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Entrevista/Capa
Protagonismo atemporal
Com 106 anos de existência, a Academia Brasileira de Ciências, considerada uma das mais longevas e tradicionais Instituições do país, recentemente empossou sua primeira presidenta. A mulher no mais alto cargo da ABC é a professora e biomédica Helena Nader, que tem colecionado inúmeros protagonismos ao longo de sua vida, a começar pelo fato de fazer parte da primeira geração de mulheres com Ensino Superior de sua família (ao lado da irmã, Heloísa); de ter pertencido a uma das primeiras turmas do curso de Biomedicina – área historicamente dominada por homens, e de ter presidido a SBPC, à qual dedicou uma década de sua vida. À Revista FADESP, a nova presidenta da ABC rememora sua trajetória, reflete sobre o atual momento e vislumbra um futuro de conquistas e lutas.
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Revista FADESP: Professora, parabéns pela eleição, professora!
Helena Nader: Ah, muito obrigada! A eleição não é de uma pessoa: é de um coletivo.
Revista FADESP: Comecemos pelo começo. Uma memória sua me deixou muito tocada. A senhora comentou, em entrevista não muito recente, que estudou, boa parte da sua vida, em ensino público, com sua irmã e que foram as primeiras mulheres universitárias da família. Compreendo que deve ter sido um marco na história familiar, pelo ineditismo, pelo incentivo, então preciso compreender o como a educação era vista por seus pais.
Helena Nader: Eu sinto que meus pais não estejam aqui para presenciar esse momento, mas onde eles estiverem, sei que estão muito felizes. Eu sou de família de imigrantes. A família da mamãe é de origem italiana; eram todos de Florença. E meus avôs por parte de pai eram da Síria/Líbano, então nós viemos para cá e meu pais diziam sempre que “a herança que vamos deixar para vocês é a educação! Ninguém pode tirar a educação de vocês. Somente com ela, podem chegar aonde quiserem”. Minha irmã é uma advogada de sucesso, espetacular, formada pela USP. E eu, formada em um curso novo, à época. Sou da segunda turma do curso de Biomedicina, que ninguém nem sabia o que era. Na época, não era Universidade; tratava-se da Escola de Medicina Federal e, quando eles criaram esse curso, a ideia era formar pesquisadores para as áreas biomédicas, para não cortar o tempo, porque eles achavam que formar um médico, para depois ele voltar, ia levar mais tempo... e estavam precisando de pessoas para trabalhar nas chamadas “áreas fundamentais” da Medicina, nas áreas básicas. Então, foi isso! Meus pais me incentivavam! Eles tinham muito orgulho e eu tenho muito orgulho deles.
Revista FADESP: A senhora concorda que a postura dos seus pais foi uma diferença enorme, considerando a época...
Helena Nader: Com certeza! Eu tenho 74 anos, então, você imagina que não era comum isso! Eu tive duas pessoas realmente diferenciadas na minha vida, o que mostra que não é que você precise ter um diploma, para ter a noção. Eles tinham formação, eram os olhos da família! Eles prezavam... Meu avô por parte de mãe, não conheci, porque ele faleceu quando mamãe era muito criança, mas [o avô] por parte de pai, eu conheci: vovô Elias. Era de uma cultura fora do comum! Junto com meu pai e minha mãe, ele me ensinou o gosto pela leitura. A pessoa que me apresentou Saint-Exupéry foi meu avô.
Revista FADESP: Que sensível, presidenta!
Helena Nader: Ele falava algumas línguas e o francês, por exemplo, era uma delas. Uma pena é que eu já
(Sobre ter sido, juntamente com a irmã, as primeiras mulheres da família, com ensino superior)
viajei muito, mas não conheço a Síria e o Líbano. E, com essas guerras, eu fico muito triste de ver o que tá acontecendo nessa região, de ver o ser humano perdendo o racional. E tudo movido por um valor econômico! Então, é triste, mas o vovô, eu não esqueço. Teve também o irmão do meu pai, que morava em Curitiba... ah, desculpe falar muito, mas é que você me entusiasmou e nunca comentei isso!
Revista FADESP: Imagine! É um prazer lhe ouvir. Fique à vontade!
Helena Nader: Meu pai era vendedor da antiga Firestone, que foi progredindo e foi chamado para abrir a filial de uma loja em Curitiba, uma filial da Firestone Pneus. Mudamos pra lá e o irmão mais novo do meu pai foi junto. Tio Alexandre ou tio Lalá, como chamávamos, era quem ficava comigo e com Helô, quando meus pais precisavam sair. Nessas ocasiões, ele muitas vezes colocava a gente para dormir e nessa hora ele colocava a música clássica e contava a vida dos compositores. Então, nós fomos muitos estimuladas! Por isso que eu sou privilegiada! Por isso que eu acho que tenho que dar um retorno para o país e para a sociedade. Eu acredito, de fato [ela enfatiza], no Brasil.
