Flaubert #08

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Adrienne Myrtes Caroline Margoni Claudio Brittes Daniel Osiecki Dênisson Padilha Filho Elieser Cesar Fabio Ulanin Maria Clara Mattos Mariel Reis Paulo Roberto Farias Petê Rissatti Plínio Camillo Roberto Gomes Rodrigo Rosp Rodrigo Westin Sidney Rocha

ANO 01 / # 08

REVISTA DE CONTOS



REVISTA DE CONTOS


© 2014 PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 2014 COM O TÍTULO FLAUBERT REVISTA DE CONTOS Nº 8 /// COPYRIGHT DA SELEÇÃO © 2014 FLAUBERT REVISTA DE CONTOS /// todos os textos desta edição são copyright de seus respectivos autores /// © Adrienne Myrtes // Caroline Margoni // Claudio Brites // Daniel Osiecki // Dênisson Padilha Filho // Elieser Cesar // Fabio Ulanin // Maria Clara Mattos // Mariel Reis // Paulo Roberto Farias // Petê Rissatti // Plínio Camillo // Roberto Gomes // Rodrigo Rosp // Rodrigo Westin // Sidney Rocha ///

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NESTA EDIÇÃO: 9

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Adrienne Myrtes

Caroline Margoni

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Dênisson Padilha Filho

Elieser Cesar

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Mariel Reis

Paulo Roberto Farias

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Roberto Gomes

Rodrigo Rosp

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Claudio Brites

Daniel Osiecki

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Fabio Ulanin

Maria Clara Mattos

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Petê Rissatti

Plínio Camillo

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Rodrigo Westin

Sidney Rocha


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os personagens e as situações dos contos aqui publicados são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opiniões.

ANO 01 / # 08 BRASIL 2014


EDITORIAL M

eu coração está alegre. A revista flaubert em uma oitava edição, cercada de colaboradores e editores preocupados com sua confecção e divulgação do material, a circulação cada vez maior em meios insuspeitos, entrevistas acerca do surgimento da publicação. Tudo isso sem prostituição, sem concessão, sem estar ligada a um grupo majoritário do país — ditador do que é a tendência da cultura. Somos independentes, meus bons mosqueteiros. E nada mudará isto em nós. Outra coisa de que me orgulho são os editores, com projetos concomitantes à revista, multiplicadores de cultura em seus Estados de origem.

As eleições preparam-se para um segundo turno; divergências afetam amizades antigas nas redes sociais e flaubert continua numa boa como a velha poupança Bamerindus, do jingle de programa dominical. Nessa edição resolvi compartilhar uma narrativa pessoal, repleta de fantástico, que pode ser lida como um conto moral ou quase. Divido, nessa revista, tudo o que considero pertinente, inclusive o que pode acrescer além do estético. Se o dito cujo sair prejudicado, perdoem‑me a fraqueza – dias de João Antônio, dias de Robson Pinheiro. Escrevo às pressas, em meu tablet, este editorial para não atrasar a revista; porém, nessa hora, de pouco serve minha celeridade. Somente hoje, no dia dezesseis, irá ao ar. Meus leitores, melhor, nossos leitores de todo o Brasil, estamos com cada um de vocês. Sintam-se abraçados, mesmo nos rincões do país, sinta-se convidado, porque há muitas vidas ensaiadas em uma só vida e capturá-las é a tarefa árdua e prazerosa do escritor. Nossa alma é o céu de mil pássaros. E de nossa boca escapam os pipilos das intraduzível mensagem confiada a nós: o lugar da ficção, o paraíso possível. MARIEL REIS // EDITOR



é segredo adrienne myrtes

Dela, eu guardei poucas lembranças. A pele fina sobre os ossos, sobre a cama, os cabelos de um branco passado, murcho, e um murmurar eterno. Os olhos ocupavam-se do teto, mas desconfio de que não enxergava qualquer coisa além de si. A mão caída ao lado do colchão era o detalhe mais visível. Acessível à minha curiosidade infantil. Eu observava da porta do quarto sem me aproximar. Eu não tinha o que dizer para ela. Eu era criança e ela velha demais. Em nossa casa faltavam histórias à mesa. Silêncio e mastigação soterravam segredos. Tudo tão distante nessa infância desbotada, a família guardada em uma nebulosa. De fato eu conheci pouco a respeito dela e, nem mesmo depois de adulta, me ocupei com qualquer pensamento a seu respeito. Ela sempre foi uma personagem engavetada em um tempo antigo. Cruzamos a vida uma da outra feito desconhecidas se cumprimentando numa rua esquisita. Só hoje fui levada a pensar nela, e, procurei seus olhos zombeteiros na fotografia restaurada. Encontrei cumplicidade. A voz da minha mãe me reprovando: Você deve se achar muito moderna, mas olhe, olhe bem, muito antes de você sua bisavó foi capaz dessa mesma loucura que você pensa inaugurar.

