ANDERSON FONSECA ASSIONARA SOUZA BRUNO MAGNO ALVES BRUNO RIBEIRO DANIEL OSIECKI FERNANDA FIORITO FILIPE COVRE FLAMARION SILVA FLÁVIO vm cOSTA GUILHERME BACCHIN GUSTAVO RIOS IVAN NASF MARIEL REIS MARIO FILIPE CAVALCANTI SANTANA FILHO TIAGO VELASCO VIVIAN PIZZINGA
ANO 01 / # 09
REVISTA DE CONTOS
REVISTA DE CONTOS
© 2014 PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 2014 COM O TÍTULO FLAUBERT REVISTA DE CONTOS Nº 9 /// COPYRIGHT DA SELEÇÃO © 2014 FLAUBERT REVISTA DE CONTOS /// todos os textos desta edição são copyright de seus respectivos autores /// © ANDERSON FONSECa // ASSIONARA SOUZA // BRUNO MAGNO ALVES // BRUNO RIBEIRO // DANIEL OSIECKI // FERNANDA FIORITO // FILIPE COVRE // FLAMARION SILVA // FLÁVIO vm cOSTA // GUILHERME BACCHIN // GUSTAVO RIOS // IVAN NASF // MARIEL REIS // MARIO FILIPE CAVALCANTI // SANTANA FILHO // TIAGO VELASCO // VIVIAN PIZZINGA ///
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NESTA EDIÇÃO: 9 ANDERSON FONSECA
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ASSIONARA SOUZA
BRUNO MAGNO ALVES
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BRUNO RIBEIRO
DANIEL OSIECKI
FERNANDA FIORITO
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FILIPE COVRE
FLAMARION SILVA
FLÁVIO vm cOSTA
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GUILHERME BACCHIN
GUSTAVO RIOS
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IVAN NASF
MARIEL REIS
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MARIO FILIPE CAVALCANTI
SANTANA FILHO
TIAGO VELASCO
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os personagens e as situações dos contos aqui publicados são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opiniões.
ANO 01 / # 09 BRASIL 2014
A
maioridade da revista flaubert está cada vez mais próxima. A nona edição conta com alguns contistas repletos de talento e boa vontade para com a publicação. Outros, editores regionais, somam arsenal dentro da publicação com a reelaboração de narrativas curiosas e intensas dentro do potencial criativo do contista. Nesse número, a experiência soma-se ao risco. A maioria dos editores expõem artífices com relevo artístico invejável. O padrão gráfico cada vez mais se sofistica dentro de linhas clássicas. Uma outra boa notícia é a repercussão da revista em outras plagas. Soube, recentemente, que o mundo hispânico já a reconhece e titula uma das mais originais tendências dentro da narrativa curta em publicações no país. Quando me refiro ao “mundo hispânico” acentuo demais um caráter, o que positivamente pode ser visto como hiperbólico, mas tenho a garantia de uns certos escritores viajantes que o exagero está mais para a exatidão do que o contrário.
EDITORIAL
Um dos editores enfrentou o desagradável incidente da recusa de um contista admirado pela maioria de nós. A alegação – compreensível – de que a falta de remuneração representava um desestímulo provocou um choque em nós, porque contávamos como certa a compreensão do escritor com o caráter nascente da revista que ainda está impossibilitada pecuniariamente de acertos financeiros com seus colaboradores. É vontade da revista, um dia, realizar a remuneração tanto dos editores quanto dos contistas – o que não é ainda uma realidade. No entanto, a decepção não pode esmorecer nosso ânimo para prosseguir, mesmo contrariados, porque se aqui é cobrado, sabemos que em outros lugares, determinados escritores dispõem-se a doação dos rins para figuração de alguns segundos. O que não é o caso do contista aludido, certamente. Portanto, meu editor, mesmo na cova dos leões, dirija os olhos para cima, empreste preces ao céu luminoso e toda a cave se preencherá de uma luz toda especial. A publicação, reinventada através da nerval e da sainte-beuve, sofrerá mais uma mutação em 2015. Agradeço, de antemão, ao escritor Sérgio Tavares, o nosso Vírgilio, a nossa visita guiada por um inferno todo particular, explorado – futuramente – de um determinado descendente de Caim, marcado com a maldição rimbaudiana, fundido à essência de um Orfeu de lira eletrificada. Meus fiéis leitores não nos abandonem! Multipliquem nossas vozes, repliquem nossos apelos, aceitem nossos reiterados pedidos de crescimento, creiam em nosso projeto pretensioso de honestidade intelectual, comprem nossas ações com sua credibilidade. Deposito todo o meu afeto em cada um de vocês que se debruça sobre as páginas de flaubert, murmurando sinais para a eternidade, construindo conosco o futuro. Sejam bem-vindos mais uma vez MARIEL REIS // EDITOR
reboot Tudo que o homem semear, isso também ceifará. (Gálatas 6:7)
anderson fonseca
“Helena.” “Oi, Sebastian. Sente-se para beber um café.” “Não. Não quero. Obrigado. Como sei o seu nome?” “Ora, você sabe. Nós nos conhecemos.” “Claro, claro. Mas não me lembro de estarmos juntos.” “Como não lembra? Estamos casados há seis anos.” “Seis anos? Nossa!” “Surpreso?” “Sim. Não me lembro de sermos casados, nem sequer dessa sala. Lembro-me de você, porém, não como esposa. Afinal, onde estou?” “Em nossa casa, onde mais seria?” “Não esqueço isso... Em algum momento a matei. Sim, você estava aí sentada, bebendo seu café, quando a surpreendo apunhalando-a no pescoço. Tenho certeza de não ter sido um sonho, mas agora não sei o que é.” “Querido, você realmente fez isso. Você fez nesse instante. Tome a faca.” “Não, não posso. Aliás, não quero.” “Não há querer. Pegue.” “E agora?” “Apunhala-me seu imbecil.” Dezenas de vezes, Sebastian afundou a faca. Dezenas a repetir-se indefinidamente, até se tornarem inumeráveis. E à medida que se repetia a cena, Sebastian dizia não. *
*
*
É importante saber manejar a faca para cortar um pedaço de carne, melhor manejo deve-se ter, contudo, na hora de introduzi-la no corpo de alguém. Sobretudo, coragem. Estou indo matar Helena, uma mulher que conheci há dois dias, quando a deixei em frente à sua casa. Ela pagou a viagem, agradeceu-me e entrou. Hoje retorno para cobrar o restante da dívida. É a terceira vez que a mato. Não me canso de fazê‑lo. Eu a vejo bebendo café. Retiro do bolso uma faca com cabo de madeira. Ela me vê. Está surpresa. Não a deixo gritar. Um golpe no pescoço, depois outro, e outro, e outro. Quando a faca penetra a carne até o cabo, paro. Largo o corpo no chão. Fecho a porta e vou. 9
Sei que voltarei a matá-la da mesma forma. Não entendo a razão de isso repetir-se. Mas não me sinto cansado, até acho divertido. *
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“Helena. Olhe para mim. Eu tenho que matá-la. Preciso que olhe.” “Sebastian, por que você deseja matar-me? Eu te amo.” “Não. Você não me ama. Vamos acabar com isso. Mantenha os olhos assim.” *
*
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... Helena está na sala sentada à mesa McDonald vermelha, bebendo café. A mesa fica ao lado da janela de frente para a Avenida São Paulo. Helena está de vestido estampado em flores copo-de-leite num fundo azul-piscina. A mesa vermelha destaca o azul que cobre sua pele branca sobreposta na tempestade cinza da vidraça. Ela está distraída. Inesperadamente diante de seus olhos aparece um homem alto e careca, segurando uma faca. Helena não tem tempo para gritar, a faca entra em sua garganta uma vez, depois outra, e mais outra até tudo escurecer. *
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“Quanto tempo?” “Quanto tempo o quê?” “Responda! Há quanto tempo estamos aqui, nesse universo, revivendo o mesmo dia?” “Como vou saber? Não sou eu a razão disso. É você.” “Eu? Impossível.” “Sem dúvida. Você é idiota? Estou morta, lembra-se? Só um deus pode reviverme. E outra, como eu poderia estar ciente de minha própria morte? Diga.” “Não sei.” “Você sabe. Claro que sabe”. “Eu... Eu criei isso.” “Só pode”. “E quem seria você?” “Isso importa? Cumpra seu dever. Mate-me.” “Não quero.” “Faça!” *
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Sebastian não dorme, revive o dia, e com ele o punhal enterrado na garganta de Helena. 96 vezes em 24 horas, e cada repetição dura 15 minutos. De certo modo, à medida que ele a mata, parte de sua personalidade é destruída. A consequência: a vontade de matá-la diminui. No entanto, o programa obriga-o a fazer. A liberdade está restrita ao tempo. A reinicialização súbita impede que ele aja diferente do momento anterior. Não entendo como sua mente suporta ser zerada para a reinicialização. Embora ciente de que Sebastian não esquece, seu cérebro faz as mesmas escolhas baseadas na gravação daquele pedaço do tempo. Dr. Minos *
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...Dessa vez, Helena está sorrindo. Ela e eu bebemos café. 10
“Sebastian, você me ama?” “Não sei Helena. Acho que sim.” “Já é um começo.” Ela ri. Um homem entra... Sou eu. Não consigo levantar-me para impedir. Ele a mata. *
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...Entro na casa. É inevitável. Perdi o número de quantas vezes revivi a cena. Estou cansado. Não suporto matá-la. Mas devo, nem sei por quê. *
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É importante saber manejar a faca para cortar um pedaço de carne, melhor manejo deve-se ter, contudo, na hora de introduzi-la no corpo de alguém. Sobretudo, coragem. Estou indo matar Helena, uma mulher que conheci há dois dias, quando a deixei em frente à sua casa. Ela pagou a viagem, agradeceu-me e entrou. Hoje retorno para cobrar o restante da dívida. É a décima primeira vez que a mato. Minha faca não se cansa de fazê-la. Quanto a mim, não suporto mais o peso do aço em minha mão. Eu desejo abandonar a faca, mas ela fundiu-se à carne, como se fundiu ao tempo. A cada momento que revivo, revivo-o empunhando o aço. *
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“Não, não irei fazer isso. Não mais.” Paro atrás de Helena. Ela continua a beber seu café. “Não irei.” “Você deve.” Diz o homem de paletó e gravata. “Por que devo?” “Porque essa é a sua condenação, prisioneiro 1104.” “Quem sou eu?” “Prisioneiro 1104. O que vê não é a realidade, mas a memória dela. Você está sonhando. Há dois anos, você, Sebastian, assassinou Helena, e foi sentenciado à prisão perpétua. Sua condenação é viver o mesmo homicídio todos os dias pelo resto de sua vida. Você está num presídio. Sou o diretor Minos. Criei o programa Dédalus, um labirinto temporal, em que o condenado revive o mesmo dia. Não se trata, contudo, de uma máquina do tempo. Não exatamente. Um computador acessa sua memória e induz o cérebro, durante o sono, a repetir a cena. Você revive tudo como se fosse real, porém, como se trata de um sonho, existe certa arbitrariedade que faz com que algumas coisas mudem. O que altera a cena são suas emoções que se transformam a cada repetição. Em seu caso, Sebastian, foi a paixão. Apaixonado, ou não, você tornará a matá-la.” “Não, por favor, não.” “Arrependeu-se?” “Sim. Não quero mais.” “Isso basta.” *
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Sebastian está sentado à mesa bebendo café. Inesperadamente, Helena aparece e o apunha-la no pescoço uma vez, depois outra, e outra, até tudo escurecer. *
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*
“Doutor Minos, o prisioneiro 1104 está em coma.” – disse a enfermeira. “Ordene que desliguem os aparelhos”. “Como desejar.”
ANDERSON FONSECA é autor de O que eu disse ao General (ed. Oitava Rima, 2014).
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dentro da coisa “I have to admit I love to be waited on …” (Blanche D.)
assionara souza
Entendo que a noite não cai. Pousa suas garras em meus pensamentos. Não sei em que ponto da cidade se encontra o mistério. Desespero perfumado. Urgência sem ansiedade. Escrevo poemas sem fim na folha da mesa. Para serem por lá abandonados. Jamais seria um poeta de guardanapos. Jamais. Prefiro ler com tédio os letreiros de propaganda. Com tédio, escutar a música das crianças no casarão. Com tédio, sentir o cheiro doce que vem da rua. Prefiro nada. Alguma coisa pode não acontecer. A cidade bifurcada. Se ela fizer mais uma dessas comigo! Um sábado estúpido. Um filme em preto e branco no cinema. As praças ainda não se expunham tanto. Pior pra mim. Então faço o grande pacto de não esperar que alguma coisa extraordinária aconteça. Eu bem mereço. E arrisco. Atravesso a rua pressentindo a memória movente daquele fim de tarde. Risos dispersos. Cheiros dispersos. Solidez de corpo que passa e me arrebenta com o olhar. Eu guardo. Quero. Dentro de mim. No café, sento num canto escuro e acompanho em silêncio o beijo vagaroso do casal na mesa longe. Não preciso pagar por isso. Não dessa vez. O líquido desce quente pela minha garganta. Penso que entre as pernas da moça escorre desejo. O moço não pensa enquanto as línguas se misturam. Isso é bom. Qualquer cena vale a pena. A menina loira curva o corpo pra limpar um canto do balcão. Me olha por baixo do braço. Em flagrante. Talvez sorria. Não posso mais desviar o olhar. Qualquer cena me acena. O amigo de sempre. No lugar inesperado. Nunca havíamos ido por aquelas bandas. Música e dança. Para esquecermos o tédio e sermos eternos por alguns instantes. Vamos. E topamos com tipos que já estavam acreditando. Sempre é bom forçar uma crença. O sorriso é de uma autenticidade pura; só quem conhece poderá supor inventado. Às vezes nos contentamos em burlar realidades. Com ímpeto de mambembe. Música no modo como os moços andam. Música no inusitado de 13
corpos se esbarrando. Música diluindo tudo o quanto é sólido. É quando há dança. Fecho os olhos e deixo. Compreendo o que não sei se sinto. Algo que sempre esteve comigo. Criando um campo magnético. Onde existo só pra mim. Nesse momento quero lembrar bem. Lembrar bem enquanto está acontecendo. Pra depois não esquecer jamais. O olho limpo. Em minha frente. Eu já contei uma vez. Mas era outra versão. Há tantas. Essa posso dizer que foi a primeira. Uma conversa traduzida pela música. Achei que podia valer a pena. A boca entreaberta que eu viria a conhecer mais tarde. Cheia de ideias e palavras. Inteira. Tudo febril. Estamos dentro da coisa. E a coisa é a paixão. Objeto quebrável. Objeto que pulsa. Escamas de peixe. Raio de sol entre folhas. As mãos do tempo fiando correspondências na noite que partilhamos. Rimos. Por causa da surpresa. Por causa de tudo o que é infantil. E que faz as crianças sentirem vontade de brincar pra sempre. Subimos escadas em descompasso. Alguns cantos ainda marcados. Ter que chegar se já estávamos apressava a pressa. O coração vivo que eu entreguei. Nenhum presente suficiente. Ressuscitar sem morrer. Toda intenção se partindo ao meio. Passeio de cabelos. Deslizando nas mãos. E pelo corpo todo. O que era música agora respiração e dança. Dois. Arrastando a vontade pra dentro. Pra dentro da coisa. Como se visse o fogo pela primeira vez. E quisesse tocar a mão. Não só. Bem perto. Entregando a memória do dia nos gestos. Indo até onde o olho pudesse melhor enxergar. O meu presente sem sono. Aceso e quente. O que veio depois. Gostaríamos de não compreender. Gostaríamos de cores em movimento. Sempre esquecer pra lembrar. Entrar num café. O casal não é mais o mesmo de antes. A eterna repetição do beijo. Os poemas ainda inacabados. A dança. A música. O carro seguindo até sua casa. Escadas em confusão. Nós dentro da noite. Uma viagem. Fotografias projetadas na parede. Telefonemas sem palavras. Um encontro rápido. Olhar nem sempre significa ver. A coisa ainda dentro de nós. Mas não estávamos mais ali. Nunca estivemos.
assionara souza é escritora nascida em Caicó e radicada em Curitiba. Publicou Cecília não é um Cachimbo (2005) e Amanhã. Com Sorvete (2010) ambos pela 7Letras, e Os hábitos e os monges (Kafka, 2011).
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exploração urbana bruno magno alves
Não há nada depois do espelho. Na casa abandonada imperam o silêncio e o negrume que atestam às décadas de abandono. Em alguns pontos específicos, frestas de luz perene: o astro-Rei tenta recuperar entre um espaço e outro a hegemonia de dias melhores. Ilumina manchas claras que rajam o corredor, revela no ar estagnado partículas de poeira, pinta o cômodo longo de verde e marrom em tons desbotados. O menino usa um calção curto que denuncia os ralados de seus joelhos. Exibeos com gosto, andando de cá para lá com as pernas arqueadas, ostentando cada leve machucado como um atestado a seu valor. Pequenos pontos de vermelhoescuro sobre a pele pálida lembram dores e experiências. Sobe e desce as escadas rachadas, brincando com o medo e expectativa de adicionar mais um ralado à sua coleção. A menina que o acompanha está desatenta; observa os arredores. Espera nas portas para assistir aos cômodos, para os tons pastéis que o tempo tratou de domesticar. Examina as ruínas com êxtase infantil; a prova do abandono urbano, convenientemente localizada entre um comércio e um hotel. Veja a porta, por exemplo. Como é velha! Sai de seu eixo para despencar para dentro do quarto com um baque surdo na poeira. Esquecida pelo dono, esquecida pelo mundo, um pequeno cosmos de decadência. Shhh, silêncio. Ignorando o outro, a menina sorri. Estão dentro da casa. A casa abandonada. Pura exultação, esse lance de exploração urbana. *** Breu rajado de sol, o cheiro de madeira podre. Uma lanterna nas mãos. Passos no corredor, pulos pela escada. Um facho de luz que revela a porta pendente e um quarto apertado. Uma fala que quebra o silêncio de tumba e reverbera em ecos: oi? Oi? Shhh, silêncio. Não há ninguém aqui. 15
*** Mas não há nada depois do espelho. A menina o encontra durante sua caminhada por depois dos portais bambos. Revela-se o quarto atrás do corredor, onde o sol não alcança e tudo é a lanterna. Facho de luz, facho de vida. Lá está a madeira, o cheiro do podre e o cheiro do velho, a falta de ar e a falta de sol. Dois quartos juntos através do vidro em seu meio. O espelho cobre inteiro a altura do cômodo. Revela em seu reflexo tudo o que há para ser visto: o guarda-roupas aos pedaços, as manchas claras onde outrora estiveram uma cama e um criado-mudo. Revela o negrume entre os espaços e os olhares, mesmo as partículas de poeira que inundam o chão como pequenos cupins, sem as frestas relutantes de sol que vêm do corredor. Exceto... Meu irmão... O que foi? Vem cá... rapidinho. O que foi? Olha pro espelho. Dá uma olhada. Tá. Qual o problema? Você não está vendo? O quê? Não estamos no reflexo. O irmão se aproxima com um olhar de fascínio no rosto. Esquece por alguns momentos sua perigosa brincadeira de pulos e saltos, de brincadeiras entre pernas e tábuas, para observar o espelho imóvel no quarto da irmã. O reflexo enorme do quarto ignora as figuras humanas do lado real. No lado virtual, apenas o nada prevalece. Apenas a necrópole de móveis. *** Os irmãos passam sua tarde em frente ao espelho. Ao seu redor, o mundo se traduz em preto e marrom, desbotando-se e perdendo a saturação até se misturaram ao inconfundível cinzento de tumba. Desconstrói-se e se desfaz até que só sobra o quarto, este cubo decadente que se perde após a porta bamba. Ambos sentam-se à frente e traduzem seu mundo em calma contemplação. Do outro lado do vidro há um quarto exatamente igual, a não ser pela diferença muito clara e muito significante que resulta na inexistência das cruanças. A menina deixa cair uma moeda no chão, mas tampouco ela se reproduz no espelho. Ali, do outro lado, há apenas a entropia. Qualquer vida é rejeitada. Mesmo o sol não está mais do outro lado. O caçula olha em direção da mais velha e aperta com força seu pulso com os dedos pálidos e finos de garoto come-pouco. A menina volta-se então para a massa de preto e branco que é seu irmão, os olhos castanhos e assustados visíveis pelas sobras da lanterna. Mana. Que foi? O que isso significa? Eu não sei. 16
Não gosto disso. Ele se levanta, balançando a lanterna e tirando o facho do lugar. Não há luz no reflexo. Não há mais vontade de brincar. Em meia-volta, vira-se em direção à porta, e dá dois passos até perceber que sua irmã não virá junto. Parado no vão da porta observa, em silêncio, a menina em frente ao espelho. Observa, consternado, a não-menina do outro lado. Mana. Não há ninguém aqui. Ela não se mexe. Ele não sai. *** Todos os dias, o mestre ministra suas aulas durante o fim de tarde e o começo da noite. Garoto e garota contemplam em solidão as irreversíveis ruínas do lado contrário, dia após dia, semana após semana, enfeitiçados pelo inesgotável fascino da imagem estática. Tentam mudá-la; quando ela traz uma vassoura e remove a poeira, nada se altera. Faz um buraco no chão; mas o espelho se recusa a mostrar outra imagem. O reflexo é imutável e perfeito. O vidro esconde o retrato inequívoco do desuso e descaso, imortalizados entre grãos de pele morta pela pintura irreal da realidade. Por que ainda vão para lá, para ver o nada, quando há tanto tudo ao seu redor? Talvez haja tanto tudo que precisem de vez em quando de um pouco de nada para equilibrar. Incapazes de resistir aos efeitos do desconhecido, os meninos assiduamente frequentam as aulas de professor espelho, do reflexo que tudo sabe. Mostramos a mais pura verdade; apenas a realidade infiltrada no simulacro. De um lado há a vida e a morte, a existência e não existência. Aqui não há dia e noite, nem sol e lua; não há tudo e nada. Há apenas a realidade da entropia, o futuro inevitável de tudo o que hoje – finge que – existe. Nenhum dos dois fala nada. Apenas se sentam à frente do vidro. Ali, nenhuma palavra é mais expressiva que este silêncio. Silêncio sereno, silêncio opressivo. Pequenas mentes trabalhando para tirar as teias de um mistério. Sabe o que isso significa? Hm? Talvez nós não sejamos gente de verdade. Talvez seja o outro lado que seja falso. Eu acho que não existimos. Talvez nenhum de vocês dois, nem eu, existamos. Não há nada depois do espelho que possam ver ou sentir. O que inunda o ambiente é uma voz grave e retumbante que lhes responde por detrás do vidro maculado com sutil perspicácia. Você é só um espelho. Sou só um espelho. Todos somos espelhos. Não somos espelhos. *** Talvez sejamos espelhos. *** 17
Passe a mão sobre o mestre incógnito. Sinta a fina película de poeira sobre sua superfície lisa. Deixe a marca de mão sobre o vidro, tente afetar a lâmina refletora. Vale qualquer coisa para mostrar que existe, para desmentir o móvel e provar que, desde que haja um efeito sobre este mundo, nem toda a entropia é niilista. Qual o sentido de estar aqui se vai terminar como mostramos? Tudo sempre se tornará nada. Então por que o tudo? Por que não pulamos direto para o fim? O que significam estes meios? Se existimos, mana, por que não podemos mudar o espelho? Por que ele é sempre a mesma coisa? Mesmo que existamos, mana, se não pudermos mudar o reflexo, nada valerá de nada. A menina se pergunta cadê o menino que nos dias anteriores ostentava seus machucados, sua prova de dor e de lembrança, sua prova de existência? Agora está sentado em frente ao espelho que assimila sua essência. Ele hoje está de calças compridas. Se não pudermos mudar o reflexo... O menino a encara por alguns segundos. Ambos sentados, sujam as pernas de poeira. Podem ficar por horas observando o assoalho escuro, esperando pelas listras de sol no corredor se apagarem com o mundo. A escada não range mais. Precisamos provar que está errado. Que tal um martelo? *** Martelo: instrumento de construção, mas instrumento de destruição. É fascinante que possamos desfazer com o que foi criado para fazer. Vocês trazem este martelo para acabar com o que lhes mostra a indubitável mas inconveniente verdade. Meu amor, é apenas uma negação – fechar os olhos e matar o mensageiro não é a saída. Mas, afinal, não há saída. Só há nós. *** Quebra, quebra! Acabe com o espelho. Chute as escadas, rale o joelho! Mude o mundo, faça algo, deixe sua marca. Quebre as tábuas e deixe a luz do sol entrar. Veja a mistura de vermelho, branco e laranja que transborda pelas janelas e entre as frestas das paredes para dentro do cosmos de abandono! O espelho mostra o que não deve, então que seja destruído. Ele cobre a parede inteira; então, metade da parede. Enfim, ele não cobre nada. E se nós ainda não existirmos? Os degraus da escada se desfazem em ruínas e madeira. A poeira não existe mais. Todo o marrom e o verde se convertem no cinzento esbranquiçado, amarelado e encardido do nada consumido em luz. Pouco a pouco, o sol retoma, ávido e faminto, o que lhe foi por tanto tempo negado. Nós nunca estamos no reflexo. 18
E não há nada depois do espelho. Não há uma moldura, não há a pintura descascada, nem o concreto, nem os tijolos ou madeira ou o cômodo seguinte. Não há sequer uma parede. Não há nada, absolutamente nada. Talvez sejamos nós que estejamos errados. Talvez nós que sejamos os pesadelos. A menina continua o trabalho de destruição. O martelo na mão esquerda, a direita cravejada por farpas. A dor prova que existe, prova que importa, prova que algo está sendo modificado. No ato de desfazer o desfeito, ela cria vida, luz, cor e sol no espaço vazio. Puro êxtase, pura restauração urbana. Enquanto mana completa seu trabalho, o menino olha para o nada depois do espelho. O nada diz: Meus amores! Estaremos aqui para sempre! O som das marteladas é substituído pelo silêncio libertador, silêncio opressivo. Pelas paredes transparentes de seu mundo em reconstrução, a menina vê seu irmão sendo engolido pelo vazio indescritível que absorve todas as cores e formas. Tá tudo bem, mana, sério. Não tem por que se preocupar! A gente não existe. Nem mesmo o sol pode lhe ajudar.
bruno magno alves nasceu em 1994. Nasceu paulistano, cresceu jundiaiense, e hoje é carioca em formação. Trabalha com produção editorial e este é seu primeiro conto publicado.
