Flaubert #07

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alexandre kramer alexandre valadares ava baraccĂĄ daniel duarte daniel lopes daniel osiecki diego moraes duda tajes fernando rocha flavio costa gustavo pacheco hugo bickel leonardo marona marcus vinĂ­cius rodrigues mayrant gallo munique duarte otto leopoldo wink paulo raviere roberto menezes rodrigo della santina ulisses mattos zĂŠ mcgill

ANO 01 / # 07

REVISTA DE CONTOS



REVISTA DE CONTOS


© 2014 PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 2014 COM O TÍTULO FLAUBERT REVISTA DE CONTOS Nº 7 /// COPYRIGHT DA SELEÇÃO © 2014 FLAUBERT REVISTA DE CONTOS /// todos os textos desta edição são copyright de seus respectivos autores /// © alexandre kramer // alexandre valadares // ava baraccá //daniel duarte // daniel lopes // daniel osiecki //diego moraes //duda tajes // fernando rocha // flavio costa // gustavo pacheco // hugo bickel // leonardo marona // marcus vinícius rodrigues // mayrant gallo // munique duarte // otto leopoldo wink // paulo raviere // roberto menezes // rodrigo della santina // ulisses mattos // zé mcgill ///

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alexandre kramer

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EXPEDIENTE EDITOR MARIEL REIS [MARIELREIS@IG.COM.BR] /// CONSELHO EDITORIAL ANDRÉ TARTARINI [A.TARTARINI@GMAIL.COM] // JD LUCAS [JDLUCAS.CONTATO@GMAIL.COM] /// EDITORES REGIONAIS RIO GRANDE DO SUL ALESSANDRO GARCIA [SEVEROGARCIA@GMAIL.COM] // CEARÁ ANDERSON FONSECA [AFCONSULTORIAEDITORIAL@OUTLOOK.COM] // RIO DE JANEIRO ANDRÉ TARTARINI, JD LUCAS // BAHIA LIMA TRINDADE [limatrindade66@gmail.com] // PARANÁ DANIEL OSIECKI [TROOPER_OSIECKI@YAHOO.COM.BR] // BRASÍLIA MAURÍCIO DE ALMEIDA [MAURICIODEALMEIDA@GMAIL.COM] // SÃO PAULO DELFIN [DELFIN.K@GMAIL.COM] /// PROJETO GRÁFICO ALESSANDRO GARCIA DIAGRAMAÇÃO STUDIO DELREY

os personagens e as situações dos contos aqui publicados são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opiniões.

ANO 01 / # 07 BRASIL 2014


EDITORIAL Para João, o menino

E

então flaubert chegou a sétima edição! Em um país em que o infanticídio não está erradicado das estatísticas culturais, figura-se como milagre estar o rebento dentre nós. E o guri está saudável, cabriola em folguedos extenuantes, arrisca-se atirando-se de ladeiras em carrinhos de rolimã e às vezes, aquieta-se para emprestar ouvido ao sermão, contudo com olhinhos sonsos e comovedores. Nenhum dos pais aqui liga ao boletim escolar do pequerrucho, repleto de emendas, com canetas de cores variadas quase não permitindo ver o desempenho do malandro – Leonardo Pataca? -, inatacável em gentileza com as mulheres e em ranzinzice com os homens. Os padrinhos, inúmeros, revezam-se de edição em edição, dando mão aos cuidados. E levado, este moleque, não se cansa do mundo e de suas invenções. A língua afiada, a atitude rapace convencem os desavisados dindos de que não se trata de um traquinas a bulir com os brios puristas, que nele tudo é sincero como voo de ave no céu. E não há cálculo nenhum em seus dengos, derramados em poesia – com qualidade e voltagem compatíveis com seu desempenho corporal. As dindas, alquimistas do verbo, mimam o guri com piruetas verbais, cocadas hermenêuticas e nós, os tutores, a ralhar com tanto carinho. Talvez mais por ciúme de não ser conosco. Tartarini, com maus hábitos, leva-o a sujar-se em areia de praia. Osiecki, para escalar árvores centenárias e ralar-se. Alessandro, em calção de banho, mergulha com ele nos rios, sumidos em sorvedouro escuro. Delfin arrisca-se em longos passeios de automóvel com o rapazote e JD Lucas incentiva-o em coisas místicas. Lima, faceiro, sempre que pode, o toma pela mão e lá estão na Bahia com os quindins de iá-iá. Maurício quer levá-lo para esconder-se nos monumentos de Brasília. Anderson sempre lhe fala de rabos de saia, de mil Iracemas. Eta, moleque danado! A minha parte na deseducação dele é pequena. Misturado aos cães, ele salta comigo. Agora, ele adivinha, as minhas jóias, todas elas soltas pelo quintal da casa. Os dindos, renovados, reaparecem, alegres para a brincadeira. “Ele é o Espírito Santo que desceu do Céu para estar entre os homens”. O batizado alegre, um altar repleto de um ilustrações infantis, a Via Sacra não tem dor alguma. Leitores, meus queridos leitores, é um sítio amplo, tomem lugar. Uma missa toda do espírito, toda do entusiamo, será cantada: te deum...

MARIEL REIS // EDITOR



geraldo saiu àquela noite alexandre kramer

G

eraldo saiu àquela noite, com respingos de chuva, gritando por Phelipe. Apressado ia caminhando em meio a gritos e lamentos, com passos preocupados, desalinhados e esperançosos. Ele não sabia o que estava fazendo, muito menos o que estava por vir. A voz grossa de Geraldo já era um grunhido sem força, sua respiração só existia porque ele tinha de sobreviver, não podia morrer naquele momento. Chegou em casa com os cabelos despenteados, apenas um de seus sapatos cuja a meia estava toda esfolada pela peregrinação madrugueira que sofrera. Sua blusa ficou em alguma esquina fria da cidade vazia. Sua mulher nem sequer levantou do sofá; continuou ali imóvel aos prantos. Geraldo não teve forças para mais nada e desabou ao chão. Aquela cena imóvel permaneceu por mais algum tempo. A mulher suja, esparramada no sofá vermelho com um rasgo no meio e Geraldo estatelado ao chão tentando explicar alguma coisa para ela, mas nada. Passaram dez anos, a mulher de Geraldo já tinha outra família; e ele continuava ali; ainda tinha a esperança da resposta daquela noite. Conseguiu ser exonerado de seu cargo público, os amigos o abandonaram e a família aparecia uma vez por ano para não ficarem mal falados pelos vizinhos. Geraldo perdeu quase tudo; não trabalhava mais, não dormia ou não acordava, não sei, mas não saía da cama. Banho ficou sendo uma coisa rara em sua rotina, apenas a lembrança daquela noite e a esperança do esclarecimento do que havia acontecido. Dez horas e onze minutos. Geraldo levantou de sua cama fedorenta e suja, caminhou até o banheiro, jogou uma água no rosto e ia voltar para dormir quando percebeu a porta entreaberta; foi até lá verificar. Maria, sua vizinha, havia deixado uma penca de banana para ele, Geraldo deixou as bananas ali, fechou a porta e se dirigiu ao quarto. Passou pela sala observando a estante, a TV e o sofá de dez anos, que para ele eram do dia anterior. Sentou ao sofá vermelho, agora com um remendo feito pela sua ex-mulher um pouco antes dela o abandonar. Ali, sentado no sofá observando os quadros nas paredes e o retrato, de no mínimo dez anos, e com todas as imagens e amarguras daquela noite em sua cabeça, cochilou. Onze e trinta e cinco o telefone tocou.

Geraldo pensou em não levantar para atender, porém achou mais prudente levantar. Bem devagar se dirigiu ao telefone e o tirou do gancho. Com uma voz de tristeza, melancolia e calma, ele atendeu. - Alô! Do outro lado da linha com a voz apressada e rouca. - Alô! É o seu Geraldo? Meio receoso ele responde – Sim sou eu. - O senhor poderia comparecer nesse momento ao 1º distrito da capital? Geraldo pensou em recusar e ir pela manhã, mas sem jeito ou medo de falar não, falou que estava a caminho, pois o distrito ficava a duas quadras de sua residência. - Olá! Eu sou o Geraldo, vocês me ligaram pra vir aqui. - A sim... O senhor pode entrar naquela salinha ali que o delegado já vem conversar com o senhor. Eram apenas quatro paredes, uma mesa e duas cadeiras, uma de cada lado da mesa. Com cheiro de charuto barato entra o delegado na sala. - Olá, seu Geraldo. O caso está resolvido! Geraldo sem entender continuou observando os gestos lentos e teatrais do delegado. – Fizeram uma escavação para a nova ponte ao lado do rio esperança e encontraram uma ossada. Já fizemos os devidos exames e o DNA corresponde ao do seu filho. Quantos anos ele tinha? - Cinco. - Ele teria quinze provavelmente! - Acho que sim.

alexandre kramer

nasceu em Curitiba em 1982. É músico, compositor, professor de literatura e escritor. Tem no prelo o volume de poemas Vale das lamentações.

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malu

alexandre valadares

A

noite já começava a pesar nas pálpebras dos passageiros, apenas uma e outra luzes de longe em longe riscavam a escuridão imperturbável e sem mistério da estrada. A paisagem em sucessão na janela parecia ter-se apagado de súbito, embora a lenta efusão do crepúsculo prenunciasse por todo o céu a irremediável a extinção do dia. As constelações dispersas sem geometria propunham a imagem de desoladas ilhas flutuando na obscuridade, e esta visão, inspirando uma angústia de aniquilamento, alimentava minha insônia. Uma manobra ao final de uma longa reta em declive deu em boa hora novo rumo às minhas cogitações: o ônibus reduzira a marcha para tomar um retorno, e o letreiro fosforescente de um restaurante advertiu aos que não haviam dormido que faríamos outra parada. A expectativa do desembarque logo me ocupou de mais amenos pensamentos. Calcei os sapatos, afastei a manta de lã em que me enrodilhara contra o frio e conferi, já fora, se não me caíra do bolso o dinheiro de que precisaria para comer e que não cheguei a gastar inteiramente. Um velhinho de sobrancelhas hirsutas e avental frouxo entregou-me à porta uma cartela quadriculada, que, mais adiante, tendo apanhado na bandeja o que me apetecia, devolvi à apreciação de uma moça de cabelos tingidos e ar enfadado, à qual votei um cumprimento que ela houve por bem não retribuir. Nenhuma mesa estava longe o bastante da televisão, e a companhia ostensiva do locutor do noticiário assolava o refeitório. Desgostei da comida, larguei-a na metade e erguime para ir embora. Alguns espectadores, despertados pela sutil alteração do ambiente que minha resolução provocou, acompanharam quadro a quadro meu tímido movimento de fuga. Mãos nos bolsos, parei diante de uma banca de jornal e percorri as manchetes, fotografias, nomes, cifras, mapas, obituários, placares, horóscopos e divertimentos da edição do dia, enquanto escutava por perto alheias conversas que duravam menos que um cigarro. Dobrei o jornal, restituí-o ao mostruário e retornei à plataforma, onde ainda estacionado o ônibus. A lâmpada mortiça dos faróis, projetada no hálito quente exalado pelo motor, iluminava o lento balé dos grãos de poeira que o vento suspendia, e um arremedo de orvalho, que não era mais que a transpiração do ar condicionado ligado no interior da cabine, banhava a carroceria de aço, tocada pelo vapor tépido da noite. Além, um frentista gordo, de uniforme desabotoado, ouvia um rádio de pilha, e um

rapazote, coroado por um fone de ouvido, varria a assoviar o vão atrás da máquina de bebidas. Detrás dele, apareceu a menina. Descalça, escanelada, ela puxava após si um enorme saco de plástico talhado, que, rebatido a cada passo contra o asfalto, fazia ralhar sua carga de latas e garrafas. Vestia uma camisa escolar, de estampa desbotada, remordida na barra, e levava no pulso mirrado um relógio desenhado a caneta. Vinha em direção ao restaurante quando, a meio do caminho, largou de lado o fardo, andou até uma lixeira pendurada na parede junto ao banheiro exterior, e meteu o braço, fina tripa musculosa, numa abertura estreita, revolvendo o fundo sujo em busca de recipientes para acrescentar à sua bagagem. Ao tirar de dentro sua mão, trouxe no movimento um pedaço de papel, que caiu na calçada. O varredor, subitamente transtornado, gritoulhe uma má palavra, seguida da exclamação de um nome, Malu! Essa evocação ríspida fez convergir sobre a pequena carregadora a atenção dos viajantes que se demoravam à saída do restaurante. Malu correu, esbaforiu-se num susto de bicho, arrastando seu volume aos solavancos. Os vidros, revolvidos uns contra os outros, retiniam com escândalo. Parou a meia distância, ofegante, seu rosto vertia vergonha e raiva. Sentado em um banco comprido, enquanto o motorista sorvia o último café, pus-me a fitar sua figura de menina, os cabelos açafroados, secos como um tecido esquecido ao sol, as mãos grossas, de homem adulto, mas sarapintadas como se calçassem luvas de uma pele velha, os pés altos, descascados, sujos de fuligem de asfalto. Malu tornou a aproximar-se da entrada do restaurante e, segurando as pontas do fundo do saco como se lhe puxasse as orelhas, virou-o de chofre, esvaziando toda sua carga no chão. O estardalhaço interrompeu, por um átimo de tempo, passos que saíam e entravam, mastigações apressadas, rarefeitas contemplações e outros lazeres, mas, tão logo se davam conta do que tinha causado o barulho, os circunstantes recobravam sua infalível crença na normalidade. Ao guardar uma a uma suas latas e garrafas, Malu cantava os números em sorteio, mais que em sequência, dizia um!, dois!, três!, seis! cinco!, sete!, oito!, dez! vinte!, noventa!, noventa e nove!, sua voz áspera e estridente parecia gastar-se toda a cada grito, numa conferência que poderia ser interminável. O varredor, coçando a cabeça, fitava-a, receando que o gerente saísse a mandá-lo enxotá-la como fazia aos cães que perturbavam a clientela, mas, entre 10


segredo, Malu tornou a dizer, a voz agora séria, lúcida, moço, me leva, por favor. Depois, chorou, com todo o corpo, como uma criança chora. Enterrei minhas mãos frias nos bolsos à procura de mais dinheiro, quando então vi a aproximação do varredor. Vinha a passadas largas, martelando o chão com o cabo da pá de ferro. Tirou o fone do ouvido com um gesto de exaustão e despeito, e, passando por trás de mim, gritou, sempre isso!, toda vez é isso, Malu!, anda, sai!, saaai! Não levantei os olhos para ver a menina correr: ouvi tão-só a cessação súbita do choro e, depois, o entrechocar áspero e apressado das latas e garrafas vazias, cujo barulho continuou a me seguir por toda a estrada após e ainda agora espeta para não esquecer.

os passageiros, dominava uma tranquila resignação, dentro em pouco embarcaríamos nos ônibus e nos veríamos longe daquela estação, e, antes que todas as suas luzes ficassem para trás, o brusco corpúsculo da menina desapareceria nos retrovisores. Malu, contudo, não pedia nada. Puxava sua carga pelo chão aos trambolhões, cega como um inseto, outra vez em direção aos viajantes que conversavam de pé à entrada do restaurante e cuja aglomeração ela não parecia distinguir senão como um labirinto de pernas que lhe cumpria penetrar. Seus olhos buscavam achados para sua coleção em meio a sapatos de salto e alto solado, asseados pés que folgavam sobre chinelos de couro, bainhas que roçagavam pelo chão, sandálias cujas tiras supliciavam peroladas panturrilhas. Desatravancava caminho à força, rebatendo o saco contra os que mal lhe abriam passagem. Não ouvia música, não mirava estrelas, ia cabisbaixa, caçando seus restos. Dois homens a meu lado observavam de esguelha a catadora a passar perto de seus pertences: falavam desatentos ao que diziam, mas igualmente vigilantes acerca da menina, cuja aparição propunha uma evidência excessiva. Malu parara, remexia agora a lataria dentro do saco, laçando-o com um nó; de costas, corcovada, parecia uma velha miúda, entregue a suas porcarias. Quando ela tornou a agachar-se, seus joelhos pontudos de gafanhoto vincaram-se de cicatrizes de milho, e Malu, desarregaçando depressa a calça para cobrilos, se pôs de súbito de pé. Percebi então que, no centro do seu rosto conflagrado, seus olhos me afrontavam com uma luminescência crua de punhal. Ia-se formando uma pequena fila à porta do ônibus. Consultei os bolsos, saquei um punhado de moedas, sacudias na mão para fazê-las tilintar, mostrando à menina que lhe daria mais de uma. Malu apontava para mim seu silêncio sem lágrimas. Sorri, por instinto de defesa, e senti que meu sorriso saíra mais franco e afável do que eu pudera simular. Levantei-me e, topando uma latinha no chão, varri-a com o pé para junto da catadora. A rispidez maquinal desse movimento acionou a sutil engrenagem do corpo da menina, compelindo-a a vergar-se para apanhar a dádiva. Dei-lhe as costas e tomei lugar na fila, escutando o baque da lata contra os vidros no fundo do saco. Em seguida, porém, um chamado agudo e urgente vibrou contra meus ouvidos, pai! Não precisei virar-me para ver que era ela, pai!, me leva! Como outros passageiros se afastassem, abrindo espaço à minha volta para me fazer notar que era a mim que ela falava, Malu repetia, mais alto, paaai, me leva! Uma mulher na fila fitou-me com ar de exprobração, e, antes de embarcar, sussurrou algo ao ouvido do motorista, que se manteve impassível, a contar os que faltavam subir. Malu aproximou-se, e, me puxando pela camisa, disse, sempre mais alto, paaai! paaaaaai! Sua voz alongava-se nesse grito até exaurir seu fôlego. Duas pessoas atrás de mim murmuraram suas desconfianças, virei o rosto com o intuito de dirigir a elas uma explicação, mas Malu, subida na ponta dos pés, disse-me, quase ao ouvido, docemente, moço, quer ser meu marido? Senti uma ardência morna nas têmporas e volvi os olhos para a estrada e seus faróis, ansiando a distância. Fechando a mão em concha ao redor da boca em forma de

alexandre arbex valadares nasceu em 1980 na cidade de Resende (RJ). É autor do livro infantil O livro, publicado pela Casa da Palavra em 2001.

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hitler

ava baraccá

O

lhou para os lados, certo de que tinha tido uma das ideias mais ousadas do mundo literário. Incrivelmente, muita gente boa do mercado também gostou e decidiu colaborar com o número de estreia. Claro, todos sob pseudônimo, não apenas pelo teor da revista, mas também por causa dos contratos que cada escritor tinha com grandes editoras nacionais e internacionais. Em caso de sucesso, poderiam continuar colaborando impunemente. Em caso de fracasso, teria sido apenas mais um naquela semana. Mas a verdade era que a história iria mudar. Ele criara há um mês as comunidades em redes sociais, fanpages que vociferavam com fúria e indignação e isso era mais do que esperado. Agora, com o site no ar e o primeiro número à venda, a sorte estava lançada. Pois nunca houve uma revista literária como hitler. A ideia veio no marasmo de uma segunda-feira à tarde com muito pouco a se fazer na agência de publicidade. Seus bloquinhos e cadernos estavam cheios de rabiscos de muitas cores e formatos, junto com os dizeres mais absurdos, números inconsequentes e palavras soltas. Foi ali que viu a ideia genial: separadas, em dois cadernos diferentes, mas garrafais, as palavras “hit” e “ler”. Não era perfeito? O hit era ler! Estimular a leitura, mas de um modo provocativo. O trocadilho foi inevitável e então guardou aquilo bem para si, enquanto ruminava ideias olhando para o relógio, esperando chegar em casa, formatar um conceito e disparar um email para todos os seus camaradas. Pensou que poderia ser mal interpretado em um primeiro momento, então bolou um e-mail curto e secreto que dizia, em seu assunto, apenas “Questão para todos” e, no corpo da mensagem:

Durante aquela tarde, todos foram tendo ideias. Ninguém estava realmente levando aquilo a sério, mas era uma oportunidade única de esfregar na cara das pessoas uma ironia sem fim. Iriam emular estilos de escritores comerciais ruins, contar histórias de vampiros, de fadas, infantiloides, misturar à autoajuda mais rasa, materializando tudo o que a baixa literatura produzia de forma horrenda e aos borbotões. Decidiram chamar o projeto, enquanto era gestado, de hl. Mas todos deixaram claro que era necessário que alguém que realmente existisse precisaria assumir a autoria da ideia, a execução pública, os fardos que viriam com os ataques virulentos que certamente aconteceriam. Disseram isso quase como uma ameaça: afinal, o pai daquele filho estranho deveria assumir a paternidade. O que ele fez, com muito orgulho. Foram muitas semanas de trabalho árduo. A parte mais complicada parecia ser registrar a marca e conseguir o código de catalogação da revista nos órgãos competentes. Mas a solução foi muito mais simples do que se esperava: para os fins legais, a revista se chamava hit ler, com o óbvio slogan: É hit ler! Foi assim que tudo começou.

A sua inbox nunca ficou tão lotada. Os poucos que sabiam o que estavam acontecendo criaram um mailgroup para rir e comentar as avaliações gerais de cada texto publicado, bem como as reações ferozes de todos os outros. Se bem que houve uma parcela que entendeu na hora a ironia e começou a viralizar a revista de um jeito nunca antes visto. As lojas virtuais ameaçaram retirar hitler das prateleiras, mas desistiram assim que perceberam que as vendas eram superiores a qualquer título periódico publicado no país. A versão impressa, vendida apenas pelo site, se esgotou em questão de dias. Mas, é claro, a imprensa especializada, as editoras judaicas, os grandes jornais e revistas, os apresentadores populares de televisão, os blogueiros radicais de todas as facções e os papagaios de comentários eletrônicos avassalavam sua vida a cada dia. Foram os dez dias mais perturbadores que viveu, tendo sido incomodado inclusive pelos seus vizinhos, no prédio onde morava. No trabalho, muita gente virou a cara para ele, mas a maioria das pessoas ou fingiu que não era com elas ou elogiou a ousadia.

E se eu dissesse que é possível fazer com que os piores textos literários do mundo sejam devorados com avidez? Se quiser saber mais, compareça ao Boteco do André no dia 4, sábado, às 14 horas. Não leve acompanhantes. Para sua surpresa, todas as quinze pessoas para quem enviou a mensagem apareceram no bar, que era conhecido de todos, mas distante da muvuca literária. Então, contou a todos o seu plano: criar a pior revista literária do mundo, com os textos mais descabidos e o nome mais esdrúxulo já concebido para uma publicação do gênero. 12


Os livros de alta literatura, em todo o mundo, começaram a não apenas serem menos lidos, mas também desprezados. Os próprios colaboradores da revista, vendo seus livros principais e novos trabalhos adernando, começaram a se autopublicar eletronicamente e a vender muito, como nunca venderam antes. A brincadeira tornou-se um ofício de desaprender, de desconstruir uma carreira para que outra, mediocre mas rentável, emergisse. O mesmo rapidamente aconteceu com os outros colaboradores, inclusive internacionais. Tudo, estava claro, era culpa de hitler. Mais coisas, a cada dia, saíam de controle. Versões apócrifas da revista surgiram, com literatura casualmente ruim e sem qualquer senso de ironia, escrita por pessoas ruins. Cada um desses números piratas era lido e adorado por hordas de pessoas que não possuíam senso crítico algum. Uma quantidade indizível de gente patética percebeu que podia escrever textos como aqueles que estavam na revista mais lida em três continentes e não abria mão disso. Logo, a temática desses textos, ao contrário do que acontecia em sua revista, não era controlada, dando margem a todo tipo de ideia retrógrada. As pessoas, ele sabia, estavam involuindo intelectualmente e, temia, hitler tinha tudo a ver com isso. Logo a revista se tornou desnecessária. O conceito de hitler já havia ultrapassado a fronteira editorial e, agora, textos ruins não eram mais o parâmetro e, sim, ideias ruins, que brotavam, aos borbotões. Agora havia um aplicativo chamado hitler generator, que selecionava aleatoria e tematicamente textos estapafúrdios sobre qualquer assunto que o usuário definisse e, então, montaria a cada acesso uma revista completamente nova, sem qualquer interferência editorial. A humanidade estava corrompida e, ele tinha consciência, a culpa era toda sua. A revista paulatinamente deixou de circular e ele foi colocado de lado por escritores, editoras parceiras e todo o jet set, como uma nota de rodapé de um dos verbetes mais acessados da enciclopédia digital mais popular. Ele tinha ficado obsoleto. Ainda assim, era rico, com mais dinheiro do que poderia gastar em uma vida. Ninguém poderia saber, mas ele tinha um plano para salvar toda a raça humana da estupidez e da iniquidade. Seria difícil executá‑lo, mas alguém precisava formar uma resistência. Ele precisaria de aliados, mas sempre poderia contar com os editores judeus, jornalistas obtusos, blogueiros tacanhos e veículos de comunicação em declínio. A missão era clara para que o bom gosto ortográfico e a decência gramatical prevalecessem: de uma vez por todas, era necessário eliminar todo e qualquer vestígio de hitler.

Não havia meio termo e, quando foi chamado à sala do seu chefe, sabia que seria despedido. Foi convidado para todo tipo de programa de televisão, mas aceitou apenas ir a um programa literário e aos dois maiores talk shows. No primeiro, uma entrevista séria e bem feita, profunda, sobre o mercado literário, a qualidade da produção feita no Brasil e os desdobramentos junto aos leitores. Nos outros, já com o trabalho de imprensa bem feito, pode proceder com a desconstrução do nome da revista, com as piadas, lidar com agilidade com a ira de alguns membros do cast, driblar a fúria e, enfim, enfatizar que cada edição quadrimestral de hitler seria certamente pior que a anterior, tendo as gargalhadas da plateia como solene aprovação.

Pensou que a novidade passaria, mas hitler se mostrou mais do que uma moda passageira. Era uma revista lida por cada vez mais pessoas, a ponto de uma editora, a partir do quarto número, fazer uma proposta de distribuição irrecusável, garantindo a publicação nas bancas e principais livrarias e aeroportos do país. Editoras menores tentaram embarcar na onda com projetos muito fracos e sem qualquer criatividade, como hirolito, napolerão e, claro, mussolit. Nenhuma durou mais do que três números: o segredo de hitler era seu quadro secreto original de colaboradores, que continuaria secreto pelo simples fato de que as multas contratuais que os autores teriam que pagar caso o envolvimento deles fosse descoberto seriam altas; além disso, a maioria desses autores estava nas editoras judaicas, que continuavam não vendo com bons olhos aquele modelo de negócios, que julgavam zombar delas e de seus títulos e autores de maior vendagem. Nesse ponto, hitler já possuía também colaboradores que se mostravam publicamente. Era estranho para ele, mas, para uma nova geração de escritores, colaborar com hitler era um orgulho, uma chance única. Ele não podia negar que esses jovens estavam certos. Mas manter a equipe original, sem contaminá-la com os novos nomes, era seu maior objetivo. Nunca colocou nenhum novo escritor em contato com os autores do núcleo-duro e ficou firme nesta decisão muito correta. Os novos nunca seriam um problema. O que se precisava era solucionar o problema da remuneração aos escritores originais. Pagar cada um deles exigiu algum esforço mental de todos, mas um trâmite interessante, que preservava a privacidade dos envolvidos, foi desenvolvido. Bem a tempo de hitler dar um grande passo e invadir a Europa e a América. Cada editora parceira, em cada país, teve que assinar um contrato bem extenso, com duração mínima de cinco anos, no qual elas se comprometiam a defender a publicação com unhas e dentes, bem como blindariam o editor, figura pública que estava na linha de frente da publicação. Alemanha, Áustria, França, Polônia, Estados Unidos, Canadá, México, Espanha, Portugal, Suécia, Inglaterra, Islândia, Bélgica, Luxemburgo. Nessa ordem, e um país a cada vez, o domínio de hitler se fez valer. A disseminação da péssima literatura, dos textos escabrosos, daquilo que havia de pior no universo literário parecia agora ser um processo irreversível. O que acabou gerando um estranho paradigma.

ava baraccá é maranhense, tem 22 anos e publicou textos nas revistas digitais Flora Maiz e Lombra.

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método e voracidade daniel duarte

E

la não resistiu quando ele forçou os dedos em sua boca. Desajeitados e sôfregos, tomados por anseios, feito bicho frágil em busca de refúgio, do conforto úmido de uma toca. O cheiro da saliva secando na pele conjurava as pequenas crueldades de um ritual pagão. Solenes, evocavam o demônio do lugar-comum – um excelente guia para o inferno dos outros. “Me bate!”, ela teria murmurado, segura de que não passava de uma acrobacia arrojada mas inofensiva por conta da rede de segurança que estabeleceram. Tudo conforme o traçado retilíneo das sensibilidades exibidas no primeiro encontro. Previsíveis como as mensalidades da academia que ela regularmente se esquecia de pagar ou o fantasma do tesão que o visitaria em meio ao oco da ressaca. Seus corpos tracionados limitavam-se a curtos e incisivos movimentos, diferentes daqueles entrevistos na pista de dança. Lá, a iluminação deliberada simulava espasmos de consciência em branco, azul e vermelho e dava à dança dela a poesia ambígua de um cinema desnaturado: imagens sequestradas de uma coreografia secreta, inacessível na penumbra da pista. Restava o trabalho de decifrar os signos captados a cada flash. O mistério dos movimentos que se afogavam na escuridão deixava à imaginação o trabalho de completar as lacunas. Não sabia se ria ou se excitava. Talvez fosse o efeito da leve azia alcoólica borbulhando atrás de seus olhos, mas ora via Shiva em suas evoluções tântricas, ora uma pantomima chinfrim dirigida, aparentemente, a alguém às suas costas. Inseridos na cumplicidade suja das noites de gueto, os dois dividiam o espaço e a música com um alheamento estudado. Sabiam que essa solidão, cheia de introspecções ostensivas e rodeada de barulho por todos os lados, só poderia ser vivida de olhos fechados e ao custo de fartas doses de cinismo. O sexo de açougue que agora executavam entrechocando carnes imperfeitas seguia à risca as leis gerais da mais elementar biomecânica. Já não trazia mais a selvageria dos momentos iniciais quando partiam da civilização para nunca mais voltar: roupas arrancadas em meio a grunhidos e respirações ofegantes. A determinação convulsionada de um rabo decepado querendo ser corpo inteiro. Aos poucos vão afundando em outro alheamento, outra distância, não um do outro, mas distantes de si mesmos.