ADRIENNE MYRTES

nasceu no Recife (PE) e vive em São Paulo desde 2001. É artista plástica e escritora. Publicou A Mulher e o Cavalo e Outros Contos (Alaúde/EraOdito, 2006), o romance Eis o Mundo de Fora (Ateliê, 2011) e a novela Uma história de amor para Maria Tereza e Guilherme (Terracota, 2013).

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a mulher que costumava nadar caroline margoni

Andei em busca do nome que um dia estampou meu corpo. Atravessei o píer, pela última vez, amparada, de ponta a ponta, pelas gaivotas orquestradamente enfileiradas que desposavam daquele pedaço de terra todos os dias sem resvalar um instante de dúvida, com suas asas acopladas no dorso do corpo, escondendo-se dos voos de sua existência futura. Tinham voos curtos e rápidos, o suficiente para uma breve refeição. Elas estavam ali, dizendo: NÃO PARE! Eu segui adiante, naquele dia de céu branco, naquela névoa que se dissipava com meus passos. Próximo à nuca, o vento firme e uniforme de asas batendo, motivadas pelo alimento que chegaria. Elas gritaram o meu nome e partiram num de seus voos breves. Meu nome estava lá, do outro lado da ponte, à minha espera, ancorado pelo desejo de retomar sua própria existência. Sua voz ressurgiu; não ouvi. Aquele lugar era seu. Fique com ele. Existe um amor cuja própria expressão é incapaz de definir. Fui condescendente com as vozes que encobriam minha visão e recorri à memória. Corri descalça sobre o chão de cascalho que pisamos juntos e afundei a planta do meu pé numa ponta de pedra afiada. Sangrei e você estava ao meu lado para mostrar a vista maravilhosa da sua infância privilegiada em frente ao mar. Sucumbi diante da sua concepção de felicidade e das memórias que iluminavam suas palavras e me conduziam para um novo sentido. Fugi de mim para ir ao seu encontro. Corri ferozmente como um animal faminto em busca da minha outra parte. Vi as ondas dos meus cabelos pelo reflexo do mar que agora sentia-se ensimesmado com a minha chegada. Pulei nas águas que antes eram suas e despojei minhas cinzas que permaneciam em seu mar. Toda essa beleza, construída pelos vocábulos magníficos que você colheu nos livros que leu uma vida inteira, morreu. Durou o tempo de um mergulho nas águas quentes da extensão da sua importância. As cinzas dos dias que passamos juntos foram jogadas sobre o mar que você tanto idolatrava. Confesso que fui inundada por enorme despeito ao pensar que aquelas ondas banharam seu corpo por tão longo tempo e o viram crescer antes de mim. Eu as tinha somente agora, como uma ninharia que recebi ao concordar em despejar o resto de nós num território tão bem conhecido por você. Eu detestei aquelas ondas por alguns segundos, elas coordenavam o meu pó entre suas idas e vindas descabidas. PAREM! Deixem-me aquietar num canto. Meu desejo, minha ordem, é permanecer próxima à superfície que mantém meus 10


anseios ilusoriamente controlados. Mas elas desdenharam de meu pedido e me deixaram à margem de sua crueldade, levando-me de lá para cá. Ouvia, ao longe, a ironia do seu sorriso largo quando elas brincavam com o que restou de você. Na primeira vez que sangrei por nós, você afundou meu pé naquelas águas salgadas e assegurou que eu jamais seria arrebatada por nenhuma outra moléstia. Percebi sua respiração confiável como garantia de que estaríamos sempre unidos pela devoção que tínhamos um ao outro. Este era o prenúncio do fim que só se perceberia no término de nós. Enquanto você era apenas um desejo, eu morava na inexistência perfeita que é a fantasia de amar. Tão logo, sua empáfia fez com que eu olhasse para minha finitude diante da vida. Você me ensinou a morrer e a ficar presa ao movimento que éramos nós dois juntos. Sou uma mulher de ausências. Eu tranquilamente descia os degraus da memória que me conduziam a um profundo isolamento. Você nunca esteve lá. Eu me ausentava, mas nunca partia. Emergi à dimensão do meu próprio horizonte. Senti compaixão pela chave da nossa casa largada numa mentira. Meu corpo se despediu soltando um grito desesperado, intensificado pela loucura que era estar com você. Você desabitou meu corpo sem que ele tivesse tempo de aprender a ser inteiro novamente. Chamem a mulher do cais, gritavam os homens no dia de sua partida. Eles nunca souberam o meu nome. Você nunca o pronunciava publicamente, a mulher do cais era a sua novidade. Eu quase esqueci como me chamava. Tinha medo de suas partidas. De todos os meus amores passageiros, você foi o mais duradouro. Declaro que nunca mais amarei nada, coisa alguma, nenhum pedaço de gente, muito menos algumas palavras. Morri feito um peixe distraído, engolido por uma gaivota ávida. Dias que me restam serão ocos, solitários, devaneios me visitarão para lembrar que um dia tive vida. Morra! Morra de vez e leve um pouco da disritmia da vida. Você afundou minha existência. PARE! Não quero mais lembrar de nenhum dos segundos que dediquei a nós. Eu desejei ter uma memória fraca. Encontrei o resto de mim do outro lado da ponte. Não perca o seu tempo envaidecendo o pó de sua pele com este lamento fictício. Não era sobre você. Era sobre mim. Sempre foi. Só percebemos aquilo que queremos, percebe? Corri naquelas águas possessivas. Perdi o fôlego por instantes, mas o meu silêncio, ninguém percebeu. Decidi que jamais nadaria novamente.