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horror vacui bruno ribeiro
e você imaginou que eu voltaria como relâmpago, daqueles kamikazes que se imortalizam no céu na forma de cicatriz. Não. Eu retornei tormenta, daquelas que puxam tudo para o ralo, inundando qualquer rastro de rua. Foi o que ela disse, nunca foi tão poetisa como neste dia, nem eu que sou poeta o fui alguma vez em vida; beijou minha boca, te amo, também te amo, e partiu. Judas. Seu retorno representou o começo do fim, por mais que eu não soubesse disso no momento. Saí capengando pelo chão do aeroporto com rasgos de bolsas e pedaços de lembranças, enquanto a voz abafada da aeromoça dizia nas caixas de som Luciana Muniz Luciana Muniz pim pim senhora Luciana Muniz. E Luciana devia estar correndo, atrasada, e a voz abafada dizia pim pim o voo 7897 para o Rio de Janeiro... e Luciana jogando a bolsa dentro do cesto para passar no raio-X e Luciana tentando manter a pose com seu corpo mediano, o cabelo ensolarado e laranja, olhos e lábios de ninfeta, e a voz insistindo para a senhora Luciana Muniz embarcar, atrasada, voo 7897, eu parado, esperando ela voltar para dizer perdi o voo, amor. Depois de alguns minutos, a voz parou de dizer Luciana Muniz. Voo 7897. Rio de Janeiro. Luciana dentro do avião, pedindo água. Arranhando a garganta. Inundando minha rua. Sem cicatriz. Segurando o choro, já que ela não chora, só derrama por acidente. Meu cabelo escorria nos olhos, no ombro, na barba bem feita; eu nutria uma aparência de perdedor amável, daqueles que alguém gostaria de tomar de conta, pois o mundo sempre deseja um brinquedinho quebrado para consertar e controlar, e um destes mundos, talvez não tão controlador, talvez não tão homem, estava no banheiro masculino do aeroporto, mijando ao meu lado no mictório. Ele também tinha cabelos longos e negros, olhos e lábios finos, porcelana em forma de gente, eu; reparei porque ele me encarava com uma curiosidade desconcertante. ¿Te conheço?, perguntei. Ele riu. Dentes largos, horizontais demais, arreganhados. Você é o autor de Poetas não morrem com tiro de doze. ¿Certo? Seu sotaque era estranho, meio alemão, soviético, guerra fria, mecânico, robô defeituoso. Respondi: certo. ¿Autógrafo? Ele perguntou e concordei com a cabeça. Me segue, o livro tá ali. Ele balançou o pau e apontou para o lado de fora do banheiro. Fomos a um café que ficava do lado de fora do aeroporto. Um café no calor de João Pessoa. Não importa o turno, era sete da noite com abafado de meio dia. Eu com olhos vermelhos, lacrimejando, impaciente, ainda escutando a voz da moça do aeroporto dizer Luciana Muniz, e a tal figura cabeluda, óculos escuros 20
na noite, todo de preto feito vela de macumba, tomava um café. ¿Cadê o livro? Ele abriu sua mala de couro, não preciso dizer a cor, tirou um exemplar de Poetas não morrem com tiro de doze. Admirei meu livro, finalista do Portugal Telecom, elogiado pela Folha e Clarín. Evandro Saldanha, grande crítico, disse que é o trabalho de um poeta que não teme a linguagem e seu eterno precipício, ele coloca as raízes do seu estado no mapa da literatura e prova ter... ¿Assino no nome de? Ele sussurra Manuel di Paula. Para o desconhecido amigo, Manuel di Paula. Abaixo coloco Abraços do Autor. Passo o livro para ele e me despeço. Ei, ele me segura, calma. Tô apressado, Manuel, problemas pessoais... Ela volta, ele diz. Eu talvez não volte, mas ela volta. ¿Como é? Tenho uma proposta. Não tenho tempo. Tem sim. Acho que não. O seu tempo é eterno, poeta. Quem sofre sempre tem tempo, até porque não consegue fazer nada. Quero te propor um negócio. Envolve seu ofício, arte, vida. Envolve sair deste templo abafado de passado, uma mudança, novos ares, Buenos Aires, cidade e pessoas distintas. ¿Porque você? Porque há anos não leio algo com tanta carne. Você escreve como se matasse. Há víscera aqui, pinga de cada página, alimentei-me do seu livro, literalmente. Busco você há alguns meses, nada difícil: internet, Google, encontrei rápido. Anos mesmo, muitos anos que não leio algo como este breve livro de 100 páginas, senhor autor poeta. Quando digo muitos anos não estou brincando; meu rosto de parafina e olhos tão joviais quanto os seus escondem verdades que não devem ser pronunciadas. Manuel acendeu um cigarro. A fumaça do café invade a nicotina. Seu rosto de zumbi queda escondido por detrás da cortina cinzenta. Volto a me levantar e ele aperta meu braço com força. Fujo do café e entro no primeiro táxi que vejo. Seu corpo magro alcançou a janela do carro; ele abriu os braços finos e ergueu a cabeça, deixando o queixo esquelético a mostra; o escutei gritar: deixe-me terminar, poeta. ¡Manuel di Paula, Manuel di Paula, Manuel di Paula vive, vive! O vive vive vive ficou ecoando dentro do táxi apertado e com gosto de poeira. Ordenei ao motorista para seguir até Campina Grande. Ele assentiu com a cabeça, dizendo que seria duzentos conto. Confirmei sem saber se teria o dinheiro do almoço da semana e abri a janela, deixando o vento arisco da capital paraibana tomar meu rosto em luto. Luciana se foi, se foi, volta daqui um ano, longe por demais, rodeada de mulatos bronzeados e fortes, Luciana se foi, já era. Luciana de praia boa. Sol bom. Se é que há um sol ruim, talvez para os russos e depressivos. Talvez. Queria eu não ser poeta para poder ter dinheiro, visitá-la todo dia ou fim de semana ou mesmo em um dia qualquer. Escolhi o caminho da derrota, ela mestranda em sociologia, o caminho da derrota com roupagem de vitória. Somos dois perdedores apaixonados. E lá vai Luciana, voando agora, segurando o pranto, lembrando dos nossos bons momentos, a tormenta no sexo, a calmaria das leituras, o beijo doce que por hora tornava-se amargo, dependendo do ânimo. Do autor. O taxista diz ela volta, eu respondo sei. Sempre voltam, ele repete algumas vezes, enquanto a rádio 89.5 tocava alguma música internacional e com refrães apaixonantes. Me identifiquei com a letra e vi que estava mal: quando a música pop se comunica com você é hora de pedir arrego. Derrotado, gritei. O motorista deixou quieto o grito, acendeu um cigarro e acelerou. Na maresia da autoestrada, observando os prédios, a noite, os carros velozes e placas de quilômetros, um táxi surgiu ao lado. Vidro fumê descendo, devagar, revelando o rosto decorado de brancura exótica do meu fã. Manuel di Paula. Ele tira os óculos escuros, revelando olheiras, negritude e fineza na mirada. Por favor, ele suplicou, dinheiro não será problema. Deixe-me contar a proposta que carrego. ¿O que você fará em Campina Grande, poeta? ¿Sarau com outros escritores derrotados? ¿Cachaça em botecos denegridos? ¿Putas e autodestruição? Seu amor se foi, você precisa de vida nova, ares 21
que possam reascender sua mirada criativa. Sou sua salvação, a única, minha mão erguerá seu talento, minha vida e história carregam a essência que Baudelaire tanto procurava nas noites ébrias de Paris, eu sou o alcoolismo de Poe, a chaga que arregrouse em Sylvia Plath. Venha comigo, siga minhas palavras, será o trabalho dos sonhos. ¿Porque você? Acelera mais, pedi ao taxista. O carro ultrapassou uns dois automóveis, no vidro de trás, vejo o táxi de Manuel tentando nos alcançar; suas mãos suplicando atenção. Só você sabe minha história, ele gritou. E após ultrapassarmos um caminhão, o perdemos de vista. O taxista coçou sua cabeça calva e perguntou se era um amigo. Disse que era um lunático. E seguimos viagem sem trocar mais nenhuma palavra. Quilômetros foram mastigados e alcançamos o objetivo final: Campina Grande, minha rua, meu bairro, meu número e prédio. Chegamos rápido, olhos sem fechar, lembranças dela a cada minuto rodado. Paguei o taxista e desci. Antes que o porteiro pudesse soltar alguma piada envolvendo minha incapacidade de dirigir, alcancei a porta do apê, 302, chave em mãos, abri, chorei. Fui para o chuveiro e ali fiz minha morada da destruição. A poesia arruína por dentro, assim como o amor. Por azar dos Deuses e Demônios, carrego as duas em mim. Enxuguei-me, entrei no facebook e mandei um recado para Luciana, quando chegar avisa, te amo e já estou com saudades. Achei muito frívolo, levemente seco, ela vai querer mais, estará longe, provavelmente com mais saudade do que eu. Escrevi que realmente a amava, que pensei nela a cada segundo e deambulei palavras vazadas de um fluxo continental de fluidos sem lá nem cá, daquelas que vão sendo escritas sem sequer um pingo de discernimento: dizem que são nelas que residem a tal verdade. Finalizei com um eu te amo. Reli o texto e vi que haviam sete eu te amo. Ela vai me achar um retardado, mas não havia como apagar, já estava enviado. Depois que está na internet não se retorna. Abaixei a cabeça e perambulei pelo meu apartamento: um quarto, cozinha, abri a geladeira vazia, pisei no tapete felpudo, fumei um maço de cigarros amassados na varanda e suguei lamúrias; olhei o facebook em busca da resposta dela; acendi mais cigarros e quis digitar um outro eu te amo. Até que decidi ligar para meus amigos para sair e encher a cara, mas não encontrei meu celular. Procurei no banheiro, na imensidão da privada, no tapete imundo de pulgas, debaixo do cobertor que festeja seu aniversário de 5 anos sem ser limpado, gavetas & armários, bolsos & sanidade, ¿onde tá essa merda? E uma voz respondeu: aqui, poeta. Uma voz meio alemã, soviética, guerra fria, mecânica, robô defeituoso. Aqui, repete a voz. Ela estava sendo invocada do lado de fora do apartamento, parada na frente da porta 302, solitária em meio ao som das nuvens que deslizavam pelo céu morto. Abri a porta e Manuel di Paula perguntou se podia entrar. O celular em suas mãos albinas. Arranquei o aparelho de seus dedos e fechei a porta. Luciana Muniz, nós não voltaremos, o amor foi enterrado naquele aeroporto frio. Por mim, a morte podia me chamar neste instante, nada mais importava. Fui para a varanda: três andares. Não conseguiria morrer, no máximo um traumatismo craniano. Um suicida fracassado, eis um conceito em voga. Oi poeta, abre a porta, a voz disse. Tremi. Saí da varanda e me deparei com o corpo branco e cadavérico de Manuel di Paula na sala de estar ¿Posso entrar? ¿Como você entrou? Gaguejava. ¿Posso entrar? Você já entrou, maluco. ¿Posso entrar? Entra, porra. Ele segue até a porta e a fecha, abre um sorriso e diz: você esqueceu de passar a chave na porta, poeta, o mundo anda perigoso: desculpe a invasão. Deixo meu corpo solto no sofá e acendo um cigarro. ¿O que você quer, maluco? Acho que agora você está pronto para escutar minha proposta, escriba. ¿Pronto? Agora que você está caído, próximo de se tornar sarjeta, poderei falar de igual ¿E isto? Manuel aponta para o notebook: a morte da poesia, da escrita, da alta literatura, poeta, você não precisa paquerar a varanda, tu já estás morto. Refugia-se 22
em uma rede social que serve para nos abandonar do todo, tudo aí é fuga, lejanía, diriam os poetas argentinos. Sua única chance sou eu. Agora, há duas escolhas, essa que aqui fala ou os três andares. Há uma chance de morte, mas também há uma de fracasso ¿O que você quer, senhor Manuel? Jogo o cigarro no chão. Autor, sua mulher não voltará, mas as possibilidades podem alcançar seu desejo, pois eu carrego a vontade dos homens que constroem castelos de violinos; este olho que brilha e pesa na sua nuca é o sussurro do féretro e eu estou aqui para fazê-lo sobreviver, resplandecer. Manuel senta no sofá, encara meu corpo e dedilha com a oratória, quero que você escreva, não poesia, mas prosa. A prosa da minha vida. A biografia de Manuel di Paula. Em uníssono dizemos “sois toujours poète, même en prose”. Repetimos juntos, novamente, ¡Baudelaire!, nossas vozes em conjunto ressonavam um eco grave, únicas, feitas para serem proferidas como uma só coisa, sem separação de tons; havia faísca, química, poesia. Nunca escrevi uma biografia, cara. Por isso você, poeta, estás fresco, sensível aos pormenores do meio, um vento para ti não é somente vento, é a natureza te expulsando da terra, o piso não é piso, é sustento de carne, o céu não é céu, é o teto da sanidade humana; nada é o que dizem já que pintar realidades não é o papel de um poeta, tu vives em um universo onde ninguém pode dizer que há lógica, já que um verdadeiro poeta, coisa que és, não pode agir com os sentidos humanos, deve ser metafísica, e assim és, poeta, e assim és; li seu livro e sabia que havia Manuel di Paula ali. Cara, interrompo, ando meio fudido, sem dinheiro para nada e sei lá se conseguiria escrever... ¡Poeta!, você sairá daqui, ¿lembra no aeroporto que disse Buenos Aires? Sim, a capital argentina, a bela porteña das empanadas e alfajores para os turistas tontos, é nesta localidade que você escreverá minha biografia, pois é daquele ventre que meu pai nasceu e foi em Buenos Aires que me tornei o que sou hoje. ¿O que você é hoje, Manuel? Eu nasci na cidade de Tigre, província de Buenos Aires, pai argentino e mãe brasileira, mudei-me para o Brasil com quatro anos de idade e só voltei para argentina com 25, onde ocorreu minha transformação, meu segundo nascimento, pelas mãos de um boêmio escritor porteño. O ritual não demorou, mas doeu, agonizei por 7 dias e noites vermelhas até sentir minhas narinas serem rasgadas pelo vento do inverno: ali nascia um eterno... Manuel, ainda não estou entendendo nada. Sei lá, do que você está falando, no que você se transformou, para de enrolar. Vamos até a varanda, poeta. Fomos para a varanda: lua em riste, vento frio da noite campinense batendo em nós dois. Me siga, poeta; eu sou tudo e nada, milionário, homem de inúmeras histórias e com 300 anos de vida aqui na terra, eu sou o que não deve ser dito neste século, sou aquele que você contará a história. Sei... Ignoro a zoeira dos 300 anos de vida aqui na terra e pergunto do valor, ¿quanto receberia para escrever essa merda? Manuel coloca a mão em meu ombro: você diz o valor, peça o que quiser autor que cheira à criança e que a desgraça dilata os olhos; a varanda sob nossos corpos é seu novo desejo, poeta que escreverá minha vida, poeta que será milionário; Mefistófeles, digo, eis o que peço, digo inconscientemente: Luciana Muniz em meus braços e um milhão de reais. ¿Sua biografia vale isso?, pergunto. Ao meu lado, Luciana reluziu. Sorria, brilhava amarelo, disse que me amava e que deveria aceitar a proposta. O dinheiro não é problema, confie, Manuel sussurrou e a imagem tétrica do meu amor se esvaiu. Depois da visão tornou-se impossível não acreditar ou não aceitar, disse: olha... pode ser então. Vou confiar. Ok, Manuel me interrompe e diz: preciso que você repita um pequeno texto para iniciarmos os trabalhos, lá vai: eu aceito e digo sim, eu o autor, farei do meu corpo um monólogo de luas, dos meus dedos gatilhos de chumbo, e da minha mente poeira & sangue, assumo aqui neste contrato a responsabilidade espiritual de escrever a biografia de Manuel di Paula, morto que foi 23
despedido do caixão, homem de mil histórias, eu o autor assumo o peso deste ofício, eu. Pensei em alguma piada para soltar, visto o tamanho do texto e a eventual obviedade de que não poderia decorá-lo, entretanto, cada palavra que o visitante soturno disse ficou cravada em minha cabeça, e como que por instinto as repeti de imediato: eu aceito e digo sim, eu o autor, farei do meu corpo um monólogo de luas, dos meus dedos gatilhos de chumbo, e da minha mente poeira & sangue, assumo aqui neste contrato a responsabilidade espiritual de escrever a biografia de Manuel di Paula, morto que foi despedido do caixão, homem de mil histórias, eu o autor assumo o peso deste ofício, eu. Manuel sorriu, lembro deste amargo deslizar labial com temor, e ele disse que todos meus desejos serão atendidos: um milhão e Luciana Muniz em meus braços. Ok. Ok. Manuel enfiou a mão em sua boca e após alguns segundos de movimentos bruscos, arrancou a arcada dentária. Ele apertou meu braço e colocou sua dentadura na minha mão. A dentadura se mexeu; assustado, encarei sua gengiva negra, detonada e cheia de bolhas de pus, algumas estouradas, pingando gotas amarelas de óleo quente no piso; sua bocarra negra e circular se abriu, os olhos arregalados como dois círculos abismáticos lacrimejavam um líquido escarlate e sua gargalhada áspera fazia meu teto cerebral ruir; um cheiro mórbido de miasma, decomposição, pântano, metano, enxofre, saiu dos seus lábios murchos; desafinei e desmaiei. Agonizei por 7 dias e noites vermelhas, vi minhas narinas serem rasgadas pelo vento de inverno e senti a eternidade pulsando no peito feito martelo no aço. O amor estava próximo, fortuna dentro de mim, e a vida inteira livre e aberta, aguardando-me para preenchê-la. Luciana. Luciana. Luciana. Fama. Riqueza. Acordei e vi o nada. No nada tocava Schubert: a natureza sempre completa o vazio. Sentia-me como um zumbi desnudo. Nada preenchido de nada. Até que um homem obtuso com sotaque argentino e fanho enfiou uma faca enferrujada na minha orelha esquerda, gritei por décadas, e na lâmina estava aprisionada minha segunda identidade na terra, uivei como demônio surdo e tornei-me um eterno; e assim começa nossa biografia:
bruno ribeiro foi parido em 1989. Mineiro de berro e Paraibano de coração. É tradutor, escritor e roteirista. Lançou Poluição Mental (2012) e Arranhando Paredes (Bartlebee, 2014). É editorchefe da Revista Sexus. Vive em Buenos Aires. quebrandoogenio.com
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suas mãos daniel osiecki
Eram suas vísceras em minhas mãos. Suas vísceras estavam em minhas mãos. Eu não podia acreditar que aquela massa inerte e desfigurada havia sido minha esposa. Havia sido. Já não era mais. Como podia eu olhar para aquele amontoado de carne, ossos estilhaçados, órgãos inimagináveis, tudo envolto em sangue, muito sangue, e não me desesperar? Eu tentei puxá-la para que o ônibus não a atropelasse, mas foi tudo muito rápido, nem tive tempo de ver seu rosto com vida pela última vez. Quando o SAMU chegou tentaram me afastar de seu corpo desfigurado, mas eu não podia largar suas mãos. As mãos não sofreram nenhum tipo de ferimento. Seu rosto eu não conhecia, as pernas já não existiam, mas as mãos estavam intactas, ainda com a aliança. O que me perturbou mais do que os enfermeiros do SAMU tentando me tirar do lado dela, foram as pessoas ao redor olhando assustadas. Eu percebia que era um misto de pena, perplexidade e curiosidade. Os alunos do Tiradentes chegavam, os do Colégio Estadual saiam, e assim formou-se um mar de gente compadecida com o pobre diabo que chorava desesperado sentado no meio fio. Ás vezes eu podia ouvir alguém comentar como a vida era frágil ou como a morte de minha esposa havia sido estúpida. Mas há morte que não seja estúpida? Há morte que faça sentido? No dia em que a morte fizer mais sentido do que a vida não haverá mais o que fazer. Basta entregar-se. Mas entregar-se a quê? Ou a quem? Eu sei que naquele momento muitas imagens passavam em minha mente, como se tudo aquilo fizesse parte de um pesadelo e eu tentava abrir os olhos com mais força para acordar de uma vez por todas, como fazemos na infância quando somos atormentados por monstros e fantasmas. Aos poucos percebi que jamais acordaria daquele pesadelo, podia ficar com os olhos abertos o tempo que fosse que não adiantaria. Quando finalmente me levantei olhei as árvores altas do Passeio Público e lembrei de nossas caminhadas por todo o parque. Ela deixou de existir bem ao lado do meu lugar preferido na cidade. Principalmente pela manhã. Já anoitecia quando o carro da ambulância levou seu corpo sem vida para o Hospital do Cajuru. Eu permaneci sob cuidados médicos por algum tempo ainda. Estava completamente sedado, 25
mas podia observar que muita gente ainda estava parada na calçada tentando ver algo ou entender como aconteceu um acidente tão estúpido. Todos os acidentes são estúpidos e não há muito o que dizer sobre eles. Acontecem quando menos imaginamos. Quando ela deixou de existir estávamos indo à uma festa de aniversário. Falávamos sobre assuntos banais. Tempo; o que está passando no cinema; valor dos ingressos para shows quando, por um segundo de descuido, ela soltou minha mão e correu para a calçada. O motorista do Capão Raso/Santa Cândida parou e saiu desesperado gritando que não tinha visto minha mulher e já ligou para a emergência. Não há como explicar. Ela existia antes do acidente, agora não existe mais. Toda essa nossa fragilidade ainda me impressiona muito. Assim como me impressiona muito passar pelo local do acidente, bem no sinaleiro da Pres. Faria com a Carlos Cavalcanti. Sempre que passo por ali, ainda com muito receio quando vejo aqueles monstruosos ônibus vermelhos, tento identificar algum sinal seu que tenha ficado no asfalto, sangue ou qualquer outra coisa. Sei que logicamente não é possível depois de tanto tempo, mas o que foi lógico nisso tudo? Naturalmente não encontro sinal algum e saio logo da rua porque ao longe escuto o ronco sinistro do motor do ônibus. Algum sinal seu? Nunca mais. Nunca mais. Apenas a imagem de suas mãos intactas e frias, já sem vida, em meio ao caos. Mas ainda, sempre, suas mãos.
