Flaubert #02

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ÁLVARO DOMINGUES CARLOS VAZCONCELOS DANIEL FERREIRA DANIELA LANGER FILIPPI FERNANDES GUILHERME SCALZILLI GUSTAVO MELO CZEKSTER MÁXIMO LUSTOSA PATRICK BROCK PAULO GUILBAUD RAFAEL SPERLING RAPHAEL MONTES REGINALDO PUJOL FILHO RENATO BITTENCOURT GOMES RENATO VIEIRA OSTROWSKY ROBERTO PEDRETTI ROTSEN ALVES TONI MARQUES

ANO 01 / # 02

REVISTA DE CONTOS



REVISTA DE CONTOS


© 2014 PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 2014 COM O TÍTULO FLAUBERT REVISTA DE CONTOS Nº 2 /// COPYRIGHT DA SELEÇÃO © 2014 FLAUBERT REVISTA DE CONTOS /// A DÉCIMA MARCA © ÁLVARO DOMINGUES // DEVASTAÇÃO © CARLOS VAZCONCELOS // TRANSITORIEDADE © DANIEL FERREIRA // NADA DE ERRADO © DANIELA LANGER // APOGIATURA © FILIPPI FERNANDES // VELHO © GUILHERME SCALZILLI // OS QUE SE ARREMESSAM © GUSTAVO MELO CZEKSTER // RUÍDOS © MÁXIMO LUSTOSA // LUNAR PARK © PATRICK BROCK // UM DIA QUALQUER © PAULO GUILBAUD // A ENCENAÇÃO DAS LARANJAS © RAFAEL SPERLING // BALAS DE TAMARINDO © RAPHAEL MONTES // KROV U ROT © REGINALDO PUJOL FILHO // FLOR DA NOITE © RENATO BITTENCOURT GOMES // A QUERIDINHA DO MANICÔMIO © RENATO VIEIRA OSTROWSKY // 20 © ROBERTO PEDRETTI // UM CONTO DE CALVIN © ROTSEN ALVES // REALITY TOUR © TONI MARQUES ///

os colaboradores asseguram seu direito moral de serem identificados como os autores dessa obra.

Todos os direitos desta edição reservados a


NESTA

EDIÇÃO:

9

ÁLVARO DOMINGUES

Nunca ousei perguntar o que aconteceria com o medo de morrer.

16 FILIPPI

FERNANDES

A cabeça acompanha o ombro alheio, como se pendesse a eternidade.

24 PATRICK BROCK

Pediram que escolhesse uma camisa para você vestir no caixão, mas minha mão deslizou pelo tecido branco e desabei.

31 REGINALDO

PUJOL FILHO

Alguém queria traduzir Sangue na boca para o ucraniano. Por quê? Por que não?

12 CARLOS

VAZCONCELOS

Há um momento em que tudo para e não percebemos, pois também restamos inertes nos calabouços do impróprio ser.

18 GUILHERME SCALZILLI

Meio peremptório demais, Solene propõe uma derradeira, desta vez a última de todas as últimas prometidas.

25 PAULO

GUILBAUD

Dou mais crédito a certas crianças e a certos bêbados do que a muitos adultos.

33 RENATO

BITTENCOURT GOMES

Isso porque Peixito não é peixe e não é carne, não o capturam anzóis, laços e armadilhas em geral.

38 ROTSEN ALVES

O Morro começou a voar e o estômago do Cão soube disso.

13 DANIEL

FERREIRA

O mais importante era que o ar tinha um aroma doce e leve, como um quarto perfumado por um sentimento latente.

21 GUSTAVO MELO CZEKSTER

Vocês não são homens; não passam de covardes, covardes eternos.

27 RAFAEL

SPERLING

Mas Piló não responde e Telco entra em pânico, pois percebe que Piló está realmente morto.

35 RENATO VIEIRA OSTROWSKY

Terminada a batalha campal, os exércitos de Napoleão e Mussolini voltaram para as trincheiras de suas entrelinhas.

39 TONI

MARQUES

A menina sabe que a Mrs. Kidder sabe que a menina sabe que a Mrs. Kidder sabe como era a Daisy.

14 DANIELA LANGER

Tinha material suficiente, precisava de uma desculpa para saber se o trabalho da mãe era melhor do que o dela.

23 MÁXIMO

LUSTOSA

Ana já estava acordada e mantinha-se quieta tentando não me acordar e com medo de chamar a atenção.

29 RAPHAEL MONTES

Mas estabilidade é mais importante do que felicidade, não acha?

36 ROBERTO

PEDRETTI

Algumas vezes, 30 anos são o bastante. Depois desse tempo, uma boa parte de nós tem a sensação de que é o bastante.


CONTATO REVISTAFLAUBERT@GMAIL.COM /// ISSUU.COM/REVISTAFLAUBERT /// FACEBOOK.COM/REVISTAFLAUBERT

EXPEDIENTE EDITOR MARIEL REIS [MARIELREIS@IG.COM.BR] /// CONSELHO EDITORIAL ANDRÉ TARTARINI [A.TARTARINI@GMAIL.COM] // JD LUCAS [JDLUCAS.CONTATO@GMAIL.COM] /// EDITORES REGIONAIS RIO GRANDE DO SUL ALESSANDRO GARCIA [SEVEROGARCIA@GMAIL.COM] // CEARÁ ANDERSON FONSECA [AFCONSULTORIAEDITORIAL@OUTLOOK.COM] // RIO DE JANEIRO ANDRÉ TARTARINI, JD LUCAS // PARANÁ DANIEL OSIECKI [TROOPER_OSIECKI@YAHOO.COM.BR] // SÃO PAULO DELFIN [DELFIN.K@GMAIL.COM] /// PROJETO GRÁFICO ALESSANDRO GARCIA DIAGRAMAÇÃO STUDIO DELREY

os personagens e as situações dos contos aqui publicados são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opiniões.

ANO 01 / # 02 BRASIL 2014


EDITORIAL E

is a segunda edição da Revista flaubert. A sobriedade, a moderação e o bom gosto podem parecer antípodas a uma literatura radical instalada, comprazendo-se, através do choque gratuito, sem ênfase estética, em ocupar lugares de destaque nas gôndolas das livrarias, repletas de um confessionalismo pernicioso. Este adjetivo pode soar moralista, mas não o está empregado desta forma. A perniciosidade a que se refere é a falta de baliza estética forte mediando as relações que o instaura como única verdade, empobrecendo a experiência literária, repousando-a sobre o que há de passageiro em um indivíduo, descentrada do que seria um artifício mais universal, irmanando em cada leitor este sujeito que o transcende e o quer ligado a esta eternidade que se faz de um abrir e fechar de livro. Se a ficção do futuro não passará mesmo de autobiografias, conforme vaticinado por Emerson, aproveitado muito bem por Henry Miller, isto é uma conversa para se ter em um ensaio, para não parecer inapropriado. Embora, aqui, ressalte-se a importância da reflexão do que há de ruim por aí a nos assaltar como literatura, entristecendo ou tornando pessimista muitos de nossos críticos. A Revista flaubert quer um largo sorriso dos leitores; não o sorriso fácil de determinada literatura da Belle Époque em que as letras seriam apenas meros passatempos. A estes desprezamos, certamente. Desejamos que o segundo número da revista provoque interrogações variadas acerca da literatura, e o seu fazer; representado através das escolhas de nossos editores que arregaçaram às mangas e foram às ruas para recolher o que lhes parecia o mais representativo da ficção, nesse recorte, para entregar ao público. O resultado é feliz, heterogêneo e democrático. Embora a tal moderação, a tal sobriedade e o tal bom gosto saia chamuscado. E por um bom motivo: a estética. Meus bons leitores, acompanhem as narrativas de Daniela Langer e Rotsen Alves. Olhem atentamente. Vejam se não é verdade. Daniel Osiecki, editor do Paraná, não brincou em serviço, efetuou disparos certeiros com sua colt. O Ceará está bem representado, nesta segunda edição, por Carlos Vazconcelos. Há gente do Piauí indicada pelo editor Demetrios Galvão, da revista Acrobata. E por aí vai. O resultado é muito bom. O trabalho gráfico da revista está luxuoso, um regalo para os olhos. Os virginianos – signos afeitos a isto – eletrizados aos detalhes, transportados por eles, irão subir aos céus. Todo o círculo zodiacal. Reforço mais uma vez editorial precisa ser breve, mas divertido, propositivo, provocativo etc... E não deve torrar o saco de ninguém. Meus queridos leitores a revista avança em passos tímidos, mas seguros. Mãos firmes comandam a embarcação. Deus ajude‑nos a não afundar ou envie-nos a bóia. A primeira edição com mais de três mil visualizações devemos a cada um de vocês. Portanto, a casa está aberta, a mesa está posta e... Não é um poema bandeiriano. A desejadas das gentes, a festejada, em sua vinda, é cada um de vocês. Espalhem-se, há muitos bancos, pufes, cadeiras e sofás. Deve ter algo na geladeira para beber, esperem um minutinho que vou até lá, volto logo. Divirtam-se. MARIEL REIS // EDITOR



A DÉCIMA MARCA ÁLVARO DOMINGUES

Um lado

caçadas “preventivas”. O dinheiro não importava mais. E, em sua visão, eu era um criminoso. Só faltava o cartaz de “procura-se”. Mereceu a bala que o matou.

O sol na janela me acorda. O vento balança as cortinas transparentes. De renda. Mania de Hotel barato tentando esconder o desconforto com um pouco de luxo. Eles acham que disfarça o ambiente, mal cuidado. E a janela que não fecha direito. É cedo. Sete horas? Talvez menos. Escolhi hoje, ao meio dia. Queria dormir um pouco mais. Assim não ficaria pensando. Não, não estou com medo. Quero apenas estar com a cabeça livre. Limpa de pensamentos e lembranças. Se eu levantasse às onze, como planejara, só teria tempo para um almoço leve, e de me concentrar no que ocorreria dali a uma hora. “Mente desocupada é oficina do diabo.” Ele me disse. Ele me disse muitas coisas. “A décima marca é a mais importante. Mais importante que a primeira. A primeira pode ser um zé-ninguém qualquer. Como você hoje.” Detestava quando ele me chamava de zé-ninguém. Mas ele tinha razão. Quem seria eu até não ter posto a décima marca em meu revólver? A primeira podia ser qualquer coisa: “um velho bêbado, um índio desgarrado da tribo, um jovem forasteiro tentando mostrar que é homem.” Foi um bêbado arruaceiro. Servia. Depois do primeiro, “o medo de matar teria ido. Só isso. Mas depois da décima, você conviverá com a fama.” Nunca ousei perguntar o que aconteceria com o medo de morrer.

Um lado Meu revólver só tem oito marcas. Foi tão fácil fazê-las, que achei que poderia marcar, com ele, um duelo. No caminho acharia um idiota qualquer para desafiar e levar chumbo. Mas a notícia correu rápida. Se eu estava pronto para enfrentá-lo, então quem teria coragem de me desafiar? Ninguém iria conferir se eu poderia ou não... Ainda havia tempo para caçar uma briga e obter minha nona marca. A vítima podia ser até uma puta. A qualidade não tinha muita importância. Mas ainda é muito cedo para ter muita gente no bar. E não creio que vá ninguém. O pessoal só vai por a cara pra fora alguns minutos antes do duelo. Como sempre. Alguém bateu à porta. Não tenho amigos. Nem amantes. Então, quem seria? Ah! O padre! Há dias que ele vem tentando me segurar, fazer-me desistir da vida que levo ou, pelo menos do duelo. É um dos que apostam contra. Vou ouvi-lo mais uma vez e dispensá-lo.

Ela

Outro lado

Como sempre ele vai mandar aquele garoto me chamar. Vai dar a ele algumas moedas, indicar a Casa da Madame e dar-lhe uma descrição minha (embora ele já saiba, como todos na cidade), um tanto vaga. As outras meninas gostam do jogo e quando o menino aparece, fingem que ele é um cliente, oferecendo seu dotes, só para vê-lo ficar vermelho. Quando saio com o garoto na rua são os homens que o constrangem. Fazem comentários obscenos sobre o que eu e o garoto faremos no hotel. Quando o trajeto acaba, o menino ri e vai embora, deixando-me diante da porta. Sei que está aberta, mas bato assim mesmo. Sei que não virá resposta nenhuma, mas continuo com o jogo. Se fosse outro, eu virava as costas e ia embora. Mas com ele, o jogo

Não comecei por quis. Era ele ou eu. E tem sido assim sempre. No começo até fiquei orgulhoso. Ainda resta um pouco deste orgulho. Talvez ele me mantenha vivo. Quantos matei iludidos com a mesma fama de que hoje desfruto? Antes eu marcava. Uma ansiedade sem limites, até conseguir a décima marca. “O atestado de profissionalismo. É mais importante.” Ou foi. Hoje tanto faz. “E lembrar é uma fraqueza.” Não estou preocupado em ser forte ou fraco. Quero apenas que acabe logo. Para mim ou para ele. Não faz mal eu lembrar. A décima marca foi um caçador de recompensa. Famoso. Ele pegou muita gente perigosa. Por dinheiro. E passou a gostar disso. Matar gente perigosa. Decidiu fazer 9


me excitava, como uma adolescente. As outras meninas dizem que isto é paixão. Bati de novo. Mais uma vez. Sem resposta. A terceira vez e nada. Abri lentamente a porta e entro pé ante pé; apreensiva. O assoalho range, mesmo com meu cuidado. Corro de volta para porta. Ela se fecha revelando um homem com uma arma apontada para mim.

O risco de um tiro real faz meu coração bater. Sei que ele é hábil e jamais me fará mal. E ele me quer assim. Medo, ansiedade e desejo. Não é sempre. Às vezes quer leveza e ternura. Outras, só sexo. Sempre penso que cada uma delas pode ser a última. Dou o melhor de mim. Tempero sexo com desejo real. É algo que nunca dou a ninguém: Minha alma.

Um lado

Um lado

A morte do padre foi simples. Sem reação. Preferia uma luta. Um pouco de risco. Como a que ocorrerá daqui a alguns minutos. Duelos são como sexo. Eu diria que é melhor. Saio sempre satisfeito. E se fracassar, será apenas uma vez, sem lamentações posteriores...

Enquanto o padre falava, senti minha raiva crescer. “O ódio cobre o medo. Você tem que ter ódio para não ter medo. O medo de matar e o medo de morrer. “O ódio elimina a culpa e o medo. Se sentir raiva deixe-a crescer e transforme-a em ódio. Se não puder sentir ódio, não sinta raiva”. Talvez fosse bom deixar a raiva ir. Quantas vezes o padre veio me falar? Não importa. Pela primeira vez, prestei atenção no que ele dizia: — Por que você vai desperdiçar sua vida? Não sei bem porquê, mas respondi: — Eu desejo a morte. O padre olhou horrorizado: — Não haverá paz na sua morte. Sua vida futura será de eterno sofrimento. — Vida futura? - respondi com desdém. — Sim! A morte é uma ilusão. — Não! A vida é uma ilusão! A sua vida! Pronto! Fiz minha nona marca.

Outro lado Ela sempre faz assim. Se entrega de corpo e alma. Talvez me ame. Não quero que isso aconteça. Um dia não voltarei. Talvez enjoe dela, como de tantas outras. Talvez ela enjoe de mim, como outras tantas. Talvez me encontre com a derradeira companheira, um dia destes... Mas hoje ouvi dela algo que nunca ouvi de mulher alguma: — Não vá!

Ela

Outro lado

— Não vá! — foi o que eu disse Mas ele foi. Vestiu-se, colocou o cinturão e seu revólver, o chapéu e, surdo a meus apelos, saiu sem olhara para trás. Sempre assim. Sempre? Apenas hoje eu disse “não vá”, embora tenha pensado todas as vezes. Desde a primeira. Quando foi? Uma vez no começo dos tempos. Antes eu não existia. Corro para a janela e o vejo caminhando pela rua, seguindo um ritual não escrito. Seu adversário está lá, esperando. Talvez haja um diálogo ritualizado, talvez não. Mas provável não. Ele é calado. Diz que já falou demais.

Esconder-me atrás da porta, ou em outros lugares para assustála, com uma arma era parte de um jogo, que começou há muito tempo. O primeiro a deixou zangada, mas o seu coração bateu mais forte, não só pelo susto. E se fosse só um susto, eu não repetiria a dose. E venho fazendo isso há bastante tempo. Não com freqüência, nem com regularidade, senão o jogo estragase. Ela não deve saber quando. A ansiedade, a expectativa e o risco a deixam excitada. E sua excitação aumenta meu desejo. O risco é parte inerente do jogo. Talvez eu goste disso, por ser parecido com a vida que eu levo. O risco de morte temperada à vida. Talvez eu faça isso quando a Morte esteja muito perto de mim. Como hoje. Talvez haja relação com o desafio que ocorrerá daqui a pouco. Talvez não devesse. “Nada de mulheres ou bebidas antes”. A regra de ouro não‑escrita. Ou melhor, escrita pelos sobreviventes.

Um lado Lá está ele, caminhando no centro da rua. Taciturno e quieto. Passos decididos, mas lentos. Seu estilo. Isso quebra o ânimo dos menos experientes. Ele chegará. E por um milésimo de segundo, vai me avaliar. Se achar que não valho à pena, virará as costas. Como fez com tantos outros. Alguns lhe gritam provocações. Ele ignora. Todos sabem, que, se ele quisesse, já teria morto o insolente. Outros não dizem nada. Entendem a mensagem. Outros, ainda, sacam. Mesmo tendo que se virar, ele é mais rápido. E acerta onde quer. A perna, o pé ou a mão. Apenas uma lição. No peito, se achar que o cara não vale nem uma lição.

Ela É ele. Pede-me... Ordena-me que me dispa, sob a mira de uma arma. Excitante? Sim, por ser ele. Não gosto de armas. Tornam os covardes, valentes. Em valentes mortos. 10


Outro lado

“Nunca atire no abdômen! Atire na cabeça ou no peito, mas nunca no abdômen, se quiser matar e continuar vivo!” Ela me coloca em seu colo e vê que ainda estou vivo. Ele se afasta, mostrando desprezo. Chorando ela me mostra o que tem na mão.

