5 minute read
Opinião
O mico-leão-dourado e a vacina da febre amarela
Por Cristina Serra*
Advertisement
Desde que passei a me dedicar à cobertura de meio ambiente, entendi que tinha um grande desafio como jornalista. Temas ambientais exigem a compreensão de muitas questões científicas, como, por exemplo, dados de monitoramento de um bioma ou de uma espécie, estudos comparativos, gráficos. Essa enorme massa de dados precisa ser entendida e “traduzida” da linguagem científica para o português para que assuntos de imensa relevância sejam de conhecimento de amplas parcelas da população.
Essa preocupação me guiou ao realizar o documentário “O mico-leão-dourado e a vacina da febre amarela”, em parceria com a Associação Mico-Leão-Dourado (AMLD), ong que coordena o trabalho de conservação do belo primata que se tornou um símbolo mundial da defesa da natureza. Como o mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia) alcançou esse status?
O mico-leão-dourado é endêmico da Mata Atlântica de Baixada do estado do Rio de Janeiro. Ele nunca foi registrado na natureza em nenhum outro lugar do Brasil. Os primeiros registros de sua ocorrência, feitos pelos europeus que aqui chegaram com as caravelas, datam de 1519. Ao longo dos séculos, a devastação da Mata Atlântica levaria a uma dramática perda de habitat do primata, alvo também da caça e do tráfico de animais.
Nos anos 1970, o primatologista Adelmar Coimbra Filho estimou uma população de apenas 200 micos-leões-dourados na natureza. A espécie estava à beira da extinção. O alerta de Coimbra Filho motivou um esforço internacional para salvar o primata. Cientistas do Zoo de Washington e do Smithsonian Institute, dos Estados Unidos, partiram para uma experiência ousada: o “treinamento” de micos-leões-dourados de zoológicos para que aprendessem a viver em liberdade.
Os grupos (ou famílias) de micos foram soltos em áreas abertas nos zoos para que aprendessem, sozinhos, a procurar comida, abrigo e a se defender de predadores. Depois de erros e acertos, os micos considerados aptos foram enviados ao Brasil para reintrodução em fragmentos florestais. Com o tempo, eles se reproduziram e ajudaram a recuperar a população da espécie. Muitos dos micos que hoje podem ser vistos pulando de galho em galho na mata são descendentes dos indivíduos que aqui chegaram nos anos 1980.
Com essa e outras iniciativas – como o engajamento da população local e o replantio de porções da Mata Atlântica -, os micos chegaram a 3.700 indivíduos, conforme registrou o censo feito em 2014 pela AMLD. O risco de extinção parecia estar ficando distante quando um novo perigo começou a rondar. Em 2017, o vírus da febre amarela voltou a circular no interior do Rio de Janeiro, na área de ocorrência do mico-leão-dourado. As equipes de monitoramento notaram o desaparecimento de grupos inteiros.
A AMLD realizou novo censo e constatou a redução da população para 2.500 animais, ou seja, uma perda de 32% em apenas dois anos. Era o limiar de uma tragédia ecológica que poderia jogar por terra 40 anos de esforço para salvar uma espécie da extinção. O estudo do impacto da febre amarela no mico-leão-dourado foi publicado na Nature Scientific Reports (10/09/2019, Dietz e outros). Diante da ameaça, a ciência e o compromisso com o meio ambiente deram-se as mãos uma vez mais em uma experiência pioneira que
Foto: Arquivo pessoal
contou também com uma grande coincidência e sorte!
Um dos conselheiros da AMLD, o veterinário e doutor em Biologia Parasitária Marcos Freire, da Fundação Oswaldo Cruz, é um dos maiores especialistas em vacina de febre amarela. Ele começou a desenvolver estudos para que a mesma vacina aplicada em humanos pudesse ser usada, com adaptações, nos micos-leões-dourados. Daria certo? Cientistas de várias instituições e da AMLD avaliaram riscos, pesaram prós e contras e concluíram que valia a pena tentar por se tratar de pequenas populações isoladas de uma espécie gravemente ameaçada.
Por meio de um processo de diluição da vacina para humanos, Freire chegou a uma dose adequada para os micos. Os testes preliminares foram feitos em micos-leões-da-cara-dourada que vivem em cativeiro no Centro de Primatologia do Rio de Janeiro (CPRJ-INEA). Eles são “primos” do mico-leão-dourado, com peso e tamanho similar. Os resultados foram animadores. Nenhum macaco sofreu qualquer efeito colateral e a vacina produziu anticorpos, mostrando-se,
portanto, segura e eficaz. Os testes receberam licença do Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade (SISBIO), do ICMBio.
O sucesso da vacinação em micos de cativeiro levou ao próximo passo: a vacinação dos animais de vida silvestre. Os micos têm que ser capturados duas vezes. A primeira, para receber a vacina, e a segunda, para verificar a produção de anticorpos. É um desafio logístico, que depende do padrão de oferta de alimentos na mata e da meteorologia, entre outros fatores. A tarefa é facilitada, porém, porque a AMLD monitora os grupos há quase quatro décadas e sabe, inclusive, o grau de parentesco entre as famílias.
A vacinação dos micos-leões-dourados também teve a participação de pesquisadores da ong norte-americana Save the Golden Lion Tamarin e da Universidade Estadual Norte Fluminense. Até agora, foram vacinados 260 micos-leões-dourados silvestres e a vacina mostrou-se, novamente, segura e eficaz. A meta é vacinar 500 indivíduos da espécie para ter uma população minimamente protegida caso haja um novo surto da doença que ponha o primata dourado em perigo.
Foi esta história extraordinária que tive o privilégio de contar no documentário sobre o mico e a febre amarela. Uma experiência enriquecedora que demonstra a importância da comunicação para aproximar a ciência e a população. A sociedade só defende e luta por aquilo que conhece e valoriza. E precisamos, como nunca, defender a ciência e o meio ambiente no Brasil.
Para assistir o documentário, dirigido por Cristina Serra, acesse o QR.
* Paraense, Cristina Serra começou sua carreira em Belém, no jornal Resistência, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos. Estudou na UFPA e na UFF, no Rio de Janeiro. No Rio, trabalhou no Jornal do Brasil, Revista Veja e Rede Globo. Pela TV, cobriu política, em Brasília, e foi correspondente em Nova York (EUA). Estreou na literatura em 2018, com o livro-reportagem “Tragédia em Mariana – A história do maior desastre ambiental do Brasil”. Atualmente, é colunista da Folha de São Paulo e do ICL Notícias.