daniel osiecki nasceu em Curitiba, em 1983. É professor de literatura, crítico literário e editor regional da flaubert. É colunista do Jornal Relevo, de Curitiba. Publicou o livro de contos Abismo (2009) e mantém o blog Távola Redonda. www.novatavolaredonda.blogspot.com
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trilha sonora fernanda fiorito
Quando viu, já estava dentro do banheiro do bar da esquina, sentindo uma mão empurrar suas costas, delicadamente. Mal a porta fechou atrás de si, Carlo percebeu que estava dentro daquele pequeno recinto com a mulher. Uma mulher com os olhos pintados de kajal preto. Sentiu aquela mão determinada rapidamente desabotoar sua calça e dali retirar seu membro ainda flácido. Chegou a amaldiçoar aqueles dois steinhäger de quinta que havia tomado. Especialidade da casa. Ao menos havia parado de tremer. Por um breve momento pensou que seriam os seus carrascos ceifando qualquer possibilidade de ereção. Acompanhava, não sem espanto, a destreza do trabalho das mãos quando, ao levantar a cabeça, seu olhar pousou naqueles olhos pintados de preto. De onde poderia conhecê-los, aqueles olhos que o encaravam fixamente desde que se sentara no bar? Sentiu o aroma persuasivo que emanava debaixo do ventre da mulher e enquanto ia abrindo espaço entre a carne quente e molhada sua mente ia sendo acossada por um tufão de pensamentos. A visão de uma tatuagem no ombro, uma lua-estrela, não só forneceu o enrijecimento final de que precisava como o fez se lembrar de uma garota, por quem se apaixonara no primeiro dia de faculdade. Despudorada. A entrega era totalmente incompatível com sua aparência delicada e franzina. Na horizontal parecia até aumentar de estatura. Era aspirante a atriz de teatro experimental. Nas aulas era elogiada efusivamente pelo seu talento. Interpretava de maneira comovente uma árvore, um tijolo... Deve ter despontado para... o anonimato. Na primeira oportunidade pegou a mão dela, entrelaçando-a a sua, olhou o anel de lua-estrela e involuntariamente imaginou a cantada mais clichê possível de ser lançada. Quem é você, qual o seu nome? Mas deixa o destino, deixe ao acaso... quem sabe eu te encontro de noite no Baixo. Não. Definitivamente não era de lá que a conhecia. Ela podia ser da Abolição, da Taquara. De qualquer lugar. 27
Naquele deslizar infinito do vai-e-vem, pensava que o sexo é o prelúdio do amor. Antes de se alcançar esse algo, essa coisa inventada, construída, arquitetada, chamada amor houve, necessariamente, o sexo. E dos bons. Mas será que ela desempenharia bem o papel idealizado para a mãe dos seus filhos? Daria uma boa parideira? Uma boa parceira? Na saúde e na doença? Não podia estar pensando aquilo. Tão datado, tão demodé. Tão frágil. Culpa daquele bando de gregos ociosos. Quiseram se redimir da orgia realizada em uma noite na qual se serviram mutuamente de seus orifícios até estes pedirem clemência! E depois vieram com uma apoteose mental da qual resultou a maior farsa desde então criada: a tal metade... A luz fraca do banheiro entrecortava a silhueta da mulher com os olhos de kajal. Carlo podia imaginá-la dançando. Kashmir. Isso aumentava ainda mais seu desejo. O tesão, na verdade, era na música. Era capaz até de ouvir as cítaras. Oh, let the sun beat down upon my face, exortava a voz estridente de Plant. Sentia o enlevo tomando conta de sua alma, a cabeça pendendo para trás, peito desnudo, braços abertos. Os acordes o hipnotizando... O sexo é o prelúdio do amor. Subitamente, lembrou-se. Todo dia, a caminho do trabalho, passa por um apontador de jogo do bicho e ao seu lado a mulher dos olhos de kajal entrega aqueles papeizinhos de compro/vendo ouro. Nunca tinha sequer reparado na moça, tão pouco apanhado aqueles diminutos papéis. Até pegar um dia. Aceitou como quem aceita uma flor. Ela estava vestida dignamente. Talvez porque distribuísse minúsculas promessas de sonhos realizados, dívidas pagas, erros sem volta... Aquela tarefa tão simplória, um moto contínuo estendendo no vazio os papeis, indiferente à frieza alheia de quem jamais os pegará. Teve pena dela. Mas podia ser pior. Os papeizinhos podiam prometer que Mamãe Oxum traz a pessoa amada em 24 horas. Sempre pode ser pior. Tempos depois, resolveu fazer um jogo. Ela, como sempre, distribuindo impávida os papeizinhos com uma calça jeans justa. Parou em frente ao apontador e olhou de soslaio. Impossível deixar de notar, mas a calça dividia o seu púbis, separando dois mundos. Buda e Peste. Tentou desviar o olhar, mas os cromossomos que carrega nos genes costumam decidir a questão. Singelamente. Tal qual a monogamia. Cedo ou tarde a natureza triunfa sobre a cultura... “Fala, abençoado!!” A voz do apontador o resgatou do transe e a nota de 50 reais estendida foi jogada na mesa. “Bota na pata do... quer dizer, no camelo. Pra quebrar a banca!” Carlo falava ainda sem muita convicção no palpite. Abriu o zíper da blusa e enfiou a mão, achando um seio. A luz fraca, ainda assim, permitia vislumbrar estrias nele. A maciez excessiva associada àquela imagem lhe trouxe uma certeza: aqueles mamilos já haviam sido chupados por alguém, não com lascívia, mas com sofreguidão, com fome. Tal pensamento antecipou, quase que de imediato, o gozo que se anunciava e, mal terminado o último espasmo, sentiu uma vontade inefável de sair dali. A mulher com olhos de kajal subitamente se transmutara em um odioso floco de caspa. Via seu pai, alisando os ombros freneticamente, receoso de que ali estivesse pousada aquela inconveniência em pó. Saiu sem se despedir, abrindo caminho entre as pessoas, avançando pelo salão lotado, a cabeça atordoada com o barulho. Ouvia um dialeto misturado ao som de 28
música, talheres se chocando contra pratos, copos erguidos num brinde histérico, gargalhadas intermináveis. Empurrou a porta da saída e de repente todo aquele caleidoscópio de sons desapareceu, ocupando o silêncio o seu lugar, como se tivesse mergulhado n’água, bem fundo. Caminhava pela rua deserta sentindo a brisa quente do verão, sentindo falta da sua vida. De uma vida. Sentia falta do seu tempo. Riu pensando que em 15 minutos perpassou uma pequena parte da trilha sonora da sua existência. Tempo, tempo, tempo, tempo. Compositor de destinos, tambor de todos os ritmos. E quando eu tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido. Quanto tempo ainda teria? Não tinha vivido mais do que ainda havia por viver. Qual seria a cara dela? Convidaria a silenciosa senhora de negro para uma partida de xadrez e... Não. Já estava ridículo demais. Só mesmo cineasta sueco para emprestar algum charme a uma metáfora idiota, afinal qualquer beócio sabe quem é o vencedor. Aquele diálogo em sueco é que confere a dramaticidade à situação. Já na flor do Lácio, tinha suas dúvidas... Parou em frente a uma loja, cuja vitrine espelhada projetou o seu reflexo. Ao longe, gostou do que viu. Chegou o rosto mais perto e se olhou. A dupla face de Janus. Reparava agora pela primeira vez os cabelos brancos que sobressaíam nas têmporas. Tentou se lembrar de quando ainda não se faziam presentes. Não conseguiu. Deixo tudo assim. Não me importo em ver a idade em mim. Ouço o que convém. Eu gosto é do gasto. A visão de uma farmácia trouxe-lhe um sobressalto. Pensou em sua mulher dormindo em casa, com os seios vazios. Seu filho por acordar e, certamente, com fome. Tomou sua direção caminhando a passos rápidos quando levou seus dedos às narinas. Fechando os olhos, sentiu o cheiro do sexo da mulher dos olhos pintados de kajal. Sorriu. “Me dá uma lata daquele leite em pó ali, por favor?”.
fernanda fiorito é carioca, tem 39 anos e estreante na flaubert. Enfileira palavras em um gabinete do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
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eminência parda filipe covre
– Dona Elizete tá em casa? – Ih, acho que demora... – Detestava essas conversas informais de portão, sem saudação, sem apresentações, sem detalhes, como se fosse algum secretário ou mordomo. Ainda mais com um homem desse tipo, short gasto, azul, que não decidia em que altura da barriga protuberante ou da cintura aplicar a tensão do elástico periclitante, o sorriso ilegível. – Ô, mas não faz mal eu entrar não, né, tomar uma água, um café. Moro perto, mas a pé fica longe, sabe como é, né? – Nenhum pensamento lhe desagradava mais naquele exato momento do que deixar o home entrar, mas se sentiu constrangido em recusar o pedido feito com tanta familiaridade. Afastou-se para dar passagem. Quem visse (alguém deve ter visto) os dois lado a lado, no átimo em que estiveram exatamente um ao lado do outro, quando o homem entrava, devia sentir a forte impressão da disparidade. Um de pele morena, curtida, cabeça calva sitiada de preto-e-branco encrespado, bigode até respeitável, que insistia em continuar em maior parte preto. A meia-idade sem retoques. Alguém que talvez até inspirasse simpatia, mas em quem subjazia sempre um toque de ameaça, de manipulação, que não deixava ninguém baixar a guarda em sua presença. O outro trajava um par de bermudas e uma conservadora camiseta branca, um vestuário doméstico em claro contraste com a seminudez que o visitante parecia julgar apropriada para sair de casa. O vestuário, entretanto, era a menor das diferenças nesse caso. Era um rapaz jovem, alto, músculos cultivados com a estética por objetivo, um bronzeado uniforme e sedutor. Não que precisasse de tanto, o rosto, as feições, o porte já lhe dariam uma beleza natural, sem esforço. Os gestos e os modos nunca permitiam saber se era um homem ou um garoto crescido, às vezes tão sério, às vezes tão adorável. Mãos humanas quiseram desde cedo potencializar os encantos desse espécime exemplar de macho humano. Não suas próprias mãos, note-se. As mãos da tia que o criou, a Dona Elizete. Uma mulher extremamente pragmática, embora quem não a conhecesse muito bem apenas visse amistosidade desinteressada. Tudo calculado, é claro, como talvez tudo que ela sempre fez. Distribuía favores, sorrisos, simpatia, empréstimos. Punha quem chegasse perto à sua mercê, não por ameaça nem por intimidação, mas por carisma. Pela simples exigência da gratidão na consciência das pessoas. Gratidão 30
por todos os favores, todas as bondades, nunca, nenhuma delas, desinteressada. Friamente calculado, cada sorriso, cada fatia de bolo. Sentaram-se à mesa da cozinha. A casa era velha, mas era boa, espaçosa. O homem se inclinou para apoiar os cotovelos sobre a mesa, sem um grão de cerimônia. O rapaz não conseguiu ficar muito tempo sentado, levantou-se, tenso. Qual era o plano da tia para esse homem? O que teria para oferecer um tipo tão vulgar? A velha tinha suas convicções, ou preconceitos, ou talvez uma estranha percepção esotérica das coisas. Achava que o homem respeitava mais a mulher, lhe dava mais ouvidos, se ela tivesse seu próprio home ao seu lado. Nunca se casou, pelo menos nunca durante muito tempo, mas nunca esteve só. Sempre algum homem ao seu lado, sob variados pretextos. O sobrinho que lhe sobrou foi uma bênção, a peça perfeita em seu xadrez de manipulação, uma coisinha bonita para distrair (ou seduzir) o adversário. – Dona Elizete é sua mãe, meu filho? – Minha tia. Minha mãe já não está nesse mundo, meu pai nunca conheci. – Entendi, entendi. Por que estava dizendo uma coisa tão íntima e dolorosa para esse homem, com seu eterno sorriso que não dá pra saber de que é? Precisava fazer alguma coisa, pra distrair desse momento de fraqueza, para justificar estar em pé, pelo menos. – O senhor aceita uma cachaça? – Foi o que lhe veio a cabeça. – Senhor, que é isso, cara? Pode me chamar de Ubyratan mesmo... – E aceito a cachaça, bem melhor que café ou água, não é? – O sorriso se alargou um pouquinho mais. Claro que a tia guardava intoxicantes diversos na casa. Não era um método muito elegante de facilitar a manipulação, Dona Elizete sabia, mas ela lutava para ganhar e cavalheirismo não lhe interessava. Trouxe uma das garrafas de cana barata da dispensa. Um copo comum pra cada, uma dose exata. Ele tinha prática. Pôr o serviçal mais chamativo, mais sedutor para servir é um truque velho, mas funcionava. Bicaram a cachaça em silêncio, se olhando, o homem sempre com o mesmo sorriso. O rapaz sabia que o ponto ótimo do álcool é quando a consciência já acusou a primeira mudança de percepção, mas antes da capacidade de julgamento ser inteiramente comprometida. O ponto em que a pessoa ainda era capaz de hesitar. Servia para embaralhar as emoções, é claro. O ressentimento pela tia, sempre reprimido; a raiva e a impotência de ser sempre um peão em esquemas que nunca lhe era explicados, exceto quando já fosse tarde demais; a vontade de se sujar, rolar na lama de um chiqueiro, deixar de ser um bibelô, um objeto decorativo de exibição. Que ódio, como é que a velha podia deixa-lo sozinho em casa, se tinha algum assunto pra tratar com esse traste? O que ela queria com esse homem, afinal? Como podia deixa-lo assim no escuro, pra lidar com isso sozinho, ela que sempre o dirigia em todos seus passos? Queria vingança, alguma vingança, e o visitante podia oferecer alguma forma de vingança. – Já veio aqui antes? Já conhece a casa? Deixa eu te mostrar o meu quarto. – Um brilho sutil passou pelo rosto do velho, que se levantou para acompanhar seu anfitrião relutante. O quarto, é claro, era impecável, como o próprio rapaz, como sua vida toda. Nem um grãozinho de poeira, o lençol esticado sobre a cama sem um vinco ou amassado, como um uniforme prussiano. Nenhum objeto fora de seu lugar, gavetas e portas de armários ordeira e confortavelmente fechadas. A mobília um tanto gasta dava o ar inteiramente proposital de pobreza digna. Um pôster de time de futebol era o único elemento que identificava estereotipicamente aquele como sendo um quarto 31
de rapaz, em vez de um quarto qualquer, insosso, uma ilustração de um dicionário enciclopédico para mostrar como dorme a Civilização Ocidental. – Limpinho, limpinho... Muito bem, garoto. O homem chutou os chinelos num gesto vulgar de informalidade, de quem está à vontade no ambiente. Um instante de hesitação. Cálculos de o que significaria aquele gesto, se ingênuo ou descuidado ou um sinal de que o convite seria aceito. Cálculos quanto a se ele queria mesmo fazer aquilo. Hesitações, hesitações. As hesitações que precedem todo encontro, qualquer que seja sua natureza, qualquer que seja seu papel. O jovem resolveu começar, bem ou mal, começar logo de uma vez. Trancou a porta e estendeu a mão trêmula, hesitante, tocou o torso do homem, sentiu a pele lisa, a barriga dura de gorduras acumuladas, depois recolheu o braço. Gesto estranho mais inspeção do que carícia. Ele mesmo não sabia o que era. De qualquer maneira, surtiu efeito. – Ah, eu sei o que você tá querendo... O homem se aproximou, os torsos se tocaram, seus braços macilentos envolveram o corpo jovem, a respiração se fez sentir deliberada, suave, atrás de sua orelha. Ora se o grosseirão não é capaz de sutileza, pensou o garoto, mas o pensamento não durou, porque o homem estendeu a língua e começou a lamber sua orelha, descer pelo seu pescoço. O contato da saliva malcheirosa causou uma pontada de repulsa. Sentiu que era melhor ocupar a boca do homem de outra maneira, segurou seu rosto tentando o máximo possível ser delicado e se aproximou para o beijo. Realmente o arrastar dos fios duros do bigode era mais suportável no rosto do que no cangote. Suas mãos foram para as costas do homem, não se mexeram muito. Não era um corpo que ele estivesse morrendo de vontade de desfrutar, de explorar. O homem se afastou do abraço: – Quer ver o material? Quer? – Não esperou resposta, talvez fosse a pergunta de retórica mesmo. Arriou o short junto com a cueca gasta. A tensão a que o tecido estava submetido não mentiu, com o movimento elástico, repentino, de genitália ereta, mas reprimida, revelou-se seu pênis. Um arco de parábola quase belo, aquele órgão descrevia. Grosso e cumprido em boa proporção, o suficiente para respeitar bastante, mas não para assustar. Os escrotos volumosos pendurados não sem certa graça por baixo, não tão castigados pelas décadas de gravidade quanto outros homens de idade comparável que já tinha visto. Diante dessa visão o jovem sentiu um leve estalo de inveja. Um sutil, hábil movimento da coluna vertebral deu uma aparência um tanto mais digna à barriga, que já não parecia um saco pendente, mas fazia supor a existência até de certa musculatura. Como as pernas, que até então o rapaz só percebera que eram finas, agora via que tinham certo tônus, a quase-beleza daquele corpo, os pelos ralos, bem espalhados, mas ainda praticamente todos pretos. Os ombros, igualmente, quasemusculosos. O jovem sentiu a tensão no seu próprio corpo, o impulso, o começo de uma vontade. Talvez isso pudesse ser bom, afinal de contas. Quem diria que o grosseirão fosse receptivo ao encontro entre dois homens? E acaso ele mesmo não era, apesar de a tia insistir em cultivá-lo como homenzinho estereotípico? Aproximou-se novamente. O beijo agora já não era apenas uma distração para evitar gesto mais desagradável. Saboreou aquela língua, ela e a sua própria se acariciando, se misturando na escuridão compartilhada de suas bocas. Pensou por quantos lugares aquela língua teria passado em tantos anos. O pensamento lhe excitou. Seu órgão enrijeceu um pouco mais dentro da bermuda. Passeou as pontas 32
dos dedos pelo corpo nu do homem, pelas costas, pelos glúteos, uma carícia sutil provocante. O mais velho segurou o rapaz pelas cristas iliacais, ficou acariciando aquela parte do corpo com ternura – talvez fosse um de suas preferidas. O velho tirou a camiseta do rapaz. Pareceu gostar do que viu, o abdome definido, o peitoral musculoso, sem exageros, beleza apenas. O sorriso agora mostrava dentes, parecia mais sincero, conduziu o rapaz para a cama como quem convida um velho amigo para juntar-se a uma mesa de boteco. Deitado o jovem, suas mãos foram à bermuda. Apressou-se a impedi-lo. Sentia inseguranças, especialmente depois de ter visto a genitália do outro, tinha medo de não estar à altura. A expressão do velho era tranquilizadora. – Relaxa, vai, você não acha que eu já vi coisa muito pior a essa altura? Cedeu. A bermuda foi saindo devagar, junto com a cueca. Existe uma certa beleza no corpo inteiramente nu que é difícil de descrever. Por mais belo que seja um torso revelado enquanto os quadris permanecem cobertos, a totalidade do conjunto, as curvas dos músculos encontrando uma a outra, a harmonia orgânica carregam um encanto especial. A julgar pela expressão do homem, ele era nem sensível a isso. Apesar de o jovem chama-lo mentalmente de grosseiro. O garoto enrubesceu quando percebeu seu pênis exposto, o homem pareceu libar seu constrangimento. Realmente o órgão era modesto, o saco escrotal contraído de jovem, mas plenamente encantador, era o que dizia o olhar do visitante. A pele lisa, o tom uniforme, a glande esticada, reluzente, um fio de baba translúcida pendurado da uretra, era tudo um convite. O homem se abaixou sobre o órgão dirigindo um olhar provocante para o outro. Soprou levemente sobre o pênis, o garoto estremeceu. Depois sua boca avançou com entusiasmo, sua língua, que o rapaz sentia anormalmente comprida, quente, grossa, parecia se enrolar como uma jiboia sobre toda a extensão de seu órgão. O rapaz jogou a cabeça para trás, os olhos fechados, a boca entreaberta, gemendo, ofegando, deixando escapar gritinhos discretos. Se conseguisse pensar naquele exato momento, estaria surpreso com a sutileza da técnica do velho, que ele imaginara ser tão pouco sofisticado. Os lábios húmidos deslizavam sobre sua glande já vermelhada, depois vinha a boca toda, succionando, provocando, exigindo, esticando a pele e os tecidos de todo o seu pênis. Os movimentos alternados e executados com maestria. O corpo do garoto tremia todo, as mãos e os pés frios, uma intensa vertigem por todo seu corpo. Sentia seu baixo ventre se movimentar, fluidos se acumularem em algum ponto abaixo do umbigo. O homem parecia ter uma estranha consciência do corpo do parceiro, ou, o mais provável, sua experiência era ampla. Sabia exatamente quando parar sem que a ejaculação se tornasse inevitável. Recuava do pênis húmido, latejando, que ele fitava com satisfação, e parecia saber exatamente o quanto esperar antes de voltar à carga. A provocação prolongada levava o jovem gradualmente a algo próximo da loucura. Seu pênis ia se tornando cada vez mais sensível, as mesmas carícias de antes pareciam agora despertar sensações mais intensas. Uma sensação quente e doce se espalhava lentamente pelo seu corpo, escorria viscosa. O prazer familiar, próximo do orgasmo, dançava em seu púbis, em volta de suas virilhas. Depois de mais uma vez pressentir a proximidade da ejaculação, o homem recuou, só que dessa vez pra mais longe. O jovem abriu os olhos, a visão embaçada não lhe permitiu distinguir perfeitamente, mas pôde reconhecer facilmente no olhar do outro uma solicitação silenciosa. Seu corpo convulsionou-se trêmulo enquanto ele tentava se levantar. Esticou-se até uma das gavetas da mesinha de cabeceira e extraiu 33
de lá preservativos e um tubo de lubrificante. De membros bambos, conseguiu se firmar com dificuldade, de quatro, passou os preservativos e o lubrificante para o outro e esperou. Sabia que os homossexuais de hábito não costumavam fazer de quatro, mas não se sentiu inteiramente confortável ainda para ficar face-a-face com aquele quase desconhecido. Sentiu um pouco de medo. É verdade que não tinha muita experiência em receber no ânus. Respirou fundo e se preparou. O velho ficou desfrutando um instante do espetáculo visual daquele corpo jovem, as costas musculosas, os glúteos torneados. O ânus parecia intocado, pregas irradiando do centro como um crisântemo. O homem ficou encantado, começou a acariciar aquela parte do corpo de leve, com as pontas dos dedos. O rapaz tentou segurar um gemido, mas o homem ouviu mesmo assim, com um sorriso. Não pôde resistir à provocação daquele órgão e se abaixou para lambê-lo. Passou a língua húmida lentamente, demoradamente, em movimentos circulares pelo ânus do rapaz, estimulando suas pregas firmes. O garoto sentiu uma ponta de repulsa ao perceber uma boca naquela parte de seu corpo, mas o prazer foi amolecendo seus pudores, foi sentindo sua musculatura relaxar, como se desejasse receber mais ali. Com dedos hábeis, o homem espalhou lubrificante pelo ânus do rapaz, continuou acariciando com os dedos, cada vez mais lentamente, até parar bem sobre o orifício, quando então começou a introduzir o dedo médio devagar pelo ânus do jovem. A sensação de um único dedo a essa altura já lhe era familiar, e o garoto sorveu o estímulo deliciado. Quando sentiu a musculatura relaxar em volta de seu dedo, o homem aplicou o preservativo rapidamente e encostou a extremidade contra o orifício. Esperou um instante. O garoto tremia de expectativa, sua respiração profunda era audível. Começou a introduzir seu pênis lentamente, a uma proporção constante. O outro realmente nunca tinha recebido nada que se comparasse a esse em tamanho, quase que podia sentir as rugas de seu reto se esticando. Seus gemidos se confundiam entre a dor e o prazer. O homem não alterou o ritmo de sua penetração até que todo o seu pênis estivesse dentro do garoto, sua púbis pressionada contra o corpo dele, os sacos escrotais roçando um no outro levemente. Deixou o pênis introduzido até o fim parado um tempo, sem mexer absolutamente. Aproveitou a pausa para largar os quadris do jovem e fazer uma carícia suave nas solas de seus pés, as duas ao mesmo tempo. O rapaz não se lembrava de ter recebido uma carícia assim antes, sentiu um estranho e inusitado prazer. Mais um momento de imobilidade e começou a fazer movimentos vigorosos de vaivém. A moderação de quando saboreava o pênis do garoto desaparecera sem deixar rastro. O homem segurava voraz os quadris do outro, mas seus movimentos eram tão intensos que várias vezes suas mãos quase escapavam. O rapaz sentia como se estivesse se rasgando ao meio. A sensação era tão intensa que ele precisou aliviar as mãos trêmulas e apoiar-se sobre os cotovelos. Sentia suas entranhas se esticando, dor e prazer misturados, gritos e gemidos se misturando aos rosnados do homem atrás de si. As sensações foram se diluindo, se derretendo, até dor e prazer virarem uma coisa só, ou outro tipo de prazer, intenso, ardente. Sentiu a pressão se acumular dentro de si até sentir um lampejo intenso, explosivo, no interior do seu ser, tanto que não conseguiu conter um grito agudo. Assustou-se, na verdade, e, com o susto abriu os olhos repentinamente para observar seu pênis jorrando em alta pressão seu fluído leitoso, que deixava uma ampla mancha viscosa no lençol. A sensação em seu reto adquiriu a partir daí um caráter diferente, como 34
