anchieta mendes antonio barbosa b. kucinski bruno flores carlos ribeiro carlos soares claudio parreira delfin flávia iriarte gláucia lemos herculano neto jd lucas joão vereza leonardo villa-forte löis lancaster luiz andrioli mariel reis moema vilela natasha centenaro otávio linhares rafael mendes raïssa de góes reinaldo ramos roberto dutra jr. sérgio tavares
ANO 01 / # 10
REVISTA DE CONTOS
os colaboradores asseguram seu direito moral de serem identificados como os autores de suas respectivas obras. flaubert está aberta a colaborações espontâneas. textos enviados para nossa avaliação podem ser publicados, na forma como foram enviados, mas passíveis de revisão, sem qualquer aviso prévio por parte dos editores. autores que enviarem espontaneamente textos para flaubert ficam cientes de que estes podem ou não ser aceitos para publicação e que, em caso de aceite, nenhum ônus de qualquer espécie pode ser imputado à flaubert ou a seus editores responsáveis. as colaborações espontâneas à flaubert são de total responsabilidade das pessoas que as enviam. ao enviar colaborações para a revista, os remetentes automaticamente assumem a autoria das mesmas, estando flaubert isenta de responsabilidade em caso de disputa autoral com terceiras partes. apenas submeta textos à flaubert caso realmente queira vê-los publicados. formatação básica para envio de textos para avaliação: os textos devem possuir entre 2.100 e 21.000 caracteres (espaços incluídos); quanto ao conjunto formado por títulos e epígrafes, siga o bom senso: títulos pequenos comportam epígrafe, títulos com mais de cinco palavras comportam epígrafe curta, títulos acima de 25 caracteres não comportam epígrafe. títulos e epígrafes muito longos podem ser cortados, editados ou eliminados a critério dos editores; ao final do texto, dentro do próprio arquivo, forneça uma minibiografia, mini mesmo: ela não deve exceder 200 caracteres, contando os espaços – exerça o poder da síntese; os textos devem ser enviados em formato rich text format (.rtf), padrão mundial para arquivos de texto serem lidos em qualquer sistema operacional. use como nome do arquivo o seguinte padrão: “<nome do autor> – avaliacao flaubert.rtf” – assim mesmo, sem acentos.
REVISTA DE CONTOS
© 2014 PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 2014 COM O TÍTULO FLAUBERT REVISTA DE CONTOS Nº 10 /// COPYRIGHT DA SELEÇÃO © 2014 FLAUBERT REVISTA DE CONTOS /// todos os textos desta edição são copyright de seus respectivos autores /// © anchieta mendes // antonio barbosa // b. kucinski // bruno flores // carlos ribeiro // carlos soares // claudio parreira // delfin // flávia iriarte // gláucia lemos // herculano neto // jd lucas // joão vereza // leonardo villa-forte // löis lancaster // luiz andrioli // mariel reis // moema vilela // natasha centenaro // otávio linhares // rafael mendes // raïssa de góes// reinaldo ramos // roberto dutra jr. // sérgio tavares ///
NESTA EDIÇÃO: 9
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anchieta mendes
antonio barbosa
b. kucinski
bruno flores
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carlos ribeiro
carlos soares
claudio parreira
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delfin
flávia iriarte
gláucia lemos
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herculano neto
jd lucas
joão vereza
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leonardo villa-forte
löis lancaster
luiz andrioli
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mariel reis
moema vilela
natasha centenaro
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otávio linhares
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os personagens e as situações dos contos aqui publicados são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opiniões.
ANO 01 / # 10 BRASIL 2014
EDITORIAL M
inha gratidão a todos pela décima edição. Aos meus editores, um forte abraço. Aos meus colaboradores, também. Aos meus críticos, a prova de que uma revista pode seguir em frente sem se dobrar às exigências de mercado ou ser subserviente seja lá com quem for. Minha gratidão aos inúmeros entusiastas, aos parceiros da flaubert. Minha gratidão a Homo Literatus. A palavra do dia é gratidão, podem se unir a ela outras, como: companheirismo, amizade e competência. Meus leitores: é um editorial curto e grosso, porque o espírito dele resumido nessa palavra tantas vezes escrita dispensa maiores arroubos, faz desaparecer a retórica. A revista está no ar. Aproveitem. E mais uma vez a minha gratidão e a de todos os que realizam a tarefa da confecção da flaubert. Por que tanta ênfase na gratidão? Talvez por ser tão desprezada e desaparecida do vocabulário de muitas pessoas. E, aqui, ela não será desprezada. MARIEL REIS // EDITOR
o zumbi anchieta mendes
Quando Eriosvaldo, mais tarde conhecido como O Zumbi, pôs o pé esquerdo no batendo do micro-ônibus, já havia acontecido muitas coisas lá na cidadezinha. O motorista sequer olhou com mais atenção para o passageiro. Era empregado da companhia e havia ordens de encher o ônibus até não poder mais. O óleo diesel estava com o preço à hora da morte, e passageiro nenhum era para ficar para trás. Quanto à cobradora, esta não quis olhar no aspecto do homem, até porque o seu cheiro era estarrecedor. Embora houvesse, também por parte dela, a máxima: não olhar nos olhos dos usuários ou em outra parte qualquer. Estava na função pouco tempo, e no íntimo não gostava tanto. O namorado queria à força que ela saísse, sem emitir motivos. Mas ela sabia. No corredor do ônibus o passa-passa, o esfrega-esfrega por ter que ir de lá para cá a cobrar passagens. Não podia fazer nada. Toda espécie de gente entrava e saia naquele vai e vem de todos os dias. Homens, mulheres, crianças, bêbados, gente cheirosa e muitas de odores insuportáveis. E aquele a subir invadiu o ambiente de uma fedentina intolerável. Neste caso, Magnólia foi preciso vislumbrar mais de perto o sujeito. Embora de olhar não fixador, mas de soslaio por não conhecer o recém chegado e por cautela. O que viu Magnólia: altura de quase dois metros; os cabelos pretos e grisalhos, embora rentes ao crânio; os olhos fundos e escuros, em órbitas ornadas pelos ossos à mostra; os braços e mãos esqueléticas de quem, jurava, havia morrido há tanto tempo; as pernas finas por sob as calças, e dava para se notar porque calçava sandálias de borracha; a camisa por fora, imunda, como quem estivesse sido desterrado há poucas horas, e, por fim, aquele odor de chamar a atenção de moscas e urubus. Magnólia precisou perguntar: 9
– Para onde o senhor vai? — O destino final do ônibus se dava pelo menos por 50 km, e ele parava ao comando do passageiro em vários pontos no percurso. Eriosvaldo, sem olhar para a cobradora, balbuciou: – Boca das cobras — o lugar intitulado nessa grafia se devia ao reduto de muitas cobras, isso em um tempo de conservação e consciência dos moradores. Magnólia esperou o gesto do passageiro, mas dele não houve menção de por as mãos nos bolsos para sacar qualquer quantia. A cobradora esperou e se fez de vencida, sem perguntar mais nada. Saiu de perto do sujeito e fora obrigada a passar por ele para cobrar passagens de outras pessoas. Eriosvaldo permanecia em pé no corredor, sem querer sentar-se na única cadeira vaga ao seu lado esquerdo. Praticamente rente ao corpo esquálido, de odor vindo do além, Magnólia deixou ser esfregada em segundos, porém eternos por ter suas narinas impregnadas do cheiro vindo das carnes, suores, roupas, tudo do sujeito indecoroso. Apesar do ônibus já ter ultrapassado alguns quilômetros da cidadezinha, o som vindo do carro no noticiário local ainda se ouvia. O locutor interrompeu a música pelo meio para anunciar o ocorrido. Enquanto a voz entrecortada do locutor invadia o interior do ônibus, Eriosvaldo permanecia em pé no meio do corredor, na posição 10 horas e 10 minutos. Em ambos os pulsos dois relógios semelhantes, e um no braço direito de plástico. Todos parados, sem funcionar. De instante a instante olhava para trás rápido e voltava para frente. Isso demorava segundos e repetitivos por exaustão. Magnólia percebeu e não quis olhar tanto e pensar besteira. O gesto a enervava e aos poucos lhe causava medo. Outros passageiros no ônibus percebiam, mas nada falavam. No ar clima de tensão. Em cada passageiro notava-se apreensão. Por particular imaginava-se tudo sobre aquele personagem estranho, feio e nojento. A moça a estar na poltrona e ao seu lado o espaço vazio, rezava para que o desconhecido não tencionasse sentar-se ao seu lado. Seria horror e vomitaria, por saber do seu estômago não aguentar tanto. Mas isso não aconteceu. O aviso vindo do rádio aos poucos se fazia ouvir. Para Eriosvaldo não entendia o significado das palavras. Entrava no ouvido e saía pelo outro, indecifrável. Magnólia, o motorista e os demais passageiros, ao contrário. O motorista de uma hora para outra brecou o veiculo, sem comando dos passageiros ou de outro na estrada. Ao brecar, olhou rapidamente pelo retrovisor para o interior. Naquele momento percebeu as feições do sujeito, o rosto chupado, só ossos, enquanto os olhos fundos e vivais, a olhar de um lado para o outro, principalmente para trás, com ar de nervoso e aflito. Era ele, pensou o motorista. Os demais passageiros, na sua maioria homens, também simultaneamente pensaram a mesma coisa. As mulheres, dentre elas, jovens e idosas, seguiram o pensamento dos homens, no entanto ficaram sentadas, trêmulas, a esperar. O motorista ergueu-se lento, com certa dificuldade em passar as pernas por cima do motor, e disse resoluto: – Mulheres e crianças vão todas para fora — houve um silêncio penoso — rápido — vociferou o motorista. – Você também, Magnólia, e espere o meu comando. As mulheres que estavam atrás de Eriosvaldo sentiram dificuldades ao ter que passar por ele. A fedentina invadiu suas narinas, impregnou nas suas roupas e 10
cabelos. Eriosvaldo permaneceu inerte no seu lugar e, apesar de tantas cadeiras ficarem vazias, ele não se sentou. Os olhos ocos, o olhar intranquilo, os pulsos e relógios enamorados e quietos parecia não entender nada. Mas, como viu tanta gente sair, mencionou dar o único passo a frente, mas o homem do lado direito ergueu-se e o impediu. Lá fora, as mulheres, todas, tinham lágrimas nos olhos. Na estrada a última nuvem de poeira acabava de passar e cobrir o ônibus. O tempo necessário para que somente se ouvisse os estrondos vindos do interior do veículo. As mulheres correram o mais que pode para se abrigar num alpendre de uma casa vazia. Magnólia chorosa pensava no ocorrido, no morto-vivo e a sua condição de gente. Poucos minutos, então, o corpo esquálido, ensanguentado foi jogado pela porta. No chão pedregoso, vermelho e sob o sol escaldante, Eriosvaldo estendeu-se todo. Das mulheres, somente Magnólia foi ao socorro do cadavérico sujeito. Sem muito jeito para decifrar quais partes foram atingidas na carga de ossos, acreditou o homem estar morto. Não respirava. Os olhos semi-abertos, o rosto coberto de sangue, os pulsos sem os relógios, a camisa aos frangalhos, as calças rasgadas ao meio. Morto, estava morto mesmo. Nenhum homem desceu. Somente o motorista colocou a cabeça fora da porta e gritou: – Vamos embora, o ônibus está atrasado. As mulheres seguiram o comando. Magnólia e todas, durante a viagem não falaram nada. Os homens não se olhavam, apenas voltavam-se para a janela a ver a paisagem cinzenta do sertão. No corredor não havia vestígio de sangue, de tacos de tecidos, nada. Em dado momento, o motorista saiu da estrada e parou sob frondosa árvore. Os passageiros permaneceram atentos: – Prestem atenção a todos — o motorista não estava nervoso — o que aconteceu ali atrás não aconteceu. Vocês mulheres não mencionem nada, não digam nada para os seus maridos e familiares. O sujeito merecia essa desforra, isso sim, merecia muito e fizemos o certo. – Ele provavelmente está morto — disse Magnólia — não senti a respiração, nada. – Menos um. Essas cidades em que vivemos não tem justiça, policial e quem sair da linha ou se endireita ou leva uma surra como aquela. Os passageiros nada disseram, e o motorista ainda sentenciou: – O que abrir a boca será o culpado e poderá se encontrar com a nossa justiça. Murmuraram-se vários sins, e em poucos minutos não se falou nada. As mulheres entraram por outros assuntos, enquanto os homens falavam de futebol. Magnólia continuou pensativa e triste. O primeiro passageiro ao entrar, o mesmo não desconfiou de nada, mas achou estranho o enorme silêncio de todos. Disse boa tarde, e poucos responderam. Magnólia foi uma delas. O dia não estava bom. Pressentia de que não iria ficar assim. Quando a condução chegou ao seu destino, e de praticamente todos que iniciaram a viagem estavam nele, o locutor entrou de novo pelo rádio para interromper a música: 11
– Atenção, atenção. Das mortas macabras acontecidas há pelo menos duas horas, em que foram assassinadas a mãe e a criancinha de dois anos, onde populares informaram ter sido um homem alto, magro, de camisa verde e calça marrom, com aspecto cadavérico, sem higiene, nervoso, de cabelos curtos, o mesmo foi preso há pouco instante quando tentava fugir rumo à cidade de Dois Lagos. Continuou: – A polícia da cidade vizinha, encurralou o assassino e o mesmo confessou o assassinato, isso praticamente em praça pública. Os populares quiseram linchá-lo, mas não obtiveram êxito devido o impedimento dos policiais. Os passageiros do ônibus permaneceram mudos, sem se olhar um para os outros. Algumas mulheres soltaram gemidos do fundo da alma e desmaiaram. O motorista permanecia com as duas mãos no volante, trêmulo e sem saber o que fazer. Magnólia pôs a mão no peito na tentativa de refrear os frêmitos do coração, e foi a primeira a descer do ônibus e daquele dia em diante não mais era funcionária da cooperativa e pensou em mudar-se da cidade. Pensou. Dois dias depois, ouviu-se dizer de que um homem dera entrada no hospital da cidade mais próxima com queixa de ossos quebrados, multimarcas em todo o corpo, entre a vida e a morte.
anchieta mendes, natural de Juazeiro do Norte (CE), é autor independente de Valados de Giz (Romance) e de Alquimia (Editora Multifoco,2013). Já participou de vários concursos literários com contos e em antologias diversas por todo o País.
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a guerra do brasil antonio barbosa
Flutuamos no limbo imaginário do ciberespaço escolar. Ele não tem como saber que troco mensagens com Anita sobre a festa de ontem. Geralmente escondo bem.O mínimo de desatenção já rende puxão de orelha nestas aulas. instrutor021: Você não está prestando atenção. pupilo034: Estou, sim, é que minha mãe fica me perguntando coisas. instrutor021: Menina, você vai perder seu privilégio e voltar pra escola presencial. Não adianta estudar de última hora pra passar no exame probatório. Estou aqui pra lhe ajudar, eu poderia cuidar de outras pessoas mais aplicadas e menos inteligentes que você. E Anita animada, pois encontrou a garota de Tegus e pegou seu telefone. Lá fora está um sol-sensação maravilhoso, daqueles que só dá na Bahia. pupilo034: Não precisa ameaçar, nem vir com esses códigos de ficar elogiando. Só não gosto de história, é isso. Meu exame vocacional deu programática. instrutor021: Se você não souber história, está fadado a repeti-la. Recomeçamos. Estávamos sentados nas ruínas de Canudos com seus fornos, câmaras e edifícios prisionais. O céu era cinza. Barulho de artilharia soando distante, como se ecoasse nas montanhas da Chapada Diamantina. 021 tinha o rosto marcado de acne antiga e cabelos grisalhos. instrutor021: O genocídio brasileiro derivou do conflito com a Aliança Vermelha formada por Bolívia, Equador, Venezuela e Cuba. O tráfico de drogas na fronteira entre o Brasil e a Venezuela acirrou as tensões entre os dois países e culminou numa corrida armamentista. Sob o comando do presidente José Andrade, o Brasil divergiu da histórica postura conciliadora nas relações internacionais e buscou aliança com Chile e Colômbia. O país vivia o fim da crise da Olimpíada, que derrubou o governo e levou ao poder uma aliança de ultra-direita liderada pelo Partido Restaurador Brasileiro. Seus ideais giravam em torno da nostalgia pelo regime militar e a instituição de reformas econômicas radicalmente liberalistas. A descoberta de que comandos bolivarianos aliados a terroristas nordestinos arquitetaram os atentados 13
das Olimpíadas do Rio, em 2016, mergulhou o país num debate acirrado sobre as liberdades civis. Nos grandes centros do Sudeste, os nordestinos passaram a ser vistos com desconfiança e ódio. No Nordeste, governos enfraquecidos pela crise de 2015 se viram incapazes de lutar contra a antes inimaginável onda crescente de racismo a se espalhar pelo Sudeste e o Sul do Brasil. A guinada brasileira rumo a um ódio racial ostensivo tem gerado inúmeros estudos antropológicos e já surge um consenso de que séculos de hipocrisia racial culminaram numa explosão violenta na terra antes apontada como berço da democracia racial. Neste contexto, o surgimento de grupos paramilitares fiéis ao governo Andrade, como o Comando de Caça aos Nordestinos, inicialmente focados em manter a lei e ordem após o caos da Copa, se tornou a peça que faltava para efetivar o holocausto nordestino. O Brasil sofria derrotas consecutivas nos campos de batalha amazônicos e descontava sua frustração nos campos de extermínio, onde 6 milhões de nordestinos morreram até a intervenção euro-americana encerrar aquela que ficou conhecida como a Guerra do Brasil. Ao seu lado surge um homem de semblante trivial. Poderia ser qualquer morador do Rio, São Paulo ou de Brasília. Nada que acusasse a banalidade monstruosa do seu primor pela eficiência, exceto pelo par de olhos juntos demais ou a pele esbranquiçada da prisão. instrutor021: Nascido em 1965, Roberto Atsicar se filiou ao Comando de Caça aos Nordestinos (ccn) em 2016 e depois liderou o gigantesco centro de extermínio de Canudos, o ponto mais baixo da barbárie ocorrida durante a Guerra do Brasil. Este é seu depoimento juramentado no inquérito por crimes contra a humanidade da Corte Internacional de Petrópolis, em abril de 2025: [roberto falava macio como burocrata, sem rancor ou ansiedade, como quem relata as medidas adotadas para melhorar a eficiência da fábrica.] Eu, Roberto Atsicar, sob juramento, afirmo o seguinte em meu depoimento: Tenho 46 anos e participo do CCN desde 2008; integrei a Força de Segurança Nacional (FSN) desde 2012; fui soldado do Exército Brasileiro (EB) desde 1990. A partir de 1 de dezembro de 1995 me tornei membro da Unidade de Guarda da FSN, conhecida como Falange do Bope. Trabalhei amplamente na administração de campos de concentração desde 2017, servindo em Ilhéus até janeiro de 2018; depois fui subcomandante em Recife entre 2018 e 2019, quando fui promovido a Comandante de Canudos. Comandei Canudos até 1 de dezembro de 2020 e calculo que pelo menos 2,500,000 pessoas foram executadas lá por gases venenosos ou incineração, e pelo menos meio milhão morreu de doença ou fome, elevando o total de mortos a cerca de 3,000,000. Esse número representa 70% a 80% de todas as pessoas enviadas a Canudos como prisioneiros, com o restante selecionado para trabalho escravo nas indústrias do campo de concentração. Entre os executados e incinerados estavam aproximadamente 20,000 prisioneiros de guerra cubanos (selecionados na detenção do CCN) que foram entregues a Canudos 14
por transportes do EB operados por oficiais e soldados do EB. O restante das vítimas incluiu 100,000 baianos e muitos nativos (a maioria residindo em São Paulo) de Sergipe, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Alagoas, Ceará e Piauí. Executamos também cerca de 400,00 paraíbanos em Canudos no verão de 2014. As execuções em massa com gases venenosos começaram no meio de 2017 e continuaram até o fim de 2020. Eu supervisionei pessoalmente as execuções em Canudos até dezembro de 2019 e sei, por causa do meu trabalho na Inspetoria de Campos de Concentração, que essas execuções em massa continuaram mais um ano como afirmado acima. Todas as execuções ocorreram sob ordem direta, supervisão e responsabilidade da Casa Civil da Presidência da República. Recebi as ordens de realizar as execuções em massa diretamente da Casa Civil. A “solução final” para a questão nordestina envolvia o completo extermínio de todos os nordestinos do Brasil. Recebi ordens para criar instalações em Canudos em junho de 2017. O governo provisório da Bahia já operava três outros campos: Muritiba, Cachoeira e Lençois. Esses campos estavam sob a responsabilidade do Comando da FSN. Visitei Cachoeira para descobrir como os extermínios eram conduzidos. O comandante do campo contou como liquidou 80,000 nordestinos em apenas seis meses. Sua preocupação principal era exterminar todos os nordestinos de Capão Redondo, São Paulo. Ele usava monóxido de carbono e não achei seu método eficiente. Então, quando criei o edifício de extermínio em Canudos, usamos extratos de plantas venenosas locais, que lançávamos na câmara mortal de uma pequena abertura no teto. Demorava de 3 a 15 minutos para matar as pessoas, dependendo das condições climáticas. Sabíamos que as pessoas estava mortas quando paravam de gritar. Depois que os corpos eram removidos, nossos comandos especiais extraíam anéis e o ouro das obturações dos cadáveres. Outra melhoria que fizemos em Cachoeira foi construir câmaras de gás que comportassem 2,000 pessoas de cada vez, pois as salas de lá acomodavam apenas 200 pessoas. O modo como selecionávamos as vítimas era o seguinte: tínhamos dois médicos da FSN de plantão em Canudos para examinar os trens que chegavam com prisioneiros. Os prisioneiros eram colocados para marchar por um dos médicos, que tomava sua decisão na hora enquanto eles caminhavam. Quem podia trabalhar era encaminhado ao campo. Os outros eram enviados às fábricas de extermínio. As crianças menores eram invariavelmente exterminadas, já que pela idade eram incapazes de trabalhar. Outra melhoria que fizemos em Cachoeira é que as vítimas de lá quase sempre sabiam que seriam exterminadas, enquanto que em Canudos nós conseguíamos fazer elas pensarem que seriam fumigadas contra piolhos. Claro que, muitas vezes, elas percebiam a nossa verdadeira intenção e às vezes ocorriam tumultos e dificuldades por causa disso. Muitas vezes as mães escondiam os filhos debaixo das roupas, mas é claro que 15
quando nós as encontrávamos, mandávamos direto para serem exterminadas. Nossas ordens eram realizar esses extermínios em segredo, mas é claro que o fedor nauseante da incineração ininterrupta de corpos permeava toda a área e os moradores das comunidades locais sabiam que estavam ocorrendo extermínios em Canudos. De vez em quando recebíamos prisioneiros especiais do escritório local do CCN. Os médicos da FSN matavam tais prisioneiros com injeções de benzina. Suas ordens eram para redigir certificados de óbito normais e colocar qualquer motivo como causa da morte. De vez em quando conduzíamos experiências médicas em prisioneiras, inclusive esterilização e experimentos sobre o câncer. A maioria das pessoas que morreram nesses experimentos já tinha sido condenada a morte pela FSN. Rodolfo Magalhães era chefe do CCN em Feira de Santana e, desse modo, comandava o departamento de presos políticos em Canudos, que usou tortura nos interrogatórios entre aproximadamente março de 2017 e setembro de 2019. Frequentemente ele enviava prisioneiros a Canudos para encarceramento ou execução. Ele visitou o campo vários vezes. O Tribunal do CCN, que julgava pessoas acusadas de vários crimes, como prisioneiros de guerra que escapavam, etc, se reunia o tempo todo em Canudos e Magalhães participou de vários desses julgamentos, em que os réus geralmente eram executados em Canudos depois de sentenciados. Mostrei a fábrica de extermínio em Canudos e ele ficou muito interessado, pois teria de mandar para lá os nordestinos de sua área para execução. Eu compreendo o português da maneira redigida acima. O depoimento acima é verdadeiro; fiz esta declaração voluntariamente e sem coação; depois de reler o depoimento, assinei e emiti o mesmo em Petrópolis, Brasil, no quinto dia de Abril de 2025. instrutor021: Pode ir. Acabou a lição por hoje. Porra de treinamento emocional. Desliguei sem dizer tchau, mas as palavras daquele homem ficaram me seguindo depois que tomei o rumo do Jardim de Alá. Quando encontrei Anita no gramado dos coqueiros, tinha passado o caminho olhando ela de longe e dizendo como era uma puta sorte a gente estar vivo pra curtir aquele sol, sentir o perfume da maresia e ver os corredores e as bicicletas movimentando a vida. Eu pensava assim: justamente pela vida ser tão boa e nosso mundo tão afluente, por que lembrar desses horrores? Mas só na hora que Anita finalmente me viu chegar e abriu aquele sorrisão, e nos abraçamos, é que terminou a lição. Por causa disso.
antonio barbosa, 73 anos, brasileiro radicado em Nova York. Gastou a vida na bolsa de valores e hoje escreve poemas em meio às estátuas gregas de Astoria, Queens. Come seu peixe e pão e azeite com a respiração fraca de fumante. Caminha todos os dias, mas esquece de tomar banho. Ontem soube que seu único amigo, Dalton, cometeu suicídio. Cogitou fazer o mesmo. Foi caminhar.