caroline margoni é roteirista de séries de TV, a caminho do primeiro longa-metragem. Seu primeiro contato com a literatura foi pela leitura e depois pelos estudos. A paixão pela palavra foi o que a levou a encontrar a escrita. Para ela, escrever é estar mais próxima da vida.

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o vereador claudio brites

Pessoas empaladas à beira da Marginal. Ou melhor, à beira de todas as vias. Recém-empaladas, de preferência. Pingando bile e verniz carmim, como costuma dizer você, Abigail, quando naqueles dias. Verniz carmim respingando enquanto estrebucham ainda. Abigail cai sentada na poltrona com os cinco dedos tocando o peito só com o salto das pontas, a boca afetada aberta como os olhos num círculo torto. Como posso falar essas coisas? Onde minha imaginação anda comendo para defecar assim aos cantos? Defecar, só Abigail para usar defecar, ninguém fala mais isso, nem médicos. Mas ela canta que defeco, defeco minhas tolices e, o que é muito pior, segundo ela: as escrevo. Digito com todos os pormenores que a burocracia e os protocolos parlamentares exigem e as envio assinadas e copiadas em três vias à câmara de vereadores. Ela não entende, não entende que são tempos difíceis, que exigem atitudes tempestuosas, que um vereador que se preze, eu repito à Abigail, não pode ficar aprovando nomes de praças, feriados novos, temos que agir e o trânsito, você sabe Abigail, o trânsito é a hipertensão desta cidade. O meu coração que não suporta esse tipo de besteira, falam de mim, que sou aquela do louco. E agora essa? Empalar? Isso vai melhorar o trânsito? Imagine o fedor, os urubus. Há muitos urubus em São Paulo competindo com os moradores de rua. Talvez precisemos de uma gaiola pública, Abigail pondera. E desde quando moradores de rua comem carniça? Eles comem melhor do que você, Abigail. O prefeito sempre aprova um quarto novo, um prato nutritivo, não são como nós, querida, que só comemos arroz e lentilha. Não quero mais, Abigail, não aceito mais ver o povo parando, ou quase, indo um pouquinho devagar só para espiar um motoqueiro caído no acostamento, um pedestre atropelado. Não podem ver o brilho de uma sirene, seja lá de que corporação for, desaceleram, sabe, esperando ver uma tripa, uma obturação qualquer, ou um cidadão sendo esculachado. E filmar, mandar para mídia. Todo mundo quer ser repórter, Abigail. Depois aceleram, como se uma bicada fosse o suficiente, os carniceiros. Pois bem, Abigail, pois bem: empalaremos pessoas à beira das avenidas, das estradas, até que se sintam saciados, acostumados com o branco dos olhos empurrados pela madeira que subirá dos rabos. Ela se joga no sofá com as pernas quase abertas, não pode ficar saudável num mundo doente. A satisfação soa um crime. A felicidade uma falsidade, até canastrice. 12