Ando devagar, como se contasse os passos. A rua, com seus poucos metros, parece infinita. No local marcado está ele. Um rosto frio e duro como o meu. Minha vítima ou meu sucessor dali a segundos. Sucessor! Foi por isso que o treinei. Creio que bem demais. Ele escolheu corretamente sua décima marca. Um adversário digno. Se ele soubesse como eu mudei desde que o deixei na estrada... “A descoberta do amor acaba com os dias de um pistoleiro. Ou ele se aposenta ou morre.” Minhas próprias palavras a um discípulo aplicado. Há uns dias, ele era somente a lembrança de um fracasso. Escolhi mal. Um fedelho arrogante que imaginei que morreria no segundo ou terceiro encontro. Mas não, ele sempre escolhia adversários fracos demais. Estarei fraco? Ele sente, como um abutre..

Ela Seis balas. Ele tirou do revólver, quando estávamos no quarto, para que não houvesse nenhum risco de me ferir em seu jogo erótico. O outro pistoleiro olhou com desprezo para ele e virou as costas, andando lentamente. Não pude tolerar mais aquilo. As seis balas foram para seu destino. Primeiro para o tambor. Chamei-lhe a atenção, gritando que ele era um covarde. Virou-se para mim com o olhar cheio de desprezo. Mas, logo sua expressão passou para surpresa. Dei o primeiro tiro. Tentou reagir, mas, o segundo já lhe atingia o peito. E, antes que ele caísse, recebeu mais um. Os outros três foram com ele já deitado. Na minha profissão saber atirar pode ser muito útil. Normalmente para afastar arruaceiros bêbados mais afoitos. Fiz questão de aprender com ele. Me ensinou como seu fosse um homem que cedo ou tarde fosse para as ruas. Dois dias depois, o homem que amava morreu. Conseqüência dos ferimentos. Iludido com a possibilidade de eu ir para ruas. “Há algumas mulheres neste ramo”. Dizia. Mas bem ou mal, prefiro lidar com a vida, ainda que de uma maneira torta.

Ela Estou na janela observando a cena. Eu a vi inúmeras vezes. Um dos dois sacará primeiro e o outro tombará. Desta vez, decido virar o rosto, cansada da morte e desejando a vida. Ao virar o rosto, meu olhar pousa sobre a penteadeira e vejo algo que não deveria estar ali. Assustada, desço correndo para a rua e grito-lhe. Um erro. Mas... haveria outro jeito?

Um lado A tola correu para a rua, gritando o nome dele. Não podia deixar de desperdiçar a chance. Um segundo de hesitação e eu estava em vantagem. Mas sua reação foi rápida. Talvez não o suficiente. Meu tiro o atingiu, mas tive a nítida sensação de que ele sacou e apertou o gatilho primeiro. Mas não há mais nenhuma dúvida. Ele está lá caído nos braços dela. Morreu? Não importa. Viro as costas, para demonstrar o meu desprezo e me afasto, ajeitando o chapéu.

Outro lado Ela vem correndo em minha direção e gritando e agitando a mão. Não posso tirar minha concentração. Acabarei o serviço e depois a verei. O estranho é que sua mão está fechada, como se ela estivesse segurando algo. Meu adversário percebe minha hesitação e saca. Meu reflexo está ótimo. Acionei o gatilho primeiro. Mas ... sinto dor. No abdômen. No abdômen! Idiota!

ÁLVARO DOMINGUES é contista, cronista, resenhista e poeta. Mantém o site a arte dos oráculos e os blogs blog do pai nerd e sombras e sonhos. Publicou o livro de contos Sombras e Sonhos (Balão Editorial) e participou das coletâneas Time Out (Estronho) e Erótica Steampunk (Ornitorrinco). Tem contos publicados nas revistas Bits e Nossas Edições e nos fanzines Sommium e Adorável Noite.

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DEVASTAÇÃO Para a Sônia Nogueira

CARLOS VAZCONCELOS

U

ma cama branca, lençóis tão alvos, rostos nublados e um sonho azul. Pairava sobre os objetos o nãotempo das horas mortas. Há um momento em que tudo para e não percebemos, pois também restamos inertes nos calabouços do impróprio ser. Onde encontrar esperança quando as mãos se recolhem, os braços se fecham antes mesmo da acolhida? − Papai... o senhor abriu os olhos... e eles estão sorrindo, papai. Fale comigo! E o peito arfou, e a boca se abriu mesmo esquecida das palavras... − Gabriel, vem aqui, Gabriel. Vem sorrir para ele. − Sônia... − Anda, vem logo, os olhos dele querem nos dizer que a treva é nada. Gabriel se aproximou com zelo, feito uma mãe que vai ao berço. Mas sempre compreendeu que vida e morte são apenas dois impostores, e se apropriam das coisas para dar a ilusão de existência. − Então, Gabriel, você viu, viu? Gabriel olhou sem pressa, como quem tem a eternidade. − Madrinha, me traga duas velas, uma para cada mão. Disse friamente sem olhar no rosto da angústia dela. Não era tédio, apenas desapontamento e outras substâncias pétreas que nascem na vesícula da alma. E Sônia inerte, morta dos olhos, morta dos braços, um triz de desespero permeando seus lábios, trêmulos, suas pernas, bambas. Não se desarticula um sonho desse jeito. O verbo que houvera já não pode ser conjugado em tempo algum. A cada outro resta o mundo entremeado de despedidas. E lá fora alguém sempre a indagar: Tudo bem isso, tudo bem aquilo? Enquanto ainda estão sob o efeito do dia, suas cores, seu moto-contínuo. Mas para Sônia o majestoso universo se reduzia àquela mão flácida entre seus dedos, àquela mão que desistia para sempre da sua capacidade de acolher, que a deixava a descoberto para as intempéries, mão que jamais deixaria de estar pousada entre as suas, lembrando sempre que a vida escurece, que chove no olhar e a primavera cessa na próxima estação. − NÃO! Foi a única palavra que se desprendeu de sua mágoa, palavra tão curta incrivelmente alongada na erupção das

entranhas, sua lava de bílis, sua devastação e um mar todo sangue sobre os campos que já eram. Sônia não pôde morrer, ali, para sempre, mas morreria toda vez que aquela mão voltasse a pousar nas suas lembranças, aquela mão fatigada de acenos e ainda mais cansada de adeuses.

CARLOS VAZCONCELOS nasceu em Tianguá, no Ceará. Formado em Letras pela UECE e Mestre em Literatura Comparada pela UFC. Publicou Mundo dos Vivos (contos, 2008) e Os Dias Roubados (romance, 2013). Alguns premiações literárias: Prêmio Edital de Incentivo às Artes (2011) da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará; Ideal Clube de Literatura 2011 (1º Lugar); Ideal Clube de Literatura 2009 (2º lugar); Osmundo Pontes de Literatura, da Academia Cearense de Letras (2007); Clóvis Rolim de contos, da Academia Cearense de Letras (2006); IX Prêmio Cidade de Fortaleza-poesia (2000), da FUNCET. Publicou trabalhos em várias coletâneas.

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TRANSITORIEDADE

DANIEL FERREIRA

H

avia esse homem que tinha um nome e uma casa onde vivia sozinho. Não tinha animais de estimação. O nome era Aristides. A casa era pequena e suja, como deve ser a casa de todo homem solteiro que vive só. Funcionário público que era, Aristides achava que a vida que lhe fora dada era, ao pensar de Pangloss, o melhor dos mundos possíveis. E como poderia não ser? Tinha dinheiro, tinha mulheres, tinha bebida à vontade e, suspeita-se, merecia um certo respeito por parte dos amigos. “Este mundo é um banquete, é uma festa que não termina. Este é o meu lugar”, pensava Aristides. Acontece que... O parágrafo que se inicia acima é o ponto de conversão da narrativa, o que facilmente percebe-se pela expressão “acontece que”. Apercebendo-se disso, o personagem precavido passa a ter mais cuidado com seus atos, pois, em geral, sua conduta desencadeará fatos que se voltarão contra ele. Entretanto, outro método tão eficiente para desenvolver a história quanto aproveitar a reação aos atos do personagem é quando, de maneira sutil ou grave, o mundo externo se impõe sobre o personagem sem necessidade de qualquer ato desencadeador. Esta última hipótese foi o que ocorreu com Aristides (ou não). Retomemos a narrativa. Acontece que em uma quarta-feira, após beber algumas cervejas com os amigos, Aristides teve uma surpresa ao chegar em casa. Ao abrir a porta não pôde acreditar na ordem e limpeza que sua sala refletia. Não havia camisas jogadas em cima do sofá, as teias de aranha da janela haviam sumido e, o mais importante, o ar não tinha cheiro de comida estragada. Na verdade, o mais importante não era exatamente isso, o mais importante era que o ar tinha um aroma doce e leve, como um quarto perfumado por um sentimento latente. Do aroma surgiu sorrindo a causa da mudança. Minto. Ela não vinha sorrindo, essa era só a impressão que o aroma induzia. Quem vinha era uma mulher vestida em uma camisola de seda cor-de-rosa. Cara de quem acordava. “Que horas são?” perguntou ela. “Quem é você?” perguntou Aristides expressando sua surpresa. “O que foi que te deram pra beber? Não reconhece mais nem a própria esposa.”

De repente, a mente de Aristides começou a se encher de momentos até então inéditos. Juliana era o nome dela e, sim, ela era sua esposa. “Sou um homem casado. Como isso aconteceu?” Não era pergunta que se fizesse, pois ele sabia por que se casara. “Um homem de 30 anos não pode viver sozinho. Para quem vou deixar minhas posses? Com quem vou dividir minha velhice?” Então foi assim. Um dia, o melhor dos mundos possíveis não lhe pareceu eterno diante da transitoriedade das coisas. Ou talvez o mundo fosse eterno, ele é que não era, justamente porque o ser se encontra entre as coisas transitórias. Conformou-se com sua nova realidade, uma em que o mundo ainda era uma festa, mas uma festa de família, não um bacanal. Teve filhos. Teve amantes. Amou Juliana quase verdadeiramente. Muito tempo depois de ter se descoberto homem casado, Aristides teve novamente que rever sua verdade sobre o melhor dos mundos. Foi em uma quarta-feira, tarde da noite, ao chegar em casa. Percebeu que ali não era mais sua casa, Juliana não era sua esposa e, certamente, aqueles não eram seus filhos. Pior do que tudo isso foi Aristides saber que ninguém nunca lhe teve respeito. De repente o mundo estava vazio e silencioso. Um dia, numa quarta-feira, um funcionário público perdeu-se no caminho para casa. Bateu na porta errada e encontrou a vida errada. Quis voltar e ver se encontrava o caminho correto ou, no meio do caminho mesmo, o melhor dos mundos possíveis. Não conseguiu. Voltou para o bar, queria beber uma última cerveja, encontrar um amigo para conversar. Chegando ao bar, encontrou a luz apagada. O bêbado caído na sarjeta conseguiu erguer a cabeça e disse: “Aristides, a festa acabou.”

DANIEL FERREIRA

é contista, autor de Sob a Sombra da Noite (2005). Gosta de cerveja e Radiohead.

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NADA DE ERRADO DANIELA LANGER

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assava do meio da manhã e forravam as prateleiras do armário embutido. Mediam as folhas, em seguida ajeitavam o papel com as duas mãos. Cada uma trabalhava em uma porta. A ponta dos dedos marcava o encontro da seda entre a prateleira e a lateral do armário. O sol deitava-se pelo quarto e, em pouco tempo, sentiriam o calor dos raios em suas costas. Isadora mexia na mesa improvisada, onde estavam as folhas, a tesoura, a cola. Tinha material suficiente, precisava de uma desculpa para saber se o trabalho da mãe era melhor do que o dela. Voltou à prateleira que acabara de cobrir e percebeu, em meio à estampa floral, uma bolha, além da cola empapada nas beiradas do fundo. Esticou e encolheu os dedos. “Já cansou?” Ouviu uma Lúcia encaixotada, a cabeça inteira dentro do armário, enquanto pincelava um pouco de verniz sobre a seda. “Ainda não.” Isadora respondeu colando o rosto ao da mãe e suspirou diante de uma profusão de gerânios tão vivos pelo brilho do acabamento que mais parecia um jardim em miniatura. Perfeito. Lúcia pegou as mãos da filha, espiou o excesso de cola que distorcia uma rosa na porta ao lado. Depois, sorriu. “Você não tem paciência.” “Espero que você encha todas essas prateleiras de toalhas e lençóis”. Isadora apontou para o lugar onde estivera trabalhando. “Ficou horrível”. Novo suspiro de Isadora e as duas riram. Lúcia beijou as bochechas quentes da sua menina. “Mãe?” “O que, já está com fome?” “Não. Quero conversar. Tá, sei o que você vai falar sobre isso, mas também como é que eu posso vir até aqui e não fal...” “Podemos conversar, mas o que eu acho mesmo é que você está com fome. Tem certeza de que não quer comer nada?” Lúcia sorriu. E sorriu de uma maneira que só Lúcia sabia. Todas as pessoas têm um jeito próprio de rir, chorar e até mesmo de olhar para alguém e encerrar uma discussão. Lúcia sorriu, e não era o mesmo sorriso que Isadora estava acostumada a ver quando chegava aos domingos para o almoço, munida de marido, filho e esperança da absoluta felicidade a tiracolo. Lúcia sorriu — e esse sorriso era um

sorriso de Lúcia, movimento simétrico entre os lábios superior e inferior, leve mostrar de dentes bem cuidados, que muitas vezes usara para sinalizar que aquela não era a roupa ideal para um casamento, ou que o marido não se exasperasse tanto com a paixão da filha em vagar pelo mundo — esse sorriso tinha algo de anacrônico. Pois Lúcia sorria e, apesar de múltiplos, todos continham a certeza de que a urgência de Isadora de dominar todas as fronteiras nunca se extinguiria, porém daria lugar a uma maior, a de dominar a sua própria fronteira ao lado de alguém que lhe entendesse e amasse. Nesta manhã, ao lado da filha, Lúcia sorrira como sorriu para o marido dois meses atrás quando ele dissera que precisava percorrer o campo, mas que o faria sozinho, pois o encarregado estava doente e, mesmo diante dos resmungos de “Diabos, Lúcia, não me olhe desse jeito, conheço esse campo como minha mão, deixe ser besta”, continuou sorrindo como fazia agora. Afinal, o sorriso de Lúcia não significava nada além de “você sabe o que está fazendo ou pensando, mesmo que isso seja uma grande asneira”; e, se houvesse uma equação entre o sorriso de Lúcia e a conversa que tentava evitar com Isadora, o coeficiente seria “está tudo bem, você tem o direito de se preocupar” ou, então, “pare de pensar nisso, não vou mudar de opinião” ou, até mesmo “pare de insistir de barriga vazia, porque, de barriga vazia, as pessoas não pensam”. O sol tomara conta de quase toda a peça e invadira a pequena mesa improvisada. Os rostos de Isadora e Lúcia eram feitos de fogo e de impaciência. A gata, que até então estivera escondida entre almofadas no canto do quarto, espreguiçou-se e cruzou o deserto formado pela mancha de sol sobre o parquet. Parou, lançando olhares alternados entre elas. “Ah, finalmente alguém está com fome”. Lúcia a aninhou no colo. “Não é, Colette?” Colette se enroscou no pescoço de Lúcia, ronronando alto. Mãe e filha riram. “Venha”. Lúcia deu as costas à filha. “Vou fazer um chá gelado. Temos queijos e pães. Alguns patês”. “Prefiro uma cerveja”. Na cozinha, o prazer de sentir os pés descalços sobre o piso frio que Isadora não experimentava desde adolescente. Saíra de casa para fazer faculdade e não voltara a viver como os pais que mantinham a casa da cidade na esperança que a filha voltasse a viver na terra natal. 14


A jarra de chá suava. Da garrafa de cerveja, gotas desenhavam veios pelo vidro. Além do barulho da água, esponja e louça na pia, apenas o ruído de Colette comendo a ração. “Mãe, se você preferir, ligo para o Pedro e aviso que vou ficar com você mais alguns dias”. Lúcia desligou a torneira. “Isa, eu não estou doente. O Pedro acharia que sou uma sogra terrível”. Fez uma careta. “Eu não falei isso. Só não acho boa ideia você aqui, sozinha, depois de tanto tempo”. “Eu morei durante anos nessa casa, dormi diversas vezes sozinha. Quem tem problema com isso é você”. A cerveja havia terminado e Isadora brincava com a tampa da garrafa, fazendo-a girar sobre o tampo. Em um dos rodopios, a tampa foi arremessada para longe. “Tenho, tenho, tenho um enorme problema com a sua insistência em se mudar e morar mais uma vez nessa casa.” Colette silenciou. “Insistência?”. Lúcia secou as mãos em um pano de prato e sentou ao lado da filha. “Sim. O papai não está aqui. Você não vê? Não adianta nada. Venda a casa. Compre um apartamento.” Isadora moveu um pouco a cabeça, parecia procurar onde a tampinha havia aterrissado. Lúcia não sorriu. Aquele também não era o jeito de Lúcia não sorrir, nem o mesmo rosto com que recebera a notícia, ao cair da tarde na fazenda, de que o marido fora encontrado no campo após a queda do cavalo. O mesmo não-sorriso de quando tratou de todos os detalhes do translado do corpo, ou quando usou voz firme para telefonar para parentes e conhecidos. Esse novo não-sorriso de Lúcia tampouco parecia com o rosto de pedra do velório e da reunião na fazenda para resolver as primeiras pendências legais. O nãosorriso de Lúcia não tinha a ver com compadecimento pela filha que, além de filha, era também mãe. Para Isadora, seria impossível deixar de ser a menina amada pelo pai e que correspondia a esse amor esforçando-se desde sempre para ver orgulho no sorriso do primeiro homem que amou. Esteve ao seu lado quando ela não esmoreceu as mãozinhas na ordenha da vaca ou ao puxar o balde do poço, e a viu trotar, logo que teve firmeza nas pernas, como muito adulto não teria coragem, deixando para trás a casa, as cocheiras e sendo, ao mesmo tempo, livre, criança, filha amada. O não-sorriso de Lúcia era novo. Havia, sem que ela ou Isadora soubesse, a possibilidade de que, naquele instante, estivesse surgindo em Lúcia uma nova faceta, personalidade ou qualquer engenho que forme, em constância sem pressa, a alma humana. “É claro que ele não está, Isadora. O seu pai está morto e eu não esqueço disso em nenhum momento do dia.” Lúcia se abaixou, resgatou a tampa de metal e a devolveu para Isadora. A gata arranhou a porta de acesso ao pátio. Contrapondose ao miado, feito o de uma criança recém-nascida, Isadora começou a chorar em silêncio. “Sabe quando as nuvens se juntam e formam uma figura? Um tanto de vezes fui com o pai até um lugar onde as nuvens se reuniam rente ao infinito como se fossem colinas.