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encontro no porão A Juan Rulfo
b. kucinski
– Vim aqui porque me disseram que aqui mataram meu pai. – Quem foi que te disse? – Minha mãe me disse. O delegado tinha olhos de sapo. Eu havia entrado na delegacia porque vi que o casarão estava às escuras. – Quem foi teu pai? Ele perguntou ríspido. Aqui matamos mais de cinqüenta. – Um tal de Jonas. – É assim que você fala do teu pai? Um tal de Jonas... – É como minha mãe falava. Não cheguei a conhecer meu pai. Minha mãe não gostava de falar do meu pai. De começo nem o nome Jonas ela falou. Disse que era Vicente, depois disse que não, que era Rodriguez, depois que era Carlos, Alexandre, Luiz. Muito depois disse que não eram nomes, eram codinomes. Eu me sentia confuso. Será que meu pai era do mal? – Minha mãe deu um monte de nomes ao meu pai, mas nenhum deles era de verdade, eu disse ao delegado de olhos de sapo. – E Jonas, você acha que era? – Sim, ela falou Jonas quando eu completei dezoito anos. – Por que você quer ver o lugar onde mataram teu pai? – É que eu preciso conversar umas coisas com ele. Acho que no lugar onde mataram eu consigo. – A gente conversa com pai no cemitério. Eu falo com o meu sentado na sepultura dele. – É que o meu ficou sem, sumiram com ele, não deu pra enterrar. – É... eu sei. – Então, posso ver o lugar onde mataram meu pai? – A gente matava na sala do ponto, onde ficava o pau-de-arara. Rodriguez, Alexandre, Jonas, não importa, era sempre lá. – O senhor me mostra? – É no piso quatro. Mas você não pode ir lá. – Por quê? 17
– O casarão está trancado. – O senhor não tem as chaves? – Tinha. Perdi quando me afoguei. O cara de sapo se pôs pensativo. Pensei que não ia mais falar comigo. Súbito ouvimos gente discutindo na outra sala. Então, ele disse, seco: – À meia noite você entra. Eles destrancam por dentro, saem por aí e deixam aberto. – Eles quem? – Os falecidos, ora! – E o que eles fazem? – Vem atazanar! Perambulam por ai, gritam, gemem. Arrastam os pés no cimento. Só se recolhem quando está para amanhecer. – O senhor conversa com eles? – Não. Evito. – O senhor tem medo? – Eu lá tenho medo?! Nem deles nem de ninguém! Mas não gosto. Fazem careta pela janela. Ele aparece ensanguentado e puxa minha perna. – Ele quem? – O Jonas. Teu pai. Aquele era um tempo de frio, quando as pessoas se recolhem cedo e as ruas ficam desertas assim que anoitece. Retornei faltando cinco minutos para a meia noite. Havia luz na delegacia, mas não entrei. Passei direto pela lateral. O casarão, ainda às escuras, estava envolto por uma mortalha de névoa branca. De um poste alto uma luz cansada caia sobre o pátio. Aguardei encostado no muro. Logo uma porta de ferro se abriu e surgiu um rapaz. Devia ter uns dezoito anos. Atrás dele surgiram outros, uns sete ou oito, adultos, mas ainda moços. Ao me virem, vieram em minha direção arrastando os pés. Não gritavam, nem gemiam. Pareciam curiosos com a minha presença. – Eu sou o Alexandre, muito prazer, disse o rapazinho, estendendo a mão. Ao apertá-la notei os dedos em carne viva e sem unhas. Desculpei-me. O rapaz disse não tem importância, não dói mais. Tentava sorrir. Tinha rosto lívido e olhos opacos enterrados em órbitas escuras. Os demais, que se aproximavam, também estavam brancos como porcelana e de olheiras profundas. Alguns apoiavam-se em outros. – Eu me chamo Lucas. Sou filho do Jonas. Vim ver o lugar onde mataram meu pai. – Teu pai foi morto no porão. – O delegado com cara de sapo disse que foi na sala do ponto. – Mentira. Esse delegado mente demais. Naquele tempo nem tinha sala do ponto. Eu também fui morto no porão. Eu fui o primeiro, teu pai foi o segundo. – Posso ver o porão? – Claro. Mas por que você quer ver o lugar onde mataram teu pai? – Porque preciso falar com ele. – Teu pai não está aqui. Levaram faz tempo. – Você sabe pra onde? – Não. Ninguém sabe. – Minha mãe também não sabia, eu disse. 18
Quando minha mãe estava à morte, falou pela primeira vez do meu pai. E me fez prometer que eu viria vê-lo assim que ela morresse. Apertei suas mãos em sinal de que faria isso, pois ela estava morrendo e eu decidido a prometer tudo. Foi então que ela revelou o nome verdadeiro dele. Não deixe de visitá-lo, ela disse. Ele vai gostar de ver você, tão certo quanto se chamar Jonas. – Preciso ver onde meu pai foi morto, eu disse ao Alexandre. – A escada é do lado esquerdo da entrada. – Mas como eu vou saber o lugar certo onde mataram meu pai? – Lá em baixo você pergunta ao Pedro. O velho não sai porque quebraram as pernas dele, só depois mataram. Os primeiros degraus recebiam alguma luz. Desci o resto tateando. Senti paredes úmidas e descascadas. Dei num corredor estreito e sombrio, com uma sucessão de portinholas de ferro escancaradas. Senti gotas batendo na testa. Olhei pela primeira abertura e vi no fundo de um cubículo um velho enrodilhado e de rosto clareado por uma luz delicada que parecia vir de dentro dele. – Vim ver o lugar onde meu pai foi morto. Sou Lucas, filho do Jonas. – Sou Pedro. Muito prazer. Teu pai foi morto no fundão. É a última cela, no fim do corredor. Mas ele não está. Levaram embora. – Eu sei. A cela chamada fundão fedia creolina. Uma luz fraca de fonte incerta incidia nas paredes sujas e tomadas por manchas negras. Parte pequena do piso parecia limpa. Sentei-me ali e abracei os joelhos com as mãos. Logo senti silêncio profundo. Meu pai não tardou a aparecer. Vi que era alto e espadaúdo como sempre o imaginei. Mas estava magro e parecia fora de prumo. Suas roupas tinham nódoas como as das paredes. Não mostrou o rosto. Disse que estava muito feio; não era coisa para um filho ver; eles me mataram a pauladas, explicou. Conversamos por duas horas. Ele contou tudo o que lhe aconteceu. No fim, disse que a mãe guardou segredo tanto tempo para minha segurança. Desejou-me muitas felicidades. Ao me despedir perguntei onde ele estava enterrado. Respondeu que não sabia. Não conseguiu ver porque foi levado num saco fechado. Se eu precisasse conversar de novo era para vir ali. Venha de vez em quando, ele disse, mesmo sem precisão. Ao deixar o casarão não vi o rapaz Alexandre no pátio, nem os outros. Entrei na delegacia para perguntar ao olho de sapo o motivo dele ter mentido sobre o lugar em que mataram meu pai. Mas ele não estava. Estava um outro. – Aquele delegado com olho de sapo já foi embora? O outro riu. E disse. – Ele sempre sai antes da meia noite. – Por quê? – Porque os defuntos mexem com ele. – E quando ele vai voltar? – Não sei. Ele vem pouco. Faz muito tempo que se afogou. 19
– Preciso dizer a ele que meu pai não foi morto na sala do ponto, foi morto no porão. – Que porão rapaz?! O casarão não tem porão! – Mas eu desci até lá. O Alexandre me indicou a escada. E o velho, o senhor Pedro, confirmou que meu pai foi morto no fundão. – Eles falam nesse porão, mas não tem porão nenhum, nem escada. – Pode ser que antes tinha. – Não sei. Não sou daquele tempo. – Eu conversei com meu pai no porão!! – É porque você é parente. Fico contente de você ter conseguido entrar e conversar com teu pai. Depois que o prédio foi tombado ninguém entra. Vai virar museu. Era noite alta quando saí da delegacia. Não havia ônibus. Caminhei pelas ruas desertas repassando tudo o que havia acontecido, o encontro com o delegado mentiroso com cara de sapo, o rapaz Alexandre de mãos dilaceradas, o velho Pedro, de pernas quebradas, e a longa conversa com meu pai. Senti-me bem por ter finalmente conhecido meu pai e ter descoberto que ele foi um homem bom. E que se minha mãe não falava dele, não era de vergonha, ou por ele ter feito alguma maldade. Era pela minha segurança. Só lamentei não ter visto seu rosto. Da próxima vez vou pedir para ver.
b. kucinski é assinatura literária do jornalista e cientista político Bernardo Kucinski, que estreou na ficção com o romance K., finalista dos prêmios Portugal Telecom, São Paulo de Literatura e Machado de Assis. Autor de vários livros renomados de não ficção, entre eles Jornalismo econômico, vencedor do Prêmio Jabuti em 1997, assina a coletânea de contos Você vai voltar pra mim, que conquistou o Prêmio Clarice Lispector, da Fundação Biblioteca Nacional, em 2014. Alice, romance policial, é o seu livro mais recente.
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o destino da garoupa bruno flores
Essa é a história de uma garoupa-verdadeira, nome de batismo Epinephelus marginatus, que vivia aprisionada a uma nota de cem reais. Na Casa da Moeda, onde nascera, enturmara-se com a tartaruga-de-pente, a garça-branca-grande, a araravermelha, o mico-leão-dourado e a onça-pintada. Lá soube que seu destino seria transitar de mão em mão, sem apegos ou amparos, pelo resto de seus dias. De nada adiantava sonhar com a savana, a selva, os céus ou, em seu caso, os mares. Aquele papel levemente brilhoso, duro e fedorento do Banco Central a confinaria para sempre. Naquela fauna inusitada, nossa garoupa era a mais rara, mais valiosa, e por isso mesmo costumava ser mais preservada nos bolsos e carteiras. Não à toa, permanecia há quase duas semanas com seu primeiro e único dono, um playboy de vinte e cinco anos chamado Rodolfo. Agora, dobrada na carteira Dolce & Gabbana de Rodolfo, entre uma onça e um mico-leão, a garoupa se empenhava em imaginar a refrescante imensidão do oceano, com suas saborosas lagostas, camarões e moluscos. Mas o batuque surdo da música eletrônica estraçalhou sua fantasia. Do lado de fora, o ambiente invisível à garoupa era a pista de dança armada na cobertura dos pais de Rodolfo. Flashes de luz colorida cintilavam sem lógica de globos espelhados, revelando mulheres descabeladas com vestidos colados ao corpo, e homens suados de camisa desabotoada. Taças de champanhe eram erguidas com o cigarro entre os dedos, formando minúsculos pontos incandescentes pairando no ar como vagalumes embriagados. No canto, um DJ com boné pra trás, cordão de prata e camisa regata expondo no braço uma enorme tatuagem tribal orquestrava a euforia com “Summer”, de Calvin Harris. Rodolfo atravessou a pista com sua cabeleira loira e olhos azuis, mais parecendo o herdeiro do trono de algum país escandinavo, agarrou Andressa por trás e deu uma mordidinha em seu ouvido. Ela gargalhou, quase caindo de costas. O casal 21
esquivou-se até a varanda, seguidos pelos amigos de Rodolfo, com seus uísques e caipisaquês. Uma brisa agradável vinha do oceano, agora resumido a linhas de espuma branca no breu da madrugada. – Vai nevar, Rodolfinho? Rodolfo tirou a nota azul da carteira e a esticou para mostrar aos amigos: de um lado, a efígie simbólica da República, do outro, nossa garoupa-verdadeira, em seu falso nado, com falsos corais ao fundo. – Hoje neva até no mar... Tirou um miniplástico do bolso e derramou o pozinho branco sobre o parapeito. Preparou a linha com o cartão de crédito Bradesco Prime, enrolou a nota e aspirou tudo, sacudindo em seguida a cabeça feito um cachorro com otite. Amigos se ouriçavam como crianças diante de uma carrocinha de sorvete, enquanto Andressa, distraída, prendia o cabelo num rabo-de-cavalo, exibindo a palavra “Liberdade” tatuada em suas costas malhadas. Foi então que um vento forte bateu de súbito, tombou uma cadeira, virou do avesso um guarda-sol e fez a garoupa escapulir da varanda. – Puta que o pariu! A nota se abriu como se criasse asas e a garoupa sentiu-se leve, balançando ao sabor do vento, feito suas colegas arara e garça. Por um instante, a luz branca dos postes da orla parecia um farol a guia-la rumo ao seu habitat, o vasto oceano. Mas a esperança de transpor a fronteira logo veio abaixo quando uma brusca mudança de vento a empurrou no sentido contrário. Veloz e sem freios, seguia pelo labirinto de edifícios brilhantes na direção do centro da cidade, até perder os sentidos ainda no ar. Despertou com o primeiro facho de luz esverdeando seu azul-piscina. Estava encostada ao meio fio, do lado de uma latinha de guaraná amassada. Duas pernas atravessaram a rua, se agacharam ao seu lado, e a garoupa sentiu mãos ásperas, cheias de calos. A fungada trouxe cócegas no contato com o bigode. – Acordei com a bunda pra lua! Inserida de qualquer maneira num bolso suado e encardido, a garoupa só viria saber mais tarde que seu novo dono era o estivador Eusébio, um bocado satisfeito por finalmente poder acertar com Firmino, seu agiota. Já estava com o dinheiro para pagar a maior parte da dívida, mas faltavam justamente cem reais! Não gostava de Firmino, muito menos de dever dinheiro a ele. Era a primeira vez que faziam negócio e não pretendia que houvesse uma segunda, o que aumentava sua satisfação ao liquidar de vez o assunto. Era um domingo e o escritório de Firmino estaria fechado, mas Eusébio tinha seu turno a cumprir. De oito às cinco, operou guinchos, tratores e empilhadeiras, organizando cargas no convés de um navio que partiria no dia seguinte. No intervalo, fartou-se de arroz, feijão, farofa e coxinhas de frango, e gargalhou mais do que seus 22
colegas quando contou a última piada do Joãozinho, que recebera do cunhado por zapzap. Eusébio voltou contente para casa ao escurecer, mas assim que girou a chave e abriu a porta, seu bem-estar transformou-se em vertigem. Ali estava, na sua sala de estar, frente a frente com sua esposa Angélica, o agiota Firmino, atarracado, com sua cabeça chata e seu bigodinho que mais parecia uma lagarta-de-fogo. Angélica aproximou-se do marido com cara de tonta, esfregando as mãos no avental de cozinha. – Querido, esse homem disse que te conhece, que tem um negócio a tratar com você. Eusébio apertou a mão de Firmino sem dizer uma palavra. Como ousava vir até sua casa sem aviso, num domingo à noite, constrangendo sua esposa, invadindo sua privacidade! O cobrador, que não parecia incomodar-se com o silêncio, encarava os poucos objetos de valor presentes na sala: a antiga cadeira de balanço feita da madeira de jacarandá, herança da família de Angélica, a louça de porcelana chinesa que fora presente de casamento e a TV LED de cinquenta polegadas, financiada com o empréstimo do próprio Firmino, onde agora o Faustão anunciava aos berros a “Dança dos Famosos”, logo após os reclames do plim-plim. – Querido, o homem tá esperan... – Sim, sim, já sei, pode voltar pro seu programa. Angélica voltou desconfiada ao sofá, mas tão logo se postou na frente da TV, um olhar alienado, quase demente, instalou-se em seu rosto. – Vamos conversar na cozinha. No corredor estreito entre a pia e o fogão, sob o odor inebriante de alho, Eusébio tirou a nota de cem do bolso, juntou com o restante do dinheiro, e chapou com força as cédulas na mão de Firmino. A garoupa se ressentiu por ser manuseada com tamanha rispidez, sobretudo quando inserida de qualquer maneira numa carteira marrom com cheiro de couro velho, antes ocupada apenas por duas solitárias tartarugas-de-pente. – A azulzinha, hein, rara de ver. – Tudo certo? Então vá com Deus... Eusébio guiava o agiota bruscamente na direção da saída. – Não se chateie, Eusébio. Só vim porque tenho que buscar amanhã uma encomenda importante e precisava do dinheiro. Sabe como são essas coisas... – Sei sim, até logo. A porta bateu com força atrás de Firmino. Na manhã seguinte, o agiota foi a uma ruela escondida do centro para buscar, numa casa decrépita dos anos trinta, a tal “encomenda importante”: o vestido de casamento da esposa, que deixara aos cuidados de uma costureira. A dona do negócio 23
era uma senhora gorda chamada Cleidir, de cabelos grisalhos, pele maltratada e um olhar arguto de quem se manteve ocupada a vida toda. Ela preenchia com caneta a nota de compra, sentada num banquinho frágil que parecia incapaz de aguentar seu peso. – Noventa e três reais, moço. Firmino fez uma careta, tirou a carteira do bolso e pagou com a garoupa, que buscava ainda se acostumar àquela vida errante. Cleidir arranhou a nota, a levantou contra a luz e a largou dentro da bolsa, junto a um casaco velho, um celular, a última edição da revista Marie Claire, um cartão da Caixa Econômica, algumas tartarugas, gaivotas, araras e uma onça-pintada. – Sua senhora vai ficar bonitona com o vestido novo, viu? Garantido. – Com essa dinheirama que tô pagando, é bom que fique bonita mesmo. Cleidir abriu um sorrisinho falso escondendo os dentes, e Firmino achou por bem desfazer a má impressão. – É uma ocasião especial, vinte e cinco anos de casados. A costureira levantou a cabeça com olhos arregalados e bateu palmas. – Que maravilha! Bodas de prata! Parabéns ao casal! Ela ficou de pé e o agiota viu-se obrigado a forçar um sorriso e envolver nos braços aquele monte de banha. O mundo era cheio de doidos. Uns abraçavam estranhos com um ânimo desatinado, como se fossem velhos amigos, outros lhes davam tiros de revolver sem motivo aparente. Pelo menos, Cleidir era do primeiro tipo. A garoupa, por sua vez, ficou contente por não estar mais confinada a uma sufocante carteira, embora a bolsa de Cleidir cheirasse a esmalte e Leite de Rosas. Mas o alívio durou pouco. Por volta de meio-dia, a garoupa ouvia o ruído do trânsito, quando a costureira enfiou a mão na bolsa, tirou uma gaivota e a pôs de volta. Depois fez o mesmo com duas araras e resmungou qualquer coisa, até enfim achar o que procurava: a onça. – Afff, finalmente! Minutos depois ela mudou de ideia, devolveu a onça e pegou a garoupa, que trocou o ar abafado da bolsa pelo ar poluído da rua. Estava numa fila enorme na calçada, em frente a uma casa lotérica. Cleidir juntou as mãos em forma de reza, a garoupa espremida no meio, e rezou o Pai Nosso ao som de buzinas e freadas de ônibus. Quando enfim chegou a sua vez, Cleidir entregou a garoupa, misturada a um monte de papel, ao homem atrás do balcão, um mulato jovem, de cabelos dreadlock, vestindo a camisa do Barcelona. O funcionário conferiu a quantidade de talões preenchidos e encarou Cleidir com um olhar de espanto por trás dos dreads. – Isso tudo, dona? 24
– É hômi, e vamo logo que eu tenho serviço me esperando! – Ô estresse... Guardou a garoupa na gaveta do móvel à sua frente e tirou algumas tartarugas e garças de troco. À noite, a garoupa foi bruscamente removida de um sonho agradável, em que nadava em alta velocidade por um mar azul-turquesa. O mulato que a guardara mais cedo a tirou da gaveta, a inseriu no bolso lateral da calça jeans surrada e saiu para a rua, fechando a casa lotérica. Na esquina, um amigo o esperava. – O Marcelo nem confere os ganhos do dia, então tá tranquilo. Depois dou um jeito de devolver. O amigo se manteve em silêncio, e o mulato continuou. – É por uma boa causa! A Joaninha mal tem falado comigo, anda tristinha, mas esse presente vai dar um jeito. A garoupa descobriu pelo bate-papo que seu novo dono a usaria para comprar o último lançamento da Barbie, que vinha com três bonecas, uma casa e tudo mais, para dar de presente à filha Joana em seu aniversário de cinco anos. Supostamente, todas as amiguinhas da escola zombavam dela por não ter ainda a tal Barbie Real Casa, e ele, como pai, sentia-se no dever de impedir que a filha sofresse bullying. Pararam em frente a um boteco, e o amigo enfim revelou sua voz: – Umazinha pra comemorar! Sentaram na única mesa vazia da calçada e pediram uma Brahma. Em volta, dois sujeitos discutiam ferozmente o resultado do jogo do bicho, um branquelo com óculos de armação grossa e camisa polo acariciava a mão de uma mulher grandona com peito de silicone e gogó saltando do pescoço, e um velho com cabelo desgrenhado e barba por fazer encarava vidrado o copo de cerveja. A garoupa passou a escutar as conversas entre o mulato dos dreads e seu amigo, que fluíam cada vez mais soltas e animadas. O carrinho desleal que o “babaca do Nelson” deu na pelada de domingo à noite levou ao assunto do Messi tornando-se o maior goleador da história da Liga dos Campeões (O hermano tá de sacanagem!), que levou à discussão se o Neymar alcançaria ou não o patamar de seu companheiro de time, que levou ao vídeo da Bruna Marquezine rebolando até o chão, que levou ao dilema não resolvido de quem era a Panicat mais gostosa. De dentro do boteco, vinha o som alto da extinta lambada: Chorando se foi quem um dia só me fez chorar / Chorando estará, ao lembrar de um amor / Que um dia não soube cuidar... A garoupa tentava cochilar, mas era difícil. Ouviu então o mulato pedir a conta (Fecha aí pra gente, Paraíba!), foi retirada do bolso da calça e jogada aberta sobre a mesa do boteco, ao lado de incontáveis garrafas de cerveja vazias. Era só o que faltava. Deixava de fazer a alegria de uma criança para financiar a bebedeira de um pai irresponsável. Mas o destino novamente jogou ao seu favor quando um caminhão de lixo passou ao lado da mesa em alta velocidade e despertou um vento lateral que levou a garoupa embora. 25
Subiu e subiu, na brisa suave e constante, para percorrer a cidade do alto. Primeiro o centro histórico, com seus casebres, ruelas e praças, feito uma maquete cenográfica dos anos quarenta. Depois, voou sobre prédios iluminados e imponentes avenidas onde carros deslizavam com pressa no asfalto. Assim ficou durante muito tempo, aproveitando o doce gostinho da liberdade. Entretanto, o que a garoupa de fato desejava era a imensidão do mar, e tão logo o sol começou a despontar no horizonte, foi como se os ventos lessem sua mente, pois viu o oceano cada vez mais próximo, brilhando dourado à primeira luz da manhã. Mal continha sua ansiedade. Enfim sentiria o frescor da água e nadaria por ela sem amarras e sem destino. Atravessou a orla, a praia e ganhou o oceano sem fim. Já estava bem distante da terra quando os ventos cessaram e a garoupa caiu graciosamente até a superfície do mar, seu habitat, livre para sempre da ganância desmedida do mundo dos homens. Minutos depois, no entanto, foi engolida por uma colega, outra garoupa-verdadeira, que mais tarde morreria de uma terrível intoxicação.
bruno flores
é formado em Jornalismo pela PUC-RJ e pós-graduado em Gestão e Produção Cultural pela FGV.