se estivessem fazendo derreter as suas entranhas, até que sentiu o pênis do homem parar de repente e começar a latejar. Quase conseguia sentir seu sêmen escorrendo através do preservativo. A intensidade dos estímulos despertou alguma coisa estranha no rapaz, uma vontade incontida de penetrar, possuir. Virou-se para o homem que ofegava meio fora de si, recolheu o ânus de sobre sua genitália com olhar faminto, segurou-o pelos ombros, jogou-o de costas sobre a cama. O entusiasmo do rapaz fez o homem recobrar a expressão: um sorriso aberto. O sêmen jovem aderindo às costas foi um prazer inesperado, sutil. O garoto abriu suas pernas com vigor, espalhou o lubrificante um tanto desajeitado, com pressa e aplicou o preservativo sobre o pênis, que, ainda vigoroso a essa idade, pouco hesitava entre um orgasmo e outro. Parou um instante para se conter, se controlar. Depois penetrou o quase-desconhecido com movimentos rápidos. O homem sorriu do jovem, mas as sensações que foram se espalhando pelo seu corpo gradualmente impossibilitaram qualquer expressão. Seus olhos foram se fechando, a cabeça jogada para trás ofegava pela boca aberta. O garoto observou o pênis de seu homem inchado, flácido, recuperar parte de sua ereção e depois vomitar aos magotes o fluído leitoso da próstata ordenhada. A visão apressou uma sensação em seu próprio corpo, acelerou os movimentos para intensificar o orgasmo que se aproximava até sentir seu pênis firme e viçoso explodir dentro do homem, cego de prazer. Seria talvez um quadro interessante para uma terceira pessoa que observasse, o velho de pernas abertas, flexionadas, o jovem de pernas tesas gozando sobre ele, apoiada em braços trêmulos, todos dois num gesto espelhado de cabeça jogada para trás, olhos fechados, bocas abertas ofegantes. Os dois, entretanto, mal viam ou percebiam o que quer que fosse. Sem perceber o jovem deitou sobre o corpo do outro, aninharam-se extáticos enquanto se recuperavam, não viram quanto tempo se passou assim. Quando recobraram a percepção, levantaram-se trocando olhares entre cúmplices e constrangidos. O homem enxugava o suor do rosto com uma mão enquanto se vestia, o garoto continuava em pelo olhando para ele. O velho pigarreou antes de conseguir pronunciar de maneira minimamente inteligível: – Sua tia vai tar em casa de manhã? Volto pra falar com ela... O rapaz apenas assentia com a cabeça, ainda um pouco fora de si. Finalmente se vestiu e acompanhou o homem até o portão, despediram-se, ele entrou de novo em casa respirando fundo, sem saber o que pensar, sem saber o que sentir, o corpo ainda que como ardendo das fortes sensações. Tomou um banho rápido para diluir o suor, recolheu o lençol a um canto menos visível, para lavar discretamente depois e ficou sentado em uma cadeira, recobrando o fôlego. Em meio a isso, ouviu o barulho da fechadura, passos, depois o trinado da voz da tia, sempre como se soubesse de alguma coisa: – Meu querido... Tá aí? Veio alguém aqui em casa hoje?
filipe ribeiro covre nasceu no Distrito Federal em fins do século XX (crianças prodígio da televisão dão vergonha da idade), diz que vai publicar quando o volume de texto valer a pena; nada até agora. Veremos.
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amigo
flamarion silva
Dois homens bebem no bar de Preto, na Praça da Matriz, em frente à igreja. José Reis é o que está enfezado e a todo instante blasfema. – Maldito mar! E vira o copo de cachaça. João do Velho, seu companheiro de pescaria, parece distante dali, os olhos no cachorro, a seus pés. O animal é já bem velho e a qualquer hora embarca. – Livre-se desse bicho. Tornou-se imprestável, diz José Reis, tentando acertá-lo com a ponta do pé, enxotando-o por debaixo da mesa. João do Velho, agora, prestando atenção ao que diz José Reis, nota o decrépito cão deitado a seus pés. Imagina que logo terá de enterrá-lo, como se faz a um amigo. Não entende o que ainda o mantém vivo. Seu latido, antes rouco, há muito deixou de ser ouvido. Se o chamam pelo nome, mantém o olhar no chão. Parece envergonhado, sem entender por que ainda vive. Às vezes delira, e num surto maluco imagina latir, pular, sorrir balançando o rabo ao seu dono, fazendo-lhe festa, mas não passa de ataque epilético. Treme-se todo e baba. Sem saber o tratamento adequado, derramam-lhe água na boca, sopram-lhe nas narinas. Minutos depois o cão revive, ergue-se cambaleante e caminha sem saber bem para onde. – Mas que diabo aconteceu?, pergunta José Reis. – É que ele está bem velho. – Ora, vá-se ao diabo, homem! Estou lá me referindo a esse monte de ossos! O que houve com o mar? Onde se meteram os peixes? Isto sim é o que quero saber. – Amanhã eles voltam, diz-lhe João do Velho, alisando as costelas do animal. – Amanhã eles voltam! Amanhã eles voltam! Ao diabo, você e esse maldito cão! Assim é que não dá! – O que quer dizer? – Ora, ora, compadrito! O que quero dizer. Como se não soubesse. Explodi-los. Explodi-los. Isto, sim, é o que quero dizer. João do Velho grita ao proprietário do bar: – Preto! Suspenda a bebida deste homem. O traste não tem jeito. – Mas há um jeito, José Reis continua. Há jeito para tudo, menos para a morte, é claro. Amanhã mesmo atravessamos o Canal, e lá, na Gerumana, senhor Celso nos fornec... 36
– Ora, ora, ora, senhor! Então será que já se esqueceu de finado André de Marina do Campo? – Um tolo, um tolo que não percebeu o momento de soltar. Bebem calados, por fim, resolvem atravessar o Canal no dia seguinte, bem cedinho, com o céu ainda estrelado. Celso lhes fornecerá o material. – Preto, aqui o dinheiro da bebida, diz José Reis. Amanhã é você quem paga, compadrito, e bate no ombro do amigo. – Até amanhã, então. – Até amanhã. Leve fogo e cigarro. – Vem, Amigo, vem, João do Velho chama o seu animal. Ambos, trôpegos das pernas, seguem para casa. O homem chega primeiro. Parado e com a porta aberta, aguarda o amigo entrar. Ele fareja o chão, onde, provavelmente, uma fêmea se agachara e urinou. Sem ter forças para levantar uma das pernas traseiras, agacha-se um pouco e molha a grama. – Vamos, bicho danado, pare de inventar lembranças. O animal entra. No corredor, ele para e olha o móvel à sua frente, onde costuma se deitar. Sem forças para sequer levantar uma das patas, João do Velho ergue-o e acomoda-o na marquesa. O bicho gira três vezes e se arria, batendo os ossos nas tábuas. Não muda a feição séria. Estica as patas à frente e assim permanece. Vem a noite. João do Velho preocupa-se com o que acontecerá no dia seguinte. Imagina que fará mal à natureza, matando-a sem controle. Quantos peixinhos mortos... quanta vida interrompida... Tragédia. Tragédia. Mas as tainhas são muitas. Todas boiando, prateadas, reluzindo seu drama à luz do sol. Basta lançar a mão e apanhar o peixe. Fácil. Fácil. Umas afundam, mas lá embaixo já está José Reis, cheio de fôlego, a apanhá-las. Depois de recolhido o peixe, “vamos embora, compadrito, que a pescaria hoje foi boa.” O mar vermelho. Vermelho. Vermelho. João do Velho acorda no meio da noite. Os olhos maculados de sangue. Mas logo desfaz a impressão do sonho ruim que tivera, e apura o ouvido. Imagina ouvir algum ruído fora do quarto. Fica quieto, só escutando. Define o trincar das tábuas da marquesa. Talvez o animal esteja inquieto. Deve ter tido também um sonho assustador, pois bicho também sonha, um desses pesadelos magníficos que deixam o coitado certo de que o sonhado é realidade. Acorda angustiado. Logo, João do Velho pensa que o som é ilusão dos seus sentidos. A luz da lamparina, imóvel. Não projeta sombra nas paredes. O santo sobre o armário, quieto na figura de papel. Tudo parado, como se a apurar o ouvido, para decifrar o que vem de fora. – Mas não pode ser..., João do Velho diz para si. Levanta-se, abre a porta e vê o animal sentado, a cabeça erguida. – Ora, mas você não está gemendo, está uivando. Hum... Enquanto João do Velho se recupera do susto que o animal lhe dá, batem na porta. – João do Velho! Ei, João do Velho! Tá na hora. É José Reis. Traz os olhos miúdos de cansaço. Mas a decisão do homem em realizar a travessia é mais forte do que qualquer cansaço. Tudo muito simples: descem a ladeira do porto, pegam a canoa apoitada na beira do rio Barcelos, remam até à Coroa, e daí à Ilha da Gerumana é um pulo. Senhor Celso os espera com as bananas embrulhadas em um pacote. Os olhos sempre atentos à tamanca dos homens da Capitania dos Portos, que é mais veloz que os barcos tóc-tóc. Tudo tranquilo, nada de embarcação à vista. Tome lá o dinheiro, dê-me cá o pacote. E pronto. 37
– Não vou! João do Velho diz, decidido. – Ora, ora, compadrito, como assim “não vou.” Que história é essa? – É o Amigo, deu para uivar de repente, e logo ele, que há anos não emite um ruído. – Bom, bom, sinal de que a estrada do infeliz se alonga. – E a sua, José Reis? E a sua? Por que entrar nessa barca furada? – Ê, é o diabo. Não me venha com essa conversa de mulher casada. E eu lá tenho rabo de saia! – Não vou. Não posso ir. Esta é a minha decisão. Peço que você também não vá. – Ora, ora, compadrito, não me venha dizer que vai abandonar a pescaria por causa de um saco de ossos. João do Velho não dá resposta ao amigo. Pensa em lhe rogar que abandone a travessia do Canal, pois não prevê coisa boa na Gerumana. Mas nada lhe diz. Quando procura o amigo, percebe que ele se foi. – Ele se foi... Vai com Deus, meu amigo. Amigo... Amanhece. O galo canta num terreiro distante. João do Velho alisa a cabeça ossuda do animal, que agora está quieto. João do Velho sente frio e abraça-se. Ao abrir a porta do quarto, um vento delicado entra e desfaz a última chama da lamparina.
flamarion silva é natural de Barcelos do Sul (BA). É graduado em Letras Vernáculas (UFBA) e reside em Salvador. Estreou com O rato do capitão (2006). Seu mais recente livro publicado é a novela O pescador de almas (2010). Participou de diversas antologias, sendo a última 82: uma copa, quinze histórias (2013), e foi finalista do prêmio SESC de Literatura em 2007.
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a dignidade dos elefantes flávio vm costa
A história começou com uma barra de chocolate branco. Meu avô Albérico se inclinou lambendo-a até que ela começasse a derreter e só parou quando restava mais uma mancha no sofá cor de abóbora. Sentou ereto e sorriu em direção à televisão desligada. Eu voltei à cozinha, peguei um copo americano, e coloquei nele um terço de açúcar. Com um pouquinho de suco de caju despejei todo o conteúdo em sua boca. Meu avô Albérico parecia muito satisfeito. Meu avô Albérico nunca dorme nos horários corretos. Não sei como se comporta pela manhã, quando fica trancado no quarto, mas na parte final da tarde, quando eu tomo conta dele, cochila no sofá, sempre com interrupções. Há noites em que ele repete painho, painho, me ajuda, painho, e quando me aproximo vejo lágrimas ligeiras formarem pequenas poças nas rugas do rosto. Ele segura a minha mão, e diz para ajudar o painho. Em outras, ele se ergue da cama e começa a pular pelo quarto e reclama que o café estava com muito açúcar, você quer é me matar, você sabe que todo mundo na minha família morreu de diabetes, você não sossega enquanto eu não estiver estrebuchando no chão, você quer é me matar. Sua voz ganha uma força, há muito desaparecida, e ele começa a gesticular para o teto, eu não resisto a cair na gargalhada. Ele para de falar, e fica olhando o teto. Confesso que essa rotina me aborrecia. Tempo para fazer minhas coisas era escasso, não podia me atrasar ao sair da escola, e, em casa, não posso ficar na internet nem no telefone durante muito tempo, pois, às vezes, meu avô Albérico redescobre a agilidade juvenil, levanta-se do sofá e vai se inclinar sobre a janela. Moramos no nono andar. Beira os oitenta anos, cada vez mais magro e abatido. Antes de dormir, minha mãe faz a comida para o dia seguinte. Ela dorme pela manhã, quando estou na escola. Ela se certifica de que todas as janelas do apartamento estejam fechadas e o tranca no quarto. Assim que eu volto, ela sai para trabalhar, dou banho nele, troco as fraldas e o sento no sofá, ligo a televisão e vou esquentar a comida. Nós comemos em silêncio e de quando em vez meu avô me encara parecendo querer adivinhar alguma coisa, mas logo desiste e dá um sorriso forçado. Eu sempre fico com medo quando me encara 39
daquele jeito, mal consigo engolir direito - para piorar, minha mãe faz a comida sem sal. Sinto sempre um alívio quando vejo aquele sorriso forçado. Significa que ele desistiu de me interrogar. Dá tristeza admitir, agora que eu sei o que ele tem, mas não gosto quando sua mente parece se rebelar e ele se esforça para voltar a ser normal como todo mundo. Deve ser o único momento, imagino, em que ele atinge a consciência do que se tornou, e fico pensando que se eu estivesse em seu lugar gostaria de ser tratada como um cachorro muito velho e muito doente que recebesse, com muito carinho, uma dose para dormir e esquecer qualquer dor. Minha mãe começa a cozinhar; na verdade, ela tempera o bife, a salada vinagrete, cozinha o arroz; o feijão, apenas aos domingos, para durar a semana inteira. Quando eu retorno da escola, apenas tiro as coisas do freezer e esquento, além de fritar o bife. Antes de dormir, minha mãe senta na cama com a pasta nas mãos, retira um bocado de papéis e começa a ler com um caneta na mão esquerda com um ar de seriedade. O que ela faz com tanto papel é coisa que não sei explicar. Também não sei onde ela trabalha. Para emergência eu só tenho o número do celular dela, mas ela me diz para só procurá-la se for realmente algo que eu não possa resolver sozinha. Qualquer coisa você pega o dinheiro na primeira gaveta do guarda-roupa, me diz. Só conversamos no fim de semana e, mesmo assim, muito pouco. Às vezes, eu deixo o controle remoto nas mãos de meu avô, travo a janela, e dou uma volta com minhas amigas. Mas uma vez fui à praia do Porto da Barra, e voltei já de noite, e quando abri a porta levei o maior susto. Meu avô chorava como criança; ele havia tirado a fralda e estava agachado no chão, todo melado de cocô e mijo. Ele gritava, se sacudia, parecia mesmo um bebê. Fiquei revoltada, e, confesso, dei um beliscão nele e, depois de um banho rápido, o tranquei no banheiro, e passei mais de uma hora limpando aquela sujeira. Quando terminei, ele continuava chorando e dizendo que sentia dor. Deixe de manha, gritei. Coisa pior aconteceu outro dia. Eu estava trocando de absorvente, quando meu avô apareceu no banheiro, esqueci a porta aberta, e começou a gritar muito contente, você também faz, você igual é a mim, não está vendo na sua mão, você faz também e fede, fede mesmo. Eu fiquei muito constrangida, deixe o absorvente caí no chão e o empurrei: ele cambaleou e caiu de bunda, olhou-me assustado, e engatinhou até o quarto. Quando era jovem, meu avô montou um pequeno armarinho. O negócio não era muito rentável e logo Seu Albérico o trocou pelo não mais lucrativo mercado de banca de jornais e revistas. Minha mãe a vendeu quando meu avô ficou doente. Eu me lembro de quando eu era pequena de ficar algumas tardes na banca. Às vezes, meu avô me deixava brincar no Campo Grande, e eu ficava brincando com outras crianças, algumas bem sujas, outras, incrivelmente arrumadas. Eu olhava para o céu, da minha cadeira no balanço, e admirava o azul sem nuvens daquelas tardes, onde nunca havia chuva nem sol demais. Naquelas tardes o Campo Grande parecia lugar mágico, único da cidade onde não fazia calor demasiado ou chuva que provocasse alagamentos. Uma coisa estranha é que meu avô Albérico não lia muito, aliás não lia nunca. E ele não deixava eu que lesse também as revistinhas da Turma da Mônica, da Luluzinha, da Disney, mesmo eu prometendo não amassá-las. Ele nem as levava para casa. Ele apenas me deixava correr pelo Campo Grande, dizendo para não me aproximar do meio-fio. Refleti sobre a situação do meu avô Albérico e cheguei à conclusão que devo ter coragem de fazer por ele o que todos deveriam fazer quando aqueles que amamos se tornam inconvenientes. Devemos deixá-los ir quando se tornam um estorvo e 40
são incapazes de sentir alegrias, tristezas, de tomar decisões. Deve ser desesperador não se lembrar de nada, não ter forças para caminhar, não reconhecer as pessoas com quem se vive, não poder conversar com elas, nem desejar ficar sozinho, pois ele não tem autonomia para estar só, estar no mundo como uma mera presença, apenas respirar, comer maquinalmente, sem perceber os sabores dos bocados que mastiga, não que a comida da minha mãe ajude muito. A dignidade do elefante seria formidável nos homens; era só se atolar num canto assim que percebessem que começavam a atrapalhar. E assim estimulei meu avô a comer doces. Peguei a mania de comprar chocolates e doce-de-leite toda vez que chego da escola e despejá-los no sofá. Ele os fareja e cai de boca. Depois daquele dia, o suco dele passou a ter quantidades maiores de açúcar. Meu avô Albérico parecia gostar muito, o único momento do dia em que parecia reagir como um ser humano, alguém que sente desejo e é capaz de expressar satisfação. Doce era o único sabor que o paladar dele reconhecia, eu imagino, e quis atender essa última vontade, e, ao mesmo tempo, acelerar o processo de definhamento dele. Poderia durar anos e não queria passar toda minha adolescência vendo meu avô Albérico morrendo aos pouquinhos. Um dia deixei mais duas barras de chocolate branco no sofá e fui esquentar o almoço na cozinha. Poucos minutos depois escutei uns estrondos e andei até a sala, onde encontrei meu avô esmagando as barras de chocolate branco contra o chão de taco do nosso apartamento e dizendo dói muito, chame meu pai, dói muito, e começou a gritar cada vez mais alto até vomitar um líquido viscoso cuja cor se assemelhava a do sofá. Eu fiquei aterrorizada. No quarto de minha mãe peguei todo o dinheiro da gaveta do guarda-roupa, e, com muito esforço, encontrei um táxi - ele gritava cada vez mais alto e irritava o motorista - até a emergência do hospital público que ficava mais perto de onde a gente morava. Esperamos mais de duas horas pelo atendimento, enquanto meu avô gritava numa maca no corredor, e eu morria de vergonha. O celular da minha mãe esteve todo tempo na caixa de mensagens. Quando meu avô foi atendido, fiquei numa agonia terrível de que os médicos descobrissem o que eu andei fazendo, e não adiantaria explicar minhas intenções. Depois de muito tempo, um médico bem magro me chamou. Ele me disse que meu avô Albérico tinha dores renais provavelmente por conta de pedras nos rins, mas que o ultrassom não conseguia localizá-las, talvez por estarem ainda no início da formação. Se ele beber muita água, suco de frutas de cítricas, e tomar esse medicamento (me passou a receita), as pedras devem ser expelidas naturalmente, mais cedo ou mais tarde, pela urina. De qualquer forma eu recomendo que ele consulte um nefrologista. Mas você sabe que o problema de seu avô é outro. É, eu sei, respondi. Açúcar... Não, não é açúcar, se bem que se deve tomar cuidado com isso também, mas o nível de glicose dele está dentro dos padrões. Sua família sabe o que ele tem, não sabe? Ahn? É claro que vocês sabem, o estado clínico dele é evidente. E ele toma os medicamentos? Tem acompanhamento profissional? Sim... Não sou especialista, mas o estado clínico dele é evidente. Você tem certeza que sua família sabe? Se não sabe, sua família tem que levá-lo urgentemente ao neurologista... 41
Tentei enrolar o médico. Ele pareceu não gostar do que ouviu, mas parecia sem paciência, e repetiu apressadamente as recomendações. Liberou meu avô Albérico dizendo que a emergência precisava do leito que ele ocupava. Chegamos antes que minha mãe retornasse do trabalho. Depois contei a ela o que tinha acontecido, menos o plano do açúcar. Ela me contou qual doença atacava meu avô, mas que nada poderia fazer; ele não vai resistir por muito tempo e a gente não pode gastar o dinheiro da aposentadoria com remédios inúteis. Fiquei acordada durante toda aquela noite. Abandonei o plano do açúcar. Passei a só dormir quando minha mãe chega. Se fico sozinha começo a pensar em outras maneiras de me livrar do meu avô Albérico. E sempre me arrependo no fim. Mas recomeço a planejar, ao menor descuido: poderia deixá-lo voltar a se debruçar sobre a janela... e então seria acusada de negligência. Às vezes chego a conclusão que preciso mesmo aliviar o sofrimento dele... às vezes penso no meu sofrimento. É um alívio quando vou para a escola. Quando volto o inferno na mente reaparece. Meu espírito agora se aquieta quando ouço os passos da minha mãe se interromperem diante da nossa porta, o revirar das chaves, as batidas de pé no tapete da sala, e vejo a luz acesa da sala. E deixo de pensar em meu travesseiro como uma espécie de arma limpa.... aperto-o contra o peito várias vezes e perco a coragem. Para me redimir vou até a cama do meu avô Albérico. Ajeito o travesseiro dele. Eu o beijo três vezes na face esquerda e o abraço. Peço que me perdoe. Meu avô Albérico ficaria feliz se pudesse reconhecer a garota que deita ao lado, mas ele já mais nem tenta, pergunta pelo painho, e continua a olhar para o teto.
