do enunciado, descentralizando o sujeito, ou seja, para o autor o sujeito não é a fonte do sentido. Nesse sentido, a enunciação é o evento histórico do aparecimento do enunciado e, a partir dessa definição, Guimarães parte para elaborar sua proposta de teoria da enunciação no Brasil. Sobre essa proposta de Guimarães acerca da enunciação, pode-se afirmar que a enunciação não diz respeito apenas à situação de fala. A enunciação não é homogênea, é uma dispersão que a relação com o interdiscurso, as outras vozes, produz. E mais: segundo Guimarães (2002) o acontecimento enunciativo temporaliza. E, nessa relação, “o sujeito é tomado na temporalidade do acontecimento” (op. cit., p. 12). Nesse sentido, a hashtag #EleNão tem seu aparecimento enunciativo em 12 de setembro de 2018 pelo "Movimento feminista em repúdio a Bolsonaro" e apenas em 12 dias contabilizou “mais de 1,6
milhão de menções contrárias e a favor do candidato à Presidência da República pelo PSL, Jair Bolsonaro, Revista De Letra em Letra—Vol. 6 n. 1, 2019
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no Twitter”. Passou a ser usada largamente nas redes sociais pelos usuários. No fim de semana do dia 16, as citações às hashtags da campanha tiveram seu maior pico no Twitter, logo após o ataque ao grupo "Mulheres Contra Bolsonaro". Aderiram a esse movimento um grande número de celebridades, nacionais e internacionais, tais como Sônia Braga e Madonna. Esta última, por exemplo, postou em sua conta no Instagram, onde é seguida por mais de 12,1 milhões de seguidores, uma imagem na qual aparece com a boca vedada por uma fita onde se lê a palavra freedom (liberdade, em inglês). Na imagem ainda aparecem outras formulações cuja topicalização “ele não” aparece, tais como em “ele não vai nos desvalorizar”, “ele não vai nos oprimir”, “ele não vai nos calar”. Há ainda outra hashtag: #EndFascim, em inglês, acabem com o fascismo.
Fig. 1. #EleNão.
Fonte: Twitter da artista Madonna, set/2018 O enunciado #EleNão aparece, então, acompanhado por diferentes predicações associadas à causa das mulheres em sociedade, a saber: a luta contra a sua desvalorização, contra a opressão machista e contra diferentes formas historicamente marcadas de calar/silenciar as mulheres. As cores assumem igualmente um papel importante na imagem em que o enunciado #EleNão aparece junto ao rosto de Madonna. O vermelho na palavra “não” se intercruza com sinais representando marcas de violência em um de seus olhos. Revista De Letra em Letra—Vol. 6 n. 1, 2019
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Não apenas nessa imagem postada por Madonna, mas também naquelas que circulam em cartazes de ruas e inscritas também nos corpos de manifestantes, o enunciado #EleNão circulou tanto no espaço digital quanto fora do digital interpelando dezenas de milhares de pessoas. As posições políticoideológicas assumidas por Jair Bolsonaro, por exemplo, com referências machistas e declarações de desrespeito a direitos individuais e a instituições democráticas, foram fortemente contestadas nestes protestos, que tiveram no enunciado em questão uma espécie de slogan ou bandeira designando estes movimentos contra Bolsonaro. O #EleNão chegou a ser comparado aos movimentos sociais de junho de 2013. Foram eles que primeiro potencializaram o uso da internet e de redes sociais para grandes mobilizações políticas.
Fig. 2. 60 mil em Curitiba contra Bolsonaro.
Fonte: Estadão set/2018
Mulheres foram responsáveis por organizar o movimento virtual, que passou a influenciar a amplitude do movimento real, e culminou nas passeatas organizadas às vésperas das Eleições de 2018, em diferentes cidades no Brasil e no exterior, sinalizando para a compreensão dos diferentes espaços de enunciação. O #EleNão é a resposta das mulheres à encruzilhada das lutas feministas e LGBTs, por exemplo, que parecem ultrapassar a questão da identidade de gênero. Elas não somente se reuniram para protestar contra um inimigo comum, que lhes nega individualidade e existência plena. A identidade de gênero foi um catalisador contra as ideias que o candidato representa: autoritarismo e agressão a valores democráticos e direitos individuais. Elas não se manifestaram por um projeto político específico. Elas protestaram contra o autoritarismo, em defesa do liberalismo político.