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imagens urbanas carlos ribeiro
Como as personagens de Noite Vazia, de Walter Hugo Khouri, esvazio meu ser com essas imagens urbanas que sempre farão parte de mim, porque, veja bem, o que há de tão fascinante nesta janela que abro, no 15o. andar de um prédio, na Graça ou na Barra Avenida, para o espaço imenso das avenidas que lá embaixo se enchem de pontos luminosos que vêm e que vão, e esse emaranhado de viadutos e pontes e tantos ângulos, ocultos, obscuros escondendo sabe-se lá que tipo de sonhos, medos, taras e intenções? Penso que posso ser todas aquelas pessoas lá embaixo. Vejam, por exemplo, aquele homem, metido num casaco surrado, com cabelos crespos e barba por fazer, retorna para casa, no início da noite de uma sexta-feira, após um dia de trabalho, e ele também percebe que não é mais jovem, que todos os seus sonhos se dispersaram ao longo dos anos, que sua pele já não tem mais nenhuma vivacidade, nenhum frescor, que sua barriga cresceu, que seus músculos estão flácidos, que já não é mais capaz de enfrentar um homem com seus punhos, que já não é mais capaz de garantir sua integridade com suas mãos, que seus amigos se dispersaram também como farinha na praia, quando o vento bate forte e firme e ela voluteia e se desfaz, e que já não pode sequer contar com um amigo que o ajude a enfrentar esse mundo cão, que é capaz de apanhar feito um cão imundo, sem poder fazer nada, está me entendendo? Pensa assim o homem desiludido, fodido, cansado de tudo e de si mesmo, e que por isto, e que por não valer quase nada, carrega consigo no bolso do casaco surrado, uma arma, esta arma que tem prazer de ter entre os dedos enquanto olha em volta e vê os passantes, e pensa: venham, safados, venham se meter comigo, filhos de uma cachorra pra ver se não lhes meto uma bala nas fuças, escrotos fodidos, e pensa que já é tarde, que o ônibus está mais uma vez atrasado, e pensa que é inútil contar quantas horas da sua vida, quantas horas da sua vida, está entendendo? quantas horas de sua vida perdeu parado assim, no ponto do ônibus, esperando, esperando enquanto os merdas passam pra cá e pra lá com seus carrões luxuosos, com suas mulheres embonecadas, que não sabem que ele existe, e que nunca saberão até que aponte a arma pra suas cabecinhas... E quem sabe até dê um passeiozinho por aí pela periferia com essas granfas, e ele sorri saboreando a ideia de deitar uma delas no carro e, com suas próprias mãos, rasgar-lhe a blusa e levantar-lhe a saia, e arrancar-lhe a calcinha fora, e dizer-lhe assim baixinho no ouvido: és minha agora e sempre, tá ouvindo? 27
E ela será todas as meninas que o trataram como um moleque, como se ele tivesse sido feito por Deus para servi-las, e agora, sim, irá servi-las, a todas elas servirá com sua estrovenga que derramará este jato de leite quente nas suas entranhas, enquanto ela gritará por socorro, socorro, socorro, veja só que ela nem sabe onde está metida, essa égua nojenta, então você não quer receber minha maromba, heim? dirá puxando-a pelos cabelos, beijando-lhe o pescoço, roçando-lhe os peitos com a lâmina do seu canivete, oh, sim, ele fica excitado sempre que pensa naquelas coisas e pensa mesmo se seria capaz de fazer uma coisa daquela ou se, simplesmente, matá-la-ia com um tiro na testa, pois não seria rebaixar-se muito misturar-se com essas peruas, não seria melhor dizer que iria despachá-la logo pras profundas, meu irmãozinho, sim, meu irmãozinho, porque o inferno é pouco, tá me entendendo, pra essa gente que sempre se acostumou a humilhá-lo, e aos seus irmãos, e aos seus pais, e aos seus avós, e a toda a interminável multidão de homens e mulheres, que, diante deles, só abrem a boca para dizer: “Sim? O que o Sr. deseja? O que a Sra. quer?”, e o que é que a senhora quer agora, dona-puta-de-merda? Pensa com força, pensa com raiva sentindo seus dedos apertarem com força o cabo do revólver, e com que vontade não cuspiria fogo em volta, queimando todos esses desgraçados que ficam andando pra lá e pra cá com essa pressa, pra quê? E o homem range os dentes, e seus ossos rangem, e tudo nele range como dentes de um cachorro louco, mas ele se controla, mais uma vez, e uma mulher, ao seu lado, pergunta-lhe as horas. – Que horas, por favor? E ele: – O quê? E ela: – As horas... E ele: – Sim, claro, desculpe. E solta o cabo do revólver, e olha o relógio, e diz as horas com educação, e a mulher agradece-lhe, e o ônibus chega finalmente, e ele o pega, e desaparece para sempre desta história, e a mulher que fica no ponto, pensa: coitado, tão simpático, mas tão miseravelmente destruído, oh, e se eu não me cuidar também ficarei assim, mas já não estou assim meio caída, pensa olhando os seios que já não se mantêm suspensos, e ela nem se lembra quando eles começaram a cair, e pensar que um dia ela acreditou que eles jamais cairiam, e só então percebeu como já ia longe, meu Deus, aquelas noites em que seu namorado a encostava no muro, encostando o corpo magro e musculoso nela, e ela sentia o volume dele pressionando suas partes, e ela o empurrava, e ele insistia, e ela lutava com todas as suas forças até que sentia que ele a largaria, e sem querer frouxava os braços e sentia um súbito alívio ao saber que ele não se deixara intimidar, e nunca lutou tanto quanto naquele dia em que, na beira da praia, ele a despiu, e ela tentou fugir, inutilmente, e sentiu pela primeira vez o gosto de ser penetrada, e aquele medo de engravidar, e só então viu a força que tinha, e ficou confusa sim quando sentiu o líquido grosso, quente e pegajoso derramar-lhe nas coxas, e sentiu nojo, e quis limpar, e ele ficou lá parado como se tivesse morto, e ela pegou a calcinha jogada na areia e limpou-se com ela e atirou-a longe, e saiu dali feito uma maluca, e chorou muito naquela noite, em silêncio, engolindo seus soluços, mas muitas outras vezes voltaria com ele à praia, e tudo 28
terminaria ficando natural, até que um dia engravidou de verdade, e quis abortar, chegou a tomar remédios, mas a barriga continuou crescendo, e de repente não pôde mais esconder que, sim, teria um filho, mas seu pai não compreendia, desgraça de filha, criada com tanto gosto pra quê? Pra emprenhar assim feito uma vagabunda? Oh, meu pai, como doeu aquela surra, e as recriminações, e a rejeição cada dia pior, até que casamos e saí de casa, e tive outros filhos e outros e acho que foi aí que meus peitos começaram a cansar de dar leite e foram despencando, os meninos enchendo a casa com tanto barulho, e meu marido com tantas exigências, mas pra que estou pensando nisto agora, meu Deus do céu? – matuta a mulher, a mulher que espera o ônibus, a mulher que passara anos de sua vida esperando o ônibus, ela que já não tinha mais nem tanta pressa assim de chegar a casa, porque sua casa era fria como as ruas da cidade, fria e vazia como essas calçadas e avenidas, e pensa mesmo se não teria sido melhor se tivesse feito como sua prima Marlene, lembra-se dela? Claro, mas faz tantos anos, não é? Quando Marlene fugiu de casa pra viver com Roberto, que vivia dizendo que a amava, que queria casar com ela, e ele com aquela lábia que o diabo lhe deu conseguiu finalmente levá-la para um daqueles hoteizinhos baratos de beira de estrada, onde tudo parecia sempre muito velho e sujo, banheiros com portas despencadas que rangiam, e as teias de aranha nos ângulos da parede, e baratas que passavam pra lá e pra cá em meio ao lixo, e aquela cama velha com o colchão duro e as cobertas encardidas, meu Deus, então ela se submetia àquilo pra ter o gosto de dizer pra si que se entregara ao seu homem? E ele a fodia naquela espelunca, e que vergonha não tinha quando sentia sobre si os olhos do dono que a media de cima para baixo como se fosse uma prostituta, com olhos maldosos e com desprezo, até que engravidou e chegou mesmo a ficar alegre com isto, como se um filho fosse lhe garantir o lar, uma casa sua e um quarto seu, seu e dele, que seria um bom pai, viu? E lembra que ela mesma lhe disse isto: sim, Roberto será um bom pai, e ela queria ter pelo menos uns cinco filhos, dois meninos e três meninas, ou melhor, um menino e três meninas, porque menino dá mais trabalho, é mais solto e difícil de controlar, entende? Sim, Marlene, eu entendo, mas veja, Roberto não queria filhos, porque, como ele mesmo lhe disse, crianças não faziam parte dos seus planos, e quem poderia garantir que os filhos seriam mesmo dele? E ele disse isto, Marlene, como se você o tivesse ofendido, veja só, como se você mesma fosse culpada, e mais culpada ainda por não entender que ele era um homem livre, dono do seu nariz, mas que não se preocupasse com isto, porque ele não a deixaria na mão numa hora dessa, que ele não era nenhum mal caráter, e veja, Marlene, que ele se predispôs a levá-la a uma fazedora de anjos que havia ali na Liberdade, que não se preocupasse, porque ele já a conhecia, conhecia muito bem, de forma que só precisava arranjar o dinheiro, porque nisso ele não podia fazer nada, porque, você sabe a situação em que ele se encontrava, há tantas semanas desempregado, mas ele lhe garantiu, viu? que estaria lá, e você tão bestinha Marlene, tão bestinha que só fez mesmo baixar os olhos e chorar, sentindo vergonha de si mesma, como se a culpa de tudo fosse só tua, minha querida, venha, sente-se aqui comigo no banco desta praça, e me diga porque você não me procurou, Marlene? E por que inventou de tomar aquele remédio, por que não tinha dinheiro? Mas, querida, que dinheiro custa a sua vida? E, lembro-me como hoje da correria, sua mãe desesperada, você passando mal, e ninguém sabia o que era que você estava sentindo, Marlene, e levaram-lhe ao Hospital Geral onde você ficou quase duas horas sem ser atendida, que precisou seu irmão Valtinho ameaçar quebrar tudo pra que aparecesse um médico, mal encarado, que violou sua intimidade, 29
com aquelas mãos bruscas e descuidadas, e que depois fez aquele comentário maldoso na frente da sua mãe, “que você quis matar seu filho”, que Deus tava dando o troco e que se você morresse a culpa seria sua, que ele lavava as mãos, que as mulheres hoje em dia estavam todas mesmo perdidas, que você não poderia ficar ali, por que não tinha leitos vagos nem pra mulheres honestas, e que ele, enfim, ia pra casa, porque já não estava aguentando mesmo toda aquela sujeira, que a merda do salário que recebia não justificava ficar ali perdendo tempo com mulheres de má vida, e, Marlene, você saiu do hospital naquele dia querendo morrer, e não é que quase conseguiu realizar seu desejo? Porque seu pai não podia entender que a filha dele tivesse dado assim pra coisa ruim, e foi a muito custo que o impediram de lhe surrar naquela mesma noite, mas ninguém pôde impedi-lo de descarregar sobre você aquelas palavras pesadas que até hoje carregas contigo, minha querida prima, mas onde? E olhando esta cidade, nesta noite calma e quieta, eu pergunto: aonde que você se meteu, meu anjo? Por que não suportou mais viver sob o peso da vergonha? Por que sabia que já não pertencia mais a nenhuma família, porque era suja, porque era uma assassina, uma puta? E foi embora sem nenhum aviso, e fico pensando sem compreender a razão de nunca ter-me procurado, se sempre fomos como irmãs, desde pequenas, correndo pelas ruas, pelas areias, brincando e sonhando e construindo nossas casas que hoje parecem desfeitas para sempre – e és tu, mulher, que olhas para a cidade noturna com este olhar noturno e este coração de sombra e treva, pensando que talvez também um dia precises partir, mas como, se nem idade para isto tens mais, minha velha? E, com todos os teus filhos que já estão por aí se esbarrando com o mundo, sem garantia de coisa alguma, e sentes teu coração pesar quando pensas que nada lhes pode garantir esta velha mãe, que nem mesmo pode estar perto deles, pois que suas horas enterra no trabalho monótono e cinzento que lhe pesa aos ombros como uma maldição, oh velha inútil, tu também foste jovem e sonhaste com um futuro radioso, porque sabias que não serias jamais igual a todas as mulheres infelizes que conhecias – e aqui estás, parada no ponto do ônibus, igual ou pior que elas, que pelo menos já devem estar mortas. E pensavas nisto quando o ônibus apontou na esquina e parou a custo no ponto, porque quase te jogastes na frente dele, e parou com má vontade, o desgraçado, acelerando, acelerando e quase a derrubando no chão, e tiveste que se agarrar com força na porta e quase destes um jeito nas costas, e isto te fez muito mal, te fez sentir mais miserável e triste, e não te sentistes ainda mais triste porque aquele homem a amparou e a segurou, e lhe disse palavras gentis, e nem sequer agradeceste, e muito mal viste que era um jovem rapaz nos seus 25 anos de idade: alto, moreno, até um pouco simpático com seu nariz fino e olhos castanhos. Carrega nas mãos uma pasta de couro, uma pasta que segura com cuidado, talvez porque seja uma boa parte do pouco que tem aquele rapaz, mas veja que ele parece feliz olhando a paisagem lá fora que passa veloz pela janela, e logo vaga um lugar no banco e o rapaz senta e fica olhando os postes e as nuvens que passam com uma estranha claridade no céu. E que céu é aquele? É o céu da sua infância? O céu que pensou ter perdido para sempre? Sim, pode lembrar aqueles anos em que a lua onipresente o seguia por toda parte, e ele, ainda criança, pensava no mistério daquela luz e tudo era como um grande encantamento: a lua, o mar, as nuvens e uma canção praieira que penetrava todos os seus sonhos, embalando-o suavemente, como num barco que oscila lentamente em alto-mar. O rapaz se sente por um momento passageiro do barco até que seus olhos recuperam o interior sujo e triste do ônibus que sacoleja na pista cheia de buracos e vê que passara mais uma vez do ponto e mais uma vez 30
lamenta a sua distração. Toca o sinal, corre para a porta e desce com um leve constrangimento. Anda pela rua deserta pensando que aquela rua é de fato tudo o que ele tem, mas isto, pensa ele balançando a cabeça levemente com um sorriso, isto é também um exagero, porque, veja, a casa que vê agora diante de si é também sua, e dentro dela há uma mesa velha de madeira, alguns bancos e cadeiras também velhos e a estante com seus livros. Ele gosta de ficar parado diante dos seus livros, como um monarca diante de seu reinado. E os seus livros são tudo o que ele tem de verdade? E neles não pode encontrar tudo o que um homem precisa? Veja aqui, pensa ele, e fechando os olhos pega um volume qualquer ao acaso, abre-o também ao acaso, lê as primeiras palavras que se apresentam diante dos seus olhos: Calmo é o fundo do meu mar; quem adivinharia que esconde monstros brincalhões! E segue os olhos pelas prateleiras, como sombra de um condor deslizando sobre as montanhas nevadas de Torres del Paine. Pensa no primeiro livro que comprou, há muitos anos: um volume de contos de Tchekov. Lembra-se que estranhou aquelas histórias quando as leu pela primeira vez. Elas terminavam de repente deixando-lhe vagos pensamentos e sensações que em vez de se dissiparem, instalavam-se no espírito como algo que sempre fora seu. O jovem rapaz está imóvel, diante da estante muda e silenciosa. Acha triste pensar que os seus melhores amigos são aqueles livros. Por isso resolve sair àquela hora da noite pelos bares, encontrando velhos conhecidos, mas sem nunca se fixar em alguma mesa, pois ele anda ali como um fantasma. Ouça esta canção: o cavaquinho e o violão e essa imensa tristeza e me diga, amor, que esperança pode haver para um homem que não sabe sequer cantá-la? E é este jovem rapaz, silencioso e triste, que desaparece agora por entre as mesas e as cadeiras e as ruas e ladeiras do bairro. Ele se perde dos olhos de uma jovem mulher que, sentada a uma mesa, o vê distanciar-se com um sentimento de aguda impotência. Ela acreditou ter visto nele algo que não estava presente ali, entre seus ruidosos companheiros. Lamentou não o ter seguido, porque pressentiu que ele a tomaria pela mão e a levaria para ver o mar noturno, e sentariam no passeio, e falariam de coisas realmente sérias e importantes, como as estrelas e o mar, e as estrelas-do-mar, e os cavalos-marinhos que habitam as profundezas escuras do oceano – e coisas assim. E agradeceria por tê-la tirado da sua ausência, porque olhar o mar era ver o que havia de mais verdadeiro e misterioso, nela mesma. Por isso baixaria os olhos e, sorrindo, derramaria suas lágrimas – estas mesmas que nublam seus olhos enquanto olha a rua sobre as garrafas de cerveja. Poderia dizer pra si: deixe de ser besta, você não está mais com idade para essas coisas – e acreditaria um dia nas suas palavras e tornar-se-ia cada dia mais uma dessas mulheres descrentes, que, por serem descrentes, tornam-se vulgares; e encobriria sua tristeza e perdas com risos vazios, e tudo isso se poderia adivinhar olhando seus olhos anuviados. Mas, nessa noite, deixaria, porém, seus pensamentos vagarem sem rumo até o rapaz que viu no bar, e pensou que poderia ter saído com ele. Pensou que sairiam andando, de mãos dadas, que ele a levaria até as dunas do Abaeté para ver a lagoa à noite, e ela iria sim sabendo que venceria sua timidez, que tocariam suas mãos, que ele passaria suas mãos sobre os seus cabelos lisos, que beijaria levemente seus lábios, que encostariam seus corpos com o prazer vivo e palpitante, que tiraria a sua blusa e levantaria o vestido e deitarse-ia sobre as suas próprias roupas estendidas na areia, que beijaria seus seios e diria palavras carinhosas, feliz consigo mesmo, e ela se deixaria penetrar olhando o céu, sentindo aquela estranha e inesquecível sensação de liberdade. Ficariam mais alguns minutos até que, passado o clímax, refletiriam que o lugar já não era 31
tão seguro, que deveriam sair dali rápido e correriam pelas ruas, rindo, sujos de areia, mato e amor – mas o rapaz a chamava, e ela sequer lhe tinha dito o seu nome! Olhou para o jovem na cadeira ao lado e viu um outro rapaz bem vestido e pensou que poderiam ir a um motel, que seria mais seguro, mais confortável, e ele segurava sua mão agora com força. Faltava-lhe delicadeza, pensou, e bom humor. Como admirava essa qualidade nos homens, sentiu, e pensou que o homem de seus sonhos poderia comprá-la apenas com essa moeda: um doce e melancólico bom humor. Ele não precisaria ter coragem e ambição maiores que esta: a de conquistá-la com alegria, com esse misto de alegria e tristeza que tornam uma pessoa humana. “Meu rapaz, pensou, poderemos fazer muitas coisas, como correr sob a chuva numa noite de tempestade anunciando o fim do mundo, percorrer as ilhas da Baía de Todos-os-Santos com uma velha mochila nas costas, atravessando os mangues com lama aos joelhos, beber em todos os bares e dar uma esticada na zona onde me mostraria por que eu jamais deveria ir lá, dançar quadrilha numa noite de São João e amanhecer o dia amando-nos numa rede, enfrentar a polícia nas ruas, numa passeata em defesa dos direitos-humanos, correr na areia da praia, nadar, surfar, jogar pingue-pongue, assistir filmes catástrofes e policiais noir e filmes de arte, em cinematecas, rir de todos os que nos achariam irresponsáveis, pensar no futuro: num filho, numa casa no campo, num violão que você tocará cantando uma guarânia na fronteira com o Paraguai, percorrer as estradas deste país sobre caminhões, cortar o sertão num trem velho e sacolejante: café-com-pão-bolachanão, café-com-pão-bolacha-não, veja esse luar que como ele não há refletindo sua luz leitosa sobre as barrancas, as caatingas e as falésias daquela praia no Ceará. Lembra-se? Esta lembrança do que nunca viveu é como uma casinha na beira do mar: as ondas quebram longe, muito longe nesta noite, e as lamparinas nos trazem um cheiro doce de óleo de baleia e o mundo é um grande mistério. Você me estende a sua mão de poeta e chama-me para andar ao léu nesta avenida e contame histórias da sua infância, quando pensava se um dia teria a felicidade de amar uma jovem assim como eu, e achei graça quando disse que lhe dava especial prazer pensar que um dia teria uma mulher nua ao seu lado e que poderia tocá-la com suas mãos, e que, num fim-de-tarde, sentiu, debaixo da chuva (de uma chuva forte), no alto da goiabeira, um sentimento que nunca havia experimentado antes, até que me encontrou. Mas você nunca me encontrou, pensou ela voltando-se para o rapaz ao lado que se inclinou e a beijou nos lábios, e ela deixou – e deixou que a levasse para casa, que lhe tirasse a roupa e a penetrasse ali mesmo no automóvel, onde sentiu um prazer sujo e entrou em casa, depois, e dormiu. E sonhou. E pensou: “O meu sono me faz lembrar Alice no País das Maravilhas, porque, nos meus sonhos, eu também sou como aquela menina curiosa, que se deixa arrastar pela incapacidade de suportar não saber o que há além de cada esquina, de cada árvore na floresta, de cada nuvem – e como Alice eu também não suportaria deixar de seguir um coelho de casaca e cartola com um relógio na algibeira e uns pequenos óculos de metal; e é esta disponibilidade de seguir que me faz ser, que me faz, que me... oh! E aqui me encontro neste quarto espaçoso chorando, porque sei que hoje dei o meu passo definitivo para longe de você e de mim. Posso fingir que estou bem quando meu pai abre a porta do quarto e diz: “Minha filha, que bom que você chegou. Já estava preocupado” – e me dá um beijo no rosto, pensando que sou a mesma filha de ontem. Poderia falar-lhe das suas inquietações e ele diria: “Mas que bobagem, querida”. Ele passaria as mãos nos seus cabelos e no seu rosto e sairia fechando a porta com cuidado. Sairia para a sala e abriria a janela do apartamento e pensaria: 32
“Eu a criei com tantos cuidados, meu anjo, e agora você me deixa assim inquieto”. Ele sabe que seria capaz de morrer por ela, que seria capaz de morrer para que não sofresse nunca, mas isto de nada adiantaria, porque ela não é mais sua. Ou melhor: só agora tem a consciência de que ela nunca fora realmente sua. O homem anda pelas ruas desertas do seu apartamento, porque já não pode mais andar pelas ruas desertas e ele sente ao mesmo tempo uma saudade indefinida de um tempo em que podia andar pelas ruas desertas sem medo de morrer. O homem se sente vazio. O homem abre a janela, no 15o. andar de um prédio, na Graça ou na Barra Avenida, para o espaço amplo das avenidas que lá embaixo se enchem de pontos luminosos que vêm e que vão, e esse emaranhado de viadutos e pontes e tantos ângulos, ocultos, obscuros escondendo sabe-se lá que tipo de sonhos, medos, taras e intenções...
carlos ribeiro é ficcionista, jornalista e professor. Publicou mais de uma dezena de livros, entre eles Abismo (2004) e Rubem Braga: um escritor combativo, a outra face do cronista lírico (2013).
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pedra caindo no poço carlos soares
O camponês Ping se deitara cedo nesta noite. Sentia-se pesado, cansado demais até para conversar com a mulher, como de costume. Vinha com a pele cozida pelo sol das plantações de arroz. Passara o dia ceifando; ele e outros; sequer parara ao meio-dia para comer o mingau e o pão minguado que o filho mais velho embrulhara numa toalha encardida. Só ansiava que o dia acabasse e a noite, um pouco mais amena, chegasse. A testa latejava, os olhos ardiam cheios do fogo solar. As mãos também cozinharam: estavam secas, murchas, quase esfarelavam. Nem as percebia, tal a insensibilidade delas, ao tocar na tigela com sopa de miúdos de rã da janta. A janta não lhe fizera bem, ou piorara o que sentira durante o dia: náuseas, zonzeira na cabeça, tudo à volta rodopiando. – Vou para a cama, murmurou à mulher. – Tão cedo, Ping? – Antes cedo do que nunca... – ruminou, cambaleando em direção à divisória de bambus, separando o quarto das crianças e do casal. Sentado na cama, elucubrando, no meio de uma nuvem confusa de imagens, começou a ver o filme diuturno de sua existência: 1. cabana; 2. plantação de arroz; 3. cabana. Ou uma variação: 3. janta; 2. almoço; 1. café da manhã. Podia variar ainda mais esses elementos: 2. plantação de arroz, sol e almoço; 1. cabana, janta e conversa com a mulher; 3. café da manhã, filho mais velho, toalha encardida. O melhor de suas energias, de seus ideais, podia ser resumido numa simples disposição numérica: 1, 2 e 3! Deitou-se sem puxar as cobertas sobre si. Olhou para a parede, onde estava pequeno retrato de seu avô: orelhas grandes, de abano (como as suas), uma barba rala e branca escorrendo do queixo. Gostara muito do velho, já falecido, seu constante companheiro na infância... Brincavam, rolavam pela grama, ele contava boas histórias, e levava-lhe às vezes para ver as gravuras de livros franceses que o mestre da aldeia traduzia para o chinês. Encantado, também, com as vestimentas de época, imediatamente imaginava-se com aquelas roupas pomposas, brilhantes, peroladas; então, aproximava-se uma rica carruagem e o lacaio, cheio de mesuras (o qual achava “uma mulherzinha, isso sim!”), abria suavemente a porta dizendo: 34
– Pronto, meu nobre! Após, assumia seu posto e fustigava os corpulentos animais em direção a todas as aventuras do mundo. Ele, então, bravo cavalheiro perfumado e limpo, brandindo o florete, chapéu largo com duas penas de faisão, gritava, da janela, para o lacaio: – Até às nuvens! Até o céu! Mais depressa! Mais depressa! Um beliscão dolorido no pescoço trazia-lhe de volta à realidade: – Papai! – Sonhando acordado de novo, seu preguiçoso! Vá buscar água no poço. O poço... Agora se lembrava de que não trouxera a água para o chá da manhã, como sempre fizera, religiosamente, ao vir da plantação de arroz no entardecer. Era uma de suas tarefas diárias, a qual deixara escapar da disposição numérica de sua existência: 1, 2 e 3. Entretanto, era certo que o recipiente de madeira ficara encostado contra ou sobre as pedras do poço, à sua espera, lá no fundo do quintal. Mas ele, desta vez, passara direto, tão atormentado pelo calor, tão desgostoso de sua vidinha de minhoca, que sequer percebera o grande balde, amarrado à corda, escuro, limoso, aguardando que Ping, “o camponês incansável”, como lhe chamavam na aldeia, o enchesse até às bordas com aquele líquido fresco, mantenedor da terra, dos bichos e dos homens. Não podia faltar com suas responsabilidades! Não fora criado dessa maneira. Se o pai ainda fosse vivo, dar-lhe-ia um beliscão memorável. Além do mais, já podia antecipar a matraca da mulher, lá da cozinha: – Ping, seu cabeça de porco, onde está o balde com a água para o chá matinal? Esse homenzinho!... Pulou da cama mais ágil que um esquilo. Estranhou aquela repentina mobilidade: parecia mais jovem, mais atlético, mais forte! Há poucos minutos deitara-se quase sem certeza de acordar na manhã seguinte, esgotadíssimo... Agora, a mente estava inexplicavelmente acesa (seu cérebro estaria brilhando no escuro?), sua vitalidade e ânimo eram os de um adolescente! Caminhou descalço, pisando leve, pois não queria acordar ninguém: havia um bebê em casa, que choramingava ao menor ruído. A luz da lua filtrava pelas frestas das cortinas de junco, na sala, formando bizarras silhuetas e figuras prateadas, conforme o vento as balançava. Ele abriu a porta, calçou as chinelas, ganhou a rua, chegou ao poço, que parecia um monstro silencioso encarando desafiadoramente as estrelas. Debruçou-se na borda, ali estava o balde. Dobrou-se mais sobre o pequeno abismo, tentando ver o fundo da escuridão e, surpresa, a lua estava lá embaixo, refletindo sua imagem como um espelho!... Ping achou graça daquilo: estava aqui encima e ao mesmo tempo lá embaixo: porém ambos pareciam transparentes, irreais (mas qual deles era corpo e qual o ectoplasma?). E, para piorar: o que estava lá embaixo (pode observar nítida e irritadamente) começou a fazer-lhe caretas horríveis, a ofender-lhe com gestos obscenos e olhares provocativos. Ouviu, então, nesse momento, vindo de muito longe, talvez nas cordas do vento suave, a suave voz do avô confortando-o, ressuscitando-lhe a infância perdida, contando-lhe fábulas maravilhosas, mas logo a voz de taquara rachada da mulher dominou aquela: 35
– Reaja, seu cabeça de porco! Vai deixar o miserável Ping do fundo do poço, zombar dessa maneira do incansável Ping do alto do poço? Esse homenzinho!... Em um segundo, considerou toda a situação: certa estava a mulher, não podia aceitar as injúrias imerecidas que vinham lá de baixo, ainda mais de um cabeça de porco como era o miserável Ping! Ele, o incansável Ping, aqui de cima, reagiria imediatamente. Pensou, primeiro, em cuspir naquela cara cheia de caretas: não, reação muito fraca. Jogar o balde? Não. As chinelas sujas de pó? Não. Ah, já sei: uma pedra (“Não uma pedrinha qualquer, ouviu o conselho irritado da mulher, mas uma grande, que cause grande dano no bastardo e o desmanche para sempre!”). Procurou ao redor e logo encontrou uma que servia, que tinha exatamente o seu tamanho. Teve a impressão de ter visto aquela pedra por ali muitas e muitas vezes, mas nunca não lhe dera atenção, afinal, que importância teria para si uma coisa morta? Com inaudito esforço, suando, arfando, a arrastou para perto da borda (mas a pedra, como se estivesse viva, opunha-lhe tremenda resistência!) até que, finalmente, empurrou-a com raiva. Ó vitória! Ó alegria! Ó libertação! O miserável Ping cabeça de porco lá de baixo sumira, evaporara, fora vencido, esperava que para sempre! Esgotado do esforço enorme, notou que suas forças desapareciam, subitamente e, igual ao boneco de pano de sua filha Ysa, no canto do quarto, amoleceu-se, fechando os olhos e encolhendo-se na forma de feto, até que adormeceu com um profundo suspiro... Dias e dias a mulher e os filhos de Ping procuraram por ele, inutilmente. Ninguém o avistara nem nas redondezas nem na estrada principal, que vai dar em Pequim. Sem mais esperança, desistiram das buscas. Então começaram a aparecer os primeiros vermes na xícara de chá...
carlos soares
é baixinho, careca, barrigudo, torcedor do Internacional e com um
fusquinha 69 pra sustentar.