Sob o silêncio da foda, persistia uma violência viscosa. Todo e qualquer gemido lembrava um esforço primitivo de apaziguar essa violência na linguagem. Impulsos sádicos (da parte dele) e autodestrutivos (da parte dela) se entrelaçando como tentáculos de polvos agonizantes: um infinito acoplamento de ventosas, pequenos estrangulamentos e meias-torções. Não como as duas garotas ao lado deles na pista de dança: aspecto de coisa nova, sem marcas de uso, ternas como coelhinhas recém-desmamadas e com um futuro inteiro pela frente – muita putaria e a eterna falta a ser suprida. Ainda assim, ou por isso mesmo, chupavam-se como se fossem, elas mesmas, grandes tetas – satisfeitas e esclarecidas. O encadeamento de suas mãos e línguas era necessário e arrogante. Um manifesto em defesa da superioridade política da relação entre iguais: carinhos fraternais ou lascívia incestuosa? Qual a melhor arma para um terrorismo da libido? “Não adianta, peitinhos estrelados não são tetas simbólicas!”, foi a resposta, já quase uma vingança, que lançaram telepaticamente um ao outro na curta distância que ainda os separava. Na pista de dança esvaziada permaneciam ambos em suas atitudes protocolares: da parte dele, um sorriso idiota e a concentração toda na presença física dela, como se seu próprio equilíbrio dependesse disso; e da parte dela, olhares enigmáticos e a intuição de que vinha dele a força que a mantinha em movimento. Com a cara entre as pernas dela, chafurdou na anatomia úmida farejando abandono. Peles e mucosas dobradas em ondas que trazem à superfície as desordens profundas do corpo. E nessa confusão, sua língua, nariz e boca, abandonando seu civilizado papel na face, atacam com furor de matilha sua própria vocação: conectores olfato-gustativos para acoplamentos bióticos. Nessa região escondida ele procura, para além da obviedade vaginal, o supérfluo cu. Não havia espaço para um pensamento sequer entre eles. Só quando alcançou essa pele escurecida sentiu que haviam se ligado pelo essencial. Conectados em um meia-nove, elevaram-se à categoria de máquinas, máquinas de sensações em perfeito curto-circuito. Quis então respirar carne, inundar seus pulmões com a verdade do corpo. – Gostei de você dançando. Mas o que eu gostaria mesmo de dizer é que eu vejo sua decadência e gosto. 14


Enquanto terminavam seus drinques no bar, os silêncios, envoltos por sílabas encharcadas de saliva, prolongavam o segredo das mensagens de uma até a outra margem. À deriva. No bar em frente, um espelho refletia a imagem de ambos e sugeria uma legenda que acomodasse sarcasticamente ‘afogar’, ‘mágoas’ e ‘salvação’. Nesse momento, o táxi que pegariam dobrou a esquina a dois quarteirões dali.

– Que disse? – Que você dançando... – Não isso. O que você disse depois. – Ah, a decadência... – É. Do que você gostou? – Dos seus sintomas. O modo como a Moral adoece no seu corpo, feito uma decomposição. E a força de sua resistência ao trabalho invisível dos vermes do senso comum: lentamente devorando por dentro o verso da superfície, escavando buracos, criando profundidades que outros corpos não suportariam. – Decadência é o nome dessa correnteza que nos arrasta para longe do lugar em que gostaríamos de estar. Àqueles que ignoram esse deslocamento, resta o ridículo de andar de olhos fechados com um abismo sob seus pés. Consciência é queda. Agora mesmo eu sinto esse aperto nas entranhas, uma inércia que é resistência. Mas essa é a tragédia de todo dia, a doença trágica que todos esperam com o passar dos anos. Um câncer ou uma degeneração do sistema nervoso central que tentamos esconder, sem vergonha, apenas porque ela não pode ser vivida de outro modo que não seja em segredo. – A Moral... Mas justamente por fazermos segredo dessa degradação há toda uma arte dos sintomas. – Sim. Da qual eu poderia apostar que você é um mestre. – Você gosta? – Tanto faz. Mas estou certa de que você esconde seus sintomas. Só goza se bate na mulher? Fantasia com menininhas?... Espero que você não tente me convencer do contrário, de sua civilidade convicta. Nem mesmo tente posar de bem resolvido. Vejo as rachaduras que distribuem sua superfície em pedaços. Você mesmo é apenas um pedaço, uma peça defeituosa, cheia de desejos, irregularidades que fazem a máquina produzir ruídos estranhos, vibrar, ter um comportamento inusitado, mas, no final das contas, inofensivo. – “All Machines have their frictions”. Mas essa máquina voraz tem seu defeito próprio, sua doença específica. A obsolescência é essa espécie de pecado que acomete o que é novo. É uma questão técnica, de velocidade. Se a decadência, como você disse, é a ilusão de imobilidade diante de um movimento (de queda) que nos condena, a obsolescência é a velocidade do novo nos atropelando. Rapidamente se espalhando, feito uma epidemia. Não que seja uma doença exclusiva de nosso tempo; desde que exista o enfrentamento com o mundo – máquinas que não compreendemos, sensibilidades que não sentimos, valores que não reconhecemos –, traremos essa marca visível em nossos corpos. É uma doença de pele. Superfície. Você não sente isso? Como se fôssemos marcados a ferro, uma identidade violentada, uma propriedade que não podemos mais negociar. Assumimos nosso papel de gado nessa produção intensiva do novo. – Na superfície, essa camada de barroquismo verbal. Por baixo, tateamos cegamente essa matéria inconsistente que chamamos de íntimo. Ainda apegados à esperança de encontrar algo concreto e impensável, que só poderá ser sentido e mais nada.

daniel duarte nasceu em 1975 e essa foi sua 1ª publicação. Foi bom pra ele.

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quando o halley voltar Para meu amigo Xavier “Queria ser cometa? Acredito que sim. Cometas têm a velocidade dos pássaros, florescem ao fogo e na pureza são como crianças. A natureza humana não saberia nada maior para desejar.” Hölderlin

daniel lopes

V

enho visitá-lo depois de meses sem aparecer. O combinado era irmos pescar, mas choveu demais durante a noite e as estradas que levam ao rio estão intransitáveis, cobertas de lama. - Daniel, há cinco anos eles batem com o martelo nesta parede, mas o prego nunca terminam de pregar – diz apontando com a bengala a parede que fica atrás de mim. De fato, há o barulho de marteladas compassadas, feito o tic tac de um relógio, mas de um relógio macabro, cheio de maus presságios. Como se cada martelada nos fizesse lembrar do prego que um dia desses, mais cedo ou mais tarde, lacrará nosso próprio caixão. Tic tac. Tic tac. Tic tac. - E como foi lá no velório da sua mãe, Velho? - Normal, ela descansou, estava velhinha, tinha mais de noventa nos, já não vivia, sobrevivia apenas, feito uma planta. Já não reconhecia ninguém. Não conseguia sequer se limpar... Fazer as necessidades no banheiro. A vida já tinha acabado, mas ela continuava aqui. Agora seguiu seu caminho. Daniel, a velhice é uma merda, mano. Ele, apesar da idade (já tem mais de setenta anos), fala o tempo todo na gíria. Não se cansa de usar vocativos como mano, velho, parceiro, vacilão. Apesar do problema nas pernas, consequência da idade, artrite ou artrose, não sei ao certo, não quer parecer um mané, não quer esquecer a malandragem, porque ele é malandro. Só um malandro para trabalhar de chapa nos anos sessenta... Só um malandro para ter sido segurança no lendário prostíbulo 69, na boca do lixo... Só um malandro para dirigir um táxi por mais de vinte anos na noite de São Paulo... Domar leões no circo, no tempo em que se trocavam ingressos por cães e gatos nas cidades pequenas: garantia do jantar ao leão... Só um malandro mesmo para praticar todas essas atividades... Brincar com fogo... E sair ileso. - Quer café, Velho? - Se você fizer... Não estou aguentando de dor nas pernas. Já tomei uns três comprimidos de voltarem, umas duzentas gotas de dipirona, estou com uma dor de estômago terrível por causa dos medicamentos e a perna não melhora porra nenhuma. É por causa do velório. Fiquei uma pá de tempo em pé. - Não esquenta, eu faço o café. Sei bem onde você guarda o pó e o açúcar. - Ê que papo é esse de pó? Só tem coca aí na geladeira. - De café, Velho. Pó de café.

Ele gargalha alto. Eu também, enquanto vou colocando a água no fogo e ajeitando as coisas para o café. Xavier está sempre de bom humor, apesar da vida. Só uma vez eu o vi chorar. Já faz tempo, mais de cinco anos. Eu tinha vinte e nove e minha vida estava desmoronando, puta que pariu. Corria o risco de perder o emprego, o casamento, a confiança das pessoas, até meu talento para fazer amizades eu corria o risco de perder. Admiro aqueles que conseguem fazer a mente e ainda assim seguir com a vida. Pra mim não deu. Eu odeio a realidade. E quando você é de escorpião com ascendente em peixes e odeia a realidade, o melhor a fazer é ficar longe de qualquer substância que lhe altere a consciência ou o estado de humor. Escorpião e álcool nunca deram certo. De modo que, naquela época, eu entrava e saía de clínicas de repouso e reabilitação. Logo que caía nas ruas porém, não conseguia ficar mais de dois meses careta e então começava tudo de novo... Fraturas expostas... Surras nos bares... Humilhações imensas por causa de uma moeda de um real... Pior, muito pior que escravidão. O Velho estava lá naquela época, limpo havia mais de vinte anos. Foi num domingo de manhã que eu cheguei ao grupo de ajuda mútua que frequentamos e pedi para ele me arranjar cinco reais para eu comprar pão. - Pão, Daniel? Tá me tirando? Eu estava virado, sem dormir havia mais de uma semana. - É, pão. - Sou macaco velho, tio. Te arrumo não os cinco reais, mas cinquenta. Tu pode comprar o que quiser. Nós vamos lá pra casa e tu pode usar como bem entender, só que, quando acabar, acabou. Nós ficaremos trancados naquele meu quartinho, vendo bicho e o caralho a quatro até você ficar limpo, morou? E aí topa? Sai dessa porra dessa vida, moleque, tô vendo você sofrer, eu tô vendo você morrer e não posso ficar de braços cruzados, sem fazer nada. Porra, tu tens duas criança para criar, vacilão. - Eu não tenho jeito, Velho. Por mais que tente, não consigo. Fracasso sempre... Pra mim, só morrendo mesmo. - É preciso crer, sempre há esperança. - Esperanças existem muitas, mas não para mim. - Quer tentar? – perguntou oferecendo a notona de cinquenta. A cisão gritava, implorava para que eu a enchesse com álcool e cocaína... A fissura sangrava... 16


- E aí? – insistiu, ainda chacoalhando a nota em frente ao meu focinho. - Certo! Saímos dali e fomos direto para a boca. Da boca para uma padaria e da padaria, já com um litro de pinga dentro da sacola, para este mesmo quarto e cozinha onde agora preparo o café. Era mais ou menos dia dezoito, vinte de dezembro... Nem sequer gosto de me lembrar... Sofrimento de trincar os ossos... Choro e ranger de dentes... Delirium tremens... Visões tenebrosas... Ratos... Morcegos... Cobras... Todas as raças de macacos e pterodátilos querendo me devorar nos cantos do quarto. Passou o natal. Chegou o ano novo. E eu lá. Agora me sentia um pouco melhor. Durante aqueles dias, tínhamos saído na porrada umas três vezes, mas ele não abriu a porta ou a janela para que eu saísse, ganhasse outra vez a rua. - Aqui nós vamos ficar. Juntos. Até tudo isso passar – disse. – A gente pode se morder, chorar, se arrebentar na porrada, mas daqui nenhum de nós dois vai sair até que você melhore. E então chegou o trinta e um de dezembro. Mais de onze horas da noite. Ouvíamos os fogos de artifício estourar lá fora. - Pode abrir a janela, Velho? Só um pouco que é pra gente ver os fogos. - Sem chance, mano. - Como assim sem chance? Fica tranquilo. Não vou pular. Além do mais, você vai estar aqui bem ao lado. Ele pensou por instantes. Acendeu um cigarro. - Vou dizer a você só o mesmo que o rei Davi disse a Salomão: seja homem! - Pode deixar, fica tranquilo. Só quero ver os fogos mesmo. E ele abriu a janela. Os fogos coloriam o céu... Raios... Riscos iluminados... Cascatas coloridas... Lá fora as pessoas renovavam a fé e as esperanças. Tudo começaria outra vez. As famílias se confraternizavam vestidas de branco. Afinal de contas o que havia de errado comigo? Por que só eu não conseguia acreditar? Por que só eu sentia sob tudo aquilo um cheiro terrível de mentiras, cadáveres e podridão? Por que só eu era tão lúcido? Tão só? Tão miseravelmente incomunicável? Só conseguia ter uma ilusão de pertença... De fazer parte... Se estivesse completamente chapado... O comboio de cadáveres marchando solene pelas ruas! Por que porra ainda festejam se todos estaremos completamente sós e desamparados agora e na hora da nossa morte, amém? E eu chorei, meus amigos. Chorei porque eu era um ser humano que tinha dado defeito. Todos os outros tinham exoesqueletos, armaduras que usavam para que os afetos não os rasgassem. Eu não. Se eu visse um mendigo, sentia o mesmo que o mendigo. Se eu visse uma criança de rua, sentia a fome dela. Se eu visse um cavalo sendo chicoteado, surgiam vergões na minha própria pele. E se fosse um cão, tinham de passar óleo diesel queimado em mim porque a sarna não cedia. As pessoas no meu trabalho perdiam a mãe, o pai, o filho, o cão, a gata, o peixe alaranjado no aquário, e, no dia seguinte, estavam de volta, falando em reponsabilidade, dando sermões, felizes por fazerem parte da máquina. Eu era desamparado como um caramujo sem casa, um joão-de-barro sem casa, como uma

tartaruga sem casco. Não, pior ainda, eu era como o casco, cuja tartaruga fora devorada por ratos enquanto hibernava... O oco... O vazio... A ausência de buraco. Ainda assim, tudo me rasgava. Toda dor humana ou animal, fazia questão de passar pela minha fissura. Como se eu fosse um dínamo de tudo aquilo que sangra e sofre na Terra. Haja corpo! E eu chorei. E continuei chorando. Quando dei por mim, Xavier, o Velho, estava chorando ao meu lado. Ele disse apenas quatro palavras, mas foram quatro palavras que confortaram o desespero que eu carregava mais entranhado. Quatro palavras que me fulminaram como um raio, um despertar espiritual! Quatro palavras que soaram como se fosse a voz de um Deus poderoso qualquer que falasse comigo através da boca do meu irmão. As quatro cordas de um contrabaixo milagroso: - Você não está sozinho. Quando me virei para abraçá-lo, seu rosto, assim como o meu, estava coberto de lágrimas. Depois de uma eternidade chorando juntos, ele foi até essa mesma vitrola que se encontra aqui ao lado e colocou Bezerra da Silva para cantar e nós cantamos juntos: “Se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão/se gritar pega ladrão, não fica um...” Logo que a música acabou, um grito inundou todo o quarto: - Nós somos cometas em paletós de pele humana... - e eu pude ver o brilho vermelho da incandescência se acender por trás da roupa e da pele. Daquele dia em diante, a fissura cedeu. *** Agora entrego o café a ele. - E aí, Xavier... Experimenta, vê se tá bom. - Peraí, deixa comigo – ele diz e toma um gole de café. Faz umas caretas, finge forçar para engolir. Pelos trejeitos e as caretas parece ter bebido a pior coisa do mundo, mas, depois de engolir, dá um sorriso e grita: - Eita cafezinho bom! E nós caímos na gargalhada. Há cinco anos que, toda vez que bebemos o café que eu mesmo preparo, ele faz essa mesma graça. Como não temos muito que fazer, eu vou mexendo nos discos, procurando um bom pra pôr na vitrola. Encontro um dos Beatles e tiro da capa. - Daniel, não põe esse disco não, mano. Esse eu não aguento. Parece que essa semana, coisas que aconteceram há quase cinquenta anos resolveram voltar. Alguém está brincando o tempo todo com a gente, como se fôssemos homenzinhos de plástico, brinquedo de criança... - Por que Xavier? O que você tá querendo dizer? - Daniel, vou te contar. Vou te contar tudo... Saiba que eu a reencontrei, quase cinquenta anos depois, no velório da minha mãe, anteontem. Daniel, meu velho, você não deve saber, mas, há muito tempo atrás, teve um cinema aqui em São Miguel, pois é, um cinema, ali onde hoje é a igreja universal, em frente à Praça do Forró... Foi em sessenta e sete... Sessenta 17


e oito... Nós tínhamos combinado de ir ao cinema. Eu tinha vinte... Vinte e poucos anos... Era cabeludo, parecia o Roberto Carlos, mano. Tava lá um bocado de moleque pra assistir um filme dos Beatles. Tava eu, minhas irmãs, meu irmão Aldelino que você conhece. Todo mundo queria ver esse filme. Foi uma febre. Chegou até aqui, nesses cafundós... Todo mundo queria ver esse filme, podes crer. A gente tava lá, esperando só a Claudí para entrar no cinema, nome estranho, né? - Claudí... Parece nome de homem, Xavier. - Pois é, mano, mas a Claudí era uma mulher e que mulher... Uns peitão enorme, durinho... E as coxa? Ques coxa maravilhosa, velho! Foi a única mulher que eu amei na vida. Depois eu me casei, descasei, casei de novo, tive até amante no puteiro, mas não conseguia gostar de mais ninguém. Pois é, mano, no dia do filme, nós esperamos uma porrada de tempo. Todo mundo já tinha entrado no cinema e nada da Claudí aparecer. Então o Aldelino desceu ali pros lados da linha do trem e voltou branco, amarelo, verde... Sei lá. Puta que pariu, velho, o cara parecia que tinha visto polícia ou coisa pior. “Que foi, Aldelino?” Minha irmã perguntou. “A Claudí!” – ele respondeu – “Parece que a Claudí tá ali embaixo, no mato, com um cara!” Porra, bicho! Eu desci lá e não é que ela tava lá, a danada, sentada na grama, abraçada com um cara? Não tava pelada nem nada, mas tava abraçada com o cara, vai vendo. Eu voltei pra casa, não quis saber de filme nem nada. Daniel, eu passei uma semana sem comer, mano. Parecia que minha garganta tava travada, fechada. Eu mastigava e mastigava a carne, só que a porra do alimento parecia de borracha. Uma semana inteira sem dormir e sem comer. No sábado seguinte, teve uma festinha na minha casa. Aniversário de uma das minhas irmãs. A Claudí era amiga dessa minha irmã. Daniel, mano, eu era doido nessa época, bicho solto. O Aldelino queria me segurar com medo que eu enchesse a Claudí de porrada ou fizesse coisa pior. Moleque, eu só chorei três vezes na vida. Uma vez você tava lá. A outra vou te contar agora. E a outra você nunca vai saber. Eu atravessei a sala. Ela tava sentada. Começou a tocar a música desse disco aí, iésterdei, puta que pariu, meu irmão. Eu tirei ela pra dançar, baixei minha cabeça no ombro dela e dancei. Chorando. Umas dez vezes. Acabava a música, eu ia lá no toca-discos, levantava a agulha e colocava no começo outra vez. Chegou uma hora que a gente ficou dançando ao lado do som, pra eu poder voltar a música sem precisar levantar a cabeça. Eu tava com vergonha, sabe, a cara lavada de lágrima. Suspirei um pouco, disfarcei. Fui até a pia da cozinha. - Quer mais café, Velho? - Só um golinho. Encho duas xícaras de café e volto para o quarto. Ele toma o café devagar. Acende um cigarro. - Anteontem a Claudí tava lá, no velório da minha mãe. Ela nem anda mais, moleque, tá acabada, pior que eu, deve estar pesando mais de cento e cinquenta quilos. Os filhos têm de carregar ela escorada. Daniel, o tempo é cruel, mano, foda! O tempo fode com tudo. Ficamos em silêncio por instantes. Pela janela eu observo as pipas colorindo o céu lá fora. Penso nos meus próprios problemas. Minha sacolinha ali ao lado cheia de carnês e boletos, dívidas e mais dívidas para pagar e a grana que nunca é

suficiente. Dois problemas se misturam a verdade do universo e a prestação que vai vencer. Penso em me despedir agora do Xavier, mas antes vou uma vez mais até a janela onde um dia nós dois choramos e é então que tenho uma ideia. Sem dizer palavra, vou até a velha vitrola extremamente bem cuidada e coloco o disco dos Beatles para tocar. Depois de uns poucos chiados, Paul McCartney começa: “Yesterday/ All my troubles seemed so far away/Now it looks as though they’re here to stay/Oh, I believe in yesterday”. Volto ao quarto e digo ao Xavier: - Vem, me dá a mão, vamos dançar. Ele ri. - Ai carai, tá me estranhando? Os moleques da rua vão achar que a gente é veado. - Foda-se. - Ai carai! Eu puxo o velho pela mão e o abraço. Ele encosta a cabeça cansada no meu ombro... E nós dançamos... Dançamos como cometas, como seres-humanosincandescentes, como as faíscas que seduzem o soldador ainda pequeno. Quando a música acaba, ele sai em silêncio, mancando o mais rápido possível para o banheiro, tentando se esconder. Envergonhado feito um menino. Eu noto que o colarinho da minha camisa está encharcado de catarro e lágrima. Não faz mal. Limpo com a mão e a lavo na pia da cozinha. Volto para o quarto e guardo o disco dentro da capa. Ele não sai do banheiro. - Já vou indo, Xavier. - Beleza, volta aí semana que vem pra gente ir pescar. - Firmeza. - Deu dor de barriga, mano. Antes de sair, tira essa choradeira toda aí e põe um Bezerra pra tocar. - Firma. Vou até o som e atendo ao pedido do meu amigo. Antes de chegar às escadas, ouço-o tossindo lá dentro. Xavier não está bem de saúde. Seu irmão Aldelino me disse que ele foi recentemente diagnosticado com uma doença degenerativa no cérebro. Além disso, tem osteoporose, artrose, pressão alta e um enfisema no pulmão. Detalhe, continua fumando como um doido. Eu gostaria de lhe dar joelhos novos e azuis, um pulmão novo e azul, um cérebro novo e azul. Não posso, sou menos que poeira estelar. Como todos nós, aliás. Na rua, me dou conta de que o Xavier não estará mais aqui quando o Harley, nosso irmão-maior, voltar, mas, diabos, quem de nós estará? Com o sol da tarde ardendo sobre minha cabeça, cantarolo baixinho, acompanhando o som que sai da janela do meu amigo: “Meu vizinho jogou uma semente nos eu quintal/de repente brotou um tremendo matagal...” Só mais um homem caminhando com seu enigma.

daniel lopes escreve para diversos sites e revistas de literatura e filosofia. Publicou a coletânea de contos Pianista Boxeador e o romance Fruta. Seu novo romance, A delicadeza dos hipopótamos, sairá em breve pela Terracota. Edita o blogue pianistaboxeador21.blogspot.com

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não durmo com coltrane daniel osiecki

H

á algum tempo In a sentimental mood me acalmava. Agora não mais. Me reviro a noite toda na cama olhando para o nada e o sono não vem. Passei a caminhar pela redondeza, já que não durmo com Coltrane. Não importa a hora, sempre há pelo menos uma delas parada na rua. Sempre aquele olhar perdido implorando migalhas. A noite me leva direto aos seus olhos vazios, famintos, mortos. Cigarro aceso e vento gelado no rosto. Gosto de ouvir as vozes roucas sem emoção alguma. Carência de afeto. Minha e delas. Ainda há alguns carros que param, mas está difícil de conseguir cliente. Imagino que esteja difícil, porque disso elas não reclamam. Em fim de carreira nenhuma delas faria propaganda negativa. Olho primeiro nos olhos. Cinza. Sem brilho algum. Ela pede fogo. Estendo o isqueiro já aceso com mãos em concha. Ela encosta em minhas mãos com ternura. Me excito com facilidade ao toque de suas mãos ásperas, mas suaves ao mesmo tempo. Unhas curtas e sem esmalte. Crucifixo no peito aberto ao vento. Seios grandes, mas caídos. Não me importo, pois ela continua segurando minhas mãos. Tremo. Seu cheiro é um misto de perfume barato e cigarro, o que me inebria cada vez mais. Cabelos pintados na altura dos ombros. Parece a mãe de alguém. Já é velha para trabalhar na noite. Dando uma tragada demorada faz a proposta. Mente dizendo que a mercadoria é de primeira, e é isso que me atrai. A tentativa de enganar a si própria ou ao cliente, não importa. Me compadeço. Pergunto o valor e ela diz que pra mim faz por sessenta reais o pacote básico. Mais quarenta com anal. Tiro a carteira e conto as poucas notas. Sessenta reais exatos. Vamos? Ela pega mais uma vez em meu braço me puxando levemente, mas deixando claro que não me deixaria escapar. Como recusar? Entro com ela em uma casa velha, com as paredes descascadas e amareladas pelo tempo. Assim que passo pela porta estreita sinto cheiro de cigarro, suor, sexo, vômito. Eu havia entrado na noite em toda sua plenitude. Fui arrebatado para dentro de suas entranhas. A escuridão é quase total. Várias portas em um corredor muito estreito que acaba em uma sala ampla. Apenas uma mesa com um homem assistindo à televisão. Ela me conduz ao último quarto do corredor e acende a luz. Uma cama pequena, de solteiro, um chuveiro a um canto e uma pia. Entrego o dinheiro e

ela sai do quarto fechando a porta. Volta depois de alguns segundos e começa a se despir. Apesar da idade e da pele com estrias, seu corpo é bonito. Me atrai. Vai ao chuveiro e com as duas mãos lava o sexo depilado. Termina de me despir e com perícia coloca a camisinha com a boca. Me chupa com vontade, com prazer e com força. Sinto que vou gozar em breve e peço que deite na cama. Ela fica de quatro e a penetro com força, mas com afeto. Em poucos minutos me afeiçoei a essa mulher estranha que ao menos sei o nome. Deitados lado a lado, ainda sem roupa, pergunto se posso fumar. Acendo um cigarro pra mim e outro pra ela. Cansado, tremo e ela sente. Se encosta em mim e afaga meu peito. Começa a falar sobre a família. Tem dois filhos, um neto, é divorciada, tem cinquenta e um anos. Vai à igreja todo domingo. Trabalha na noite há trinta anos. Eu fico quieto. Não ouso interrompê-la. Seus olhos aos poucos adquirem certo brilho. Talvez seja minha imaginação. Ou meu torpor. Me acompanha até a porta e se despede com um beijo suave em meu rosto. Sinto seu perfume barato mais uma vez. Pergunto se ela irá trabalhar na noite seguinte. Diz que sim. Prometo voltar e ouço o barulho da porta fechando atrás de mim. Está mais frio agora do que quando entrei. Acendo mais um cigarro e vou caminhando pra casa. É perto dali. Penso em caminhar um pouco antes de me recolher, já que estou sem sono. Lembro que deixei o toca discos ligado antes de sair. Tocava In a sentimental mood quando percebi que passaria mais uma noite em claro. Decido caminhar pela redondeza, já que não durmo com Coltrane.

daniel osiecki nasceu em Curitiba, em 1983. É professor de literatura, crítico literário e editor regional de flaubert. É colunista do Jornal Relevo, de Curitiba. Publicou o livro de contos Abismo (2009) e mantém o blog Távola Redonda (novatavolaredonda.blogspot.com).

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santidade

diego moraes

(Céu cheio de pipas e urubus)

(Zoadas de cachoeira. Lágrimas escorrendo nos ombros dele)

_Diego Hoje faço seis meses sem cheirar pó. _Maira Legal. _Diego Tropeço em poemas que jamais serão escritos. Parecem barcos naufragando na beira do cais. _Maira Os que sobreviveram são belíssimos. Tão acachapantes como bolas de demolição arrebentando o asfalto. _Diego Cê curte tanto assim? _Maira É de sangrar a alma.

_Diego Não é preciso chorar, amor. _Maira Trouxe presente.

(Voz embargada de barco banzeirando no Rio Amazonas) _Diego É? _Maira Abre.

(Diego desfaz o laço do pacote florido tremendo de nervoso até vislumbrar um troço cinza sangrando)

(Fogos de artifício) _Diego Vim aqui pra falar de outro lance. _Maira Desembucha. _Diego Vão publicar meu Romance. _Maira Estava na hora. _Diego Dediquei a você.

_Diego Cê roubou a lua pra mim? _Maira É sua vestimenta de urso. _Diego Agora posso morrer em paz.

(Ele mergulha no rio virando santo. Ela dá as costas sorrindo até desaparecer com estrelas cadentes)

(Olhinhos de cabrita perdendo a cria) _Maira Me dá um abraço.

(Calor do nordeste no meio deles) _Diego Sou a prova viva de que a literatura pode transformar o homem num animal, não? _Maira Você é lindo.

diego moraes nasceu em Manaus, no Amazonas. É

autor dos livros A fotografia do meu antigo amor dançando tango e A solidão é um deus bêbado dando ré num trator, ambos pela Editora Bartlebee.