Ficávamos parados, só admirando. ‘Enormes e das boas’, ele dizia depois de um tempo. Foi ali perto que o encontraram.” “Do outro lado do cerro?” “Isso. Bom, depois que você me ligou no dia do acidente, lembrei de uma história onde a personagem está praticamente no meio do nada, e, no horizonte, o que se vê são enormes colinas. Colinas como elefantes brancos”. “É bonito”. “É terrível. A personagem está doente, logo vai morrer”. Isadora ainda chorava, e os sons se misturavam. O abraço e o sussurro quase inaudível da mãe, o arranhar incessante da gata na porta, o pingo d´água caindo da torneira, a mariposa presa entre os vidros da janela da cozinha e o deslocar das nuvens, como se estivesse tudo bem, nada de errado. Tudo bem.

DANIELA LANGER é designer e escritora. Cursa o mestrado em Escrita Criativa na PUCRS e é autora do livro No inferno é sempre assim e outras histórias longe do céu (Dublinense, 2011).

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APOGIATURA “Facts become art through love, which unifies them and lifts them to a higher plane of reality” Sir Kenneth Clark. The landscape of fact in Landscape into Art. Edinburg: Pelican Books, 1956. p.31

FILIPPI FERNANDES

M

ãos se abraçam acobertando as falhas das falanges. Pele na pele, pelos: entrosação de um em muitos. Ombros encostados, firmes no toque. Duas silhuetas miram para o horizonte crepuscular em tom vermelho e amarelo. Nascem, tão lentas perecem. Nas retinas do casal: quatro janelas aos pássaros. A cabeça acompanha o ombro alheio, como se pendesse a eternidade. Ternura, complementação sentimental, desabandono. O peito arfa ao que é de inteira intimidade. O beijo que, outrora roubou a tortura das distâncias, aponta as direções e sentidos dos pontos cardeais, sintoma do calor pousando na sorte do sexo, onde agora o ocupa. Um vidro translúcido. Vemos uma miríade de cores e recortes imprecisos, com uma claridade que pende para a direta. Adentrando o espaço, há uma lareira e um senhor de bigodes e suspensórios a balançar a cadeira de molas. Volta e meia estica o elástico dos suspensórios ao som dos estalos do carvão. Os óculos, pequenos, na ponta do nariz. Balbucia qualquer coisa nos lábios murchos. Uma enfermeira entra no cômodo equilibrando a bandeja. O que lhe parece ruivo aos olhos, atrai sua atenção. Sorri, enquanto obediente engole a papa, cuidadosamente depositada na boca pela enfermeira. Na quinta colherada, tenta falar alguma coisa e, como se não conseguisse, segura o antebraço da enfermeira que pacientemente enuncia palavras de estímulo para que continue a comer. Olha-a sorrindo como um bebê diante do fantástico. Permanece assim por um bom tempo até o esvaziamento do prato e da colher bem lambida. Lá fora: dúzias de pinturas de cavalos selvagens decoram a parede que divide as várias e sucessivas estantes de livros. Nas quinas do cômodo, algumas esculturas femininas. Adormecem também os papéis amontoados sobre a escrivaninha que uma vez fizeram-se lembrar na primeira lufada da janela, aberta para limpeza. Os mesmos nomes nos envelopados, datados de pelo menos cinco décadas.

qualquer dos instrumentos para bater palmas, gritar, mexendo os ombros de um lado para o outro, no balanço do ritmo. Mas não chegava a ser uma “veneração”, daquelas de abaixar e levantar os dois braços. Vou te dizer por quê: volta e meia tratava de querer saber o que acontecia ao seu redor. Sabe-se lá por que! Talvez não agüentasse olhar por muito tempo para o rosto dos instrumentistas. Tá, então havia um rapaz bem colorido e de chapéu a alguma distância. Como não sabia dançar, quase não se mexia. Os dois em sintonia com a música, mas reagindo de maneira diferente. Se não fossem as cores, ela nem teria o notado. Pra que, não é? – É... – Não durma antes. Deixe eu chegar até a metade, pelo menos. – Mas eu não estou... – Aí, ele a vê com certa dificuldade, por ele ser baixo. Mas ela viu e ele também. Isso é o que importa. Estava muito cheio o local. Ele vai se aproximando da tal adolescente, alisando a barba, bem devagar. Em um momento, chega a ficar lado a lado com ela, de frente para as costas dela, na verdade. E numa situação como esta, pouco se pode olhar, senão encostar, não é? – ri – O senhor sabe, como é, né? Então, ele trata de ser empurrado por quem passa, de preferência em cima dela. O coitado mal consegue bater no queixo da moça! E ela usa óculos, uma armação pequena e delicada. Poderia dar uma cabeçada no queixo e fazer os óculos caírem. Poderia pisar no pé dela. Tudo para depois pedir desculpas, uma aproximação emergencial... – riram os dois. O senhor põe a mão sobre a dela. – O que foi? – pergunta a enfermeira. – Continue, por favor... – Mas o show continuou, freneticamente; e sem intervalos – ela coloca a mão dele entre as duas mãos dela – a única coisa que poderia aproximar seria a dança que ela tirava de letra. Ah, esqueci de dizer! Ele estava na companhia de alguns amigos que dançavam toscamente, girando os braços – como velhas barbadas. – Assim? – puxa a mão para movimentar os braços, com dificuldade, para frente e para trás. – Talvez – ri – algo bem mecânico, como o homem de lata do O mágico de Oz. Cheio de ferrugem – ri. – Eles só tinham barba, mesmo.

– Quer que eu conte agora uma história para dormir? Ele parece se contorcer de alegria. – Era uma vez uma menina, uma adolescente alta que adorava freqüentar os shows de jazz. Não importava qual música desde que fosse jazzístico. Bastava um barulhinho 16


– Eram velhos jovens que queriam dar uma de garotões. – ri. – Exatamente! – e volta a segurar a mão dela. – Pelo visto, o senhor não irá dormir mesmo com essa história – ri. – Acho difícil, para ser sincero. Está muito divertida! – Já tomou o remedinho? – Já! Agora continue! – Como, se o senhor não vai dormir? – Tá, vou fechar os olhos. Continue! E chegue mais perto porque não estou ouvindo direito. – ...bom, aí o que aconteceu foi que o show acabou e imediatamente a moça foi embora. O rapaz disse que iria ao banheiro, mas foi atrás dela. No caminho, encontrou-a pela última vez numa esquina próxima. Ela andava rápido, decidida. – Uma mulher autêntica! Adoro mulheres assim! – Por aí.... – ri – E ele então a perdeu de vista? – O coitado estava sem óculos, acredita? – risos – não via nada! – A moça? – Não, o rapaz barbado! – Poderia até ter confundido com uma outra se fosse durante a noite... – E era! – De onde você tirou esta história? – O senhor gosta de literatura? – Ora, basta olhar nas estantes. De qual autor você comenta? Um contemporâneo? Seria Kundera, Tanizaki ou....? – Shakespeare. – Como? Deu um beijo na testa e foi se dirigindo à porta. – Não me diga que... – Não, não foi comigo que isso aconteceu. Pode ter certeza. – Mas poderia ter acontecido?

A casa quando permanece vazia, sem quadros de cavalos ou cadeira de molas, diz também que está aberta, apesar de fechada sob o segredo da lua. Mas o sol há de nascer. E como brilha a lucidez do primeiro passo!

Sorri, sem nada dizer. No outro lado do cômodo, o retrato antigo pousado sobre a mesa revela os dois, ele na cadeira de rodas e ela ao lado, acompanhando. É possível ver em baixo da fotografia uns dizeres anotados à caneta, mas ilegíveis, na penumbra em que se encontra o quarto. Está mais escuro do que o habitual. Tivessem acendido ao menos o abajur no canto, não sofreria tanto. Da janela, é possível escutar o passar do trem com uma agilidade frenética a arrastar consigo tudo que é apagado e esquecido. É um clarão violento, quase. Daqueles que estoura por dentro e faz acontecer coisas antes impensáveis ao senso comum e ordinário dos dias. O extraordinário da realização que move o mundo para cima ou para baixo. Frente ao trem que passa, o cômodo parece mais esquecido ainda com as sombras que não param de circular pelos retratos afixados na moldura das formas concisas em formatos industriais. Pudesse ser cosida, estaria a se ajustar, imagem a imagem, num aparato fisionômico conciliador, se não fosse aquele outro rosto, aquela outra idade, aquela mesma memória que a água do mar trata de esconder na tábula rasa que nós não somos.

FILIPPI FERNANDES

é tradutor, contista, colaborador da revista Linha Dois. Escreve o blog My Drifts, My Bones. Está publicado em Veredas: Panorama do Conto Contemporâneo Brasileiro.

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VELHO

GUILHERME SCALZILLI

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olene sai de casa no final de uma tarde qualquer. Toma o coletivo e anda quase dois quilômetros até um botequim opaco no miolo do subúrbio. Os fiéis companheiros o recebem com berros e tapas nas costas. Ele pega um copo no escorredor, distribui saudações e apelidos, senta-se entornando. Implora mais. Acende um cigarro e sorve a gelada na sensação ambígua de fumar com motivo e beber sem. Por enquanto. Deseja que a noite passe tranqüila, livre de percalços temperamentais e das muitas águas que os pintassilgos não bebem. Tenta calcular um cigarro por cerveja e, durante o primeiro, acredita que vai conseguir. Mas o papo avoluma e ele perde o controle. O papo arrefece e ele maldiz o controle perdido. No arrastar das horas, os diálogos se embaralham, convergem, dispersam. Algum matuto semeia uma pauta notoriamente polêmica. No cerne da paixão notívaga, masturbam-se os intelectos de verbo fácil. Os rapazes adoram especular divergências, meios-termos, soluções revolucionárias. Amam discutir futebol, política, religião, excentricidades sexuais e outros assuntos que não se discute. O garçom amigo traz nova cerveja, fingindo não saber que aquela ainda está na metade. Entre arrotos e talagadas, Solene olha furtivamente para o relógio. O tempo lhe parece muito abstrato e ele dá de ombros. Pede outro maço e amaldiçoa o fumo, louvando a bebida. A ressaca vem da fumaça, costuma repetir. Quando recobra a noção de si mesmo, sente um arrepio do estômago às fossas lacrimais. A boca é fenda pegajosa e a garganta inexiste. Acabou o maço. Os amigos, macambúzios, esgotam as rapas moleculares da conversação. Meio peremptório demais, Solene propõe uma derradeira, desta vez a última de todas as últimas prometidas. Alguém concorda, outro talvez nem tanto. Um terceiro ri, devaneando em silêncio. Aceitam fazer o intrépido feliz: Solene é a própria resistência pelas entranhas sujas da madruga. Nas mesas, pênseis de lata balbuciam vestidos rotos, fardas imundas, camisetas de time, aventais duvidosos. Uma tropa de bancários amarrotados desembarca da compensação para chacoalhar a monotonia dos desvalidos. O céu já deixa de ser rosado para assumir um azul bem clarinho. Solene rebusca as horas na parede e inventa muitas conclusões giratórias. Amanhã, hoje, será outro dia.

Não beberá, não fumará, tentará fazer umas piscinas no clube. Ou melhor, tentará associar-se a um clube. Aulas de alongamento e meditação. Os goles dificultosos esparramam a cerveja feito caramelo. A mucosa não aceita, queimam os tubos entupidos. Um repuxo, a gosma sobe, o bravo lacrimeja e engole. Pinça uma bituca mais ou menos robusta, alisa e acende. Tosse como se fosse parir. Um dos remanescentes olha-o com certo dó, o vizinho sorri preocupado. O debate agora não pode ser prazenteiro, talvez nem mesmo legível, pois demandaria outras garrafas, e um novo maço para Solene, que já filou o quarto cigarro do amigo. Falam de crimes, da poluição, da manhã temerária. Metaboemizam. Escrutinam os aspectos cruéis desse estilo de vida. Percebe-se aí o que quer continuar e o que prefere morrer. Passam os motoqueiros arremessando jornais. Os primeiros ônibus, atordoantes, cheios de trabalho e perspectivas. Angústia. Desejo de amadurecer, desde que resolva alguma coisa. Tomar jeito. Despencar rumo a um siso irreversível. Solene precisa ir, agora. Solta uma risada rouca, arranhada lá dentro. Escarra demorado, com gosto, mas ninguém dá muita bola. Como se o relógio corresse numa espiral desvairada, a vida espatifa na sua cara rubra. Precisa de uma casa. Do escuro. Daquela cama. Seu olhar congestionado suplica. Os outros acham sensato. Há sempre um chefe nesses impasses, geralmente o do carro, que termina decidindo. Também é filho e compreende. Pagam a fortuna. Levantam-se como num convés. Cambaleiam até o veículo, que por sua vez cambaleia pelo trânsito indecente, rumo ao longínquo refúgio do herói. Seguem mudos, encolhidos no transe sonâmbulo, pigarreando às vezes para espantar o motorista. As janelas deixam entrever uma penumbra de vida bocejante. Solene divisa os vultos ainda fofos nas janelas. Despede-se dos amigos com a melancolia de quem parte para sempre. Um deles lhe deseja boa sorte. Vai precisar. Abre o portão, conquista a garagem, prostra-se à porta segurando a madeira para que ela estanque. Risca a fechadura até enfiar a chave. Abre com suavidade extrema. Cheiro de café novo. Ânsia, arrota, reprime. Cruza a sala em passos calculados, corcunda e trêmulo. Jinga um pouco, mas está mesmo é profundamente exausto. 18


A mãe vem da cozinha, impassível, escolhendo a frase mais apropriada entre as armazenadas em sua tolerância matinal. Pula para trás como se tomasse uma descarga. – Meu Deus do céu! O pai vem, bufando, preparado para aplicar uma surra. Chega, vê, perde a raiva e a cor. Medem o filho de cima a baixo, cercando-o lentamente, como se quisessem catar um bicho arredio. Olhos crispados o espremem. Desce correndo a irmã, com meia cabeleira penteada. Tampa a boca para sussurrar. – Nossa. – Puta que o pariu! – grita ao longe o irmão de pijama. Quase sóbrio, atordoado, Solene corre ao espelho do banheiro. Os cabelos brancos e ralos, as sobrancelhas hirsutas, as rugas emaranhadas, as bochechas flácidas, o ar profundo e comovido: transformou-se num septuagenário. Pensam que ele tem uma doença rara, dessas que afetam lares honestos e subitamente desgraçados. Permitem que Solene ronque por algumas horas e depois o levam a um pediatra que ainda resolve casos menores na prole. O médico não o reconhece. Mede a pressão, balança a lanterna, tranqüiliza-os e indica um geriatra. Ficam sem jeito de explicar. No outro consultório, a secretária pergunta a idade e Solene responde setenta e seis, o único número que lhe vem à mente. Não provoca espanto algum. O especialista faz um checape rápido e diz que ele parece bastante inteiro para alguém que fuma desde os dezoito anos. Manda buscar a mãe e aconselha que faça o possível para dissuadir o velho daquela estupidez. Que o encham de balas, chocolates, sucos ou chás, mas evitem o fumo na casa. E bebida, que pode acelerar o diabetes. As muitas consultas seguintes chegam aos mesmos resultados, até que o próprio Solene decide aceitar a sua nova condição. Logo percebe, e todos concordam, que a mudança inaugura um período estranhamente alvissareiro na vida em família. Uma espécie de resignação feliz. Solene aprende a ignorar as dores nas costas, os pés inchados, as cartilagens rangentes ao subir as escadas. Gosta de refletir sobre a vida, balançando na cadeira que antes era do pai. Herda também os chinelos largos de couro, as calças de linho, um roupão listrado. Lê os jornais inteiros, saboreando o cafezinho quente e doce que ele mesmo passa antes dos galos e dos cães inaugurarem as manhãs. Começa a nutrir uma afeição inédita pela alvorada. Estala beijos nas testas dos irmãos que saem para a escola, abençoando-os, conferindo lanches e casacos. Ninguém arrisca chamá-lo de avô, mas seu nome vai ganhando essa conotação. O casal, quando pode, busca distraí-lo. Conversam baixinho de coisas alheias, brigas, desastres, vícios, todo um planeta de malogros antes secretos. Desacostumado a tantos paparicos e ao súbito respeito da família, o velho saboreia cada instante de sobriedade. Chegam a lhe perguntar opiniões que ele não imagina possuir. – Pode uma coisa dessas? – dirige-lhe o pai, depois de ralhar com o irmão. – Deixa, é criança, um dia toma jeito – Solene responde, abanando a mão meio boba, sem tirar os olhos da tevê.