Revista FADESP: Partindo das suas memórias e de sua consciência do seu privilégio, a senhora enfrentou muito preconceito e machismo? A senhora me disse que foi da segunda turma de Biomedicina e de uma família, em que pertenceu à primeira geração de mulheres universitárias. Como foi esse seu caminho? Como a senhora lidou com esse machismo tão estruturado da sociedade?
Helena Nader: Olha, isso eu também aprendi em casa e com os meus professores. Tive professores que marcaram a minha vida desde a escola. E todos e todas, porque tinha homens e mulheres, sempre diziam para gente abrir portas. Meus pais diziam a mesma coisa. Eles diziam “não aceite ‘não’ como resposta”, “acredite naquilo que você é capaz!” E foi isso. Então, a situação... Como é que eu posso dizer? Não era como uma afronta, entende? Mas você via no subconsciente. Na nossa classe tinha homens e mulheres biomédicos, em um ambiente de Universidade, que era essencialmente masculino. A Medicina, naquela época, era predominantemente masculina. Então, isso cria aquela sensação de que mulher é apenas para casar, certo, Lorena? Mas isso não foi só comigo. O que quero deixar claro é que a turma era impressionante. Olho para trás e vejo todos que se formaram e é incrível o sucesso profissional de todos, o que significa, na minha análise, que a qualidade daquele curso de graduação teve enorme impacto na vida desses estudantes e futuros profissionais. Muito era exigido de todos! Exigia, mesmo! Eram altas horas para responder perguntas, para poder fazer todos os tipos de experimentos. Era um curso muito “mão na massa”! Então, isso moldou nossa turma e outras que vieram depois. O Curso de Biomedicina foi aprovado, por unanimidade, na Congregação da Escola Paulista de Medicina, que só tinha homens e só tinha médicos, você percebe? É um marco! Mais uma sorte minha. Por isso, sempre brinco que nunca acerto nada quando aposto na Loteria.
Revista FADESP: Faz todo o sentido!
Helena Nader: Já ganhei muito! Anos depois, após a graduação, fiz o doutorado e fui para o exterior com bolsa de lá. Aliás, Lorena, todas as vezes em que eu saí para o exterior, fui paga por aqueles que me chamaram. Isso foi muito bom, porque todas as minhas voltas para o Brasil foram por livre e espontânea vontade, não porque eu tivesse alguma obrigação de retornar o recurso que foi investido em mim... e acho que isso foi muito importante, porque eu queria estar aqui! Provavelmente o pessoal pode dizer “ah, mas você estava indo tão bem fora”. Até tava! Mas lá, talvez, eu fosse só mais um: aqui eu pude ajudar. Não que eu seja a melhor, mas quero ajudar a construir! E lutar por valores que a gente acredita.>>>
Revista FADESP: Pegando o gancho nessa sua resposta, presidenta, como tornar, em face dessa enorme dívida histórica que temos com mulheres, negros, indígenas, além de tantos outros grupos vulneráveis, trans, gays, como tornar a ciência no Brasil mais inclusiva?
Helena Nader: É uma longa e árdua, no sentido de ser longa, missão. Não é simples, porque o ser humano é segregador e é assustador isso! Eu tenho muita orgulho, Lorena, porque eu fui pró-reitora de graduação e, depois, de pós-graduação, mas durante a pró-reitoria, nós fomos a primeira Federal [USP]... e a UNB criou no mesmo ano... a criar, antes das ações afirmativas do governo... eu não gosto dessa palavra cota, sabe? Para mim, parece reserva de mercado, porque não é reserva. Ação afirmativa é equiparação, pedir desculpas e trazer a inclusão! Então, nós tivemos um ano de debates, trazendo pessoas das mais variadas áreas para dentro da nossa Instituição. E resolvemos, por unanimidade do Conselho Universitário, por aclamação, o programa que nós criamos, que foi na época: 10% das vagas novas, de todos os cursos das instituições, para um projeto de acolhimento e foi incrível! Não sei se você lembra, mas houve muitas discussões em todo o Brasil. Os alunos acolhidos foram muito bem recebidos pelos colegas. Não teve briga. Não ouvi comentários, do tipo “você tá tirando meu lugar”. Isso foi muito bom. Agora, o Brasil não está fazendo isso! Ultimamente, ele está caminhando, a largos passos, para o lado oposto: da não-inclusão. A gente vai ter que mudar isso. Como a gente vai mudar isso? Combatendo! Combatendo a discriminação, tornando [a Ciência] um espaço inclusivo. Eu estou preocupada com o que tá acontecendo; a separação vai voltar. A universidade passou a ser mais colorida, mais o retrato do Brasil. E com a pandemia, com a diminuição dos programas para permanência na universidade, está tendo evasão. Se você olhar o número de inscritos no ENEM este ano, caiu vertiginosamente... isso vai ter um impacto a longo prazo. Temos que reverter isso muito rapidamente! Em país que é [majoritariamente] negro, 55% da população são de negros, e que segrega... Você imagina com o gênero. É uma luta! Temos que ensinar desde pequenos: não à diferença de gêneros, ensinar o respeito ao outro, acho que é isso que tá faltando. Respeitar as diferenças! isso o Brasil não está respeitando e é muito triste.