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bingo!

duda tajes

De

Vou perder mais uma. Voltei no outro dia e, logo de cara, ganhei quinhentos reais. Começou uma fase de sorte, porque eu ainda estava no salão quando me ligaram de uma empresa onde eu tinha deixado o currículo. Queriam me entrevistar no outro dia. A sorte muda de uma hora pra outra mesmo. Os últimos números encheram a minha cartela muito rápido. Faltam oito rodadas pro final e eu preciso de mais três números. De novo, três. Tomara que eu não acabe como na rodada anterior. Quando voltei a trabalhar, larguei o bingo. Ficava trabalhando direto na hora do almoço e à noite. Saía do trabalho para casa, pra ficar com a minha mulher, que agora sentia orgulho de mim. Ela não exigia quase nada, ficava feliz em me ver trabalhando e ganhando direitinho. De vez em quando sentia vontade de jogar de novo, mas não tinha tempo. Agora só faltam dois números. Dou uma olhada no salão pra ver se tem alguém tão excitado quanto eu. Vejo que uma mesa está agitada. Deve ser um idiota com três números pra fechar a cartela achando que vai se dar bem. Vai se dar bem o caralho, agora é minha vez de ganhar. Vou gritar bingo feito um tenor pra foder com a vida dele quando eu ganhar. O idiota vai ver que não é assim que se joga. O trabalho na empresa entrou nos eixos e eu comecei a ter mais tempo livre. Um dia saí no horário e parei no bingo. Imaginei que se eu tinha conseguido uma grana numa maré de azar, com um emprego e dinheiro no bolso ia chamar muito mais. Que nada. Deixei um dinheirão no bingo e ainda me incomodei com a minha mulher em casa. Ela não acreditou que eu tinha ficado trabalhando porque sentiu cheiro de cigarro e bebida. Achou que eu andava com outra mulher. Um número e três rodadas para o final. Fazia muito tempo que eu não tinha tanta chance de ganhar. Perdi na saída do trabalho e, no dia seguinte, aproveitei a hora do almoço pra tentar recuperar. Perdi mais dinheiro e perdi a hora também. Cheguei uma hora e meia atrasado e tomei uma bronca do meu supervisor. Inventei que tinha furado o pneu do carro, mas ele não acreditou. Algum dos meus colegas deve ter dito que eu ia jogar bingo. Trabalhei mal naquela tarde. Tinha que voltar no bingo e recuperar o meu dinheiro. Voltei e perdi. E continuei voltando e perdendo. Mas dessa vez eu vou ganhar. Na última rodada eu vou ganhar o maior prêmio da noite. Cinco mil.

novo?

Não. Puta que o pariu, de novo? Faltando três números pra mim. Sempre faltam três, dois ou um número. Olha lá, a cadela tá toda feliz com esses mil reais que ganhou. Nunca vi essa mulher aqui. Garanto que é a primeira vez que vem jogar. Sorte de principiante. Que nem a que eu tive quando comecei a jogar. Tava numa merda, desempregado fazia meses, não tinha dinheiro nem pra comer. Comecei a jogar bingo pra comer, não me meti nesse buraco pra brincar com as amigas que nem essa puta. Peguei uma grana que a minha mulher me deu pra pagar o cartão de crédito, separei a parcela mínima e entrei no salão bem na hora do almoço. No começo não me preocupei em jogar. Fiquei no buffet de salgadinhos, porque fazia mais de uma semana que eu só jantava, pra economizar a comida da casa e não obrigar a minha mulher a gastar toda a grana dela só por que eu estava numa merda. Guardando grana pra pagar o mínimo do cartão, se eu não ganhasse nada, pelo menos o rolo ficava pra próxima fatura. Tinha quase um mês pra inventar uma desculpa. Mas depois de comer, eu ganhei trezentos contos. Não era muito, mas eu parei e fui direto para o banco pagar todo o valor do cartão de crédito. Acho que vou ficar pra mais uma rodada e depois vou pra casa porque já é tarde. Tomara que comece de uma vez pra eu ganhar uma graninha. Agora eu tô sentindo a sorte. Depois de pagar o cartão, peguei cem reais dos trezentos que ganhei e comprei umas coisas pra casa no supermercado. Minha mulher ficou desconfiada, mas eu disse que era uma grana de um sujeito que me devia há tempos e ela acreditou. No outro dia eu acordei com uma coceira na mão. Sentia que se voltasse no bingo eu ia me dar bem. Sem contar que eu podia almoçar de graça. Vinte e três. Não gosto quando o primeiro número não sai na minha cartela. Parelha de quatro e eu sem quarenta e quatro na cartela. Voltei, passei a tarde jogando e o máximo que eu consegui foi perder os cem contos que tinha guardado pra jogar. Desisti antes de tentar a sorte de novo. Não era meu dia. Hoje também não é. O primeiro número que saiu da minha cartela foi o sétimo que o cara cantou. 21


Cinco mil não pagam as dívidas. Cinco mil não recuperam a minha mulher, que me deixou quando descobriu que eu tinha perdido o emprego porque faltei oito dias pra jogar. Cinco mil não servem pra mais nada. Só pra eu ser o grande ganhador da noite. Pra esse bando de filhos da puta me respeitarem. Pra eles terem certeza de que eu sou o rei dessa porra. Quando o supervisor me chamou na sala dele, eu já sabia que ia pra rua. Mas ele me aliviou. Sabia que eu estava com problemas e deu um jeito de eu receber a indenização. Eu até disse pra minha mulher que tinha sido demitido por corte de gastos. Mas ela só acreditou até o dia em que ela me seguiu e, em vez de me ver entrar numa empresa pra fazer uma entrevista, viu o marido entrando no bingo. Já tinha torrado toda a indenização. Tentei dizer que eu só ia no bingo pela comida, mas ela não acreditou. Ela me expulsou de casa e eu tive que pedir pra morar uns tempos com o meu irmão. Tá na hora de ganhar. Tá na hora da vida me devolver um pouquinho do que eu perdi. Meu irmão entendeu que eu estava viciado, quis que eu fosse para um grupo de apoio. Fui embora da casa dele, aluguei uma peça na casa de um casal de velhos. Não conseguia mais viver sem me enfiar no bingo. Adrenalina. Muita adrenalina. Perder dinheiro, ganhar dinheiro. Não preciso de bebida, não preciso de nenhuma outra droga. Se não jogar, não acordo, não como, não durmo. Se o preço disso é vinte mil, ok. Se for cem, eu dou um jeito de bancar. Minha ex-mulher disse que vai vender o apartamento e dividir a grana. Daí eu posso pagar tudo o que eu devo e continuar jogando. E quando eu ganhar cinco mil de novo, vai ser só pra continuar jogando. Puta que o pariu. Acumulou o grande prêmio de novo.

duda tajes nasceu em Porto Alegre, em 1971. É redator

publicitário, roteirista da série Mulher de Fases, da HBO Latin America, além de colaborador da série Fora do Ar, da RBS TV. Publicou na coletânea Je Suis Toujours Favela (Editions anacaona), lançado na França em 2014.

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as laranjas fernando rocha

A

utonomia, embora não soubesse o sentido desta palavra, quando pronunciada em sua presença, era apenas um som que achava bonito. Definia bem o que queria ao encarar a fruteira preenchida com frutas coloridas. As bananas podiam ser desmistificadas facilmente, sua casca não oferecia muita resistência, todavia, elas pareciam mais bonitas vestidas de amarelo, mas o gosto de sua nudez compensava o desacato à vaidade. As maçãs, estas eram envergonhadas e por isso muito raramente, tiravam sua roupa, preferiam ser comidas vestidas de vermelho, às vezes algumas sementes eram engolidas, como se quisessem perpetuar a sensação de profanação dentro de todos aqueles que ousaram contra a sua castidade. Mas as laranjas recatadas, não se mostravam com facilidade, era preciso ajuda de uma faca. Faca: objeto que não é permitido o manuseio às crianças. Portanto, não se podia deliciar a fruta sozinha, um adulto deveria estar presente de corpo e desejo de ajudar, o que nem sempre acontecia. As sementes dos frutos consumidos, já tinham dado origem a novos frutos, e ela que enquanto criança era uma espécie de semente de adulto, começara a germinar. Àquela altura o fascínio das facas a tornou uma exímia atiradora do laminoso objeto, era uma das principais atrações do circo. A casa onde crescera não comportava mais seus troncos, embora soubesse que suas raízes deveriam ser sacrificadas, escolheu a vida nômade como membro de uma trupe. Os pais não aprovaram, mas o que se pode fazer, quando o fruto cai do galho? Os truques do namorado mágico passaram a não encantála mais, ele nunca conseguiu restabelecer a felicidade que ela jurava ter sido sua há muito tempo. O flerte com o domador não amansou seu vazio. A casa itinerante depois de um longo tempo permitiu seu reencontro com a sua cidade natal, de dentro do trailer avistou a casa onde nascera e crescera. A comitiva chegara ao seu destino temporário mais uma vez. Lonas ao ar, trabalho duro, mas que aos olhos das crianças da vizinhança, continha a mesma aura mágica dos balões cheios com o ar, esta coisa invisível capaz de preencher grandes objetos. Relutou, mas não conseguiu evitar que seu orgulho fosse derrotado pela saudade. Passos que não precisavam dos olhos

para guiá-los, sabiam o caminho de cor, a mão tão precisa em seu oficio parecia titubear ao tocar campainha: Um leve toque... A porta pareceu estar mais lenta em seu abrir, a mãe a mirou, ainda dentro do domicílio, descrente dos seus olhos que não eram mais tão eficientes, e mesmo com a ajuda dos óculos fraquejavam diante do que estava a sua frente, vacilante, ainda do lado de fora, ela abaixou, rapidamente, a cabeça, mas os olhos eram imãs e não podiam evitar o reencontro. As palavras tinham desaparecido, um forte abraço estabelecia a comunicação entre elas. Sentado numa cadeira de rodas, no interior da sala, o pai com sequelas de um a.v.c., não podia falar mais e muito menos andar, ao enxergar a filha demonstrou seu afeto por meio das lágrimas, as quais estamparam a camiseta que ela vestia. Não, aquele não era um retorno, embora tivesse prometido aos seus genitores que voltaria num espaço mais curto de tempo do que da ultima vez, não se sentia mais em casa. Era preciso seguir, pois naquela noite haveria espetáculo, não podia desapontar as crianças. Ao fechar o portão-casca e focar a casa do outro lado da rua, era mais uma das laranjas, que não conseguia chupar sozinha, assim como tantas outras coisas das quais nunca conseguira extrair o supra-sumo.

FERNANDO ROCHA é paulistano, nascido em 1981, graduado em Letras, autor dos livros Sujeito sem verbo (Confraria do vento, 2013) e Os laços da fita (Penalux, 2014). Colabora com os blogues letras et cetera e meleca-chiclete.

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bonecas

flavio costa

R

enata diz que exagero apenas para impressioná-la. O mundo é feio, mas está longe de ser tão terrível assim, porque há luz e nós aceitamos a palavra. Eu seguro com força a mão dela, pois gosta disso, da segurança que o gesto transmite pela escuridão da minha sala. O mundo é muito feio, sim, repito, apenas para manter a conversa nessa toada infantil, tal um ventríloquo, como se afinasse a voz para simular as respostas dela, emitindo algumas frases simples, pré-concebidas na minha mente, com o objetivo de levá-la ao final desejado. Mas aquela boneca tem autonomia, foge do roteiro quando rejeita delicadamente sentar no meu colo: o sofá é macio o suficiente. Disfarço a frustração ao continuar com meus relatos. Desde o batismo, eu parei de mentir; pelo menos, desde que a encontrei. Eu desconhecia a atração da sinceridade, usava astúcia para causar dor, obter meu prazer à custa da inocência. Mas Renata me fez confessar atos que neguei aos ouvidos do pastor, pois com ela descubro que posso ser um homem bom. Quando a conquistei, tocou-me a revelação: deveria me purificar. Não poderia ousar tocá-la, compartilhar um caminho, sem antes de expurgar a imundície do meu passado. Confessei como seduzia minhas bonecas nessa mesma sala, depois de semanas de conversas sussurradas nas saídas das escolas do bairro. Como empregava delicadeza em pegar uma pequena mão macia e trêmula, ensiná-la a empunhar e manobrar até que nascesse o primeiro calo, os beijos aplicados com sofreguidão, a cheirada no azedume, os preparativos com os dedos. E, por fim, sentava-as no colo exigindo segredo ao estender as notas, prometendo outras maiores e de cores diferentes, já sabendo que eram estrelas de única sessão. Era perigoso repetir; então procurava outra escola, outra boneca. Meus pecados se estendiam ao meu local de trabalho. Repetia a mesma história a Renata: quando mataram um delegado pela manhã e passamos a noite toda trabalhando e escondendo projéteis, rasgando e queimando documentos, carregando volumes em sacos plásticos para dentro dos carros. Outro delegado agradeceu e passou um envelope para Artur. Ele dividiu as notas em três partes iguais. Deixou o envelope na mesa do Doutor Rabo-de-Cavalo. Tomamos banho e fomos para Amaralina comer uma feijoada, pouco antes de o sol nascer. De barriga cheia, banhei-me sem

pudor, e depois fui de táxi para casa. Naquele ano, foi a única vez em que estive num táxi. Pare, não quero mais saber, ela se aconchegava, cravando sem perceber todas as unhas nos meus antebraços. Estava mais perto. Aquele tempo já passou, eu disse para confortá-la, continuo a executar minhas funções, e não repetiria o que já fiz. Artur sabe que estou fora do esquema, mas sempre me protegeu, e respeitou minha conversão, pois se um homem encontra a Verdade, ele deve desprezar tudo o que é sórdido e mentiroso. Só quero receber meu salário, mesmo exíguo e injusto, mesmo com o trabalho cada vez mais estafante: todo dia encontro quatro ou cinco apenas para mim, no meu turno. E por mais que me lave, que use perfume comprado por Renata, aquele cheiro adocicado não sai, integrou-se ao meu organismo, se confunde com o gosto da comida, e, acredito, mancha os dentes, turva a urina, escurece as fezes. Ela agora percebe os pequenos arranhões nos antebraços, pede desculpa, diz que meu cheiro é bom, entrelaça seus dedos nos meus para mudar de assunto. Você sabe que vai ter que esperar. Papai não vai aceitar tão cedo, ainda mais você sendo homem feito. Ele quer que eu estude. Sou muito nova, mas no meu coração eu me sinto compromissada contigo. Eu sei que vou esperar muito. Estou resignado. Renata também quer tatear a escuridão, e retorna indiretamente à questão: Papai ficou sabendo de umas histórias suas. Aquele era outro tempo. O tempo da Mentira... Isso não existe mais, mas confesso que elas eram parecidas com você, sempre foram bem mais novas do que eu, mas não vou te fazer mal nenhum... eu mudei, o pastor... O pastor falou com Papai que você mudou muito, mas até ele acha que não se pode avançar para o próximo passo, que você vai ter que esperar. Eu espero. O que estamos fazendo aqui sozinhos não é outra coisa que não esperar? Ela desconhece tudo do mundo. É muito ingênua, e essa ingenuidade me salvou, me libertou para esta nova vida, este nascer de novo, e creio que meu Senhor não ficará contrariado se eu admitir que só busquei a redenção porque, para mim, a redenção se materializava no sorriso tímido de dentes separados, mas de branco imaculado, nas suas duas tranças longas e grossas, as duas pintinhas no rosto de mulata; creio que meu Senhor ficará contente em saber que ela agiu como um anjo que guia o insensato para a luz. Antes eu desejava inocência, hoje a quero bem, a protejo. Abraço. 24


Conhece aquele ceguinho da praça? Optei pela pilhéria para continuar no assunto. Ele enxerga mais do que meus instrumentos. Para com isso, que coisa! Você toda hora fala disso. Não quero saber. Eu quero saber do presente e do futuro. Mas insisto no passado. Já tem dois anos que o chefe do departamento afirma que vão entregar instrumentos novos. Sinto a ferrugem desfazendo-se nos meus dedos quando lavo os velhos na torneira. Na época da insegurança cortei um dedo ao serrar uma cabeça. Artur jogou álcool na minha mão e disse que cuidaria do resto do trabalho. O Doutor Rabode-Cavalo pegou sua maletinha e fez um curativo. Agora sim, rapaz, você está batizado. Mas aprovação no serviço só quando passar pelo meu primeiro podrão. Artur gargalhou, eu vou estar do lado, eu ri. Mas passei noites sem dormir, com medo de que meu dedo contaminasse a mão, o braço, até a amputação ser uma alternativa sensata, e, pior, se o cara tivesse Aids? Artur gargalhava e me oferecia um sanduíche de mortadela, quando eu chegava com meu rosto lívido. Até que veio o dia. Vamos na geladeira, tem dois lá e você terá a preferência. Nunca havia descido, e me espantei com a ferrugem das gavetas desencaixadas, e o chão pegajoso como se alguém tivesse, diariamente, derramado de propósito uma cola encardida. Desengavetaram e Artur me deu um lenço. A refrigeração estava desregulada, e um fiozinho de água avolumava a poça de sangue, embaixo dos pés do escolhido. Eu quero esse que está mais verde, esse aí, o menino com a camisa do Vitória. Renata, se deixarmos apenas ao ritmo da natureza demora muito tempo antes de retornar ao pó, antes disso nos decompomos lentamente em líquidos, gases, pedaços de carnes, massa informe, até secarmos e, por fim, restam apenas os ossos. O pó vem muito depois. Trabalhei nele duas horas. Doutor Rabo-de-Cavalo chegou pela manhã, me deu parabéns. Fez algumas anotações. Quando voltei do banheiro assustei-me com as moedas empilhadas cegando o morto. Depois te explico isso aí, pega e compra uns pastéis e Coca pra gente comemorar. Ele começa a ler em voz alta: o cadáver apresenta doze ferimentos com lacerações perfurantes irregulares, com diâmetros diferentes de um centímetro (a menor) e treze centímetros (a maior), nas seguintes regiões: interescapular, dorsal direita, cintura esquerda, coxa esquerda posterior... Aquele cadáver nunca recebeu uma perfuração de instrumento cortante, eu escondi os projéteis; foi encontrado na Estrada Velha do Aeroporto, e eu já te contei quem esconde cadáver por lá. Aconteceu antes da morte do delegado. Renata esfrega meus machucados para me interromper, você pediu perdão e o Senhor te abençoou, para mim está tudo bem, só que saiba que comigo tudo será diferente, e daqui pra frente você vai ter que mostrar a cada dia que é digno de mim. Ouço sua voz roufenha, com estremecimento, e pela primeira vez, desde que a conquistei, guardo uma confissão, pois não posso perdê-la, preciso prepará-la. Ao reconhecer aquele calor que emana de seu corpo frágil, perturbo-me, mas sou salvo ao lembrar que chegou a hora de ir ao culto. Eu queria contar-lhe, mas fui incapaz, que a menina ocupava sozinha a sala, na maca do meio, levemente inclinada. A verdade é que tinha deixado a meninice, pois sem querer notei que os fiozinhos esparsos já colonizavam o

ventre; antes eu gostava assim, quando elas estavam na fase da transição, e o beijo em cada um dos fiozinhos pioneiros era o método de contabilidade. A quantidade e o formato diziam-me se eu estava lidando com uma púbere ou uma adolescente, já habilidosa na arte de formatar o púbis. Era meu turno e vez, e o Doutor Rabo-de-Cavalo só chegaria pela manhã para as formalidades. Afogamento, esclareceu Artur. Piscina de colégio. Só a encontraram uma hora depois. Só tem ela, por enquanto, noite calma. Sorte nossa, colega. Disse-me Artur antes de sair para fumar um cigarro e cochilar sobre os caixões. Devo trabalhar como ele me ensinou: primeiro abre-se a cabeça, depois corto abaixo da garganta até o ventre. Mas resisto a começar. Ela ainda não era um podrão, aquele cheiro ainda está longe de penetrá-la, ainda que rígido o corpo emitia frescor, para que abrir aquela cabecinha e desmanchar os cachos? pensei, se ela morreu afogada e a morte alojava-se nos pulmões. Macular a barriga tão lisa. Deformar aquele templo da inocência, antes que a natureza se encarregue da tarefa. Antes eu gostava sim, elas deitavam-se levemente inclinadas, de frente para mim porque era bom olhar nos olhos, precisava somente afastar, com um leve empurrão, uma das pernas para o lado. Mas a ausência daquele calor faz toda a diferença. O medo presente nas minhas antigas sessões abandonou também aquele corpo, e a pressão dos meus lábios deixou de causar arrepios. Minha perversão tornou-se inócua. Alegro-me. Essa menina está inatingível, fazer assim é evitar qualquer profanação. Permito-me refazer a contagem quantas vezes achar necessário. O Doutor Rabo-de-Cavalo já começou a escrever. São seis horas e as rajadas do sol revelam as veias roxas das pernas magras, como se Meu Senhor quisesse me demonstrar que apenas Ele detém a chave da perfeição. Sempre levo um susto quando o Doutor Rabo-de-Cavalo coloca as moedas por cima dos olhos. Tão novinha, não é? Desconfio que não foi acidental. Parece uma bonequinha. Vou verificar se há presença de sêmen. Essa cidade é uma selva. Eu assobio, retiro as moedas sobre os olhos da menina, e saio da sala para comprar pastéis e Coca-Cola.

flavio costa existe.

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as formigas gustavo pacheco

1.

Quando eu tinha seis anos minha mãe me deu a uma senhora casada com um militar. Me deu, como se eu fosse um cachorrinho. O nome dela era Ña Teresa. Primeiro eu cuidava da filhinha dela, que tinha um ano de idade. Depois ela foi me ensinando a limpar a casa, a lavar roupa... A televisão ficava na sala. Eu morria de vontade de ver televisão, mas não podia, tinha que arrumar a casa. Então quando eu ia arrumar a sala eu sempre demorava mais um pouco, pra ficar espiando a televisão.

Uma longa fila de formigas da espécie Linepithema humile está prestes a ser dizimada. Elas não sabem, mas seu algoz é um menino louro sorridente de quatro anos de idade, chamado Miguel. Mesmo que as formigas soubessem, não faria diferença.

2.

5.

Passei meu aniversário de quinze anos trabalhando. Foi um dia como outro qualquer. A única diferença é que as outras moças que trabalhavam comigo na mansão me deram os parabéns. Eu me lembro bem. Foi uma quarta-feira. O Florentino trabalhava na mansão como vigia, foi assim que nos conhecemos. Me lembro das meninas dizendo a ele: “Você não vai dar os parabéns pra Ana?”. Ele tinha dezoito anos e sorriu pra mim. Ele é alto, de olhos claros, quase louro. Nunca achei que fosse olhar pra mim, baixinha e moreninha.

Linepithema humile é o nome científico da espécie conhecida popularmente como “formiga argentina”. Originária do noroeste da Argentina, é uma das mais nocivas e beligerantes espécies invasoras de que se tem notícia. Uma vez introduzida em um novo habitat, a formiga argentina expulsa todas ou quase todas as formigas nativas. Linepithema humile quer dizer “coisa amaldiçoada humilde”.

3.

6.

Miguel é uma das dezenas de crianças que, nessa manhã de sol, brincam na Praça Vicente Lopez, no bairro da Recoleta, na cidade de Buenos Aires. Se fosse em algum outro bairro da cidade, talvez as crianças estivessem acompanhadas por suas mães, ou talvez nem estivessem em uma praça, e sim em uma creche. Mas as pessoas que moram na Recoleta gozam de alto poder aquisitivo e podem pagar babás e outros serviçais. Quase todas as crianças que estão nessa manhã na Praça Vicente Lopez estão acompanhadas por babás. Uma das babás nasceu em um povoado do interior da província de Jujuy, no norte da Argentina, e outra nasceu em La Matanza, na Grande Buenos Aires. Com exceção dessas duas, todas as outras babás nasceram no Paraguai.

Ña Teresa mandou tirar uma carteira de identidade pra mim. A gente ia viajar de carro, ia cruzar a fronteira e pra fazer isso eu precisava da identidade. Isso foi quando eu tinha uns nove anos de idade. Foi mais ou menos nessa época que o filho mais velho de Ña Teresa começou a ir atrás de mim quando eu estava sozinha. Ele sempre encontrava um jeito. Ele dizia que não adiantava eu contar nada, que ninguém ia acreditar em mim. Quando eu tinha treze anos, minha mãe foi me buscar pra passar o natal. Eu levei minha carteira de identidade. Quando chegou na hora de voltar, eu disse que não ia. Minha mãe ficou brava, Ña Teresa ficou brava. Ña Teresa disse que ia mandar os soldados me buscarem. Mas eu não voltei.

4.

7.

Tem anos que não falo com minha mãe. Sei que, se eu ligar pra ela, ela vai me pedir dinheiro. Mas na verdade não é nem por isso que eu não ligo pra ela. Eu não ligo é porque, se eu ligar, vou acabar falando o que eu sinto e vou machucar ela. Aí eu prefiro nem ligar.

Uma das grandes vantagens evolutivas das formigas é o seu comportamento social. Ao formarem colônias em que cada indivíduo desempenha uma tarefa especializada, as formigas conseguem suprir suas necessidades básicas de 26


sobrevivência (alimentação, moradia, procriação, defesa etc.) com mais eficiência do que os insetos não-sociais. Uma colônia de formigas é composta de três tipos de indivíduos: fêmeas reprodutoras (“rainhas”), fêmeas nãoreprodutoras (“operárias”) e machos reprodutores. As operárias se encarregam de todas as tarefas, exceto a reprodução. As rainhas, ao contrário, se dedicam apenas a se acasalar e por ovos, e só realizam outras tarefas esporadicamente. Os machos só fecundam a rainha, sem assumir nenhuma outra tarefa. Nem a rainha nem qualquer outra formiga diz às outras o que é preciso fazer; cada formiga conhece seu lugar. Os termos “rainha” e “operária” aplicados aos insetos sociais foram cunhados pelo naturalista inglês Charles Butler em 1609, cento e oitenta anos antes da Revolução Francesa.

de ônibus ganha tanto assim? Ele usava um monte de anéis de ouro. Não era prata, era ouro mesmo. O Florentino dizia que o marido da Mercedes só podia estar metido em contrabando. Eu nunca conversei com a Mercedes sobre isso. Eu considerava ela uma segunda mãe pros meus filhos. Eu considerava ela superior a mim. Foi muito duro perder sua amizade.

11.

Ó formigas, entrai na vossa morada, senão Salomão e seus exércitos esmagar-vos-ão com seus pés, sem que disso se apercebam.

12.

8.

Antes mesmo do Hugo nascer, o Florentino já tinha outras mulheres. Ele era vigia, trabalhava à noite. Eu não sabia de nada. Um dia, ele me contou que tinha outra mulher. Não sei bem por que ele me contou. Talvez porque estivesse arrependido mesmo. Quando a Mercedes ficou sabendo, deu uma bronca tremenda nele. Disse que ele era um sem-vergonha. Ela botou ele pra fora de casa. Fiquei morando com ela, eu e o bebê. Essa foi a primeira separação. Eu não tinha dinheiro nenhum. O Florentino não me dava nada. A Mercedes me disse: “Vamos botar a Justiça atrás dele”. Ela me levou até o Palácio de Justiça, ela resolveu tudo. Saímos de lá com um papelzinho carimbado pelo juiz. Entregamos o papelzinho na empresa onde o Florentino trabalhava. Ele foi obrigado a me pagar uma pensão. Eu não tinha voz própria. Não era dona da minha vida. Me deixava levar. Um dia a Mercedes me disse que precisava do quarto em que eu estava morando. Ela disse que eu tinha que dar um jeito na minha vida. Ela encontrou um quarto de aluguel pra mim e levou minhas coisas pra lá. Quando o Florentino ficou sabendo que eu tinha saído da casa da Mercedes, ele foi me procurar. Veio morar comigo no quarto de aluguel. Pouco tempo depois, fiquei grávida do Hernán. Ele ficou furioso comigo. Dizia: “Como é que você não se cuidou?”. Ele foi embora e me deixou sozinha, com o Hugo pequenininho e outro bebê na barriga. Essa foi a segunda separação. Eu não tinha dinheiro nenhum, não sabia o que fazer. Ficava esperando ele na saída da firma onde ele trabalhava. Ele ficava furioso e gritava comigo. Aí fui morar com a mãe dele no interior. Foi lá que nasceu o Hernán. Quando o Hernán tinha oito dias de vida, o Hugo teve uma pneumonia. Ficou muito doente. Emagreceu, dava pra ver as costelas dele. Os olhos afundaram. Eu achei que ele fosse morrer, todo mundo achou que ele fosse morrer. Eu fiquei esperando a morte dele. No interior é assim. Mesmo que você vá ao hospital e o médico te dê uma lista de remédios pra tomar, com que dinheiro você vai comprar? Os remédios são caros. A vida é muito dura no interior.

Sou paraguaia de raça pura, o Florentino não. A avó dele era paraguaia, casada com um boliviano. Esse boliviano tinha sido prisioneiro durante a Guerra do Chaco e depois que a guerra acabou ele ficou no Paraguai. Então a mulher dele engravidou de um alemão, um menonita. Quando a criança nasceu, era uma menina loura de olhos claros. Mesmo assim, o boliviano registrou como se fosse sua filha legítima. Essa menina é a minha sogra. Por isso meus filhos têm sobrenome boliviano.

9.

Observe a formiga, preguiçoso, reflita nos caminhos dela e seja sábio.

10.