flávio vm costa nasceu em Salvador e mora em São Paulo.
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o jogo guilherme bacchin
Ele entra. Pela última vez? Ao abrir a porta, um som ensurdecedor toma conta da sala. Todas as vezes que tinha entrado ali aquele som entrava na sua cabeça e, por alguns segundos, ele encontrava a insanidade. Duas cadeiras. A da direita, é claro, que ele sempre sentava, não seria diferente hoje. As paredes? São verdes. Por alguma razão, mas ele nunca refletiu sobre o assunto. Ao olhar para a parede à frente, depara-se com aquele velho quadro. Lucian Freud. Traços fortes, marcantes e é realmente interessante isso. Ao mesmo tempo em que seu avô, Sigmund Freud analisava a psique humana, Lucien analisava a psique e o mundo materializados nos corpos que pintava e assim procurava reproduzi-los o mais direta e simbolicamente possível. A expressão do divã e a expressão do pincel, parecidas. Sons, do outro lado da porta. Um murmúrio e, como de costume, nada concreto é possível ouvir. A porta se abre: – Muito obrigado, doutor, até a próxima. O paciente anterior sai, passa por ele, o cumprimenta. Um aceno, um comprimento em um consultório não são como os outros, são singulares. Não lhe conheço, mas estou aqui, num momento absurdamente íntimo meu e você está aí. Devemos ser íntimos agora? Finalmente, a porta abre. Ele levanta e adentra a outra sala: – Olá, professor, em frente. Caminha até o divã, mas não deita, senta: – Doutor, o paciente aqui sempre tem a premissa de ditar o rumo da sessão, através do que fala ou até mesmo do que opta por não falar. A ideia que trago hoje, passível de discussão, é uma idéia que nasceu há um tempo e que, de incoerente se tornou sólida. Quero por um fim em nossos trabalhos. – Encerrar as sessões? – Sim, doutor, eu tenho a certeza de que posso caminhar agora sem a bengala, me libertar das correntes. 43
– Tu enxergas correntes na tua análise? Concordo com o termo “bengala”, ela é uma sustentação, mas correntes te lentificam, dificultam a tua caminhada. – Veja bem, doutor: eu venho aqui há 5 cinco anos. Existe um certo condiciona mento no que conversamos, o senhor entende? Eu falo, exponho ao senhor as incertezas da minha alma, anseio por conselhos, palavras que venham a surtir efeito. – Sim. – Mas o que acabei por pensar é que, ao lhe ouvir e isso eu sempre faço com muito apreço, me coloco em uma situação onde sou incapaz de não seguir o que o senhor fala. Percebe, como aí existe a negação do livre-arbítrio? A isso eu denomino “correntes”. – Em uma análise existe sempre a possibilidade e a escolha de ponderar e, se minhas palavras não forem suficientemente boas para serem usadas, pode-se fazer exatamente o contrário delas. Aliás, tenho pacientes que fazem sempre o exato oposto do que digo. Mas tudo bem, deixe-me ver aqui.... O analista levanta e vai até seu armário. Começa a mexer nas prateleiras, buscando algo, aparentemente sem sucesso. Isso ele sempre reparou. O consultório do seu psicanalista era desorganizado. Inúmeros papéis fora de ordem, agendas no chão, empilhadas na cômoda. O incrível dom de colocar em ordem a vida dos outros, mas inabilidade de por a própria? Enfim, ele acha: – Sabe o que é isto? – Sei, doutor, é um tabuleiro de xadrez. – Façamos assim: jogaremos uma partida, se tu me ganhar, as sessões acabam, agora, se eu ganhar, continuamos com as consultas. – Mas por que xadrez? – Pode-se ler muito e entender um homem pela postura a qual ele joga xadrez, através de suas ações no tabuleiro. Quero ver se estás pronto. – Entendo. Por mim tudo bem. O analista pega uma velha mesinha, aproxima um sofá do outro e pergunta: – Pretas ou brancas? – Pretas, eu sempre jogo com as pretas. Enquanto eles organizavam as peças um silêncio tomava conta do consultório. Agora, só era possível ouvir o tic-tac do relógio, posto em cima da bancada, ao lado do sofá do analista. Não é verdade que o silêncio prefere preceder algo de relativa importância? Tabuleiro pronto, o jogo começa. O analista avança o peão do rei, duas casas à frente: – Começaremos com uma abertura semi-aberta então, professor? Não inicio com o peão do rei, nunca. Ele avança o peão da rainha, duas casas, expondo o mesmo à ameaça do peão do analista. – Interessante; na tua primeira jogada, já coloca uma peça na linha de fogo? – Vá em frente, coma. E assim o analista faz. O peão do rei avança em direção à casa ocupada antes pelo peão da rainha. – Então, disserte sobre a tua ideia base de querer encerrar as sessões. – Professor. Uma lembrança clara vem a minha memória. O senhor lembra da primeira vez em que entrei aqui? Contei algumas de minhas lamúrias e fiz a questão de insistir em uma frase: eu não me relaciono bem com as pessoas. Lembra o que o senhor me disse? – Claro, que talvez não fosse essa a questão, mas sim que não estavas conseguindo te relacionar bem contigo mesmo. 44
– Exato. Um tanto quanto ensimesmado, não é, professor? Um menino com medo do “porquê” e da resposta sequente. Hoje, isso não é uma verdade. – Concordo. Tuas idéias hoje me parecem bem mais coerentes e organizadas que antigamente. Agora me diga: em que ponto tu acha que se deu essa virada? Xeque. Xeque? Ele se perguntava. Bispo ameaça rei, agora desprotegido pelo peão da rainha que no início avançou duas casas à frente. Grandes enxadristas podiam prever três, quatro jogadas. Não era o caso dele, não possuía tal imaginação. Uma jogada. Seu bispo na diagonal que força o xeque. – A prosa emanada do divã. Esclarece, modifica. As ideias, que no começo possam ser desassociadas encontram a lucidez. Veja bem, o paciente, ao deitar-se no divã, começa um processo de elucubração profundo, imaginativo, que torna claro o obscuro. E nossas sessões sempre foram caracterizadas por isso. Pensamentos não tão saudáveis que se fundem ao encontrar teorias sólidas e sadias. – Às vezes o divã não esclarece, porque a confusão é necessária. E quando não existe a confusão ou o esclarecimento, o silêncio, o nada tomam conta. Todos nós, às vezes, precisamos de silêncio. Xeque. A rainha, agora. Ameaça o rei. Ele move o rei uma casa pro lado. – No xadrez, as brancas passam boa parte do jogo um movimento na frente. São consideradas, portanto, um espelho para as pretas. Quem são as peças brancas na tua vida? – Inúmeros são nossos espelhos, professor. Uma figura política, um filósofo, uma mãe, um amigo, um analista. O espelhamento, creio eu, é cabal. Ao projetarmos uma terceira pessoa como um espelho, estamos ao mesmo tempo a admirando e reconhecendo que nela existe algo que queremos e possamos alcançar. O espelho é uma espécie de lembrança, que olha o porvir. – O pai não é um espelho? – Meu pai sempre foi cúmplice de meus fracassos. Suas vitórias eram minhas derrotas. Espelhar-me em alguém a qual não sinto nada, somente pena? Não sei se sinto ódio ou tristeza, mas não consigo lembrar ele sóbrio. Xeque. Rainha ameaça rei. – Xadrez é um jogo curioso. Ele gira em torno da peça maior, o rei, mas quem tem mais poder e autonomia não é ele, mas a rainha. E agora que estamos falando sobre teu pai, tu justamente me aplica um xeque com a tua rainha. – O que tem de curioso nisso? – A rainha é a mãe? O rei é o pai? – Hm. – Escute, eu sei que teu pai sempre foi confuso, mergulhado e perdido nas próprias ideias e essa confusão sempre afastou ele de ti, que por sua vez, desordenado também em teorias babélicas nunca soube ser receptivo a ele. A confusão de um refletia-se como a confusão de outro e aí que surge o espelho. E isso vocês não podiam suportar. Eu quero que tu analise a situação e, hoje mais maduro, pense efetivamente a respeito, ok? – Ok, professor. – O teu avô, que está internado no hospital, é o pai do teu pai, não é? – É sim. – E como ele está? Xeque. O cavalo em L cobre tanto a casa do rei quanto a da torre, que deverá, agora, ser sacrificada. 45
– Ontem mesmo eu fui visitá-lo. O médico responsável pelo caso disse que ele ficará bem e voltará à plena saúde. Só precisará de algum tempo para se recuperar. – Isso é bom. – Veja bem, doutor, nas passadas semanas eu pude acompanhar e vivenciar o dia-a-dia de um hospital, tendo em visto que fiquei um considerável tempo com o meu avô lá. Um hospital, doutor, é um lugar muito puro. Pacientes e familiares se despem da forçosa manta de não verdades que carregam e passam a ser muito mais cristalinos e verdadeiros lá. – Tens uma sensibilidade mais aguçada que a média. Vês um hospital como um lugar muito puro, quando na realidade é exatamente o oposto. Sujo, contaminado por diversas doenças. Essa tua sensibilidade é algo fundamental para um psiquiatra, psicólogo, psicanalista. Seria um bom terapeuta. Ele não responde.A essa altura do jogo, metade das peçass já se encontravam fora do tabuleiro. À medida que o jogo avançava um suor frio tomava conta da palma das mãos dele. Nervoso, claro. De vez em quando, retirava o olhar, outrora fixo, focado na partida, e olhava o analista, que quando percebia, esboçava um breve sorriso. Pouco, sim, mas o suficiente para deixar ele afogado em seus próprios pensamentos, decaindo, definhando. Por que o analista sorri, ele pensava. Será algum tipo de jogo, provocando meu desequilíbrio emocional? Um olhar, e o sorriso do analista era a resposta. Amaldiçoado seja o sorriso que desponta no rosto do analista, ele só me traz angústia. E mesmo assim, como se fosse um robô programado, continuo olhando para ele. Por quê? Na última vez em que ele olhou o doutor, um sorriso por parte dele não foi o bastante. O analista então fala: – Ouviu aquela música que lhe disse? Bolero de Ravel? – Ouvi, professor, linda. A verdade é que eu não paro de escutá-la. – É mágica mesmo, não é? Eu tenho uma teoria sobre ela: Ravel, para mim, na composição quis criar algo parecido com o ato sexual. Percebe como o ritmo é pausado, segmentado, ordenado? Ele vai e volta. – Não tinha percebido, professor, mas faz sentido. Xeque. O bispo, dessa vez. A analista pensa muito antes de desfazer o xeque, pois ambos bispo e rainha estão próximos do rei. – Eu andei pensando muito naquela frase, que diversas vezes o senhor mencionou nas consultas, Nietzsche. – “Torna-te aquilo que és”? – Essa. Eu andei lendo mais Nietzsche depois que iniciei as consultas aqui. As ideias dele são muito válidas. – Eu apliquei ela muitas vezes aqui porque acreditei ser adequado para a tua análise. Logo que começamos nossos trabalhos, eu vi em ti um rapaz com potencialidades exponenciais, mas portador de um auto-boicote que lentificava tua evolução. Teus monstros sempre foram teus maiores inimigos. O que precisamos fazer realmente é nos tornarmos aquilo que somos. – Eu sei, professor. Agonismos e antagonismos compõem a vida, não é? – Exato. E pela trajetória, pelo cume, devemos saber ponderá-los. Ele não fala, apenas ressente. Estava agora olhando o consultório, pois talvez tivesse adentrado seus últimos minutos lá. O consultório do analista sempre o agradou. Era aconchegante, belo. A beleza, ora, que mesmo nas agressões, mesmo nas atrocidades teima em viver com o homem. No consultório, logo na entrada tinha um armário. Com vários livros, cadernos e papéis. Na parede em frente ao divã existia uma mesa, um notebook, um pequeno quadro do velho Freud e uma 46
fotografia emoldurada do analista em sua formatura. O analista havia dito uma vez que ele tinha sido o orador. Quantas risadas já tinham dado juntos? Ele então percebeu, o quanto aquelas consultas importavam pra ele. As confissões, os risos, os choros é claro, as perguntas, as respostas. O que faz alguém, num consultório, contar tudo, absolutamente tudo para uma pessoa a qual não conhece nada? O dinheiro? Não, o dinheiro não traz isso. O dinheiro não traz muita coisa. A relação médico paciente se enraíza na pura cumplicidade. Durante aqueles 45 minutos, o psicanalista não é um psicanalista e o paciente não é um paciente, eles são Um. Amores vão, amores sempre vão e vem, amigos deixam de serem amigos, pois sim alguns somem, desaparecem junto à poeira. E não voltam mais. Mas o psicanalista está sempre ali. No sofá atrás do divã, com o seu caderno. E ele só faz uma coisa. Apenas uma. Ele escuta.Muitas pessoas perguntam “tudo bem contigo?”, mas quantas realmente se importam com a resposta? Ele apenas deu um sorriso: – Xeque-mate. O analista observa o tabuleiro e responde: – Então temos um xeque-mate. – Isso significa que acabamos por aqui. – Sim, esse foi o combinado. – Vou sentir tua falta professor. – O pássaro deixa agora a gaiola? – Sem analogias com pássaros professor. Pássaros em gaiolas não cantam, agonizam. – Justo. Não falaremos de pássaros então. O analista se levanta, afasta a mesinha que abrigou o tabuleiro e começa a ir em direção à porta. Ele então se ergue do sofá e, olhando mais uma vez para o consultório, vai em direção ao analista, que sorrindo estende a mão: – Muito bom, Gabriel. – Eu não vou esquecer, professor. Não vou. – Eu sei que não vai. – Obrigado. Um aperto de mão naquele momento não era o suficiente. Gabriel, num ímpeto, abraça o analista, fortemente. Depois de alguns instantes, quando Gabriel estava abrindo a segunda porta para deixar o consultório o analista fala: – Gabriel! – Sim, professor? O analista, olhando ele nos olhos, responde: – Em frente. – Rumo ao norte. Sempre. Gabriel passa pela sala de espera, olhando atentamente os detalhes. Tudo parecia ter ganhado uma nova cor. Era a última vez que ele estaria ali. Ao abrir a porta da entrada, aquele velho som adentra a sua mente. O som da insanidade. Curioso, mas agora ele não surtira efeito nenhum. Sua paz era dourada e ininterrupta. Ele então deixa o consultório. Depois de ter dado alguns passos, para e dá meia-volta. Olha aquela placa: Dr. Luiz Braga Starosta – Psiquiatra e Psicanalista. Ele esboça um leve sorriso e pensa “Torna-te aquilo que és”. E, caminhando em direção ao elevador, vai assobiando uma velha música: O Bolero de Ravel. guilherme bacchin, 24 anos, contista, poeta, e ensaísta. Publica ensaios políticos no jornal Zero Hora (RS), e poesias nas mais diversas revistas literárias.