O pessimismo é o único estado de espírito moralmente confiável. A angústia, o indício de que ainda sou humana. Acho que a única luta que resta é contra a ignorância e aquela tristeza que nos deixa letárgicos. Ou não, talvez deva me entregar para corrente, mergulhar na virtualidade dos prazeres rápidos, do entretenimento infinito, das relações e dos desejos descartáveis. Levar como der. Aguardar o corpo ceder, já que o suicídio pede certa esperança. Há beleza, existencial Abigail, há beleza no que você diz, mas não há praticidade. Não estou falando de esperança, superávit ou licitação, estou falando de solução Abigail, resposta. Hemograma completo, taxa de glicose medida e não curandeirismos. Era sábado quando tirei o sono de Abigail pela última vez, fiz seus calmantes parecerem jujubas. Ficou a noite inteira com calafrios por minhas ideias, chamando por Deus. Deus e Deus. Estou cansado, sabe, Abigail? Ficar vendo aqueles adesivos sem criatividade, no para-choque dos caminhões era tolerável, havia certo estilo, mas agora... Não há como escapar, vem a lentidão e o único jeito é se distrair lendo que Deus é fiel. A quem? A quem diabos ele pode ser fiel? A mim que não é. E se é fiel a tanta gente, como podem refutar meu projeto de lei aprovando a legalização da poligamia? Como podem adorar um deus que é fiel a todas as marcas que rodam por aí, quase um Pã do automobilismo, e não aprovar a oficialização dos desvios mais humanos? O ménage, Abigail, o ménage é tão popular, tão praticado, qualquer menina de quinze já se aventurou a três – se não mais. E na vida prática, nessa feita de bingos e parcelas de crediário, Abigail, a poligamia é um estado natural da identidade, você sabe disso, com seus olhos frouxos, sabe. Sei que tem imprimido nas suas costas a linha de mãos que não são as minhas. Também haveria nas minhas outras digitais se a única atividade a qual me dedico não fosse pensar, encontrar nesse novelo que é a sociedade uma ponta que nos livre a todos, até aos seus amantes, querida, desse sufoco que você fala, dessa lentidão desnecessária. Do que é feita a porra que explode na sua boca? Você grita. E sua língua, do que é feita? Qual o valor de bradar se ninguém ouve? E mesmo que ouça, qual sentido tem o brado de alguém que não ecoa? Do que adianta chorar os oprimidos e oprimir, lamber o desapego e colecionar sapatos? Não entendo, Abigail, não entendo porque votam em mim, porque insistem em aprovar minha presença. Eu que não suporto a meia-verdade, que acredito na ação. Somos uma massa, um entrelaçado de veias e credenciais com fotos três por quatro que nos enquadram na moldura do padrão, da regra sisuda e disfarçada de imparcial. Ninguém ama igual, Abigail, nem a Lei, ela tem preferidos, acariciados, a ceguinha sabe apalpar quem tem o caralho maior, meu bem. Todos os dias você bali quem é, sabe com quem está falando, mas não é ninguém, não sabe nem definir sua cor, assinalar um xis na sua etnia e quer parar a praça, dar nome pro manifesto e voltar pra casa, dormir de meia aquecido por seus peidos. Pare, pare já, antes de continuar rascunhando palavras de ordem que não dão ordem nem para você, me diga, do que é feita a porra que explode na sua boca no meio da avenida? E sua língua, de que árvore que ela vem? Cuidado, do mesmo modo que há obras póstumas, existem homens póstumos, com palavras morto-vivas, baseados em falecidas convicções e uma visão baça do mundo. Bati à porta. Sábado, nós sempre ficávamos conversando até mais tarde: ausência de responsabilidades matinais. Não éramos de igrejas ou clubes. Mas ela gostava de dormir, seu sono de oito ou doze horas, mas nesse ela não conseguiu ir além das quatro. Ficou borbulhando empalação para cá e lá. Porra e porra. Na terça 13