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estranho
claudio parreira
Até os meus cinco anos eu não tinha percebido nada. Havia um muro à minha volta, ninguém falava naquilo, todo mundo me apertava as bochechas e as tias viviam repetindo lindinho lindinho. Daí que achei que eu era isso mesmo, o lindinho das tias. Mas eu via nos olhos dos adultos um brilho estranho, as conversinhas às minhas costas, os risos. Os risos. Muitas vezes, tonto, eu ria junto. Aí eles riam mais ainda, ficavam vermelhos que até as lágrimas escorriam pelos cantos dos olhos. Era muito engraçado. Mas eu comecei a desconfiar de tanta graça. Era bom demais, e eu, no fundo, não me achava tão engraçado assim. Foi aí que eu percebi que eles riam de mim. No início foi uma sensação incômoda, e eu não fiz a menor questão de esconder. Quanto mais eles riam mais eu chorava. Até que minha mãe falou algo que não me tranquilizou, mas me deu a exata noção do futuro: — Não liga pra eles. Vai ser sempre assim. Ou você aprende a lidar com isso ou eles acabam com você. Uma constante na minha vida: entrar num restaurante e pedir um bife com fritas era um escândalo. Os outros me olhavam de lado, alguns me repreendiam abertamente, uns tantos riam e riam. A frase da minha mãe sendo repetida mentalmente, dia após dia. Comprar uma calça era difícil, eu precisava mandar fazer. Assim também com as camisas. Os sapatos eram raros. As coisas mais idiotas do cotidiano exigiam de mim duplo esforço. A única coisa fácil era a minha indignação. — Pai, quero te apresentar uma pessoa — falou a minha primeira namorada. O sujeito olhou pra mim, a boca aberta, os olhos arregalados de susto. — Isso aí? — ele perguntou. — Você tá namorando isso aí? No mesmo dia o namoro acabou. E não foi por falta de amor; ela não merecia passar o que estava passando ao meu lado, uma humilhação atrás da outra. Ela não precisava disso. Estou sozinho hoje, bem mais velho do que eu imaginava, e mamãe já se foi faz tempo. Dela guardo apenas um retrato e a frase que me situou no mundo. Não sinto mais raiva, nem ressentimentos, vivo apenas, da melhor maneira possível. O tempo me deu a sorte de saber que não é fácil ser humano neste mundo de cavalos. claudio parreira é escritor e jornalista. Foi colaborador da Revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, entre outras publicações. Teve contos incluídos em diversas antologias e premiados em concursos literários. É autor do romance Gabriel e da recém-lançada coletânea de contos Delirium. Mora em São Paulo e mantém o blog ppc!
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a insustentável leveza do elefante delfin
Atenção, muita atenção! Eu agora vou falar! Esta é mais uma história de arrepiar. É sobre um paquiderme, muito obeso por sinal, que queria perder peso para se sentir o tal. Então o elefante, que se chamava Blotão, estava ambulante a procurar uma solução. Andava no matagal e evitava cada animal, até que uma fada apareceu assim, do nada. O bicho colossal disse para a pequenina dama que estava descontente: seu tamanho anormal era mais que evidente, pois rasgara seu pijama. Ele estava muito triste. A fadinha, tendo pena, colocou o dedo em riste para nosso amigo, encerrando a cantilena: — Pode deixar comigo! Toda a mata se acendeu num clarão fenomenal. Nenhum bicho entendeu o que era aquilo, afinal. Quando a luz se apagou e todos puderam enxergar, viram com seus próprios olhos, sem, porém, acreditar. O elefante, tão gordão, tinha ficado tão magrinho que pulava folgazão, tal qual um cabritinho. A fada partiu como um foguete, sem deixar nenhum bilhete, deixando rápido a floresta sem conferir a festa. Todo bicho saiu da cama e foi levar o seu presente. O macaco levou o pijama e o peixe trouxe o pente. Mas o leão, boquiaberto, era mesmo muito esperto e viu que tal situação iria deixá-lo para trás, para ser ex-rei dos animais. Pois foi à noite que ele agiu, quando o grande sono caiu. Foi até a tromba do elefante e a assoprou de um jeito cruciante. Tapou o nariz com a rolha e o pobre infeliz subiu como uma bolha, para a alegria do leão, de novo o rei da situação. Quando todos acordaram, a tristeza era geral. O leão chamou a todos para ler um edital: — Eu fiquei muito feroz, mas não quis fazer alarde. Eu tentei ser veloz, mas já era muito tarde. Ficou tão magro o elefante que ele sumiu num instante! Ainda hoje, reza a lenda, e digo para que todo mundo entenda, o elefante nos vigia, toda noite, toda hora, todo dia, para cuidar da nossa alegria. E espia especialmente o leãozinho, que agora vive sozinho, pois, se este arranja uma namorada, ela logo vira uma tomada. Porque esta é a vingança da fada.
Delfin olha para o lado, para ver se nada está errado. Assim, pode atravessar a rua, é a verdade nua e crua. Enfim, fique tranquilo, ele não é nada daquilo. Sim, deixe ele andar a esmo, mas para onde é que ele vai, mesmo?
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gêmeos Para C.
flávia iriarte
05/06/2014 Hoje é o seu aniversário. E o segundo desde que nascemos que passamos sem nos falar. Ano passado (e olha que ano passado talvez tenha sido um ano bom) passei dramática, pensando coisas do tipo Talvez tenhamos nos perdido pra sempre, ou algo como Criamos algum tipo de silêncio bobo que depois ficou maior do que a nossa capacidade de lidar com ele. (Nós, no fundo seres tão imaturos). Neste momento, já penso que meu drama era uma grande besteira, porque pessoas como nós não se separam mesmo que queiram. E que em alguma hora vai pular seu nome no meu whatsapp, com alguma mensagem boba, como se ontem mesmo tivéssemos sentado pra tomar um suco e conversado horas a fio sobre todas as coisas triviais e cheias de intimidade que só entre nós podem existir de forma tão frequentemente simultânea. Volta e meia, vou confessar, escrevo uma carta pra você, às vezes em pedaços de papel dos originais que chegam na editora, às vezes mentalmente apenas, e essa atitude tem uma função terapêutica que não sei explicar. Alguém disse, acho que Lacan, que a verdadeira carta é aquela que não é enviada, pois assim realiza sua vocação elementar de se dirigir ao outro genérico (o tal Grande Outro). Você ia achar isso uma baboseira, eu sei, e me olhar daquele jeito tipo Maricota e suas teorias. E então eu iria te olhar do meu jeito tipo Mas a teoria não é minha, e então mudaríamos de assunto. Este ano está sendo duríssimo, coisas que só você poderia entender. Ou melhor, coisas sobre a qual o seu jeito de entender é o melhor do mundo, o que mais me faz bem, no qual eu mais me reconheço, e mesmo quando não me reconheço é o mais próximo que alguém poderia chegar da verdade. Às vezes, acho um absurdo que estejamos passando dois anos assim, sem que você me deixe saber nada de você, sem que eu possa te ligar desesperada pra dizer que acabei de me apaixonar novamente. Mas eu sei de você sim, sei que, como eu, 39
você não para de pensar nas coisas o tempo todo e de estragar tudo o tempo inteiro com isso. Especialista como eu em beber do próprio veneno. Mas faz falta você aqui, pra dizer que tudo não passa do fatídico acontecimento astrológico de termos nascido como o Sol em Gêmeos, seres feitos de ar, encetando em todas as direções, iludindo-se na variedade dos caminhos, pra no final terminar no nada, a própria matéria do que somos. E Axl Rose, hein? Não fez mais nada que prestasse, como um bom clichê do rock dos anos 80-90, e Leonardo DiCaprio faz 40 esse ano! Li isso outro dia numa banca de jornal quando ia para a análise e essa notícia me deprimiu mais do que as manchetes da guerra no Oriente Médio e o sensacionalismo da direita brasileira. Estou cada dia mais egoísta, como todo ser humano. Será que, como eu, você também está se tornando um clichê pequeno-burguês, se perguntando por que não casou, se vai ou não querer ter filhos, se tomou o rumo profissional certo, se está valendo a pena a quantidade a de estresse pra ganhar a quantia b de grana, que no final das contas, dá pra morar no bairro c e fazer compras no supermercado d? A matemática da vida burguesa de A a Z. Toda a literatura para, no final das contas, acabar nisso, num clichê maior do que a barriga do Axl. A pós-modernidade transformou mesmo todos os revolucionários em chatolas anacrônicos ou em progressistas sem o menor sal. Ainda não sei em qual dessas lamentáveis categorias fui parar, ou, se, com alguma sorte, fui parar em algum tipo de limbo conceitual. Mas esse papo está ficando chato demais pra você, eu sei. Então deixa eu te contar outra coisa. Entrei no Tinder. Isso, o aplicativo. Você sabe que não sei ficar sozinha. Já saí com várias mulheres e com alguns homens. Acho que foram dezesseis ou dezessete encontros no total. Umas três noites de sexo, alguns cafés constrangedores, uma boa amiga, um namorico e uma paixonite não correspondida. Coitada da minha analista, se perde no meio de tanto nome. Também pudera, mas confesso que isso me irrita. A tal da paixão não correspondida eu já tive que dizer o nome umas seis vezes. Quem é fulaninha mesmo? Foi assim. Estávamos, eu e a fulaninha, saindo há pouco mais de um mês, já tínhamos até ido juntas lá pra Anápolis (saudades das nossas viagens pra lá com os meninos <3) com amigos meus. E uma ou duas semanas depois disso, depois de uma terça-feira em que aconteceu uma festa de comemoração da editora e ela apareceu lá com um buquê de flores, sumiu, não me respondia mais as mensagens que eu enviava por Facebook (nessa época ainda não tinha whatsapp), a não ser de forma muito monossilábica e escorregadia; então, claro, fui lá dar aquela stalkeada básica. E tcharam!, achei ela em um monte de fotos, no perfil de outra menina, uma gostosona que eu já tinha visto passar nas fotos do Tinder, as duas trocando letras de músicas e curtindo tudo uma da outra. Mas tudo bem. Nessa fossa descobri que adoro música sertaneja. Gosto mesmo, juro que não é essa palhaçada multiculturalista de ir pra festa no Vidigal pra dizer que relativizou sua condição classe média. Já até comprei ingressos para o show que vai ter da Paula Fernandes no Vivo Rio. Quando a chuva passar, quando o tempo abrir... Você, melhor do que ninguém, sabe o quanto é bom descobrir uma parte sua que aparentemente destoa de todo o resto. Dá uma sensação libertadora de que, de repente, você pode explodir essa consciência e ir morar dentro de uma outra pessoa sem sair do próprio corpo. Imagino, novamente, que você diria que isso tem a ver com a nossa condição de ar, matéria invisível, se espalhando sem limites por aí com a velocidade do pensamento. 40
Tá vendo? Já estou me sentindo melhor. Escrever pra você tem mesmo uma função terapêutica inaudita. Não importa onde você esteja, quem seja no momento, em que cidade more. Basta a sua imagem, a sua referência, que o seu nome continue pronunciável, para que, falando pra você, eu seja capaz de mandar aquela tristeza, que um dia a gente viu que é nossa, embora. O ar, mesmo invisível, está sempre aqui. Te amo. Beijos, F.
flávia iriarte é sócia-fundadora da Oito e meio, editora focada na publicação da literatura brasileira contemporânea. Já editou mais de setenta livros e escreveu um. É geminiana, nascida em 25/05/1985, às 19h55.
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sim, senhora gláucia lemos
Olhou para dentro do quarto, durante alguns segundos. Depois foi até lá fora, abriu o portão de ferro e retornou. Deitou na mesma cama ao lado do morto, ficou até o amanhecer. Mas não dormiu, permaneceu olhando o telhado, como estava acostumada a ficar todas as noites, enquanto ele roncava ao lado dela. Tinha sido sempre assim, havia longos anos. Ele roncava, cheirando a pinga, a barba emaranhada recendendo a charuto barato, enquanto ela velava, de olhos para o teto. Velava a própria solidão, tomando conta dela como se fosse uma filha. E era uma filha daquela união, a solidão alimentada com a amargura silenciosa dos dias e com a sacrificada secura das noites. Pois, ali estava ela, velando a mesma solidão, ao lado dele. Só que, daquela vez, ele não roncava, não podia mais. Nem podia mais atravessar o braço por cima do seu tronco, com o poder e a força do domínio, para se esparramar com o que restava das noitadas entre as quengas do cabaré de Diodete. A madrugada não tardou. Ela a viu chegar convidando-a pelas frestas do telhado, em pequenos pontos que se infiltravam. Depois, o galo do quintal acordou o silêncio com o ruído abafado das asas, e cantou três vezes, e os outros galos responderam, lá nos quintais da vizinhança. E antes que o bem-te-vi “bem a visse “, no beiral da casa, como todas as manhãs, levantou-se e não olhou mais para o que restava dele. Da janela da cozinha, chamou o negro. – Altino! Tá dormindo, Altino? – Senhora! – Vem cá. – Senhora? – Tem um homem morto em minha cama. – Tem? – Tá vendo o portão aberto? – Tô sim senhora – Foi por ali que o assassino fugiu. Você viu quando ele fugiu, não viu, Altino? – Sim, senhora! – Leve o finado nas costas antes que o dia clareie, e dê sumiço. – Sim, senhora. – Enrole bem enrolado em duas esteiras, e dê sumiço. 42
O negro não saiu de perto dela. – Que foi, Altino? – Né mió butá dento de um porrão? – Tá bem. Bote dentro de um porrão e tampe a boca bem tampada – Sim, senhora. – O maior porrão que encontrar na olaria da fazenda. – Sim, senhora. O negro saiu. Voltou carregando um porrão enorme. Era um negro pequeno e largo. Tinha as pernas entroncadas como toros de coqueiro. Os pés cascudos, de calcanhar rachado, as mãos grandes, onde dedos grossos e nodosos pareciam feitos de barro cozido. Ela não entendeu como ele agüentava o peso daquele porrão, quase maior que ele. Entrou no quarto, demorou-se. – Anda com isso Altino, antes que o dia clareie. – Sim senhora. Saiu logo depois. Equilibrava o porrão sobre as espáduas, o pescoço grosso encurvado, como costumava carregar os caçuás de manga-rosa. Parou na porta da cozinha, antes de sair. – Senhora? – Que é. Altino? – Né bom levá os pano da cama? Tá tudo lá daquele memo jeito. – Pode deixar que eu cuido. – Sim senhora. O negro saiu. Atravessou o portão de ferro que ela deixara aberto. Desceu os degraus, venceu a área frente à casa, até alcançar a porteira da fazenda que abriu sem dificuldade, e se foi com o porrão sustentado em cima das espáduas. Os braços curtos, estufados de músculos, sustentando o peso pelas laterais. O dia nem tinha clareado de todo. A mulher voltou para o quarto e apanhou os panos amarfanhados que estavam na cama. Exalavam cheiro acre de suor e aguardente. Fez uma grande trouxa. Em seguida saiu a caminho do quintal e se embrenhou entre as árvores e os arbustos que se cruzavam na farta vegetação. Pegou a enxada que estava encostada ao cajueiro e começou a escavar um fosso. Com esforço, a enxada feria a terra preta umedecida de orvalho, e voltava carregada, como se a terra vomitasse a sua própria substância. Abriu a trouxa e, na cova, sepultou um a um, os lençóis que trouxera. Olhou-os longamente. Era como se deles viesse ainda o cheiro ardiloso do suor do homem e do seu próprio suor. A morrinha das secreções do macho bruto e infiel. Sensação de náusea. Nojo misturado a rancor. Então, voltou-se. No quartinho próximo havia querosene e fósforos. Os olhos da mulher tinham um brilho de volúpia enquanto esvaziava a garrafa de querosene em cima dos panos, jogando sobre eles o fósforo aceso. O fogaréu subiu de dentro do buraco. A fumaça cheirava a cio e a carne sangrenta. Cheirava 43
a cuspo e a sangue e a dor. E subia cinzenta, espalhando-se por entre os galhos dos cajueiros e tisnando os jenipapeiros nas suas folhas largas. Quando o fogo acabou, retomou a enxada e devolveu toda a terra para cima das cinzas, até encher a cova. Voltou depois para dentro da casa, com passos lentos e seguros. Suava nas faces afogueadas, passando as mãos repetidamente para enxugálas, pois o sol já queimava a manhã clara. A cozinheira coava o café e amassava o cuscuz de farinha de milho. – Josina! – Senhora? – Desarme a cama daquele quarto e leve as peças para fazer a fogueira do São João dos peões da fazenda. – Sim senhora. – Hoje! E quando o café estiver pronto me chame. – Sim senhora. Foi para a varanda e espichou-se na rede. Com olhos vagos, demorou-se no casal de rolinhas que bicava grãos de areia entre as pedras do chão. Graciosas, doces, um casal. O negro retornou. – Senhora? – Pode dizer, Altino. – Já dei sumiço. – Onde deixou? – No rio. – Retirou a tampa? – Tirei sim senhora. – Encontrou alguém? – Não senhora. – Então pode ir cuidar do seu serviço. – Sim senhora. – Meu café, Josina? – Tá pronto, senhora. Sentou-se à cabeceira da mesa comprida da sala. O cuscuz fumegava brilhando de manteiga e requeijão derretido. A xícara cheirava a café torrado na hora. No fogão, o negro esticava o braço com a caneca de alumínio para a cozinheira encher de café. – Altino! – Que é, Josina? – Deu sumiço no quê? – Num porrão grande. – Tinha o que dento? – Uma pução de mulambo. – Oxente!!! Pra dizê que a patroa indoidou de onte pra hoje? E foi pela viage do patrão... Vai vê porque ele nunca viajou, só saía pra se fretá mais as quenga de Diodete... Mulé qui só fica com home den’de casa, é assim... No quele viajou ela indoidou. Mais foi dipressa dimais. Mandou queimá a cama... Já se viu? 44
– Rum... – Eu nem vi conde ele saiu. Foi de cavalo? Tu viu? – Hum-hum... Silêncio demorado caiu na cozinha. Só se escutava o ruído que a colher fazia arranhando o fundo da caneca do negro que mexia o café. – Altino? – Qui é agora, mulé? – Donde tu jogou o porrão grande? Silêncio e... – Bote mais açuca no meu café.. A mulher chamou o negro. – Altino? – Senhora? – Ferra duas crias gordas com tua marca. – Sim, senhora. Qual é as cria? – À tua escolha. – Sim senhora. – Tu mereces, negro fiel. A mulher chegou ao galpão e estranhou o negro preparando o ferro. Ao lado, meia dúzia de crias grandes bem cevadas, estavam à espera, para serem marcadas. – Altino? – Senhora? – Quantas crias te mandei ferrar com tua marca? – Duas cria, senhora. – Juntaste seis crias. Sabes contar, negro? – Sei contá, sim senhora. – E então, Altino? – O porrão dos mulambo tava muito pesado. Os mulambo pesava o peso de seis cria, senhora. Se a senhora quisé, trago o porrão de vorta, com tudo o qui tá dento. – Deixa o porrão lá mesmo, Altino. Deixa o rio levar. – Sim senhora.
gláucia lemos publicou 5 romances, várias obras de literatura infanto-juvenil, 2 livros de contos. Premiada em romances e literatura juvenil, pertence à Academia de Letras da Bahia. “Sim, senhora” integra a obra inédita Todas as águas.
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minha pequena Aos dândis pacifistas de O Clube do Cinema
herculano neto
Deus não fez o homem para envelhecer. Envelhecer é um erro, no entanto só descobri isso quando percebi que eu tinha envelhecido. Não foi de uma hora para outra, o processo foi gradativo, mas eu fingia que não me incomodava (não questionei a natureza até a natureza me questionar). Não me considero tão jovem quanto um jovem, esse papo de que a idade real está na mente é furado, pra vender livro. Sou o melhor amigo das minhas limitações e não tento enganá-las, na melhor das hipóteses sou menos velho do que outros velhos. Não vivo cheio de dores nem deixo metade da minha aposentadoria na farmácia, não ando reclamando da vida nem começo meus raciocínios dizendo “no meu tempo” ou “antigamente” (meu tempo é agora, mesmo sendo um velhote). O aumento da expectativa de vida na sociedade moderna não deveria ser festejado pelos governantes, é um entrave ao progresso, uma quimera. Certamente, se ainda fôssemos nômades há muito eu teria ficado para trás, e não teria me importado. Velho que esqueceu de morrer não merece apreço. Todos acham simpático velhinhos caminhando no parque, mas quem quer ser um velho caminhando no parque? Minha Pequena e eu não vemos graça nenhuma nos que ficam na Praça da Piedade vendo a vida dos outros a passar (não quero piedade, quero respeito). Gratuidade, atendimento preferencial e estimulantes sexuais não são soluções, são paliativos. Entrar no ônibus sem custo é pegar carona no bonde para o inferno — faço questão de sempre pagar minha passagem, mesmo que insistam no contrário. Também não quero terminar o que ainda me resta de vida num asilo, com um monte de velho esclerosado, ou jogando cartas ou relembrando as glórias de um pretérito imperfeito. Não há nada que eu mais deteste do que velho. Por isso juntei alguns caraminguás. Pouco, mas o suficiente pra não depender da boa vontade de ninguém. Não tenho interesses no mundo, apenas Minha Pequena. Nossa cumplicidade é a única coisa que resiste para mim, nada mais. Encontrei Minha Pequena no melhor momento da minha vida, durante a ditadura militar. Trabalhávamos no Departamento de Ordem Política e Social, o dops. Ela era jovem, estava iniciando a carreira; eu já era rodado, era cria do Estado Novo. Queriam que eu trabalhasse com outras, mas prestigiei Minha Pequena e não nos separamos mais — nos entendemos desde o início. Ela era discreta, desapercebida; conseguia se infiltrar com facilidade e sem levantar suspeitas. Foram 46
bons anos, desbaratando muito aparelho pelo interior do Brasil e derrubando muito estudantezinho metido a terrorista por aí. Naquela época, Minha Pequena ria bastante, gargalhava. Éramos felizes e sabíamos. Agora ela vive calada e no canto, talvez se arrependa de ter dedicado sua existência a um velho que não a satisfaz. Fico mais triste por ela do que por mim, eu já sei que não tenho escolha, minha estrada não tem volta. Minha Pequena não, ela ainda tem muita lenha pra queimar. Gostaria que ela sorrisse mais, que mostrasse toda sua felicidade. Seu sorriso sempre foi meu combustível. Disse que não envelheci de uma hora pra outra, que envelheci gradativamente. Só que um trombadinha, desses que infestam o centro e a orla da cidade, ontem tentou roubar minha medalha. Ele se aproximou sorrateiramente, sem eu me dá conta, logo eu que não me deixava ser surpreendido, e me encurralou, me ameaçou, me empurrou na calçada, mas não conseguiu. Fiquei ajoelhado na avenida observando minha corrente partida no chão, enquanto alguns populares se aproximavam numa mórbida curiosidade. Antes de tentarem me ajudar, me levantei acabrunhado e impotente, dispensando o desnecessário auxílio de estranhos. Minha Pequena até pensou em sorrir, porém ela não sorri mais, a última vez foi no subúrbio ferroviário, quando um mendigo tombou na nossa frente. Desde então, não houve outra oportunidade, talvez até tenha acontecido, mas não deixo Minha Pequena rir à toa. Não queria admitir, mas esse infortúnio me deixou abatido. A realidade tinha dado um tapa na minha cara. Eu, que sempre fui temido, agora não era ninguém. Estava no mesmo barco que os leprosos, doentes mentais, presidiários, pedófilos, deficientes físicos, malditos, inteligentes e solitários em geral. Dos “esquecidos” nos asilos aos indigentes nos necrotérios. Dos renegados aos deportados. Definitivamente, eu era mesmo um velho. Definitivamente, eu não era um bom lugar. Foi uma noite insone: apaguei e acendi o televisor várias vezes, folheei desatenciosamente o mesmo livro, vaguei de um lado ao outro da casa, recordei sem saudosismo grandes aventuras, busquei o lado mais frio do travesseiro e não consegui adormecer, nem por um instante. Da janela, observei a cidade dormir: nenhum táxi, nenhum trottoir, nada. Não, o resto dos meus dias não seria assim — isso eu não permitiria. Pensei em fazer uma surpresa para Minha Pequena, dar uma última alegria a ela e não deixá-la cansada e envergonhada; envelhecendo sem paixão. Se for pra acabar, então que seja em grande estilo. Antes do amanhecer, já me barbeava com vagar, me detendo nos escaninhos da face: as marcas da minha história. Coloquei meu único terno, lustrei com esmero os sapatos, beijei meu crucifixo e preparei um café forte. Depois, peguei Minha Pequena e a levei para dar uma volta, espairecer as ideias. Passeamos por nossos lugares favoritos, só que a cidade está irreconhecível, muito suja e feia, nem se parece com a cidade que escolhemos para viver. Cheia de vagabundos, de drogados, de prédios deselegantes. Alguém devia dar um jeito nisso; alguém com farda, não burocratas de boutique. Após caminhar sem muito sentido, entrei no banco facilmente. O segurança me recebeu com um sorriso cordial e destravou a porta eletrônica ao me ver atrapalhado com todo aquele bip bip infernal. Demonstrou interesse em ajudar, apenas agradeci — ele ainda não sabia, mas não era seu dia de sorte. Velho não enfrenta fila, mas não seria necessário mesmo. Abri minha valise calmamente. (Envelhecer é um erro). Minha Pequena estava lá: brilhante e impávida. (Envelhecer é uma quimera). Segurei-a com força. Ela gosta quando eu a aperto, gosta da minha mão ansiosa. 47
(Envelhecer é um entrave ao progresso). Era hora de sorrir novamente. (Deus não fez o homem para envelhecer). Apontei Minha Pequena pra cima e disparei duas vezes, observando satisfatoriamente cada expressão de desespero a se desenhar na face dos clientes da agência bancária federal, no centro da cidade, onde recebo minha aposentadoria.