Sempre tive muito carinho pela Mercedes. Foi a Mercedes quem convenceu o Florentino a se casar comigo. Eu estava grávida de três meses. A família dele não queria nada comigo. Queriam que ele arranjasse uma mulher com mais estudo. Foi a Mercedes quem convenceu ele. Ela é a irmã mais velha dele. Ela sempre foi um espelho pra mim. Tinha educação, tinha negócios. A Mercedes não foi criadita como eu. Só aos treze anos começou a trabalhar. Era empregada doméstica, mas trabalhava em uma família muito boa, que tratava ela como se fosse uma filha. Depois ela se casou com um motorista de ônibus que trabalhava no terminal rodoviário de Asunción, na empresa Brújula. Ele ganhava bem e podia sustentar ela. Ela parou de trabalhar e voltou a estudar. Estudou pastelaria. Fez muito dinheiro vendendo tortas, bolos... Depois entrou na faculdade, e lá ela conheceu uma senhora que vendia joias. Começou a vender joias também. Depois, abriu uma lavanderia. Quando o Hugo nasceu, fomos morar em um quarto na casa da Mercedes. Era uma casa linda, de dois andares, com pátio. Eu perguntava ao Florentino como era possível que a Mercedes tivesse avançado tanto na vida em tão pouco tempo, ela que tinha começado tão pobrezinha. Eu sabia que o marido dela ganhava bem, mas tanto assim? Um motorista 27


Uma vizinha veio ver o Hugo e se assustou com ele. Viu que ele ia morrer. Essa vizinha, não sei como, tinha o telefone de uma amiga da Mercedes em Asunción. A vizinha caminhou quilômetros até achar um telefone e ligou pra Mercedes. Por sorte, a Mercedes estava na casa da amiga quando ela ligou. A vizinha disse à Mercedes que o sobrinho dela estava morrendo. A Mercedes se desesperou e quatro horas depois ela chegou de carro. Levamos o Hugo pro hospital em Asunción. No caminho, a Mercedes brigava comigo e dizia: “Você não tem vergonha do que fez?”. Me humilhou muito. Eu não dizia nada. O Hugo ficou internado oito dias. Eu não podia dar de mamar pro Hernán, porque não deixavam entrar bebês no hospital. Então a Mercedes levou o Hernán e cuidou dele. Até hoje a Mercedes diz pro Hugo que, se não fosse ela, ele tinha morrido. E ela tem razão. Depois que o Hugo saiu do hospital, voltei pro interior. O Florentino encontrou um trabalho que pagava melhor, alugou uma casa e me levou pra lá. Aí fiquei grávida da Heidi. Ele ficou furioso de novo. Me deu uns comprimidos pra abortar. Eu tomei, mas não funcionou. A Mercedes dizia: “Você parece um coelho! Basta olhar pro meu irmão, que você engravida dele!” Quando eu estava grávida da Heidi, o Florentino batia muito em mim. Uma vez me deixou cheia de manchas roxas. Uma vizinha viu e me disse: “Se você não der queixa na polícia, eu vou dar”. Então eu dei queixa na polícia. Fui até a delegacia e voltei com um papel com a intimação. Ele e eu tínhamos que estar no juizado no dia seguinte às oito e meia da manhã. Eu cheguei em casa e mostrei o papel pra ele. Ele me disse: “Um policial uma vez me disse que a gente não deve bater em mulher. A gente tem é que matar logo de uma vez.” Ele pegou uma faca e achei que ele fosse me matar mesmo. Mas ele não fez nada. No dia seguinte, fui sozinha no juizado. A juíza perguntou onde estava o Florentino. Eu disse que ele estava em casa, dormindo. A juíza mandou buscar ele. Quando os policiais chegaram com o Florentino, a Juíza perguntou o que eu queria que ela fizesse. Ela disse que podia meter o Florentino na cadeia, mas perguntou: “Se ele estiver preso, quem vai te sustentar? Ele vai perder o emprego.” No final, eu disse que preferia que ele me pagasse um dinheiro todo mês. Ele ficou um tempo sem me bater, depois voltou a me bater. E me dizia que se eu desse queixa de novo ele me matava. O Florentino não vivia em casa. Vivia por aí, com outras mulheres. Quando brigava com elas, voltava pra casa. Foi assim que fiquei grávida da Heidi, e depois do Henry. Os dois nasceram nessa casa. Eu tive os dois praticamente sozinha. Só quem me ajudou foi uma velhinha parteira que morava perto da minha casa. Se não fosse ela, não sei o que teria acontecido. Quando o Henry fez quatro anos, voltei a trabalhar. Deixava as crianças com a irmã caçula do Florentino. Ela tinha quinze anos. Fui trabalhar como empregada. Um dia, não sei bem porque, me deu vontade de visitar Ña Teresa. Voltei ao bairro onde ela morava. Ela tomou um susto quando me viu. A filha dela também. A gente não se via

há quase dez anos. Conversamos. A filha dela me mostrou as fotos da festa de quinze anos dela. No final, Ña Teresa me ofereceu trabalho em uma fábrica de tecidos que ela tinha. Ela disse que eu ia levar um tempo pra aprender a mexer nas máquinas, mas que o salário era muito melhor do que o de empregada doméstica. Em um mês eu aprendi a usar as máquinas. Eu ganhava bem. Eu gostava de trabalhar lá. Se eu tivesse continuado, eu hoje seria uma profissional, quem sabe eu não teria a minha própria fábrica. Eu já estava trabalhando lá há uns seis meses quando a irmã caçula do Florentino conseguiu um emprego. Agora não tinha ninguém pra ficar com os meus filhos. O Florentino botou uma menina lá em casa. Ela era amante dele, mas eu não sabia. O Hugo já era crescidinho, quando eu chegava em casa ele me dizia que tinha visto o pai beijando ela, que tinha visto os dois deitados na cama. Eu falei com eles, eles negaram. Tive que ver com meus próprios olhos. Encontrei os dois na cama. Eu disse pra ela ir embora da minha casa na mesma hora. Ela se levantou, abriu o armário – eu tinha separado um pedaço do armário pra ela – pegou suas coisas, meteu numa bolsa e foi embora. O Florentino começou a gritar comigo. Eu tinha um nó na garganta, não conseguia dizer nada. Ele saiu e foi atrás dela na rua, mas não encontrou. Ele voltou, abriu o armário, colocou minhas roupas numa sacola e me botou pra fora de casa. Não consegui fazer nada. Peguei a sacola e fui pra casa do meu pai. Ai, você não sabe o que eu passei.

13.

As pessoas que moram na Recoleta gozam de alto poder aquisitivo e podem pagar babás e outros serviçais. Assim, não precisam fazer tarefas domésticas como cozinhar, limpar a casa ou levar as crianças para passear na praça. Isso permite que os moradores da Recoleta tenham mais tempo para fazer o que quiserem: trabalhar, estudar, dormir, não fazer nada, ou até mesmo dedicar-se a atividades artísticas como escrever livros.

14.

O primeiro da minha família que veio pra Argentina foi o meu irmão mais velho. Isso foi há uns sete anos. Depois veio a Aurora, a irmã que nasceu antes de mim. Nessa época eu trabalhava em casa de família em Asunción. Eu trabalhava a semana toda e no sábado até quatro horas da tarde. Quando eu chegava em casa, tinha toda a roupa acumulada da semana inteira pra eu lavar. E no domingo à noite eu tinha que voltar pra casa onde eu trabalhava. Isso me deixou doente dos nervos. Eu não aguentava mais. Eu disse pra minha patroa que não estava aguentando. Ela disse que ia diminuir um pouco o trabalho e me deu um mês de férias. Foi aí que a Aurora perguntou se eu não queria trabalhar na Argentina. 28


Eu juntei um dinheirinho que eu tinha, comprei passagem e fui. Sozinha. Buenos Aires não me impressionou. Eu já conhecia outras cidades grandes e bonitas. O que me impressionou foi o lugar onde a Aurora morava, em Quilmes. Que lugar sujo! As ruas de terra... A terra lá no Paraguai não é que nem aqui, lá a terra é como se fosse de areia. Aqui não, é uma terra que quando chove fica um barro só, tudo sujo. Aquele barro que gruda nos sapatos e não sai. Quando eu cheguei eu vim pra ficar no lugar da minha sobrinha, que cuidava de uma senhora. O bebê da minha sobrinha estava pra nascer e ela não podia mais trabalhar. Aí eu fui trabalhar com essa senhora. Era uma velhinha bem doente. Ela vivia sozinha, com duas enfermeiras cuidando dela. A senhora era judia, tinha vindo da Europa criança, fugindo da guerra. Ela era tranquila. Já estava velhinha, não tinha voz nem voto. O problema era a filha dela. Não morava lá, mas estava sempre lá, com a mãe. Ela era muito bruta. Vivia zombando de mim. Nos sábados, ela não podia escrever porque os judeus não podem fazer nada nos sábados. Então ela me pedia pra escrever alguma coisa, e ficava me gozando dizendo que eu escrevia muito devagar. Eu só estudei até a quarta série. Fiquei lá três meses, até minha sobrinha voltar a trabalhar. Aí fiquei um mês sem trabalho. Aí você ligou pra Aurora e perguntou se ela não conhecia ninguém pra trabalhar na casa de vocês. Aí eu vim pra cá.

Chorei muito. Nunca mais falei com ele. O que eu sabia dele era o que meus filhos às vezes me contavam. O Roberto, eu conheci em um show do Bronco. Antes se chamava Bronco, agora é El Gigante de América. É um grupo mexicano. Tocava no El Rincón Paraguayo. É uma discoteca paraguaia. Uma das três que tem ali em Constitución. Começamos a sair juntos. Foi nessa época que começaram as dificuldades pra mandar dinheiro pro Paraguai. Na Western agora te cobram os olhos da cara, de imposto ou sei lá o quê, é impossível continuar mandando dinheiro. De qualquer jeito, desde que trouxe o Henry e a Heidi pra Buenos Aires eu já não mandava muito dinheiro. Liguei pro Hugo e pro Hernán e eles disseram que estavam trabalhando e não precisavam do dinheiro, podiam se virar sozinhos. Comecei a juntar dinheiro pra festa de quinze anos da Heidi. Comecei a preparar a festa uns cinco meses antes. A Aurora me ajudou muito. Me ajudou com o vestido, com a comida. Era comida que não acabava mais! A torta, foi a Mercedes que fez. Ela veio do Paraguai especialmente pra festa. Tanta gente! Estava tudo bem até a hora em que começou a dança. O Roberto me tirou pra dançar. A Mercedes me viu dançando com ele e começou a gritar. Disse que eu era uma sem-vergonha. Que eu era uma mulher casada, que não podia fazer aquilo, que meus parentes eram uns degenerados. Eu não sabia o que fazer. Não queria que a Heidi visse aquilo acontecendo. Não queria estragar a festa dela. Fui pro quarto e não saí mais de lá. Chorei, chorei. Eu tinha um nó na garganta. Não conseguia dizer nada.

15.

O patrão de Ana, enquanto escreve estas linhas, pensa na conversa que teve com ela no dia anterior. O patrão de Ana acredita que a pesquisa detalhada é um elemento importante para dar credibilidade à ficção. Ele pediu a Ana que contasse sua história. Ana sentou-se à mesa da cozinha e falou sem parar durante mais de três horas. Falou com tranquilidade, como se aquilo fosse parte de seu trabalho. Sentado em frente a Ana, o patrão fazia poucas perguntas e tomava notas. Pensou em muitas coisas enquanto escutava Ana. Pensou que a maioria das pessoas está sempre disposta a contar sua vida aos outros. Pensou que a situação em que estava se parecia a uma sessão de psicanálise. Pensou em uma frase que o escritor W. G. Sebald dizia a seus alunos: “Nada do que você inventar será tão horripilante como as coisas que as pessoas contarem a você.” Pensou que, no fundo, no fundo, estava mais interessado nas palavras que ela usava do que nela mesma.

18.

Antes que Miguel possa esmagar com os pés a longa fila de formigas à sua frente, Ana o segura pelo braço e diz, com doçura: – Não mate as pobrezinhas. Elas são muito trabalhadoras.

16.

– Cantavas? Pois dança agora!

17.

Um dia recebi uma mensagem do Florentino no celular dizendo que não queria mais nada comigo, que não existia futuro pra nós.

gustavo pacheco é contista.

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o rei que tinha dois cetros hugo bickel

H

á um tempo atrás existia um pequeno reino chamado Sofosberg. O nome era em homenagem ao Rei Sofos, um homem considerado por todos bom, justo, sábio e humilde, principalmente porque, graças a ele, não havia pobres nem ricos ali, todos compunham uma única classe social. Um dia, o Rei resolveu fazer um passeio sozinho. Chegando à praça central, Sofos teve uma surpresa: ele viu, pela primeira vez, um homem sem uma perna. O Rei observou a reação das pessoas que rodeavam o aleijado e percebeu que todas estavam também surpresas com aquela novidade no pacato reino. “Pobre homem!”, pensou o Rei, “o que será que ele fez de tão grave para receber tamanho castigo?”. No caminho de volta ao simples e diminuto palácio, Sofos veio pensando naquilo que vira. O semblante triste daquele homem sem uma das pernas não saía da mente do monarca. Dois dias depois, o Rei resolveu voltar à praça central, e, chegando lá, viu o mesmo homem, no mesmo lugar, sem a mesma perna. Como esse fato marcou o Rei! Para ele, algo parecia não estar certo naquela situação. “Eu, o defensor da igualdade, vocábulo que é sinônimo de justiça no meu dicionário, não posso aceitar que esse homem viva sem uma perna, enquanto todos os outros possuem as duas”. O Rei passou a fazer visitas diárias àquela praça, apenas para rever o aleijado. Sempre que Sofos via aquele homem, ele se sentia envergonhado. “Cada vez que cruzo com esse infeliz é como se eu debochasse dele, dizendo: ‘Olha pra mim, seu tolo azarado, eu tenho as duas pernas, mas você só tem uma!’. Isso não está nada certo...”. Esse pensamento começou a provocar no Rei a pior espécie de dor que existe: a dor moral. Sofos sofria por dentro, pois não sabia o que fazer. E, como se não bastasse, a dor moral gerou dores físicas no monarca: Tonturas e dores no estômago infernizavam a vida dele. O Rei já estava no seu limite! Algo deveria ser feito e já! Foi quando ele pensou: “E se eu cortasse a minha perna? As pessoas costumam dizer que sou bom e justo... Já provei isso eliminando a divisão de classes no reino, porém, é hora de provar mais uma vez que, de fato, detenho essas qualidades. Se não posso curar aquele homem, darei uma lição a todos me igualando ao pobre aleijado”.

Em seguida, o Rei chorou de soluçar. Ele sabia que não seria nada fácil cortar a própria perna. Porém, não havia escolha, aquilo era o certo! Ele já imaginava a repercussão de seu ato, símbolo que representava o domínio da igualdade perante tudo e todos: Ricos de todo o mundo se sentindo mal vendo pessoas pobres e, consequentemente, dividindo com eles suas riquezas; poderosos de todo o mundo se sentindo mal vendo indivíduos abaixo deles e, consequentemente, renunciando o poder que detinham outrora! Pronto, estava decidido: Adeus, perna esquerda! O Rei pegou um serrote e se trancou no seu quarto sozinho. Lá, ele abriu uma garrafa de vinho e bebeu três cálices, no intuito de sentir menos dor e criar coragem para fazer o que tinha que ser feito. Enquanto bebia, o rei foi até o piano tocar músicas no sistema dodecafônico, sistema esse que considera cada uma das doze notas como sendo iguais. “Que bebida saborosa, vou tomar a quarta dose só para garantir!”, disse o Rei. Após tomar o quarto cálice, o ébrio Rei olhou pela última vez sua perna esquerda no corpo e, naquele momento, teve a impressão de que ela era uma peça estranha ao todo, que realmente não era para estar ali. Então, o Rei respirou fundo, cerrou os olhos e serrou a perna esquerda. O Rei berrava de dor, e parecia que o vinho que bebera não parava de sair de seu corpo. João, um criado de Sofos, estava próximo ao quarto e ouviu os berros de dor. Ele não sabia o que havia acontecido com o querido Rei, que sempre o tratava gentilmente e de igual para igual. João, assim como acontece com os criados em geral, não tinha o costume de pensar. Porém, naquele momento, isso foi extremamente importante, pois ele, sem raciocinar, deu um chute na porta do quarto do Rei com toda a sua força. A porta despencou na hora, e João pode ver aquela triste cena: O Rei gritando todo ensanguentado sem uma das pernas. João ficou assustadíssimo, e, rapidamente, tirou sua camisa, amarrou-a no ferimento e levou o Rei até Ruy, o melhor médico que havia no reino. O médico não acreditou no que estava vendo. Após ouvir de João que o Rei havia feito aquilo consigo mesmo, o médico pensou: “Bom, justo, sábio, humilde e louco!!!”. Entretanto, mais uma vez não havia tempo para pensar, pois o Rei sangrava muito e poderia morrer. Ruy então resolveu amputar o cotoco real, 30


ou seja, o que restava da perna do monarca, e, se valendo desse procedimento, conseguiu salvar o paciente. Quando finalmente o Rei recebeu alta, ele disse ao seu criado: “Mande todos irem à praça central hoje à noite. Farei um discurso explicando tudo o que aconteceu”. A noite chegou e, na praça, a multidão reunida estava ansiosa pelas palavras de Sofos. O Rei apareceu andando apoiado em dois cetros, usados como muletas improvisadas. O povo aplaudiu timidamente, pois a cena era chocante, principalmente porque aquele era somente o segundo aleijado na história do reino. Sofos subiu num palanque e começou a discursar, dizendo em alta voz: “Amado povo! Não se assustem! Sei que confiam em mim de coração, portanto, reflitam acerca de minhas palavras: Dias atrás, vi pela primeira vez aqui no reino um homem que não possuía uma das pernas. Fiquei profundamente triste e me sentia mal sempre que passava por ele. Vocês conhecem o valor que a igualdade possui! Sabem que ela é a perfeição e a justiça, e que, por isso, deve continuar reinando aqui. Após pensar muito, cheguei à conclusão de que o certo seria cortar uma de minhas pernas para me igualar ao aleijado. Isso não é lindo? Existe maior demonstração de amor do que essa? Porque sim, meu querido povo, eu amo cada um de vocês, com o mesmo amor, pois somos iguais, somos todos seres humanos!”. O povo não entendia como era possível que alguma coisa, qualquer coisa, fosse capaz de justificar o fato de o Rei cortar sua própria perna. Mas, enfim, eles confiavam na sabedoria e bondade dele. Até que um da multidão gritou: “Viva a igualdade!”, e todos disseram: “Viva!”. Sofos ficou muito feliz com aquele apoio e passou a amar o povo ainda mais. “Eles compreenderam tudo”, falou o Rei cheio de euforia, “Esse é um dia que vai ficar na história de Sofosberg”. O Rei então resolveu baixar o seguinte decreto:

nunca mais correrei como antes... Jogos paraolímpicos, aí vamos todos nós”. Ruy, o melhor médico do reino também ficou especialmente irritado: Trabalhar sem uma perna era algo deveras penoso. Ele continuava achando que o Rei era louco: “Imaginem se um reino declara guerra a nós... Vamos combater usando um exército de sacis!”. Porém, Ruy continuava trabalhando arduamente pelo bem daquele reino. Até que um dia algo incrível aconteceu. Ruy, ao examinar um paciente, teve um ataque e começou a gritar descontrolado: “Meu Deus! Não! Você tem um tumor no pênis! É câncer! Não é possível! Por que???”. O homem ficou boquiaberto devido à reação do médico, e mesmo recebendo essa horrível notícia, disse: “Fica calmo, doutor!”. Ruy, totalmente desesperado, berrou dizendo: “Você não está entendendo! Eu terei que amputar seu pênis! Amputar! Oh, meu Deus!”. O homem olhou fixamente o médico. Ruy tremia e tinha o aspecto de um alucinado. Após dois minutos de silêncio total, Ruy disse ao paciente: “Já volto”. Então ele saiu dali e entrou numa salinha que havia naquele mesmo corredor. Sozinho na sala, o médico abriu o armário, pegou 1mg de cianureto e ingeriu sem titubear. Morreu na hora.

“DECRETO Nº 123 Da amputação obrigatória Art. 1.º Todo cidadão desse reino é obrigado a ter uma de suas pernas amputadas, recaindo a escolha da perna à própria pessoa. Art. 2.º Os amputadores serão servidores do reino aprovados em concurso público de provas e títulos. Da penalidade Art. 3.º O cidadão que descumprir essa norma será enforcado em praça pública. Parágrafo Único. Fica isento de pena aquele que se opor à amputação, pelo fato de já não possuir uma das pernas”. Em seis meses, todos os habitantes daquele reino tiveram uma de suas pernas amputadas. O Rei voltou a ficar contente vendo todos novamente iguais. O povo é que pareceu não ter gostado muito... Era muito difícil se locomover com apenas uma perna. Euzébio Jabuti, o homem mais rápido do reino, campeão em todas as modalidades de corrida, disse aos amigos, inconformado: “Maldita igualdade! Graças a ela

hugo bickel é escritor. Vive no Rio de Janeiro. Dá expediente no blog literadura.blogspot.com.br

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eu te amo, cassius clay leonardo marona

O

medo maior era – naquele lugar onde se pode apenas começar, por entre aquelas pobres estruturas monumentais de esperma estrangeiro – tornar-me um comentarista do cotidiano, um torpe fazedor de frases com camisas coloridas e um império de putrefação no estômago, um sujeito que se aproxima de um estranho na rua para reconhecer nele sua própria anomalia. Um brasileiro próspero, em suma. Um arrogante juvenil e um gênio das fábulas. Um fedelho romântico sem mãe nem coração. Não havia como ignorar o não saber as ruas, por onde escorre tanto lixo, diante de uma beleza de plástico. Gamboa, Saúde, Morro do Pinto, estas palavras eram meras contradições pouco afirmativas. No Santo Cristo trabalhei como assistente de copidesque para uma empresa jornalística do ramo das letras; das belas letras, diz-se. Mas, antes de tudo, é preciso que eu explique: o que aconteceu comigo, e será descrito em seguida, é algo completamente fora do convencional, distante do cotidiano das cidades, mas deveria ser algo absolutamente cotidiano para todas as pessoas, em todos os lugares. Assim dito, agora posso me apresentar. Meu nome é Dante e, apesar das piadas que isso por toda a minha vida suscitou – ser nomeado Dante Alighieri – sempre gostei de me chamar Dante. Quando eu era ainda criança, meu pai me deu sua Comédia para ler, e me bastou. Por aquelas palavras eu podia me reconhecer como um semideus, e isso é o suficiente para uma criança de nervos agitados. Ao mesmo tempo, tinha a impressão de que aquele nome era também uma maldição. Estava impregnado demais da beleza sublime e muitas vezes aterrorizante dos versos do poeta, e por isso sentia que me tratavam como alguém mais feio do que eu de fato era, por submissão e medo, causados pelo nobre nome. Sentia-me constantemente injustiçado e isso, com o tempo, tornou-se parte da minha personalidade inconsequente e irritadiça. Falava com os outros aos gritos ou aos prantos, havia me tornado um personagem dentro de um poema épico de uma ruindade monumental. Acusavamme de romântico, retardado, excêntrico, uma vez até mesmo me chamaram de “poeta”. Tudo isso me enfurecia. E a coisa toda piorou quando me deparei pela primeira vez com a figura grotesca do próprio poeta florentino, impressa num livro sobre história da arte para crianças. Era, de fato, uma figura que mataria de

susto uma criança suscetível. Por sorte, eu já era um pouco mais velho e amargurado demais, inclusive, para a minha pouca idade, mas não se pode esperar de um adolescente que ele sustente um desequilíbrio tão gritante entre o que ele imagina ser e como ele é, de fato, tratado pelos demais. Em suma, ter descoberto que Dante Alighieri era um sujeito fisionomicamente detestável, com um nariz de bruxa que quase tocava o queixo de maçom com problemas gástricos, apenas serviu para acentuar minha mágoa, agravando o que, em marcha, se tornava uma questão patológica acerca de uma identidade inóspita. Existe uma beleza prodigiosa, hoje sei, nos que sofrem de problemas imaginários. É uma beleza que foge, mas está sempre por perto. Quase se pode tocá-la com os lábios, mas nunca se chega a tanto. No entanto, tenho certeza, é uma beleza provedora. Ela nos pune por nosso erro de foco, nos inaugura como seres humanos. O assunto é piegas, decerto, mas deveria ser levado mais em consideração. Que fique bem claro: toda excentricidade, para mim, era natural. Os solitários habitam pequenos mundos de criação obsessiva, e só isso mantém os solitários vivos. Eu, particularmente, me sentia ainda mais injustiçado. Chamando-me Dante e tendo, em meu íntimo, vivido à maneira de Dante, para mim era dificílimo acreditar que eu pudesse estar tão distante, tão apartado da Grande Beleza, da qual eu me sentia usurpado, pelo modo como se dirigiam a mim. Sentia-me, de certa forma, como um rei destronado de quem, além de tudo, arrancaram as ceroulas. Por todas as minhas fraquezas dominantes, eu era dado às letras. Contos, poemas, anedotas, orelhas de livros de amigos, fofocas literárias, cartas falsas de amor. Não havia ainda uma ideia longa. Mesmo assim, eu publicava, por assim dizer, e a cada livro publicado, a cada coquetel de lançamento, mostrava-me mais desinteressado e distante; como diria o poeta russo: “andava fazendo fita, em botas rasgadas e tiritando de frio, metido em um sobretudo de verão no outono avançado”. Se era comentado qualquer coisa sobre o livro, eu dizia apenas: – Não sei, não sinto muito mais nada, é como se já não fosse mais meu, é do mundo em volta, é algo que me foi tirado, entende, e eu permiti que fosse e não é mais meu, espero que entenda... 32


E por aí seguia. As pessoas, em geral, apertando praticamente minha glote, davam uma risada histérica e se afastavam mutuamente, e não só de mim, cada uma desaparecendo para um lado. Era uma espécie de epidemia ultralocal. Para que acontecia isso, se no fundo eu pensava o contrário? Se a questão era justamente e apenas esta: era preciso acabar com a beleza. Se não era possível que eu fosse reconhecido pela beleza que, como justificativa de fato questionável, mas de todo modo profundamente calcada na minha personalidade, me havia sido concedida em nome do maior poeta de todos os tempos, então eu mesmo criaria outra beleza, para matá-la em público, nos moldes de um suicídio japonês. Então aconteceu um fato absolutamente extraordinário, uns diriam até “uma surpresa no mínimo agradável”, os mais precipitados talvez pudessem olhar arregalados e dizer “mas, meu senhor, isso é tudo o que um homem poderia desejar”. Mas, infelizmente, há muitas controvérsias nos prêmios gratuitos: aí está um fato historicamente incontornável. O combinado era encontrar esse amigo meu, escritor, poeta lírico, autêntico conhecedor de cachecóis, frequentador assíduo de um puteiro no Santo Cristo, portanto próximo ao meu trabalho. Combinamos num bar tal, onde ele estava com outras pessoas, comemorando o aniversário de alguém. Esse amigo era um homem de bom coração, sem talento de todo, e um tanto deslumbrado com porcarias. Mas, ainda assim, o maior talento que um homem pode apresentar é, sem sombra de dúvida, neste mundo e talvez não em outro, ter um bom coração. Logo vi uma aglomeração de gente, mas não vi meu amigo. Era um pessoal bem bacana, com fedor nas axilas, mas muita gente bonita ou, melhor seria dizer, despojada. Estranhamente, reparei logo de cara que ali havia muitas mulheres, particularmente encantadoras, do tipo capaz de engolir a cabeça de um incauto num bote instantâneo, e reconheci algumas que nunca me amaram e sempre me trataram mal. Talvez não por acaso, estas estavam mais embriagadas, e seus olhos continham as labaredas dos olhos do demônio, enquanto riam alto e apontavam umas para as outras deixando os peitos à mostra e derramando cerveja no chão. Não encontrei meu amigo que, de fato, não passava de um bobalhão que não conseguia fechar a boca e salivava o tempo todo. Quem era ele afinal, para me deixar aqui plantado no meio dessa gente horrível? Assobiando e revelando indisfarçável tensão, me afastei do aglomerado aparentando náusea e, ao mesmo tempo, com medo de que uma daquelas pessoas que não gostavam de mim, principalmente uma das meninas, me visse e fizesse questão de pisar no meu pé para, em seguida, entornar cerveja na minha camisa, sem pedir desculpas, tudo para, no dia seguinte, alegar, passando apressada pela calçada, que não me via há muito tempo e o que eu estava fazendo de bom afinal. Mas a vida é feita para não se escapar dela. Uma das mulheres apareceu, como em câmera lenta e com uma voz gutural desacelerada, a que menos gostava de mim. Era muito bonita, mas eu imaginava defeitos secretos nela, como

uma verruga na vagina ou um defeito no céu da boca, além de pentelhos brancos. Não havia como escapar ao terror do encontro catastrófico. Quando olhei para baixo, tentando disfarçar, ouvi a menina gritar meu nome num timbre que nem mesmo um poeta florentino da Idade Média saberia distinguir. Era um grito como ela nunca havia emitido para mim, e dizia meu nome: DANTE. Era muito bonito ouvir meu nome gritado de maneira tão sonora e sensual por uma menina, mesmo que fosse aquela fedelha insolente. Ela se aproximou correndo como num daqueles seriados norte-americanos com peitudas salva-vidas e se atirou nos meus braços, enroscando as pernas em volta das minhas costas. - Dante, meu querido, meu lindo, amor da minha vida! – E ficou dando beijinhos rápidos no meu rosto, enquanto eu pensava em como era pesado aquele minúsculo pedaço de gente. - Olá, Tânia – eu disse, repousando-a de volta ao chão. - Coisa rica e preciosa – e Tânia me apertava as bochechas como se eu fosse uma espécie de ursinho pimpão. - Você veio para o aniversário? – eu disse. Tânia virou-se para o lado. - Olha, Rita (Rita era outra sem modos, que usava tiaras como saias), não é a coisa mais linda do mundo? Olha como os olhinhos dele brilham na luz, olha! - E os cílios? Isso é uma crina, não são cílios. - Oi, Rita – eu disse. – Vocês têm certeza de que... - Ainda por cima é modesto! Vem cá, Fabi, vem cá me dizer. Não é a coisa mais linda do mundo? – disse Rita, enquanto Fabi se aproximava. A Fabi eu nunca havia visto na vida. - Muito prazer, Fabi. Meu nome é Dante. - Nossa, que prazer, DANTE! Benza Deus! É uma pena que eu tenha namorado, mas vamos ali comprar uma cerveja. Automaticamente, segui aquela estranha até o balcão do bar, onde se aglomeravam os traficantes de drogas, as putas e os arruaceiros, além dos bêbados mijados. Fabi tinha pés horrorosos, com dedos trepados uns nos outros, e as unhas estavam descascadas, além do que eram pés imensos. Os dedos ficavam para fora das sandálias, uma cena lamentável. Era altíssima, magra como uma vara de bambu, e estava realmente alucinada. Pegou uma cerveja, despejou violentamente em dois copos e me entregou um. Quando brindamos, meu copo se quebrou, e mais cerveja escorreu pelo meu pescoço. - E então, bonitão? - Você não pode estar falando sério. - O que você quer dizer? - Essa conversa mole de “bonitão”. - Você não tem espelho em casa? Fabi sacou da bolsa um espelhinho com marcas de cocaína, e de repente eu podia ver a mim mesmo. As entradas violentas, com pouco cabelo no topo da cabeça e fios brancos nas laterais. O nariz de pugilista, torto para o lado. O queixo prognata, como o de um hominídeo. Acabei me desvencilhando nauseabundo daquela fauna esquizofrênica e tropecei até parar numa espécie de festa junina lisérgica para pessoas com mau hálito num pé sujo boca braba nos limites da Providência. Lá, passei a noite 33


atrás de uma mulher com os cabelos da Shirley Temple e as feições de Cassius Clay. Ela carregava em volta do pescoço uma placa que dizia “beijo a um real” e tinha uns óculos de coruja. Quando eu finalmente conseguia me aproximar dela e lhe estendia a moeda bicolor, ela arrancava a placa do pescoço e roubava minha cerveja. Havia uma turba infecta por algum veneno que rapidamente me puxou para dentro de uma roda cigana e dançamos, em meio a cusparadas de cachaça, uma espécie de dança ancestral. Nisso perdi de vista a menina da placa e me embriaguei fatalmente. Olhei para o outro lado como se fosse bom estar vivo, e ainda pensava “meu amigo, virão mulheres novamente com a nova maldição, portanto esteja preparado”, então reparei que estava cercado pelo que pareciam ser indianos legítimos. Eles usavam panos dourados e sapatos dourados e tons dourados na fivela do cinto drapejado de pingos de ouro puro, em quatro dentes na boca, nas muitas pulseiras pesadíssimas e nos relógios feitos na medida de quem já matou alguém com muitos tiros e até mesmo a facadas. Tanto ouro me fez lembrar finalmente que havia um torneio mundial de um esporte mundial em nossa cidade mundial, e por isso havia muitas pessoas revelando seu ouro mundial encontrado em lugares mundiais, e ali estava aquele ouro imensamente mundial e uma reconhecida agonia, conforme chegavam os indianos mais e mais perto e o ouro saltava conforme eu pensava “Dante você é ouro, és ouro, não há ouro algum à sua volta, não se preocupe”, e me punha a roer as unhas porque eles queriam, era possível perceber, saber alguma coisa imediatamente. - Ni tu tchein póun! – gritou um dos indianos, que eu julgava indiano. - Tu quer pão? – eu disse, recolhendo a informação. - Are you indian? – disse alguém ao meu lado, que bebia. - Ni tu tchein póun!!! – ele gritou mais alto, dessa vez fazendo uma mímica grotesca de quem quer trocar dinheiro, who need to change pounds. - Du yu nô RILLY wumá? – me atropelou o indiano que estava à frente do grupo. Era impressionante ter pensado que aquilo poderia perfeitamente acontecer. - You mean REAL women? – eu disse, como bom anfitrião. - RILI WUMÁ! RILI WUMÁ RÉ DIC! – ele disse, levando o antebraço rígido à frente da pélvis. - What is your occupation, man? – disse um sujeito muito grande, sem um olho, por quem eu torci com firmeza que não dissesse nada. - Petrolific!!! Brazilian Petrolific – foi o que disse, aos berros, o indiano. Havia muitos dentes de ouro na boca daquele homem de pele muito escura como petróleo e cabelos escorridos. Real women have dick, acho que era o que aquele homem tentava me dizer com os olhos para fora da órbita, quilos e quilos de ouro pelo corpo e algum crime muito grave, num distante país. Enquanto os outros indianos riam, o mesmo que falava comigo apontava agora o outro lado da rua, onde travestis enormes amontoavam-se como cavalos minutos antes de um páreo no jóquei.