entreguei o texto com a proposta, uma forma de melhorar a circulação de veículos em nossa cidade. Na quinta telefonaram. Quando disseram que o secretário queria conversar comigo, pensei implorar só por um não, só. Não suportaria mais sermões prolixos e sem sentido. Lembrei da proposta de incineração pública – permitiria o descarte voluntário de cidadãos que não queriam mais fazer parte da sociedade: velhos, falidos, um harakiri limpo e menos cerimonioso. Abigail até achou graça, pensou em nossa vizinha, a dona dos gatos, sendo carbonizada ao meio-dia, sob o olhar de seus chaninhos insuportavelmente excitáveis. Não aprovaram. Em uma sala verde, Abigail ao meu lado, invisível, segurava minha mão – ainda naquele tempo ela acreditava. O sermão foi longo, falava sobre limites da liberdade de expressão, sanidade, decoro. Alguns jornalistas propuseram minha cassação, houve quem atacasse pedras no carro. Comprei um helicóptero. Mesmo diante da possibilidade em tomar outro sermão, não implorei, talvez, no fundo, ainda tivesse fé em mim, na esperança de que Abigail se desfazia. Agradeço o convite do secretário. Ela desejou o pior, esperava que dessa vez alguém me calasse, já que seus beijos, ou mesmo sua boceta não eram suficientes para me sufocar. Tentei rir, mas me sentia apreensivo, e se essa fosse minha chance, poderia tentar um lugar melhor dentro do partido, me candidatar a deputado, prefeito. Vereador, Abigail, vem de verear, que tem a ver com vereda, que é um caminho estreito, ou seja, vem de via, sabe? A sala tinha uma parede magenta atrás da mesa do secretário, quem conversava com ele tinha os olhos apimentados e não dormiria diante da sua voz de bicarbonato. Na parede um único quadro, um menino tem sobre si um fardo. Feito de juta, fedendo a gatos mortos. Vai indo opaco, mesmo o peso, o cheiro, nada o tira daquele estado reto de andar pela via. A estrada está quente e ele descalço. Alguns carros passam, Abigail, mas só uma menina sem idade para entender aprecia o caminhar do menino, quase parado diante da velocidade das rodas. Aprovado e colocado em prática imediatamente. Assim, sem nenhum tipo de cerimônia, o homem sussurrou a notícia: o prefeito aprova a ideia que deve ser colocada em prática imediatamente. A Secretaria de Transportes já identificara o problema, câmeras, centenas, comprovavam: o nó do trânsito não provém dos acidentes em si, mas da curiosidade e, algo que não tinha me ocorrido, da necessidade de se prestar atendimento aos acidentados. Perícia, limpeza... Cinto de segurança, sempre foi uma grande besteira, cagávamos para mortes, entende? Mas acidentes criavam trânsito, corpos pela pista e a sujeira era um transtorno. Com o cinto, ao menos, tudo é compactado e a lata de sardinhas removida. Fora o dinheiro das multas, multas são a grande compensação. Com vosso projeto, com a pontual, foi esse o adjetivo que ele usou: pontual. Com a pontual ideia de trabalhar a insensibilização à violência, todos esses problemas serão resolvidos. Logo não perderão seu tempo espiando, ou desviando, logo não precisaremos limpar nada, ou mesmo socorrer. Economia e endurecimento do caráter do cidadão. Ganham todos, cofres e escolas. Fiquei muito comovido com a ampliação de minhas ideias e poderia ter chorado algumas lágrimas se não tivesse lembrado você, Abigail, o que me fez sorrir, você não acreditaria. O povo foi conquistado logo, o argumento: as áreas de empalação seriam figuradas por criminosos responsáveis por crimes hediondos. Eu propusera o uso de voluntários, o mesmo grupo que delimitei para o projeto de incineração, mas o novo complemento me agradou, melhoraria o trânsito e seria alternativa para o esvaziamento das instituições carcerárias – que há muito praticavam o envenenamento coletivo, não voluntário. E os empalados, Abigail, sabe, um toque cristão na lei, confesso, será 14


proibido encará-los ou configurará infração leve, eles usarão o argumento de decoro fúnebre, mas na verdade é uma forma de lucrar e compensar o gasto com o processo: madeira, boa madeira, carrasco, garis especializados. Por que não usam ferros? A madeira tem os filamentos, o corpo não escorrega, eu acho. Abigail fumava, ao menos eram pedófilos, sonegadores, mas não escondia sua preocupação: e quando eles acabassem? Sabe quantos quilômetros pavimentados temos? Mesmo que um corpo fique a cada dez, ainda é um tanto. Resolvem, Abigail, você se preocupa com tudo por demais, só coloca defeito, diminui minhas atitudes. Abigail faz um som com a boca, um tipo de arroto de deboche. As pessoas vão perceber, é tudo um absurdo, o trânsito não vai melhorar, ao contrário, ficarão todos chocados, você profetiza. E erra, erra como Nostradamus. As pessoas não só aceitaram como se adaptaram. A violência virou assunto chato, a morte música de elevador. Os índices de medição de assassinatos foram abandonados. A televisão teve que se adaptar, ninguém mais queria programas sensacionalistas, exigiam pautas com algum conteúdo, falar de cultura, de arte. Jornalistas que só sabiam gritar o que liam, ou gritar sem ler foram empalados, as pessoas queriam transcender. E fomos além, Abigail, os criminosos também perderam gosto pelo verniz carmim e se converteram. Nesse tempo Abigail já andava sumida. Após a liberação da poligamia, colecionávamos parceiros em casa. Até nos banhávamos e às vezes Abigail chupava meu pau. Comecei a entreter um grupo de senadores com minhas piadas sempre acertadas, mesmo governador eu não perdia aquela humildade de alguém que quer ver o mundo bem. Um jovem, com uma gravata amarela chegou perto e me cumprimentou, havia estudado minha biografia na quinta série e agora era um vereador no segundo mandato. Sua proposta, recentemente aprovada, resolvia a escassez de empalados: um sorteio semanal de cepeéfes trará certo drama para a empalação, resgatará sua força inicial. Quando contei para Abigail ela riu peidando, eu nunca seria presidente, nunca, o garoto provava que a estupidez não tinha fim. Logo todos se chocariam com os empalados, quando começassem a ver à beira da Dutra um parente qualquer, mesmo um primo distante. Você se lembra de decapitações, do Coliseu, Abigail, mas olha errado pra tudo: as pessoas nunca cansam de ver a morte, o sangue nunca bastará, queremos ver intestinos expostos, ouvir ossos quebrando. Você não chegou ao ponto, Abigail: enforcamentos eram diários, romanos tinham seu show semanal, mas aqui, querida, na beira da estrada, a morte estará a cada poste, quebra-molas. E sempre haverá alguém, como esse jovem vereador, para renovar. Digo isso na certeza do tempo que vai indo, querida, esse tempo em que o meu ser insiste. Esse tempo com um pouco de dor, mas, acima de tudo, impregnado de clareza, Abigail quero dizer, olhando daqui, daqui de cima, percebo que ninguém me olha, a cento e vinte, cento e quarenta quilômetros por hora as pessoas nem um relance jogam para essa situação, não, só passam, sem frear, Abigail, até você, aposto, nem me nota.