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ernest
gustavo rios
Os meninos, gordinhos e abobalhados, brincavam na sala, reviravam gavetas, furavam as poltronas, mexiam em tudo, inquietos, ruidosos, desesperados, ao seu olhar marejado de sono, angústia do cair da tarde, sempre às cinco e o frio na espinha, o medo da morte em vida. Fumava, sala abafada, de longas e escuras cortinas, desobedientes ao vento, que os garotinhos rasgavam. As tias lhes mandavam sorrisos doces, cálidos, apaixonados. Ele fechava os olhos. O dedo corria lento no copo de whisky e a paz instaurada naquele lar repleto de quinquilharias chinesas, fotos, paredes úmidas, santinhos, uma foto do Chico Xavier com seu risinho transigente. Ele sabia. Tinha certeza que o sol derretido, o mar distante, afinal, morava num desses conjuntos habitacionais, austeros, onde se socam famílias inteiras em caixas de concreto, de janelas minúsculas, de telhados incertos, de ruas largas com poucas árvores, pois esse lugar lhe trazia o medo de estar morto sem saber, então gritava com um dos meninos, desejoso de uma reação, um olhar, que um deles lhe cuspisse na cara todas as roupinhas compradas, todas as noites insones, somente assim sacaria que ainda estava vivo (pro desprezo do menino, que não era seu). Que aquela criança lhe cuspisse na cara as cavalgadas em sua mãe. Os garotos se mordiam, arrancavam tufos de cabelos, deslocavam as pupilas com os dedos, sangravam um ao outro - as tias uivavam, enquanto faziam croquetes, coxinhas, pãezinhos, enquanto os adultos falavam dos carros dos vizinhos, das viagens dos vizinhos, dos filhos dos vizinhos. Ele tinha os dedos gelados, ainda os tinha. Submersos no whisky-doze-anos-legítimo. Já desabavam as nuvens. Já mergulhava a bola incandescente num mar no mínimo impraticável, grilos sobre as árvores remotas, empadinhas no forno. Festa mais tarde? Ele se perguntou o porquê daquela roupa sóbria, o porquê da sala limpa e arrumada (apesar das crianças que mastigavam o resto das cortinas e arrotavam desleixos, xingamentos e choramingos). Aniversário de quem, ele perguntava, mas sua boca estava colada, presa num riso calcificado, nos dentes travados, mais uma dose, mais gelo, puta que pariu, mais gelo, aqui! Pernas cruzadas e aquele jeito bonachão, um futuro estranho, lúgubre, seria mais uma noite insone, imperiosa, escura. E essa morte? E o frio na espinha? O relógio de parede, vertical, escuro, ressoando um desespero de horas, risinhos ao longe. Ele viu os balões coloridos nas paredes, 48
mesa posta, a toalha alva, de bordas rendadinhas, detalhes. Viu a porta que se abria, a todo instante, lá fora chovia, dava para ouvir as gotas grossas sobre as telhas, um dilúvio, e outras pessoas chegavam, alguns o apertavam, outros vinham em abraços frouxos, sem corresponder, sem reação, os garotos ateavam fogo aos fundos das calças dos tios que conversavam na sala, prostrados e bêbados, os cus em brasa, a fumaça se confundindo com aquela bruma típica dos cigarros. Eles, os cunhados e tios e primos, também falavam baixo, sussurros, soslaios, desconfiados, com as bocas cheias, cuspindo farelos e recheios de frango entre si, e falavam sobre futebol, mergulhados nos copos de whisky, impostos, mulheres, secretárias chupadoras de picas, posses, carrões. Como atravessar a dureza dos dias, o cinza, o céu embaçado, o vento extinto, a cegueira? A vida? Encher o cu de destilados, os importados que lhe traziam os parentes, que nunca o encaravam, os rostos vazios. Seus olhos zonzos, quando lembrava vagamente de uma canção dos Doors, da maconha, das camisas abertas enfrentando o vento, onde estaria a exuberância, o desatino, a fúria? Galgava territórios, dissolvia o horizonte com as pontas dos dedos – naquele tempo, agora o passado -, afastava a melancólica existência, junto com os amigos aos finais de tarde, feitos esses, agora pesarosos: mais umas doses? As brumas da dúvida agora dançavam junto à fumaça tumultuada dos cigarros dos que chegavam (parentes, inimigos ou o que?). E agora limpar a caspa na camisa escura e engomada, a calvície, geada pousada em seus olhos. Vazios agora. Gelados, assim como os dedos, mas ainda os tinha? Bebia. Na mesma poltrona preta. Bebia. Para que não fosse notado, aquela névoa dos cigarros, cinzeiros abarrotados. Afundava no sofá, os ruídos familiares, tias guinchavam, cunhadas riam, o riso diabólico das crianças, engolido pela poltrona, ninguém o via, era isso, sumir. O hálito de enxofre, a baba, os intestinos frouxos, as varizes. Aquela cabeça que latejava despropositada lhe pertencia? Aqueles sonhos apagados, rastros incertos, lembranças? Preso naquelas paredes sujas, pelos objetos, sofás puídos, quadros, um crucifixo na parede, as horas ainda no mesmo desespero, retumbando em sua mente, os quadros na parede, ele notou, um quadro na parede à sua frente. E o enteado percebia, o enteado com rosto do outro lhe sorria, e sabia, ele sabia, sacava o fracasso, lacrimejava a quentura do whisky, do estômago revirado, do barulho indistinto, dos tapinhas nas costas e alguém sempre enchendo seu copo para que calasse, para que evitasse subir à mesa arrumada, para que não mostrasse os colhões às tias, primos, cunhados, esposa. Lacrimejava um resto, a exuberância, as plenitudes, o passado, agora atenuado, agora sonambulismo e bebida no gargalo. E os dedos congelados num copo. E o quadro. E os móveis a prestação, o futuro à prestação, o futuro um calendário de ponta cabeça, o desejo pela cunhada (uma imbecil que falava arrastado, pintava os cabelos e sonhava em morar em Nova Iorque) sendo deixado de lado. O sonho agora era a velhice lúgubre, um monstro – comida natural e o dedo da esposa em seu cu; seu amor desabrochando, débil, quase feto -, ela falava em novos estímulos, e lhe enfiava o dedo no cu, e sua voz quase sumia, amolecia e se distanciava, morria na última sílaba, e as paredes que não seguravam os quadros, somente aquele, seria Cuba? Seria a famosa Cuba? As vozes cada vez mais pastosas, sílabas escorregadias, bêbadas. Agora não distinguia mais as palavras, os olhares, as palavras e as frases cada vez mais gelatinosas e moles. Seria Cuba? 49
A mulher sentava em seu colo, frouxa, sorridente, um sorriso de dentes cavalares e enormes, o contato da pele, alva, os cabelos tingidos, a boca trazendo o hálito dos salgadinhos, o rosto marcado pela velhice, pelos cremes, temerosa de que ele falasse, melhor bêbado, melhor broxa, melhor quieto, afundado naquela poltrona, melhor para todos, e ela, o que havia sido feito dela, dos cabelos ruivos, do corpo esguio, das intermináveis noites em claro, admirando a lua esbranquiçada, metidos num deserto de areia e marolas, trepando, se lambendo, promessas de amor eterno, onde estava aquela mulher, afinal de contas? – o menino sempre com o pai nessas horas. Porque aquele cheiro adocicado de perfume? Porque o lençol manchado de esperma numa tarde de quinta? Por que aquele amor diligente, mórbido, o perdão, seu copo sempre cheio, mais uma golada e o mesmo riso gélido aos parentes dela, orgulhosos? Onde estava aquela mulher que havia cruzado seu domingo silencioso? “Mais uma dose, caralho. Agora!”. E a frase cuspida de sua boca atestava que vivia, que os outros, o encarando com sentimentos confusos, constrangidos, alheios, indulgentes o escutavam, como atravessar um muro imperceptível. Estava vivo, o copo sempre enchido com rapidez pela esposa – que mantinha os dentes escancarados, abertos, cavalares -, lhe deixando no mesmo canto, quieto, quase vazio por dentro (somente o whisky lhe ardendo o oco da barriga, explodindo no peito, retumbando), e todos voltaram aos mesmos assuntos, as preocupações idênticas, carros, prestações, vizinhos, secretárias. Onde estava o livro do Whitman? No quartinho dos fundos? Junto às coisas inúteis, pardacentas, mofadas, cheias das mesmas manchas escuras dos ratos. Como era mesmo a primeira estrofe do Uivo? Do Ginsberg, do judeu, do destrutivo Ginsberg, com sua mãe louca, desvairada, judia, de quipá na cabeça oval, a rezar, enquanto o filho deitava numa cama de campanha e esperava o choque elétrico nas têmporas. Tinha amigos agora? Um bando de paspalhos pretensiosos – que riam nas confraternizações de fim de ano, no amigo secreto. Estavam ali, conspirando com os enteados - que lhe sorriam um riso diabólico, canino – afagando as cabecinhas ardilosas, os cabelinhos cheirosos, penteados com esmero, as roupinhas bem cortadas, “homenzinhos, eu gosto assim”, ela falava pra ele, enquanto sufocava o filho com nós de gravata, mais um pouco o rostinho se inchava. O futuro, o tal futuro é uma bela merda (“de uma forma ou de outra, baby”), e sua voz límpida se esmerava nas máximas, nas frases de efeito, enquanto seu olhar mirava as nuvens carregadas de eletricidade, e dava uma bela tragada no baseado, enquanto seus dedos brincavam no meio das pernas dela, abrindo os lábios finos com pelinhos também finos, ralos, duros, e ela dava uns tapas, discretos, tossia, chupava, massageando as bolas com dedos delicados, enquanto discorria sobre o viver junto, sobre a eternidade, casamento, as convicções dela agora confundidas com o gozo dele, com a concordância lerda dele - afinal o que seria maior prova de amor que engolir a porra do sujeito, enquanto alisa suas bolas, enquanto o mar lambe seus pés e a areia invade os poros suados, pegajosos? Casaram-se, numa cerimônia simples, os filhinhos dela empertigados, espirravam o mofo das roupas, juravam a morte do padastro num silêncio aterrador, e ele esquecera tudo, de todo o resto, das tatuagens pelo corpo todo, sobre os braços, as pernas, as omoplatas, agora outras prioridades. Grana curta, aos poucos tudo mudava, a cor das paredes, a esperança, a varanda se apequenava, os tapetes usados por outras tias mofavam sob seus pés, “era presente, querida”, e os meninos riscavam tudo, arrastavam seus discos pelo chão, enquanto faziam barulhos gozados com a boca imitando carros. A televisão atravessava os domingos de pêsames não ditos, de ódio não declarado, 50
mas ela trazia uns charutos da loja de conveniência, aos domingos, os mesmos onde a morbidez imperava, ele desconsiderava o hálito gasoso, gelado, amargo de cerveja e cigarros, que beijava as crianças, que os deixavam na sala enquanto tomava um banho. Ele batia punhetas nas madrugadas insones, gemia, tudo confundido com o ronco discreto dela, que ressonava as cervejas de mais cedo, que balbuciava o nome do ex-marido. “Mais uma dose, seus viados!”. Eram cunhados que o serviam agora, sustentando na cara um riso gélido, mortal, murcho? Eles ouviram sua voz e seu insulto? Levaram a sério aquele palerma desmanchando na poltrona de couro? Não interessava, somente o copo novamente cheio, de destilado, aguado, os dedos ainda metidos, submersos, enrugados pelo frio, brancos - eram seus aqueles dedos? -, encarava a janela, a parede, o mesmo quadro que o intrigava. Já haviam arrancado algumas bexigas coloridas, que estouravam aos poucos, os meninos davam saltos desajeitados, manchavam as cadeiras, as roupas alvas das tias sorridentes, as paredes pintadas recentemente, derramavam o guaraná quente, borbulhante, no tapete velho e esburacado. Ainda sorria, afinal de contas? Sentia ainda a boca, as bolas, as nádegas dormentes, o nervo, a pupila dilatada pelo álcool? Quem era afinal de contas? Um dos filhos, o ex-marido que não pagava as contas, que atulhava a casa de presentes inúteis e flores esporádicas para ela, que as recebia no dia do aniversário com os dentes arreganhados? Mas tudo era perdoável, “sensatez, querido”, e ela vinha, trazia flores, ia à manicure, uma velhice lúgubre, relacionamento cabeça, cheirando a lavanda recente, os cabelos úmidos, escorridos, um riso de mil dentes na cara. Então abanava o rabinho, evitava cagar no tapete, sustentava o seu sentimento resoluto, firme. Dormia horas seguidas, um comprimido que virava pó, goela abaixo, depois uma xícara de café, adoçado, quente. Inicialmente o quarto turvo, mole, derretendo, o espelho da estante ondulava. As paredes brancas saltavam aos seus olhos, realçavam a si próprias, e o sono surgia em definitivo. E tudo se convertia num preto sem fim. Da janela o mesmo escuro de seu sono, pontuado pelos postes ordeiros, que banham a rua, pequenos pontos de claridade. O relógio grita as horas. Ergue-se da poltrona, desenterra-se, cambaleante e tonto, desaba com estrondo, todos riem, constrangimentos e a luz apagada (alguém lhe traz um troço redondo, cheio de cores, babados, de superfície lisa, onde uma vela está fincada, suas chamas vacilam, teimam, fazem os rostos tremerem, refletidos nas paredes frágeis, que não aguentam a porra dum prego), se ergue de novo, as mãos espalmadas, aflitas, tímidas, sonsas, as vozes que cantam num tédio absurdo, alguns falam de Deus, que o abençoe, seu olhar passeia (ainda o copo na mão, os dedos enfiados lá dentro), os rostos bruxuleantes, que tremem, sorrisos de dentes amarelos, escuros, ferventes, vez ou outra flashes, esporádicos. Nada é identificável, estranhamento. Somente o quadro brilha, cintila, reluz, numa moldura rebuscada e dourada, que também brilha, e ele deseja uma crença, ter fé, sua década perdida, quer ver uma multidão ao redor da Casa Branca e que seu pau vire uma arrebatadora orquídea, e no quadro tem uma cabaninha, timidamente pintada, acinzentada, contraste com todo o resto (o azul que a cerca, o branco de algodão das nuvens, o verde esguio de coqueiros deitados), e ele saca que é o mar, que é Cuba, que pode ser um bom lugar. Que aquele lugar tão perto é o seu lugar, viver ali, enfiado numa cabana, como o velho “Hem”. Ter o mesmo aspecto bravio e destemido, melancólico, em sua cabana, de portas velhas, de janelas pequenas, onde o mar está emoldurado por pedaços de pau envelhecidos, escuros, onde ele poderia viver, como o Ernest, e dar um fim aquilo, ao bolo, às caixas coloridas, enfeitada com lacinhos vermelhos, onde o nome de uma loja qualquer aparece pendurado, uns abraços, cuecas, camisas gola polo, o 51
rifle do Hemingway, o contato frio do metal nos lábios, a respiração, os dedos não mais dormentes – o copo de whisky-doze-anos-legítimo ao chão. Um disparo único, sem chances de erro, os miolos espalhados na cabana – seria Cuba? E a maré lá fora, etérea e despreocupada, a lamber as bordas do acanhado terreno, da areia que invade aquela cabana, aquele céu resplandecente, confuso, dissolvendo o que sobrara de sua vida idiota, em pinceladas mais que vigorosas, em pinceladas mais que suficientes.
gustavo rios é baiano e tem 40 anos. Autor dos livros O Amor é Uma Coisa Feia (7Letras) e Rapsódia Bruta (Brechó Livros). Participou também de algumas coletâneas.
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o passageiro basco ivan nasf
Registro no diário de bordo: foi com “imensa felicidade” que os vinte e dois tripulantes do Fahyza resgataram um homem magro, queimado de sol, barbado de vários meses, à deriva no meio do Pacífico. Pela aparência ninguém pôde dizer sua origem; mesmo assim, as boas-vindas foram sonoras, entusiasmadas. “Todo homem é igual na miséria”, anotou o capitão. Logo se improvisou um discurso no convés. O capitão disse que o resgate era sinal de boa sorte, encontro bem-aventurado entre náufrago e marinheiros. Gritos, palmas, algumas lágrimas. Só o homem não deu sinal de compartilhar da comoção. Em meio à alegria geral ele permaneceu indiferente, descrito no diário como “intranquilo”, “agitado”, “nervoso”. Inúmeras entradas no diário de bordo mencionam o comportamento aberrante do náufrago. No dia da salvação ele não parava de gesticular desesperadamente, acenando que deviam ter cuidado com o pequeno bote, recolhido pela tripulação. Reuniu garrafas, que encheu de água, e estocou comida enlatada na embarcação. Mesmo fraco, comunicou por mímica que precisava de velas e remos, no que foi atendido embora não compreendido pela tripulação. Tinha sido salvo, diziam, salvo e navegava a caminho do Chile, distante poucas semanas. Mas ele não se acalmava. Apontava o horizonte. Gritava. Húngaro, finlandês, grego, que idioma falava? Filipinos que limpavam o convés confirmaram que não era sua língua nem vietnamita ou tailandês. Resolvendo a questão, um alemão, conhecedor da Europa, disse ao capitão que já tinha ouvido alguma coisa parecida. Lembrava vagamente o que se falava numa região da Espanha, o País Basco. O Passageiro Basco, como ficou conhecido, não descuidava do bote. “É o cansaço”, disse o capitão. Precisava de sono, então arrumaria a cabeça e se faria entender, parando de agir “inadequadamente”. Foi acomodado num beliche vago e orientado a dormir, se recuperar, mas os marinheiros se espantaram ao ver o Basco contando algo nos dedos a noite inteira. Na terceira madrugada acompanhando o ritual, um deles notou que talvez fosse o tempo que o Passageiro Basco contava. Talvez segundos, uma unidade qualquer, grãos de areia de uma ampulheta imaginária, o compasso caótico do casco batendo contra as ondas, algo longínquo, inacessível, mas periódico: foram algumas das opiniões a respeito, coletadas pelo capitão e resumidas no diário. 53
Durante os dias, o Passageiro Basco não saía do pátio onde colocaram seu bote. Sua única preocupação era a embarcação. Ajustou polias, remendou velas velhas e testou as novas, arrumou cordas. Se empenhava arduamente na manutenção do bote. Ponto importante. O primeiro evento fatal ocorreu no quarto dia após o resgate. O diário de bordo é omisso quanto às causas. De fato, o registro conta brevemente o episódio: um oficial da casa de máquinas entrou com uma barra de ferro na cabine de comando, completamente fora de si. Só parou de destruir os instrumentos de navegação e comunicação quando o imediato o acertou com uma cadeira, o que abriu sua caixa craniana e revelou uma emaranhada massa encefálica. Morreu ali mesmo. Os dados seguintes são confusos, feitos às pressas, numa caligrafia irritada. A comunicação via satélite foi interrompida pela sabotagem da antena; no rádio só se ouvia estática. O Passageiro Basco saiu da cabine e passou a dormir no chão de pranchas do bote. Ao contrário do que tinha ocorrido no período inicial, passado em claro, os marinheiros notaram que agora o sono do Basco era pesado: quem fazia a ronda noturna relatava o ronco forte. Mas sua aparência piorava, enquanto outros eventos infelizes ocorriam. Um aprendiz apareceu enforcado no banheiro e o imediato se jogou ao mar à noite, desaparecendo. O Basco cada vez mais exausto. Apontava para o horizonte. Gritava em sua língua estranha. O capitão uma manhã surpreendeu o homem ajoelhado, talvez rezando. Esticava os dedos, um a um, repetindo palavras incompreensíveis. As entradas na ata da reunião que ocorreu no refeitório, oito dias após o resgate, resumem a situação caótica. Consideraram a hipótese de contaminação da água do Fahyza. Compreensível: a tripulação em pânico buscava racionalizar os episódios. Não havia nada na água, explicou o médico. Uma simples explicação psiquiátrica, científica. A provisória incomunicabilidade teria desencadeado um surto suicida entre os espíritos mais fracos, naturalmente. Então se mencionou a possibilidade do Basco estar envolvido nas mortes. “Bobagem”, sentenciou o capitão. O rádio seria consertado, corrigiriam a rota, as mortes seriam apuradas por uma comissão em terra firme. Nada relacionado com aquele miserável, só a mesma desgraça humana: a deles e a dele; várias e uma só; todos no mesmo barco. “Esqueçam as superstições”, finalizou. Os marinheiros passaram a ignorar o Passageiro Basco. Mas, entrincheirado no bote, ele não parecia se preocupar com isso. Consumia lentamente seus mantimentos, e não descia ao refeitório. Continuavam seus hábitos, gritos, contagens. Parecia pronto, conforme o diário de bordo. (Pronto?) De fato, todos os instrumentos foram postos em condições funcionais no décimo segundo dia após o resgate. Comunicados os eventos, houve um intenso intercâmbio de dados sobre o clima. Uma tempestade se formava ao sul de onde estavam, mau tempo, péssimo mar, ventos terríveis. No mais, tudo ia bem. O Fahysa tinha atrasado, mas chegaria à Valparaíso em no máximo vinte e cinco dias. O próximo registro relevante descreve o surto de disenteria que durou três dias e quase dizimou a tripulação. Era o décimo sétimo dia após o resgate, conforme anotação no diário de bordo. “As crises agudas de diarreia e vômito levam o indivíduo a perder todo apreço por si mesmo, pela vida; desconfia da justiça, dos rótulos, dos valores, Deus, dos valores”, atesta um fragmento. Ninguém morreu, frustrando os desejos suicidas de muitos durante a epidemia. Uma nova reunião foi convocada. “A situação é insustentável”, começa a ata seguinte. “Nenhuma dúvida: o Passageiro Basco trouxe a loucura e a morte”. Era a posição quase unânime. 54
Depois da exposição indignada de alguns marinheiros, os que conseguiam falar, foi proposta uma solução democrática. A medida era eficaz e até lógica; espanta pela solidariedade, pelo bom senso, pelo uso avançado da razão humana em condições adversas. Nenhum voto valeria mais que o outro, as cédulas não seriam assinadas, tudo secreto, honesto. Simples. Aberta a urna, o único voto contabilizado a favor da vida do Passageiro Basco não permaneceu em sigilo. O capitão argumentou que era “puro folclore”, que não havia “qualquer relação comprovável entre os acontecimentos”, taxando o ato de “hediondo, criminoso.” Mencionou que não podia concordar com o procedimento, mesmo legitimado pela maioria. Jogar um homem ao mar numa tempestade era assassinato, puro e simples. A ata menciona um pequeno tumulto, coisa breve e sem importância no contexto. Não há indicação do nome, mas quem comentou os motivos do voto do capitão resolveu a questão. Disse que apenas o Passageiro Basco não tinha adoecido, enquanto toda tripulação andava bêbada na linha entre a vida e a morte. Os dois fatos, a doença geral e a saúde individual, se não formavam uma prova incontestável, pelo menos eram um indicativo razoável. O próprio capitão, confrontado com seu estado, concordou que nenhum deles aguentaria outra enfermidade, por mais curta que fosse. Chegar a Valparaíso era essencial, e com a tempestade se aproximando um resgate era difícil. Necessário adotar uma medida. Na apuração seguinte não se identificou nenhum voto contrário à expulsão do Passageiro Basco. Ele recebeu a notícia com naturalidade, através de gestos. Acolheu seu destino como um velho e esperado amigo. Pareceu, pela primeira vez, calmo ao capitão. Entrou no bote sem resistência, e foi baixado de volta a água. No entanto, antes de chegar ao mar fez mais um sinal desesperado. Queria que parassem. Do bote suspenso pelas cordas ele olhou os marinheiros magros, barbados, e gritou várias palavras no idioma desconhecido. Apontou o horizonte, diante das caras doentias da tripulação, e esticou os dedos, um de cada vez, várias vezes. Depois prosseguiu seu caminho: os cabos de aço se estendendo até o bote alcançar a água, o bote se perdendo na imensidão azul. A tempestade durou quatro dias. O Fahyza suportou com tranquilidade o mau tempo, apesar da fraqueza dos marinheiros. Quando o céu clareou, corrigiram o curso para aproveitar a corrente: a sensação geral era de que o pior havia passado. Transcrições das comunicações pelo rádio revelam um moral em franca recuperação. A tripulação, talvez feliz, fez uma festa. Música, dança, discursos. Chamaram de “Baile dos Sobreviventes.” A partir desse momento o diário de bordo perde completamente os sentidos cronológico e textual. Uma nota sem data informa que foi avistado outro bote no horizonte. Nada diz quanto à aproximação. Os instrumentos de comunicação foram totalmente desligados entre vinte e vinte e dois de abril, conforme registro do Posto de Contato. Outra nota diz que o Passageiro Basco tinha razão, afinal. Rabiscos completamente aleatórios preenchem a maior parte das páginas. Uma informação dispersa menciona um bote, mudança de curso e novamente o Passageiro Basco. “Impossível se livrar, o futuro é o presente massacrado pelo tempo”, é o último fragmento minimamente coerente. Como informado no memorando anterior, o Fahyza foi encontrado na zona apontada no mapa anexo. O paradeiro da tripulação é desconhecido, mas não existe nenhuma indicação de pirataria ou motim no interior do navio. Tudo leva crer que eram bons marinheiros. Seguem as imagens. 55
Ponto importante. A carga permanece quase intacta no porão. Só dezenove botes foram subtraídos, prejuízo mínimo.
igor nasf, nascido em 1987, é escritor e compositor.
