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Cultura & Cidadania
Cineclube TF: arte e protagonismo juvenil
Professora Lilia Melo e Kleidiane Sousa.
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O pintor e escultor espanhol Joan Miró, um dos grandes expoentes das artes do século XX, certa vez disse que “mais importante do que a obra de arte propriamente dita é o que ela vai gerar. A arte pode morrer; um quadro desaparecer. O que conta é a semente.” Foi pensando justamente nas sementes que a Arte pode fazer florescer nas mentes e corações dos jovens negros da periferia de Belém que em abril de 2018 nascia o projeto CineClube TF.
Com o objetivo de promover a capacitação de estudantes e jovens do bairro da Terra Firme por meio de oficinas temáticas em diferentes expressões artísticas e culturais (artes visuais, canto, teatro, poesia preta, dança e audiovisual) a iniciativa, que surgiu a partir da ideia da professora de Língua Portuguesa da rede pública estadual Lilia Melo, teve início como uma simples campanha nas redes sociais com o intuito de levar jovens da periferia para uma sessão de cinema. O filme em questão era o grande sucesso de bilheteria (e representatividade) “Pantera Negra” e o que deveria apenas uma tarde de diversão ganhou grande repercussão, obtendo forte apoio da sociedade, realizando o desejo de 400 jovens em 2 sessões. O movimento foi tão marcante, que virou um documentário criado pelos próprios estudantes e, posteriormente, premiado, transmutando-se em missão e oportunidade de uma vida melhor para toda a comunidade.
O projeto CineClube TF, que tem 4 anos de existência e integra uma iniciativa maior chamada “Juventude preta periférica: do extermínio ao protagonismo”, contabiliza atualmente pouco mais de 40 jovens participantes, com idades entre 10 e 25 anos. Levando conhecimentos técnicos e fazendo parcerias com grupos artísticos e culturais do bairro, a coordenadora Lilia Melo (eleita em 2018 “a melhor professora do Brasil”, ao receber o reconhecimento do XI Prêmio Professores do Brasil promovido pelo Ministério da Educação), ousou ir além e com sensibilidade, olhar crítico e socialmente responsável, enxergou nos jovens da Terra Firme muitos talentos escondidos capazes de levar a voz e a potência do protagonismo negro, jovem e periférico a todos os espaços. “Uma das grandes motivações desse projeto é justamente transformar as experiências de meninos e meninas de periferia em produtos audiovisuais que possam, não somente ser reconhecidos, mas valorizados, trazendo suas identidades afro, indígenas, ribeirinhas para o centro de histórias que antes eram contadas por pessoas que não vivem a realidade que eles vivem. Ou seja, a principal motivação dos jovens dentro do projeto é protagonizar a sua própria história”, explica a professora.
Kleidiane Sousa, 26, é um desses talentos. A jovem moradora da Terra Firme, que já participava de outros projetos dirigidos pela professora Lilia Melo, quando testemunhou o surgimento do CineClube TF, não hesitou em abraçar a nova oportunidade. Ela, que viu a porta aberta para a concretização de uma carreira promissora na área artística e cultural, hoje é produtora cultural e educadora popular atuante no projeto. Mesmo fazendo parte de uma iniciativa que auxilia outros jovens a se aproximar do mercado cultural, Kleidiane enxerga empecilhos na jornada até a formação profissional nesse setor. “Sou formada em outras áreas, mas pretendo seguir no projeto. Não vou abrir mão disso porque é, inclusive, a forma como eu me expresso, por meio da cultura popular. Nos meus planos, pretendo buscar mais qualificação profissional como produtora e, mesmo que não fosse assim, vejo que o impedimento maior ainda é esse: as oportunidades de qualificação profissional que a periferia não tem. Se tivéssemos mais oportunidades, iríamos muito além do que já fazemos,” comenta a jovem.