claudio brites

(1983/SP) é editor na Terracota Editora. Formado em Letras, Mestre em Linguística, atualmente cursa graduação em Psicologia. Apoiado pelo ProAC 2011, publicou o romance Talvez em 2013. Facebook: /claudiozedbrites Twitter: @claudiobrites

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no beco daniel osiecki

Às cinco da manhã quase todos os freqüentadores já haviam saído. Restavam ainda o dono do bar, duas atendentes e três ou quatro testemunhas que presenciaram o início da discussão. Os homens da polícia civil se dividiam em tarefas pelo bar e arredores. Alguns tiravam impressões digitais, outros interrogavam possíveis testemunhas que ainda ficaram no estabelecimento. No bar mesmo não havia nenhum sinal de violência, um ou outro copo quebrado, algumas garrafas pelo chão, mas nada que indicasse violência. Os presentes só sabiam que houve uma discussão e logo em seguida o assassinato de um rapaz, 21 anos, quase em frente ao bar, na esquina com a Saldanha Marinho. Na calçada estava a mancha de sangue. O corpo estava coberto com uma lona preta da polícia civil esperando chegar o furgão do IML. Com certeza muitas ocorrências na madrugada de sábado. Ao lado do corpo senta-se um rapaz, muito abalado, que diz ser amigo da vítima e sabe quem é o assassino. Dr. Paulo, o delegado encarregado, pede que alguém traga logo algum calmante e água pois precisa interrogar a testemunha. — Guri, você está bem? Está em condições de dar seu depoimento? O rapaz levanta-se lentamente com a ajuda do delegado,enxuga as lágrimas e olha em direção ao corpo. — Sim, faço questão de entregar o filho da puta que matou o Beto. — Ok, muito bem – o delegado pega seu gravador e bloco de notas. – Então, como tudo começou? Quando saímos de casa não sabíamos onde ir. Saímos meio que sem rumo, saca? Andamos pela vila pra ver se tinha alguém por ali, mas tava tudo meio morto. Andamos por um tempo antes de pegar o ônibus. A gente queria queimar um... ah! Que se foda, vocês não vão me prender mesmo. A gente queimou uma erva e fomos pro ponto. 16