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Fig. 3. Milhares de manifestantes em São Paulo protestando contra Bolsonaro
Fonte: Nacho Doce / Reuters
Estas imagens, que circulam em diferentes páginas da internet, colocam em destaque diferentes espaços em que circulam o enunciado #EleNão, sejam em cartazes ou bandeiras, retomado sob diferentes formas e materialidades. O foco na imagem, portanto, dos cartazes com a mensagem “EleNão” (em referência a Bolsonaro) desliza metonimicamente na constituição do intradiscurso tomado pelo interdiscurso, mostrando, desse modo, que, pela memória, algo fala antes e em outro lugar, independentemente. O uso e a ausência da hashtag também assume um papel de fundamental importância fazendo referência ao espaço de enunciação própria do digital, circulando fora do digital. Os cartazes e faixas (como objeto em foco) se inscrevem em um processo metonímico imbricado entre diferentes
materialidades em composição: o rosto, os braços e as mãos, as partes do corpo, os símbolos. Assim, as formulações visuais, por exemplo, do corpo “se desdobram em diferentes imagens do sujeito e nos mostram a importância da remissão do intradiscurso ao interdiscurso para compreender a textualização das imagens” (LAGAZZI, 2014, p. 111). Em termos de elipse, temos um efeito de apagamento do sujeito ao qual o pronome “ele se refere”. No entanto, tomado pelo imbricamento entre diferentes materialidades, muitas vezes há o furo e a falha, fazendo escapar por outros elementos (imagem do rosto de Bolsonaro) a referência que se faz pelo pronome “ele”.
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Fig. 4. Protesto EleNão nas ruas do Rio de Janeiro.
Fonte: Estadão, 2018 Aqui diferentemente, o pronome “ele” é apagado, dando lugar à imagem de Bolsonaro. Assim, os diferentes modos de circulação de “EleNão” em sua formulação visual se dá pelo em(tre)laçamento a diferentes materialidades que nos possibilitam observar os modos de formulação do sentidos estruturados por essa relação com a composição material (LAGAZZI, 2014).
Fig. 5. #EleNão pintado no corpo de uma manifestante em Brasília.
Fonte: Arthur S. Costa Shutterstock – out/2018 Aqui não apenas entra em funcionamento a materialidade significante do corpo enquanto suporte enunciativo e discurso, mas também a questão da enunciação tomada pelo corpo e no corpo. Tal como afirma Guimarães (2002, p. 29), “esta distribuição de lugares se constitui pelo acontecimento por sua própria temporalização”. Revista De Letra em Letra—Vol. 6 n. 1, 2019
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Fig. 6. “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro” em Curitiba.
Fonte: Estadão/2018
Assim, nos rituais de alguns dos protestos (por exemplo, feministas – com os quais muitos manifestantes se identificam em suas posições-sujeito e em seus lugares sociais), o enunciado “#EleNão” surge em diferentes espaços e em determinadas “cenas prototípicas” (LAGAZZI, 2015) cujos gestos de empunhar cartazes e faixas retomam uma memória ampla de diversas lutas sociais atravessadas pela ideologia, pelo político e pela urbanidade.
Fig. 7. Punhos cerrados de manifestantes em marcha no Rio de Janeiro.
Fonte: Alexandre S. R. Horta Shutterstock, set/2018.
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Nas imagens em análise, a inscrição de “EleNão” ocupa diferentes espaços atualizando e retomando essa memória enquanto metáfora desse rito de protestar, produzindo um efeito de retorno nos processos de luta pela resistência contra a dominação masculina, luta essa que se dá pelas disputas dos sentidos pelos diferentes espaços enunciativos. Mais do que isso: tal como Zoppi-Fontana (1999) reflete, o lugar de enunciação engendra a “divisão social do direito de enunciar e a eficácia dessa divisão e da linguagem em termos da produção de efeitos de legitimidade, verdade, credibilidade, autoria, circulação, identificação, na sociedade” (ZOPPI-FONTANA, 1999, p. 16). Esse procedimento fundamental e basilar do dispositivo teórico-analítico enunciativo aqui mobilizado nos permite, desse modo, colocar o sentido em relação com o real da língua. Isto nos permite compreender os diferentes espaços e modos de produção, formulação circulação desse enunciado pelo processo de elipse de um agente cuja referência se deseja apagar, e nem sequer mencionar nas explicitudes do dizer.
REFERÊNCIAS DUCROT, Oswald. (1984). Esboço de uma teoria polifônica da enunciação. Em O Dizer e o Dito. Campinas: Pontes, 1987. GUIMARÃES. E. Semântica do acontecimento. Campinas: Pontes, 2002. LAGAZZI, S. O recorte significante na memória. Apresentação no III SEAD, UFRGS, Porto Alegre, 2007. In: F. Indursky, M. C. L. Ferreira & S. Mittmann (orgs.). O discurso na contemporaneidade. Materialidades e Fronteiras. São Carlos: Claraluz, 2009, p.67-78. ____. Metaforizações metonímicas do social. In: ORLANDI, E. (org.) Linguagem, sociedade, políticas. Campinas: RG Editores, p. 105-112, 2014. _____. Paráfrase da imagem e cenas prototípicas: em torno da memória do equívoco. In: Giovanna Flores; Nádia Neckel; Solange Gallo (orgs.) Análise de discurso em rede: cultura e mídia. Campinas: Pontes Editores, p. 177-189, 2015.
ZOPPI-FONTANA, M. G. Lugares de enunciação e discurso. Leitura – Análise do discurso, n. 23, p. 1524, 1999.
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