Isso basta para que todos fiquem um pouco mais tranqüilos. Só o contrariam quando notam as suas traquinagens, que certas manias o sabujo não perde. Às vezes ele sai do banheiro em meio a uma neblina fedorenta, ou surgem cinzas polvilhadas na louça da privada, ou desaparece uma lata de cerveja do estoque na despensa. Então quase gritam, com desespero infantil, clamando que atente para o próprio estado. Solene continua fingindo inocência. Dá-se bem com a dentadura. Saboreia o gosto de hortelã do pó fixador, a sensação de encaixe refrescante, a maciez da pronúncia. Fica minutos ruminando a pasta de comida com o bico de neném, estalando a peça nas gengivas, antes de engolir. Inventa umas brincadeiras para assustar os irmãos, e o sorriso de plástico aparece ora sobre um travesseiro, ora dentro de um prato de sopa. Ele ri até sacudir de tosse. Arrisca passeios pelas redondezas, sozinho, lento e sereno. Leva o chapéu de feltro, o pulôver bege, a camisa de algodão e o indefectível guarda-chuva. Discute amenidades com os outros anciãos da vizinhança, no parquinho, sob a mangueira. Vence um campeonato de malha, duplas mistas, com a viúva do relojoeiro. Ganha dela um beijo no rosto, que ninguém vê. Passa a freqüentar batizados, missas, enterros, páreos no Jóquei Clube. Expande os círculos de convivência, ganha respeito e falsa reputação. Convence outros velhinhos sacudidos a fundarem o primeiro Centro da Melhor Idade que aqueles arrabaldes jamais conheceram. Tem mesa de sinuca, frigobar e cabines para ouvir os discos de vinil doados pelos benemerentes. Seu discurso de inauguração esbanja referências musicais e cinematográficas, causando susto com as gírias igualmente contemporâneas. Graças à jovialidade cultural, é convidado para ministrar palestras literárias em colégios do bairro. Os amigos íntimos vencem a estranheza e passam a visitálo, trazendo filmes alugados, periódicos, guloseimas que a mãe desaprova. Poupam-no de comentários apimentados e convites impublicáveis, economizam os palavrões, mantêm‑se diplomáticos e reverentes. Desabafam, contam desventuras, solicitam pareceres. – Cadê Solene, que não aparece mais? – pergunta-lhes certa vez um remoto comparsa boêmio. – Ficou velho de repente – devolve o mais expedito. E os sabedores se entreolham, segurando as risadas cúmplices. Certo dia ele desembesta pelas escadas, aos berros, chamando a família. Quer escrever seu testamento. O pai concorda, a mãe fica emotiva, os jovens relutam em contrariálo. Trazem um senhor conhecido, tabelião aposentado, que aceita servir à farsa. Solene preenche o documento com a caneta trêmula. Deixa o toca-fitas para a irmã, a coleção de revistas para o irmão, as roupas para o orfanato e a magra poupança para os pais fazerem aquela viagem que planejam há anos. Todos agradecem, exagerando os respectivos legados. Mas, debaixo dos sorrisos tristonhos, estão de fato preparando-se para o inevitável. Não demora muito e o surpreendem murmurando às plantas. Vagueia pelos cômodos, gesticulando a ninguém, balançando as pluminhas eriçadas na careca repleta de 19


pintas. Fuma cigarros apagados ou acende-os no filtro. Interrompe as conversas com devaneios lassos, cosidos por lembranças de tempos que lhe parecem remotos, embora sejam de lupanares em pleno funcionamento e companheiros que ainda procuram emprego ou pechincham alianças de noivado. Até que Solene apanha uma gripe. A febre o derruba por semanas, depois vem a crise de asma, que vira pneumonia, que termina de secá-lo e desilude o geriatra. O hospital se nega a hospedar um velho moribundo. Sugerem que o levem para casa e esperem. Voltam de ambulância, devolvem-no à cama e principiam os telefonemas. Familiares e amigos revezam-se na vigília. Quase manhã firme, num sábado cinzento de agosto, desce alguém contando as piores. Solene expira aos oitenta e cinco anos, segundo as contas da maioria, vinte e três depois que nasceu. No seu rosto lívido insinua-se uma ponta de satisfação.

GUILHERME SCALZILLI é historiador, jornalista e escritor. Autor do romance Crisálida (Casa Amarela, 2007), publicou também volumes de contos e poemas. Mantém um blog sobre cultura, política e atualidades: guilhermescalzilli.blogspot.com.br

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OS QUE SE ARREMESSAM “Me diz aí, você é um daqueles homens que se jogam?” Angélica, “Estrelas” (Rede Globo, 2014)

GUSTAVO MELO CZEKSTER

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elo começo? Tudo bem. Já contei essa história outras vezes, posso contar quantas mais vocês quiserem. Não se preocupem, ela não vai mudar. Somente vocês vão. Antes, preciso dizer: as pessoas normais olham, mas não enxergam. Sério, é isto mesmo. Passam impunes pelos lugares, sem imaginar os segredos ocultos, sem ter a noção de que, subjacente ao tecido da cidade, como faíscas e lampejos que ainda surgem por trás de uma pele envelhecida, existem mistérios tão profundos que atravessam o tempo e, telúricos, ficam adormecidos na parte mais funda do arrepio, no estertor que dá início ao gozo. Vocês são o pior tipo de cego, o que desvia o olhar quando o impossível surge na curva da realidade, o que ignora as batidas na porta quando a loucura deseja entrar para tomar um café. Vocês não são homens; não passam de covardes, covardes eternos. Dito isto, afirmo que não adianta desviar o olhar ou tomar água. Sabem que eu falo a verdade; vocês me entendem. Podem me acusar de tudo, como acusam agora. Contudo, ninguém pode dizer que fugi da pista quando o infinito me convidou para dançar. Não, não. Começou na época da faculdade. Eu costumava pegar o ônibus debaixo do viaduto da Conceição, em Porto Alegre. Era uma manhã de chuva e, em meio aos pingos que confundiam pessoas, carros e águas, li a frase em um pilar do viaduto: “Alguns atropelamentos são intencionais”. Ela não estava escrita, mas esculpida, rasgada, como se um ser desesperado tivesse usado um prego para inscrevê-la e, assim, burlar a memória própria das pedras. Vocês devem ter procurado a frase e não a encontrado. Acreditem, ainda está lá. Talvez a tenham ocultado atrás de um cartaz, talvez tenham colocado tinta, argamassa ou cimento sobre ela, mas, por baixo, as palavras permanecem assombrando o pilar, vigiando as pessoas que nem desconfiam da sua existência. Vocês dizem que inventei a frase, mas acham mesmo que eu seria capaz de criar algo tão original? Não sou tão esperto assim. Prestem atenção nas palavras: “alguns atropelamentos”. Não são todos, são alguns. Quem escreveu sabia: a maioria deles são acidentais, mas nem todos. O motorista pode atropelar de propósito. Seria tão simples ver o desafeto atravessando a rua, deixar o pé pressionar o acelerador, escutar o corpo frágil desmontar diante do ataque de quilos de ferro em fúria e, depois, o teatro, o ranger dos pneus, o sair do veículo com as mãos na cabeça, “ai, meu Deus, o que eu fiz?”, a tentativa de ajudar a vítima. Vocês sabem, ora, quem nunca teve a vontade

de atropelar alguém que jogue a primeira pedra. Ter a noção de que existem pessoas por aí atropelando outras seria até normal, ainda mais no meio desse mundo psicopata em que vivemos. No entanto, o homem ou mulher que escreveu a frase estava caminhando, não dentro de um veículo. Estava na calçada quando pegou um prego, inscreveu as letras no pilar de concreto e, em seguida, correu para beijar o carro inocente, que jamais imaginou acabar o dia tornando-se um assassino. Os atropelamentos não eram intencionais por causa dos motoristas, e sim das vítimas. Entender esta ideia virou meu mundo de cabeça para baixo. É fácil hoje me chamarem de louco, mas esquecem da extraordinária investigação que realizei. Graças à frase escondida embaixo de um viaduto sujo, iniciei pesquisas procurando a verdade sobre as pessoas que corriam na direção dos carros. Vocês imaginam quantas entrevistas realizei? Sabem quantas reportagens eu li, sobre quantos livros me debrucei procurando o mais leve indício? Sabem das noites em que não dormi, dos dias em que estive perto de desistir, do meu isolamento, da angústia? Vocês não sabem de nada e, por isto, me julgam de acordo com a sua visão míope da realidade. No meu íntimo, sacrifiquei a vida por todos. Fosse esse um mundo justo, e vocês me chamariam de Jesus. Ou me dariam uma medalha. Demorei, mas achei a resposta. Não vou entrar em detalhes enfadonhos, já desenrolei muitas vezes durante esse inquérito o fio quase invisível do novelo das histórias. O importante é saber que, com persistência e desvario, encontrei uma seita que se esgueira pelas ruas e becos do mundo, formada por homens e mulheres quase invisíveis de tão anônimos. Durante o dia, são pessoas normais, engenheiros, professores, médicos, pedreiros, e, à noite, dedicam-se à atividade que lhes dá sentido, a única capaz de fazer a vida ribombar pelo seu corpo: a arte de se arremessar. Não culpo vocês por serem tão bobos e permanecerem sorrindo enquanto revelo minhas descobertas. Por trás das expressões de ironia, percebo o verme da dúvida corroendo os espíritos: e se eu estiver certo? Logo saberemos, não é? Quando falo em arremesso, quero dizer o sentido real, não essa fantasia de se impulsionar de algum lugar para outro. É a sensação mais pura que se pode experimentar: não ter corpo, fazer parte de algo maior, do universo ou de Deus, que seja. De uma forma ou outra, todo mundo se arremessa: as pessoas se jogam em 21


relações esperando que o ente amado segure a corda no outro lado do penhasco, em empregos que não gostam para garantir o sustento, em vidas medíocres para perpetuarem suas famílias na Terra. Quando falo em se arremessar, estou falando sobre o correr e se jogar, impulsionar-se, perder os limites e, por breves, inebriantes segundos, tornar-se eterno. Após este momento de êxtase, a dura realidade vai aparecer, seja na forma de chão, de parede ou de outro objeto concreto, e a dor será inevitável, uma punição aplicada nos que tentaram ir além. Falo da seita – na falta de um nome oficial, chamo de Seita dos Arremessantes – e dos seus códigos secretos, de homens e mulheres flertando com a gravidade e desafiando os próprios corpos, do Evangelho nunca escrito e que todos decoraram, dos olhares e palavras trocados que revelam a sua existência. Engana-se quem pensa que o arremesso é sinônimo de morte. O grande objetivo é chegar perto e não morrer, apesar de acidentes acontecerem. Quanto mais alguém se aproximar do Último Arremesso (a passagem para o mundo dos mortos), mais intensa será a sensação. E é viciante. Depois que a pessoa entende o arremesso, não consegue mais parar. Ela irá se jogar em buracos, em poços, em cachoeiras, em bungee jumps, de aviões. Ou podem ser pequenos pulos. Às vezes alguns atropelamentos são intencionais, mas existem abraços que também podem ser maneiras de se impulsionar em outra pessoa. Vocês leram o inquérito e as anotações em minha casa, então sabem como surgiu a Seita dos Arremessantes. Tudo começou com Ícaro e o seu desafio de subir até o sol para se jogar, e depois passou para os homens que criaram formas de se alçarem às alturas, balões, zepelins, aviões. Achavam que eles ambicionavam voar e, em segredo, os pioneiros sonhavam com a queda. Sabem do acontecido na corrida espacial, quando descobriram a impossibilidade de se jogar da Lua, e o dano causado nos astronautas, fenômeno que hoje as pessoas chamam de depressão pós-visita ao espaço. Sabem da fantástica história de Verna Vulovic, que realizou o maior arremesso de todos os tempos, quando pulou de um avião em chamas e caiu da altura de 33 mil pés – e sobreviveu. De tanto investigar, um dia acabei experimentando, e segui as regras não-escritas dos meus companheiros. Viajei com os amigos, procurei um lugar inocente (quem nunca se jogou em um lago, acompanhando a curva da cachoeira?) e, então, aconteceu meu Primeiro Arremesso. Esta foi a origem do texto encontrado no meu apartamento e que, por viver a sensação e a escrever logo após, sou capaz de dizer de cor:

a passo me enchendo de indecência, de alegria, e joguei-me no abismo, sabendo que a gravidade me puxaria para baixo para o inferno de voltar a ser mais um dos escravos da terra, deste planeta que agora eu aprendia a repudiar, ele e suas certezas, tão incongruentes com a liberdade de entregar a sua alma para o divino a nos rodear mesmo quando o negamos. Não preciso negar três vezes a minha essência, não sou mais um homem, sou a antecipação do grito. Atravessei a água do lago, lança de carne e nervos e sangue. No espaço instável separando o pulo da queda, situei ali a felicidade. Jamais me senti tão vivo como no momento em que entreguei o corpo para a vertigem. Retornei à superfície, mas a minha certeza de que deveria manter o corpo subjugado a terra enfraquecera. Não podia continuar existindo em um mundo sem o arremesso, sem a indecisão de se saber preso em movimentos sincopados, sem a angústia adocicada de se impulsionar, de atravessar o mundo como se fosse uma flecha de raiva e de explosão.” Palavras são ervas daninhas capazes de derrubarem a mais resistente das sanidades. Mostrei para os iniciados este texto e ele acabou se espalhando. Acho até que o colocaram na internet. Logo tentaram o arremesso e culparam o texto pelo fracasso; alguns morreram, e minhas palavras viraram sempre o mesmo bilhete de suicídio. É da natureza humana sempre culpar o outro, mas sou inocente. Vocês não podem me prender pelo o que não fiz. Em nenhum momento convenço as pessoas a se matarem. Palavras podem ser os pingos de água que transbordam copos, mas eles estavam cheios antes do meu surgimento. O texto fala da liberdade, e pode ser uma metáfora ou uma analogia. Ele é inocente, ainda que o seu autor possa não ser. Chamem-me de excêntrico ou de maluco, não de serial killer. Se eu fosse um assassino, estaria feliz por estar preso, pois hoje li no jornal a íntegra do texto. Quantas pessoas lerão o jornal? Centenas? Milhares? Existe um motivo para eu estar aqui. Talvez o meu texto também seja um arremesso; talvez todas as histórias, em sua essência, sejam criminosas. Não sei. Não sou um literato. Sou somente um homem que se arremessa. A pedra que vocês jogaram na vidraça. Meu depoimento está mexendo com a cabeça de vocês. Neste exato momento, palavras correm como serpentes pela corrente sanguínea de vocês, procurando, na parte mais ancestral do DNA, com a paciência do fio de água procurando um lugar por onde possa escapar, o resquício capaz de fazê-los entender o impulso, o arremesso, o jogar-se para o mundo. Por isto eu digo, a julgar pelo desconforto que vocês experimentam nas cadeiras: não estão com vontade de chegar perto de Deus, como eu e tantos já estivemos? Não resistam, meus amigos. Cedam ao desejo e abram a janela. São doze andares até o chão. Um pequeno passo para o homem também pode ser um salto para dentro da eternidade. Agora, pulem.

“Nunca soube como foi que surgiu esse desejo violento, se ele apareceu ou sempre esteve ali, mortiço, cobra no movimento congelado prestes a cravar os dentes na carne tenra e sugar-me a vida enquanto despeja o veneno em cálices ácidos, cheios de doses de morte em transparência. O vento roçou meu cabelo e arrepiou o corpo, o mundo pequeno diante da altura, a catarata ao lado gritando suas dores líquidas, enquanto eu sentia a revelação cercando o universo em silêncio urgente, as árvores estupidificadas diante do vento que estraçalhava folhas, os pássaros quedando-se na sua invisibilidade, e cada célula do meu corpo urrou, na epifania de quem entende tudo, este maravilhoso sentido de ser algo e não mais um silêncio desprovido de razão. Corri na direção do nada, passo

GUSTAVO MELO CZEKSTER

é advogado, mestre em Literatura Comparada pela UFRGS e escritor. Em 2011, lançou o livro O homem despedaçado pela editora Dublinense.

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RUÍDOS

MÁXIMO LUSTOSA

Cena 1

Preparou a mesa para o café, mas só comeu uma carambola e duas acerolas. Desfez a mesa e foi tomar um banho. Trocou de roupa. Saiu. Desde os 25, era hipertenso. Começou a caminhar, pois não podia fazer exercícios pesados. Aos 30, cortou a bebida e algumas amizades, algumas risadas e algum amor – o médico falou que ele perdera 5 anos. Aos 37, veio o diabetes. 72 anos... Nos anos 40, chegaram a calvície, problemas nas articulações, depressão - tratada com livros de auto-ajuda e algum religiosismo - e outras doenças crônicas. A partir dos 50, o sexo virou uma ocasião festiva e voltou a ser raro e pago. Depois de um tempo, recusou-se a enterrar os próximos. 72 anos e ainda não entendia a sua capacidade de insistir... Pegou o jornal e abriu a porta do escritório. O contador chegaria em meia hora, mas já sabia que estava tudo bem. Folheou sem interesse o jornal. Não havia nada. Preparou-se para as tragédias tão bem que não conseguia mais percebê-las. Abriu o livro estúpido ao qual se dedicava nas últimas semanas e começou a trabalhar.

O ruído lembra um marulhar. Eu acordei com o calor que aquecia a parede do meu quarto. Ana já estava acordada e mantinha-se quieta tentando não me acordar e com medo de chamar a atenção. Sílvia era feia, pobre, grosseira e negra. Vivia com Falco, um homem mais jovem, bonito e forte, sem formação e negro. Falco vivia às custas de Sílvia e, como se fosse pouco, obrigava-a a suportar suas taras sexuais, como surras homéricas, e, a última, transar com o irmão demente. A história me chegou completa pela manhã, quando contemplei a casa incendiada. O telhado caído... E o silêncio. Cansada da humilhação, Sílvia procurou o movimento e fez as reclamações e as solicitações... Na noite seguinte, Falco recebeu uma visita do movimento. Apanhou por mais de 6 horas. Teve os ossos quebrados com pedaços de pernas de três. Sua força não resistiu ao triturador e faleceu. Alguns dias depois, Sílvia passou a gritar na rua a desdita sofrida, a perda do homem amado. Sílvia culpava o movimento por sua solidão e, em voz alta, avisava as providências. Nessa noite, ela também recebeu a visita do movimento e foi encontrar seu amado pelo mesmo meio. A casa de tijolos nus, pobre e com dois cômodos queimou a noite toda. A perna de três ficou na entrada dando notícias e avisos. Duas semanas depois, a casa dentro da favela estava tomada e vendia sacolés de diversos sabores.