Pegamos o São Francisco na Cascavel perto das 23h30 e fomos até o terminal do Hauer. Esperamos o ligeirão uns cinco minutos e fomos pro centro. Descemos na Carlos Gomes. No Largo encontramos uns camaradas e viemos pra cá. — Que horas? Já eram meia-noite e pouco, por aí. Aqui encontramos mais uns conhecidos e ficamos bebendo. O Beto tava meio chapado. Misturou erva e cerveja. Eu também misturei mas não fiquei alterado. Eu não tava no clima, saca? Tava tudo normal, sem treta, tudo na boa, todo mundo curtindo. Aí chegaram uns caras fazendo barulho, falando alto e mexendo com as gurias. Logo reconheci um deles, Orlei, mecânico, lá da vila também. Ele tava completamente bêbado e de cara percebi que ele queria briga. O filho da puta mexia com todo mundo, esbarrava de propósito na galera que jogava sinuca só pra arrumar uma briga. Foi nessa hora que ele me viu. Viu eu e o Beto no balcão. Já veio pegando nossa cerveja e agradecendo porque a gente tava pagando pra ele. Eu não disse nada, não queria treta pro meu lado, saca? Mas o Beto já tinha bebido três ou quatro cervejas a mais que eu, e ainda com a bomba que a gente queimou na cabeça, não gostou nada daquilo. Começou a chamar o Orlei de folgado filho da puta, babaca do caralho, pague a tua cerveja e tal. O Orlei é foda, briguento pra caralho, arruma encrenca toda semana lá na vila. Enche o cu de cachaça e parte pra porrada sem motivo. Os dois começaram a discutir, mas o Beto é... era baixinho, e o Orlei é alto pra caralho. Começou a dar porrada pra valer no Beto. Porra, ele tava indefeso, não parava em pé. Depois de deixar o Beto sangrando no chão, o Orlei chamou um cara que tava junto com ele... — E esse cara quem é? Você conhece? – O Delegado Paulo pergunta oferecendo um cigarro. Não, nunca vi esse outro. Caralho, tô passando mal! Bem, os dois pegaram o Beto, o Orlei agarrou ele pelo cabelo, o outro segurou pelo pescoço, tipo um mata leão, e levaram ele lá pra baixo. Fui correndo atrás, eu e mais gente do bar. Aí só deu tempo de ver o Orlei tirar uma faca da cinta, dar mais umas porradas no Beto e enfiar a faca na barriga dele. Puta que pariu, agora ele tá aí, morto! Caralho! O canalha tirou a faca daarriga do Beto, olhou pra gente, riu e foi embora andando com o outro cara pela Saldanha Marinho. O filho da puta mora lá no fim da Rua Cascavel, no Boqueirão, bem na frente do ponto de ônibus. Mecânica Brasil. Com certeza ele vai saber que fui eu que entreguei ele, mas que se foda. Não tenho medo. O delegado registrou o depoimento do rapaz e o encaminhou para uma viatura da polícia civil. Os agentes do IML recolhem o corpo de Beto já com o dia amanhecendo. A atmosfera na frente do bar ainda está pesada, insondável, com resquícios de uma noite trágica. Levemente um e outro raio de sol começa a iluminar o local do crime. Ruas ancestrais repletas de vozes. Vozes dos becos, dos côncavos da rua, das sarjetas da cidade. O delegado olha para a mancha de sangue naquela encruzilhada sinistra e sente a chegada do dia.

daniel osiecki nasceu em Curitiba, em 1983. É professor de literatura, crítico literário e editor regional da flaubert. É colunista do Jornal Relevo, de Curitiba. Publicou o livro de contos Abismo (2009) e mantém o blog Távola Redonda (www.novatavolaredonda.blogspot.com).

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da própria carne À memória de Dércio Marques

dênisson padilha filho

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— Padre, eu pequei. — Imagino que sim. Se não, não viria. — É... sabe? Mas não foi assim, tão simples. — Também imagino que não, os pecados nunca são simples. O que houve? — Verdade, padre. Mas o meu, se descobrissem, me matariam a pauladas; pelo menos... aquele povo... — Filho, seja direto. O que você fez? Precisa me dizer. Compartilhe sua dor, se não Deus não pode te ajudar. Salvação e confissão do arrependimento devem andar juntas. Qual é o seu tormento? — Eu buli na mocinha do circo.

2

O céu era de um azul atrevido e, por mais absurdo que pareça, convidava todos a mergulhar. Ninguém com um mínimo de saúde nos olhos mirava aquele céu sem ter vontade de ir até ele, afundar. Todos transitavam com uma alegria até algo estúpida; mas, mesmo assim, todos riam, insistiam com as gentilezas, porque o lugar naquele dia acordou pra ser assim, radiante. Os sanhaços trinavam de beiral em beiral, nas casas. Há quem diga que um dia, quando nasce assim, tende a acabar assim, uma alegria só. Foi nisso que ele acreditou quando viu o circo chegar. Avistou a moça, que chegava ao larguinho de capim ralo, trepada na grade de um dos caminhões. Saltou pro chão, lépida, viçosa, cheia de frescor, como quem ama viver, como quem tem no circo, na sua bicharada magra, nas ferragens, cordas e lonas, a razão de tudo. Queria brincar, correr a área ainda sem o acampamento montado; mas um velho a convocou, acabando com seus rodeios. “Vamos, pra amanhã ter estreia.” E o homem sentado num caixote velho, à sombra do boteco, com mais dois desocupados, olhava a mocinha. Ela fazia o vestido dançar, seu estampado já ruço ressuscitava; aliás, tudo ressuscitou naquele largo sonolento, porque a mocinha era um doce de se olhar. Magrinha, como só a vida na estrada faz a gente ser, braços longos e cheios de vontade, descalça, cabelos escuros, soltos, onde só uma presilha 18


de madrepérola figurava na lateral. A pele, desobediente, ignorava o sol rotineiro, era branca e luzidia. E mais caminhões e carros chegaram e muito mais gente colorida; mas que importavam os demais? O circo já havia chegado, a alegria era ela.