Fiquei muito confuso com toda aquela convicção indiana por mulheres com pau, então saí de perto enojado, ou melhor, forjando um enojamento que seria bem mais útil se fosse verdadeiro, pensando em como a feiura podia ser algo sempre tão subjetivo e absolutamente factual. Saí mentindo a mim mesmo, coçando meu próprio corpo enquanto tentava olhar em volta: aqueles homens pareciam indianos cinematográficos; speeders, vodca barata, bigode grosso, umas camisas cor de âmbar e ouro. Comediantes natos, sem graça nenhuma. “Só desse jeito o salto imaterial é um exercício do espírito”, eu tentava refletir em meio àquele cemitério que se erguia. Todo homem deve libertar-se, todo homem deve realizar um grande gesto. Procurava meu gesto, portanto, como todo homem. Foi quando ao meu lado, no mesmo bar dos confins da Providência, que já começava a se tornar uma Disneylândia geriátrica, sentou-se novamente a menina Cassius Clay, com os cachinhos da Shirley Temple, agora sem placa nenhuma em volta do pescoço. - O que você faz com essa placa, de onde ela vem? – eu perguntei, desnorteado. - Queridinho, isso aqui é um parque de diversões. E não se conta o segredo do trem fantasma. - Preciso te fazer uma pergunta, responda com sinceridade: você me acha um homem bonito? - Ser um homem basta. Não preciso de um super-herói. - Sim, compreendo. Você não tem achado esse dia muito estranho até agora? - Sim e, veja só, você teve sorte outra vez e vai ganhar uma cortesia, em troca de uma cachaça. Ela trouxe de algum lugar insuspeito a mesma placa do beijo a um real, pendurou no pescoço e se debruçou sobre mim com força descompensada, no que pude ver que os cachinhos da Shirley Temple eram cachinhos de uma peruca tosca. Ali, naquela feiura ímpar, havia a possibilidade do fim daquele feitiço. Somente olhando e amando o que é muito feio pode-se alcançar o belo que sobressai às mitologias e às artes, o primeiro belo. Quando ela me beijou, senti um gosto terrível de porra velha. De todo modo chorei, chorei por estar sendo libertado, pois havia concluído o nobre pacto. Ser um homem basta, eu pensava, imaginando a mim mesmo com a cueca sobre as calças e uma capa e uma máscara pulando e voando sobre os prédios. “Eu te amo, Cassius Clay”, eu pensava enquanto, de mãos dadas com o destino, seguimos pela rua. Quase fomos atropelados. Já era a alvorada. Olhei todos aqueles prédios, como foguetes que não decolam até planetas que nunca existiram. E os alienígenas somos nós, tomando conta, diariamente e com nossos corpos, dessa montanha de carcaça inútil. De repente voltei a mim e sacudi a cabeça. Cassius era estrábica e tinha gigantescos olhos e uma série de problemas cromossômicos pareciam ter-lhe afetado de todo o ânimo pela vida. RILI WUMÁ RÉ DIC. A real woman. Embora atrozmente calva, cega de um olho, mal vestida, embora não soubesse conversar, ela me amava com a grandiosidade lamentável dos derrotados, não me achava bonito especialmente, mas via a nobreza que eu carregava em meu silêncio repentino. Tomamos sorvete ao amanhecer por entre os travestis que ainda circulavam 34


com suas enormes plataformas, sonolentos e satisfeitos com o fim da noite. Era uma linda cena de cocheira, os cavalos ainda suados relinchavam levemente seu linguajar ancestral. Olhei para a pobre moça com toda emoção. - Eu te amo, Cassius Clay. - Não existe amor nas docas, paizinho. E vimos o sol subir sensualmente ao céu, como num conto marroquino de Jean Genet.

leonardo marona , apesar de ter apenas um metro

e setenta, nasceu de cesariana, com quatro quilos e oitocentos gramas, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre. Publicou o livro Pequenas Biografias Não-autorizadas (poesia, 7Letras, 2009), L’amore no (poesia, 7Letras, 2011) e Conversa com Leões (contos, Oito e Meio, 2012). Tem textos publicados nos sites Bestiário; Escritoras Suicidas (sob pseudônimo), Crônica do Dia e no literário Jornal Plástico Bolha.

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a tarde de um fauno marcus vinícius rodrigues

N

o futuro, todos falariam do menino que se jogou do edifício. O que teria acontecido com ele? Esse seria o mistério. Uma moradora do sétimo andar diria: — Eu vi quando ele caiu, tão pequenino, pelo poço da escada, lá do último andar. Dezesseis andares. Tão alto, não podia ter sobrevivido. Mas o corpo, o corpo ninguém acharia. Davi estaria longe. Ia voar para muito longe, uma distância que ninguém imagina e que pra medir é preciso dizer de um longe aonde nunca se chega, um longe de onde não se pode voltar. Ele voaria. E pra voar bastava ter pensamentos felizes, como nas histórias de fadas. Seu corpo ficaria leve, sem mais nenhum peso da dor que levava. Era só flutuar. Um vento o sopraria para longe, onde o destino o aguardava outro, feliz e para sempre. Para sempre, como nos contos de fadas, a alegria que não acaba. Era só atravessar o buraco na parede, abrir sua capa azul de super-herói e lançar-se do décimo sexto andar. Ele calculou tudo. Os olhos estavam voltados para o alto porque era esse o seu objetivo: o alto, o céu quase vermelho daquele fim de tarde, as nuvens cinza da cidade seriam vencidas e, lá em cima, por cima de tudo que havia, nuvens cor-de-rosa. Ia subir acompanhando a tarde, a medida de seu vôo. E, então, mesmo a tarde sumiria no horizonte. Restariam as estrelas da noite. Ele procuraria aquela mais brilhante que fica à direita de que vai, e depois outra, tão intensa quanto a primeira. Nesta, viraria à direita e voaria muito tempo até reencontrar novamente o sol e seu calor. Não mais a tarde que morre no horizonte da cidade, com suas cores fortes demais por causa da poluição, como aprendeu na escola. Um sol de amanhecer, com um amarelo novo e brilhante. E toda sua vida seria assim como o calor que surge para aquecer as gotas de orvalho da noite, todas as coisas brilhando como só é possível quando se amanhece pela primeira vez. Bastaria ter pensamentos felizes, quando seu pé esquerdo acompanhasse o direito, que já estava em pleno ar. Os dois pisariam o nada. Um único passo. O salto. Voar. Bastava ter pensamentos felizes. Mas ele não tinha. Nada que pudesse lembrar era um pensamento feliz. Tentou imaginar um futuro alegre, algo bom. Nada. Tentou imaginar o Fauno levantando-o do chão como daquela vez em que tropeçou na entrada do prédio. Ele o agarrou pela cintura e o pôs de pé. ­— Machucou?

Quis correr de vergonha, mas seu corpo inteiro estava paralisado. Uma descarga elétrica paralisava seus nervos. Ia morrer ali. Era uma presa vencida. O corpo reagia involuntário, convulsionando entre as pernas. Com muito custo correu para a escada, seu refúgio. Ninguém usava as escadas. Queria ir para casa se esconder. Chegou mesmo até a porta do apartamento no quarto andar, mas desistiu. Sabia que estava vermelho. Sua mãe notaria. Resolveu subir para o último lanço da escada lá em cima, onde o décimo sexto andar se liga ao terraço do prédio, lugar abandonado e que há muito tempo era seu esconderijo. De lá podia ver as janelas do quarto e da sala do apartamento do Fauno, e mesmo uma parte do banheiro ele avistava por uma pequena janela. Os apartamentos de fundo tinham janelas para o poço central. E ali do alto da escada, pela parede vazada, ele podia avistar tudo de vários apartamentos. Era assim que ele gastava suas tardes fora de casa. Logo que estava liberado de almoço e deveres, fugia. Batia atrás de si a porta do apartamento e esquecia de tudo. O pai e a mãe desapareciam de sua vida. Ele ficava só no mundo e podia ser o que quisesse, um aventureiro, um mágico ou um cientista. O alto da escada era seu castelo e seu observatório. Lá estava o Fauno em casa, tirando a roupa. A camisa e as calças, a cueca. Estava inteiramente nu. Davi podia vê-lo inteiro caminhando pela sala. Era um corpo forte e branco. Peludo. Os pêlos negros do peito desciam pela barriga num caminho estreito e se espalhavam entre as pernas. Coxas, bunda, tudo era coberto por uma pelagem negra de fios longos, em contrate com a brancura da pele. Também nas costas, apenas no alto, uma penugem preta começava e se estendia até os ombros e escorria pelos braços até os nós dos dedos. Todo o corpo era um feixe de músculos, como uma estátua grega, como uma gravura, como a gravura no livro de mitologia. O menino logo reconheceu naquele homem o fauno de seu livro. Era o mesmo corpo musculoso e peludo. O rosto era também marcado como o da gravura: forte, sobrancelhas grossas e negras, como duas asas de corvo. Mas, de tudo, Davi ficou impressionado com as pernas fortes. Ele parecia ser menos humano da cintura para baixo, como um animal. E mesmo os pés, se não era cascos de bode como os de um fauno verdadeiro, eram tão marcadamente embrutecidos... A primeira vez que Davi o viu, ele estava deitado na cama e alisava o próprio corpo. O menino, em sua pouca vida, não podia entender o que se passava. Até 36


mesmo aquele corpo tão extraordinário era novo para ele. Em nada se comparava ao do pai, tão absolutamente neutro. Se lhe perguntassem por que ficou tão fascinado por aquela visão, não saberia dizer. Já tinha visto outros vizinhos nus nas suas expedições. Eram sempre muito engraçados de ver. Já tinha visto colegas da mesma idade, curiosos que estavam de comparar-se. Mas ali, vendo o vizinho nu tocando o próprio corpo, sentia algo diferente. Era como se ele tocasse de longe o corpo do menino. Se passava a mão no peito cabeludo, era como se alisasse o peito liso do menino; se descia sua mão para as pernas fortes, tocava na distância a perna fina do menino. E quando manipulou o próprio sexo parecia agarrar o menino e tentar fazê-lo crescer, esticar e produzir o gozo remoto. Gozo? Para ele era apenas um estranhamento, uma sensação boa e aflitiva, como um bombom de açúcar que deixava um buraco no sabor. E mesmo o sabor era algo sem descrição, sem modos de contar para os outros. Naquela tarde, a primeira, o pequeno Davi soube que tinha encontrado alguma coisa. Soube sem saber. Ele aprendeu um cheiro novo no corpo e fugiu assustado. Desceu as escadas correndo e voltou pra casa. Nem teve medo do que pudesse encontrar. Ele sabia o que encontraria e a certeza espantava o medo. Ele precisava de algo conhecido e familiar, precisava de um refúgio para o próprio corpo que teimava em ser outro. Precipitou a noite e abriu a porta. Nem eram três horas da tarde. No dia seguinte, à hora da libertação, estava no hall de seu andar. Ao contrário dos outros dias, não sentia o alívio de deixar o apartamento. Estava tenso. Queria subir as escadas e olhar. Tinha pressa e tinha medo. Foi subindo devagar sem prestar atenção às janelas dos apartamentos que surgiam pelo vazado da parede. Não viu o morador que escondia garrafas vazias embaixo da cama, ou que a velha do nono dormia no sofá com um seio à mostra com uma ferida antiga que ela cobria com um lencinho puído. Outra moradora, Dona Heloísa, procurava sua gata perdida. Morena. Ela sempre deixava o bicho escapar e depois ficava procurando de apartamento em apartamento. Davi gostava de esconder a gata e se divertir fingindo ajudar a velha. Ele achava e ganhava doces como recompensa. Tantas janelas abertas. Parou apenas no décimo quarto andar para ver o apartamento do ator. Era assim que sua mãe e os outros moradores o chamavam. E quando diziam ator, o olhar tinha um jeito diferente. Era como se dissessem o contrário. O porteiro ria dele pelas costas e a mãe lhe disse um dia para não falar com ele. Não era ator de televisão, isso ele sabia. Todas as tardes era possível vê-lo em casa mexendo em vestidos coloridos, costurando alguns. Ele sempre costurava. Um dia, quando pulava da escada no andar dele, foi surpreendido. — Ei! Vai voar — disse o ator, quando viu o menino com um pano amarrado no pescoço. — o que você está fazendo cá em cima? Davi disse que estava brincando. — Mas com essa capa? Não tinha nada mais bonito? Olha, vem comigo. Eu vou lhe dar uma coisa. Davi o acompanhou até seu apartamento. Era um quarto e sala. Todos os apartamentos dos fundos eram assim. A sala estava abarrotada de vestidos em cabides, em cima do sofá, numa máquina de costura posta no canto, em todo lugar. Na

mesa, junto com pratos e xícaras usados, estavam tesouras, linhas, fitas, retalhos de tecido e um pote de botões coloridos. Davi entrou desconfiado. — Não tenha medo. Sente aqui. Ele tirou alguns vestidos do sofá para abrir espaço. Davi lhe perguntou se ele era ator como diziam no prédio. O rapaz olhou para menino. Parecia ser jovem ainda, mas não era. Em torno dos olhos já começava a se instalar um leve cansaço. — Foi isso que lhe disseram? É! Talvez eu seja um ator, mas de um personagem só. Esse aqui. Ele pegou um vestido no cabide e pôs junto ao corpo. Depois apanhou uma peruca de mulher, cabelos pretos longos, e colocou na cabeça. Davi se assustou. Não tinha visto a peruca ainda. — Absoluta Taylor! Este é meu personagem. Fez uma careta engraçada enquanto balançava a peruca sobre a cabeça e fazia o vestido dançar em frente a corpo. Davi riu da brincadeira. Ele lhe contou o que fazia. Fingia ser uma cantora, se vestia de mulher e se apresentava todas as noites numa boate. O nome da cantora era Absoluta Taylor, um nome engraçado, achou Davi. — É! Vendo pelo seu lado, é engraçado. Não era pra ser, mas é. Também fazia vestidos. Fazia para usar e para outros atores. Ganhava dinheiro assim. — Você quer que eu lhe faça uma capa? Davi nem acreditou naquilo. Queria. — Como? Davi queria uma capa azul. Podia ter estrelas? — Eu tenho esse tecido aqui, veja. Era um tecido de cetim azul. Um azul escuro. — Posso por umas estrelas também. Davi agradeceu. A capa ficaria pronta em poucos dias. Durante esse tempo, ele passou a ir à casa do rapaz todas as tardes. Ficava olhando ele trabalhar e ouvindo histórias e brincadeiras. Ele cantava em uma boate, já sabia, mas sabia também fazer festas infantis vestido de palhaço. Nunca mais fez, mas ainda tinha a roupa. Era um palhaço vermelho e amarelo, a gola de babado enorme. Tinha um chapéu cheio de luzes que acendiam. O rapaz vestiu a roupa e pintou o rosto. Davi passou a tarde mais feliz de sua vida rindo das brincadeiras do vizinho. Uma outra ocasião, ele vestiu a roupa de Absoluta Taylor e cantou uma música em inglês. Era uma música triste, mas muito bonita. Assim eram aquelas tardes. A capa ficou pronta. Uma capa azul cheia de estrelas. Era uma capa de super-herói, mas podia ser também uma capa de mágico, só faltava a cartola e o coelho. — Olha, vou arrumar um material pra fazer uma cartola pra você. Preciso de papelão, de um tecido preto. Quando eu achar, eu te chamo. Experimenta aqui. Ele colocou a capa no menino. Era larga e tinha estrelas bordadas, feitas de um tecido prateado. Amarrava no pescoço como um colarinho de camisa, bastava abotoar. Mas tinha um problema, arrastava no chão. — Eu fiz grande porque você está crescendo. Se fizesse do seu tamanho não ia ficar voando. Quando você correr ou saltar da escada, vai ficar legal. 37


O menino vestiu e saiu pelo corredor. A capa voava. Nessa época, ele ainda não tinha surpreendido o Fauno. Nem mesmo usava o último vão da escada como esconderijo. Foi justamente a capa que o fez achar o lugar. Quando ela ficou pronta, ele viu que não podia levar pra casa. A mãe não ia gostar que ele tivesse conversado com o tal ator do décimo quarto. O pai, então! Foi aí que ele descobriu o esconderijo. Era um lugar deserto. No alto da escada, onde havia o alçapão para o teto do prédio, tinha um patamar. Estava sujo e era perigoso. Para subir até lá ele passava por um lanço de escada que tinha um buraco na parede. Dava medo, mas também era fascinante olhar para baixo daquela altura. Foi aí que ele viu o Fauno deitado em sua cama. Era uma visão inexplicável, como se um deus dormisse entre os humanos. Lembrar do fauno do livro foi imediato. Ele já tinha uma sensação de perplexidade ao olhar o desenho, uma hesitação em passar as páginas. O fauno de papel estava deitado sob a sombra de uma árvore e segurava uma flauta próxima à boca. Estava no gesto de iniciar uma música e sorria um sorriso entre sedutor e maléfico, como quem convida e já anuncia: é uma armadilha, você vai se perder. Davi se perdia. Ficava horas olhando a gravura. Levava ela consigo para o colégio, para os sonhos, imaginava o fauno caminhando pelo bosque espantando os animais, correndo atrás das ninfas da outra gravura, participando de batalhas e escapando de perigos. Era sua fantasia preferida. Agora, ali em sua frente, o próprio personagem lhe aparecia, desta vez sem as tintas do livro. Era a carne viva. Ele se mexeu na cama e escapou do campo de visão de Davi. Ele teve de descer três degraus para recuperar a visão. Via entre os furos da parede e, ao mesmo tempo, não era visto. O Fauno começou a se acariciar e o toque no próprio corpo atingia o pequeno Davi em seu esconderijo. Da escada do décimo quinto andar Davi podia ver Absoluta Taylor em seu apartamento. O vizinho vestia sua roupa de mulher. Experimentava as formas, colocava enchimentos no peito, escolhia uma peruca. Estava entretido com os preparativos para a noite. Davi não lembrou da cartola. No dia anterior, antes de subir até o alto da escada pela primeira vez, ele só tinha cabeça para a cartola que ia ganhar para fazer de sua capa de super-herói uma capa de mágico. Naquele momento ele só pensava no que encontraria lá em cima. Deixou o novo amigo com suas roupas e subiu. Não havia ninguém. As janelas estavam abertas, mas ele não estava lá. Davi ficou decepcionado. Foi procurar sua capa nova e vestiu. Não quis brincar com ela, ficou sentado num degrau no alto da escada olhando pelo buraco. Ficou quase a tarde toda naquela posição, esperando. Podia ver toda a altura do prédio e as várias janelas abertas dos vizinhos. Lá embaixo, Morena passeava pelo playground. Logo Dona Heloísa ia sair para procurar a gata. Ele pensou em descer e salvar a gata com sua capa de herói e já ia descendo as escadas, quando avistou o Fauno. Ele apareceu na sala. Devia ter chegado da rua e o menino não o viu. Estava só de cueca. Parou no centro da sala e começou a fazer exercícios primeiro em pé, depois no chão. Usava pesos. De vez em quando ele ia até o quarto e se olhava no espelho admirando o resultado. O corpo inteiro suava. Quase uma hora depois, parou. Tirou a cueca

e, nu, começou a arrumar uma roupa na cama. Depois de tomar banho, vestiu-se e saiu. A tarde acabava. Davi tinha de voltar ao apartamento. Voltar para casa era sempre doloroso, era como voltar ao buraco de onde já se conseguira escapar. Ele sabia o peso da terra e de como sufocava alguém que fosse enterrado vivo. Aquele dia, porém, o seu sofrimento era diferente. Ele tinha de deixar o Fauno. Não podia segui-lo aonde quer que fosse. Guardou sua capa num saco e desceu. Podia apenas esperar a próxima tarde. E ela veio. Vieram muitas tardes como aquela. Ele observava secretamente o Fauno. Ele fazia exercícios todos os dias, quase sempre estava nu ou de cueca. Davi começou a ficar atento a tudo sobre ele. Logo soube que ele dormia até o meio-dia, enquanto ele estava na escola. Passava as tardes em casa e saía logo que anoitecia. Voltava tarde, muito tarde. De seu quarto, Davi ficava observando a entrada do prédio, à espera dele. Nunca pode vê-lo chegar. Dormia antes. Havia dias em que ele colocava uma música e dançava. Começava vestido. Depois ia tirando peça por peça, conforme a música avançava. Ele se contorcia e passava a mão pelo corpo. Eram umas roupas esquisitas, fantasias de cowboy, soldado, marinheiro. Um dia ele vestiu uma roupa de mágico, com cartola e tudo. Davi reconheceu a capa igual a sua, ou quase. Era preta, tinha um forro vermelho, mas tinha as mesmas estrelas prateadas, o mesmo colarinho de camisa. E aquela cartola? Teria sido Absoluta Taylor quem tinha feito? Eles se conheciam? Davi logo teve a resposta. O Fauno na casa de Absoluta Taylor. Experimentava uma roupa vermelha. Davi não sabia explicar o que se passava, eles foram para o quaro e fecharam a janela. Ficaram lá um bom tempo, até que anoiteceu. Quando Davi foi pra casa, eles ainda não tinham reaparecido. Todas as luzes do prédio se acenderam, menos lá. Tudo estava apagado e secreto no apartamento do ator. Ele não queria ir mais à casa do ator. — Você não foi mais lá em casa. Quando vamos fazer aquela cartola? Davi hesitou. Tinha raiva do rapaz. Não sabia por que, mas tinha. Por outro lado, queria saber mais sobre as janelas fechadas. Ele não sabia? Sabia. Seu corpo já lhe ensinava. Um alarme obscurecido tinha sido disparado, mas era com se falasse uma outra língua. Era preciso traduzir para entender tudo. E as janelas fechadas faziam ele imaginar com clareza tudo o que se passava lá dentro. Ele não estava lá, mas aquele quarto fechado se escondia dentro dele e queimava. Era uma bomba latejando sua contagem regressiva. Quando iria explodir? Davi acabou indo à casa do rapaz. Queria tocar aquela roupa vermelha. — Vou fazer um pouquinho maior pra durar mais tempo. O rapaz media sua cabeça com uma fita métrica. Davi estava crescendo, ele já sabia. A capa era mais comprida, suas roupas eram maiores, a cartola era maior. Todos lhe davam algo maior que ele. Era preciso crescer para conquistar as coisas, caber dentro delas. Nada no mundo tinha seu tamanho. Aquelas sensações todas que rodeavam sua cabeça e seu corpo também eram assim, maiores, folgadas, distantes. Ele precisava crescer para caber nelas, para entendê-las. O relógio fazia tic-tac e não avançava. Parecia uma eternidade. 38


— Onde você achou isso? Uma calça vermelha. Davi tinha achado. Teve de procurar entre o amontoado de roupas, que vasculhou com um ar displicente. As laterais da roupa tinham uma costura feita com velcro, fácil de descolar. — É uma calça de teatro. É feita pra se tirar rápido. Não, não significa nada. É só uma calça vermelha. Me dê aqui. Ele tomou a peça de Davi e guardou. Voltou a cuidar da cartola. — Veja, eu tenho o tecido certo. Acho que amanhã está pronto. Davi deixou o apartamento sem muita expectativa. Já não ligava mais para o presente. Pensava apenas no toque daquela roupa na sua mão. Um toque que logo se juntaria a outro. Na entrada do prédio, aquela queda. Duas mãos grandes e quentes seguraram a sua cintura e o levantaram. O Fauno. Ele o ergueu até a altura dos olhos antes de colocá-lo no chão. Nunca esteve tão perto. Olho com olho, boca com boca. — Machucou? Ele falou com um sorriso discreto nos lábios. Era a gravura do livro que se materializava na frente do menino. O mesmo sorriso que convida e avisa: é uma armadilha, como um tigre no último instante antes do salto. Botou o menino no chão e passou a mão em seus cabelos, bagunçando tudo que já estava bagunçado. Ele correu para a escada e subiu, subiu toda aquela altura de uma vez. Quis ir pra casa, mas desistiu. Quando chegou lá no alto, estava quase sem ar. Seu corpo pegava fogo. Logo, o Fauno chegou ao apartamento e começou a tirar a roupa. Ia tomar banho. Davi podia sentir aquelas mãos ainda quentes no seu corpo. Tocou os cabelos que elas tocaram, tocou a cintura e continuou se tocando, enquanto relembrava cada sensação, os olhos fixos no homem nu ali à sua frente. A bomba relógio do seu corpo latejava cada vez mais rápido, cada vez mais rápido, até que explodiu em gozo. O primeiro. O corpo todo se retesou, bombardeado por correntes elétricas. Era quase uma convulsão. Davi ficou surpreso com aquela novidade de alegria. Um prazer que nunca tinha sentido antes. Ele se sentiu como se tivesse crescido, como se já coubesse nas roupas largas. Seu corpo, agora, se revelava maior do que era. Ele estava maior. Ficou olhando o Fauno tomar banho. Estava no buraco do alto da escada. Nesta hora, ele foi descoberto. Da janelinha do banheiro o Fauno o viu. Novamente seus olhos se encontravam. O Fauno sorriu. Era um convite? Já conhecia as armadilhas, mesmo assim, recuou assustado. Ele não sabia por que, mas tinha certeza que o homem não ia denunciá-lo à sua mãe. Qualquer outro vizinho iria reclamar da bisbilhotice, mas ele não. E Davi tinha mais medo ainda disso. Não ia mais poder ver sem ser visto, na segurança de seu refúgio. Estava exposto. Não podia esconder que olhava, que gostava de olhar, que precisava olhar. E, se olhava, queria mais, queria tocar e abraçar e se fechar no quarto com as janelas fechadas, tudo apagado e secreto. Mas podia? Aquela era uma roupa que ainda estava folgada e que não sabia direito como usar. E se aquele sorriso não fosse pra ele, e se fosse dele, um prenúncio de gargalhada? Já imaginava o Fauno e Absoluta Taylor rindo dele no quarto fechado, achando-o ridículo

em suas roupas largas, a capa de super-herói arrastando no chão, sem voar, a cartola engolindo sua cabeça. Ele só queria fugir dali e se esconder. Se seu refúgio tinha sido descoberto, restava sua casa apesar de tudo. Desceu a escada correndo sem nem olhar para as janelas dos apartamentos. Ele sabia que estariam todos ali amanhã, sabia que voltaria já refeito do susto. Mas não foi assim que aconteceu. Nos dias seguintes, não pôde sair de casa. Morena, a gata da vizinha, apareceu morta e a dona acusou o pequeno Davi de a ter maltratado. Ele foi proibido de sair de casa uma semana. Não podia fugir. Era como se o destino tivesse resolvido marcar o final daquela infância. As brigas, os gritos iam ficar para sempre em sua lembrança. Quando voltou ao alto da escada pela última vez, depois de tantos dias preso, já não encontrou as janelas abertas, nem as do Fauno, nem as de Absoluta Taylor. Quis pular do prédio, quis ter o poder de voar, mas não tinha. Quando recolheu os pés do buraco na parede, sabia que nunca mais ia vê-los. Sua história a partir daquele momento seria outra. Uma outra vida longe dali, sem uma casa de onde fugir, sem a escada como abrigo. Tudo seria uma coisa só, dentro ou fora. Foi descendo as escadas lentamente, a capa se arrastando pelo chão sujo. Tinha pena de nunca mais ver o Fauno e de nunca mais sentir tanto desejo. Os desejos seriam outros. Tão fortes quanto? Outros. Davi sempre guardaria cada sensação, aquele único toque, aquele sorriso, a voz. — Machucou? Quantas vezes depois quis responder àquela pergunta. Ninguém escapa de se machucar nessa vida, pensou um dia, muito tempo depois. Muito tempo depois, ainda tinha pena de não ter ganho o chapéu de mágico e de não ter entendido quem era Absoluta Taylor. Com os anos, sua sala ficava mais e mais colorida na memória, com sues vestidos fantasiosos. Soube dela um dia, bem depois, através das lembranças de outras pessoas, mas já era tarde para revê-la. Teve pena de Dona Heloísa e sua gata Morena e todos os vizinhos que nunca mais veria. Sua capa se arrastou por cada degrau daquele Edifício, como se resistisse a largar uma pessoa querida. Davi também resistia a deixar o prédio, apesar de tudo que aconteceu. Nem mesmo quis ir ao enterro do pai, mas agora, depois que sua mãe tinha sido levada pelos soldados, não podia mais ficar. Chegou à entrada do edifício, onde sua tia o esperava, resignado. — Ah! Aí está você, meu querido. Ela afagou sua cabeça. Era tão parecida com a mãe dele. — Bonita capa! Vamos, seu tio está esperando. Pelo menos você vai sair desse lugar horrível! Lugar horrível. Foi a primeira vez que Davi pensou naquele prédio como um lugar horrível. Não era assim que pensava até então. Todo o seu mundo se resumia àquilo. De algum modo, apesar dos pais, ele não sentia que fosse tão infeliz. Uma criança tem sempre todo um mundo secreto que a protege do mundo real. O mundo dele era repleto de faunos, ninfas, mágicos e heróis. Deu uma última olhada. Eles desceram a escadinha da portaria e chegaram à rua. Alguns moradores observavam pelas janelas. A do seu apartamento estava fechada. Era um dia de janelas fechadas. Na calçada, um vento forte soprou levantando poeira e 39


cegando o menino. Sua capa foi erguida. Por alguns instantes ele experimentou o vôo. Teve vontade de nunca mais abrir os olhos, de ficar pra sempre como se voasse, bastava ter pensamentos felizes: uma mão surgiu de sua lembrança e o levantou no ar. Machucou? Davi sentia que nada no mundo podia machucá-lo.

marcus vinícius rodrigues é de Ilhéus (BA). Publicou Pequeno inventário das ausências (2001), poesia; 3 vestidos e meu corpo nu (2009), Eros resoluto (2010), Cada dia sobre a terra (2010), contos, e a novela Se tua mão te ofende (2014). Seu conto “A omoplata” foi vencedor do Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio 2009. Mantém o blog cafemolotov.blogspot.com.