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culpa
mariel reis
Se ela não tivesse visto o que viu, talvez estivesse viva aqui conosco comigo Se ao menos tivesse fugido quando a vi, resistido, dito que não tinha visto ou escutado; que não era ela que era outra que não estava ali ou era engano Se ela erguesse a mão esbofeteasse o meu rosto recobrasse meu bom senso para não contrariá-la, não questioná-la ou argumentar contra o que parecia verdade. Ela era importante para mim e para as crianças, mesmo que mortas. Por que ela não fugiu? O que ela queria? Eu nunca tive juízo nunca Ela sabia muito bem que casou com um homem sem miolo nenhum Se ela tivesse fugido ou distraída não espiasse pelas frestas da parede de tapume e não ficasse atenta ao que não lhe dizia respeito. Ela se disse magnetizada hipnotizada imantada à cena grudada ao que via ouvia. Nojo, revolta, desprezo, amor, ela não sabia o que sentia e não decidia pelo quê O olho arregalado, a fresta, os pés pesados, a respiração intranqüila. Os meninos, todos mortos, arrumados sobre a cama como que dormindo e o menor de colo deitado no berço chorava Irritado quis calá-lo Não consegui Esganei o coitado Ela não conseguiu tirar os pés do chão correr de tão pesados Filhos? Eu não queria filhos. Atrapalham. Ela não me ouviu Sou um sujeito sem paciência sem muito jeito Sozinho e silencioso Quando engravidou do primeiro, pedi: tira Ela disse ser contra as leis de Deus. Parava pouco em casa, dirigia caminhão, não era problema. O garoto era bonito, parecia comigo. A convivência só prestava quando ele estava quieto. Ele chorava e ela corria para ver o que estava acontecendo: se sujo ou com fome. Chorava apenas por essas duas coisas. Eu a via uma vez ou outra, o resto do tempo na estrada e o garoto cresceu. Os outros três, com uma história muito parecida. Juntava dinheiro para comprar uma casa mudar sair daquele fim de mundo dar uma vida melhor a ela quando engravidou do segundo filho pedi para tirá-lo ela se recusou mais uma vez Eu argumentei que a vida ficaria mais difícil Ela disse não se pode contrariar as leis de Deus Perguntei se Deus pagava as contas da casa? Se Ele colocava comida à mesa? Ela pare de blasfemar, homem Não me contive e dei nela com a correia da 57
calça para ela aprender que Deus não tinha nada com a minha vida. Ela me pedia piedade, piedade. Disse a ela, chama por seu Deus, vê se Ele vem tomar a surra por você. Pare de blasfemar, homem. Me bata e não blasfeme. Batia para ela aprender a parar de chamar por Deus, por esse sujeito intrometido que impedia de ela tirar os filhos, porque tinha lá as suas leis que não significavam nada para mim. Toda marcada, ela voltou para a cozinha sem dar um pio, sem nem mesmo praguejar ou me ameaçar de polícia ou envenenamento. O filho vai mudar você, homem, advertia enquanto me servia um prato de comida. Parece tão esperto para as outras coisas, ela pontuava, e não gosta dos próprios filhos. Não gosto de filhos, nunca tive vontade de tê-los O mais velho não conversava muito, parecido mesmo comigo. Comia a pouca comida, calado. O mais novo, nos peitos da mãe, com o choro irritante. Vezenquando o mais velho viajava comigo, gostava dele. Era quieto, falava pouco -, só o necessário. Se ela não tivesse visto o que viu a gente podia sair por aquela porta passear tomar um sorvete ir ao cinema namorar ir para um hotel e tudo seria tão diferente... Perguntei a ela o que você viu? Nada. Nada? Ela tremia. Não vi nada E os seus filhos? Você não os botou para dormir? Estão dormindo, sim Os três e o menor Eu sei, homem, eu sei Sabe mesmo? Sim Vá se lavar a gente vai sair Não tô com vontade de sair Não tá? O resto do dia está livre E a gente vai sair Tá bem, vou me lavar Ela foi tomar a chuveirada no banheiro atrás da casa, tirou o vestido florido, pendurou em uma das paredes improvisadas Lavou a longa cabeleira enegrecida Parecia mais jovem quando se banhava. Ficava outra mulher. Tranquei a porta de casa, não sem antes tirar de lá uma trouxa de roupa. Ela tomava um banho demorado. Talvez o medo, talvez. O tempo todo eu parado olhando ela pelada pisando sobre as tábuas - a água do banho empoçando - a espuma do sabonete escorrida por entre o capim Fechou o chuveiro A água fria parecia tê-la feito recobrar a calma. Recomposta pediu as roupas Escolheu meu vestido, é? Quanto tempo você não me escolhe roupa Eu ri, alisei minha barba, olhei aquela bunda bonita sumir dentro do tecido A casa ficará trancada. Os meninos não vão ter necessidade Ela não discutiu Penteou-se diante de um caco de espelho preso a parede dos fundos da casa Se ela ao menos tivesse fugido Não fugiu Agia naturalmente Cadê o perfume? Não precisa de perfume nenhum Tinha esquecido a colônia que dei para ela de presente de aniversário O cheiro era bom Eu gostava Gosto de cheiro de mulher, despistei assim, ela olhou para trás com aqueles olhos que o meu filho caçula parecia ter herdado Não tá demorando demais não? Calma, se tá tudo bem, por que a pressa? As crianças dormindo. A noite é nossa Se ela me esbofeteasse para recobrar o bom senso se tivesse interferido Eu nunca tive juízo nunca Passou pela estrada um caminhão anunciando na agremiação a festa da noite É lá que nós vamos? Sim. Sem calcinha sem sutiã com uma sandália de salto vestido leve Os seios espetavam o tecido Era uma boa mulher, apesar dos filhos todos. Me esforcei para estragá-la Não consegui. Parece uma menininha, aquela que conheci na estrada, em minha primeira viagem Cobrava pouco mais de trinta reais para se deitar num colchão à beira da estrada no meio do mato para o amor apressado Parecia, mais uma vez, aquela menina: Sonho em ser mãe Eu não gosto de crianças Você não tem um, quando tiver... Deus não vai me castigar dessa maneira Criança não é castigo Apaguei as luzes, peguei a bicicleta. Ela na garupa Os seios roçavam às minhas costas, agarrava a minha cintura O mais velho me voltava ao pensamento: ele parecia mesmo comigo. Ela perguntou o que deu em mim Vontade de ficar sozinho com você. Sozinho 58
com você e com o mundo. Por que não me pediu isso antes? Você ocupada com os filhos: eles em primeiro lugar. Não podia montar em você: A, B , C ou estavam acordados ou não tinham jantado ou não estavam limpos. Agora a gente tá aqui. É, a gente tá aqui. O caminhão na revisão. A semana inteira ouvindo toda a gritaria das crianças toda exigência estúpida Com o caminhão no conserto, podia fazer muito pouco, não podia ir para longe, vê-los apenas de vez em quando, igual sempre fiz Estavam com a mãe, eu pensava, ou pior: não são meus filhos. Pior não, melhor. Meus filhos eram aqueles quatro – silenciosos - envolvidos na escuridão do cômodo, sem a requisição constante do pai ou da mãe Os quatro dormindo profundamente sob a chama da lamparina de querosene, no único cômodo, imóveis, obedientes ao silêncio respeitoso do pai e de suas necessidades de homem eram os meus filhos O bando ruidoso deprimente, não Ela grudada às minhas costas Passei do clube dançante pedalei para longe das poucas luzes do lugar A estrada se tornou difícil Dócil ela levantou-se da garupa da bicicleta caminhou ao meu lado no trecho da via. Era uma estrada secundária passavam poucos veículos. Os motoristas não estranhavam em nos ver caminhando pelo acostamento Havia uma ou outra casa por perto Os faróis a assustavam. A noite, não. A gente chega já, já, falei olhando para o rosto dela na escuridão Pareceu concordar Passei a mão em sua silhueta, puxando-a para perto de mim Ela não resistiu Não reclamou feito das outras vezes não disse olhe as crianças, homem Controle-se O mais velho era mesmo parecido comigo talvez eu tivesse gostado dele. Caminhamos por mais uns cem metros, apareciam pontos de prostituição. Várias mulheres na beira da estrada, iluminadas pelos faróis dos poucos veículos. Sem eles, sombras recortadas contra o fundo da noite, sem identidade. Parei perto de uma delas Programa, moço? Pra dois é mais caro Não quero sem vergonhice Quanto você quer para ir embora daqui, arrumar outro ponto? O quê? Perguntei o quanto você quer para sumir, está surda? A putinha não gostou nada do que ouviu, reagiu aos gritos, quando a esmurrei e ela para não cair agarrou-se às minhas pernas Mais uma vez a golpeei. A putinha caída, quieta. Falei para minha mulher tomar conta da bicicleta. Removi o corpo magro da prostituta para um lugar doutro lado da estrada, no matagal Fez um ruído seco quando a arremessei. Voltei. O colchão deve estar por perto, disse. Ela segurava o guidão da bicicleta, seguia calada pelo trecho da estrada. Um caminhão parou ao nosso lado Quanto é? Depende? Depende do quê? Você não quer conversar? O caminhoneiro desconfiado seguiu adiante. Encontramos o lugar do colchão. Pulamos a mureta da estrada, levantei a bicicleta, coloquei-a bem perto de um galão de água e um caixote com uma garrafa térmica de café e papel higiênico e uma bacia. Ela - parada ali -, minha mulher. Não era mais uma à toa. Fiz o jogo: Quanto é, dona? Pra você é de graça Assim, não Quanto é, dona? A brutalidade da minha voz a convenceu de que eu não representava. Pelo quê? Por tudo? Você não vai ter dinheiro para pagar e levantou o vestido Joguei em cima dela todo meu dinheiro Taí, agora deita. Abre as pernas. Ela deitou-se no colchão imundo. Tá sentindo o cheiro de homem, cadela? Puxei-lhes os cabelos longos e enegrecidos. Não é por aí, não. Fica de quatro. Ela obedeceu. Empina a porra da bunda, empina. Gritei. Ela voltou ao passado. Passa sempre aqui? Gosta de crianças? Não, não gosto. Coincidência, eu também não. A noite coberta de estrelas, os meninos dormiam profundamente, a gente não precisava temer que acordassem. Você tem filhos? Não, nenhum. Quer filhos? Não. 59
Você tem marido? Não. Por que não larga a vida e vem viver comigo? Os saltos do sapato espetavam a minha barriga Os mosquitos infernizavam. A lua emprestava o romantismo possível Ela levantou-se, retirou um pedaço de papel para a higiene, agarrou a minha barba e o meu cabelo, olhou fundo nos meus olhos, Você pode passar em outra hora, tô em horário de expediente. Ajeitou o vestido, andou em direção a mureta de segurança, saltou-a. Um caminhão passava. Ela suspendeu o vestido. Os faróis iluminavam-na. Quanto é? Ouvi. Observava de longe, afastado alguns metros do colchão. Me aproximei outra vez Você aqui de novo? Ela me disse Agora, chega. Sobe aí Você vem comigo Sabe, comecei, já fui casado, tive quatro filhos O que aconteceu? Morreram em um acidente Quer ouvir minha história?
mariel reis é escritor e editor geral da flaubert. Lançará, no primeiro semestre de 2015, o livro Bordel de Bolso (narrativas). pela
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válvula de escape mario filipe cavalcanti
Dedos: indicador, polegar, médio, anular e mínimo. O polegar tem dois ossos, duas falanges, que recebem o nome de proximidal e distal. Os quatro outros dedos possuem três falanges: proximidal, medial e distal. Além disso, existem pequenas esferas ósseas que ajudam no processo de articulação, chamadas semamóides. Queria começar assim, mas o começo não parecia começo e ele ficava perdido tentando encontrar um começo que de fato começasse. Queria falar das coisas, da máquina humana, do corpo e de seu funcionamento febril e perfeito. Corpo perfeito tem homem mecânico funcionamento engrenagens incansáveis complexo sistema. Ia lembrando, lembrando das aulas todas de anatomia. Corpo perfeito tem o homem. Teria ele assistido alguma aula de anatomia? Mas ia sabendo. Estava sabendo sem nem saber como. Corpo fechado. Lembrou naquela hora da mulher que dizia pelo caminho de Olinda que o marido tinha. O ônibus lotado e ela se gabando: Ah, meu filho!, o homem tem corpo fechado. Já levou sete tiros numa tentativa de assalto, sobreviveu, denunciou o infame e ainda esteve vivo pra ver o diabo do bandido ir pra cadeia. Nossa! Mas o que diabos seria ter o corpo fechado? Se se tem ou se não se tem gente assim ninguém sabe, mas o diabo do homem devia mesmo ser de outro mundo. Homem-diabo igual aos que fazem as coisas mais loucas e se esquecem que nada mais fazem que despertar o diabo no corpo pra ter poder. A máquina não pode sozinha tudo isso; não pode. Lembrou do Guimarães Rosa. E se pode esquecer a experiência do Riobaldo? Adianta não dizer essas coisas de superstição e corpo fechado, é tudo coisa muito inventiva. Mas já ia esquecendo que o que estava fazendo era inventar. E se o que se inventa não existe, por que o que eu invento fica existindo no papel? O tal do George Berkeley dizendo-nos imaginação do Deus. Mas o Deus, o Deus está em nós ou nós estamos no Deus? Faz alguma diferença na colocação? E as pedras na rua iam ficando disformes. Poderia esculhambar a porra da prefeitura, mas sei não se dá pé. Se resolve. As coisas não precisam ter solução. A gente não quer solução nunca. A gente precisa das coisas ruins pra poder sentir no fundo uma vontade que nos mostre vivos. Vontade de reclamar, mas se as coisas se solucionam, não há mais o que reclamar. Aquele escritor velho com quem ele travava contato às vezes vivia de dizer que outro escritor não menos velho era ruim. Ruim, ruim. Um horrível. Não recebia bem escritores jovens. E não isso e não aquilo e não aquilo outro até que aquele escritor velho bateu as botas e o escritor 61
velho com quem ele conversava continuou escritor e velho e alvo de outros mal dizeres de gente que ainda que escritora e velha não gostava de outros escritores velhos. Uns retrógrados. Sempre viviam de dizer. Mas não gostavam também da gente nova que escrevia feito gente nova. Ai!, raciocínio cansativo, resolveu-se com a máxima de que gente escritora dificilmente gosta de gente escritora. Mas ia narrando as coisas na mente na vontade de chegar o mais rápido em casa para pôr no papel. O papel deveria de existir mesmo na mente da gente. Devia de ter alguma forma de imprimir o pensamento com um click do olhar. Mas como começar? Como começar? Vivia perguntando e ficava encabulado que as coisas dançassem com tanta trepidez na mente e não seguissem um rumo certo. Escrever é organizar o brainstorm dentro de um contingenciamento de estilo que aduz a determinado modus operandi típico de algumas escolas literárias, isso mesmo quando demonstra o escritor um modus sui generis, em suma é como se tudo se repetisse... – dizia o Doutor crítico. Mas o Doutor crítico não era escritor e, portanto, não devia ter mais do que uma visão bem superficial do que um escritor seria. Uma visão do que não se é. Como quando a gente vê um bólido e fala do bólido, mas não é o bólido, nem sabe o que de fato é um bólido. O que era ser escritor? E aquela ideia ia martelando na cabeça dele, que o homem fosse virando máquina. As máquinas que Steven Spielberg ia pondo nos filmes. As máquinas que matavam o homem. Veja, mesmo a velha máquina de Tobe Hooper era tão catastrófica para o homem, na mão do homem. E agora o homem virando a própria máquina e submetido à própria catástrofe, ao próprio massacre... Mas ele estava certo. Parece que sempre esteve. As máquinas vão matando o homem. Só que Hobbes também estava e Schopenhauer ainda mais. A gente é que vai se matando enquanto vai virando máquina. Mas é isso? E isso, só isso? Não sabia. Não sabia. A mulher pedindo licença. Pode passar, senhora. Não precisa esfregar sua bunda gigante na minha calça. Horror. Mas e então que é escrever? Ia pondo, ia pondo tudo no papel mental que tinha. Tinha vontades de se perder enquanto escrevia. Tinha umas vontades loucas. O caminho. Sim, já tinha decido faz tempo. O caminho de novo e os batentes da calçada disforme. A mulher dentro do carro estacionado na rua, à noite, curtindo o frio do ar-condicionado enquanto postava umas fotos no Instagram. Idiota. Vai ser assaltada aqui certamente. A grade. As chaves. O cadeado. A reação da polimerase. Não lembrava bem, mas lembrava que numa feira no colegial tinha apresentado um trabalho no Espaço Ciência, onde falava alguma coisa de efeito cadeado dos medicamentos, reações em cadeia e polimerase. Enfim, podia estar tudo errado e não tinha internet em casa pra pesquisar antes de pôr isso no papel. Quem tivesse conhecimento a mais ou mesmo tivesse um acesso fácil ao Google iria rir dele. Ia mesmo era ter raiva de comprar um livro com um erro. E tem erro em livro? O erro no livro faz parte da arte. O escritor pode errar. Ah, que se danem todos os que criam a merda do dever ser na literatura. Literatura não deve ser assim ou assado, literatura é. Estava convencido do homem feito máquina. Quero criar no texto essa imagem de uma máquina empunhando outra. Um homem e uma arma. Assim. A arma de fogo é o aparelho que coloca em ação o cartucho. Impactada pela espoleta, a pólvora é incendiada. A queima de uma carga padrão (calibre 38) gera gases que, aquecidos, são capazes de saturar 800 cm³, o que aumenta a pressão do compartimento e desentuba o projétil, imprimindo-lhe uma velocidade em torno de 600 a 800 km/h. Isso nos projéteis chamados de baixa energia. Baixa energia é o caralho! A pessoa morre com isso. A pessoa? Que é pessoa? O povo da Faculdade de Direito debatendo sobre se o nascituro é vida, se é expectativa de vida, se é nada. Se tem 62
direito, expectativa de direito ou nada. O nascituro pros donos dele, o pai e a mãe, é tudo; pra gente que não tem nada a ver com o nascituro, é porra nenhuma. Isso, senhores, o nascituro é porra nenhuma! Queria ver um juiz de Direito dizendo isso num Tribunal. Queria ver, mas era querência que não se cumpre e ele ia logo sabendo. Juiz não abre à realidade, vive no limbo, na bolha de sabão chamada “esfera de incidência do Direito”. Quero escrever sobre uma máquina. Meu Deus eu não consigo mesmo. Ah, que se dane Deus! Nem acredito que esse merda exista. Só quando fico doente e não tenho a quem recorrer. Sim, caralho! Deus é um clamor igual a caralho. Só que quando a gente clama caralho está com raiva e quando clama Deus está com medo ou um espanto desses qualquer. Sim, isso tudo poderia ser possível. A ideia inicial. É que a empregada ia saindo quando ele ia entrando e dizendo que o serviço era muito e ele tinha de contratar outras pessoas pra ajudar. Apartamento recém reformado e cheio de sujeiras e cimento em todo canto. Ah, vá se... Ia fazer a limpeza. Mas não era desses que nasceram pra limpeza, a não ser a mais básica de sua higiene própria – era, portanto, o típico cidadão inútil da classe média brasileira em matéria de esforçar-se por qualquer coisa que fugisse ao grado dito da intelectualidade. Podia, por isso, ser um cara extraordinário em inteligência, e jogar papel higiênico no vaso sanitário por mera preguiça de alcançar o cesto. As paredes brancas num branco intenso e eterno que tinha na casa. Foi ali se perdendo nas paredes brancas duma brancura infernal de céu. Poderia ser tudo assim, ele podia começar falando da parede branca. Haviam máquinas brancas? Vou lá fora tomar um ar. Ir lá fora tomar um ar e ascender um cigarro que queime, que mate, que vicie esse ar que se vai tomar. Tomar um ar? Tomar no cu com um cigarro que vai matando, matando, aos poucos. Mas a vida é uma coisa que vai matando, matando, aos poucos como um cigarro. Um cigarro gasto. A vida é um cigarro gasto. Foi se indo pra fora quando se deteve na porta. Uns olhos. Uns olhos muito grandes. Porra! Fica quieto. Fica quieto e não se move. Ele está me vendo. Tá me encarando. Olha só que audácia. O gato. O gato siamês da vizinha. Nunca tinha visto o cujo antes por ali. Mas estava de passagem no corredor do prédio e quando abriu a porta se viram. Eles se viram e foi muito estranho. Os olhos castanhos do gato e os olhos castanhos dele. Ficaram um quarto de hora se olhando. Mas o que é um quarto de hora? Passaram uns anos muito intensos assim de supetão se olhando. Miravam um a pupila do outro. O gato saiu. O gato conseguiu vencê-lo. Ele não sabia o que fazer. A dona do gato podia estar lá fora. Podia achar ruim que ele espantasse o gato, afinal ela era a síndica e ele morador novo. Mas não. Não ia se mover. O que lhe paralisou foram os olhos do gato. Os olhos do gato como duas luas de Saturno. O gato se moveu e se desvencilhou dele. Ah, não consigo mais agir como uma máquina, uma puta máquina que faz as coisas certas. Tirou as calças e nu passeou no corredor do prédio, foi pra sacada e bateu uma. Uma, duas. Em quem pensou? Lembrou apenas do velhinho na igreja, quando era pequeno, avisando que masturbação era pecado e que não deviam fazer porque quando se fazia se estava pensando em alguém, provavelmente em alguma puta. E pensar em puta é pecado? Pecado é não se masturbar quando se tem vontade. O mundo era a sedução. Ninguém é propriamente um sedutor, todos são um pouco seduzidos por todos e pela sedução do mundo. Negligenciar à sedução, negar o prazer é que é um pecado, um pecado que em circunstância nenhuma é venial. E ficou ali pensando nele mesmo e no seu corpo nu embaixo de seus olhos. Eu sou gostoso. Afirmou e jorrou o líquido. O líquido todo. A síndica viu. Chamou a polícia. De repente estava ao redor de um monte de sirenes de polícia e uns piscas-piscas ridículos do carro de 63
patrulha que ora eram vermelhos ora azuis. A mãe dele foi chamada. O advogado da mãe dele foi chamado. O amigo advogado do advogado da mãe dele foi chamado, após um papo de criminalistas no iPhone. Muita gente foi chamada e se reuniu na frente do prédio. Todos com umas caras assustadas. Ele ali na frente de todo mundo. Nu. Nu, porra! Teve a certeza. Máquina, máquina mesmo o mundo tinha um monte. As máquinas eram donas de tudo agora. As máquinas humanas. Ele, ele não era nada, nunca seria nada, nunca poderia querer ser nada. À parte isso, Álvaro de Campos era um daqueles caras que nunca foram nem nunca seriam máquinas. Deu uma risada do advogado da mãe tentando evitar o flagrante e do advogado do advogado da mãe tentando posar de sobrinho do juiz. Pegou o pênis e urinou na viatura. Bem, ele não conseguiu escrever tudo isso na cela, porque era muito úmida e fria e sem papel. Existia apenas esse papel mental dele que de certo modo sou eu aqui que escrevo, escrevo e escrevo. E agora, mesmo assim já é. Tudo está dito. Cansei.