Atuante, hoje, com 7 grupos de trabalho distribuídos entre as diferentes expressões artísticas, o CineClube TF apresenta, como frutos da produção dos seus integrantes, saraus que passeiam pela diversidade da arte e chamam a atenção para a vivência da juventude da periferia. E o melhor: de maneira acessível para que toda a comunidade (dentro e fora da própria Terra Firme) compreenda seu papel social. Uma forma de despertar a criatividade, empoderar, fo-
mentar o protagonismo juvenil e quebrar o estigma do bairro, visto há décadas como um dos mais violentos da capital paraense. “Embora o CineClube TF seja um espaço de formação, de educação não-formal, todas as nossas produções são fruto de estudos, trabalho, pesquisa, de cursos. Então, os nossos saraus, nossos principais produtos, têm duas formatações: a primeira é sob a forma de uma intervenção urbana que é feita no meio da rua, um cinema com telão, que leva nossas narrativas por meio dos nossos produtos audiovisuais, contando, ainda, com as nossas intervenções poéticas com arte visual, intervenção com grafite etc. A gente ocupa, de fato, parte de uma “quebrada’’, no meio da rua, e faz essas intervenções. E nós temos também os saraus que promovem as rodas de convivência, que geralmente são realizadas em instituições de ensino, privadas ou públicas, que nos chamam para que possamos dialogar com os jovens a partir de uma demanda que a instituição tenha, com uma temática prévia. Essa temática é discutida entre os jovens que coordenam os grupos de trabalho e vai ser desenvolvida dentro das expressões artísticas. Por exemplo, se vamos falar sobre automutilação e do suicídio na adolescência, essa temática vai ser levada para a poesia preta, para o grafite, para o Teatro, para o canto, dentre outras. Então, a partir da reflexão do tema, serão gerados produtos dentro das especificidades de cada arte e estes serão apresentados nos saraus. O sarau é um produto maior que vai englobar essas produções a partir de uma temática maior”, explica a coordenadora.
Para integrar o projeto, basta apenas um único requisito: a vontade de participar. “O CineClube TF não cria, não inventa dons artísticos. Ele só potencializa aquilo que o menino tem. O garoto e a menina que entram no CineClube TF vão experimentar diferentes manifestações de arte e vão se encontrar em alguma delas. Ou, quando entram, já sinalizam alguma das expressões artísticas. Eu acredito que o que os atrai é, primeiramente, essa diversidade de produção artística e a possibilidade de você se encontrar em uma delas e também os próprios grupos de trabalho, que são constituídos por jovens. É jovem falando de jovem, com o jovem, para o jovem e eles se entendem entre si. Para participar do projeto, basta querer e nos sinalizar. Não existe seleção. Nosso contato é por meio das redes sociais e, quem quiser, basta nos contactar e começar a participar das reuniões, dos eventos, das atuações. É ação. A pessoa já vai chegar “fazendo”, enfatiza Lilia Melo.
Para que se mantenham ativos e alcancem mais pessoas, projetos como o CineClube TF precisam de suporte permanente. Usufruindo do apoio da própria comunidade do bairro e de tantas outras entidades, a iniciativa também conta com a Fundação de Amparo e de Desenvolvimento da Pesquisa (FADESP) como uma de suas parceiras. O CineClube TF é fruto de uma emenda parlamentar e coube à FADESP a responsabilidade de gerenciar os setores administrativo e financeiro do projeto. “A importância de ter uma parceria como a da FADESP é justamente poder estreitar diálogos em espaços essenciais para uma real mudança da sociedade. Essa contribuição é importante porque é mútua, pois assim como nós precisamos desenvolver uma consciência política e científica dentro do projeto, a comunidade acadêmica também precisa estar perto das comunidades em que atuam as suas teorias. Então, acho que é uma parceria fundamental. É um diálogo inovador e que precisa ter um alcance maior”, reforça a professora.
Para o futuro, a palavra de ordem do projeto é expandir seguindo com o apoio das entidades e da comunidade. O CineClube TF vai fazer parte, em breve, de um projeto de extensão da Faculdade de Economia da UFPA, onde os alunos serão responsáveis por apoiar a gestão administrativa e financeira do projeto, apostando na arte como forma de empreendedorismo e valorização da cidadania. “O mercado cultural ainda é muito estreito em Belém. E isso provém da pouca valorização dos ritmos e manifestações das tradições culturais amazônicas perante a sociedade local, sobretudo em relação aos segmentos da classe média e burguesa de Belém. De certa forma, isso é um sintoma de longos processos de colonização cultural, onde as elites econômicas e até intelectuais locais reproduzem formas de consumo cultural de outros centros de poder da cultura ocidental, sobretudo que vem da Europa ocidental e dos Estados Unidos, e que são também adotados nas principais cidades brasileiras, como São Paulo e Rio. Dessa forma, o mercado de consumo de bens e serviços provenientes das diversas culturas amazônicas é muito estreito. Creio que o projeto CineClube TF pode ajudar a mudar um pouco esse cenário se conseguirmos arregimentar um corpo de instituições, coletivos e entidades que possam atuar de forma mais concertada na capacitação dos jovens da Terra Firme nas diversas formas de inserção em atividades culturais e criativas, que talvez ainda estejam pouco desenvolvidas no bairro. Através dos recursos da emenda parlamentar, pretende-se entrar em outra etapa do projeto, que é a capacitação desses jovens para a promoção e fomento de empreendimentos culturais e criativos, a fim de conseguir auferir renda e inserção no mercado de trabalho, sobretudo no campo da economia da cultura”, como explica o professor Valcir Bispo Santos, responsável pela coordenação de projetos de extensão na Faculdade de Economia da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Professor Valcir Bispo Santos