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no palco mayrant gallo

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s pessoas não conhecem os fatos. Há uma grande diferença entre o que se vê — e que para ser visto foi devidamente estimulado —, e o que, antes, em algum momento inesquecível, sofreu para estar ali, diante daqueles olhares. Imagine-se que a dançarina, única mulher em meio àqueles cinco homens, todos altos, fortes e luzidios, fez ou foi obrigada a fazer. Imagine-se que, como em Pasolini, ela foi apanhada à força numa rua clara, conduzida à mala de um carro, forçada depois a se despir, dançar, mostrar-se impura e, de mão em mão, a se deixar sodomizar. Imagine-se que, por não assentir a tudo isso, foi espancada ou coagida por meio de tortura. E agora está no palco a expor ao público, complacentemente, seu corpo sem falhas. Se a plateia chegar a este nível de abstração — o que, de imediato, pensa-se não ser possível, pois é uma noite de diversão —, ficará incapaz de aplaudir, e talvez até se revolte, peça seu ingresso de volta, retorne para casa e se contente em passar o resto da noite diante da tevê. Mas a verdade é que os fatos se deram de maneira bem diferente. Não houve força, nenhum tipo de coação ou constrangimento. O empresário do grupo telefonou para uma agência, talvez de modelos, e cinco moças foram destinadas a ser avaliadas. À suíte de um hotel de luxo cada uma foi chegando e, depois de passar pela antessala, onde uma linda jovem as recepcionou, foram deixadas na sala principal, à espera. As cinco ali, a se avaliar mutuamente e a tirar conclusões. Só pararam com o escrutínio quando o grupo musical chegou, passou por elas em fila indiana sem lhes dar nem mesmo um bom-dia — o alto profissionalismo dispensa gentilezas —, e se encerrou no quarto. Uma a uma foram chamadas, e uma a uma devolvidas, meia hora depois, ao mundo dos fatos comuns. O que teria feito a escolhida, que elas não fizeram? — perguntavam-se as demais. E o fez por que motivo? Voluntariamente, é o que melhor se pode responder. E a isso a plateia não reage. E não será demais dizer que a isso a plateia também aplaude, quando aplaude o desempenho da dançarina. Não deve o público julgar. O que se faz era o que se havia de fazer. Se a dançarina o fez, o fez de vontade, de boa vontade — e é isso que ela transmite, ali no palco, com seus movimentos, seus glúteos e seus dentes alvos.

mayrant gallo é poeta e prosador. Autor dos volumes de contos O inédito de Kafka (CosacNaify, 2003) e Dizer Adeus (Edições K, 2005), além do romance Os encantos do sol (Escrituras, 2013). Este conto integra o livro inédito O próximo herói.

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o embrulhinho munique duarte

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a Rua das Goiabeiras, ele quase enfartou ao colocar a mão no bolso da camisa e perceber que o embrulhinho não estava lá. Que suadouro. Fez o trajeto de volta até chegar em casa e com a face branca começou a revirar as primeiras gavetas da cômoda. A mulher não podia pegá-lo ali, todo sôfrego, a fuçar em toalhas alvas dobradas. Fechou as gavetas. Abriu-as outra vez na esperança da olhadela mal dada. Perda de tempo. Apalpou o bolso já por instinto. O embrulhinho não estava lá. Caiu na rua, decerto. Saiu correndo, triplicando o suor colado no corpo. Andou como cão farejador que não levanta os cílios. Percorreu tudo, até parar em frente outra vez diante da palmeira da Rua das Goiabeiras, onde tudo começou. Nada na calçada. Nada. Foi para o trabalho mesmo assim. Talvez tivesse deixado-o sobre a mesa. Foi consolando-se com mentiras de algodãodoce, até sentar-se diante da máquina de escrever e constatar que o embrulhinho sumira de fato. Datilografou tudo errado naquele dia. O cesto encheu-se de papel amassado. Até café respingou na camisa bem passada. Abriu e fechou todas as gavetas da mesa de cinco em cinco minutos. Até dar as cinco no relógio grande da parede encardida da repartição. Quem sabe no trajeto de volta ele encontraria o embrulhinho tão particular. Quem poderia querer ficar com ele, tão pequeno e sem importância. Em casa a mulher o estranhou. Roupa suja de café e cabelo desgrenhado. Cara de quem viu lobisomem. Pálido. Aquele não era seu marido. Jantaram sem diálogos. Pensava nas gavetas da cômoda. Abriria as outras também, além das duas verificadas pela manhã. Faria enquanto a mulher estivesse prendendo os cabelos antes de dormir. Empurrou uma a uma das gavetas para fora, com a linguinha entre os lábios. Sem ruídos. Passou a mão em cada dobra de lençol, fronha e toalha perfumados. Fez isso com todos os panos dobrados em todas as gavetas. Olhou até entre os perfumes sobre a cômoda. Nada. Dormiu gelado. A mulher suspeitava de febre. Teve pesadelos horríveis. Seu futuro estava perdido. Tomou café da manhã com olhos esbugalhados. A mulher quis chamar o médico. Ele fez que não. Parecia mais velho, com cara de lobisomem. Na Rua das Goiabeiras lembrou que era sexta-feira. Dia da entrega do embrulhinho. Deixá-lo na repartição, para melhor segurança, até o ato da entrega, falhara. Agora tinha o coraçãozinho aos saltos. Pensava em não derrubar café na camisa. E em manter os cabelos alinhados. Naquele

dia trabalhou muito. Houve vários imprevistos. Esqueceu que era dia de ir mais cedo para substituir o colega que faltaria. Cólicas renais. Andava esquecido. Recomendaram-lhe jabuticabas para refrescar a memória. E sopa de cebola antes de dormir. Isso o causou náuseas. Deixara o colega na mão. O serviço acumulara. O embrulhinho feito órfão no mundo. Almoçou pouquinho. Só um terço do bife. Só meia folha da alface. Tentava baixar mais as pálpebras para não mostrar os olhos esbugalhados de terror. Voltou para o trabalho e avisou a mulher que era dia de serão. Prometeu a si mesmo passar na farmácia depois do expediente para ver o remédio da memória. Dali em diante escreveria bilhetinhos para se lembrar das tarefas. Só não poderia se esquecer de escrever os bilhetinhos. Imaginava o embrulhinho aberto e a cara de espanto de quem o abrisse. Tão pequenininho e revelador. As mãozinhas tremiam com os pensamentos. Disseram a ele que mãos geladas eram lombrigas. Quem sabe mais jabuticabas não o fariam bem? Terminou o serviço às sete da noite. Que dia longo e sofrido. Olhou no espelho do pequeno banheiro e viu que o cabelo estava alinhado e que os olhos estavam na posição normal. Também verificou se havia café na camisa. Depois se lembrou que nem tomara café. Jabuticabas e sopa de cebola cortaram seu apetite. De volta às ruas, percorreu o trajeto, feito cão farejador. Nada de embrulhinho. Bateu na janela em frente à palmeira da Rua das Goiabeiras. Uma voz abafada respondeu lá de dentro que o ouvia bem. De fora, apenas respondeu que naquele dia não teria poesia e doce de amêndoa. A voz chorosa indagou o porquê. Ele, com coraçãozinho apertado, disse que depois explicaria. Apressou o passo e em casa a mulher já estava com os cabelos presos para dormir. Pediu a janta e ela colocou sobre a mesa um prato tapado com o outro, e lhe deu até amanhã. A sós, pensava onde estaria o embrulhinho. Não estava em casa, nem no trabalho, nem jogado na rua. Nenhum vizinho encontrou. Ninguém. Mais uma vez verificaria cada espaço das gavetas, entre as roupas lavadas, entre as esperanças brancas perdidas. Emagrecia a olhos vistos. O rostinho estava fundo nas maçãs. Na sala, a vela acessa quase se apagando em frente ao santo fazia figura de lobisomem nas paredes. Não podia orar pelo embrulhinho. Tinha vergonha do santo. Tinha vergonha da falta de memória. E nessa sexta-feira não se lembrou de escrever nenhum bilhetinho para refrescar as tarefas do dia. 42


Era um homem sem jeito, sem sorte e sem embrulhinho. Dormiu como pedra. A mulher já se acostumara com seu ar perdido de menino que sempre só observa os outros brincarem. Estranhou que ele chegara cedo ontem. Sextafeira era dia de serão que durava até as onze da noite. Hoje faria diferente. Disse que precisava sair, ainda de manhãzinha. Era melhor que ele respirasse ares puros matinais. Depois do café, percorreu o mesmo trajeto do trabalho até chegar à Rua das Goiabeiras. Bateu dois soquinhos na janela em frente à palmeira. A voz abafada lá de dentro custou a responder. Mais dois soquinhos. Escutou o ranger das dobradiças da porta. Depois de olhar para as duas direções da rua, entrou sem barulho no piso. Na sala, ela, ainda de cabelos com grampos, apertava-o em abraços sufocantes, dava-lhe beijinhos na testa e nas bochechas. Dizia que ele era a sua amendoazinha favorita. Largaramse no sofá. Ele, com os olhos esbugalhados, não entendia nada. Ela, com o sorriso esbugalhado, disse que adorara a surpresa deixada na janela em frente à palmeira, na Rua das Goiabeiras. Não merecia surpresinha tão íntima. O embrulhinho estava lá, todo desfeito, sobre a mesinha de centro.

munique duarte nasceu e vive em Santos Dumont-MG. É jornalista sindical, formada pela UFJF. Já colaborou em sites, revistas e jornais literários e foi participante da Mostra de Tuiteratura, em São Paulo. Em fevereiro de 2014, lançou o livro de contos Espelho Oxidado, (Multifoco). Bloga em textosimperdoaveis.blogspot.com.

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latin lover otto leopoldo winck

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epois de uma cerveja e um bife à parmegiana, ele retornou ao escritório. Ainda tinha dois orçamentos por fazer. Precisava aprontá-los e enviá-los hoje mesmo por email. No elevador, topou com a morena que volta e meia também fazia serão. Serviço acumulado? – ele perguntou. Pois é, visita amanhã, tem que pôr o trabalho em dia, ela explicou. Provavelmente estava sozinha, ele pensou. E numa noite quente como aquela, anunciando a iminência do verão, um homem e uma mulher podiam fazer muita coisa além de trabalhar. Mas o elevador logo chegou ao andar dela. A porta se abriu e os dois se despediram com um sorriso que podia significar tanto simpatia e cumplicidade quanto promessa de algo mais qualquer dia desses. Qualquer dia desses, não hoje, pensou ele, os olhos naquelas nádegas salientes. E ele sabia que ela sabia que ele estava olhando, e saber deste olhar, longe de afrontá-la, lhe dava satisfação, ele também sabia. Mulher gosta de ser olhada, cobiçada. Mas era preciso vários sorrisos, vários olhares, até que um dia: que tal uma cerveja? E depois de uma, duas ou mais cervejas: quer uma carona? Até que depois de todos esses procedimentos prévios – sorrisos, olhares, perguntas – eles terminassem sob os mesmos lençóis e então, subitamente despertado às quatro horas da manhã num motel longínquo, ele pensasse: meu Deus, e a minha mulher? Por ora era mais fácil recorrer às próprias mãos para o seu alívio – ou a uma profissional, o que por sua vez despenderia dinheiro. Noite quente, marido fora, que fazer? Assistir à novela. Assistir à novela e resistir à tentação de comer. Se o desejo viesse forte, avassalador, uma barra de cereal, um chá verde com adoçante. E ir para a cama, cedo, para acordar bem disposta e encarar, no dia seguinte, trinta maravilhosas e insuportáveis crianças. Mas quando o marido demorava, ela adiava este fim incontornável de todos os dias. Dormiam abraçados, os dois, lembrança dos tempos já remotos do namoro, quando eram raras as chances de dormirem juntos. Anos depois era ainda gostoso sentir as coxas dele, o contato da pele, o dorso do pé. Só não era gostoso o bafo de cerveja com que ele invariavelmente chegava quando trabalhava até mais tarde. Trabalhava? Meu amor, ninguém é de ferro, tomei uma cerveja antes de vir para cá, ele dizia. E explanava as razões para tanto serão: não podia contratar outro funcionário, o salário igual à prestação do carro, tanto imposto, encargos, isso sem falar do aluguel, luz, telefone.

Se tinha bafo de cerveja, então não tinha beijo. Às vezes tinha até sexo, mas não beijo, ela de quatro para não sentir o cheiro (ele atrás, cachorrinho, arquejante). Por falar em sexo, ele vinha procurando-a cada vez menos. Cansado, ele justificava. Então não tinha beijo, não tinha sexo, não tinha nada: só dormiam agarradinhos. Certa feita ele chegara completamente tonto, torto. Fedia. Não conseguia agrupar três palavras. Aquilo não era só cerveja não. Tinha cachaça, vermute, conhaque, outra coisa ali. Então nem agarradinhos: ele num canto da cama, ressonando, ela no outro, cismada. Ah, tinha mulher naquele cheiro. Só podia. Uma noite, quando ele entrou, julgou vislumbrar um brilho furtivo de saciedade no olhar. Não teve dúvida. Agarrou-o, arrancoulhe a roupa e abocanhou-lhe o membro. O coitado custou a reagir – mais um indício! Todavia, nenhum cheiro suspeito. O safado dever ter se lavado para desfazer as provas. Consultada a tabela dos fornecedores, em meia hora ele terminou os orçamentos. Com cliques rápidos, remeteu-os eletronicamente aos clientes. De cada dez orçamentos, em média um ele fechava. Pudera, as empresas representadas viviam fora da realidade. Queriam resultados, impunham metas impossíveis, mas não ajudavam em nada, nos preços, condições. E ó – ofereciam isto de porcentagem. Todavia, se ele fechasse o primeiro desses orçamentos, abocanharia uma encorpada comissão. Pagaria o aluguel da sala e o ordenado de Joana, a secretária, única funcionária, 18 anos e peitos durinhos, ele imaginava. Nunca os apalpara, é claro, que trabalho não se pode misturar com sexo. Mas quando se masturbava, era ela e a morena do elevador que se revezavam em sua pródiga imaginação. Às vezes as duas, uma de cada lado. Outras vezes era a esposa que o interrompia, pedindo a sua dose. Dois, três minutos de intenso trabalho manual e o jorro alvacento espirrava na pia do pequeno banheiro do escritório. Chegava em casa aliviado, apaziguado, quase reconciliado com o mundo que exigia tanto trabalho e desenvoltura, mas aí a cara da mulher era um lembrete de que a felicidade era um produto de consumo fugaz. Pensava então só em se deitar, assistindo aos últimos noticiários: bolsa sobe, dólar cai, ministro da fazenda mostra os dentes. A esposa não o procurava mesmo e se ele queria algo mais – sejamos claro: sexo – cabia a ele toda a faina do convencimento, os beijinhos, os afagos, as carícias, as palavras adocicadas, como se ela não fosse 44


sua mulher de papel passado e sim uma conquista, uma aventura, a morena do elevador, a Joana dos peitinhos, a capa da revista masculina. Como se ele não tivesse levado quatro anos nesse enleio, quatro anos de amizade, namoro, noivado, quatro anos de presentes, jantares, cinemas, cartões. (Não, a Joana não. A Joana é uma menina.) Só uma vez, nos últimos meses, a esposa tomara a iniciativa, se não lhe falhava a memória já cansada – e na dita noite, chateado com uma cotação perdida, além de satisfeito com uma bem sucedida punheta, ele não estava nem um pouco a fim. Ela o agarrou, baixou-lhe a calça e o chupou feito uma puta. Resultado: gozou na boca dela. (Ah, ah, bocadela.) Donde lhe viera aquela sanha repentina? Ah, ela devia estar aprendendo essas coisas com um amante. Só podia. De quinze em quinze dias ela dormia na casa de uma amiga. Não seria aí o encontro com o pilantra? Além disso, à tarde – ela, professora primária, trabalhava só de manhã –, entre uma ida ao shopping e um pulo ao dentista, não lhe sobrava tempo para uma escapadela? Aliás, como seria o cara? Endinheirado? Mais alto que ele? Mais magro? Musculoso? Membro maior? Terminada a novela, ela não foi para a cama. Não ia conseguir dormir, a cabeça longe, imaginando o marido fazendo sabe-se lá o quê. Ligou o computador, leu algumas notícias, respondeu a dois ou três emails, consultou os preços de algumas lojas, roupas, cremes, conferiu receitas de pratos com baixas calorias, dicas infalíveis para atingir o orgasmo, previsões para o seu signo. E entrou num chat. Já se tornara uma frequentadora usual dessas salas virtuais de bate-papo, sobretudo nas noites em que o marido regressava tarde. Teclou seu nick tradicional – Beth Boops – e conversou com uma porção de gente chata, interessante, boçal, inteligente, homens e mulheres, jovens e de meia-idade – se é que eram confiáveis suas autodescrições. Quanto a ela, sempre se atribuía quatro a cinco quilos a menos: aliás, a meta para o próximo mês. Depois de certo tempo, a conversa se fixou – no reservado – com um cara particularmente simpático. Meio convencido, é verdade. Segundo ele, alto, magro, malhado, bem de grana. E – detalhe acidental – com um membro avantajado. Esses homens... Enviado os orçamentos, nada o retinha no escritório. Mas também a perspectiva de voltar para casa, ouvir as mesmas queixas da mulher, não o atraía. (Lembrou de um amigo da faculdade que dizia: olha, meu, se eu chegar em casa tarde vai ter bronca, não importa se às onze ou às cinco da manhã. Então, já que eu vou ouvir, prefiro chegar com o sol nascendo.) Assim, resolveu entrar numa sala de bate papo na internet. Teclou o seu nick favorito – Latin Lover – e interagiu com meia dúzia de mulheres até que a conversa se encaminhasse com uma particularmente simpática, Beth Boops. Vamos ver se eu consigo me divertir com esta. Era uma mulher casada, insatisfeita com o marido, dessas que infestam a internet. Segundo a descrição dela, muito esbelta. Você está sozinha? – ele perguntou. Estou. Eu também. E o que você vai fazer depois? Dormir. Ah, então está de camisola? Sim, de camisola. E embaixo da camisola? Só calcinha. Está quente, não está? Sim, muito quente. O verão promete. Então por que não tira a calcinha, meu amor?

Então por que não tira a calcinha? – o Latin Lover perguntou. São todos iguais, ela pensou. Ele quer brincar, não quer? Então vou me divertir com ele. Sim, tirei a calcinha, ela escreveu. Não está melhor? Muito melhor. Tirei a camisola também. Está nua? Nuinha, toda arrepiada. Arrepiado estou eu, ele disse, e fantasiou que do outro lado estava a morena do elevador (não, a Joana não!). Resultado: depois de alguns minutos havia ejaculado no chão. Ela se divertiu, mas não gozou, na verdade nem tirara a camisola. Em todo caso, mais distendida, foi para a cama, não sem ter – ai, fraqueza! – atacado o resto de uma torta de chocolate na geladeira. Amanhã retomaria o regime, custe o que custasse. E ficaria uma hora na esteira da academia. No quarto, luz apagada, adormeceu mansamente. Acordou sobressaltada quando o marido – cheiro de cerveja! – tentava se introduzir sorrateiro na cama. Pulou sobre ele, ignorando o odor do álcool. Mordeu-lhe o pescoço, as costas, os mamilos, o proeminente abdômen e, finalmente, o membro flácido que – meu Deus! – estava com cheiro de esperma! Você tem outra, ela gritou. Você tem outra! Como, outra? – ele replicou sem muita firmeza, já antevendo o patético desenlace. Teu pau está molhado! Você estava transando! Como assim? – ele tornou. Você estava com ela! Você estava com ela! Pode pegar tuas coisa e sair de casa! Depois de um silêncio constrangido, ele acedeu: sim, sim, eu tenho, mas eu posso explicar, eu posso explicar tudo, me escuta... Estava escuro, nenhuma luz no quarto ou no corredor, apenas a luz da rua que se filtrava pelas frestas da persiana, mas pelo tom da voz podia-se jurar que ele chorava.

otto leopoldo winck nasceu no Rio de Janeiro em 1967. Vive em Curitiba. É Doutor em Estudos Literários pela UFPR e professor de Teoria Literária na Uniandrade e na PUCPR. É autor do romance Jaboc (2007).

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a 3ª resposta O rei falou com eles por muito tempo, fizeram-nos ver nossos modos, nossa pompa, a forma de uma bela cidade; depois disso, alguém lhes pediu sua opinião e quis saber o que tinham achado de mais admirável. Responderam três coisas, e estou muito aborrecido por ter esquecido a terceira, mas ainda tenho duas na memória. Michel de Montaigne, Sobre os Canibais (tradução de Rosa Freire D’Aguiar).

paulo raviere

D

iscordando de todos os turistas do planeta, na primeira vez em que visitei a França fiz mais questão de visitar o Château de Montaigne que de conhecer a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo, a Catedral de Notre Dame, o Moulin Rouge, a “Monalisa”. Não o resto do Louvre, porque sei que esta turba de fotógrafos amadores só se interessa em si mesma e na Gioconda: desprezam os artefatos egípcios, a Vitória de Samotrácia, Ticiano, Rembrandt, Goya – nem à deusa de Milo eles delegam alguma atenção – em nome de uma mulherzinha pela metade, com menos de um metro de altura. Entregam-se a ela como o fazem com suas seletas celebridades, em geral onfalocêntricas santidades adolescentes desprovidas de talento e simpatia genuína, elevadas ao altar devido aos interesses de um produtor oportunista que... Divago. Ressalto apenas que, devido a esse interesse ubíquo e contínuo, ignorando suas qualidades intrínsecas já admiráveis à distância, nos livros de arte e na internet, desprezei, por minha vez, a “Monalisa”. Preferi, em vez disso, alugar um carro lá mesmo no Aeroporto Charles de Gaulle e descer o país rumo à Dordonha, na Aquitânia – esse que foi sempre meu interesse original –, antes mesmo de conhecer a cidade dos sonhos de todos os habitantes do planeta. Assim sempre aconteceu; todas as vezes em que viajo, seja pelas Américas, para Barcelona ou para Canudos, enrasco-me na obrigação arbitrária de fugir das rotas pré-estabelecidas, como se esta fosse uma regra local inviolável – punível com exílio ou deportação. Esta pré-condição já me impediu de conhecer sítios importantes, pois eventualmente as atrações turísticas estão no meio do meu caminho. Já há alguns anos eu havia desvendado a grande impostura discursiva da indústria do turismo, que vende as fotos em favor da experiência e da diversão; ou seja, você paga uma pequena fortuna em passagens, hospedagens e roupas novas para visitar o Rio de Janeiro, demora umas horas se acotovelando com centenas de turistas para conseguir se livrar de um punhado de dinheiro e subir no maldito bonde, para finalmente chegar ao Cristo Redentor e não encontrar nada demais, apenas mais algumas dezenas de turistas imitando a estátua. Você deixa mais uma boa grana em troca de uma cerveja em lata e uma lembrançinha, tira umas fotos pra mostrar para os outros, e antes de descer ainda fica lá quinze minutos sem fazer nada, apenas para fazer valer o

investimento. No final das contas, você não mudou nada. Não há nenhuma história pra contar. Não aproveitou o momento. Foi por isso que preferi não conhecer a Estátua da Liberdade, nosso Congresso Nacional, a Torre de Pisa. Os monumentos não me dizem nada. Mas não são tempos para lamentações. Importa-me mais, no momento, ter conhecido o castelo em que viveu o Senhor de Montaigne, inventor do ensaio. Descobri, antes, que o castelo foi reconstruído em 1885, e que, daquilo tudo, a única parte original, onde Montaigne realmente viveu, é exatamente a torre da biblioteca, o lugar que mais me interessava. Finalmente pude ver de perto as famosas vigas de madeira do terceiro andar – o melhor bloco de notas da história da literatura – em que ele escreveu quarenta e seis sentenças em grego e latim, a maioria tirada do livro do Eclesiastes. QVID SVPERBIS TERRA ET CINIS. ECCL 10. Infelizmente, eu acabava de perceber que a impostura turística muitas vezes se disfarça na intelectualidade. Fugir das rotas obrigatórias também é um modo de gerar capital, e eles sabem disso. Eu agora estava lá na biblioteca de Montaigne, um lugar solitário e culto que eu mesmo escolhera, como se aquilo fosse um monumento qualquer. Lutava contra minha vontade de retornar a Paris. Casualmente, um sujeito se dirige a mim em português. – Boa tarde, senhor Paulo Raviere. Meu cérebro estava sintonizado no idioma local, portanto respondi automaticamente, ainda sem vê-lo: “Bonsoir.”. Ele estendia a mão, esperando meu cumprimento. Retribuí o gesto, sem sentir nada demais, dizendo: “Comment savezvous mon nom?” Ele usava uma fantasia estranha, então notei que o sujeito era muito parecido com o próprio Michel de Montaigne. – Eu sei. – Respondeu-me, novamente, em português, ou melhor dizendo, em português brasileiro. Morei vários anos em cidades diversas, e em todas elas fui questionado a respeito de meu sotaque, até hoje inalterado, original de certa faixa do sertão baiano. Em contrapartida, eu sempre notei as diferenças dos sotaques alheios. Pois, unindo-se à semelhança do homem com meu mestre, e ainda à confusão dos idiomas, minha mente agora se inquietava com a ausência de sotaque na conversa do homem misterioso. – Onde você aprendeu português? 46


– Não conheceu os meus tempos, Paulo. Posso chamá-lo pelo primeiro nome? – Sim, de certa maneira somos amigos de longa data. A cópia do ensaísta solta um sorriso jovial. Não, ele jamais me conhecera. – Hélas! – Sorriu. – Nos meus anos de vida, de maneira ainda mais estridente que em seus dias, predominava a ignorância. As trevas cegavam os olhos dos povos. As doenças, assim como as curas, haverão de marchar com a humanidade. Da mesma maneira que as pessoas, elas são sempre substituídas por outras mais modernas durante o curso desta marcha. Entretanto não pense que a evolução de uma doença é a degeneração de todo o resto. Alexandre em trinta e três anos viveu o mundo em sua totalidade, César o fez com o dobro de anos. Somos todos seres vivos; cada um carrega em si sua história, suas possibilidades, suas glórias e misérias. O que quero dizer é que tanto as doenças quanto as curas, assim como os homens, caminham de modo desigual, a passos diferentes. Doenças existem que duram milênios, enquanto outras desaparecem como um estalo. – Montaigne efetivamente estala os dedos. – Ainda assim, compreendo seu modo de pensar. Nas nossas impressões, os tempos passados e os futuros são sempre melhores, enquanto o tempo presente é quase sempre terrível. – Como se lesse minha mente, ele também observava o canto da cotovia com admiração –. Mas é apenas uma questão de perspectiva. O tempo presente não passa de um recorte, uma fração do todo. Cá de onde estou, vejo algo maior. Nem sempre para todos, quase nunca. Muitos ainda vivem como os miseráveis de minha época. Mas ainda assim, um mundo maior. – Pergunto então, a quem tanto vê: o que fazer contra as doenças do meu tempo? – Eis algo que não posso responder. – Por que não? – Não me é permitido interferir em seu mundo. – Só por isso? – Sou feito de lembranças, e nada mais. – Não me convence. Suas lembranças poderiam ser o bastante. – Observei as doenças de meu tempo, Paulo. Observei-as com atenção, como um cientista diante de seu microscópio, com mesma a clareza com que hoje percebo o que está de errado com os seus. E mesmo assim, nada pude fazer. Diagnosticar uma doença é um feito diverso de curá-la. E mesmo a descoberta da cura, é, em si, diferente do ato de curar. O que é difícil para os vivos é impossível para os mortos. Eis a sobre-humana condição: jamais interferir. – Não vejo meios de insistir, mas creio ser permitido conversar sobre tempos que não os nossos. – Não vejo porque negá-lo. – Respondeu, enquanto a cotovia de repente se jogava da janela em direção ao céu, um mundo longínquo, bem mais vasto que o nosso. – O senhor tem também acompanhado o andamento de sua invenção? – Que invenção? – Como assim, “que invenção”? Eu só poderia me referir aos magníficos Essais!