Cena 2 Alcimar acordou por volta das 8 horas. Sentou. Olhou, mas não tomou os comprimidos que ficavam de prontidão na cabeceira da cama. Respirou fundo, calçou a sandália e levantou. 72 anos. Quem diria? Tudo o que queria na juventude era uns 60 anos de saúde. Não queria mais longevidade que isso. Não queria terminar associado aos vampiros de sangue velho. 72 anos... É muito tempo. Ninguém precisa viver tanto.

MÁXIMO LUSTOSA

é professor de português e espanhol e Mestre em Literatura Hispano-americana. Há oito anos, mantém o blog Ideias à deriva. Publicará, nos próximos meses, o seu primeiro livro de contos Céu Baixo.

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LUNAR PARK PATRICK BROCK

– T

e encontrei no chão, pai, e pensei que podia te reviver. Liguei para a ambulância, demorou vinte minutos, tempo demais pro meu desespero. Suas pupilas estavam congeladas. O sangue acumulava nas costas. Te estapeei, dei socos no seu peito. Por que você não se cuidou? Queria que eu cuidasse de você? Como é que eu ia conseguir fazer isso? Eu não consigo nem pagar minhas multas de trânsito! Eu apenas podia te amar em silêncio, pois essas coisas não se dizem entre homens. Mas por que logo naquela época? Eu tinha acabado de ser demitido, estava no meio de um inferno astral supremo, com gosto de sentimento agridoce, de lágrima contida e raiva. Depois do fato, veio o ritual. Pediram que escolhesse uma camisa para você vestir no caixão, mas minha mão deslizou pelo tecido branco e desabei. Eu não estava sentindo pena de mim mesmo, nem de você, só sentia um gosto estranho. Foi quando descobri que a tristeza tem sabor. Já se passaram dois anos, mas ainda sinto a língua travada quando deito a cabeça no travesseiro e lembro de tudo até perder o sono. A memória está ótima, cada vez mais afiada esses dias. Ela me lembra de tudo que eu gostaria de esquecer. Agora esse Sol esquentando a grama, todas as pedras iguais com nomes, números e dedicatórias prontas, jazigos onde depositamos quem amamos porque não podemos mais tê-los entre nós. Os vermes estão me comendo também, por isso estou aqui agora, falando com o nada, tentando sentir alguma coisa, mas tudo que passa pelo meu sangue é uma dor de ferida mal curada, de pus sentimental. Ontem abri uma gaveta empoeirada e achei teus óculos e teu relógio ainda funcionando. Caí no chão, mas eu não conseguia chorar, só aquela torrente de lembranças apagando tudo, as obrigações cotidianas, a louça para lavar, o fedor do meu corpo e o cheiro da sua colônia. As coisas todas ficaram aí, inclusive teu creme de barbear que usei até acabar, a casa onde moramos, o amor que vivemos entre palavras cúmplices e tão difíceis de dizer, como seu espanto quando disse que te amava. É por isso que eu vim aqui agora, por isso que não consigo esquecer, por isso que a saudade volta em ondas quando acho que vou enlouquecer com o fluxo das coisas e sinto a obrigação de fazer todas essas perguntas, mesmo que você não possa mais responder.

Dizendo isso, ele virou as costas e foi pegar o carro no estacionamento. Um pássaro defecou na grama. Ligaram os regadores. As flores continuaram apodrecendo. A vida prosseguiu com um sentimento confinado de dor.

PATRICK BROCK é jornalista, tradutor e mestre em literatura pela CUNY. Vive em Nova York, de onde escreve para jornais e sites brasileiros.

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UM DIA QUALQUER PAULO GUILBAUD

O

s dias são pesados hoje em dia. Não lembro de ninguém, da época da minha infância, pobre ou rico (e essas diferenças sempre foram muito marcadas na minha cidade), trabalhar tanto como as pessoas trabalham agora. Como eu mesmo trabalho. O tempo de que a minha geração dispõe para a realização pessoal, ou para cuidar dos filhos, é muito diminuto quando comparado ao tempo livre de que os nossos pais dispunham. Lembro das longas horas em que podia dispor de pai e de mãe, mesmo durante a semana, e, comparando com a atualidade, vejo que somos uns mendigos do tempo. Eu estava, em um dia qualquer, desses quando os pequenos problemas desimportantes distorcem a própria noção de importância, lavando louça na pia da cozinha quando, da sala, minha filha berrou: “Socorro, o monstro papaizudo veio me pegar!”. E assim, pelos desvãos, eis que a importância volta, discretamente, a se impor. É claro que abandonei as tarefas domésticas irritantes e iniciei uma feroz perseguição pela casa, atrás de uma criança necessitando de atenção e de uns agarros paternos, embora ela o manifestasse gritando como um pobre animalzinho em fuga, usando todos os meios que a sua imaginação e as suas curtas pernas lhe permitem para escapar ao trágico destino de ser devorada por uma mitológica criatura do porte de um monstro papaizudo. Quando finalmente encurralei a minha pequena presa, recompensei-me com um enraivecido ataque de sentimentalidade descarada na forma de beijos e abraços. Após nosso acesso de risos, essa expressão singular da felicidade, sentei-me no chão ao seu lado, para conversarmos. Eu sempre me impressionei com a incapacidade histérica que alguns adultos têm de escutar as crianças. Toda criança tem um universo lírico dentro de si. Para ouvir, basta descalçar um pouco as ferraduras, sentar-se ao lado da criança, de preferência no chão, ou em uma porta, e prestar um pouco de atenção. Já foi dito mais de uma vez que a verdade está no vinho; ou que só as crianças e os loucos dizem a verdade. Mesmo não acreditando nesse conceito surrado e oitocentista de “verdade”, após o nascimento de minha filha, fico um pouco com Saint-Exupéry, para quem o convívio com os adultos não melhorou em nada a sua opinião sobre eles. Dou mais crédito a certas crianças e a certos bêbados do que a muitos adultos. Enfim, sentei-

me para realizar a tarefa agradável de ouvir minha filha. Ouvir o que ela tem a dizer sobre o mundo e quais as suas pequenas reclamações e sugestões sobre a vida. E são essas conversas que me dão alguma esperança no futuro. Em certo momento, ela me perguntou, da maneira direta das crianças, “Papai, quem eram os Rabinhos?”. A pergunta transportou-me para a minha infância, no interior do Rio Grande do Sul. Meu avô tinha uma chácara, a qual eu visitava nas minhas férias escolares. Eu era muito pequeno, lembro apenas vagamente da chácara, assim como lembro apenas vagamente do meu avô, que morreu mais ou menos por essa época. Lembro do chiqueiro, com uns dez porcos imensos (talvez devido ao fato de eu ser mínimo). Havia uma horta com várias melancias, que eu, meus irmãos e meus primos devorávamos avidamente. Recebíamos a instrução, na verdade não muito agradável, de dar as cascas das frutas para os porcos, o que cumpríamos com um misto de curiosidade infantil, de ver aqueles animais enormes devorando as grossas cascas, e nojo (nossa geração já era de meninos de cidade grande, diferentemente dos nossos pais). Quando a família inteira se reunia, uma mesa grande era improvisada do lado de fora, e comíamos todos ao ar livre. O espaço interno da casa era diminuto, e dificilmente caberiam grandes quantidades de tios e de crianças. Além disso, do lado de dentro, todas as refeições atraíam moscas em proporções de praga bíblica. Porém, o que mais me chamava a atenção naquele espaço era, sem dúvida, o estábulo. Não era mais do que uma área coberta, mal aparedada e subdividida em baias, nas quais seis ou sete vaquinhas passavam o dia. Havia dez dessas baias, cinco em cada lado, com as manjedouras do lado das respectivas paredes. Então, os animais comiam virados para a parede, e, do ponto de vista da entrada no estábulo, formava-se um corredor, no qual só via, antes de entrar, a parte traseira dos animais. Algumas delas eram ainda bem novas, uns bezerrinhos ainda, e da porta eu via seis ou sete rabos balançando incessantemente de um lado para o outro, para espantar as moscas. E daí que surgiu em minha mente infantil um apelido: chamei-os de “rabinhos”. Minha vó sempre amou essa história. Ela me foi contada por ela dezenas de vezes ao longo da vida. E agora, pelo visto, minha mãe a havia contado para minha filha. A história da minha primeira metonímia. 25


Justo para a minha filha, que, por sua vez, é a minha melhor parte, a minha derradeira e mais perfeita metonímia. Quando contei, por telefone, à minha vó que eu teria uma menina, ela ficou muito feliz e me disse, “espero que ela seja boazinha como tu eras”. Isso, evidentemente, muito me acalentou o coração, mesmo não sendo verdade. Eu sempre fui uma desgraça. Mas a minha vó, como é comum entre avozinhas, era uma mistura de doce e mel. Como eu lamento que ela não tenha conhecido minha filha. Ela morreu pouco antes dela nascer.

PAULO GUILBAUD

é coordenador editorial, tradutor e fotógrafo de ocasião em horas muito vagas. “Um dia qualquer” é seu primeiro conto publicado.

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A ENCENAÇÃO DAS LARANJAS RAFAEL SPERLING

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elco e Piló resolveram ir à feira roubar laranja. Combinaram de encenar a morte de Piló, que distrairia a multidão enquanto Telco roubasse as

dizendo que acredita no que ele diz, com medo de enfrentá‑lo. Então o filho do vendedor, que é mais forte do que Telco e Piló juntos, e mais alto do que Telco e Piló um em cima da cabeça do outro, encena que acredita neles. Mas pede para que Telco abra a sua bolsa, mostrando que eles nada tem a ver com o sumiço das laranjas. Telco e Piló encenam um riso forçado e dão tapinhas no ombro do vendedor, dizendo que o filho dele é muito temperamental. O filho do vendedor começa a ficar nervoso e então Piló encena o abraçando e dizendo que está tudo bem, que eram apenas algumas laranjas. O filho do vendedor, com medo de parecer idiota para o resto das pessoas da feira, encena que está tudo bem e que está gostando do abraço de Piló. Mas aí, aparecem mais 15 vendedores dizendo que suas frutas também sumiram. Eles não encenam, e dizem acreditar que Telco e Piló são os responsáveis pelo sumiço de todas as frutas. Telco não encena e pede para que todos fiquem calmos, enquanto Piló não encena e diz que está se sentindo mal. Piló não encena e desmaia de nervosismo. Telco não encena e grita que eles estão matando Piló. Mas os vendedores dizem não acreditar em Telco, pois, pouco antes, Piló estava encenando que morria, e, portanto, não havia porque acreditar nele agora. Telco se desespera e grita que se eles continuarem a acusálos, Piló irá morrer. É aí que então Piló cai duro no chão. Todos se assustam. Telco examina Piló. Ele não encena e grita, com lágrimas nos olhos, que eles mataram o seu amigo. Os vendedores encenam e dizem que eles nada tem a ver com o acontecido. Telco pede para que eles o ajudem a levar Piló a um hospital, mas os vendedores encenam que estão com pressa e dizem que não podem ajudar. Telco, por ser mais fraco e em menor número que os vendedores, encena dizendo que acredita no que eles dizem, com medo de enfrentálos e que descubram que ele realmente havia roubado as laranjas.

laranjas. Chegando na feira, Piló inicia a encenação dando um grito agudo e levando as mãos ao peito, enquanto cambaleia derrubando algumas barracas. A multidão, sensibilizada, resolve acudir Piló. Enquanto a encenação ocorre, Telco caminha até a barraca das laranjas e coloca várias dentro de sua bolsa. Como a encenação está sendo um sucesso, Telco resolve roubar mais algumas frutas, afinal de contas, já tem gente até ligando para o hospital. Estão todos entretidos com a morte encenada por Piló. Não é todo dia que morre alguém na feira. Quando sua bolsa começa a ficar pesada demais, Telco resolve dar por terminado o trabalho, e caminha em direção a Piló. Chegando perto de Piló, Telco lhe diz que já não precisa mais encenar, que ele deve terminar a encenação da maneira previamente combinada. Mas Piló não responde e Telco entra em pânico, pois percebe que Piló está realmente morto. Telco chora alto e escandalosamente. Acabara de perder seu parceiro de encenação. Mas logo em seguida, Piló se levanta e diz que estava apenas encenando. Telco encena que estava apenas encenando também, para que as pessoas em volta acreditassem mais ainda na encenação de Piló. Telco encena uma risada forçada e se vira para as pessoas da feira dizendo que está tudo bem, que Piló estava só brincando. As pessoas da feira, temendo parecerem idiotas por acreditarem na encenação ridícula de Piló, encenam dizendo que estão felizes por Piló não estar morto. Telco e Piló começam a caminhar para longe da multidão quando o vendedor da barraca de laranjas os chama. O vendedor encena que está achando estranho que todas as laranjas de sua barraca sumiram depois da encenação da suposta morte de Piló. Telco encena rindo e dizendo que não vê nenhuma ligação entre os dois acontecimentos. O vendedor encena que acredita na encenação de Telco e os convida a procurar as laranjas com ele. Telco encena que estão com pressa e que eles não poderão o ajudar. O vendedor, por ser mais fraco e baixo que Telco, encena

(...) 27


Duas horas mais tarde, em casa, tomando suco de laranja: – Me assustou, realmente pensei que você tivesse morrido ali. – Eu também. Às vezes é difícil dizer se algo foi encenado ou não. O limite da encenação ou não-encenação está nos olhos de quem vê, e não na mente de quem encena.

RAFAEL SPERLING nasceu em 1985 no Rio de Janeiro. Compositor e produtor musical, em 2011 lança seu primeiro livro, Festa na usina nuclear (Oito e Meio). Suas histórias foram publicadas em sites, revistas e jornais, como Machado de Assis Magazine, Lado7, Rascunho e Cândido, e algumas delas foram traduzidas para o inglês, espanhol, francês, alemão, basco e catalão. Em 2014 lança um novo livro de contos, Um homem burro morreu (Oito e Meio).

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BALAS DE TAMARINDO RAPHAEL MONTES Casar com Douglas foi um ato de desespero. Ou de redenção, não sei. Eu já estava fazendo trinta anos, o senhor entende? E chega uma idade em que a gente precisa dar um rumo pra vida. As pessoas são cruéis. As pessoas comentam. Lucia vai morrer sem ninguém. Lucia é independente. Cadê seu namorado que conhecemos na última festa, querida? Difícil suportar. Conheci e namorei Douglas em um mês. Eu não gostava dele. Ele chupava uma bala de tamarindo fedida cujo cheiro impregnava na língua. Odeio tamarindo. Mas ele tinha um monte delas no bolso. E sempre as chupava. Chupava e me oferecia. Nunca aceitei. Também nunca aceitei seus carinhos, presentes, perguntas ou sorrisos. Eu fazia cara feia e reclamava de tudo. Jamais fingia orgasmo. Em minha defesa, devo dizer que nunca fui falsa com ele. Mas Douglas sorria. Sorria e dizia gostar daquele meu jeito. Você é muito sincera, Lucia, mas amo você assim. Vai entender. Amava mesmo. Nunca fui falsa comigo também. E isso me consola. Sabia que não seria feliz. Mas estabilidade é mais importante do que felicidade, não acha? Aceitar a aliança de Douglas foi como assinar um tratado de monotonia. Nos casamos e fomos morar em Copacabana. Ele acordava às seis e saía para comprar jornal. Caminhava no calçadão e comprava balas de tamarindo numa mendiga da praça Inhangá. Jogava na loteria com a mesma sequência numérica (as datas de aniversário da mãe e do pai – que Deus os tenha). Voltava com um livro velho comprado no sebo lá perto de casa. Passava o café, resfatelava-se na poltrona, fazia palavras cruzadas, chupava as malditas balinhas. Quarenta anos se passaram assim, sem eu me dar conta. No início, era mais fácil. Ele trabalhava no Banco do Brasil e só voltava de noite. Eu podia ficar em casa e ver tevê sem ouvir o tilintar irritante da bala de tamarindo batendo em seus dentes, sendo revolvida pela língua, prendendo-se no céu da boca. Com a aposentadoria, todos os dias eram como o domingo. A rotina matinal se repetia de tarde e de noite. E a casa se entupia de jornais, bilhetes de loteria, livros velhos e balas de tamarindo. Um cheiro agridoce e poeirento dominava os móveis. Mas eu estava disposta a viver assim. Tinha aceitado minha sina. Aos setenta anos, a gente já não quer mais mudar as coisas. Temos o consolo de que falta pouco para acabar. Basta ter paciência.

Douglas me surpreendeu uma única vez na vida. Quando acordei, ele não estava na poltrona, fazendo palavras cruzadas e chupando balas de tamarindo. Em vez disso, enchia uma mala velha com mudas de roupa e alguns documentos. Assustou-se quando me viu acordada, mastigou uma bala de tamarindo e murmurou: – Vou embora. Pensei que estivesse sonhando. Douglas não se deteve e passou o zíper na mala quase vazia. – Conheceu alguma garota novinha? – perguntei. Não estava com ciúmes, só queria entender. – Não conheci ninguém. Apenas não quero mais te fazer infeliz. Depois de quarenta anos?, eu quis perguntar. Levantei-me da cama e fui ao banheiro lavar o rosto. Nada fazia sentido. Quando voltei, a mala já estava na soleira da porta. – Não vai levar seus livros e jornais velhos? – Se puder empacotá-los, busco depois. – E as balas de tamarindo? – Pode jogar fora. – Vai deixar o apartamento para mim? – Não seria capaz de tirá-lo de você. Pode ficar com o Fusca também. Jogou o molho de chaves sobre a poltrona em que se sentara por quarenta anos. – Vai ficar onde? – Na casa de algum amigo. – Você não tem amigos. Ele sorriu, embaraçado, mas logo retrucou: – Ficarei em algum hotel então. Copacabana é cheio deles. A velhice deve estar me deixando um tanto lerda. Demorei a concluir o óbvio. Pedi um instante a ele e fui à cozinha. O jornal do dia estava sobre a bancada da pia, como sempre. 29


Alguns hábitos não se perdem. Confirmei os números da loteria. As datas de nascimento dos pais dele. Vinte milhões acumulados. Peguei o revólver velho guardado na cômoda do nosso quarto e dei três tiros no peito de Douglas. Quando o sangue saiu, cheirava a tamarindo. Ao revolver seus bolsos, encontrei o bilhete premiado. Rasguei-o antes da polícia chegar. Não queria o dinheiro. Os jornais me chamaram de velha maluca. Me colocaram em prisão preventiva como se eu pretendesse fugir para algum lugar. Não quero fugir. Sou paciente. Logo que cheguei na cadeia, fiz duas amigas. São meninas moças, simpáticas, mas lésbicas. Gostam de mim e me trazem presentes. Parece ironia: essa semana, me ofereceram balas de tamarindo. Numa provocação a mim mesma, aceitei provar. E quer saber? Gostei.