mario filipe cavalcanti
nasceu no Recife, em 1992. É colunista da revista Samizdat e da revista eletrônica de cultura do triângulo mineiro Página Cultural. Autor dos livros de contos Comédia de enganos (Penalux, 2013), semifinalista no Prêmio SESC de Literatura 2014, Morte e vida e outros contos e O circo (EdUFPE, prelo). www.mariofilipecavalcanti.blogspot.com
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serial
santana filho
Encontrar Arquimedes numa livraria é tão previsível quanto descobrir chocolate, biscoito recheado, farinha branca e o império do glúten no carrinho de supermercado da moça em dieta. Arquimedes, que preferia ser tratado por Kiko, foi desde sempre o amante infiel dos personagens que cruzaram seu caminho, alimentando-se das páginas com voracidade. E foram muitos, e se articularam cedo, portanto não há nada de excepcional em ver Arquimedes sair da livraria conduzindo a sacola onde se adivinharia dois livros de porte razoável, na manhã de um domingo chuvoso - não tivesse Arquimedes morrido há sete anos. Há exatos sete anos, completados ontem, Kiko, digo, Arquimedes, partiu dessa, se não para melhor, para algum lugar inacessível a minhas pernas e a todos os Karamazov, Macabéas, Germantes, Gatsbys, Bentinhos e Harry Potters com os quais se transfundiu naqueles vinte e quatro anos de vida devassa. Não posso admitir possibilidade de dúvida quanto a este destino, nem quanto à existência deste lugar, porque fui exatamente eu que o mandei para lá. Os acontecimentos revelaram-se urgentes e banais desde a primeira vez em que nos vimos. Na madrugada dos meus cinquenta anos, acordei com sede, no apartamento do Bexiga, e após umedecer os lábios secos no copo d’água à cabeceira, dei-me conta de estar sem cigarros - o corpo conclamando nicotina e todos os inseticidas do tabaco. Vesti-me, desci à rua, passei na loja de conveniência no posto de gasolina e entrei na pequena livraria aberta 24 horas, onde se tira um excelente expresso. Ali estava ele, agachado diante da prateleira de literatura estrangeira, deslizando o indicador pela letra T: Tolstói. Ele me olhou de dentro do fone de ouvido e exibiu o sorriso pacato de camaradas se reencontrando após duas ou três estações: “Os russos eu gosto de ler no verão. Para refrescar.” Dei-me conta de que o calor na madrugada estava incompatível com o final do outono, portanto percorrer as montanhas nevadas entre São Petersburgo e Moscou seria, de fato, refrescante. Sorri e estendi-lhe a mão. Ele aproveitou para tomar impulso, ergueu-se, ficou de pé à minha frente e retirou os fones: I died a hundrad times, Amy Winehouse gemeu entre os seus dedos. 65
Ouvi-me dizer: “Sou o Lucca.” Mais do que articular a frase, ouvi-me dizê-la, surpreso com a movimentação das palavras na boca. Ele não disse nada, insistiu no sorriso revelando dentes de puro cálcio, baixou os olhos, folheou o livro, certamente à procura de alguma passagem conhecida, e os cinquenta anos ancoraram em minhas costas, subitamente cais. Quando me olhou pela segunda vez foi impossível deixar de perceber a eloquência das pestanas longas e pretas e os lábios tão encorpados quanto o livro. Valho-me dessas lembranças concretas, de detalhes assim físicos, na tentativa de refazer, sete anos depois, a maquete da catedral onde eu seria imolado. E lamento – já adivinhando - ser mal interpretado pelos que agora se apossam da história. Essas testemunhas cometerão a leviandade de enxergar interesse físico, testosteronas e outras abordagens menos pueris onde existiu apenas alumbramento - clarão na mata espessa dos dezoito mil dias ancorados em minhas costas. Eu mesmo, nas vezes em que revisitei este memorial, andei perto de cogitar anomalia naquelas sensações, não sucumbindo ao equívoco porque caminho ao largo das insalubridades e disso jamais duvidei. Apesar de reconhecer a urgência sensual me acometendo desde a puberdade, nunca fui capaz de reduzir o sexo ao preenchimento de orifícios indiscriminados. Torna-se necessário trazer-me à cena. Sou um italiano nascido no Brasil. A terceira geração de emigrantes do sul da Itália; aqueles que banharam a alma no vinho, de cujos tonéis verte sangue tinto, roxo, lilás. Terceira geração. Não sou, repare, sangue-puro, o que representa apenas um adendo a esta falta de legitimidade geral. Até cruzar com Arquimedes na madrugada dos cinquenta anos, tudo em mim se insinuava, anunciava-se, prometia-se, sem acabamento. Um peixe saracoteando no aquário para lá e cá, mordiscando folhas, projetando-se contra o vidro, ignorante do percurso das grandes águas, das quais carrego o destino. Antepassados portugueses, que também os tenho, na linhagem da mãe, e os portos por onde passei. Deve ter sido em Paris, quando fui porteiro de hotéis simplórios no Quartier Latin, que desenvolvi o apreço pelos livros; este, certamente legítimo. Trocamos pareceres sobre narrativas e personagens durante a madrugada. Quando mostrava a ele trechos da carta de Midori, num ‘A Espingarda de Caça’ que me surpreendeu encontrar ali, percebi o dia amanhecendo. Atravessamos a rua e tomamos café na padaria, de pé no balcão, celebrando com média quente e pão na canoa o acontecimento. De volta à casa, não tardei a dormir. Acordei, pouco depois do meio-dia, com o toque do celular. Arquimedes me esperava do outro lado da rua, pequena pilha de livros embaixo do braço. Eu o vi, da janela, enquanto ainda falávamos por telefone, e acenei da sala no segundo andar. Como preferisse me esperar na mesma padaria onde estivéramos há pouco, entrei no banho, lavei-me e desci ao seu encontro. Na época, fazia revisão de textos para pequenas editoras; sou um escritor nocauteado pela escrita econômica e criativa. Sempre que falam em escrita econômica imagino velhotes ranzinzas escondendo palavras embaixo do colchão. Quanto à escrita criativa, já vi aspirantes a escritor digitando de ponta-cabeça tentando parecer originais. Faz parte da minha natureza essa resistência a tendências, horários rígidos, relógios de ponto e sapatos com meia; e havia, ou tinha deixado de haver, Donatila, a quem eu reservara o mesmo destino, nem fazia muito – era necessário higienizar as mãos. 66
Não houve tempo. Folheando livros, com Arquimedes, no balcão da padaria na tarde do aniversário, senti os cinquenta anos se liquefazerem em minhas costas, fazendo escorrer as bolhas de sabão da mais vibrante juventude, lavando-me agora de boa água, e isento das tensões. Quando peço, então, que evitem pensamentos inadequados é porque não havia tensão entre os corpos. A lascívia é urdida na tensão, na expectativa, na confecção do bote e na espera. Aquele tipo de alumbramento não desemboca em lascívia, embora possa eriçar pelos, sugerir carícias e, sim, desejei encostar meu corpo nu ao de Arquimedes, alinharmo-nos numa vertical, as duas lanças, constatar os tecidos de uma pele assim íntegra e juntar nossas bocas para rezar ofícios de comparsas, sem que em nada disso cogitasse o atrito necessário à produção do fogo. Dediquei-me então a observá-lo. Observá-lo existir tornou-se um espetáculo magnífico. Não porque Arquimedes exibisse performances contorcionistas ou coisas assim, mas porque em nenhum momento deixava de existir, em nenhuma circunstância se deixava contaminar, levando-me a reconhecer, nessa displicência, que não sabia muito a seu respeito. Além da paixão pela literatura, a devoção à Amy e a intimidade com as personagens de ficção, pouco tomei conhecimento. Dividia pequeno apartamento com um acrobata de rua e uma flautista uruguaia. O pai morrera quando ele era criança. A mãe se casou com um pescador, namorado de adolescência, e foi de mudança para o litoral. Abandonou a faculdade de filosofia no segundo ano porque se negava a participar de oráculos intelectuais. Estudava tarô pelo lirismo dos arcanos. Ouvia-me atentamente, sem abandonar as próprias convicções. Pedia informações sobre Paris e simulava caminhadas pelo Quartier Latin do início do século passado, na companhia de toda aquela gente que circulou por lá, a ‘geração perdida’, de Gertrude Stein, ele sorria, e exatamente esse lusco-fusco de luz e sombra, o pique-esconde dos passos e alguma exuberância incandescente, estimularam a floração, obrigando-me a recorrer ao machado e à lâmina. Na madrugada em que decidi eliminá-lo, soprava a aragem que sucede chuva vasta. Eu fumava, debruçado na janela do segundo andar, aspirando a bonomia da atmosfera contaminada pela fumaça do cigarro. Acordara com lágrimas atropeladas nos olhos. Ambos os olhos, e elas lá, endurecidas, obstruindo os canais por onde escorrer. Uma tristeza árida. Não a tristeza de acontecimentos indesejáveis, mas novamente a impossibilidade dos afetos, eu farejando os aromas levantados pela chuva. Em algum lugar da cidade, Arquimedes também se submetia à atmosfera, mas isso em vez de apaziguar confirmava a inutilidade de tudo. Eu havia me aferrado àquele garoto, eis o fato, finalmente o fato, mas anoitecera a madrugada dos cinquenta, e apenas Kiko usufruía de asas. Unicamente ele nos sobrevoava, e pelo motivo mais infantil: não reconhecia as asas. Não as fazia de escudo, não lustrava e não as utilizava para outra finalidade que não o voo. Ao nadar nas águas da lagoa de Guarapiranga, repetia o mesmo desempenho. Por não ter conhecimento de que as águas não lhe pertenciam, usufruía delas com fôlego de proprietário. Acompanhava Gatsby pelos assoalhos, revolvia a terra de Teobaldo, atracava em Ítaca, ungia-se com Tolstói, consolava Bentinho, frequentava Basílio. Liguei o som: A garganta de Amy Winehouse anunciava o Back to Black mais uma vez (certa madrugada, sem ter cuidado, a garganta movediça de Amy me chupou por um canudo lilás muito habituado a inocular veneno). A garganta de Amy me comeu, e eu não estava pronto para a imolação - precisava voltar à tona. Não urdi planos, não adquiri armas, não manipulei venenos - desci para o café. 67
A madrugada estava cintilante, o mercúrio da iluminação pública matizando gotas de chuva no asfalto, feito insuflasse bolhas de sabão. Entrei na livraria, cumprimentei o garoto de plantão, pedi o expresso e me voltei para a estante de literatura estrangeira. Ana Karenina continuava na prateleira de baixo. Percebi, pelo corpo inteiro, a inutilidade das recordações e a pouca valia dos afetos. Procurei, num discreto menear de ombros e pescoço, alinhar-me à vida real, e saí. Quando Arquimedes telefonou em torno das dez da manhã não atendi ao telefone. Não atendi a nenhuma das ligações que se seguiram, não respondi o torpedo nem acessei os e-mails. Ao soar o interfone, no meio da tarde, fiz de conta que não escutei. Fechei as cortinas e apaguei a luz. Despi toda a roupa e, nu, me deitei no chão da sala, os olhos metralhando o teto. Eu estava em franco processo de assassinato. Comecei a asfixiá-lo aqui dentro, com as duas mãos, em algum escaninho deste gradil costal, como havia feito com Donatila, que o antecedera. Fui retirando-lhe oxigênio a cada movimento seu em minha direção; em silêncio e nas ausências. Amordacei as palavras e dei um nó; joguei o saco no lixo, vendo-o despencar pelo sistema de coleta do edifício. Intencionava provocar-lhe morte súbita, evitando a agonia da deterioração - nunca quis mal a Arquimedes. O processo foi menos simples do que esperava. Quem, atropelando o mecanismo natural das existências, precisou fazer esse tipo de intervenção, sabe a que me refiro. Conhece a angústia de não enterrar os seus mortos e precisar conviver diariamente com eles a despeito do fétido odor. Por ter forjado a morte do que ainda fremia, condenava-me a conduzir o cadáver deste afeto, em vigília, vigília, vigília - e todos os dias, desde o amanhecer, constatar a resistência espetacular. Entreguei o apartamento na semana seguinte. Concluí a pesquisa a respeito do interesse contemporâneo pela degustação de café e recebi o pagamento. Desembarquei em Paris com a garantia de ser aceito como porteiro de um dos hotéis onde havia trabalhado na última temporada. Não houve surpresa ao constatar que Arquimedes desembarcava em Orly junto comigo, embora imaterial. E junto permaneceu enquanto durou o cortejo. O tempo. Em uma tarde descompromissada no Quartier Latin, observando a fauna transitando por lá, a imagem de Kiko materializou-se a passos de mim, finalmente externo. Eu o vi, caminhando pelo Boulevard, ao lado de Scott, Zelda, Hemingway, Gide, Donatila, Sartre, Simone e, salvo engano, o próprio Proust havia levantado da cama e seguia atrás, tomando sorvete de creme; baunilha, talvez, melecando o bigode. Eu não os acompanhava, não era visto, apenas os via passar - Arquimedes do outro lado do passeio, no meio da tribo, ausente de nós. A solidão nunca me pareceu tão apaziguante. Movimentei as duas mãos pelos braços para me constatar. Fumei o último cigarro do último maço que comprei e caminhei pelos becos de Paris até a exaustão. Sete anos depois, vendo Arquimedes sair da livraria conduzindo uma sacola onde se supõe dois livros de porte razoável, trancado nos fones de ouvido, evoluindo a mesma passada larga, seguro o passo para deixá-lo seguir. É um homem bonito, o menino Kiko, e tudo, de boa memória. Ele não evita os pingos da chuva e a chuva começa a encorpar, porque estamos no verão, e as nuvens de chumbo. Em algum lugar carne adentro, movimenta-se o desejo de chegar a ele e estender a mão outra vez. Conferir os livros que traz na sacola, a canção nos ouvidos, rever as pestanas eloquentes, ficar diante de nós. 68
Melhor não. Preferencialmente não. Decididamente não. Reconheço a exuberância dos afetos e o rio correndo, entretanto o prefiro assim, subterrâneo. Não tenho habilidade para afetos despertos e domino a técnica para eliminá-los – desviando, com as mãos, o curso do rio. Observo-o ainda uma vez, os meus olhos de descanso, alongo o corpo o mais que consigo e sigo em frente, pelo meio da chuva que agora despencou sobre a nossa cidade, ordenhando as nuvens carregadas. Sou este serial killer que desistiu de jogar garrafas ao mar.
santana filho
nasceu no interior do Maranhão no final dos anos 50 e mora em São Paulo. Memórias de sua infancia ribeirinha constituem fragmentos de O Rio Que Corre Estrelas, livro de estreia, publicado em 2012. Participou da coletânea de contos Assim Você me Mata e publicou o livro de contos O Beijinho e Outros Crimes Delicados.
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bate a porta quando sair tiago velasco
Como eu tinha que ir embora?, ela disse que gostava de mim, que me amava, não, que me amava, não, mas ela gostava de mim, falou até que poderia me apresentar pra mãe, e ela nunca tinha feito isso na vida, apresentar namorados pra mãe, disse que eu era pra casar, ok, a gente só estava saindo há duas semanas, mas eu senti, rolava algo, dormimos abraçadinhos na primeira vez, dormir abraçado não é coisa que se faça impunemente, tem que ter intenção, disse que gostava de mim, ela falou, escrevi um microconto pra ela no Facebook que estava ótimo, sim, eu estava bêbado, tá ótimo, ela falou, eu perguntei novamente no dia seguinte, sabia que tinha ficado bom, mas queria ouvir de novo que estava ótimo, ouvir não, ler, a gente se fala por mensagem, e hoje o celular dela não para de receber mensagens, já até reclamei, sabe como é, de outra geração, dez anos mais nova, dá uma vida, sabe, uma nova vida, uma adolescência tardia, mas isso foi durante a semana, antes desse papo estranho que ela está me contando, não, não poder ser verdade, ela falou que tudo estava tão surpreendente, tão rápido, que ela tinha algum receio disso, eu também tenho, baby, mas e daí, vamos lá, fiz um microconto pra você e, lembra, ficou maravilhoso, e tem aquela banda de rock alternativo que você quer me mostrar ainda, aquela que você falou que era música de sexo, então, me mostra, para com esse papo, não, não, os seus amigos me adoraram, sim, ele tá aqui hoje comigo, você sorriu ao dizer isso no celular, eu percebi, então, de onde essa história estranha está vindo? – Quer uma outra cerveja? Vamos beber, a gente transou, você tá cansado, Tiago... Vai lá, pega mais uma cerveja pra gente! Transar não, é trepar, falo assim, sabe, sou homem, a gente fala essas coisas meio sem pensar, então acabamos de transar e foi legal, não transo com um cara há cinco anos, ela me disse ainda na cama, você não sabe como é pra um homem ouvir isso, baby, não importa se ele tem quarenta e um, trinta e sete ou trinta e três, ele vai se sentir com dezenove ou vinte-e-poucos, sim, pode ser besteira, você não entende, mas, acredite, baby, me apaixonei ali, depois que a gente trepou, não, desculpe, transou, e foi muito legal, né, ok, nem tão legal, mas isso é só uma questão de 70
tempo, de a gente transar mais outras vezes e, baby, você vai ver, a coisa vai ficar cada vez melhor, e agora você tá dizendo essas coisas pra mim, não, não tem nada a ver com isso, a noite foi incrível, você mandou na mensagem do dia seguinte, lembra?, lembra?, a noite foi incrível, então?, agora a gente pode fumar o beque que eu trouxe, caramba, para de responder essas mensagens no celular, para, eu tô aqui ainda, e ainda tem esse papo estranho, não entendo, ela disse que me apresentaria pra mãe se namorássemos, mas que não seria possível, não, não pode ser verdade, não é, a gente bebeu, vamos dormir logo, por favor, por que ela continua com esse papo?, vamos dormir, essa conversa é um erro. - A Cláudia voltou. Eu já disse. Você parece que não está me ouvindo. A Cláudia voltou. E vou com ela pra Venezuela. Cláudia, Diana, Cláudia?, não quero saber de Cláudia, já peguei, desculpe, fiquei, com uma Cláudia e ela fodeu a minha vida, me deixou mal, coisa de semanas, ela era de Porto Alegre, estava juntando dinheiro pra ir pra casa dela e, do nada, ela disse pra eu não ir, Cláudia é foda, é sempre assim, mas dane-se, com a grana fui pra Bahia, peguei, desculpe, fiquei com uma porrada de mulheres em Salvador, não, não quero saber de Cláudia, e aquele show que comprei o ingresso, que você me chamou pra ir, trezentos reais, comprei ontem, a gente ia ao show, um show nosso, não tinha Cláudia alguma, ah, já sei, ela está inventando essa merda, é aquela coisa de relacionamento, aquela coisa de fugir de relacionamentos, né, baby, você só tá querendo fugir, relaxa, você vai gostar de ficar comigo, sou um fofo, carinhoso mesmo, você tá com medo de se apaixonar, não tem Cláudia nenhuma, já saquei, é só medo, só medo, as duas últimas semanas foram as melhores, é verdade, sério mesmo, é isso, medo, você consegue ouvir os meus pensamentos? – Vamos dormir, você pode ir amanhã cedo. Vem, vamos deitar. Porra, eu tô chorando e ela finge que não tá vendo, choro com facilidade, é bom pra manipular os outros, mas ela olha como se não tivéssemos nenhuma história, foram duas semanas, dois encontros e um punhado de mensagens pelo celular, eu faria o que ela quisesse por toda a vida, sinto isso, de duas semanas pra cá fiz tudo o que ela insinuou, não, mas essa noite ela está fazendo, por culpa, mas está fazendo o que eu quero, talvez ela não tenha ficado imune ao meu choro, perguntei se podia ficar abraçado e ela concordou, meio blasé, mas concordou, deitamos abraçadinhos, eu sentindo o corpo magro, encaixado, por horas, ela dormindo, fugindo da culpa, e eu me apegando a qualquer afeto, fazendo carinho, ela retribui algumas vezes, ah, sabia, ela está reconsiderando, sim, é só medo de entrar numa nova relação, não tem Cláudia nenhuma, ela não transava com um cara há cinco anos, e foi comigo, e as próximas vezes serão melhores, serão, ainda bem que você tá voltando atrás, baby, era só dormir um pouco, essa merda de celular não para de tocar. – Tiago, já são sete e meia.
tiago velasco nasceu em 1980 no Rio de Janeiro. É doutorando em Letras na PUC-Rio, mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ, professor universitário e jornalista. Autor dos livros de contos Petaluma e Prazer da carne, além do livro de não-ficção Novas dimensões da cultura pop. www.tiagovelasco.wordpress.com
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noite de autógrafos vivan pizzinga
Aos seis anos eu desconfiava. Aos sete, tinha quase certeza. Mas o restinho que faltava para a convicção que eu tinha ser tão sólida quanto a parede salmão de meu quarto da infância só veio aos nove anos, quando escrevi minha primeira história, naquele caderno que até hoje mantenho, sem capa e com folhas despencando. A partir daí, o que eu dizia em resposta à clássica pergunta sobre o que eu queria ser quando crescesse era: “escritora, ué”. E todos riam. Achavam que eu tinha senso de humor. O que até não me faltava. O que os adultos ao redor não entendiam é que minha simpatia, meu bom humor, nada disso negava o fato de que eu queria ser uma escritora, de que essa seria a minha profissão, ou escolha, ou destino, eu já nem sabia como classificar. Mas foi apenas aos dezessete que entendi que, a despeito da minha certeza, eu precisaria ganhar dinheiro e ganhar dinheiro não era uma decorrência lógica e necessária de ser escritora. Tinha de haver uma profissão que resguardasse a minha verdadeira identidade. Em casa, as coisas também não ajudavam. Meu pai ficou doente e sua licença era uma miséria, minha mãe teve de arrumar um segundo emprego, minha irmã mais velha casou e se mudou para São Paulo, mandando uma mesada para ajudar. Tive de colocar a minha verdadeira identidade em segundo plano, não havia outra possibilidade, e fiz Faculdade de Letras. Meu pai ia de mal a pior, não pudemos mais pagar plano de saúde, os remédios encareciam a olhos vistos, a realidade me pegava pra Cristo e parecia dar tabefes no meu rosto para que eu não dormisse nas longas e enfadonhas aulas de linguística. Graduei-me, dei aulas particulares e, sempre que havia um tempo sobrando, escrevia. Minha convicção e meu desejo não haviam diminuído, mesmo que eu não falasse desse assunto com muitas pessoas. Ao mesmo tempo, quando pensava em lançar um livro, temia a noite de autógrafos, se um dia ela chegasse para mim. Não me imaginava sentada naquela cadeirinha, em frente a uma mesa elegante, abrindo exemplares do meu próprio livro para escrever dedicatórias. Não me imaginava recebendo meus leitores. A ideia do lançamento do meu próprio livro era um pesadelo recorrente, por mais escritora que eu quisesse ser. Eu não seria capaz de enfrentar aquele sucesso. 72
Mas acabou acontecendo. Quatro sessões semanais de análise por cinco anos, uma escrita incessante nas horas de folga, meu pai já morto, minha mãe aposentada, minha irmã divorciada, tive a oportunidade de lançar meu primeiro livro. Quinze dias antes da data do lançamento, eu já não conseguia dormir. Varava as noites com os olhos fixos em cada ranhura que o teto me apresentava (e eu as conseguia enxergar perfeitamente, apesar da escuridão meio clara que todo insone enfrenta). Nem o calmante da minha irmã me derrubou, mesmo quando resolvi tomar dois comprimidos, mesmo quando aumentei para três. A cada dia que passava, eu me movimentava pela casa e pela vida como algo que não se explica, espécie de zumbi esquálida, que a noite sabe muito bem como torturar. No dia do lançamento, recebi telefonemas e mensagens de celular. O whatsapp já não parecia comportar tantas felicitações, tanto incentivo. Eu não tinha fome e não encontrava posição confortável, se me sentasse, se caminhasse, se deitasse. Era como se o ar tivesse ângulos insuspeitos. Meu corpo dava sinais de insatisfação. As pontas dos dedos geladas, o suor no pescoço, uma aguda dor na lombar, meu corpo anunciava um colapso de todas as formas possíveis. Eu já não dormia há noites. E não queria ir ao lançamento do meu livro, não podia comigo mesma dando autógrafos. Eu queria ser escritora desde a escola, eu queria escrever e ser lida, queria meu nome como autora na capa de um livro de verdade, mas não queria estar presente no meu próprio lançamento. Não eu. Talvez outra. A outra de mim. Alguém (uma versão melhorada do meu eu) que conseguisse reconciliar a escrita com a sanidade. Alguém cujo corpo funcionasse nos ritmos e tempos certos. Aquela festa literária que me celebraria não pertencia a mim. Era preciso que eu faltasse ao meu lançamento, pois só assim eu sobreviveria. Considerei mais seriamente aquela hipótese. Eu sabia que minha presença seria um fracasso. Que eu não conseguiria articular palavras e sorrisos, que a voz falharia na primeira oportunidade, que o raciocínio claro me escaparia, que o desmaio já se antecipava a mim. Fechei a casa, não atendi aos telefonemas da minha irmã e da minha mãe, desliguei o celular. As cortinas cerradas afastavam a claridade que mantinha meu olhar aceso, e quando tive certeza de que aquela noite de autógrafos não me teria como protagonista, que aquela festa não seria minha, os primeiros bocejos amoleceram minha mandíbula (eu estava há dias acordada) e até meus dentes pareciam boiar tranquilos e entregues dentro da minha boca. Já não sentia mais dor. Liguei o ar condicionado para abafar os ruídos da rua, aninhei-me debaixo de um lençol novinho e permiti que os primeiros acordes do sono dessem início a uma melodia onírica em meus ouvidos. Tratei de não pensar no que a editora iria dizer. Meu corpo já se aninhava naquela sonolência.
vivian pizzinga é psicóloga e escritora. Publicou o livro de contos Dias Roucos e Vontades Absurdas (Oito e Meio) em 2013, tendo participado de algumas coletâneas de contos (Para Copacabana Com Amor, Clube da Leitura 1 e Clube da Leitura 2).
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apoio
SOTNOC ED ATSIVER