Revista FADESP: Presidenta, em nossa última edição, entrevistamos o professor Renato Janine Ribeiro, atual presidente da SBPC, uma entidade, que a senhora, inclusive, já presidiu. Ele se disse extremamente preocupado com esse desmonte, que tem sido tão nocivo à educação e à Ciência brasileira. Gostaria que a senhora pudesse elencar alguns tópicos do que contempla a sua gestão à frente da ABC.
Helena Nader: A primeira coisa, que eu quero que você saiba, é o seguinte: será uma gestão colaborativa! Somos 13 diretores, incluindo a mim! Tem um equilíbrio de gênero; tem equilíbrio de áreas de conhecimento e equilíbrio de regiões do país, porque o Brasil é mega diverso. Temos 20 vice-presidências
Vamos trabalhar com parcerias.
regionais, que vão ter um papel realmente importante – e que foram criadas na época da gestão do professor Jacob Palis e aprimorado pelo ex-presidente Davidovich, do qual, eu, muito honradamente, fui vice. Então, o trabalho será de um grupo, de equipe. Além disso, queremos envolver muito os membros da Academia. Queremos unir SBPC e ABC para temas que a gente acha extremamente relevantes, produzindo documentos numa linguagem mais simples, para que sociedade brasileira veja o valor da Ciência de uma forma clara. O governo tentou destruir a Ciência, e a sociedade disse “não!”. Vacina é importante, a adesão à vacinação. É claro que houve quem não quisesse ouvir... e, ainda bem que esses são uma minoria. Isso nós vamos fazer bastante. A outra coisa, que vejo como muito importante e de reconstrução é reconstruir a educação. Como que a Academia Brasileira de Ciências pode ajudar, pode gerar informação, trazer dados, trabalhar com outras entidades, buscando o que tem no Brasil e o que tem lá fora, para a gente fazer a revolução da educação. E nesse nosso grupo de diretores, há várias pessoas experts em educação e membros da academia que vão ajudar nesse trabalho. Lorena, tem uma coisa que é muito triste: construir levar muito tempo, mas destruir é muito rápido!
Revista FADESP: A senhora tem toda razão!
Helena Nader: Estou muito preocupada, nesse sentido. As universidades públicas formaram muitos desses que estão aí e que foram diretamente responsáveis pelos desmontes. E essas pessoas sequer conseguem perceber que chegaram onde chegaram porque foram educados, porque tiveram acesso à Ciência. A educação e a Ciência são os pilares que movem tudo. Parece que a única coisa que entendem é sobre dinheiro e recursos. Se não querem fazer, porque é importante para cidadania, que pelo menos, reconheçam o que é importante Provavelmente o pessoal pode dizer “ah, mas você estava indo tão bem fora”. “ Até tava! Mas lá, talvez, eu fosse só mais um: aqui eu pude ajudar. Não que eu seja a melhor, mas quero ajudar a construir! E lutar por valores que a gente acredita.”
para tirar o Brasil da crise econômica. Nosso país está vivendo várias crises: econômica, ambiental, social, de direitos humanos... Vamos trabalhar com parcerias. Afinal, não existe andorinha sozinha que faça o verão.
Revista FADESP: Presidenta, a senhora já foi procurada por algum candidato, para elaboração de um planejamento, de um programa de reconstrução da Ciência, tecnologia e inovação do País? [a entrevista foi concedida em 4 de abril de 2022]
Helena Nader: Não.
Revista FADESP: Está aberta a diálogos?
Helena Nader: Nós sempre estamos e ABC não tem cor política/partidária. A cor que temos é a da democracia e dela não abrimos mão! Nos manifestamos, quando fizeram apologia à comemoração do aniversário do golpe de 64... Não vamos nos calar! [ABC e outras instituições brasileiras assinaram uma carta aberta à população, condenando a exaltação ao golpe]
Revista FADESP: A senhora teme alguma retaliação? [a posse ainda não havia ocorrido, quando a entrevista foi realizada]
Helena Nader: Não, não. E acho que não teremos. Vejo esse olhar ufanista deles, com esse golpe que ceifou vidas, é de alguns. Conheço vários militares que não pactuam com esse sentimento, assim como nós. Eu lutei contra a ditadura, mas eu reconheço coisas que os militares fizeram, na época, de impacto para a nação, assim como reconheço que tiveram sua vergonha. Tiraram vidas, mataram, para, depois lamentarem o que tá acontecendo na Ucrânia e Rússia? Qual é a diferença? Aqui, foi uma dor interna. O que fizeram foi horrível, com a justificativa da defesa da soberania nacional! É brincadeira! Esses caras que estão entregando a soberania nacional! Olha o Brasil e o mundo! Tirar daquela tragédia [do golpe de 64] algo positivo é agredir a inteligência do povo. Eu me senti agredida! Por isso, não vou me calar! Não me calavam, quando era jovem e não vão me calar agora, depois de velha!
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