RAPHAEL MONTES nasceu em 1990, no Rio de Janeiro. Advogado e escritor, publicou contos em diversas antologias de mistério, na Playboy e na prestigiada revista americana Ellery Queen’s Mystery Magazine. Suicidas, seu romance de estreia, foi finalista de diversos prêmios, entre os quais o prêmio São Paulo de Literatura 2013, o Machado de Assis 2012 (concedido pela Biblioteca Nacional) e o Benvirá de Literatura 2010. Dias Perfeitos, seu segundo suspense, foi publicado pela Companhia das Letras em 2014.

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KROV U ROT

REGINALDO PUJOL FILHO

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angue na boca era o terceiro livro dele, terceiro livro que pagava para publicar. De modo que passou a dever também pra avó materna, Eulália. Mas acreditava, entretanto, que a ousadia e agressividade desse projeto – a pormenordetalhizada narração da primeira vez (baseada em fatos reais) do protagonista (que tinha o seu nome) com sua namorada (que tinha o nome da sua ex-namorada), bêbada, em que o narrador só descobre que a jovem está menstruada no momento em que faz sexo oral nela; ou as cáusticas críticas aos seus professores (mantendo os nomes) críticos literários; e o recurso narrativo de fazer acontecer, literalmente, na realidade do texto, os impulsos agressivos que surgem como lapsos na cabeça de todos frente a situações negativas1, como arrancar cabeças, partir ao meio, mandar longe –, acreditava, pois, que todo este empreendimento literário valeria os bingos a menos da avó e acabaria com a indiferença em relação ao nome Renê Schwartz. Os 18 amigos e parentes, mais o primeiro desconhecido a aparecer num lançamento seu (o sujeito havia anotado erroneamente a data de um outro lançamento, pediu desculpas, deu os parabéns e foi embora), e o silêncio mundial em relação a Sangue na boca, invalidaram as certezas. Até que chegou na sua caixa de e-mails uma mensagem de um destinatário cujo endereço terminava em .com.ua. Alguém queria traduzir Sangue na boca para o ucraniano. Por quê? Por que não? As tratativas todas correram por e-mail. Questionado, o Google confirmou a existência da editora, o cheque do adiantamento caiu na conta, Dimitriev (o dono do endereço .com.ua) enviava pdfs com as traduções, Renê ria do seu texto incompreensível para si mesmo, admirou seu nome em uma sanguinolenta capa em ucraniano, mais um cheque caiu na conta, assim poderia pagar a avó – ou fazer um livro novo –, e outro cheque caiu – pagar avó & fazer um livro novo –, e mais um cheque – pagara a avó, o pai (pelo primeiro livro) & fazer um livro novo – e mais um cheque e outro e tudo bem e, então, tudo ótimo: veio o convite: Renê você está atualmente sendo o maior estrela dos livros aqui. Você é um convidado especial de Feira de Livro do Krakhovka. O cachê, a ideia de sucesso, a viagem-com-tudo-pago, mais uma vez, por que não? E agora faz menos 17 graus na rua. Mesmo assim, Renê sua dentro do auditório de Krakhovka. Dimitriev e mais dois ucranianos, pelo tom de voz empolgados, já falaram para a

plateia sobre ele2. Olha o espaço lotado e uma coisa que não consegue entender, além do idioma local, é porque há tantos adolescentes no público (seu livro é mais maduro que isso), porque tantos de preto, alguns com capas; não consegue compreender exatamente o que se passa. Da mesma forma que, há instantes, não entendeu a primeira pergunta da assistência (mesmo, ou em especial, depois que Dimitriev traduziu para ele): Há muitos autores de livros de vampiros em Brasil? Em português, simultaneamente vertido para ucraniano por seu tradutor, respondeu que não sabia, é um gênero pouco valorizado literariamente, e notou o virar rápido de rosto de Dimitriev, as perguntas franzidas em sua testa – que bem poderia se dever à dificuldade da tradução simultânea – , assim como o burburinho adolescente com a sua resposta. Talvez já faça menos 18 graus na rua. E agora ele treme. Porque acaba de ouvir a segunda pergunta: A sede de sangue do vampiro Renê é um metáfora do ansiosismo do jovem querendo estarem sempre a chuparem experiências novas, traduz Dimitriev. Renê não entenderia nem mesmo com o melhor tradutor do mundo, nem que tivesse nascido em Kiev, nem que estivesse bebendo vodka no lugar de água, e responde que é uma interessante leitura e que todas as leituras são válidas. Vem mais uma pergunta, Haverá continuamento da saga? E mais outra: O amor verdadoso ter poder de humanizar o vampiro Renê? Com longas pausas, inteligentes respirações e olhares no horizonte, Renê procura fazer com que suas repostas demorem tempo suficiente para não dizer nada. E evitar novas questões. ++++++ Mira a fila de pretendentes a autógrafos. Mesmo que sua fala, obviamente, não tenha sido empolgante, tem o quê? 200, 300, 400 pessoas? Ainda lembra da pergunta: Por quê

Cf declaração do autor em uma entrevista que imaginava um dia dar.

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É o que imagina Renê: que Dimitirev tenha explicado que descobriu o imenso Renê Schwartz no semestre em que fez intercâmbio em uma universidade brasileira, “eu vi o livro em loja de usados e, sendo barato (isso ela não precisa dizer), comprar para ler na volta pro Ucrânia”, contou pra Renê num café de Krakhovka e deve ter contado para a plateia esse causo em bom ucraniano.

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o vampiro mordisca a namorada não em pescoço?, e de dizer Essa resposta está em cada um de nós. Muita gente esperando do lado de lá da mesa. Ele sozinho no de cá. Pega um livro que está sobre a mesa, lê – ou pronuncia como Dimitriev ensinou – o título, Krov u rot, e confere o nome do autor, o nome no seu passaporte, na identidade. Ainda é o mesmo. Faz que sim com a cabeça para seu tradutor e para os organizadores da Feira. A fila anda. A primeira jovem, branca como se não soubesse do sol, loiríssima, roupas pretas e maquiagem negra sob os olhos tristes, apesar dos olhos tristes, sorri um elogio ucraniano e entrega um exemplar ao autor. Renê capricha no Spasybi caneteado na folha de rosto pálida como a menina. Olha de novo a fila, quem sabe mais de 500? O negócio é assinar logo todos esses livros. Garrancha um Obieymaye, Renê Schwartz, logo abaixo do abraço ucraniano para, quem diria, sua leitora ucraniana, pensando em quanto tempo isso vai durar, em que talvez precise participar de alguma entrevista para a TV local e, mais importante: assinando já o segundo livro, agora para um menino com uma capa preta e uma franja quase uma asa da graúna passando rente aos olhos, dá uma nova olhada para a multidão e decide: não ir embora desse país sem perguntar para o orgulhoso Dimitriev, que sorri para Renê agora, se topa traduzir mais livros seus para o ucraniano. Ou português.

REGINALDO PUJOL FILHO nasceu em 1980 em Porto Alegre. Publicou os livros de contos Azar do Personagem (2007) e Quero Ser Reginaldo Pujol FIlho (2010) e organizou a antologia Desacordo Ortográfico (2009). Tem contos publicados em sites, jornais e revistas e colabora com veículos como O Globo, Zero Hora, Suplemento PE, entre outros. Tem pós-graduação em Artes da Escrita pela Universidade Nova de Lisboa e cursa o mestrado em Escrita Criativa da PUC-RS. É encontrável em: www.reginaldopujolfilho.wordpress.com | www.porcausadoselefantes.blogspot.com | @Quero_Ser

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FLOR DA NOITE “De noite, eu rondo a cidade” Paulo Vanzolini

RENATO BITTENCOURT GOMES

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auê Peixito é um ser da noite, planta noturna avessa à luz solar, flor de estufa, amiga de lugares abafados: para ele, o ar livre tem algo de pestilencial, um odor de agressão e afronta. É um vampiro que se alimenta dos aplausos e do entusiasmo do seu público, podendo ser encontrado em locais suspeitos, antros em que mal entramos e já sentimos a camisa empapada, grudando na pele. A atmosfera densa nos abraça como uma amante possessiva. Nesse mundo abafado, reluzente de transpiração, temos porventura um tênue vislumbre do que pode ter sido o horror do porão de um navio negreiro. Marcante é a variedade de odores: os corpos suados, o fumo impregnado na roupa, perfumes exagerados. Um ambiente de consumo internacional, mercê de artigos importados, recebidos diretamente do Paraguai com o auxílio de fornecedores exclusivos. Certamente essas indicações já são suficientes para localizar a região, todos sabemos a geografia do pecado em nossa cidade. Se não souber, pergunte – sempre tem por perto quem indique. Não vacile. Esses aquários acesos na noite, faróis do descaminho, são o habitat do nosso Peixito, que ali exala o seu odor de santidade caseira, o sagrado ao alcance da mão, o ascetismo do desregramento. Não recuse os paradoxos. Mas não empreenda sua longa jornada madrugada adentro, não vá até lá apenas para procurá-lo, será trabalho perdido. A única maneira de encontrar o herói é casual e subitamente. Não busque e encontrará. Isso porque Peixito não é peixe e não é carne, não o capturam anzóis, laços e armadilhas em geral, qualquer cilada que se arme para ele. Conceituações a priori, ou mesmo prêt-à-porter, não dão conta deste animal irrequieto. Moderno, pós-moderno, radical, brega, chique, kitsch, vanguarda, raiz... Este amontoado de palavras, qualquer uma delas, não exprime o que seja, o que vem a ser Cauê da Costa Peixito, que é e não é tudo isso. Um psicólogo alemão – um alemão, não o austríaco e nem o suíço – adentrando as camadas primitivas da psique, disse que “Nenhuma posição é fixa, mas também nenhuma contradiz a sua oposta e ambas vivem pacificamente juntas e se realizam em estreita sucessão. As influências fluem para dentro e para fora, vindas de todos os lados.” Gostei tanto que decorei. Já houve quem dissesse que Cauê é tão raiz que parece vanguarda, em um jogo de palavras bonito, engenhoso, mas que não dá conta

do fenômeno. Cauê não está nas palavras e sim na coisa, na realidade, em uma realidade visceral e instintiva. Quando colocar os olhos sobre ele, você saberá do que se trata. Não tente entender e compreenderá. E apesar da insuficiência dessa barafunda de conceitos, a identidade do astro não é ambígua como pode parecer a um primeiro olhar, canhestro e destreinado: a essência de Cauê Peixito é móvel, difusa, múltipla. Confusa, jamais. E seu nome é legião. Frente ao fenômeno (vamos usar o termo mais uma vez, posto que Cauê da Costa Peixito é de fato um fenômeno), mesmo a ideia de haver uma identidade se dilui, porque Peixito é uma epifania sempre renovada. Noturno como ele é, sua presença, sua existência é uma eterna alvorada. Não espere coerência. Orfeu a caminho, na constante busca de sua Eurídice, Cauê desce aos infernos da modernidade, refazendo o caminho de seu pai, que descia aos inferninhos na demanda de conhaques e amores baratos. Suas improváveis aparições no circuito maldito desta Curitiba tão vampiresca e morcega acontecem com algum estardalhaço assim que ele chega com o seu traje hierático, calça e paletó pretos, camisa branca, botas, gel no cabelo, pele branca de não tomar sol, rosto comprido e magro. Ele cruza a porta e já começa o auê, já que por ali sempre existe alguma patrulha de suas bacantes prontas para devorá-lo. Cauê se torna o centro das atenções tão logo pisa o hall do hades da ocasião, o estabelecimento que está prestigiando. Os donos dos bares gostam dessa presença espalhando manias logo adotadas pelas tribos underground (sim, eu sei que underground mesmo é o tatu...). Consta que a moda da tequila, que veio e ficou, começou com ele. Em certa época, estaria consumindo exclusivamente cachaça de Paraty, rissole com catupiry, porção de lambari e cigarros de Colomy – mas há quem diga que isso é intriga dos maledicentes, desejosos de enlamear o brilho do astro, assim como uns poucos juram que o indagaram a respeito e o herói declarou, pachorrentamente, que essas preferências passageiras foram fruto de “um inarredável frenesi de idiossincrasia e referências literárias”, e outros ainda se resguardam repetindo a ideia de que tudo isso é lenda. Não queira uma verdade. Há rumores de que sua casa ostenta uma decoração exclusivamente high tech, ou que sua mobília é feita exclusivamente de jacarandá torneado (o que seria outra 33


referência dos livros), ou ainda que tudo é muito simples, até mesmo monástico – mas quem pode provar que esteve lá, in loco? Quem pode dizer “meninos, eu vi”? Não peça comprovações. Penso que provar ou apenas ter por certo isso ou aquilo é irrelevante, já que em se tratando de Cauê Peixito são demais as lendas, e algumas devem ter sido espalhadas por ele mesmo. Posso assegurar que Cauê é um bom conversador e que em diferentes ocasiões testemunhei o herói contando versões ligeiramente diferentes de um mesmo fato, se é que havia um fato a servir de base. Também posso garantir que, espalhadas por ele, por seus admiradores ou até seus detratores, ele não desdenha essas lendas que o precedem. Antes as alimenta, chegando, para isso, ao ponto de alguns sacrifícios de sua maneira habitual de ser, se é que ele tem um modus operandi consolidado. Não se espante. Por exemplo, por uma temporada de uns três meses, na época mais fria do ano, depois de noitadas de reggae e cerveja bock (não me pergunte o que uma coisa tem a ver com a outra), ele resistia ao bode da madrugada e se dirigia ao bebedouro em frente à igreja da Ordem Terceira de São Francisco para cantar velhos sambas enquanto o sol nascia. Ronda, do Paulo Vanzolini, O último desejo, do Noel, e Alvorada, do Cartola, eram peças obrigatórias. Tudo isso porque um jornalista deu uma nota no caderno de cultura afirmando que Cauê Peixito se acreditava efetivamente uma versão curitibana do mito, uma encarnação de Orfeu. O herói gostou dessa conversa e resolveu que ela devia ser realidade. Não critique. E por esse tempo também correu um boato de que, depois de fazer o sol nascer com a força de sua voz de infinda madrugada em nossa brumosa cidade, Cauê se dirigia para um desjejum brahmoso: um sonho de goiabada e uma cerveja, o doce e o amargo alcoólico. Feito isso, ia em frente, canivete no cinto e portfólio na mão, procurar ocupação em alguma agência de publicidade. Mas era pura lorota, já que é público e notório que Peixito não é disso, nunca se deu ao trabalho de trabalhar, sendo um mistério a fonte dos seus recursos. Ela apenas diz ter uma renda. Não questione. E todos nós sabemos que ele gosta de dar trabalho, como no tempo em que foi mais feroz seu alcoolismo, era arrastado dos bares no final da noite, ou mesmo antes, por algum admirador mais próximo. E ainda há a encalacrada mania de cortejar, assediar, tirar casquinha de todas as mulheres do ambiente – estejam desacompanhadas ou não, o acompanhante seja um completo estranho ou alguém das suas relações. Não diga nada. Há quem jure, por tudo quanto é mais sagrado, que é comum ver o astro tomando uma canja madrugueira naquele restaurante próximo dos motéis e espetinhos do Centro, acompanhando uma senhora de alguma idade. Seria a esposa de um empresário de Campo Largo e razão de Peixito viver à larga. Não sabemos, não temos muito como saber. Quem afirma que isso é certo são pessoas duvidosas – como são todas as pessoas em volta do herói. Não ouça essa gente. Na verdade, em se tratando de Cauê Peixito temos apenas uma e definitiva certeza: nunca estivemos tão perto das lendas. Não duvide.

RENATO BITTENCOURT GOMES

atualmente vive em Curitiba. nasceu em Telêmaco Borba, em 1967. É revisor, professor de produção de textos, crítico literário e Mestre em Estudos Literários pela UFPR. É autor de Mecânica dos fluidos (2002), Liturgia do sangue (2009) e Inventários e descobrimentos (2010).