– Na verdade falo o que me vem na mente. Apenas tento me comunicar com as pessoas. – Disse ele. Lembrei-me que, antes de viajar, mandei alguns e-mails para os administradores das visitas ao castelo, para evitar possíveis contratempos. A última coisa que eu precisava, pensara, era viajar tantas horas para ter minhas perspectivas frustradas, como muitas vezes acontece a quem sai de seu país. Daí, conversando em português com aquele homem, deduzi que provavelmente haviam contratado um brasileiro para me entreter durante minha visita – um brasileiro impressionantemente parecido com o escritor. Também a Dordonha foi dominada pelo turismo? Decidi entrar em seu jogo de fingimentos. – É mesmo? E porque o mestre não usa seu próprio idioma? Je parle un petit peu de français. – repliquei, não sem alguma jactância. – Entre vivos e mortos não existe a barreira dos idiomas. – Respondeu. – Existe apenas a barreira entre os corpos sólidos que constroem seu lado, e as partículas evanescentes que compõem o meu. Pouco nos entenderíamos se me dirigisse ao senhor com os verbos de meus dias. A língua de hoje não é a mesma. Admiti a mim mesmo que haviam escolhido um brasileiro vacinado contra minhas maldades inocentes. Resolvi testá-lo. – Mas seus escritos me parecem exatamente uma boa conversa. Porque eu não haveria de entendê-lo? – É bem verdade que a escrita e a leitura não deixam de ser maneiras de se conversar. Com os mortos do passado, se lemos; ou com os vivos do futuro, se escrevemos, quando então seremos nós os mortos do passado. Escrever é filosofar, e a filosofia não é nada mais que uma maneira de se preparar para a morte. E mesmo assim, por mais que eu tenha gravado no papel a conversa que tinha diariamente com o açougueiro deste castelo, a imutabilidade desta gravação acaba por, ironicamente, transformá-la, uma vez que os açougueiros de meu tempo não falam como os açougueiros do seu. Seu ofício, suas ferramentas, seus animais, pouco mudaram; muda, entretanto, a maneira de se comunicarem. Um açougueiro de meu tempo teria dificuldade para conversar com um do seu. O que no papel é compreensível, na vida causa estranhamento. Sem fôlego, eu passara a admirar o sósia de Montaigne, que se parecia com ele em aspectos para além da aparência. Minha viagem estava salva. Voltei a admirar o terceiro andar da torre redonda, com a sabedoria do mundo em suas vigas, uma mesinha simples, as paredes de pedra, suas três janelas, um telhado centenário e papel, tudo o que um homem precisa para ser feliz. Pela janela, uma cotovia assobiava uma melodia suave que, por ser intraduzível, poderia ser compreendida da mesma maneira pelos contemporâneos do Montaigne verdadeiro. – Mas então o senhor acompanha os movimentos posteriores do mundo? – Sim. Posso dizer que sempre houve esperança. A morte, como eu mesmo pude experimentar, sempre foi inevitável, mas as melhoras do mundo me saltam aos olhos. – Penso de modo diverso. – Discordei. – A meu ver, a doença floresce cada vez mais. 47


– Ah, meus escritos. Nunca foi minha intenção ir muito longe. São apenas tentativas, ensaios, como o nome já diz. Você sabe, sempre fui um homem simples; não havia porque querer fugir de mim mesmo. Uma prosa simples sobre um simples homem. – “Eu pinto a mim mesmo”, você diz. – Exatamente! As tintas mudam de acordo com minha própria mudança. – Estudei sua invenção por noites a fio. – Mesmo? – Pergunta Montaigne, estupefato. – Não era necessário. O que tento mostrar em cada um dos meus textos é uma opinião de um homem comum. Os eruditos haverão de provar os meus enganos. Devo simplesmente aceitá-los. – Não! Vivemos uma era de especialistas. – Exclamei, tentando demonstrar ironia. – Os homens de ciência ultimamente decidiram sair de seus laboratórios sem tirar os jalecos e os olhos do microscópio, e os artistas sem tirar suas vendas e trocar suas vestimentas exageradas. Não conseguem mais ver o mundo como uma partícula única, gigantesca. Perdeu-se toda a unidade. Os intelectuais de meu tempo conversam apenas entre si. Dificultam o acesso a seus próprios discursos e fingem apreciar os de seus pares, e ignoram todos aqueles que não se sentam diante de sua seleta mesa de jantar. O homem comum vive num mundo à parte... – Eis uma sobremesa que nunca dispensei: uma conversa com meu semelhante. Mesmo enfurnado em meu castelo, posso dizer com alegria que sempre mantive os olhos abertos para o mundo. Montaigne aponta pela janela, e não há muito o que ver. A pequena comunidade de pedras permanecia, mas a vida original não estava mais lá. Longe, talvez, ouviríamos os gritos dos eternos profissionais – sempre existirá alguém para fazer o pão, tirar o leite, serrar a madeira, degolar a galinha, levantar o pedregulho, costurar a camisa, cozinhar o ovo, proteger o cidadão, bater o martelo. Os outros labores desaparecem mais depressa. – Mas então? O que tem percebido com sua invenção, após todos esses séculos? – Percebi que, ainda em meus anos de vida, cruzamos o Canal da Mancha e... – Sim! – Interrompi com empolgação – Bacon! Browne! Swift! Adison! Steele! Johnson! Goldsmith! Cowper! Sterne! Hazlitt! Lamb! Hunt! Coleridge! De Quincey! Hume! Carlyle! Macaulay! Ruskin! Huxley! Chesterton!… – Calma, meu caro – disse ele, cortando com tranquilidade meu exagerado name dropping – Não precisamos de mais uma lista de anglófonos sarcásticos e temperamentais. – Então os conheceu? – Evidentemente. Mantive conversas com todos eles, e com muitos outros, assim como conversamos neste exato momento... – Senti um orgulho incomunicável por estar em um grupo tão seleto, até que... – E como agora mesmo converso com muitos jovens semelhantes a você. – Mas o que disseram os ingleses? – Conversamos sobre muitas coisas, e ouso dizer que, apesar de muitos deles carecerem de certa serenidade, foram mais longe que eu.

– Mas isto é inaceitável, mestre! – Respondi com fúria apaixonada. – E por que seria? – O senhor está acima de todos. É o melhor! O mais criativo, o mais interessante, o mais humano. – Que todos eles juntos? – Sim. – Ra ra ra! Não, Paulo, nunca fui melhor que ninguém. Talvez essa importância excessiva atribuída a minhas tentativas se deve apenas ao fato de eu ter sido o primeiro, e nada mais. Eles foram melhores, é uma verdade indiscutível. – Não, o senhor é o gênio da espécie. – Repliquei. – O próprio Shakespeare, gênio dos gênios, utilizou-se de trechos de sua obra! O que me diz disso? – O dramaturgo? Ah, me lembro dele. Um grande artista. – Também o conheceu? – Certamente. Era, acima de tudo, um humano, como eu fui, e como hoje são você e todos os turistas que neste exato momento tiram fotos com a Monalisa de Da Vinci. – Como um sósia fantasiado poderia saber da Monalisa? Coincidência, ou teria eu deixado escapar algo durante meus telefonemas? Começava a questionar a veracidade de minhas suposições iniciais sobre ele, mas tentei não evidenciar o fato com um comentário imbecil. – Conversar com ele era tão interessante quanto este encontro que temos agora. – Mas o senhor não se irritou do uso não autorizado de seu ensaio? – Que ensaio? – Des Cannibales, que o bardo plagiou em sua última peça. – Irritar-me? – Disse ele. – Eis a glória, meu jovem, a verdadeira glória! Ser apreciado por um homem de gênio. Além do mais, minha obra não tinha outra finalidade além de pintar-me, e creio que o consegui com satisfação. O uso pela posteridade não é de minha responsabilidade. Morri feliz, e não conto com mais nada. Lembre-se da sobrehumana condição: jamais interferir. – Tenho ainda uma dúvida. – Decidi, por fim, tirar a prova definitiva de meus anseios metafísicos sobre meu interlocutor. – Pois não? – O senhor, nesses anos todos, chegou a se lembrar da terceira resposta dos canibais? – A que se refere? – No mesmo escrito utilizado por Shakespeare, um texto sobre os habitantes originais do país de onde vim... – Os canibais da França Antártica! Eram considerados bárbaros no meu tempo. Conheci alguns, e tive um criado com morou alguns anos entre eles. Ainda estão lá? – Como nos vários exemplos de seu ensaio, foram dizimados pela mão civilizada europeia. Nossa imagem exótica e bárbara, porém, de certa forma ainda existe por aqui. – Imagem injusta e traiçoeira desde os meus tempos, como tentei demonstrar. Acusavam-lhes de uma barbaridade como a cometida por eles próprios. – Imagem ainda mais injusta em meus tempos, se pensarmos que, de modo geral, nós aderimos aos modos de viver dos europeus. – Ressaltei. A cotovia volta com dois companheiros de canção, e são percebidos imediatamente 48


por Montaigne, depois por mim. – Mas eu dizia... Lembrase que estes homens nus vieram a seu continente? O que de mais admirável encontraram aqui? – Sim! Lembro-me deles. Ficaram impressionados com o poder um rei garoto, que por motivos que lhes eram inexplicáveis, comandava homens grandes e peludos como ursos; e também com a existência de mendigos e miseráveis que, apesar de viverem com precariedade, nada faziam contra os senhores fornidos e afortunados que os exploravam. Nada muito diferente dos dias de hoje. – Concordo, mas... – Fingi refletir. – Não havia ainda uma terceira resposta? – Sim, agora me lembro. Eles ficaram bastante admirados com algum outro aspecto de nossa “civilização”. – Disse, se aproximando com o indicador esticado, esperando o pouso de um dos pássaros. – Por muito tempo me aborreci com o fato de tê-lo esquecido, e mesmo após publicar meu livro, jamais me lembrei do que disseram. Assim foi até o último de meus dias. – Isso significa que posteriormente o senhor chegou a se lembrar? – Talvez. – Disse, com o pássaro no dedo, dissimulando seu desinteresse na questão. – O assunto me veio uma ou outra vez, apesar de não ser de importância crucial. Tive bastante tempo para rever minhas recordações. – E qual seria a terceira resposta? – Antes me diga: o que você acha que os deixaria definitivamente admirados? Montaigne aproximou seu dedo do meu e me passou a cotovia. Meio desconcertado com aquela experiência ao mesmo tempo singela e incômoda, levei-a lentamente à janela, para a companhia de seus amigos. O pássaro, porém, não queria ir embora. – Acredito que a existência de um único deus para todas as atividades. A seus olhos selvagens seria deveras admirável, sem incluir aqui uma conotação positiva ou negativa, um deus único que de uma vez só servisse de representante do sol, da lua, dos rios, da terra, do fogo, da fertilidade das plantas, de cada bicho e das pessoas, e a quem ao mesmo tempo se rezasse em busca de chuva, de alimento, de amor, de força, de fortuna; um deus único para todas essas nações e pessoas, povos diferentes entre si, que realizavam guerras e intrigas, que moravam em casas diferentes, comiam coisas diferentes e falavam em idiomas diferentes, apesar de dividirem-no para todas as coisas; um deus sobrecarregado com tantas súplicas sobre tantos assuntos em tantos idiomas, um deus que não permitia o despudor, a idolatria, a poligamia, e principalmente, um deus único que ao mesmo tempo prometia a paz universal e tinha seu nome usado por aqueles que perpetuavam a barbaridade. Ah, vivesse eu entre os índios e conhecesse assim a Europa, teria como admirável a limitada existência de um deus único. O que responderam eles? O pássaro finalmente desceu de meu indicador e voltou a voar com seus amigos. Quando me virei, Montaigne não estava mais lá. Não o procurei em outras partes do castelo. Observei uma última vez as inscrições nas vigas de madeira, antes de retornar com pressa para Paris. Eu planejava entabular conversas com os célebres fantasmas da cidade.

paulo raviere

nasceu em Irecê-BA, em 1986. Em seu mestrado, traduziu e comentou onze ensaístas clássicos ingleses. Em 2013, participou da oficina de ensaísmo FLIP/Serrote. Publica ensaios curtos e traduções em seu blog (raviere.wordpress.com) e escreveu, entre outras coisas, o volume de contos Nomes de Guerra.

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de quando a verdade me levantou do chão roberto menezes

S

eria mera formalidade chegar, sentar e chorar, chorar como um torturador arrependido, depositar aqui um milheiro de flores do jeito que você faria, devoto de frente a um túmulo francês de um poeta romântico genérico. Mera formalidade, documento carimbado e protocolado, com firma reconhecida em cartório, presente com beijinho no pescoço. Não sei o motivo de eu ter vindo aqui, mas digo a você que hoje não chorarei, a gente não vai chorar, não separarei minha dose de água e sal, não transformarei esse dia silencioso, esse dia bom pra andar de bicicleta em volta de lagoas, esse dia não transformarei num malogrado vendaval de angústia, saraivadas de lamentações gratuitas. Deixo esses dias acorrentados às trilhas sonoras dos desamados, chupadores de letras de sambas canções. Você é tão patético quanto um clipe de caetano em mute. Olhe nos meus olhos. Na minha maleta não há nada pra te dar a não ser a verdade. Você sabe que sou dado a trazer presentes embrulhados em frases rimadas, com efeito. Trago hoje pontapé, não trivela. Trago pontapés e uma caixa de cupcake. E não diga assim, com essa cara de funcionário da alfândega mal educado, que eu e minha encomenda chegamos tarde, que já é hora não-útil e a mulherzinha da rua das emoções vadias te espera em casa pro eventual e protocolar boquete. A verdade não tem hora marcada, bate na tua casa, não com a sutileza da sua femme de mauvaise vie. Nunca é tarde pra minha verdade testemunha de jeová. Minha verdade não quer saber quando você diz, deitado, na tua conveniente kriptonita: me deixa aqui, não há o que se fazer, tudo está partido, tudo está aos cacos. Minha verdade, de pau duro, é insensível às tuas verdades. Você é tão patético quanto uma adolescente gótica quando você vem me mostrar essa tua rimbauzada escrita com cuspe. Sai desse chão, prepara um chá pra mim. Nem sei a última vez que entrei aqui, sabe. Sabe, tenho saudade daqueles dias de chá de sobriedade. Lembra não? Lembra nada! Só lembra dos chás das cinco da madrugada, o chá que a gente tomava depois de vomitar a bílis. Ninguém, nem eu, nem você, ninguém queria se matar naquela hora de amanhecer. Você jogado no chão só pensava em se levantar, sei bem eu, mas cadê as forças? A gente nem tinha força nem pra levantar o pau, imagina você ficar de pé e atender a porta. Nessa hora nenhum dos presentes tinha o mínimo de coragem de enfiar

o pau em buraco nenhum. A gente era a república dos paus moles. Nessa hora, a verdade estava escancarada e a gente de bocas tão iguais escancaradas. A verdade acrobática pulava na sala, meio como um pajé, meio como um obreiro da igreja mundial. A verdade pulava e balançava seu preponderante pau duro. A verdade, que não era nem minha nem tua, tinha um pau de encher bocas, cus, buracos diversos. E a gente ficava em uma paralisia só, sabia que ia morrer. Sabia que após a última gota de bílis, a gente não teria tempo pra fazer nada. Teve um momento, era pra eu ter anotado a hora, que eu consegui piscar os olhos, mais do que isso, consegui, não sei como, olhar ao redor da sala. Todos, eu, você, o resto do povo, a gente dentro desse último vômito. Realmente não podia fazer nada. Não tem o que fazer quando tudo o que é de ruim foi posto pra fora e a gente vira apenas um saco, um saco de estopa vazio. Meus olhos piscaram, ela chegou na porta, em time-lapse. Era cinza e não tinha vício, vestia um terno. Paletó e calça sem vinco. Seus peitos siliconados se apertavam naquele vestiário sóbrio, mas o seu pau, ah!, o seu pau, não tinha amarra que amarrasse aquele pau. Quando dei fé, ela estava com a cara na minha cara, espantada, surpresa, não sei, acho que sim. A maldita não esperava que eu pudesse ver a sua fuça. Tanto não esperava, tanto não acreditava que acho que ela achou que aqueles movimentos meus eram espasmos. A maldita verdade é um bicho sem fé, dos piores incrédulos, daqueles que vêem e não crêem. Pois vejamos, ela continuou, sem eu ali, mas estando ali. Você não acredita, mas quando a verdade baixou as calças percebi que aquele pau duro da verdade realmente poderia machucar alguém. O pau era muito grande, bizonho de grande, do tamanho do meu exagero, do tamanho do meu passamento. Cheirou meu cangote e me desdenhou. O primeiro da madrugada foi você. Coitado de você, ela te currou até quase você virar santo. Você, uma virgenzinha desacordada, só gemia e gritava mamãe, mamãe, mamãe, mamãezinha você me traumatizou. E a verdade, tome, tome, tome, só te beatificando. Tome, tome, tome, parecia vocalista de funk fudendo as novinha. A diferença aqui é que era no cu, no teu cu que a verdade dava o trato. Aí foi no segundo, foi no terceiro, na turma toda. Sem dó, sem piedade. Só então voltou em minha direção. Ai, verdade, quantas vezes a verdade me enrabou? Quantas 50


vezes nessa merda de vida a verdade enrabou a gente? Após aquilo vi que o que eu sabia sobre a verdade não passava de uma ilustração mal feita num livro de história pra boi dormir. Nunca senti, nesses anos todos, quando ela me enrabava, nem você sentiu a maneira pouco delicada com que a verdade fode, a verdade te fode todinho. A verdade fode e a gente nem sente, vai pra um buraco no subconsciente, inconsciente, sei lá. O seu pau é suficientemente grande pra entrar, adentrar, alargar, arrombar qualquer buraco. É claro que eu não ia ficar parado esperando a verdade fazer barba, cabelo e bigode comigo. Arregalei ainda mais os olhos e disse não, não, hoje não. Ela não esperava que eu tivesse essa atitude covarde. Covarde não!, de sobrevivência. Fechei o cu e os ouvidos pra verdade. Depois de me lacrar, lacrar todos os meus orifícios possíveis, cerrei os olhos, e gemi, ai meu deus, que seja um sonho, mas não. Eu esperei a porrada, a pior das porradas, de uma verdade enfurecida se avermelhando e possessa de raiva, elevando o seu membro contra mim. Esperei, sim, eu estava sem força, sem forças nas pernas. Porém a verdade não fez o que pensei. Recolheu o seu pau, deu uma cheirada insolente na mão melada das mais de mil gozadas da noite. Depois, deu um semi-sorriso e estendeu a mão pra mim. Puta, parecia uma donzelazinha de uma novela das seis, um johnny depp androginado. Ficou então aquele impasse mexicano de dois só. Ela, na dela, sem dizer nada, absolutamente nada, sem fazer discurso verdadeiro. E eu, nem sei o motivo de querer fazer isso, eu queria dar a mão à desgraçada, mas por outro lado morrendo de medo de ser uma cilada, uma armadilha, de ser uma sacanagem dela, pra quando eu me abrisse todo, ela pudesse entrar de jeito. E se ela entrasse, meu amigo, se ela entrasse, faria gato e sapato. Não se pode confiar na verdade, ela é uma cobra vingativa, uma hora te pega de jeito. E uma coisa é ela te pegar de jeito com você inconsciente, outra coisa é de cara limpa e olhos esbugalhados. Esperar aquele ser e seu cacete de metro e meio chegarem pra entrar em você. Eu sabia dos meus riscos quando me decidi. Pois bem, dei a mão, mais do que isso, desabotoei a calça, fiz o zíper descer o trilho, arranquei a merda do jeans apertado e apresentei o meu cu à verdade, o meu cu que todos nós conhecemos, o meu cu depiladinho mais escancarado do que meus olhos. Vem, verdade! Ela, ligeira, obedecendo unicamente aos instintos, encheu sua boca de saliva e tal qual uma cadela raivosa, deu o bote. Um bote daqueles que pensei, tou fudidinho da silva, um abraço mãe, dê um cheiro em dona margarida e a moça simpática da padaria. Mas não, a desgraçada da verdade só quis de mim a mão. Como assim? O seu bote não chegou a me atingir, nem a cabecinha do seu pau senti. A verdade respirou fundo. Parecia uma neurótica, um traveco gigantesco empestado de neurose. Respirou e insistiu, queria que eu levantasse a mão, até um sorrisinho de boca cheia a cretina deu. A verdade respirando fundo parece zeus com asma. Mas ela se controlou, deu um sorrisinho piscopata, do tipo, é melhor o senhor, com o bom senso que o senhor tem, erguer logo esse braço, apenas pro seu bem senhor, apenas. Eu, assim como adão fez ao receber a maçã da serpente, fiz o que ela me pediu. Era a única força que eu tinha. Meus dedos passaram pela altura dos olhos e subiram, até que ela me tocasse.

Quando a verdade me levantou do chão, senti minha alma, personagem que não estava nos créditos, querer ficar. Filha de rapariga de minha alma, não queria sair da lama, do nada tomou vida e parecia ser outra pessoa. Dentro de mim, ela gritava, a lama é boa, a lama é divina, qué isso irmão, qué isso, não se pode sair da lama assim, esse casamento não pode acabar só porque a meretriz da verdade deu a mão pra você, quem quer saber da verdade, quem quer saber da verdade, vai deixar teu coração na lama? Não se deixa as coisas assim do nada pra trás, bora ficar, pela amor de deus, bora ficar, bora aguentar, já o dia chega, já o dia vem, que mal faz, que mal tem. Ainda bem que eu já era da verdade e ela sabia o que era melhor pra mim. Como um reacionário governador paulista, ela me arrancou dali, compulsória a verdade, me quebrou todos os tentáculos que me prendiam no mar de bílis e sal. Minha alma travou desarmada, não disse mais nada. Na minha boca, um gosto de coca-zero choca. No ar, um cheiro de esquema novo e nenhum ânimo nas pernas. A verdade me tirou dali, me arrastando mesmo, nem vi o cenário de guerra que deixei pra trás. Ah, verdade, meu amor, obrigado por me arrancar mesmo que à fórceps daquela petralha toda. Quando dei por mim, ela me levava já, em plena luz do dia, pelas ruas do centro. A gente vagou por farmácia, igrejas, hospitais, bibliotecas, cabarés, bares, cafés. Lugares que eu nem sabia que existiam. A verdade é bom de papo, mesmo sem abrir a boca. Sabe dizer muito sem falar nada. Boa gente, nem deixou eu pagar o rodízio. No fim da tarde, a gente dividiu um sorvete vendo o sol se pôr, depois ela me levou pro seu apartamento. A verdade nunca leva ninguém lá. São setecentos e vinte e dois degraus pra chegar lá no seu andar. Legal foi ver que ela leva uma vida tranquila, gosta de pipoca com sanzon, lê quadrinhos em árabe e tem a discografia completa de joy division. Lá pelas tantas, resolvemos puxar uma série pela internet e vimos dois ou três episódios daquela comédia sem graça, daquela atriz que nunca fez sucesso no cinema. Quando dei fé, estava cada um dormindo prum lado. E pela primeira vez eu vi que o pau duro da verdade não estava duro. Sei lá o que ela toma viagra ou chá de gnose. Eu que já estava calmo e recuperado fiquei confortado com essa não-dureza. Entendi como um voto de confiança da parte dela. Continuei cochilando ao seu lado. Esfriou, ela me levou pro seu quarto. Quase não tinha chão. Era uma cama só, enorme cama num quarto pequeno, sem chão. E eu que quase sempre terminava dormindo jogado no chão. Aqui não se dorme no chão, parecia dizer ela. A janela semiaberta e a gente dormiu de conchinha. Quando o galo cantou eu ainda estava agarrado ao seu pé e à sua mão. Olhei ao redor e me apavorei, sabe, me apavorei. Também lembrei de você jogado no oriente médio dessa casa, você e os outros. Me apavorei de não ter o dia seguinte do caos pra me lamentar, de não poder mais derramar um sobre o outro as mazelas. Lembrei de você, jogado, porco chafurdando na lama. E a verdade babando no lençol. Peguei o travesseiro, o de plumas arrancadas de algum cão, e sufoquei a verdade. Ela se debateu, se debateu, se debateu e se fez de morta. Tolo eu, otário filha da puta, a verdade não morre. Antes de fazer qualquer movimento, seu pau endureceu. Medonho membro 51


enrijecido gargalhando em minha direção. A verdade não morre. Não esboçou reação. Ficou só rindo. Tipo dizendo, esse é o teu novo mundo, gosta mais desse ou do outro?, gosta mais disto aqui ou da tua velha lama? Risadinha de bosta. Eu a amarrei na cama, e a torturei por sete semanas consecutivas. Tentei matar a verdade de todos os jeitos e maneiras. E nada. Pensei em deixar ela ali pra talvez morrer seca, mas não. Não podia simplesmente deixar ela ali, e com ela fiquei. Foram sete semanas desaparecidos do mundo, eu e minha verdade. Até que certa manhã, ela começou a encolher, encolher, encolher. Ela e seu pau encolheram até caber na minha mão. Coloquei aquela miniatura numa caixinha bonitinha, daquelas que as universitárias adoram embalar cupcake. A caixa pus na maleta e voltei pra minha vida, minha antiga amarga vida. Mas num deu. Num deu, cara! Não deu mesmo. Nada entrava, parecia que tinham fechado meu esôfago. Uma vontade mocoronga de morrer, por infecção ou tiro na têmpora. Cheguei a pensar como você, em ter uma tumba onde adoradores buscariam parte desse meu espólio de dor. Espólio de dor! Piada, né? Mas pensei. Nunca tive espólio. Minto. Tenho sim, um novo e caricato espólio. Tá aqui na maleta, uma versão risível da verdade, marmorizada, congelada, não sei o quê. Seria mera formalidade, eu chegar, sentar e chorar, chorar como um torturador arrependido, depositar aqui um milheiro de flores do jeito que você faria, devoto de frente a um túmulo francês de um poeta romântico genérico. No fundo, no fundo seria pra mim, não pra você essas flores.

roberto menezes é paraibano nascido em 1978. Publicou os romances Pirilampos Cegos, O Gosto Amargo de Qualquer Coisa, Palavras que devoram lágrimas (ou a felicidade cangaceira) e o volume de contos Despoemas. Vencedor das duas edições do Edital Novos Escritos da Prefeitura Municipal de João Pessoa (2007 e 2008) e do Prêmio José Lins do Rego da Funesc do Governo do Estado da Paraíba (2011).

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a carta rodrigo della santina

E

m 15 de janeiro de 2013, em Caraguatatuba, para um descanso que não veio, visitei um sebo à Rua— à procura de duas edições interessantes. Uma delas, “A Divina Comédia” de Dante ilustrada por Dorè; outra, “Os Lusíadas” de Camões escritos naquele português de sua época. Apesar de minha frustrada busca um D. H. Lawrence afagou-me o espírito. Em meio a edições de ignóbil valor eu não poderia saber que esse único achado seria a minha miséria. Dentre as folhas de “Um amante moderno e outras histórias”, Editora Record, 19—, encontrei, precisamente à página 84, repousando sobre o conto “A jovem Eva e o velho Adão”, uma outra (parecia a contracapa de um livro), amalerecida e “quebradiça”, contendo as seguintes palavras:

sabe amiga ou conhecida de E., que devia frequentar sua livraria assiduamente. Mas não. Não havia nenhuma Désirée na genealogia da dona (que era dono). Eu me exaltara. Relendo a mensagem, percebi meu equívoco. Imaginei, pela semelhança dos nomes das livrarias, que se tratasse duma antiga dona. Percebido o engano, presumi que “as páginas de Désirée” só poderiam ser as obras de alguma escritora, famosa em sua época, hoje esquecida pelos anseios de nossos tempos, talvez pela qualidade literária de suas letras, dentre as quais E. teria guardado a sua história. Busquei, então, títulos que alguma Désirée sem sobrenome tivesse composto, sem lograr resultado. Perguntei a amigos se sabiam qualquer Désirée da história que ficara afamada por qualquer ato seu, excetuando a amante de Napoleão. Meus esforços foram inúteis. Retornei ao sebo na derradeira esperança de ouvir da boca de seu proprietário alguma informação que me levasse a descobrir e revelar a verdade de E., quando, para meu contentamento, vi, deitado na prateleira de uma pequena estante, o livro “Désirée”, de Annemarie Selinko, Editora Mérito, 1955. Tomei-o nas mãos com avidez, mas devagar o folheei. A contracapa fora arrancada. Em suas páginas, três folhas, cada uma numa parte do livro: uma na página 174, uma na 319 e outra na 480. Estavam fora de ordem. A primeira se achava na 319, a segunda na 480 e a terceira na 174. Assinavam as mesmas iniciais conhecidas. (Isso tranquilizou-me). A data era a igual à da carta. Havia ainda um “P.S.” com um e e um s escritos depois. Logo abaixo, uma mancha escura, ressequida. Comprei o livro. O que li transcrevo agora. Não faço omissões. O mesmo assombro que se apoderou do meu espírito deixo que se aposse, leitor, de sua alma.