herculano neto
é poeta, contista e letrista. Seu último livro é Salvador abaixo de zero (2012). Possui canções gravadas por Raimundo Fagner, Alcione, Roberto Mendes, entre outros. Mantém o blogue Por que você faz poema? - herculanoneto.blogspot.com
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sete-e-meia Para Daniel
jd lucas
A mãe diz que o Sete-e-meia agora está num lugar melhor mas eu duvido muito que tenha um lugar melhor do que a laje do seu Mariano, onde a gente subia pra ver o céu quando ficava de noite. Enquanto eu olhava as estrelas tentando juntar as constelações, o Sete‑e‑meia ficava mirando os buracos entre elas, dizendo naqueles espaços negros ali tem um monte de coisa que a gente não conhece. Às vezes pingava uma estrela cadente e cada um fazia o seu pedido. Uma vez o Sete me perguntou se eu tinha pedido o quê, e eu disse não posso contar porque senão não realiza, e ele ficou insistindo e eu tive que inventar uma mentira dizendo que quem sabe do pedido do outro morre, e ele riu e me perguntou assim mesmo de novo mas eu não disse e os dois ficaram calados ouvindo o cri cri dos grilos. De vez em quando fazíamos plano de fugir pra conhecer a cidade e o cinema só que na hora acabava desistindo com medo de tomar uma surra. Um dia ele me acordou chamando desesperado pra mostrar uma coisa que tinha acontecido. A mãe não estava e ele me levou até a rua de cima onde tinha estourado um cano grande e a água tinha formou um lago fundo e largo onde as pessoas estavam tomando banho na maior alegria. Como não sabia nadar, o Sete ficou lá só olhando os outros, com um sorriso curioso, querendo mergulhar também, mas com medo de se afogar. Eu já fui pulando de bombinha pra espirrar água em todo mundo! Nadei a manhã inteira e quando chegou a hora do almoço e o pessoal foi pra casa o Sete me chamou pra ver uma coisa do lado de fora. Pediu pra eu esperar só um pouco e me mostrou o céu aparecendo clarinho na água. O azul, as nuvens, um pássaro, tudo igualzinho! Achei bonita aquela visão e insisti pra ele dar um mergulho comigo, que um só não fazia mal e ele me olhou daquele jeito esperto dele e disse que sim. Um dois três e já! Demos um pique e caímos feito bem do alto, como se estivéssemos mergulhando no céu. Depois saímos dali batendo o queixo de frio e sorrindo muito de felicidade e aquela foi a última vez que vi o Sete-e-meia. De tarde ele foi atropelado por um 49
ônibus desses que acabaram de chegar por aqui e agora a mãe está me contando isso e eu estou chorando. Não adiantou nada naquele dia eu não contar o meu pedido pra ele porque assim mesmo ele morreu. Desconfio o Sete ter pedido pra ser astronauta porque ele adorava o céu e as estrelas e a Lua, mas não conseguiu realizar o desejo se foi isso mesmo que ele pediu. Já eu, da próxima vez que vir uma estrela cadente vou desejar que meu pedido daquela noite não seja realizado, porque eu pedi pra viver até cem anos igual o vovô vive, mas se eu ficar adulto até isso tudo, quando chegar no céu vou ser muito velho e não vou conhecer mais o meu amigo Sete-e-meia.
jd lucas
é autor de José e da série Novelas Extraordinárias (Móbile Editorial), editor e pesquisador em Mitologia. Bloga em monomito.org
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pedrojó e o ferabesta joão vereza
Larga a caneca, deixa a enxada, dispensa a louça o livro o cochilo. Solta o que traz na mão, não é momento do que fazer. Ouça, vem do curral: Pedrojó vai tentar montar Ferabesta. O Orfanato escutou e se agitou feito um vespeiro. A orfanada pisou pela escada, correu pelo salão. No terreiro eles apostaram quem ia vencer: garoto ou alazão. E já no curral nas tábuas do cercado. Juntaram inteiros se batendo se implicando, arrumando lugar pra sentar. A cerca lotou de criança igual pé de manga pingado de fruta. Pra testemunhar e depois espalhar do embate entre o potro e Pedrojó. E o garoto girando lento no centro do curral. E Ferabesta trotando em círculos pra guardar distância. Pedrojó um meninote: peito mirrado aberto no sol, a cabeça preta portuguesa, os olhos dum verde astuto. Acompanhava o potro dando volta. Rodava o laço com punho de domador. Ferabesta atestava irritação. Bateu a perna na terra, remexeu a crina e o focinho, gritou um bufo que fez a meninada aplaudir. Potro novo tinhoso esse potro, tudo de investida ele derrubou. Nem Tio Gil, nem Dom Capataz, homem grande nenhum conseguiu lhe botar sela. E Pedrojó, que busca metido de novo com o cavalo diabo? Pois veja a marca no peito do menino, marca de casco na altura do coração. Ontem ou anteontem quis passar laço em Ferabesta e de lembrança ganhou uma coiçada. Agora a órfãnada no curral em expectativa. Olho de Pedrojó no olho fogo do potro, vai saber quem dobra quem. O laço voa. Arregaça no ar e cai de primeira no pescoço do animal. Pedrojó puxa e aperta a corda. Ferabesta coiceia, chicoteia, espalha poeira. A platéia grita e o sangue sobe. O menino finca o pé e dá conta da força: comigo ninguém cresce, sou sozinho livre sou Pedrojó, rei do Orfanato no Meio do Mato. O cavalo aos poucos foi cansando foi aceitando. Pedrojó se aproximou, constante e corajoso, sem pisar na sombra do potro. Estalou o beiço, acalmou o bicho. Transformou a corda no pescoço em nó de cabresto. A platéia arregalou a atenção. Pedrojó impulsionou para subir. Entre a criançada não se ouviu um vento. O menino montou e montado insistiu em ficar. Ferabesta saltou que nem perereca mas não o derrubou. Pedrojó se segurou que nem carrapato e não caiu. Os dois um peão confusão, pulando rodopiando, bailando pra decidir quem agüenta. Até que o bicho praguejou e vacilou, perdeu energia. O menino se ajeitou e assentou, conquistou a montaria. Salve salve Pedrojó, órfão filho de cavaleiro. 51
Então do meio dos meninos bobos brota uma garota. Mais alta e encorpada, cabelo queima ruivo, rosto moreno encantado feliz. Encontra espaço na cerca e repara em Pedrojó clara como a lua olha pra terra. Vê e acha graça no garoto de pose no potro. Garrote fingindo que é homem, filhote se achando garanhão. Ele a percebe e desconcerta. Ela joga um beijo, beijo maroto beijo gostoso, que o atravessa na marca cascuda do coração. Pedrojó gagueja de surpresa. Ferabesta desperta. Dá-lhe um pinote que decola o pirralho feito galinha batendo vôo. Ele cai de nariz e mastiga da terra, a órfãnada gargalha que se pela. Pedrojó se levantou vermelho. Com a vista estrelada viu a garota provocando. Com o ouvido latejante ouviu a meninada mangando. O potro relinchou vitorioso, o menino tirou a terra do corpo. Tocaram uns sinos dentro dele, algo que só surgia em sonho. Quis saber mais dessa arrebitada que o desequilibrou. Era Ana Maiana.
joão vereza, 34 anos, é carioca e mora em São Paulo desde 2006. Redator publicitário, foi vencedor do Prêmio Sesc 2012/2013, com o livro de contos Noveleletas (Record), este também finalista do Prêmio Jabuti 2014.
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o viúvo de engenheiro passos leonardo villa-forte
No auge do pileque, Argemiro decidiu voltar pra casa. Cambaleante, chutou sem querer um dos calcanhares, afundou o chapéu na cabeça e agradeceu o apoio dos compadres. Acenou em despedida, pegou a beira da estrada e tomou o rumo do sítio, num andar trôpego pela noite fria. Fazia quase uma semana que Argemiro não era visto pelas ruas de Engenheiro Passos, cidade à beira da estrada, com mato, igreja, boteco e praça. Argemiro não aparecia desde aquela noite em que voltou do trabalho e encontrou Lurdes no chão da cozinha, os olhos abertos, o coração quieto. Nos dias seguintes à morte de sua mais querida doceira, Engenheiro Passos se fechou num silêncio cabisbaixo. Cada um com sua parcela de dor. Quem mais preocupava era o viúvo, trancafiado em seu sítio a semana toda. Corpo maciço de ajudante de pedreiro, à caminho de casa Argemiro tentava conter as pernas trêmulas e a cabeça vacilante. Que má ideia brindar à vida com cachaça. Toda aquela tristeza dentro. O peito estufava e as costas arqueavam. Falava no nome de Lurdinha. Os olhos duros seguravam o choro. Não faltava muito chão quando ouviu o cacarejar das galinhas e o guincho dos porcos. Apressou o passo, redobrou a atenção. Uma luz em meio ao escuro atingiu sua retina com força. Era a lâmpada acesa na varanda dos vizinhos. Parou na cerca, espiou. A luz brilhava na noite feito Lurdinha brilhava em sua vida. A luz continuava, sem ceder. Não deixaria Lurdinha se apagar, pensou. E ficou ali, matutando. Argemiro ouviu um barulho de gente pisando em grama. Aos poucos foi se tornando mais nítido. Endireitou-se, não queria dar suspeita de que chorava. O vulto começou a se destacar das sombras. Rosângela apareceu com uma cesta vazia e uma vassoura nas mãos. Vinha do galinheiro e do pequeno chiqueiro que Argemiro, anos atrás, ajudara a construir. Do portão, Argemiro observou que o corpo da mulher não era esguio como antigamente. Rosângela já passara dos quarenta. Mas as curvas recheando a camisola clara faziam um contraste bonito com a noite escura. O cabelo 53
desalinhado continuava com vida. O jeito de andar era o mesmo... não é que lembrava Lurdinha? Rosângela chegou à varanda, parou por ali, lançou uma mirada pelo terreno em busca de quem tirara o sossego dos seus animais. Avistou Argemiro apoiado na cerca. – Argemiro! O que foi, homem, bebeu de cair? Calma lá. Rosângela se aproximou, os braços cruzados sobre si como se de repente sentisse frio. – Não fique aí todo apalermado. Tá voltando do bar? E o Expedito, cadê? – No bar ainda. – Já vi que volta tarde. Entra, você precisa de um copo d´água. Argemiro estancou: e agora? Quando viu, Rosângela já ia na direção da casa, um caminhar cheio de certeza de Argemiro vir atrás. O homem seguiu a silhueta. Era tão semelhante à de Lurdinha. Entraram. Viu o sofá. Pareceu um bom lugar pra cair, o corpo pedia pra relaxar. Quando Rosângela retornou com a água, bebeu o copo inteiro com fervor. Pediu mais um. Rosângela trouxe a garrafa. Serviu outro copo, sentou na poltrona ao lado do sofá. Argemiro foi bebendo devagar. Ao fim, baixou a cabeça. – Saudade da sua irmã. – Também. Não passa dia que não sinta falta. – Quero de volta. – Eu também, Argemiro. Queria ela com a gente. Rosângela umedeceu os olhos, deixou cair umas gotas. Argemiro reparou como ela chorava um choro parecido com o da falecida. – Não é justo ficar sem minha mulher. – O que a gente pode fazer, Argemiro? O homem subiu o olhar levemente e achou que as coxas de Rosângela lembravam muito as coxas de Lurdinha. Levantou do sofá. Apoiando a mão na parede, foi até a mulher, que também se pôs de pé. Os dois se abraçaram. – É muita dor, Argemiro. Envolveram seus braços um nas costas do outro, apertando-se como se após a perda precisassem estar mais juntos. – Sofrimento demais, Argemiro. Às vezes sinto que não dá pra aguentar. Argemiro desceu um pouco os braços. – Eu não aguento. 54
Rosângela sentiu o apertão em suas nádegas e a cheirada na altura dos ombros, perto do pescoço. Empurrou o homem num susto. – Epa, Argemiro. O que você tá fazendo? – Não aguento, você é igual à Lurdinha! Argemiro correu pra cima de Rosângela, de olho naqueles seios cobertos pela camisola clara, um formato tão bonito, semelhantes aos de Lurdinha. Rosângela pegou o copo e deu com ele na cabeça do homem. Argemiro desabou, o topo da cabeça abriu num ferimento. De pé, Rosângela o ameaçava com a garrafa. – Sai daqui, Argemiro. Sai. Senão eu conto pro Expedito. Onde já se viu, desrespeitar assim a memória da minha irmã. Tarado. Vai embora. Cabeça latejando e álcool na veia, Argemiro levantou devagar, estranhando aquelas duas mulheres ondulantes que balançavam garrafas apontadas pra ele. – Vão tomar nos seus cus, suas pilantras! Argemiro bateu a porta da casa com tanta força que se desequilibrou e caiu no jardim em meio a cambalhotas. Rosângela trancou a porta, sumiu pra dentro. Assustados, os porcos voltaram aos guinchos e as galinhas cacarejavam cada vez mais alto. Argemiro se ergueu batendo na roupa pra tirar a grama do jardim que ficara grudada. Sentindo-se confiante no equilíbrio, foi trocando passos até a área do galinheiro e do chiqueiro. As galinhas logo se afastaram, juntando-se todas num grupo amedrontando no canto da cela de arame. Os porcos olhavam Argemiro com curiosidade. Seus ruídos entravam àsperos nos ouvidos de Argemiro, irritando os tímpanos. Catou umas folhas de bananeira que haviam deixado perto e distribuiu‑as entre os porcos. Os bichos se acalmaram. Argemiro apoiou o corpo na mureta do chiqueiro. Ficou olhando os suínos comerem preguiçosamente. Tinha a sensação de que algo havia acontecido. Não sabia o quê, pouco se lembrava. Sua cabeça doía, o corpo pulsava. Fixara os olhos num dos porco comendo. Se bem que esse tinha tetas, era uma porca. Incomodada ao ser encarada assim tão de perto, a porca manejou a folha de bananeira com a boca e virou-se de costas. Argemiro obteve uma vista privilegia de sua traseira. Foi aprofundando o olhar, um olhar embaralhado e concentrado ao mesmo tempo, cada vez mais... De repente, lembrou de Lurdinha. – Lurdinha, Lurdinha. O corpo estremeceu. Uma quentura correu nas veias. – Lurdinha. Só você. Argemiro desapertou o cinto da fivela, deixou as calças caírem. Escorreu-as pelas pernas, tirou a camisa. Passou cada perna de uma vez por sobre a mureta. De sapatos e cueca, entrou na baia da porca. 55
– Lurdinha, meu bem, olha só, vim te fazer carinho. Acariciava a fêmea, falando com voz mansa e terna. Ao ouvir o pisar do homem na palha, a porca se assustara. O fino trato de Argemiro, no entanto, a convencera de que podia continuar comendo sua folha de bananeira sem maiores preocupações. O homem posicionou-se à retaguarda do bicho. Abaixou a cueca. – Argemiro! Ei, que tá fazendo aí? Era Expedito que chegara do bar. Argemiro congelou com o pênis na mão. – Pelado no meu chiqueiro? Que diabo, Argemiro. Tá querendo foder minhas porcas? Recolhe isso aí! Argemiro deu por si, vestiu a cueca e pulou a mureta de supetão, botando as pernas pra correr. Expedito foi mais rápido, lançando o pé na frente. Argemiro caiu de boca no gramado, deixando alguns dentes não tão brancos em meio ao verde. O marido de Rosângela pegou Argemiro pelos ombros e o botou de rosto virado pra grama. – Danado. Se quer foder porca, que crie as suas, não venha se aproveitar das dos outros. É meu sustento. – Ela que me seduziu. – Seu filho de uma égua. – Ela que me seduziu, Expedito! Era tudo o que o bêbado Argemiro conseguia falar. Ouvindo aquela falação, Rosângela estranhou e voltou ao jardim. Espantou-se com Argemiro ainda lá, de cueca e sapatos, engalfinhado com seu marido. – Expedito! O que tá acontecendo aqui? – Tava tentando se aproveitar das nossas porcas. Peguei só de cueca dentro do chiqueiro. Safado! – Deus do céu... esse homem tá louco. – Ela que me seduziu. – Cala a boca, Argemiro! Argemiro tentava se desvencilhar, mas Expedito o imobilizara. – Endoidou – Rosângela continuou dizendo - Tentou se assanhar pra cima de mim, Expedito. Veio pegar, ficou falando besteira. Tive que expulsar da casa. – Como é que é! Foi pra cima de você? E daí fez o quê? – Ela que me seduziu. — repetiu Argemiro. – É o que? Que bagunça é essa, Rosângela! Expedito soltou Argemiro e num segundo estava na varanda segurando o braço de Rosângela, que tremeu de medo. – Mentira dele, Expedito! Veio de desaforo, querendo me agarrar. Não fiz nada! – Olha lá, mulher... não inventa moda pra cima de mim... se te pego... 56
Com os olhos vermelhos de raiva e cachaça, o marido apertava cada vez mais o braço da mulher. – Para, Expedito, Ppra! Tá me machucando. Já disse que é mentira dele. Não fiz nada. – Olha lá, vou confiar, hein, mas tô avisando... – Ela que me seduziu! — esgoelou-se Argemiro, repetindo seu mantra atordoado. Numa corrida, Expedito chegou com um chute nas costelas do homem estirado na grama. – Cala a boca! Vou acabar com você. Rosângela, pega a arma lá dentro. – Não exagera, Expedito! – Tá bom. Pega o porrete. Assim ele aprende. O chute na costela tirou o ar de Argemiro por um momento, mas o fez acordar de seu transe alcoólico. – Pega o porrete, Rosângela. Vai! – Você tá bêbado, Expedito. – Tá defendendo o safado? Vai, mulher! Rosângela apagou a lâmpada da varanda e entrou na casa. Argemiro rezou. Pensou rápido, esperou Expedito se aproximar de novo. Na hora certa, ainda no chão, esticou-se todo numa rasteira que fez seu oponente tombar. Gritando contra o casal de vizinhos, lançou-se em direção à rua e conseguiu ultrapassar a cerca do sítio. Expedito foi atrás. – Volta aqui, covarde! Você não foge, vai levar bala! Na escuridão, rua deserta, Argemiro correu sem ninguém ver pra onde. A estrada era um negrume sem fim. O motorista sentiu um baque na lateral esquerda do carro. Parou metros depois. Viu pelo retrovisor que um dos sinalizadores amarelos no centro da pista estava faltando. Saiu do carro e foi até o local. O sinalizador estava lá. O corpo de um homem o cobria. Um corpo quase nu, de cueca e sapatos. Logo chegou um sujeito corrido. Parou em frente ao corpo, não disse nada. Dava para sentir o bafo de cachaça. Tirou um lenço de dentro do bolso, passou sobre a testa. Agachou-se. – Você o conhece? – perguntou o motorista. – Achava que sim – disse Expedito. Tocou o pulso do corpo estirado. Nenhum sinal. Botou dois dedos no pescoço do homem. Nada. No que agitou a mão na frente dos olhos, o corpo se contraiu. As mãos se fecharam, os olhos arregalaram. – Ela que me seduziu! – o defunto gritou. 57
Expedito levantou pálido. Deu uns passos para trás, retirou o lenço do bolso. O motorista se atirou no chão. Pedindo ajuda, começou a dar socos no coração do homem. Mas Argemiro voltara ao estado anterior. Novamente parecia morto. Daí em diante, permaneceu quieto.
leonardo villa-forte nasceu no RJ em 1985. É autor do livro de contos O explicador (editora Oito e meio), da intervenção urbana Paginário e do projeto MixLit – O DJ da Literatura. Tem contos publicados em revistas no Brasil e na Inglaterra.
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ata da primeira reunião de condomínio depois do arrebatamento löis lancaster
(início do fragmento:) (...) selvagens com a turma das brincadeiras mortais gerou vítimas de até 400 quilos. Que violência, logo de cara! Imagine os rostos babando, sonhando com a traulitada redentora e misericordiosa, para virarem, oh espanto acre, os montões de cadáveres que agora podemos insultar, mas não vale a pena. Esse mês mesmo a gordura escapou da caixa pela hora da morte. Esse mês mesmo, e digo mais: essa semana. Acredite em mim. Sim, acredite, acredite em mim. Miraculosos membros se agitam em seu cérebro para se prender em definitivo às alcinhas da crença em que tudo posso. Salvaria o mundo inteiro, se apenas me deixassem. Na falta disso, exercito jejum à manhã de uma brisa deliciosa em Itapoá, essa mesmo, onde mora Marajoara, o Joá. Frescor, água de coco - mas não posso comer nada. Isso me deixa louco, o primeiro que passar por aqui eu lapido na porrada. Acredita? Pois é. Então vai acreditar. Vai também acreditar em tudo de bom, como quando você disse que as estrelas no fundo são azuis, o vulnerário ilustre derreteu no sândalo queimado ainda ontem em honra de figuras históricas, vazadas na resina verde para erguer e desabrocharse em lustre. Pois é: você disse e acreditou, e eu estava, como sempre, bem do seu lado. Breve, muito em breve, esse crédito vai descuidar um pouquinho pra esquerda e vir a caber a mim! Hein? Não escutou? Eu disse acredite em mim! A turma das brincadeiras mortais era conhecida em toda a redondeza por sua audácia. Seus membros brincavam, jocosamente e a contento, de recombinar as cabeças encolhidas de cadáveres. Consistia de seis: Tonsura, Louçanias, Velínex, Suprassumo Generalizado e sua Sociedade Anônima, Naômina, a princesa ciclope, e Bufurdos, como Hárpias, pousam suas Asas cinzas no Tronco Corcunda junto ao Mar Leporace, que doravante terá conhecida sua tão falada, a alcunha de ‘Maninho’. Eu devo confessar que, como laureado benemérito na Academia Beijofriense de Letras, não me sinto bem em contrariar versões tão bem cotejadas por especialistas em revolver méritos, essas pessoas que enterram suas despesas mas querem te ver bem vivo pra testemunhar qualquer desgraça. Pois que vão lamber sabão e... é, é isso mesmo, lamber sabão. Muito me admira a senhora, Sra. Veronese, que seu 59
cachorro acabou com meu capacho e a Sra., que macacos me mordam e Deus me perdoe, que cangurus me abocanhem sob essa luz que me ilumina se eu dei falso alguma vez de Maninho Leporace. Em nenhum documento dos que fizeram aqueles quando espionaram a minha casa com videotape pode a senhora conferir que ouviram eu fazer alguma coisa dessas. (entreouvido ao longe) – quanta grosseria, eu só estava perguntando... É, perguntando. Eu sei quem é o dignatário de suas ‘perguntas’, Sra. Veronese. Hum. Então, depois dessa ensaboada geral (risos) passemos ao conteúdo da nossa exibição. Vai parecer fábula o que vocês ouvirão, mas levem em consideração que tudo isso aconteceu hoje cedo. Antes, uma necessária introdução à guisa de eulogia. Bufurdos, o nosso tão querido e emérito Maninho, nós somos tão amigos dele que esquecemos a fama que atingiu nos quatro costados da humanidade. Atingiu com tanto vigor que estalou como uma chicotada bem dada. Ah, minha época da galera de caubói... enfim, nem precisa dizer, Maninho é conhecido pelo célebre e único poema que compôs, aliás genialmente: o “Péricles Cavalcanti”. (voz de garoto, lado esquerdo da platéia) – Tio Tenebro, a mãe ainda não falou pra gente desse trem aí não. (corinho de ‘isso mesmo, explica aê, explica aê’) (alguns ainda estão rindo da ‘ensaboada geral’, por incrível que pareça) Está certo, gente, vamos com seriedade que o tempo é curto. Logo o sol invadirá esse armário de vassouras e desviará a atenção da mente delirante de um garoto que inventou esse enredo em que vivemos a partir das formas que viu pela fechadura. Em linhas gerais, o épico relata o seguinte: é a história do retorno do herói à guerra que terminou quando ele partira. Defensor da democracia, poeta da ligeireza, andava consigo mesmo sem precisar dar as mãos. Mas cumprimentava a todos. Péricles Cavalcanti foi o épope mais sociável de todo um panteão. Ele sai do lugar onde estava procurando por outras guerras e, quando volta, depois de muitos destinos cruzados, a mesma batalha estava sem ele sendo travada desde o início. Alguns vêem nisso a previsão divinatória de um vaticínio: o surgimento nos confins do tempo dos mesmos princípios da mecânica quântica. Péricles chegou a virar constelação pros lados de Alpha Regulum, de tanta fama. A questão sempre foi a origem, na cabeça do bardo, de tamanha aventura. E, pra quem ouve sem entender direito essa palavra antiga assim, tamanha quer dizer muito, muito grande. Muitos dizem que essa história, A história, que moldou todas as mitologias desse nosso mundo, que aliás nunca ouviu falar da Terra, é baseada nos feitos da família de nosso Vyasa nacional, o querido Maninho, que sua santa memória um dia o tenha em bom lugar. Como falamos, eram seis irmãos. Ou, como diz a fiel população, “o Santo e seus Cinco”. Ainda bem que o cara ainda está vivo, senão ia bater qualquer versão dos fatos, tendo dito e sido gravado. Agora o populacho pode urdir interpretações por décadas. Isso porque hoje cedo... Velínex abriu o bico. Contou como Naômina enfiou o rímel no olho, as tentativas que Louçanias fez de vender sua mobília ao irmão, que já estava endividado. Tonsura nunca mais falou com Suprassumo, que agora dirige sozinho sua firma de doces. E o Péricles de Maninho é cópia de um diário de família. Ele só imaginou que essa raça perdida de aqueus-genoveses cultivada na axila de um abrolho universário 60
largaria seus corpos onde estivessem e encarnassem de repente, todos juntos, na nossa Copacabana, pra deixar a convivência ainda mais insuportável. Imagine esse monte de gente sem entender nada de sua conjuntura imediata, saindo na rua, provocando acidentes de trânsito e transmitindo doenças por hábitos que nem sabemos. Conta-se que suas vítimas somavam parcelas, de uma vez, de até 400 quilos ao monte de carcaças. E desse roteiro tentativo, aplicado a um mero diário de família, surgiu o grande épico que nos inspira as mais tenazes realizações. Como eu disse, isso aconteceu hoje cedo, no meio de uma função pra cada um. Nosso universo, conforme todos confirmamos, começou há quinze dias. Não sabemos como vamos nos reproduzir. Para uns tudo surgiu enquanto fritavam um bife, e queimaram a mão. Outros presenciaram a gênese quando estavam dirigindo. Domaram a direção desconhecida num resto de hábito, questão de milissegundos, e estão aqui hoje nessa assembléia citadina pra compartilhar. Curiosos dentre estes não deixaram de notar que o banco do carona ainda estava quente de alguém recentemente ter sentado lá.
löis lancaster é estudante de russo, compositor microtonal, professor universitário na área de literatura e esteta nas horas vagas. Cantou na banda Zumbi do Mato, que só muito tempo depois percebeu que “Zumbi do Marcos” seria um nome bem melhor.