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A QUERIDINHA DO MANICÔMIO RENATO VIEIRA OSTROVSKY

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la não podia vacilar e sabia que trabalhar num manicômio não é tarefa para amadores; para tal, bolou um plano que não tinha como dar errado, pois era sabedora que sua chefe – a chefona, como era chamada – fez inimizade com todos, e, uma centena de loucos é um bom número para deixar uma pessoa com medo até de ir ao banheiro ou retocar a maquiagem, em suma, distrair-se por qualquer motivo. Aos poucos ela foi se transformando na queridinha do lugar, ganhando o carinho e consideração dos pacientes que, impacientes, não veem a hora de nela se engancharem e fazerem um cafuné bem colocado. E Deus o livre se rolar um ciuminho. Irrompe tapa de tudo que é tamanho e a lavagem cerebral fica por conta dela depois de baixada a poeira. Dia desses, um dos loucos resolveu fugir para o louco mundo lá de fora, mas na hora que bateu a fome, lembrouse da queridinha do manicômio – que daqui por diante, por economia, vamos chamar simplesmente de Q – e pediu para voltar ligeirinho de onde tinha fugido. Q é uma mulher decidida e na hora que o bicho pega, ela não dá refresco, mas parece que quanto mais ela reza, mais o diabo aparece; e, não é que surge naquele paraíso calmo e tranquilo, uma cobra – que, provavelmente vinha roubar a maçã dos loucos –, e adivinha quem eles chamaram para resolver a pendenga? Q não teve dúvida e matou a jararaca; já um doido varrido estava bem louco para comer um pedaço da bicha e já foi fugindo com outro para o refeitório, procurando, afoito, o saleiro. Estava instalado o motim e foi na cozinha que os desprovidos de razão, com a adrenalina a mil, se apoderaram das facas de cozinha, abridores de lata, cutelos, palitos de fósforo – daqueles compridos –, giletes, barbantes, tampinha de garrafa, e serrotes, partindo pra cima da chefona que se enfiou no banheiro sem hora pra sair. A louca que se diz Maria Antonieta teve uma crise que, para segurá-la, foram necessários os oito guardas de segurança, seis homens que por acaso ajeitavam o jardim, outros quatro parrudos italianos que faziam uma raríssima visita ao velho que enlouqueceu de tanto contar dinheiro e dois chimpanzés treinados para distrair a cambada. O maníaco da vez se jogou no panelão fervente – que mais parecia uma piscina – de sopa eslava, imitando uma barata que acabava de fazê-lo. Um dos esquizofrênicos da turma, que entrara em depressão desde que o Ronaldão – que já foi Ronaldinho –

amarelou naquele jogo com a França, na Copa de 98, se atirou na lagoa dizendo que sempre teve o sonho de pescar com a boca e apareceu boiando no dia seguinte; a necropsia apontou ingesta excessiva de tilápia e pacu. O mais louquinho de todos, que sempre fez questão de ser chamado de Napoleão, aproveitou a falha na vigilância e começou a comer tudo o que sempre teve vontade e nunca deixavam, tais como Bombril, luva de borracha, cadarço de tênis, papel higiênico – imagine aqueles tão ásperos quanto uma lixa –, rolha de cortiça, parafuso, escova de dente, caco de vidro, pente de macaco, caliça, grampo de cabelo – o leitor não tem noção o que um doido pode fazer com um deles –, um alfinete de cabeça e até uma meia furada do vizinho ao lado que cismava ser o Mussolini. Quando Q pensou em acudi-lo, já estava engasgado e o médico de plantão – muito louco –, já acostumado com esse tipo de evento, teve que agir prontamente para salvá-lo. Terminada a batalha campal, os exércitos de Napoleão e Mussolini voltaram para as trincheiras de suas entrelinhas, os mortos foram sepultados sem muita ladainha e os que sobraram, proclamaram Q como sua protetora-mor, não sem antes colocarem Maria Antonieta – de novo – e a chefona na guilhotina. Devido ao superlativo número de baixas no pelotão, o manicômio encontra-se sob intervenção federal, mas a quantia de curas que passaram a ocorrer a partir do fato é uma coisa quase indescritível: Napoleão inventou uma espécie de clips, diferente dos atuais, virou empresário e o produto já está quase dominando – novamente – o mundo todo. Mussolini formou uma dupla musical com o cantor Lenine e se especializaram em compor músicas de rap para alegrar os loucos de outros manicômios. As damas de companhia da Maria Antonieta viajam pelo mundo dando palestras cujo tema principal é “Como servir com dignidade”. Um dos generais de Napoleão virou escritor, seu Best seller “De são e louco todo mundo tem um pouco” é sucesso de público e crítica, sendo já traduzido em onze idiomas e você pode encontrá-lo nas melhores livrarias, sob o preço muito louco de noventa e nove reais e noventa e nove centavos. RENATO VIEIRA OSTROVSKY

é natural do Rio de Janeiro e atualmente reside em Campo Magro, Paraná. É engenheiro Civil, industrial e escritor. Publicou, em 2012, Opaca Transparência, seu primeiro livro de poemas.

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ROBERTO PEDRETTI

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omo qualquer adulto rapidamente percebe, é fácil não ter amigos. Se uma criança não tem amigos, levamna ao psicólogo, mas há algo perturbadoramente certo numa vida adulta solitária. Frequentemente ela é decorada com um cônjuge e filhos, mas se aprenderem bem a lição, a longo prazo, eles não prejudicarão em nada que a solidão floresça e ganhe lindos contornos esbranquiçados, uma moldura sólida na qual podemos encostar nossos sonhos e vê-los perder as mandíbulas ameaçadoras. Alguns dizem que são as responsabilidades que crescem quando constituímos uma família, quando temos empregos mais dignos e tornamonos mais conscientes de nossas limitações físicas, mas isso é uma grande bobagem – trata-se do contrário; essas coisas nós adquirimos e acalentamos por serem a taxa que pagamos pelo direito à nossa solidão. Em algum momento queremos apenas concretizar o que vivemos, tornar tudo lembrança e poder dizer que a música do nosso tempo era melhor, que os filmes a que assistíamos tinham mensagens mais profundas, e queremos começar a acreditar que tudo isso é verdade apenas porque a mente não pode estar viva por todo o tempo do corpo: em algum momento, ela tem que se fechar, debruçarse sobre o que concretizou, material e psiquicamente, até ali, e ver algo bonito. Algumas vezes, 30 anos são o bastante. Depois desse tempo, uma boa parte de nós tem a sensação de que é o bastante. Que muitos de nós vivamos tanto tempo mais do que isso, que é o que basta, é uma das grandes sacanagens embutidas no projeto da existência humana. Que, ao contrário de tantas outras espécies, não sucumbamos no momento em que passamos nossos genes adiante ou que descobrimos que somos incapazes de fazê-lo; que tenhamos ainda que ser inteligentes, agradáveis, versáteis e amorosos... isso é obviamente um engano muito triste. O que fazemos com todo esse tempo ocioso, no qual fingimos que ensinamos coisas relevantes a nossos filhos quando mal nos escutam, em que fingimos ser grandes mestres quando os nossos discípulos realmente valiosos estão lendo o que escrevemos vinte anos antes e não escutando nossas sábias palavras no parlatório (uma das distrações que encontramos para o nosso tempo morto) e no qual ainda fingimos amar alguém quando na verdade estamos reproduzindo infinitamente o mesmo amor no qual ficamos travados no último momento real da nossa vida, aquele mesmo amor repetido infinitamente, uma fita defeituosa claudicando para sempre na última sensação que

conseguiu extrair de si mesmo? Cada um resolve este tempo da sua maneira. Mas no fundo do que escolhemos, está sempre a redundância. Uma pergunta continua dentro de nós – o que eu ainda estou fazendo aqui? Eu tenho 39 anos neste momento, 40 daqui a quatro meses. E não tenho filhos, e ninguém fica me lembrando do fato mas estou começando a sentir a redundância ancorando no meu porto. Sem filhos e sem esposa, continuo inadimplente perante o Instituto das Solidões, o que significa que ainda não é tão fácil não ter amigos – meus pares continuam me assediando à diversidade, assim como as empresas e as oportunidades de diversão. Estou numa encruzilhada, e daqui a alguns meses eu me tornarei oficialmente um ser humano desesperado e amargo. Daqui a pouco, sem família, tudo que se refere a mim tomará contornos cada vez mais ridículos, e se eu gargalhar, será uma gargalhada enlouquecida e desregrada; e se eu me masturbar, será uma ejaculação desesperada; e se eu comprar um carro novo, moderno, cheio de inovações, serão um carro e inovações desesperadas que eu conduzo pelas ruas da cidade, e toda a cidade vai se convertendo no embolorado teatro no qual a tragédia da minha vida é encenada sem qualquer objetivo ou proveito para os meus concidadãos. Giovana comigo neste carro que comprarei terá cada vez menos significado, conforme os dias passam. Hoje ela faz algum sentido ao meu lado, no banco do carona deste carro cenográfico que conduzimos rumo ao ato final, mas o preço que ela paga pela minha companhia é cada vez mais alto, e embora ela não coloque nestes termos (por educação, provavelmente), cada gota de amor que ela deposita em meu cofre evapora e chega ao seu fundo metálico e escuro com meros 10% do seu valor de face. Hoje em dia vivo para recolher o resíduo incipiente deste amor depois da desvalorização, com ele fazer um montinho insignificante com o apoio de uma das paredes escuras do cofre, e seriamente tentar cultivar este montinho e fazê-lo novamente fermentar. Mas dali do fundo, como um arqueólogo audaz nas profundezas de uma tumba egípcia, contemplo ao longe e acima a abertura iluminada do cofre, e vejo como ela está distante, como o teto parece estar a quilômetros de distância, mesmo que eu não consiga divisá-lo com precisão no meio desta escuridão, e tenho que conviver com a culpa de saber que este monte verá, no máximo, dez centímetros de acréscimo caso ela insista por 36


tudo. Por mais que eu tente, tenho a impressão de que não consigo enlouquecer. Não consigo que ninguém declare que perdi a noção de realidade. Por mais que eu tente afugentar o monstro da razão de dentro de mim, continuo compulsivamente dando direções corretas às pessoas que me perguntam onde fica a prefeitura, continuo mantendo meu apartamento limpo e as coisas em seus lugares, continuo acordando pela manhã para trabalhar, continuo comendo segundo uma dieta balanceada que permite que meu corpo e mente realizem cada uma dessas tarefas. Não consigo quebrar nenhuma dessas correntes, porque só consigo conceber formas ridículas de quebrá-las, e suspeito que eu tenha um medo patológico de ser ridículo. E talvez seja isso que me deixa neste impasse com Giovana: não é que seja impossível deixá-la. Talvez seja apenas ridículo demais.

mais uns dez anos. E por um momento, ali na escuridão, com as mãos ainda sujas das partículas de amor depois de tê-las ajeitado, como eu disse, para que parecessem ter algum substância, reflito sinceramente que o problema pode ser resolvido: talvez eu esteja realmente me tornando um velho amargo, e não esteja dando chances o bastante para o crescimento; talvez eu esteja cego pelas minhas próprias carências, e aquele monte na verdade seja uma montanha que desborda o cofre, que invade câmaras adjacentes e povoa a vida inteira sem que eu seja capaz de coletá-lo porque estou usando os medidores errados; talvez seja a mera dor de tornarme adulto, ou o preciosismo de imaginar que terei controle sobre cada detalhe, que provoca a evaporação exagerada daquela solução; talvez, no fim das contas, seja apenas o pior: que eu me considere tão inteligente, tão fantástico, tão sensacional em cada uma das horas livres que tenho comigo mesmo que considere que posso burlar uma das regras mais antigas da espécie humana e dispensar o amor simplesmente porque posso passar sem ele, quando a verdade é que isso não tem sido possível ao longo da História. Penso sobre isso no fundo daquele cofre por muitas horas, e chego a conclusões diversas, todas tranquilizadoras, porque isso me convém, e adio a solução para expedições ulteriores. Posso adiar para sempre – é meu estilo. Adiarei, provavelmente, até que ela tome a iniciativa. E quando consigo pensar nesses termos com clareza, ai age uma força diferente: a culpa. Porque estou ciente de todo o amor que ela está depositando em mim, e estou ainda mais ciente da quantidade de amor que terei para devolver quando ela decidir fechar sua conta, o que me exporá como o mais incompetente dos gerentes. Provavelmente caberá tudo numa pequena sacola, ou num vidro vazio de perfume. Quando ela requerer sua alforria, isso será tudo que eu terei nas mãos, e ela não poderá legalmente me tirar mais nada – e eu gostaria que ela pudesse. Queria que ela pudesse tirar meu sangue duas vezes por dia, através de transfusões dolorosas e infecciosas; queria que ela pudesse arrancar quatro quintos do meu salário e deixar-me à míngua, examinando as paredes nuas do meu quarto em silêncio, na companhia dos meus últimos potes de comida estragada; queria que ela viesse três vezes por semana e tivesse os instrumentos para me impingir alguma dor que desconheço. Mas ela é uma menina jovem e linda, inteligente, de boa família, equilibrada, promissora e todas as outras coisas que fazem com que alguém simplesmente não se dê ao trabalho de me fazer sofrer depois. O momento em que ela decidir que não vale mais a pena me amar também será o momento em que ela terá tomado as providências para me esquecer, e terá sucesso. Eu terei sido um tropeço em sua vida, uma história edificante para contar aos pretendentes futuros quando houver um pouco mais de intimidade. Não haverá dinheiro envolvido, nem bofetadas, nem devolução de presentes, talvez nem lágrimas – e esse será o golpe mais doloroso que ela nem terá noção de ter desferido. Quando isso acontecer, seremos apenas eu, o frasco de perfume com amor até a metade e a culpa. Nós três olhando para as paredes. É um futuro que desprezo, na esperança desajeitada de que não se concretize. Se ao menos eu tivesse o álibi fabuloso de enlouquecer – mas isso é o mais insidioso de

ROBERTO PEDRETTI é escritor. Participou da coletânea de contos A polêmica vida do amor (Oito e Meio), em 2011.

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UM CONTO DE CALVIN “Com a mesma inevitabilidade pela qual a pedra cai ao chão, o lobo faminto enterra as presas na carne de sua vítima,sem a consciência de representar, ao mesmo tempo,o destruído e o destruidor.” Schoppenhauer

ROTSEN ALVES

O

Cachorro estava quieto, mas olhava estranho para o Morro, com aquele pressentimento dos animais, que supera o das mulheres e que os homens não têm. Num segundo o sonho do Cão (passaremos a chamar o Cachorro de Cão) se tornou realidade: o Morro se ergueu lento e cínico arreganhou os dentes, o Cão ganiu e com o rabo entre as pernas, recuou, o olhar fixo no Morro. O Morro avançou com a felicidade dos que sabem que suas vítimas são formigas. O Cão nas entranhas do Morro se imaginou um Jonas moderno e se certificou, mais uma vez, da sua união com Deus - aquele Filho da Puta não o tinha trazido ao mundo à-toa. As tripas do Morro cheiravam a terra revolvida e o Cão duvidou que Jonas tivesse tido sorte maior que a sua. O Morro começou a voar e o estômago do Cão soube disso. A segunda refeição do Morro foi um verdadeiro almoço, ele comeu muito e muitas coisas. Devorou um shopping. Nada do que o Morro engoliu despertou o interesse do Cão, pelo menos até ele farejar aquele perfume. O cheiro, no seu nariz frio, substituindo o de terra, o fez despertar. Ele ficou parado, nem latiu, aspirava o ar como um afogado. A Menina surgiu dos escombros do shopping e caminhou rumo ao Cão. Vinha alegre, num vestido longo, feito por sua mãe. O Cão agitou sua cauda, baixou e ergueu a cabeça e fez todos aqueles trejeitos dos cães quando estão presos a coleira invisível. A Menina avançava e o Cão, que já tinha soltado um e outro latido, foi ao encontro dela. Os dois fizeram grande festa. O Cão latia, pulava, corria e a Menina correspondia, também estava feliz. Se embriagaram de alegria e alegria. Cansados, riam de estarem rindo. Os corpos suados, o vestido colado desenhava partes dela, o bico do peito, as coxas, a cintura. Estavam de frente um para o outro e já não riam, apenas respiravam cansados. O silêncio e o calor no ventre do Morro eram absolutos. O Cão se aproximou dela e ia farejando. A Menina segurou as laterais do vestido na altura dos quadris e seus dedos comeram, lentamente, o comprimento dele. O Cão a circundou e farejou seus pés descalços e foi subindo com seu focinho. O focinho frio, o farejar cada vez mais nervoso. A tortura da espera e o prazer da demora provocavam calafrios na Menina. O Cão enfiou sua cara entre as coxas da Menina e a bebeu.

O Cão pensou no momento em que seriam cagados pelo Morro e ficou triste. Ficou triste porque sabia que lá fora, fora das entranhas do Morro, eles eram iguais a Jonas. Deus estaria lá, lhes dizendo o que não fazerem. Os homens estariam lá, para lhe jogarem ao mar, e a Menina, voltaria a ser mulher. E se não chorou foi porque os cães não podem chorar. Os gritos da Menina o fizeram esquecer a tristeza e ele continuou bebendo-a. Os gritos foram num crescendo até cessarem num longo gemido, seus joelhos se dobraram e ela ajoelhou deixando o corpo cair para trás, puxando para si o Cão, que lhe lambeu o rosto todo, numa alegria-triste e ávida.

ROTSEN ALVES é contista e roteirista. Vive no Rio de Janeiro. É autor do livro A Rua Sem Saída.