Toda a ignorada verdade sobre o funesto evento que recaiu sobre mim e minha família e que culminou na minha desgraça poderá ser lida nas páginas de Désirée. A humanidade, eu cria, não estava preparada para ela. Se você, com quem agora travo este colóquio mesmo depois de morto, as encontrou, é porque, quero crer, tem o espírito preparado e, com um pouco de coragem, apto a revelá-la ao mundo. E. A. P. 15 de agosto de 1981 E abaixo um carimbo da Livraria Atlântico. O ano em que ela foi escrita assombrou-me. Eu nascia exatos sete dias após sua confecção. Que verdade, ignorada pelo tempo e pelo homem, seria essa, para a qual seria necessário coragem para revelá-la? Reli, com renovado espanto, suas palavras e, como elas prediziam, meu espírito estava inclinado a desvendar seu enigma. Retirei da página citada o dedo que a marcava, segurando na outra mão a carta perturbadora, e deitei sobre a cama em que a lia o livro que a abrigara. Este fechou-se com inequívoco desleixo, deixando que a capa se mantivesse aberta, como um corpo contentado depois do sexo. Notei nesse acaso (como supus) a marca do sebo onde o comprara: Livraria Sebo Atlântico. Pesquisei sua origem e a relacionei com a da do carimbo na carta e descobri que se tratava do mesmo lugar! Não era coincidência. Deduzi que Désirée fosse o nome da antiga dona (talvez parente da atual), quem

* Registro nestas folhas minha narrativa, enquanto ainda posso. Que sirva de aviso ou ciência a quem a ler. Peguei o carro e fui à procura da livraria que eu vira de relance no centro de Caraguatatuba, quando, por conta das festas de fim de ano, buscava uma vaga onde estacionar. Devido à minha boa memória, também por um pouco de sorte, achei-a. Ela ficava de esquina e parecia bastante ampla, apesar de escura e com uma única e estreita porta de entrada. Transeuntes caminhavam por ali à procura de entretenimento 53


ou sossego. Crianças riam e pulavam, os olhinhos salientes, tentando se livrar dos laços maternos. O céu estava nublado, as nuvens carregadas e o deus que grita mostrava seu temperamento irritadiço. Entrei. Um velho, escanifrado e de feições cadavéricas, estava em pé atrás do balcão de atendimento. Tinha os cabelos muito brancos e compridos e olhava fixamente para algo abaixo de si. Parecia nervoso, pois balançava-se lenta e ininterruptamente no mesmo lugar, como se dançasse com timidez uma valsa ou pisasse em uvas. Eu buscava os “Contos de terror, mistério e morte” de Allan Poe. Sabia que a Nova Fronteira acabara de lançar uma edição e me interessara obtê-la. Como o velho não havia dado por mim, passeei por minha conta entre as poucas, mas altas e largas, estantes, todas repletas de livros mais ou menos organizados. À entrada, repousados numa estante de madeira, e em cima do balcão, alguns livros adicionais; uns para exibição e adorno, outros para catálogo, pensei. Não dei logo pela aproximação do velho; só quando avistei o que buscava foi que o percebi. Ele vinha vagaroso e curvado, como se sentisse dores, seus olhos fixos em mim, emitindo continuamente um som similar ao de quando engasgamos. Tudo foi rápido. Num segundo seus braços pousavam sobre os meus ombros, seus olhos, que, pelo embranquecimento, não deixavam ver as pupilas, ocultavam-se de minha vista e davam lugar a uma boca esverdeada que tentava morder meu pescoço, como um vampiro. Exalava dela uma fetidez de carne estragada, que me enjoava e enlanguescia. Apesar de velho, sua força era a de um homem robusto e eu tinha sérias dificuldades em me desvencilhar de seu ataque. Foi a custo que o consegui, não sem levar na mão esquerda a marca de suas garras. Avistei, no meu desespero, uma porta aos fundos e a atravessei. Ela dava para uma viela encardida e deserta nos fundos da livraria. Contornei a rua em frente e logo me vi novamente à porta do estabelecimento. Esgueirei meus olhos para dentro: nem sinal do velho. Devia estar oculto por uma estante. Aqui um caso excepcional ocorreu. As pessoas, as crianças, que por ali andavam, pulavam, haviam desaparecido. Reinava um silêncio aterrador. Olhei a minha volta à procura de alguma alma viva, de qualquer indício que explicasse, inda que insuficiente, aquela ausência de vida pela rua. Como a comprovar minha insanidade, percebi que no local onde estacionara o carro um muro reinava imperturbável. Caminhei por quase duas quadras sem encontrar ninguém. Voltei à livraria: ainda nem sinal do velho. Entrei. Ele não estava atrás do balcão. Ele não estava entre as estantes. Ele não estava em lugar nenhum! Fui até a porta dos fundos. Estava trancada. Nesse mesmo instante, um vulto passou do lado de fora da livraria. Corri. Em meu entusiasmo não reparei no estado do passante. Ele voltou-se lento em minha direção ao me ouvir chamá-lo, como o velho antes: devagar e engasgando; e, como o velho, tinha o rosto chupado e os olhos alvacentos. Pronunciei algumas palavras de cordialidade; indaguei algumas interrogações. Sem que eu percebesse, outro, nas mesmas condições desse, punha sobre os meus ombros (como o velho) suas mãos. Num segundo eu estava cercado por cinco ou seis homens. Todos no mesmo estado do primeiro, e todos com a mesma intenção: morder-me! Não pude (ainda não posso) entender por que, como o velho, agiam daquela maneira. Estariam fora de si?

Ou acometidos de uma doença desconhecida? Desvencilheime aos sopapos e empurrões. Disparei para a esquina e, por instinto, contornei a livraria e fui dar naquela viela encardida e deserta; empurrei, pelo lado de fora, a porta dos fundos e acertei (sorrio em lembrar), no meu frenesi, o velho, que ficara ali, buscando-me. Apressei-me a ir para fora. Tudo voltara ao normal. Esgueirei uma vez mais os olhos para dentro: o velho me buscava. Cruzei a rua em direção ao meu carro e dei a partida. Desnecessário dizer do meu abalo e das preocupações de minha mulher. Também desnecessário que inventei um quase acidente de trânsito que me fizera saltar o coração pela boca para aplacar-lhe a inquietude. Nos dias que se seguiram, tentei, inicialmente sem esforço, depois com certa dificuldade, manterme atento ao divertimento de minha mulher e filho. Porém, dois dias após o episódio da livraria, notei que o corte que o velho me legara tornara-se mais rubro e intumescido; a dor era constante e mediana; a pele, apenas na área do corte, ficara mais quente e um pus amarelado crescia ali. Essa mudança visível só piorou. O inchaço aumentara consideravelmente; a dor tornou-se pungente e outras surgiram por todo o meu corpo. Linhas vermelhas apareceram ao longo da pele e o pus amarelo deu lugar a outro esverdeado, ferindo o olfato com um odor estranho e nauseabundo. Com o passar dos dias nenhuma melhora foi percebida. Ao contrário, aos incômodos físicos, outros, oníricos, vieram somar-se. Durante as noites, quando a Insônia despia seu roupão e calçava suas sandálias, quando minhas pálpebras finalmente cediam ao peso do cansaço e da dor, a imagem daquele velho esgaivotado em meu pescoço se repetia. Repetia de maneira hiperbólica. Seus braços pareciam mais longos e suas mãos maiores; seus olhos mais assustadores, seus dentes mais verdes e mais podres... Todas as noites eu acordava aos berros. Minha mulher, no início, era tomada de um susto indizível. Com o decorrer das horas noturnas, limitava-se a acalmar-me e voltava a dormir. A cada noite os pesadelos pioravam e o rosto do velho se tornava cada vez mais nítido, horrendo. Via-o sempre arreganhar-me os dentes e perseguir-me a passos estranhamente céleres. Via-o a cada sonho aproximar-se de meu pescoço. No último, mordeu-me. Digo “mordeu”, mas fui eu quem me mordi. Uma noite, durante o mesmo devaneio noturno, a imagem do velho escaveirado ficou tão perto de meu rosto que pude ver no seu a minha própria face. O que quero dizer é que nessa noite o rosto que atormentou meu sono não foi o do velho, mas o meu próprio! Acordei gritando e me estremecendo. Minha mulher levou três ou quatro minutos para me acalmar. Nunca mais sonhei. Tornei-me arredio e agressivo. Preferia a solidão, o silêncio e as trevas. Voltamos a nossa casa no dia seguinte. Mas meus modos não apresentaram sinais de atenuarem-se. Eu me afastava mais e mais. Mais e mais eu me tornava hostil. A insistência de minha mulher e filho por atenção irritava-me imensamente. Certa vez, ela irrompeu meu escritório de maneira impetuosa e exigiu — exigiu! — que eu me desculpasse com nosso filho. Eu havia lhe infligido castigo físico por ter tido ele a impertinência de ter me incomodado em meu isolamento, insistindo em brincar. Olhei-a furioso. Em seu olhar vi o terror lhe invadir a alma. Antes que ela pudesse correr, saltei sobre seu corpo e, como uma hiena, 54


mastiguei seu pescoço. Nesse momento (ó, quão desgraçado eu sou!), meu filho apareceu à porta. Desvairado, sentindo percorrer meu corpo o sopro divino dos deuses pagãos, fiz do meu filho um joguete de meus músculos; e, com um olhar de triunfo, mal cabendo em mim de tanto júbilo, deixei aquele cômodo à negra consolação da morte. No dia seguinte, após o desjejum, fui ao meu escritório como faço nos dias normais. Tendo, por um instante, perdido as lembranças da noite anterior, horrorizei-me ao deparar com aquela cena de sangue e óbito. Pressionei sobre minha boca as mãos até a dor para conter um grito de excruciante agonia. Num segundo, tudo voltou à memória. E o horror foi ainda maior e pungente. Corri para a rua como um louco, na tentativa de exorcizar a plenos pulmões o que quer que estivesse dentro de mim. Mas, aos poucos, senti minhas pernas não suportarem o peso de minha desesperada empreita e a respiração tonar-se pesada e difícil. Voltei para casa. Diante de minha mulher, estirada sobre o tapete defronte da estante de livros, o pescoço rasgado pelos dentes de um animal faminto, um anjo ensangüentado por inocente queda; diante de meu filho, inerte como um boneco de brinquedo desmantelado pela fúria orgulhosa e divina de um demônio, lágrimas negras romperam minhas pálpebras e mancharam para sempre o rosto de minha miséria. Foi aqui que esta narrativa nasceu. Deitei em minha cama, ansiando por um pouco de paz (realmente a quis?!), e vi a face descarnada do velho transmudar-se novamente na minha e arreganhar-me novamente os dentes. Meu horror não foi vê-lo. Eu já estava habituado a esses sonhos tenebrosos. Meu horror foi porque eu não estava dormindo! Levantei de um salto e fugi! para o escritório. Os corpos, o tapete, o sangue, a estante de livros, aguardavam meu retorno, como peças de um cenário teatral. Enjoei um pouco antes de entrar. Não lancei furtivo olhar aos dois. Sentia picando meu coração aqueles olhos cheios! de terror. Sentei à secretária e tomei destas folhas.

vontade. Tenho de ser rápido (vou perdendo os sentidos), se quero deixar a você, leitor, e ao mundo este alerta: a minha total inexistência como homem. Seu significado é viral ou demoníaco. Um legado que recebi, eu cuido, daquele velho. E. A. P. 15 de agosto de 1981 P.S.: Es * Que a sua alma, leitor, tenha se nublado, como foi a minha; pois só assim evitaremos que estas letras contaminem a outros. Assim que terminei a narrativa, incrédulo, assombrado, desejoso de saber qual seria o “P.S.” de E., virei, em minha ânsia, a folha que segurava e descobri nas costas dela duas palavras: Estas folhas. Sob elas, uma mancha escura e ressequida, como a que marcava o lado oposto. E nada mais. Indignado, frustrado, lancei fora a folha arrepiante, que, por vingança, devo crer, cortou-me o dedo e uma gota de sangue foi pingar sobre ela. Rapidamente tornou-se preta e foi somarse, seca, àquela já antiga. Compreendi nesse momento toda a trama dos acontecimentos. Abri mais uma vez o livro de Annemarie Selinko, a fim de comprovar minhas suspeitas. Ali, como já dito, a contracapa fora arrancada. Tomei daquela pequena carta encontrada nas páginas de D. H. Lawrence e a pousei sobre a parte removida. Ajustava-se perfeitamente! Não restava dúvida. O livro que eu agora segurava, em cujas páginas encontrei a horripilante história, era o mesmo cuja contracapa E. usara como preâmbulo à sua verdade! Mas de que modo ela fora parar na obra do escritor inglês? E por que sentiu E. a necessidade de compô-la, se a sua história, como ele mesmo diz, já serve de alerta e de ciência? Conjecturei algum tempo para chegar a esta conclusão: outro, antes de mim, já havia lido a história de E. O leitor deve ter em mente dois fatos que deixei passar em meu assombro. O primeiro: a terceira folha se achava maculada, na frente e no verso, por duas nódoas pretas, semelhantes em tudo à gota que vazara de meu dedo. O segundo: a letra de “Estas folhas” e a da pequena carta eram diferentes entre si e diferentes das folhas horrendas. Uma vez que eu mesmo, com meu sangue, passara a fazer parte da narrativa de E., pude conceber a ideia que passo a expor e desvendar o que ninguém conseguiu transmitir. Passo agora às inferências que minha mente, apesar de suas condições, foi capaz de idear. Em algum momento do tempo, nalgum lugar, ou num livro, em alguma circunstância onde os crentes veem o dedo de Deus, ou do Diabo, o primeiro leitor (a quem chamarei de F.) teve contato com os eventos narrados por E. Como eu, horrorizou-se; como eu, se cortou, e seu sangue foi secar às costas da folha de número três. Estranhou, eu suponho, o parentesco das manchas e deduziu o que eu também deduzi: que se tratava a primeira do sangue de E., que maculara acidentalmente, por conta da ferida que lhe infligira o louco velho, a página em que finalizava a sua narrativa. Dois dias

Quando iniciei esta narrativa, o rosto do velho dominava-me parcialmente; aparecia e logo mudava para aquele conhecido de meu espelho. Essa alternância durou até mais ou menos dois terços da história. Já para o fim ele dera lugar ao meu. Sem volta. Eu me via esgalgado, coberto de chagas, os dentes de um verde opaco e imundos como dizem os porcos. Apenas os olhos reinavam supremos. Tinham a cor do fogo incandescente e me olhavam intimidante e prazenteiro como um demônio. Agora, que estou prestes a terminar este relato, esse rosto vai se alterando. Transforma-se num cão raivoso e muito inquieto, com o focinho comprido e os dentes grandes e pontiagudos, tentando constantemente abocanhar-me. Os olhos (enquanto escrevo, ó Deus! os vejo!) ardem em labaredas infernais que me fazem suspender a pena para tremer de medo. --Desculpe esta pausa. Sinto que já não domino totalmente meus membros: minhas pernas e meus pés não se movem ao comando do meu cérebro; todo o meu braço esquerdo é apenas um peso para o papel; o direito é o único que responde à minha 55


depois (sempre dois dias!), principiou a sentir os sintomas descritos por E. Deve, a princípio, ter ignorado sua condição. Porém, quando passou a ver a face do velho (ou de E.) em seus sonhos tomou consciência de seu estado e intuiu a importância e o perigo daquelas folhas. Neste momento, em que a inexistência, eu deduzo, lhe chegava pacífica mas dolorosa, anotou nas costas da folha três as palavras que encontrei. E caiu na solidão do nada. Como então as folhas de E., a carta alarmante, me chegaram às mãos? Note, leitor, como os desígnios do deus que a todos subjuga urde, com o auxílio das Parcas, uma trama complexa e inexorável. Novamente ponderei. E concluí: um segundo, antes de mim, tomara ciência das páginas de E. O leitor deve lembrar o que falei. Havia na frente e no verso da terceira folha, respectivamente, duas manchas pretas, idênticas à gota de sangue expelida de meu dedo formando com elas um trio. A caligrafia das folhas horrendas, a da pequena carta e a das palavras incompreensíveis eram distintas entre si. Isso sugeriu-me (não sei por que não antes) a presença de um segundo leitor; talvez a mulher, ou um filho, ou um parente de F., que, o encontrando naquele estado de total abstração, tomou das páginas macabras e as colocou dentro de um livro que lhe estava à mão (“Désirée”) e o doou a alguma livraria ― Livraria Atlântico. Dias depois (dois eu presumo), sofridos os sintomas físicos e oníricos da carência vital, ao refletir sobre a origem de sua atual situação e do registrado na história de E., G. (como chamarei esse segundo) deu-se conta da verdade e tentou reaver o livro, a fim de impedir que outro sofresse os abalos que ele agora também sofria. Isso, é verdade, ia contra as intenções de E., que queria sua história para “aviso ou ciência” do leitor. Mas fosse como fosse, o caso é que não pôde recuperar o livro doado, porque este (e isto eu imagino) já estava encomendado a um novo comprador. Usando de gentileza e boa educação, alegando sua paixão pelo romance, conseguiu (devo confessar que estas conjecturas são mais literárias que dedutivas) que o vendedor o deixasse manuseá-lo. Entretanto, quão absurdo não seria se, de repente, ele retirasse do livro emprestado algumas folhas assim: gratuitamente? Arrancou, então, de seu desespero uma ideia. Disfarçadamente, retirou a contracapa e a pôs no bolso, retornou a sua casa e, receando que esse outro leitor não pudesse ou quisesse revelar a verdade de E., escreveu a carta que achei nas páginas de Um amante moderno... Quantos não encontraram estas folhas que agora mostro a você? Quantos não perderam a consciência? Quantos não se curvaram ao atroz Destino e tiveram suas almas eternamente presas no Hades infernal? Quantos, ainda! não o verão face a face? Só de pensar nisso perco as forças. Pois também eu, leitor (deixo para o fim a minha miséria), também eu sucumbirei ao senhor da Morte.

descoberta da verdade que eles foram incapazes de nos legar, escrever estas linhas e dar ao mundo a ciência da qual E. fora vítima. Sei que em breve minha face mazelada se apossará de minhas visões e dará lugar a um Cérbero real. Portanto, devo ser rápido e revelar a você o enigma que não coube a Édipo decifrar. O sangue, que também derramei sobre a folha assombrosa, é a resposta. Nele o corte que o verteu demarcou nossa extinção — minha e a de meus antecessores, muito embora G., por acaso ou zelo, não tenha deixado, além da carta, a prova de sua inexistência. O caso é viral. Pois quando E. recebe do velho a sua sina, transmite (ainda sem o saber) nas páginas que redige aos herdeiros de sua história o Mal que o debelou. A princípio, imagina duas possibilidades. Porém, momentos antes de perder-se na invisível matéria do nada, se apercebe da verdade e tenta, no post scriptum, nos revelar. F., como eu, compreendeu seu intento e, igualmente ciente da origem do Mal, produziu, em seu último esforço, as palavras achadas no verso da terceira folha. Quando G. trava contato com a hedionda narrativa, acredita nas suposições diabólicas e equivocadas de E. e não se dá conta da súbita consciência deste ao escrever seu “P.S.”. Intui, contudo, que aquelas folhas guardam um perigo e um mal inimagináveis, talvez indecifráveis, e decide escrever a carta de aviso, abstendo-se de sua posteridade para dar lugar e crédito às esperanças de E. Qual não foi minha surpresa (de início esfuziante, agora emurchecida) ao encontrar sua carta! ao deparar, naquela estante, naquele sebo, onde, outrora uma livraria maior e mais ampla, o conhecimento se curvara diante do tempo e do metal luzente, com o livro maldito! Ó minha caveira! Já o fogo do inferno queima e se agita nos olhos do cão! Já o vejo mostrar-me seus dentes imundos e ferinos em sua boca nervosa! Que Deus, a quem nunca concedi meus gozos e pesares, possa ter pena de minha alma chamuscada pela língua deletéria da serpente! Que você, leitor, se atente às palavras que agora, no instante em que tombo aos pés do caos, no estudo e na vivência desse Mal, deixo à sua salvação! Estas folhas estão contaminadas. Não toque.

Neste exato momento, vejo, mais uma vez, o rosto de E. (o que suponho ser o seu, o do velho, se o foi, logo se afastou de meus pesadelos iniciais), vejo-o se alterar para o meu — desfigurado pela podridão funérea e pelas ulcerações. Senti, antes de iniciar esta narrativa complementária, as mesmas angústias físicas e oníricas que sentiu E. e devem ter sentido seus sucessores. Resolvi, após algumas conjecturas e a

rodrigo della santina formou-se em Letras pela UNIMESP e possui dois livros de poesia: Intertrigem, de 2005 (esgotado), e O limiar do surto, de2008, respectivamente pelas editoras CBJE e Scortecci. Publica pequenos contos em sua página no Facebook, além de fazer colaborações nos blogues crônicas do andarilho e novos escritores brasileiros.

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criança

ulisses mattos

L

uís odiava crianças. Desde recém-nascidos até préadolescentes. Olhava de cara feia até para barriga de grávida. Perguntava a si mesmo como podia já ter sido criança. O medo de ter um pirralho cruzando seu caminho era constante. Quando fazia sexo, o maior prazer que tinha não era o orgasmo em si, mas a feliz constatação de que o preservativo não se rompera. Luís teve alguns noivados natimortos quando a parceira perguntava quantos filhos teriam. – Nenhum. – Como assim, Luís? – Você até me ofende com uma pergunta dessas. Você sabe que odeio criança. – Mas até um filho seu? Um filho nosso, meu e seu? – Só se já nascer com 15 anos! É preciso dar exemplos de como o problema de Luís com as crianças ia além de seus pensamentos e externavam para seus atos. Talvez o melhor episódio para mostrar isso seja a vez em que estava sentado numa lanchonete e, na mesa ao lado, um bebê de colo ficou olhando para ele. Luís não percebeu por ter virado o rosto assim que sentiu o cheiro de neném. A mãe, no entanto, lhe chamou a atenção quando falou com uma voz infantilizada: “Que foi, tá olhando pro moço, é? Gostou dele? Que bonitinho!”. Luís virou para o lado e deu de cara com o bebê olhando fixamente para ele. Chamou a mãe: “Minha senhora, o seu bebê está olhando pra mim!”. Ela sem entender o jeito sério de Luís, ficou sem saber o que dizer. Ele continuou num tom mais alto e ríspido. – Ele continua me olhando! – O senhor quer que ele pare? – Ele tá me olhando! Tá me encarando! Decidiu tirar satisfações com o próprio fedelho. – Que que é? Que que tá me olhando? Seu babaca! O bebê, do colo da mãe, devolveu um sorriso que Luís interpretou como uma provocação. Ele se levantou da mesa gritando com o neném. A mãe se levantou mais rápido e saiu tropeçando com o filho dependurado, deixando o lanche na mesa. É por aí. Havia também atitudes cotidianas. Sempre que podia, Luís pisava no pé de um moleque que passasse por ele. Puxava a chupeta de bebês de mães distraídas e jogava no chão, só pra vê-los chorando. Ficava feliz com estatísticas sobre a mortalidade infantil no terceiro mundo. Tinha um

discurso recorrente para todas as empregadas que passaram por sua casa: “Não leva seu filho pra vacinar, não! Isso é veneno! O governo quer matar as criancinhas pobres e engana o povo com essa coisa de vacinação! Você nunca desconfiou do fato de a vacina ser de graça?”. Não se contentava em convencer as coitadas e ainda dizia: “Espalha essa informação lá onde você mora, entendeu?”. Regozijava-se quando as domésticas lhe contavam como conseguiram impedir que a vizinhança vacinasse a criançada. Afinal, uma criança paralisada lhe perturbaria menor que uma em movimento. Certa vez, no ônibus, um pivete armado com um revólver veio roubando todos os passageiros. Quando chegou a vez de Luís ser a vítima, ele se levantou num acesso de fúria, puxou a arma do garoto e partiu com tudo para cima dele. Era uma oportunidade rara poder bater em uma criança com o aval da sociedade. O ônibus aplaudiu o herói que chutava o bandido ao chão. A fama infanticida de Luís tinha um lado negativo. Foi o que descobriu quando começou a ficar difícil sair com mulheres. Elas têm uma rede de informações bem eficiente. Chamou então um amigo para sair e se divertir sem ter que pensar em conquistas na noite. Tomariam todas. Avisou à mãe que não dormiria em casa. Bebeu, bebeu, vomitou, bebeu, bebeu. O sujeito, um pouco menos bêbado que ele, fez o convite: “Vamos pegar umas putas. Conheço uma que cobra quase nada. Bora lá na zona, cara!”. Luís aceitou e lá se foram os ébrios. Estava tão torto que se lhe apresentassem um padre de batina, ele perguntaria quanto era o programa. O amigo pegou a prostituta barateira de sempre, deixando o novato com outra profissional, no quarto ao lado. Luís apagou a luz, tirou a roupa e nem se preocupou com preservativos. Movido mais a álcool que a libido, Luís apagou a luz, tirou a roupa e nem se preocupou com preservativos. Terminou a missão e caiu para o lado babando, dormindo um sono que beirava o coma.Quando acordou, com a cabeça zunindo, viu sua parceira de noite: uma menina de 12 anos. A garota era gerenciada pela mãe, a tal prostituta permanentemente em promoção, que sentiu a própria decadência física vindo sem piedade e pensou logo em formar uma herdeira para seus negócios. A menina tinha um corpinho ainda franzino, uns peitinhos tímidos e um olhar tristonho. Muito tristonho. Luís, em uma espécie de choque, só conseguiu falar uma palavra: “criança”. 57


Vestiu-se, deu todo o dinheiro que tinha para a mãe da menina e saiu abestalhado. Pensava seriamente em mudar de filosofia de vida. Talvez devesse ajudar todas as criancinhas do mundo, filiar-se a todas as associações de proteção a menores carentes. Talvez até se tornasse pai. E mãe também, se necessário. Foi andando pela cidade, embaralhando dúvidas e planos, quando, ao atravessar uma rua, foi atingido por um ônibus escolar que lhe arremessou contra um muro. Muitos médicos ainda não entenderam como a cabeça de Luís não se desintegrou com a pancada. Consideram até um milagre a sua sobrevivência. Pena que um homem tão novo tenha regredido tanto em idade mental. A sorte é que conta com uma mãe que lhe troca as fraldas, dá banho e serve comida na boca. Luís é uma criança.

ULISSES MATTOS é roteirista, humorista e jornalista. Escreveu por anos no Jornal do Brasil (editou o Caderno B e a Programa) e no cocadaboa.com. Hoje roteiriza humorísticos pra TV e faz web videos.

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a cousa secreta zé mcgill

G

arcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o tecto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente — de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, o que será explicado mais adiante. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.* O casal Fortunato desembarcara no Rio de Janeiro havia pouco mais de um ano. Vieram a convite do Dr. Garcia, cirurgião de renome que, àquela época, inaugurava sua casa de saúde no Catumbi e lhes oferecera trabalho após longa troca de correspondências com Fortunato, médico recémformado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Maria Luísa era enfermeira de pouca experiência, e um emprego para sua esposa na casa de saúde era condição inegociável para aceitação da proposta. Mas bastou a foto do casal, enviada pelo correio, para que Garcia se prontificasse a providenciar trabalho para a jovem. Maria Luísa era de uma beleza humilhante, mesmo no retrato em preto e branco amarelado. Naquele primeiro ano, a competência e dedicação de Fortunato ao trabalho na casa de saúde conquistaram a confiança de Garcia de tal forma que este chegou mesmo a incumbir o primeiro da cirurgia de seu próprio sobrinho, um menino frágil que aos onze anos de idade carregava um cisto benigno na bolsa escrotal. Maria Luísa auxiliou o marido no procedimento e guardou o cisto num pequeno pote de conserva de vidro, para servir como recordação de sua primeira operação bem sucedida. O marido jamais notou a presença do pote no fundo da geladeira. No dia seguinte à cirurgia do menino, o casal convidou Garcia para um jantar. Maria Luísa havia preparado um guisado de carne e vestiu o que havia de mais elegante em seu guarda-roupa. Quando o convidado chegou, serviu-lhe conhaque e deixou a visita e o marido conversando sobre política e medicina na sala de estar. O guisado foi servido às oito horas; às nove, Maria Luísa foi até a cozinha e abriu a geladeira. De lá retirou a travessa de doce de caju e o pote de vidro com o cisto. Encheu três tigelas com o doce e serviu a sobremesa numa antiga bandeja de prata que pertencera à sua avó e fora embalada com todo

zelo na noite anterior à viagem para o Rio de Janeiro. À mesa, Garcia saboreava o doce de caju e gabava-se de seu sucesso profissional quando mordeu algo de consistência esponjosa que não era um pedaço de caju. A cousa parou presa entre os dentes e ele chegou a mirar o paliteiro, que descansava no centro da mesa, mas seu olhar cruzou com o de Maria Luísa e ele optou pela discrição. Deixou o paliteiro descansar enquanto a língua travava combate com a cousa incômoda que não podia identificar. Depois da refeição, os três retornaram para a sala-de-estar. Agora, ali estava Fortunato, olhando para o tecto enquanto Maria Luísa fingia cerzir um presente de lã que daria ao sobrinho de Garcia. Este último mirava a noite agradável através da janela e produzia um ruído constante de estalar da língua entre os dentes e o céu da boca. Maria Luísa aproximou-se timidamente de Garcia e, sem dizer qualquer palavra, entregou-lhe um palito. Em seguida, despediu-se do marido e do convidado e se retirou para o quarto de dormir.

*Primeiro parágrafo do conto “A Causa Secreta”, de Machado de Assis.

zé mcgill nasceu no Oregon (EUA), em 1977, e vive no Rio de Janeiro. Publicou os livros de contos Na Barriga do Boi (2011) e Fantasmas de Carne e Osso (2014), pela Editora 7Letras. Além de escritor, é tradutor e compositor.

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apoio


SOTNOC ED ATSIVER


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