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arena das curas luiz andrioli
— Omeprazol, duas caixinhas. — Qual dosagem? Entrou outro cliente. — Alicate de cutícula, tem da Mundial? — diz a manicure do salão ao lado. O pai indicou com a cabeça para que eu pegasse na prateleira atrás. — Quero medir pressão. Ontem estava doze por oito. Um outro freguês já estava por ali vendo preços de xampus. O pai apontou a salinha de injeção. Ele que espere um pouco lá, deve ter pensado. Voltei com o alicate. O primeiro cliente me parou no caminho e disse que queria o Omeprazol de 40. O pai apontou para uma prateleira ao lado, já estava atendendo uma senhorinha. Embrulhei o Omeprezol. O pai terminou a venda. – Mais alguma coisa? A senhorinha pediu para abrir um esmalte. – Não pode, tem mostruário aí do lado — pontuou o pai. – Seu Osvaldo, minha pressão, hoje, acho que subiu. O pai caminhou até a salinha. Fiquei atendendo à cliente dos esmaltes. – O Rosa Bombom da Risqué acabou? Olhei para ela e levantei os ombros. O pai falou: – Leva o Pink da Colorama que é igual. Ela aprovou. Embrulhei o pedido e cobrei. O pai voltou com o cliente. – A pressão está alta, seu Manfron. Alta mesmo. Catorze por nove. Precisa se cuidar. – Não aguento mais médico falando no meu ouvido — desabafou o cliente. Sentei na banqueta alta para descansar. O cliente era um italiano de olhos claros, usava chinelos de dedo e calça social suja de barro. Era a quarta vez que ele vinha na farmácia. Na primeira, achei que era pedinte. Depois ouvi uma conversa do pai com um comerciante vizinho que contou sobre o velho Manfron. Fez dinheiro vendendo batatas para os restaurantes do bairro. Comprava de agricultores de Campo Magro, município pertinho, levava até sua chácara para lavar e ensacar. Depois, vendia por encomenda. Já estava com setenta anos, tinha cinco casas alugadas, terrenos na praia, carros, filhos formados e dinheiro na poupança. Mas ainda trabalhava como jovem, descarregava os fardos no lombo, como os peões que contratava. 62
– O senhor é forte, mas não é pra sempre, seu Manfron — baixou o tom, fazendo de conta que eu não ouviria a conversa. — Já imaginou se dá um derrame? Como é que ficam as namoradas que o senhor tem ali no Botiatuvinha? Informação privilegiada do pai. O velho frequentava uma casa perto. Lá se reuniam umas moças que chegavam do interior. Ele piscou para o pai e abriu o sorriso com alguns dentes faltando. – Leva esta caixinha e toma dois por dia. Volta aqui na semana que vem e me diga se melhorou. Era uma amostra grátis que havia sobrado ainda do laboratório. O cliente saiu agradecido. Os remédios que o pai distribuía de graça nas primeiras semanas eram cartões de visita muito bem endereçados. No caso do batateiro, sabia que o sujeito era respeitado no bairro. Se gostasse do serviço, com certeza voltaria e ainda indicaria outros clientes. Muitos anos depois fui entender que aquele tipo de relação que o pai construía no balcão ia muito além de uma simples reação química. Estávamos na farmácia há pouco tempo. O balcão era cor-de-rosa, fórmica nos cantos e vidro em cima, fazendo das gavetas uma vitrine. A gente às vezes se apoiava no vidro para descansar as costas. Durava pouco. – Balconista não deita no balcão — dizia o pai, repreendendo o desleixo. Assumimos a farmácia em uma quarta-feira à noite. O pai havia marcado de assumir o negócio no fim do expediente, depois do último fechamento de caixa do antigo dono. Chegamos lá, eu e ele. O proprietário parecia aliviado por vender o comércio: – Tenho outras duas. Não aguento mais ver gente falando de doença o dia inteiro. O pai olhou para as prateleiras, caminhou pelas gôndolas na frente do balcão, arrumou dois potes de xampu que estavam desalinhados. – Você precisa descansar, Maneco. Já trabalhou muito. Deixa teus filhos cuidando das outras farmácias e vai morar na praia. – Filhos, humpf… O antigo dono meteu a cabeça em uma boina e, por um momento, mostrou um sorriso por baixo do bigode. – Esse aí é atleticano? – Tentei parecer paranista, mas não deu certo — o pai passou a mão na minha cabeça. — Vai me ajudar aqui no balcão. – Comecei com sua idade, piá. Melhor que ficar pensando besteira. Eles se despediram com um aperto de mão. O dinheiro já estava acertado. O pai assumia o balcão com a conta bancária vazia e sem o salário fixo que, por décadas, veio regularmente do laboratório. O fusca estacionado na frente do comércio, sem malas para levar, sem a pasta preta com amostras para distribuir para médicos nas cidades por onde viajava. Começava a fazer sua ilha atrás do balcão. Não corria mais o mundo. Santa Felicidade viria até ele, pouco a pouco. – O remedinho, ó! — fez positivo com a mão, falando de dentro do caminhão estacionado em frente à farmácia. A pressão tinha baixado. Seu Manfron foi o primeiro a ser conquistado no bairro pela confiança que meu pai imprimia. De manhã, eu ficava na escola. De tarde, na farmácia. Meu irmão passava o dia inteiro atrás do balcão. Pediu demissão do laboratório já na primeira semana. Vez ou outra ele saia para fazer serviço de banco ou entregas fora. Tinha que ser rápido, dizia o pai: – Farmácia é rotina. O cliente quer ver sempre o mesmo homem atrás do balcão. 63
Nos poucos momentos de folga, eu puxava meu bloco e continuava reescrevendo. À noite eu lia em casa, fazia a lição da escola, assistia à televisão, mas sempre acabava a noite com o livro do Crusoé ao lado do travesseiro. Dormia com as aventuras que picotavam na minha imaginação. Lia sem ordem, como um crente que busca pedaços de afirmação em uma Bíblia gasta. *** O aramado ia quase até o teto na cancha de futebol de salão. Em dias de campeonato, parecia uma arena. Naquela noite, estávamos apenas nós dois ali dentro, um coliseu no qual faríamos o papel de gladiador e leão, confundindo interpretações. Não tinha plateia. Os poucos que ficaram depois da partida estavam jogando truco no bar do ginásio ou tomando banho no vestiário. Meu irmão era goleiro. Por algum tempo trabalhou em um dos restaurantes do bairro e ficou amigo dos garçons. Ainda jogava no time deles nos campeonatos de futebol de salão de Santa Felicidade. Os treinos aconteciam às terças. Eu e o pai íamos assistir e comer pão com bife. No fim da partida, a piazada aproveitava, enquanto o gerente da quadra não apagava os refletores, para jogar como os adultos. Em pouco tempo, seriam eles que jogariam ali. O pai já tivera seus momentos no piso de cimento queimado do velho Itálicus. Era atacante. – Vai lá para o gol que hoje eu vou treinar você. Fernando estava sem camisa e com uma lata de cerveja na mão. Não era a primeira, nem a segunda. Tomei posição. Estávamos apenas nós dois na quadra. Olhamos um para o outro, o último contato entre quem chuta e quem defende. Ele tomou distância, bebeu um gole curto e correu para chutar com o líquido ainda na boca. Bateu de bico, estava um pouco atrás da marca do pênalti. A bola chocou-se contra a trave. O barulho ecoou pelo ginásio. Os demais jogadores que estavam no bar pararam por um instante para olhar. Ameacei, apenas ameacei, pular para defender. – Levou sorte, piá. Prepara que agora você vai ter que trabalhar. Esfreguei uma mão na outra, assoprei dentro delas, formavam uma concha. Estava sem luvas. A bola de salão parece de concreto. A quadra é lisa e dura. Ele chutou rasteiro, no canto. Entrei de carrinho e parei o tiro na sola do pé direito. – Essa é pra esquentar. Peguei a bola com as mãos. Sabia que ele estava falando sério. Devolvi, olhei para os lados. O pai devia estar dentro do bar. – Posso? Mais um gole de cerveja. Ele, confiante, dava risadas. – Venha — respondi. Desta vez deu um toque que fez a bola rolar um pouco pra frente. Bateu com a lateral do pé, com efeito. Ela veio na altura do rosto. Fechei as duas mãos e firmei os pulsos. Travei a mandíbula e espalmei para o lado. Ele correu para pegar o rebote. Ainda estava na área. Me joguei e abracei a bola, caí nos pés dele, derrotado na batalha, não na guerra. Voltei para a linha do gol. Devolvi a bola na direção dos seus pés. Conhecia o Fernando. Cada chute viria com mais força. O pessoal do bar aos poucos parava o carteado para ver o que se passava dentro daquela arena que criamos para nós. – Goleiro de salão não tem medo de cair — forçou uma aprovação. Esfolei o joelho na defesa. Tive medo do rebote, por isso me joguei no chão. 64
– Agora é treino de pênalti. O pênalti no futebol de salão é um tiro forte demais para ser defendido pela habilidade. Não há o que fazer, exceto escolher um lado e torcer para que a bola estoure em alguma parte do seu corpo. Caso haja erro na escolha do lado, a rede é estufada e não há mais o que se perder. É o que eu penso hoje, escrevendo esta história, mas na época, havia muito em jogo. Novamente esfreguei as mãos uma na outra. Fiz um pêndulo com o peso do corpo, da perna esquerda à direita, testei o equilíbrio. Nos encaramos. Escolhi o lado esquerdo. Justamente para o qual ele chutou, na altura da cintura. No pulo, me joguei forte demais e acabei tomando o golpe na barriga. A bola espirrou e foi para o escanteio. Caí no chão meio de lado, amorteci com a bunda. O soco no estômago tinha sido forte. Puxei o ar e ele não vinha. Deitei e encolhi as pernas sobre a barriga. Abri os olhos e vi meu irmão em pé, me olhando de cima. – Machucou, Luizinho? Tinha preocupação. E ironia. Levantei e posicionei de volta. Deixei a barriga mais dura, poderia barrar um tiro de bazuca naquela armadura, na arena que não pretendia deixar tão cedo. Fernando jogou a latinha vazia na lateral da quadra. Foi até o meio de campo e pediu a bola. Lancei até seus pés. Outros jogadores já bêbados saíam do bar para ver a luta na quadra. Para eles, apenas um bate pênalti entre dois irmãos. Alguém comentou: – Olha o Fernando fazendo o piá virar goleiro. – Se bobear, pega o lugar do irmão no time. O Fernando ouviu e encheu a mão direita com o volume do seu saco por sobre o calção e mandou os dois se foderem. – Prepara que vai alta, piá. Deixou a bola na marca do meio de campo. Recuou quatro passos. Como um touro, mediu o alvo. Nós nos olhamos mais uma vez. O Fernando era conhecido pelos seus tiros certeiros à longa distância. Em momentos cruciais dos campeonatos dos garçons, o técnico mandava-o bater as faltas. Um chute que poderia definir a partida. A barreira espirrava, a zaga não tinha culhão para travar suas cobranças. Não importava se era de longe. A força só se dissipava na rede; na grade (caso a mira estivesse desafinada, não era o caso, na maioria das vezes); ou no corpo do goleiro. Eu estava disposto a fechar o gol. Esfreguei as mãos, testei o peso do corpo em cima das pernas, flexionei os joelhos, nos encaramos. A bola veio em elipse. De baixo para cima até a intermediária. Deixei as mãos em concha um pouco acima da testa, acompanhando a trajetória. Logo a curva baixou e ela veio em direção à minha testa. Depois em linha contra o meu nariz. Baixei as mãos, ia segurar, ia espalmar, ia esmurrar, eu tinha a confiança de defender o gol. Em uma fração de segundo, ela veio em direção à minha boca. Coloquei força nos pulsos, travei os dedos, cerrei o semblante e fiquei preparado para o baque. Ia ser forte, tinha consciência. Mas estava preparado. O tiro mais forte do Fernando estava no meu domínio. A bola a uns dez centímetros da minha boca, foi o que eu vi antes de tomar o soco. Caí com o impacto. Senti o gosto do couro na língua, o arranhar da costura dos gomos, o cheiro da sola dos jogadores. Rolei na área. Escutei meu irmão gritando um putaqueopariu. Os passos dos bêbados correndo para dentro da arena. Alguém virou meu rosto de lado, foi bom. O sangue despejou feito vômito da minha boca e marcou a área. Uma mão conhecida se aproximou. Com o dedo, virou meu lábio para baixo para ver o tamanho do corte. 65
– Porra, Fernando. Você é idiota? Meu pai tirou a camisa e pressionou o corte. Fui recobrando a consciência aos poucos. Meu irmão estava assustado, eu também. O cara do bar trouxe gelo e colocou na minha mão. Fui pondo as pedras no corte. O pai me ajudou a sentar. O Fernando ainda perto, envergonhado com a merda que havia feito. Olhei a bola na lateral da quadra. Ela não tinha entrado no gol. Nas semanas seguintes, ficamos sem nos falar. Até os momentos mais óbvios, como embrulhar um remédio para finalizar uma venda, eram feitos sem que trocássemos uma palavra sequer. O clima pesava. O pai aguentou até onde pode. Quando ficou insustentável, decretou a volta à paz, a seu modo, claro: – Eu vou fazer vocês se tratarem igual gente. Nem que seja na base da porrada. Voltamos a conviver, eu e o Fernando. *** Uma farmácia tem alguns mundos dentro de si. Atrás do balcão, existem as prateleiras que o cliente vê. Os remédios mais comprados, a perfumaria, os produtos anunciados na televisão. É como se fosse um cenário, uma organização montada, a parte de cima dos moranguinhos da bandeja. É ali que a venda se dá. Fernando ficava na parte da frente da farmácia no maior espaço de tempo, exceto quando saía para serviços de banco ou entrega. Ele que atendia os clientes, na falta do pai. Era mais velho, já tinha trabalhado como propagandista e passava mais confiança. A parte detrás, longe dos olhos dos clientes, era a minha responsabilidade. Ao meu redor ficavam os remédios que de fato traziam lucro para a farmácia. Eram organizados, não de acordo com o que cliente esperava ver, já que ninguém enxergava o que se passava nas prateleiras de madeira, ao contrário das de vidro expostas ao público. O critério era de venda e lucro. A indecisão e o desconhecimento do cliente guiavam a escolha do balconista por este ou aquele medicamento. Saber quanto havia sido pago pelos itens e calcular rapidamente uma cesta de produtos que pudesse somar o maior ganho, aliado à cura para o doente, era a virtude que o pai valorizava. – Tem que ser ligeiro. Se demorar muito lá trás, o cliente desconfia. Por isso tem que saber comprar do laboratório. Isso eu sei e faço. Mas vocês têm que ficar de olho, saber o que tem mais margem de lucro — o pai dava suas lições nos momentos de pouco movimento na farmácia. No inverno, a injeção de eucalipto era a mais vendida. Os colonos viviam de chinelo de dedo e camisa de peito aberto, lidando na roça. Gripes e resfriados nem chegavam perto do postinho médico do bairro. Eles tinham pouco tempo para enfrentar a fila do Sistema Único de Saúde. O pai percebeu logo o filão. – Me dá aquela picada milagreira — Seu Manfron já tomava a sua verdinha pelo terceiro ano consecutivo. – Amanhã o senhor vai estar bom. – Santo homem, Dio Cristinho! — a italianada tinha lá suas crenças. A injeção de eucalipto ainda tinha um efeito psicológico. A cor ajudava, era possível ver ainda na ampola. O pai fazia questão de, casualmente ensaiado, abrir o vidrinho na frente do cliente, exibindo o líquido: um elixir da cura com lucro de oitenta por cento. Depois de aplicada, ela deixava um gosto de mentol na boca. Eu mesmo já tinha tomado e gostava da sensação. 66
Era bom ver as pequenas técnicas que o pai ia desenvolvendo para aumentar o lucro da farmácia. O Fernando trabalhava dentro de suas certezas no comando do balcão. Tinha um estilo aguerrido, poderia vender casas, roupas, joias ou remédios. Olhava o carro do cliente, o relógio, a carteira. Com essas informações, montava uma estratégia para vender o que desse mais dinheiro. Apenas por obrigação prestava atenção nas lamúrias de quem faz da drogaria um divã. Não sei se eu tinha talento para o balcão. Longe dos clientes, procurei uma justificativa para aguentar as seis horas de trabalho por dia. Fernando trabalhava nove. Eu tinha menos carga por conta da escola. Ainda estava terminando o segundo grau. O plano já estava desenhado pelo pai. Deveria fazer faculdade de farmácia para tocar o negócio. Fernando não queria saber de faculdade, mas era bom de vendas. Eu seria o comprador. Sócios. – Meus dois filhos estão encaminhados. Um dia eles vão cuidar disso aqui — dizia para os parentes e amigos que vinham visitar a farmácia. Éramos alunos do meu pai. Seu discurso estava incrustado em cada prateleira. “Estar atrás de um balcão de farmácia exige conhecimento, experiência de vida, preparo. O cliente entra e quer saber se pode confiar no atendimento. Ele vai procurar em você o que o médico não deu. Você tem que saber mais. Se não resolver o problema do sujeito, volta e reclama. Se resolver, volta e compra mais. Por isso é importante ouvir, prestar atenção nos detalhes e saber quanto ele pode gastar.” “O balcão da farmácia é um negócio que mexe com a saúde do sujeito. Mas passa pelo bolso dele. Se você souber o caminho entre um e outro, pode fazer a grana dele sair de lá e passar para cá. Você é novo e vai aprender comigo. E com seu irmão também, que já sabe alguma coisa.” “Você está começando com a mesma idade que eu comecei na farmácia do velho Stelphed. Eu trabalhei lá com seu avô. Ele era o gerente, eu o aprendiz. Fica ali na Praça Tiradentes. Só o prédio, a farmácia não existe mais. Conhece, né? O pai te mostrou o relógio de sol em cima da fachada. Sei, estava nublado.” Pensei que não importava o relógio parado, o tempo passava de qualquer forma. Não dividi o pensamento com ele. Fiquei quieto. “Seu avô. Seu avô era um químico por experiência. Era ele quem aviava as fórmulas atrás do balcão. A gente vendia para farmácias do Paraná inteiro. Tinha um trilho que levava um vagonete até o estoque. Eu despachava a mercadoria. Fazia força, não era fácil como está sendo pra você.” Nunca seria tão difícil quanto havia sido para ele, já carregávamos essa certeza. “Eu passava o máximo de tempo possível colado ao seu avô. Anotava o que podia. As quantidades, os produtos, os instrumentos. Ele falava pouco. Ficava bravo quando eu perguntava. Não era igual a mim. Você pode chegar muito longe. Se ler uma bula de remédio por dia, em dois anos você será uma enciclopédia.” 67
Já tentei, já tentei, pai. Talvez minhas letras não sejam as da cura. Ao menos, essa cura que vendemos aqui. Além do mais, as bulas são mal escritas. Queria reescrever, mas para isso preciso sentir algo dentro deste balcão. Foi o que pensei e (mais uma vez) silenciei. “O velho Stelphed gostava do seu avô. Sabe aquela fita de vídeo que você me trouxe aquele dia? Ele estava bem do lado do dono. Eram quase sócios.” Não sei se eram, mas o pai acreditava nisso. Achei a fita no acervo da Biblioteca Pública e tomei emprestada. Trouxe na mochila junto com os livros que havia retirado. Antes da minha rotina diária no balcão do pai, passava algumas tardes na sala de leitura da biblioteca. Escrevia, reescrevia. Depois que o pai arrumou o serviço pra mim e para o Fernando, não deu mais. Quando acabava meu expediente, não valia mais a pena ir até o centro. E os livros passaram a ser sempre os mesmos, da pequena estante que tinha em casa. “As bulas, as bulas. É o que você precisa saber. O cliente vem buscar certezas aqui. Você tem que saber mais do que ele. Na Stelphed não tinha bula. Um dia eu coloquei no papel as indicações, a posologia, os efeitos colaterais e um resumo da fórmula de um medicamento que foi encomendado por uma professora da universidade. Era para bronquite. Ninguém me pediu para escrever. Ninguém estava interessado no que eu tinha para dizer. Se eu não escrevesse nada e continuasse minha vida atrás daquele balcão, tudo iria continuar igual. Você percebe a minha ousadia? Colocar no papel o que simplesmente era feito, o que acontecia, sem precisar das palavras. Eu simplesmente escrevi o que estava vendo. Ninguém estava me pedindo. Sentei no canto, puxei um bloco, me concentrei e escrevi. O seu avô me olhava, mas não podia reclamar. Era meu horário de almoço e eu preferi deixar de lado a marmita que a mãe havia preparado. Escrevia. Observava a quantidade, o jeito de preparar. Lembrava-me das conversas entre ele e o velho Stelphed, os detalhes, como tomar o remédio, quantas vezes por dia, se podia acontecer algo de anormal caso tomasse uma dose maior… Depois de uma hora deixei em cima da sua mesa com a melhor letra que pude desenhar. Eu tinha quinze anos, a sua idade. No fim do dia, seu avô me chamou para conversar junto do dono. Perguntaram se eu podia datilografar. Menti que sim, o pai sabia que era mentira, mas esperava essa resposta de mim. Oportunidade não chega duas vezes: ou você se agarra, ou você se agarra. Sim, eu quero o serviço. A partir daquele dia, passei a escrever as fórmulas de todos os medicamentos que a gente aviava. Na época achei bom, muito bom, na verdade, tinha que fazer menos força. Mas o que eu gostava mesmo era da permissão que o velho Stelphed havia me dado. E o pai concordava: permissão para perguntar tudo o que quisesse. ‘Os balconistas, os químicos, eu, seu pai… todo mundo vai lhe ajudar a partir de agora. Você é o nosso escriba de fórmulas’, explicou o velho.” O pai escrevia o seu mundo dentro da farmácia. Será que um dia ele poderia entender que eu buscava a mesma coisa, porém do outro lado do balcão? “Você tem tudo isso aqui. Hoje qualquer Melhoral vem com uma bula. Senta e lê uma por dia. Você vai aprender em dois anos o que eu levei muito mais tempo para descobrir na raça.” 68
Na cabeça do pai, eu estava em uma biblioteca de curas. Os males do mundo tinham suas vacinas e remédios ao meu redor. Em ordem alfabética. Drágeas, comprimidos, cremes, pomadas, xaropes, gotas… Meu irmão Fernando cada vez mais parecido com o Pinha. Eu cada vez mais querendo dizer para meu pai que eu queria escrever. Ele responderia: as bulas já estão escritas, apenas leia. – Pai, ainda não achei minhas fórmulas — pensava em dizer. – Escrever o quê então? — imaginava ele questionado. – Diálogos imaginados. E absolutamente fiéis, mesmo que não tenham acontecido — concluía minha defesa imaginada. Meu pai estava cada vez mais feliz por tirar o sustento da família daqueles poucos metros quadrados. Suas viagens acabaram na hora certa, orgulhava-se de dizer. Seus filhos teriam um negócio para continuar. Iria deixar algo concreto para nós dois. Seguiríamos sempre juntos no balcão. Um nome no letreiro, o legado da família fincado no meio da Manoel Ribas, entre os restaurantes e seus pioneiros. A gente estava de fato na colônia, que é como ainda se chama este pedaço de Santa Felicidade calçado com paralelepípedos. O bairro agora podia nos respeitar. Entre os tantos Madalossos, Benatos, Durigans, Perucis, Manossos, Manfrons, Dalarmis, Stivals, estava o nosso sobrenome estampado em um luminoso de quatro por cinco metros. Nossa bandeira, nosso marco, nossa identidade. Os filhos agora tinham uma ilha. Sempre tivemos, pai. Sempre tivemos. A diferença é que agora ela contava com fronteiras: o balcão que cada dia parecia menor. Sua voz tomava mais meu espaço. Cada vez mais eu escrevia menos.
luiz andrioli
é professor de pós-graduação nas Universidades Positivo e PUC, além de curador da coleção Gazeta do Povo da Literatura Paranaense, considerado o maior projeto de divulgação literária do Paraná. Como escritor, tem 4 livros publicados, dentre eles, O laçador de cães, coletânea de contos editados pela Grua Livros.
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o invasor Para Anderson Fonseca, o fabulista fabuloso
mariel reis
O homem parado no quintal veste roupas sóbrias. O chapéu largo, a capa de chuva e os sapatos impermeáveis protegem-no do frio e da chuva. Ele mantém-se imobilizado durante todo o tempo. Uma vez ou outra é possível percebê-lo fazendo anotações. Escreve compenetradamente. O bloco e a caneta, escondidos sob a capa de chuva, são retirados com rapidez. E, ali, é registrada alguma informação preciosa. O semblante sério não o deixa mentir quanto a isso, embora não se possa vê-lo totalmente. Os olhos, sob a aba do chapéu, faíscam durante a noite. Vasculham-na inutilmente, em busca de não se sabe qual segredo. Frustram-se por não encontrá-lo. Não desanimam, repetem insistentemente a operação. Quando o dia amanhece, ele, o homem, está lá. De pé. Permitindo-se um alongamento discreto dos braços e das pernas. As cãibras, as malditas cãibras. A família acostumou-se à presença dele, embora, no início, se sentisse incomodada com o relatório das atividades de cada membro da casa. Quando completava um dos blocos, encerrava-o em um envelope pardo e o remetia para um destinatário desconhecido. A família, receosa por sua segurança. A atitude quebrava o protocolo da imobilidade – o único conhecido daquele homem. E, portanto, a salvaguarda de seu caráter. O deslocamento até a agência dos correios representava alta traição. Passaram a ignorá-lo. Não lhe serviam água ou o almoço. Nenhuma gentileza a mais foi praticada. Sempre que era visto com o bloco de anotações passara a ser ridicularizado. Os membros da família saíam e conversavam todos ao mesmo tempo. Tornava-se impossível o registro do que quer que fosse. O homem parado no quintal redobrava sua concentração. Percebia-se seu esforço para a realização de seu trabalho, mas era inútil. Acentuaram a confusão ainda mais: da arrumação dos cabelos às roupas. Vestiam-se de modo extravagante ou saíam nus para as atividades fora do lar. A situação parecia sair do controle. Ele desesperava-se. Desfazia-se. 70
A traição do estatuto da imobilidade e da vigilância contínua atentou contra a reputação do homem parado no quintal. A instituição que o havia incumbido da tarefa, indispôs-se. Ele não tinha permissão para deixar o posto. Fariam chegar a ele todo material necessário para o cumprimento de sua tarefa. Retirariam a documentação produzida. Porém, a precipitação atentou contra a credibilidade junto à família. Ele deveria passar a impressão de que estava ali para protegê-los. E não espioná-los. E se os espionava, era por motivo de segurança. A alta cúpula admitiu despedi-lo. A cogitação de dispensa o abalara. Outro protocolo foi quebrado. O homem mais velho da família entrou em contato com a organização que colocara o homem parado em seu quintal para a resolução do impasse: sugeriu que o transferissem. E outro viria para o seu lugar. A agência não apenas negou a sugestão, mas reforçou uma decisão tomada de última hora em mantê-lo no quintal. Tudo isso foi comunicado num exíguo bilhete, que em suas linhas finais dizia: Espero que aceitem e entendam. Seguido da assinatura com as misteriosas iniciais J.K.
mariel reis é autor de Joe Fante trabalha no Esquimó (Calibán) e editor- chefe de flaubert.