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REALITY TOUR TONI MARQUES

–C

tinha vindo de longe para espalhar bondade. Não era culpa da menina se o homem não queria ser amigo da Mrs. Kidder. – A Mrs. Kidder deve ter escondido o seu cachimbo. – Não brinca com a minha cara. Te vendo agora pra Madame! A menina achou o que fazer: pegou as bonecas, porque as bonecas estavam gritando uma com a outra, e a briga tinha chamado a atenção da menina e a deixou triste. Elas brigam por qualquer motivo, se bem que a menina acha que elas só têm um motivo de verdade para brigar: elas têm ciúmes da Mrs. Kidder, que nunca brinca com as bonecas. – A Madame morreu – a menina diz -, o senhor não sabe? Tem traficante novo aí, não sei o nome. – Quantas pedra ele dá se te dou pra ele? – Pergunta lá, ora. Agora as bonecas fizeram as pazes. Elas são bonecas muito complicadas. O Turista Nº 3 diz ao Guia Turístico que o homem parece um elefante anoréxico. O Guia Turístico diz que o grupo está diante da coisa autêntica. O Turista Nº 2 diz que o fedor é ainda mais autêntico. A vedação do painel de vidro é ineficiente. Diz também que a agência de turismo deveria fornecer um creme aromatizante aos turistas, como os usados pelos legistas. Ao que o Turista Nº 4 diz que nem todos os legistas passam creme, pois muitos, senão todos, acabam se acostumando ao fedor. O Turista Nº 2 diz que não é médico e que espera que a próxima excursão seja amigável para o nariz. O Turista Nº 1, que não presta atenção à conversa, pergunta por que há uma mulher estirada num canto do casebre. O Guia diz que não se trata de uma mulher, mas do cadáver de uma mulher. O Turista Nº 1 pergunta se a mulher foi morta por traficantes ou por policiais. O Guia diz que na verdade não se trata do cadáver de uma mulher, mas sim do boneco do cadáver da mulher que não foi morta nem por traficantes nem por policiais, simplesmente morreu e passou-se bastante tempo até a família notar a morte da mulher, por isso a agência decidiu representar a atmosfera sinistra desse lar usando o boneco do cadáver da mulher. Um boneco muito bem-feito, coisa de cinema, diz o Guia. O Turista Nº 1 pergunta se o boneco emite odores. O Guia afirma que o boneco não emite odores, não, que ele saiba. O Turista Nº 3 diz que existem várias coisas que o Guia parece não saber. Diz também que as excursões começaram

adê? Ele fala como se estivesse mastigando uma lacraia viva, e ela pensa na Daisy, e quase que ela chora porque a Daisy não era uma lacraia má, ela só fazia as coisas que as lacraias têm que fazer, como no dia em que a Daisy machucou o menino quando ele dormia, deve ele ter tido um pesadelo e no que acordou dando um safanão no pesadelo a Daisy só se defendeu. Que Deus tenha pena da alma da Daisy. Aí ela pensou na Mrs. Kidder pode ser irritante, que podia ser muito chata. Outro dia a Mrs. Kidder disse que não sabia se a Daisy e as lacraias têm alma. Como pode a senhora não saber, Mrs. Kidder? A Mrs. Kidder e toda a turma devem saber tudo sobre todas as coisas, não é? Se bem que a Mrs. Kidder pode ser meio burra. Pode, sim. Um dia ela perguntou assim: se a favela tem tantas lacraias, como alguém pode saber se a Daisy é mesmo a Daisy? A resposta é muito fácil: a Daisy era a maior lacraia da favela. E como alguém podia saber que a Daisy era uma lacraia do sexo feminino? Porque teve um dia em que a menina achou uma porção de ovinhos de lacraia, não é culpa da menina se a Mrs. Kidder não tem memória boa. Muitas vezes a menina viu como a Daisy curvava o corpo todo para proteger os ovinhos, está bem? Inclusive ela mostrou tudo isso a Mrs. Kidder, está bem? Sim, mas nenhuma lacraia bebê apareceu pela casa. Nisso a Mrs. Kidder tinha razão. A Mrs. Kidder pode ser um pouco burra, mas também pode ser má, porque aí a Mrs. Kidder disse que a Daisy pode ter comido todos os ovinhos. Ou todos os bebês de lacraia. A Mrs. Kidder também é bastante engraçada. A menina sabe que a Mrs. Kidder sabe que a menina sabe que a Mrs. Kidder sabe como era a Daisy. A verdade é que a Mrs. Kidder gosta de brincar. – Que que tu fez com o cachimbo, sua merdinha? – o homem diz de novo, agora a voz dele parece a de um homem que não tem mais uma lacraia dentro da boca, nem tem mais boca, e sim no lugar da boca tem um balde mole e desdentado, cheio de cuspe seco. – Pergunta pra ela – a menina diz. A menina já tinha terminado o dever de casa e não havia mais muita coisa para fazer. A casa não tinha televisão e coisas assim. A casa só tinha as pessoas, os uniformes da escola e coisas assim. Mas a menina tinha Mrs. Kidder, que 39


em 2014, portanto a cidade tem 20 anos de experiência nessa coisa, então como pode o Guia não saber se o grupo está diante de um boneco ou de uma pessoa? O Turista Nº 2 pergunta se alguma coisa na casa é falsa ou encenada. O Turista Nº 4 diz que quer o dinheiro de volta. O Guia pede a todos que recoloquem os fones, que tudo vai se resolver. – O senhor tinha que ser mais educado – diz a menina. – A Mrs. Kidder gosta de boas maneiras. Ela é britânica, sabe? Não, não sabe. As bonecas agora dão de conversar sobre a Daisy. Elas parecem que têm medo dela. A menina pensa na geladeira que não existe mais, assim como a Daisy. É engraçado elas terem medo de uma coisa que não existe. Não adianta explicar que a Daisy está no céu, porque elas não acreditam nisso. Se ainda tivesse uma geladeira na casa, a menina guardaria as bonecas lá. Assim elas se sentiriam protegidas da lacraia e também do calor. – Tem mais mulher onde aqui?– diz o homem. A menina sempre acha engraçado como tem vezes em que o homem demora a dizer uma coisa que tem a ver com o que ela acabou de dizer. Pode demorar uns instantes, mas também pode demorar alguns dias. Como também pode acontecer de ele dizer na hora uma coisa que não tem nada a ver com o que ela acabou de dizer. Nem com o que ele mesmo acabou de dizer. Ele é muito esquecido também, mas não se esquece de responder às perguntas da Mrs. Kidder. A menina acha que na verdade ele tem medo da Mrs. Kidder. Se bem que outro dia ele tentou dar um soco na Mrs. Kidder. A menina pulou em cima dele depois do soco que não deu certo. A Mrs. Kidder foi quem separou os dois. Tirou a menina de perto e disse em inglês mesmo várias palavras feias para ele. Aí ele, que não entendeu nada, começou a dar mais socos, só que no ar, porque a Mrs. Kidder não estava perto dele. Foi engraçado. Como foi engraçado também o dia em que ela expulsou todo mundo de casa, quer dizer, os amigos dele, o bando de craqueiros. Eles têm medo mesmo dela, porque nunca mais voltaram. Agora o homem está chorando. Assim como as bonecas, ele consegue chorar sem lágrimas. – Eu quero bebida. Agora a voz do homem é a de um bebê chorão. Ele se levanta do lugar no chão em que passa a maior parte do tempo e procura pelas coisas que não existem, como uma garrafa ou um copo de plástico para improvisar o cachimbo de fumar crack e mais todas as coisas de valor que ele poderia trocar por pedras de crack e não pode, porque já foram trocadas. Ele sempre faz isso. Depois que ele faz isso, ele sempre sai de casa, o que ele acaba de fazer. O Guia explica que a Prefeitura fornece uma quantidade mensal de pedras de crack. Os turistas dizem que sabem disso, pois leram a respeito. O Guia acrescenta que os dependentes não recebem bebidas nem cigarros. O Turista Nº 2 pergunta sobre comida. O Guia diz que toda a comida da menina é servida na escola, turno integral, e o homem recebe e provavelmente a mulher também recebia tíquetes que são trocados por comida em estabelecimentos comerciais. O Turista Nº 1 diz que possivelmente o homem troca os tíquetes por crack. O Guia diz que é provável. O Guia se põe a dar informações genéricas sobre o programa carioca de reality

tours, mas o Turista Nº 1 não lhe dá atenção. É um inglês que muitas coisas sórdidas na vida. A menina o encanta. O Turista Nº 3 diz que, se a família precisa de tíquetes para poder se alimentar, a mulher deve ter morrido de fome. O Guia diz que não há solução para a epidemia de crack, então alguém está sempre morrendo. Agora que o homem saiu o resto dos amigos da menina pode aparecer. Nenhum deles gosta do homem, e só a Mrs. Kidder aparece quando ele está em casa. – Mrs. Kidder? O Turista Nº 1 pergunta quem é Mrs. Kidder. O Guia não diz que não faz ideia, deve ser uma amiga imaginária. Eventuais amigos e parentes não constam do resumo sobre a família de que o guia dispõe. O Turista Nº 4 pergunta se “Kidder” seria um sobrenome comum no Brasil e se a menina fala inglês. Antes que o Guia possa responder, o Turista Nº 1 pergunta se o grupo tem autorização para interagir com a família ou, no caso, com a menina. O Turista Nº 3 diz que o grupo está ciente do regulamento da excursão e que seria interessante burlar a regra. O Turista Nº3 pergunta por que o Guia está rindo. O Guia diz que o Brasil e mais especificamente o Rio precisaram de séculos até um mínimo de senso de ordem se estabelecer, e agora turistas anglo-saxões reclamam das regras. O Turista Nº 1 não acha nada engraçado. Diz que a menina está obviamente sofrendo. O Turista Nº 2 diz que a motivação dele difere da do colega. A menina está sofrendo assim como bilhões de pessoas estão. A intenção dele não é falar com ela para oferecer ajuda, e sim obter informações em primeira mão dos miseráveis brasileiros. O Turista Nº 3 concorda com o Turista Nº 2 e diz que os sensíveis do grupo deveriam buscar um reality tour na Finlândia ou coisa assim. O Turista Nº 1 pergunta se a menina estaria disponível para adoção. O Guia sorri e pede aos turistas que recoloquem os fones. O Turista Nº 1 não recoloca o fone e pergunta se a menina sabe inglês. O Guia diz que acha que não. Diz que não se ensina mais inglês nas escolas. O Turista Nº 1 pergunta se ela tem acesso à internet. O Guia diz que tem, na escola, mas como ainda é muito pequena possivelmente nunca usou internet. O Turista Nº 2, americano como o Nº 3 e 4, acha que ela sabe usar a internet e por isso pôde inventar uma amiga imaginária de sobrenome estrangeiro. O Turista Nº 4 diz que pode ver que ela tem livros didáticos em casa. O Guia confirma, mas observa que nenhum deles é em inglês. O Turista Nº 3 pergunta se a amiga imaginária não seria real, quem sabe uma representante de ONG estrangeira trabalhando na favela. O Guia diz que nenhuma ONG, brasileira ou internacional, tem autorização para trabalhar nas áreas designadas para as excursões do reality tour, do contrário acabariam minando a razão de ser das excursões. O Turista Nº 1 pergunta se no Morro da Providência existem favelados estrangeiros, como os americanos e chineses que o grupo visitou na Rocinha e no Vidigal. O Turista Nº 2 diz ao Turista Nº 1 para ele não se esquecer dos britânicos e demais expatriados do Velho Mundo, que a crise é de todos. O Guia explica que os estrangeiros menos quebrados tomaram as melhores favelas, as da Zona Sul do Rio, com exceção dos chineses, que são apenas mão de obra. Nas favelas como a do Morro da Providência há estrangeiros também, mas sulamericanos, mão de obra como são os chineses. 40


A Mrs. Kidder ainda não apareceu. Quem apareceu foi o poeta Valeriy. Ele cumprimenta a menina, passa a mão na cabeça dela e se dirige à mulher. Pergunta se ela precisa de alguma coisa. O Turista Nº 1 se assusta ao ver a cabeça da mulher se mexer. Diz que então ela não é nem uma boneca nem um cadáver. O Turista Nª 2 diz que a excursão é uma bagunça. O Guia fica nervoso, é vítima da desinformação e não tem o perfil adequado a esse tipo de passeio, preferia mil vezes reunir turistas e prostitutas, mas precisa dar uma resposta. Diz que a ideia é justamente surpreender os turistas. O crack faz isso, impede que o observador saiba se está diante de um cadáver, um boneco ou uma pessoa viciada em crack. A mulher diz a Valeriy que gostaria de ouvir os poemas dele. Os poemas de Valeriy são poemas de um homem gay, o que ela adora, apesar de não saber russo. Ela gosta do efeito das palavras dele lhe martelando a cabeça. Enquanto Valeriy recita poemas e a mulher aprecia os versos, a menina brinca com o marinheiro Francis. O marinheiro Francis gosta de brincar de esconde-esconde. É muito difícil brincar de esconde-esconde numa casa que não tem nada. – Onde está a pequena sereia? – o marinheiro Francis diz, na iminência de achar a menina. – Estou aqui, marinheiro Francis! O marinheiro Francis encontra a menina, a segura no colo e a enche de beijinhos. O Guia diz aos turistas que não sabe o que está acontecendo. Provavelmente é mais um amigo imaginário. Ou então ela usa crack também, qualquer explicação serve. O Turista Nº 1 sente vontade de chorar ao ver a menina feliz. Agora aparece o suboficial Bradley. A menina se escondeu de novo, desta vez fora da casa. O suboficial ordena o marinheiro Francis que vá procura-la no barraco vizinho. O suboficial Bradley é muito sério. Ele nunca diz uma coisa fora de lugar. Ele só não sabe muito bem o que dizer quando a Mrs. Kidder aparece. Ele tem medo dela. Ela é mais séria do que ele. – Você trate de encontrar a menina agora, marinheiro Francis Bell. Do contrário seu destino serão as galés – o suboficial Bradley diz. – Sim, senhor! O Turista Nº 2 diz que já teve o bastante e quer voltar para o hotel. O Turista Nº 3 e o Turista Nº 4 também querem ir embora. O Turista Nº 1 quer ficar, mas não se sente bem. Ele não se sente bem precisamente porque quer ficar, mas não tem coragem de ficar sozinho no morro. Porém, quando se vê de volta ao quarto do hotel, decide voltar ao morro. Toma um banho frio, pega uma bermuda e uma camiseta e, usando a tesoura de unha, procurar dar às roupas uma aparência pobre. Quando chega à casa da menina, constata que a passarela de observação está fechada. Leva algum tempo até ele encontrar um posto de observação em que não venha a ser descoberto. O homem não está na casa. A menina está sentada ao lado da mulher. John, o Turista Nº 1, não consegue entender o que a menina diz, já que não tem os fones do programa de tradução simultânea, para o caso de o software estar funcionando. Não deve estar, ele conclui. Deveria haver um aplicativo no telefone, mas não há.

– Mrs. Kidder, a senhora viu ele? A gente tem que avisar, não tem? – Desculpe-me, minha querida. Receio... Você precisa se acostumar. – O que foi, Mrs. Kidder? A senhora está doente? – Não, eu estou... – Então por que a senhora está chorando? Não precisa chorar por causa dela. Pra ela é melhor assim, a senhora não acha? Mas a gente tem que avisar. Onde será que ele está? Se a menina está falando com a mulher, a mulher não responde. – Eu... Você precisa ser muito forte agora. Agora e pelo resto da sua vida. Pobrezinha... – O que a senhora tem? – Receio que ele não... virá mais. Receio que seu pai e sua mãe vão se encontrar com Deus, sabe? Você entende o que eu digo? – Mrs. Kidder, a senhora é a minha única amiga. Não pode ir embora de uma hora para outra. – Tenho um presente para você. A menina se levanta e abraça as pernas da Mrs. Kidder. E chora, o rosto enterrado na saia comprida e escura. A Mrs. Kidder afasta a menina um pouco, se agacha e mostra o presente. – Este livro era meu. Agora quero que fique com ele. Veja, o meu nome está aqui. A menina segura o livro e lê em voz alta: – “Cynthia Harriet Russell Kidder.” – Sim. A sua pronúncia é muito boa. Parabéns. – Esse é o nome mais bonito que eu já ouvi. Mas Mrs. Kidder? – Sim, minha querida. – O Valeriy, o marinheiro Francis, o suboficial Bradley, eles vão continuar aqui comigo, não vão? – Pobrezinha... John pega o smartphone, abre um dos browsers e digita o nome que acabou de ouvir. O primeiro link da lista o faz tremer como se uma febre instantânea precisasse cozinhar a mais mortal das infecções, e, quando os tremores cessam, ele se sente sufocado como se alguém invencível o estrangulasse, mas na iminência do desmaio ele não desmaia, agora resta um cansaço, mas ele tem de digitar mais, porém os dedos tremem como se fossem se desprender das mãos, então John tentar usar a língua, mas também ela treme como se precisasse fugir da boca de modo que ele nunca possa dizer mais nada a quem quer que seja, mas a cabeça, sim, a cabeça ainda funciona, e seguidas vezes ele dá com a cabeça na árvore para ter a certeza de que ainda funciona, impedindo ao mesmo tempo em que seus olhos se fechem contra a sua vontade, eles querem se fechar para sempre, os malditos, e há os dentes, estes não podem fugir, então ele usa os dentes para morder as mãos e obriga-las a obedecer à mente, e finalmente os dedos clicam no primeiro resultado da lista, findagrave.com: Nascimento: Novembro 1817, Salisbury, Litchefield County, Connecticut, USA. Morte: Abril 16, 1840, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Cynthia Harriet (Russell) Kidder foi a filha de William P. e Eleanor (Dutcher) Russell. 41


Foi a primeira esposa do reverendo Dr. Daniel Parish Kidder. Eles se casaram na noite de 9 de novembro de 1937 em Salisbury, Connecticut, em cerimônia celebrada pelo reverendo O. V. Ammerman. O reverendo Kidder foi um ministro da Igreja Metodista na Conferência de Genesee e na Conferência de Rock River. O reverendo e Cynthia chegaram ao Brasil, na América do Sul, em 8 de janeiro de 1838. Mrs. Kidder morreu no Rio de Janeiro em 16 de abril de 1840. Em abril do mesmo, ano, o reverendo foi para Nova York. Ele morreu em Evaston, Illinois, em 29 de julho de 1891. Ela foi enterrada no Cemitério Britânico da Gamboa, no Rio de Janeiro. Ele precisa prestar atenção ao que a menina está fazendo, mas não pode. Os dedos lacerados voltam a digitar dentro do ambiente do site findagrave.com: Valeriy Frantzevich, morto em 7 de outubro de 1992. Francis Norman Bell, morto em 22 de novembro de 1917. B. Bradley, morto em 23 de junho de 1917. Todos enterrados no Cemitério Britânico da Gamboa ou Cemitério dos Ingleses. São todos vizinhos do Morro da Providência. John consegue comandar as pernas ou as pernas conseguem comandar John, e ele encontra um jeito de invadir a casa, mas a invasão não é notada pela menina, que chora abraçada às bonecas. Ele quer abraçar a menina e as bonecas, mas vê um livro no chão, e suas mãos o obrigam a pegar e abrir o livro, e o que ele vê é o nome manuscrito da Mrs. Kidder, é uma Bíblia da Sociedade Americana da Bíblia, edição de 1837, e o que ele mais ele vê antes de tombar desacordado é o próprio enterro no Cemitério dos Ingleses, o mais antigo da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

TONI MARQUES

nasceu em 1964 no Rio de Janeiro. Seu romance mais recente é Macaca de Auditório (2013). Foi curador das duas primeiras edições da Festa Literária Internacional das Periferias (FLUPP) e publicou dois contos em coletâneas de literatura brasileira na França, em 2014. Jornalista, foi correspondente do jornal O Globo em Nova York e desde 2007 é editor de texto no programa Fantástico, da Rede Globo.

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SOTNOC ED ATSIVER


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