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um pouco daquilo moema vilela
Quando minha amiga ouviu falar no cara pela primeira vez, disseram que era um canalha, um cachorro, um grande filho da mãe. Eram palavras de mulheres apaixonadas, mas maduras, então ela achou que não seria por causa da dor de cotovelo que as histórias iam ser mentira ou exagero. Na noite em que ela o conheceu, músculos e miolos lavados de cachaça, soube que também não era por causa da bebida que seria mentira ou exagero que ele parecia digno do ciúme de mulheres exemplares. Ele era carismático dos sapatos aos palavrões. Tinha despencado do Uruguai, porque o Brasil só podia andar virado, pra se apresentar com a banda de rock num show da prefeitura. Onde a prefeitura andava com a cabeça? Minha amiga estava junto com a equipe de produção que buscou os caras no aeroporto e levou pra almoçar. Três caipirinhas depois, ela estava alegre, no meio de muitos amigos, falando alto e com ênfase. Ela brilhava, e ele quis um pouco daquilo. Uma mentira atrás da outra, é isso que tinha acontecido? Era o que minha amiga se perguntava um ano depois, quando já tinha ido até a puta que o pariu de ônibus atrás desse sujeito, e ele não abriu a porta pra ela entrar. Quantas mulheres são necessárias para transformar um moleque num mito? Depois de ouvir minha amiga chorar durante um ano, vejo, no jornal, a agenda do fim-de-semana dizendo que o cara voltará a cuspir seus versos pra cima dos velhinhos da Praça do Rádio. – Você viu isso? – eu empurrei o caderno de cultura pra minha amiga. – Vi – ela disse, sem olhar. - Não vou nem sair de casa, pra não topar com o desgraçado. Uma semana depois, na festa depois do show, está minha amiga na casa do Charlie, vestida como uma das Charlie’s Angels, com seu cabelo preferido pra chorar no quarto do dono da festa, ajoelhada e com a cara enfiada no colchão. Depois de pegar o telefone da menina de quinze anos com chapéu de feltro, o vocalista da banda de rock invade o quarto do Charlie, gritando carinhosamente: – O que foi, caralho? Qual é o problema? 72
Minha amiga xinga o cara, berra tudo que queria dizer sobre a superficialidade daquele relacionamento sem afastar o nariz do sofá, de forma que ele só escuta o final, quando ela levanta o rosto avermelhado e cheio de catarro pra dizer: – Foda-se, você nem me merece. Ele revira os olhos como se aquilo fosse o tipo de bobagem escutada mais de quarenta e quatro vezes na vida. A verdade é que ele gostava dela, ele falou. Ele não estava mentindo quando disse, na primeira vez que a viu, que podia se apaixonar. Foi o que ele falou. – Mesmo assim, isso não quer dizer que eu possa fazer você feliz. (Veja como apesar de babaca ele é um cara consciente, minha amiga me falou). Na hora, porém, ela fingiu colocar o dedo na garganta, como se fosse vomitar. O gesto de maturidade deve ter encantado o narcisista, porque ele se sentou no tapete de frente pra ela e disse: – O que você quer? O que você espera de mim? E minha amiga falou que queria que ele apostasse de verdade em alguma coisa pelo menos uma vez na vida. Daí o sujeito começa a catar as coisas dela jogadas pelo quarto, puto da cara. A bolsa, os sapatos, a jaqueta, berrando que se ela quer apostar em alguma coisa que viesse com ele. Ele tinha planejado pegar a estrada de volta no amanhecer, mas por que não agora? Por que não a irresponsabilidade dessas menininhas que acham que sabem alguma coisa do amor? Do tapete, ela olhava o cara dizer, já na porta: – Você não falou que queria vir comigo, morar comigo, pagar as contas comigo? Enfrentar os fantasmas comigo? Merda! Vou te esperar no carro. As pessoas jogando videogame já tinham parado de se provocar, apertando frouxas meias-luas em silêncio, esperando pelo que viria a seguir. A estrela do rock saiu pela casa até a calçada sem olhar pra trás. Gritava coisas como: “Depois não fala que não te avisei”, “Criança mimada dos infernos”, e tal. Ele joga a bolsa e o sapato dela pela janela do carro e volta pra pegar os instrumentos espalhados pela casa do Charlie, uma guitarra já na mão de um moleque na cozinha, melada de suco de laranja com vodca. Minha amiga cruza a casa devagar e sem ouvir ninguém. No portão ela vê o cara dentro do carro, parado no banco de motorista, logo na frente da casa, todos os amigos assistindo à cena. Ele olha pra ela e dá a partida, apressando. Ela caminha devagar, porque apesar de toda agressividade era a primeira vez que o cara resolvia a coisa incluindo ela nos planos, e a felicidade é uma arma morna, que pode te destruir a qualquer momento. Enquanto caminhava até o carro, olhando pro cara, ela pensa que ao pegar a BR tudo vai amaciar, o vento na cara vai fazer bem a ele, e eles vão ouvir Neil Young e parar para comer e trepar, e vão conversar finalmente sobre a vontade de ser livre e feliz que os une – embora no momento o sujeito de cara fechada e mãos no volante não pareça exatamente a pessoa mais disponível do mundo nem para dividir uma pipoca. Minha amiga tem tempo de pensar que tem R$ 350 do seu último trabalho, que pode usar os shorts e camisas do cara, e a única coisa mesmo que a perturba é que ela não pode dormir em lugar nenhum sem ter soro fisiológico pra tirar a lente de contato. Olha que maluquice a nossa cabeça!, ela me diz depois. O fato é que todo mundo a vê parar do lado do carro, que está ligado há três minutos. O cara engata a primeira e arranha o motor, e ela não sabe o que isso significa, porque com ele nunca dá pra saber se você vai levar o maior pé na bunda da sua vida na frente de todo mundo, então o jeito é ficar parada feito uma otária. O cara 73
baixa mais o vidro do passageiro pra falar alguma coisa. Minha amiga está parada, de pé, e ele se dobra até o banco de trás e pega a bolsa e os sapatos dela, devolve pelo vão do vidro e vai embora. Para coroar o desastre, minha amiga grita: – É pro outro lado! O cara faz o balão, para o carro de novo na frente dela e das pessoas da vida dela. Ele fala: – Desculpa, não dá pra eu tomar uma decisão idiota dessa na idade que eu tô. Vê se esquece essa história, você é nova ainda e tem muito pra viver. O nome dessa minha amiga é Clara e eu sou louco por ela, mas não atendi quando ela me ligou doze vezes, nem quando tocou a minha campainha. Meia-hora depois de ouvir o toque de Bohemian Rhapsody para sempre estragado por causa dessa noite, imaginando-a, com acerto, um trapo abandonado, eu liguei de volta e ouvi toda essa história tomando café e comendo melão e presunto no Hotel Gaspar. Quando a gente se despediu, eu também me virei para ir pra casa, mas depois virei de volta e fiquei vendo ela ir embora, a calça jeans dela, os tênis sujos dela, os cabelos oleosos dela do fim da noite, a mente e o coração idiota dela. “Vai sempre ter um trouxa para amar quem não merece”, eu cantei, o único verso que prestava da banda do cara.
moema vilela
nasceu em Campo Grande (MS). Escritora e jornalista, é doutoranda em Letras pela PUCRS. Graduada em Jornalismo (UFMS), mestre em Estudos de Linguagens Linguística e Semiótica (UFMS) e em Escrita Criativa (PUCRS), trabalha com comunicação e artes desde 2000. A coletânea de contos Ter saudade era bom foi lançada em 2014, pela editora Dublinense.
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janaína “Iemanjá, Iemanjá / Iemanjá é dona Janaína que vem Iemanjá, Iemanjá / Iemanjá é muita tristeza que vem (..) Para ouvir Iemanjá A cantar, na maré que vai / E na maré que vem / Do fim, mais do fim, do mar Bem mais além / Bem mais além / Do que o fim do mar / Bem mais além” Canto de Iemanjá Vinicius de Moraes
natasha centenaro
5 de janeiro A viagem foi decidida e, a mim, apenas comunicaram o fato. Se me perguntassem, saberiam a resposta antes mesmo de o não ser projetado. E não cansaram de insistir. Clarissa se municiou de psicologismo autêntico para me convencer. Faz tempo. Você já superou. Um dia vai acontecer. É melhor enfrentar logo. E quando chegar, nem vai lembrar. Só falta você dizer sim. Impossível. Não é permitido esquecer. A ambulância, os médicos, o hospital da cidade próxima, que de tão longe não se fez necessário, a enfermeira a me entreter com histórias de pescador (ainda penso no seu avô, o pescador mais antigo da vila, desde 1947 abarrotava a embarcação de robalos, linguados e pargos. Não gostava de pescar camarão). Estava na sexta série, e usava o cabelo comprido com mechas de papel crepom rocha, verde, azul, pulseiras pretas com tachinhas e All Star, aquele furado no calcanhar direito. Vamos. Vai ser divertido. A gente não vai te deixar triste. Estas vão ser as melhores férias, desde. Desde sempre. Você precisa sair. Vem?
12 de janeiro
Arrumei a mochila sem saber o que levar. Automático. Tirava do roupeiro, camisetas, shorts, vestido (estampado com flores e alcinhas), havaianas, outro par de havaianas, rasteirinhas, e amontoava até aguentar o peso e o zíper fechar. Ficou alguma coisa de fora? Sim, biquíni. Dá pra comprar lá mesmo, disse a Rô. Partimos. É quase meio-dia. De carona, no carro da Marcela. Combinamos almoçar na estrada. Em quatro horas e meia, no máximo, estaremos lá. Mari se agita, não vê a hora de molhar os pés. Rô e Clarissa não param de falar nos homens que se exibem jogando frescobol. Eu preferia ter ficado em casa. Podíamos demorar no caminho. Para que tanta pressa? Olha a paisagem. E aquela árvore ali. Vamos descer para fazer uma fotografia? Marcela ri. Tento me controlar. É difícil. Nos aproximamos das tendas 75
de caldo-de-cana, de melancia fresca, açaí gelado, a cidade fica no último pedágio. O litoral, e só. O litoral do sul. Abro a janela do carro e sinto a brisa, o ar úmido, escuto o barulho. O som daqui. Achei que não reconheceria, é quando a água rebenta contra os molhes e espraia pedra acima, encharca tudo, imóvel ou móvel. Esse som, o mesmo som, o som daqui. Inconfundível. As pessoas correm para não ser atingidas. As roupas colam no corpo, a água adere aos pelos, desarruma os cabelos, faz as moças gritarem. O movimento continua. Água vai: água vem. Nos molhes. Descemos do carro. A casa fica a uma distância razoável, cerca de 12 minutos. Respiro. A lembrança do gosto de ar salgado me invade, sinto, cheiro, provo. De Sal e água. Olho em volta. Não vejo a praça que ficava no centro. Demoliram para construir o primeiro prédio de cinco andares do balneário, me diz Rô, assim que percebe meu olhar à procura das árvores, dos bancos, gangorras e balanços. Fico frustrada. O cenário se reconfigurou. Pelo jeito, os atores também. Descarregamos a bagagem. A casa. Essa mudou pouco. O estofado do sofá não foi remendado. E ainda falta tecido para um lado da cortina da cozinha. Entro no quarto. O mofo cobriu parte da parede. Meu nariz coça. Abro a janela, sal, água, mofo, maresia. Espaço. Era o meu espaço. A casa que ninguém quis comprar. Era esse o meu espaço. As garotas me chamam. É hora. Vamos? Aproveitar a luz do dia. Minhas pernas não se movem. Não estou preparada. Podemos deixar para amanhã? Pela demora na resposta, eu entendo a vontade que as trouxe até aqui. Vão vocês. Prefiro ficar. Gosto dos primeiros raios da manhã e preciso descansar para acordar disposta. Podem ir. Marcela, Rô e Clarissa pegam cadeiras, esteiras de palha, guarda-sol, e o resto da parafernália. Mari não se mexe. – Não vou te deixar sozinha, – diz e me olha com ternura – não te preocupa. Agradeço. Me sinto pouco segura. Nada.
Sexta-feira
5 horas da manhã. As costas doem, o colchão não reconhece as curvas do corpo. Levanto sem ter dormido. Caminho sem estar em pé. Como sem ter fome. Clichês apropriados. Na bolsa, o dinheiro para comprar o biquíni. Desperdício. Melhor seria economizar, nem sei se vou usar. Camiseta e short, muita gente usa, para fazer exercício é mais confortável. Saio de casa, não sei o que espero, o que espero de mim, o medo me deixa alerta, sigo em frente. Meus pés marcham. Acatam ordens. Pouco precisas. Na segunda esquina, ele começa a se apresentar. Superior. Vejo-o. Jorra nas pedras. Escuto-o. Derrama-se por inteiro. Largo. Extenso. Profundo. Infinito até onde imagino. E não consigo ver. Tiro as havaianas, seguro o par de chinelos entre as pontas dos dedos da mão direita, o indicador e o polegar em arco. Os grãos de areia misturam-se às minhas unhas, apossam-se dos pés, fundos, sobem pelas panturrilhas, chegam aos joelhos. Não adianta espalmar, nem limpar, ignoro-os. Gosto de me mover com dificuldade, o peso do passo, calcanhares enterrando e desenterrando. Verde, azul, branca, cinza, a água. Que deveria ser. Por aqui, em tons de achocolatado. Mias cinza. Conchas de diferentes tamanhos espalhadas por toda essa faixa de areia. Vejo a coleção de conchinhas que ficava no pote de vidro em cima da geladeira, nós juntávamos até transbordar, aí despejávamos de volta e no outro dia recolhíamos novas conchinhas. Ou eram as mesmas? Dizem que ele regurgita tudo. Devolvido. Tudo. Não concordo. 76
Caminho. Quase deixo a liquidez encostar minha pele. Ainda não. Não me toque, ainda. Aproxime-se com cuidado, peço. Você me magoou. Não posso perdoá-lo. Não. Essa sua ganância. Ele era tão pequeno, tão menor que você, estúpido e grande e forte e dominador. Para você, ele era apenas outra conchinha para arrastar ao fundo e devolver. Recupero o fôlego. Respiro salgado. O vento tamborila bandeiras, tecidos e lonas de guarda-sóis, as pessoas começam a chegar, poucas, a manhã se desvela. O senhor passeia com o cão ao lado, a senhora se alonga adiante, o moço abre a tenda de milho-verde, o vendedor prepara seus badulaques ambulantes, a moça provida de melanina aproveita os primeiros raios a tostar sua pele, a família ocupa seu lugar, movimento, gente, vida. Água vai e água vem. Água vai. Água vem. Vai. Vem. Os molhes encharcados. As rochas esverdeadas de musgo. As embarcações saíram de madrugada, os pescadores esperam o anoitecer para se despedirem da terra. Última sexta-feira. Brincava, corria, nadava, mergulhava e apostava quem segurava mais tempo a respiração debaixo d’água ou quem aguentava não ser arremessado de volta à areia cor de nata. Cor de mel. Doce de leite, ele dizia. Nesta sextafeira, estou sozinha, ele não aguentou a nossa brincadeira. Invenção de irmã mais velha. Minha ordem para continuar brincando. Ele disse que estava cansado. Não acreditei. Oito segundos, acho, ainda estava contando e o salva-vidas – o único nessa enseada de pescadores – nadava em sua direção, pulava em cima do corpo miúdo, resgatava-o. Meu pai me arrancou d’água e depois o carro atrás da ambulância e depois o hospital e depois a enfermeira com a história de seu avô pescador. Como se jamais tivesse pertencido a você, que me aceitava como filha. De Janaína restou a dor de não conseguir ficar longe do seu encanto azul. Tampouco azul. Sequer verde ou transparente. Mais cinza. De espuma nívea, ou quase, de som a ressonar em pedras e conchas, água vem e vai, vem e vai, convidei-o a partilhar, vem e vai. Água. Vem. Vai. Ele, menino, não tinha nada com você. O que você tem, é comigo. Não resisto. Você ainda me cativa. Deixo. Me invade. Na minha cintura. Vai. Água. Vem. Água.
natasha centenaro é mestre em Escrita Criativa (PUCRS) e jornalista. Seu livro de contos Dessas mulheres (no prelo) foi finalista do Prêmio Sesc. Autora de Histórias de silêncio para encenar.
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o esculpidor de nuvens otávio linhares
sento no chão e começo a desenhar as pistas dos carros de corrida. pego a caixa de dominós da disney. cada peça é uma figura diferente então cada peça vai ser um piloto diferente. a melhor peça é a que tem as duas fotos do tio patinhas. o tio patinhas é o mais rico e é o meu piloto favorito. eu torço pra ele mas ele não vai ganhar todas senão fica sem graça e é sacanagem com os outros pilotos que também estão competindo. eles não vão mais querer correr se uma vez ou outra eles não ganharem uma corrida. então eu deixo eles ganharem uma vez ou outra de vez em quando. eles não podem saber que sou eu que estou deixando eles ganharem senão eles não vão mais querer correr as corridas. tem que ser de um jeito que eu sempre ganhe e que eles não fiquem sabendo que eu vou sempre ganhar e que quando eles ganham é porque eu deixo. aí eu anoto tudo no meu caderno vermelho. faço as tabelas igual na televisão. uma coluna de pontos e uma coluna de nomes. coloco o nome do meu favorito primeiro. não. não faço isso. eles vão desconfiar se eu fizer isso. coloco o nome do seu maior inimigo primeiro. não. não faço isso também. vai parecer que eu quero favorecer o inimigo só porque não coloquei o nome do meu favorito primeiro então coloquei o dele. vou fazer um sorteio. melhor. vou escrever o nome de todos nuns papéis e coloco num saco plástico e chacoalho bem e vou tirando e anotando um a um pra não esquecer. só que não pode ser eu quem tira os papéis senão depois vão dizer que eu estou roubando. levanto. abro a porta do quarto. a casa está vazia. só o barulho da panela de pressão na cozinha. a mulher deve estar fazendo feijão. a mulher sempre faz feijão naquela panela que faz barulho. vou bem devagar na ponta dos pés. eu sei caminhar sem fazer barulho. aqui em casa não pode fazer barulho nem quando os barulhos lá de fora são maiores que os daqui de dentro. viro a chave da porta bem devagar. cléc. abro a porta da sala e vou até a casa da camila. a camila não está. droga. prefiro a camila. a gente vai junto pro colégio e a gente se gosta. a gente até já deu um beijo escondido na garagem do prédio. no quartinho das bicicletas. ninguém sabe. só os meus primos que não são meus primos de verdade. você entende? a gente cresceu junto e parece que eles são meus primos. as pessoas dizem que somos primos. não somos primos. somos amigos que cresceram juntos. pode ser a flávia então. a irmã da camila. ela é mais velha e fica comigo de vez em quando quando a mulher tem de sair e eu não posso ir junto. oi. oi. vem comigo. já vou. mãe vou com ele. a flávia 78
vem comigo até o meu quarto e tira os papéis um de cada vez. eu anoto todos os nomes um de cada vez. o meu favorito é o terceiro. oba. o inimigo ficou em quinto. acho bom. assim ninguém vai ficar dizendo que eu roubo. a flávia olha um pouco e vai embora. a mulher vê a flávia indo embora e pergunta o que a flávia estava fazendo aqui em casa. veio me ensinar a lição de matemática. a flávia é mais velha e às vezes vem me ensinar lições de matemática. eu finjo que falo a verdade e a mulher finge que acredita. fingimos que nos gostamos assim. termino de desenhar as pistas. posiciono os carros em suas posições. antes eu faço as tomadas de tempo pra ver quem sai na pole position. o meu favorito não pode ficar em primeiro na primeira corrida. e o inimigo dele também não pode. então deixo igual ao sorteio que a flávia fez. pra primeira corrida está bom. e posiciono todos nas suas posições. eles arrancam para o grande prêmio do rio de janeiro em jacarepaguá. serão sessenta e seis voltas de pura emoção. repito o texto da televisão. sei todos de cor. em duas horas teremos um vencedor.
(este texto faz parte do livro de contos O esculpidor de nuvens, que será lançado em 2015 pelo selo editorial Encrenca – Literatura de Invenção)
otávio linhares nasceu em Curitiba em 1978. É editor da Revista Jandique, editor do Selo Encrenca – Literatura de invenção e barista no Rause Café, em Curitiba. Publicou o livro de contos Pancrácio (2013) e prepara para 2015 o livro O esculpidor de nuvens, também pela Encrenca.
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a virgem esporrada rafael mendes
O que se faz uma hora desta da madrugada, qual a graça do gosto da cachaça, pra quê tanta risada com essa gente que mal conhece, que nem conhece, nesses bares sujos cheios de garrafas e demônios nas paredes, justo Genival, que dizia não entender isso, essas rodas de homens sem futuro, remoendo o passado, Genival dizia, no nosso noivado, e agora lá, bebendo e ruminando, dando colo à outra vaca, não a esta aqui sozinha em casa, que ainda muge por ele, como se, como se trancada num estábulo engordando, as tetas caindo, já murchas, de quem derramou muito leite, aliás um copo de leite, pra ver se passa essa azia, essa ânsia, leite não tem em bar, bar só tem cachaça, será que cachaça também serve pra curar isto do estômago, não, não, cachaça deve descer amargando, aziando mais ainda, mais até que o vinho que dão na igreja, um gole só, na santa ceia, acompanhado de um naco de pão, que purifica tudo por dentro, purifica a alma, eles diziam, a mãe dizia, Genival dizia, por isso só mesmo um copo de leite puro, branco, porque isto não é pecado, não, isto não é pecado, Genival disse naquele dia, a porra do dia mais bonito e mais feio da minha vida, eu que nem imaginava um dia dizer a palavra porra, quando me vesti de branco, branco como esse leite, dizem que leite faz bem pros ossos, por isso que talvez o Marquinhos daquele jeito tão forte, eu que dei muito de mamar pra ele, e pro Lucas também, se bem que o Lucas, mas ah, Deus sabe de todas as coisas, ah, Deus sabe de todas as coisas, como é que a gente continua com essas expressões mesmo sem mais a crença, será que é pecado alguém tirar a crença de outro alguém, Genival foi quem tirou a minha, ele perdeu a dele e tirou a minha, agora tá lá dando colo pra outra vaca, uma mundana, a mãe me diria, o que talvez eu ouvisse, talvez acreditasse, mas a mãe disse muita coisa que depois descobri ser mentira, ser enganação pra mim e pra ela mesma, ela morreu acreditando nisso, me fez a criação inteira acreditando nisso, nesse papo de céu e capeta, de misericórdia e culpa, me fez casar assim, e foi só quando o Lucas, lá no hospital, depois da notícia do médico, em que ela veio de novo com esse papo de saber de Deus, que eu tive coragem de negar, pra ela e pra mim, pro mundo inteiro se fosse preciso, e acho que daí o grito que eu dei, a dor que senti, meu filho longe de mim, meu marido longe de mim, Genival nem preocupado com a coisa toda em que estávamos envolvidos, talvez por isso essa descrença dele, que já vinha de dias, acabou agarrando em mim, me transformando nisso que sou hoje, sem fé, sem esperança, sem Deus, eu, justo eu que cri tanto e orei tanto pra Ele, quando era 80
mocinha, uma bezerrinha, pedindo uma boa família, pedindo felicidade, ah como eu queria isso que a mãe dizia ser o mais certo pra mim, na nossa enganação, um lar, um marido, uns filhos, por isso Genival era o mais certo, Genival é valoroso, a mãe dizia, é mais experiente, é mais vivido, já frequenta a igreja há alguns anos, vai saber te tirar das veredas tortuosas, ela dizia, acreditava, querendo pra mim aquilo que ela mesma não teve, a felicidade, que Deus a tenha, minha mãe, ah, essas expressões, como se desfazer delas, se elas nos acompanham desde sempre, como descrer, um dia eu perguntei pro Genival, faz tempo, o Lucas ainda só com os primeiros sintomas, e ele disse que a pessoa pede e pede e pede pra Deus porém nunca tem resposta, que um dia eu ia perceber isso, que um dia iria me cansar disso, que é como se pedisse pro vazio, pro nada, ou seja, Deus é nada, ele disse, mas eu não quis acreditar ainda, só quis saber que raios ele tanto pediu pra Deus e ficou sem resposta, se naquele tempo a vida não era de todo ruim, ainda havia esperança, o Genival nunca me contou, só foi deixando de ir pra igreja, começou a beber, ele foi mudando, tá tão mudado, não é mais aquele que conheci, que me colocou cabresto e me levou pro altar, eu toda faceira, linda e virgem, pura, transparente como este copo, mas isso faz tempo que já nem sei mais quanto, hoje ninguém mais casa assim, a própria Lívia ao casar com o Marquinhos não fez questão de esconder que já tinha dado, a mãe se tivesse viva nunca permitiria uma nora desse jeito, assumida, mas o Marquinhos é meu filho e faz o que quiser, tá lá com a vida dele, não bate na mulher, não bota medo nela, não a deixa marcada como quem marca um gado, pelo menos nisso ele não puxou o pai, que o Genival sim é um estúpido, um grosso, eu bem que podia largar dele, sumir nesse mundão sem cerca, nem que fosse pra ser pedinte, mas como é que a pessoa muda, como é que se desfaz, justo eu que passei a juventude toda acreditando nisso, larguei a escola pra casar, não tenho emprego nem formação nem porra nenhuma, porra, que até o capim que o Genival põe na mesa é o que me alimenta, não consigo mais largar essa sina, tô aqui esperando o abate, o sacrifício, então não posso dizer que sou santa, nem em Deus mais acredito, que pelo menos nisso o Genival tinha razão, um dia eu ia pedir e pedir e ia ficar sem resposta, lembrei disso quando o médico veio me dar a notícia, sepultando toda a minha esperança de meses e meses orando na cabeceira do Lucas, meu menininho, sim, o Genival tinha razão, Deus é nada, ele disse, eu disse gritando pra mãe, pro médico, pra mim, sim, Genival tinha razão, se bem que isso não justifica as atitudes dele, bater na mulher, maltratar, nem mesmo um homem sem Deus tem direito a fazer isso, deixar a mulher em casa, sozinha, quando na verdade os dois deveriam caminhar juntos os primeiros passos da velhice, no entanto ele prefere ficar no bar, se encachaçando, dando colo, e eu aqui nesta cozinha olhando pra esse copo molhado de leite, que mais parece uma porra, mas bem que deveria saber que a nossa vida toda seria assim, eu bem deveria saber, desde o dia do casamento foi assim, depois que acabou a festa abençoada por Deus, como a mãe disse, eu achava que teria uma linda noite de núpcias, essa coisa fora de moda, e o que aconteceu foi que antes de tirar o meu vestido branco e fincar em mim, o Genival precisou descarregar com a mão mesmo a sua porra acumulada, despejando em cima do meu peito, do meu pescoço, do meu rosto, dizendo que era pra aproveitar melhor o meu corpo, depois, demoradamente, primeiro um descarrego, ai sim eu veria o que era ter um homem, e disse também que não me preocupasse, ao ver a minha cara espantada, porque isto não era pecado, toma leitinho, toma, toma porra, e eu me lembro disso como se fosse agora, sentada aqui nesta cozinha vazia, com saudade do meu 81
menino, meu menininho, mugindo como uma, esperando por um marido que tá perdido na madrugada do mundo, pra quem sabe receber pelo menos um abraço, só me resta ele pra um abraço, ainda que dele, por isso eu pergunto, Deus, se é que você existe, sé é que ainda existe, o que uma pessoa faz nesta hora?
rafael mendes nasceu em São Paulo, onde vive com a esposa e os filhos. É autor do volume de contos A melhor maneira de comprar sapato (2012), e do recém-lançado romance Fôlego (2014), ambos publicados pela editora Confraria do Vento.
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um tanque cheio de pirarucu (ou, da metáfora) para Helena Martins
raïssa de góes
Certa feita, por andar mordendo demais os beiços aqui no Rio de Janeiro, minha mãe tomou-se de preocupação e mandou-me passar tempos com meu pai. Era uma fazenda no interior do Amazonas, nem bem interior, era um pra lá do meio, quase uma ponta do Amazonas fazendo fronteira com um numseiquê. Pois bem, pra esse remoto fui mandada pra me acalmar. Nunca tive nem dez minutos de calma, que dirá conquistar treze anos, como dizia tio meu. Cheguei em terra estranha, terra de longe com pai estrangeiro de mim. Pai nascido e criado no lado de dentro da fronteira, mas mesmo assim estrangeiro. Pai estrangeiro da terra, de mim, de pai. Pai/filho. Fiquei a esmo, olhando o mundo no seu intento de se fazer e desfazer pela tarde. A tarde por essas bandas termina num rompante. Cai o Sol e é já noite. Talvez a proximidade com a linha do Equador, linha de invenção, mas mesmo inventada faz o Sol tombar pra debaixo da terra. Do solo. Solo ruim e infértil do Amazonas. Onde, se plantando nada dá. Solo ruim e encharcado, umidade sem fim. Água por todo canto. Nada. Os pés sempre molhados e a cara empapuçada. Tanta água no ar, a feiúra se fazendo na pele toda. É doído ser feio e úmido. Feio o entorno, feio o rosto. Rosto do espelho. Meu? De numseiquem. Solo onde só tem a floresta crescendo desordenada, onde nada dá. Nada. Era pra esse longe que minha mãe me mandou. Ficava assim, olhando o tempo e o rio. Gostava do rio, mas era gosto da vista e não do corpo. Não entrava. Não molhava mais do que o ar. Olhava só, a superfície parada e escura. Promessa de coisa por baixo e num tinha nada do outro lado. Era só o escuro da superfície. Num entrava, ficava imaginando que era vidro. Pralém do rio e mais pro dentro das terras de meu pai, havia tanques de água e peixe. Peixe canibal, comiam os outros de sua espécie, fosse menores ou feridos. Covardia. Ou era o jeito deles serem peixes. Caminhava na beira do tanque. Era diferente da água do rio, em cor parecia a mesma. Mas era inquieta. Eram eles que faziam assim, burburinho. Parecia que fervia o tanque quando se jogava pedaço de peixe morto lá pra dentro. Metia medo. Um dia sem querer procurar a água, mas bolinar o medo, enfiei o braço lá pra dentro. Nada se passou, bem verdade se mexeram, mas foi pouco. Carne de gente, minha, prestava pra nada. No dia que veio depois, fui indo mais. As pernas. Rebuliço pouco, e um roçou de banda na minha canela. Foi um susto. Puxei as pernas e corri. 83
Dias fiquei sem chegar perto do tanque. Foi pela noite que me decidi. Entrei inteira no tanque. Os pés tocaram uma lama. Parecia feijão frio. Um nojo. Nojo e a água por todo lado. No lugar de lá, nem tem diferença o se estar dentro ou fora d’água. Umidade. Dentro é como fora. Os bichos se assanharam. Sentia uns pedaços deles passando por meu corpo. Bicho frio, escorregoso. No claro que dá a noite, era a ver uns lombos que saiam dá água. Ver o todo não podia. Era escuro. Se via reflexo. Se sentia o couro gelado do canibais. Peixe passando pelas pernas, pelos braços. Um medo danado. A visão por fragmento. Pedaços de peixes. Quantos eram? Nem sei. Podia ser um só. Num vi no todo. E tinha todo? Peixe se fazendo e desfazendo. Num sabia o tempo que já estava lá com os peixes. Dentro do tanque. O vigia apareceu. Esticou uma tora grande de madeira, peguei e saí de lá. Ele não disse nada. Homem quieto. Nem se demorou em me olhar. Apontou a casa da fazenda e voltei pra dentro. Num virei peixe, soube que teve um que virou. Saiu pra pescar e voltou com escamas pelo corpo. Num virei peixe. O que passou foi nos olhos. A visão prejudicou. Será prejuízo? Passei a ver cortado. Já num havia pra onde olhasse que desse de perceber o todo das coisas. Fragmento. Era assim também com gente, da espécie que fosse. Me calei mais, deixei de morder os beiços. Minha mãe buscou de volta. Se acalmou, deve ter pensado. Mas não era calma. Foi a vista. Enviesou.
raïssa de góes
é artista plástica e cursa o doutorado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na PUC- Rio. Publicou dois livros: Malhada Vermelha (2011) e autorretrato (2013), ambos pela Ed. 7Letras. É carioca e nasceu em 1976.
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tia yvone reinaldo ramos
A percepção que a criança tem de si não é a de um ser tutelado, apêndice alienado do mundo adulto. A consciência da criança se percebe tal qual se percebe a de qualquer outro individuo. As crianças são homúnculos ensaiando guerras e armistícios. São hábeis negociadores, chantagistas proficientes. Uma criança é a política em seu estado mais primitivo. Vulnerável por todos os motivos, sem a força física e só com a intuição potencial da barganha e a necessidade instintiva do afeto, por vezes a inocência vai-se antes do que a vida deveria pedir. Tia Yvone era desses adultos que as crianças não suportam. Ela suava frio na região do buço e usava um perfume agressivo, desses que ficavam guardados em frascos decorativos “vintage”, que lembram remotamente uma mistura do formato de um narguilé com o da casca da fruta do conde. Anos depois vim a saber que o perfume que me asfixiava era à base de almíscar, matéria prima extraída da vesícula do musaranho. O abraço de tia Yvone também era gelado. A pele morta do braço (feito a papada do gado nelore) tinha a mesma frialdade do buço. Como répteis são animais de sangue frio, pensava que talvez minha tia fosse uma mutação reptiliana originada em um tronco evolutivo que se separou das aves e que parou próximo dos hominídeos sem ter percorrido a trilha dos primatas (répteis são predadores dos musaranhos). Era a solteirona clássica: vivia sozinha com treze gatos e tinha uma rotina espartana: acordava sempre às 5:00 para faxinar a casa. As irmãs, todas casadas, davam a ela um tratamento piedoso, como se a solteirice no universo delas fosse um tipo de aleijão social. Fazíamos os festejos de meu aniversário sempre em sua casa – pela comodidade que oferecia o quintal espaçoso. Mamãe havia feito uma promessa a Cosme e Damião por conta de uma febre forte que tive ainda pequeno. A febre refluiu no dia 27 de setembro de 1985, meu aniversário de sete anos, do mesmo modo que chegou, sem avisar e sem dizer a que veio. Não havia médico que acertasse diagnóstico - houve até quem me desenganasse por conta da dificuldade em ingerir alimentos sólidos, que durou mais de dez dias. Por gratidão, a partir do ano seguinte até meus dezoito anos, mamãe ficaria de frente na organização da distribuição de doces e brinquedos. Meses depois da minha melhora, nova febre, ainda mais violenta. Minha babá, Rosa, uma evangélica não ortodoxa e com vasta experiência em cultos afro-brasileiros, localizou 85
um embrulhinho de algodão em baixo da soleira da porta do meu quarto. Dentro havia um pomo seco de maçã com sete sementes e restos de osso de uma lagartixa. Lembro da Rosa me rezando, expulsando o mal “em nome de Jesus” inúmeras vezes. Levamos tudo para o quintal e mamãe me disse para fazer xixi em cima. Depois caminhamos até a rua detrás da nossa e jogamos no córrego que fluía em direção à Guanabara. Mamãe disse: “levai para as ondas do mar sagrado. Quem te mandou, diz que não me encontrou”. (E eu, crédulo na eficácia de todo aquele ritual, até hoje repito essa salvaguarda quando passo diante de uma obrigação). E dessa vez, a febre não voltou mais. Sempre tive ojeriza aos adultos que beijam e agarram as crianças feito bibelôs. Devem seguir algum pressuposto egoísta que projeta nos pequenos qualquer coisa de uso e propriedade extensiva, um playground mini-humano para recreio de gente viva acometida de morbidade glandular. Não é menos abuso que qualquer pedofilia, se dessa não for uma variante. Falo isso porque havia uma “rixa” antiga entre a Rosa e a Tia Yvone. Todas as vezes que a Rosa se aproximava de mim, Tia Yvone me constringia como uma caninana enrolada num hamster. Reza a história que Tia Yvone teria sido noiva de um rapaz do Grajaú, estudante de engenharia e filho de um funcionário de alta patente do extinto Instituto do Açúcar e do Álcool. Na época com doze anos, Rosa já fazia faxina em casa de mamãe. Ela era filha de criação de uma mãe de santo bastante idosa, que a recebeu como se fora uma encomenda dos orixás, ou embrulhadinha em cesto de vime feito Moisés - versão que Rosa preferia. Mamãe, por ser mais velha, mediava o namoro da Tia Yvone. Fazia sala para o cunhado antes de Tia Yvone chegar do colégio. O fato é que o janota se engraçou com Rosa. Ameaçou, insistiu, chantageou. Até que Rosa pediu socorro à mamãe. E o salseiro se armou na família. Pra piorar, a mãe de Rosa faleceu perto dessa época. No fim das contas, Rosa foi morar com mamãe, o noivo sumiu no mundo, tia Yvone parou de falar com mamãe por um bom tempo e titia nunca perdoou a Rosa. E também nunca soube a versão dela da história. Não importa onde nós fôssemos Rosa estava conosco. Era nossa retaguarda espiritual. Nossa fiel escudeira. Nossa zeladora. Mamãe tinha confiança irrestrita na sua lealdade. Estavam juntas há mais de vinte anos. Devo a ela a maneira respeitosa como trato a fé de todas as pessoas. Mesmo com toda antipatia de Tia Yvone, não houve um aniversário sequer entre meus oito e meus dezoito anos, em que Rosa não tenha ficado ao meu lado e ao lado de mamãe durante a festa – mesmo impedida de ajudar na arrumação e no preparo das comidas. O que ninguém nunca soube é que Rosa devia a mim esse salvo-conduto, por conta de um acordo que fiz com Tia Yvone, aos dez anos. E é por causa desse maldito acordo que até hoje, vez ou outra, o cheiro de almíscar me entra pela memória inundando o quarto, me fazendo correr para a janela antes que eu comece a somatizar um edema de glote. E pra me prevenir que alguma eventual obsessão se instale (receio de que tia Yvone tenha virado um súcubo), acendo uma vela ao meu anjo da guarda e rezo um creio-em-Deus-pai. Mas valeu a pena fazer isso por Rosa. Nunca vou ter crédito que lhe pague essa dívida.
reinaldo ramos
é oeta, contista e filósofo. Publicou Livro de Mentira (poesia), pela Ithaca Edições. Prepara um livro de contos.
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chris boogie woogie roberto dutra jr.
O garoto abre curioso a porta da garagem. Está limpa e organizada. Anda depressa até um canto onde as paredes têm um quadro com diversas ferramentas penduradas. Senta seus recentes dez anos na cadeira da bancada com os pés balançando e discretamente girando, já que a cadeira tinha rodinhas. Ouve um barulho. Logo mais no fundo havia um banheiro. Um homem de cabelos completamente brancos e cortados à máquina na nuca sai do fundo da oficina e sorri largamente pro menino. – Rapaz! Você veio! Você veio mesmo. Estou feliz agora. Seu pai, na sua idade era assustado, receoso, parecia ter medo da própria sombra. Você tem os olhos dele sabia? Só que essa curiosidade e coragem eu acho que ganhou da sua mãe. Esses dons nunca são distribuídos à toa. Nem de acordo com o que esperamos. Toca aqui, dá um abraço. Arrumou a calça um pouco. De vez em quando caía. As mãos sujas de graxa e o cheiro de lubrificantes no ar. Sorrindo, os dois pareciam não se importar e o rádio baixinho no fundo, sintonizado em ondas curtas e tocando oldies. Trazendo-o pela mão o velho abre a porta do carro e coloca o garoto sentado no volante. Um conversível branco, enorme para os padrões mais modernos. O garoto adorava o emblema na lateral do carro. Era um bicho africano, um Impala, por que é rápido, dizia o velho dando risadas de orgulho. Deu a volta por trás do carro logo após fechar a porta do lado do motorista. Estava alegre quase saltitante. Adorava as visitas do menino e se apoiando no paralamas traseiro deu um pulinho pra bater os calcanhares no ar. Frank Sinatra começava a tocar no valvulado em cima da bancada. – Lembra que te contei que eu e meus amigos descemos de pára-quedas? Pois é. Eu estava morrendo de medo, então aquela noite recolhemos o que pudemos e escondemos sob as folhas. Não avançamos. Estava todo vestido e tinha mais a mochila, pesadíssima. Nenhum acampamento que fiz quando tinha a sua idade se compara. O sereno daquela noite era terrível e além de nós mesmos, só tínhamos os cigarros pra nos aquecer. 87
Pela manhã, eu havia dormido acocorado ao tronco de uma árvore e, ao acordar, eu pensei que estivesse num sonho. Queria voltar pra escuridão do meu quarto. Impossível, impossível. Era a guerra, e a gente bem no meio dela. Você precisava ver que manhã bonita. Era um bosque, havia uma árvore aqui, outra lá e parecia que o verde tinha sido colorido como na película de um filme. Logo encontramos uma estrada, mas não seguimos por ela. Ficamos há uns dez metros. Pra manter a direção. Caso os chucrutes nos vissem do céu, correríamos pro abrigo das árvores. Por causa disso marchávamos em silêncio, mas tudo que eu e os rapazes ouvíamos era o canto dos pássaros. É garoto, os chucrutes, sabe… nós tínhamos muita raiva deles, mas na verdade nenhum de nós tinha sequer visto um de perto. Todo mundo jovem, armado, morrendo de medo, acho que atiraríamos em qualquer coisa que se movesse, naquela manhã. Acho que na verdade ninguém que eu conhecia queria entrar em ação. Lembro que algum momento da tarde ouvimos um motor de avião. Ficamos tão silenciosos que dava pra ouvir a brisa deitando a relva alta. Ouvíamos o motor, vinha de algum ponto sudeste da nossa posição. Devia ser apenas um reconhecimento e seguiu pro sul. Mas naquela hora ninguém disse uma palavra e até o fim do dia ficamos calados. O sol iria se pôr em uma hora no máximo. Foi quando avistamos uns pontos de fumaça à nossa frente. Lembro que o sargento ergueu o braço e ninguém nem esperou que ele terminasse o gesto. Num momento estávamos em pé e no outro estávamos rastejando, protegidos pela relva. Dois garotos foram de batedores, sabe. Você sabe… correndo agachados, fuzis nas mãos… Um minuto depois eles acenaram, sinalizando que a área estava limpa. Fomos chegando perto e havia um carro, não como esse, era luxuoso, bem mais antigo, cinza. Só faziam cinza e preto naquela época, mas percebemos logo que era um carro oficial e havia acontecido uma emboscada. A fumaça vinha das granadas, e um outro carro, provavelmente a escolta, estava pegando fogo. Acertaram o motor em cheio. O corpo do motorista estava queimado, o rosto escurecido e a boca aberta. Horrível, sabe? Acho que ninguém havia visto um cadáver até então. Quanto mais daquele jeito. No lado da emboscada vimos alguns com o nosso uniforme, uma companhia que havia pulado conosco. Eu comecei a ficar enjoado e acho que por isso não lembro muito das identificações. Errei quanto a isso. Em contrapartida o destino imprimiu fundo na minha mente os rostos daquela tarde. Tropecei no corpo de um e vi que ele havia sido alvejado no rosto. Os chucrutes eram bons de tiro. Três vezes… O nariz havia sido arrancado e uma bala entrou pelo rosto e outra logo na altura dos molares. Retirou quase toda a pele do rosto dele daquele lado. Era bem diferente dos filmes de terror que havia visto. Não era preto e branco… Um outro dos nossos estava perto do carro oficial. Dois buracos nas costas, por onde saíram as balas e parece que ele continuou correndo em direção ao oficial, que deveria estar no banco de trás. Você imagina os corpos todos duros, mas ali a morte parecia ter chegado de modo tão rápido que todos ainda tinham um movimento pra completar. Eu estiquei o pescoço e vi o corpo do oficial no banco traseiro do velho Mercedes-Benz. Atingido na têmpora. Seus olhos estavam abertos, fitando alguma coisa ou algum lugar adiante. Até hoje me pergunto se os que ficam com os olhos abertos sabem realmente que morreram. Vou te contar uma coisa que aprendi nessa guerra garoto, o que não matamos no passado, sempre retorna pra nos assombrar no futuro. 88
Os dois se olharam por um instante e o velho pensou se não era muito pro garoto. Besteira, nada abrandara sua própria infância e era disso que homens são feitos. Uma voz de mulher, vinda da casa, anunciou o fim do encontro. – Sua mãe. Entra pra almoçar. Depois volta e te conto mais da guerra. Os dois selaram o pacto com um largo sorriso e o garoto volta-se pra abraçar forte o velho pelas pernas. Os dois riem e o garoto parte correndo pelo gramado. – Afinal o que ele fica fazendo na garagem? – Calma, tá brincando sozinho. O carro velho do meu pai é conversível, por isso, ele entra. Outro dia passei pela porta da garagem e ele estava quieto, sentado ao volante. Coisa de criança. Ele não mexe nas ferramentas e acho perfeitamente seguro ele ficar na garagem. – Quando você vai se livrar do carro velho? – Não sei. Era xodó do meu pai, o Impala branco. Ele nem gostava que eu dirigisse. Semana passada eu trouxe o rádio valvulado que era dele e coloquei lá atrás também. – Você não vai fazer um mausoléu pro seu pai, vai? – Não, fica tranquila. Vou colocar o rádio na mala do Impala e quem sabe alguém leva os dois por um bom preço. – Aquele rádio funciona? – Não. Acho que a parte de alta tensão já era. Nenhuma das válvulas acende. – Você sabe que Chris quando volta da garagem diz que estava ouvindo música? – Não. Por quê? – O carro tem rádio? – Não. – Pensei que o fosse o rádio velho do seu pai. – De jeito nenhum. – Do que ele fala, então? Achei estranho. – Brincadeira de criança. – Você percebeu que desde que você começou a desempoeirar as tralhas do seu pai na garagem, o Chris fica sempre na garagem sozinho quando você não está? – Não vou dizer que reparei, mas desconfiava. Também acho que não há nada de mal nisso. – Olha, o que não matamos no passado sempre volta pra nos assombrar no futuro. – Chega. Pare por aí mesmo. Você sabe que meu pai é que dizia isso depois que voltou da guerra. Isso me assusta. Nunca entendi o que ele queria dizer com isso. Sei que vocês se davam bem, mas eu achava estranho, ele estava diferente. Não sei. Não fica repetindo isso como se quisesse me lembrar dele. Nisso, Chris entra pela cozinha, sorrindo e com as bochechas rosadas do estirão da garagem. Os três sentam e começam a se servir, quando seu pai resolve perguntar: – Tava na garagem brincando, filho? – Tava. – Você acha legal o carrão do vovô? Chris faz que sim, animado e com a boca cheia. Cantarola uma melodia. O pai ri. 89
– Boogie woogie! Conheço essa música! Que legal Chris, onde ouviu? Isso é velho, meu velho cantava! – O rádio da garagem sempre toca. A mãe deixa o copo de suco cair por entre os dedos e o barulho do vidro quebrando assusta todos. Ela está branca e o pai, sem voz. Chris para um minuto olhando para os dois e tentando entender se dissera algo errado. Sabia que quando seu pai fitava a mãe daquele jeito algo não estava bem. Na garagem, as válvulas do antigo rádio emanavam um amarelo ouro que iluminava a parede e o dial, combinado com a poeira quente e a madeira, era como se fosse o cheiro da eletricidade. Tocava Boogie Woogie Bugle Boy na voz das Andrew Sisters e a tomada do velho rádio balançava no ar pendurada pela bancada.
roberto dutra jr.
é poeta, contista e ensaísta. Mestre em Letras, tem um livro
publicado e diversos artigos
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natação
sérgio tavares
Uma gota de chuva cai a uma velocidade de 720km/h. Se não contássemos com a resistência do ar, essa gota, ao atingir a nossa cabeça, causaria o mesmo estrago que o de uma bala de pequeno calibre. Um temporal de vinte minutos seria suficiente para matar milhares de pessoas. Ontem choveu muito, mas apenas não teve aula. A chuva de ontem poderia ter matado a todos da minha cidade, mas apenas inundou bueiros e o fosso dos trilhos, e não pôde circular o transporte público. O homem do tempo, na televisão, disse que choveu o equivalente ao volume de cinco piscinas olímpicas, 13 milhões de litros. Fiquei imaginando a minha cidade submersa, com todos os movimentos afetados pela resistência da água. As pessoas, os ônibus e os trens locomovendo-se em câmera lenta, como sob o efeito daquela tecla do videocassete. Na minha escola tem uma piscina olímpica. Uma vez por mês, a aula de educação física é praticada com exercícios subaquáticos. Eu não posso fazer exercícios porque só tenho um rim. Aos dois anos, tive de extrair um rim por conta de um câncer. Isso me ocasionou um sistema imunológico fraco. Com qualquer esforço, fico doente. Por isso quando tem aula de educação física, sou dispensado mais cedo. Minha casa não é longe da escola, mas sempre pego o ônibus. Da chuva de ontem ainda restaram algumas poças pelas ruas. Gosto de pisar no centro dos círculos d’água e ver as bordas atacarem as minhas pernas feito plantas carnívoras. Elas fazem um splash e reagem. Vou pisando de poça em poça, até chegar ao ponto de ônibus. Tem uma menina lá. Está sentada no banco, com a cabeça inclinada. Parece que lê um livro. Usa uma capa de chuva rosa, uma galocha branca e outra roxa e uma boina de pelos cinzentos, com proteção de orelhas. É mais velha que eu. Um pouquinho. 91
O menino se senta no banco. Embora estejam a poucos centímetros, a menina não reage à presença dele, vidrada no livro sobre a mochila emborcada ao longo das coxas. Volta a chover, mas agora uma chuva fina. Ele aperta o gorro de lã contra a cabeça e puxa o zíper do moletom, sob a capa de chuva amarela, até a presilha. É fim de outono. O que está lendo? A menina vira-se para ele, com um leve muxoxo. 20.000 Léguas Submarinas. É bom? Você gosta de ler? Gosto muito. E nunca leu 20.000 Léguas Submarinas? Quem escreveu? Júlio Verne. Não. Então o que você lê? A testa dela se enruga sob a boina peluda. Estou lendo Sambo, o Negrinho. É para criança? Não sei. Eu gosto muito dos livros do Júlio Verne. Você deveria ler. Esse eu estou lendo de novo, é da biblioteca da escola. Eu não gosto dos livros da escola. Em que ano você está? Quinto. Eu estou no sexto. Eu acho que já te vi algumas vezes no refeitório. Meu nome é Antônio. Ele estende a mão. Eu preciso dizer o meu nome? Não. Ela aperta a mão dele. Não foi a aula hoje? Não. Eu vim para esse banco para ler. Moro aqui perto. E você? Hoje teve aula de educação física. Então fui dispensado mais cedo. Não posso fazer exercícios porque só tenho um rim. Quer ver? O menino desocupa a mochila das costas e a deposita ao seu lado, no canto do banco. Corre o fecho ecler e afasta duas camadas de pano sob o plástico da capa. Inclina levemente o corpo e exibe um trecho do flanco riscado por uma cicatriz de aspecto rosado. O que aconteceu? 92
Eu tive câncer, aos dois anos. É por isso que sua pele é dessa cor? É. Ele se recompõe. Por que usa galochas de cores diferentes? Eu tentei encontrar o par certo, mas não consegui. Procurou debaixo da cama? Não tive vontade. Ficou com medo? Um pouco. Por isso veio ler nesse banco? Eu venho para esse banco desde que o meu tio foi morar na minha casa. Você não gosta dele? Meu tio faz coisas de que eu não gosto. Você já contou para o seu pai? Eu não tenho pai. Contou para a sua mãe? Já. O que ela disse? Nada. Ela deve gostar do seu tio? Gosta. Meu tio esteve numa Olimpíada. Ele fez parte de uma equipe de natação. Desde que veio morar na minha casa, diz que vai me ensinar a nadar, que tenho o corpo certo. Ele entra no meu quarto e me empurra na cama de barriga para baixo. Depois deita sobre mim. Estica os braços sobre os meus e vai fazendo movimentos circulares. Devagar, deixando que eu assuma o ritmo pouco a pouco. Diz que estou indo bem e desocupa as mãos para me apertar. Aí vai ficando muito pesado e não consigo nadar mais. Ele ganhou alguma medalha? Não sei. Você não perguntou? Não. Eles encaram a chuva fina por um tempo. Na escola, tem uma piscina olímpica. Eu sei. Já nadou lá? Já. Gosto de afundar e abrir os olhos debaixo d’água. Sempre me imagino dentro do Náutilus, fazendo parte da tripulação do Capitão Nemo. Do tempo em que consigo prender o fôlego, fico esperando a lula gigante aparecer. Se eu afundar na piscina, morro afogado. Você tem medo de morrer? Acho que não. Eu também acho que não. A menina fecha o livro. 93
Na chuva de ontem, um cachorro morreu afogado. O corpo ainda está à beira do riacho. Quer ir lá ver? Quero. E saímos contra a chuva fina, com os capuzes das capas levantados. No percurso, fico imaginando que, se andássemos na cidade submersa, levaríamos meses para chegar até lá. Mas aí não haveria chuva e cachorros também não morreriam afogados. Se vivêssemos embaixo d’água, o tio dela não precisaria ensiná-la a nadar. Ninguém na nossa idade precisaria, de fato.
sérgio tavares é jornalista e escritor, autor de Queda da Própria Altura (Confraria do Vento/2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (Record/2010), vencedor do Prêmio Sesc Nacional de Literatura, categoria Contos. Tem textos publicados em antologias, jornais, revistas e sites literários nacionais e internacionais. Vive atualmente em Niterói, Rio de Janeiro.
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apoio
LATAN ED LAICEPSE OÃÇIDE
SOTNOC ED ATSIVER