3

— A carne é treva e dor, filho. Fale que mal causou a si. — Eu não queria. Era só pra ficar apreciando, feito todo mundo; mas não dava, queria ver o que ela fazia no circo, chegar perto dela. — Mas não se chega ao fogo sem que se consuma em suas chamas. — E o circo ficou pronto. Passaram aquela tarde e mais inteirinha a noite montando tudo. E foram mais de vinte dias, né, padre? Esse povo aqui... E eu todo dia caminhei pra lá.

4

E chega uma hora em que ninguém mais existe à beira deles, só eles. E tocam a aprontar tudo, e mais uns dois – deviam ser os palhaços – já vinham botando carne pras feras, e uns fardos de capim pros cavalos. Mais pra de noite, ela entrou, afundou nas lonas, foi dormir, na certa; e o homem não a viu mais. Dia seguinte ele foi ver a coisa armada, uma armadilha. O circo estreou, os primeiros dias correram, o homem não perdia a última sessão. Ela fazia monociclo com malabares, mais dois irmãos. “Você vem todo dia, eu já vi.” O coração saltou com aquela voz; ela na bilheteria, atrás duma gradinha miúda. No circo todo mundo faz tudo. “Eu venho pra ver você.” Não hesitou, hesitou; mas a fala saiu e ela deu o troco, sorriu e “boa sessão.” Estava dito, pronto.

5

— Ali eu pegava o troco pela janelinha, e meu dedo tocava a mão dela. Mas o bom nem era a sessão, nem o número de malabares que ela fazia, nem a bilheteria, padre. O bom era a uma e meia da tarde. Ninguém perdeu nada lá pro lado do circo, àquela hora. Só mesmo a meninada, que ia ver os macacos e as feras na jaula, e eu, que ia ver a moça. Fiquei lá, na sombra, olhando o vaivém dela. O senhor me viu um dia ali, padre. — Eu passava por ali, volta e meia, sim. Mas, diga, onde reside sua falta? — Aí, um dia, ela desceu a campina com aquele cachorro bonito deles e foi pro rio; entrou n’água de vestido, e eu fiquei na moita, querendo... — Abra seu coração, filho, confesse sua fraqueza. — Querendo entrar no rio, entrar nela... Ela saiu, foi num ipê-amarelo, olhou prum lado e pro outro, tirou o vestido e torceu. Eu nem sei o que digo agora, padre, porque ela era de uma beleza... E limpa, sabe? Aquilo que ela fez foi sem maldade. Depois, sacudiu os cabelos, ajeitou a presilha de novo e subiu de volta.

6

Nada foi o que pareceu pro homem. “Eu vi você na moita me olhando. Cuidado que Veludo é brabo.” Um anãozinho trouxe aquilo numas letrinhas destreinadas. 19


Ele gelou na hora. E ele na bilheteria de novo e sempre, pondo a mão na fenda, roçando o dedo na mão da moça. Saiu a lua cheia. A rua é dos desocupados. Segunda-feira não tem sessão. Veio de lá o anão caminhando com Veludo na coleira, passou pela pracinha, pelo homem no banco. “É lá atrás dos macacos, vai agora. É lá nas jaulas.” Foi assim a mensagem, curta e cifrada. E o anão saiu andando, a encarnação do maugosto sobre a Terra; quase um marreco, coitado, e Veludo junto dele. O homem demorou a crer, mas foi; as calças apertando já. Varou a área toda e chegou às jaulas. A bicharada ressonava. Atrás da chapa de fundo da jaula, ela, toda pintada de lua, e a presilha reluzindo. “Pensei que não recebeu o recado. O que quer de mim, quer seguir com o circo? Eu quero um homem pra mim.” Ele pulou pra ela, agarrou aquela cintura, ela derreteu. A macacada acordou indócil, numa fúria, querendo também.

7

— Manhã seguinte, padre, até vi que ela entrou aqui pra se confessar. Aí eu vi o tamanho do meu pecado, porque ela vinha sempre... Quase toda manhã ela entrava.

8

E, depois daquela lua, foi sempre lá, na sombra do ipê-amarelo, lá no rio. A mocinha do circo levava Veludo e o amarrava, cinquenta metros longe. Era quase toda uma e meia da tarde, eles lá, deitados. Veludo na vigília. A mocinha gemia, viciada no homem já na idade de seu pai. Ele, consumido com a beleza dela, naquela fúria de macaco, cachorro louco, formigando na face, espumando. E Veludo na vigília, cinquenta metros lá longe.

9

— O pecado sobrevive em nós. Não podemos querer que ele suma da Terra, se o abrigamos em nossa carne. — Eu sei, padre; e minha dor é por isso. Porque eu vejo que a vida que ela leva é isso de correr mundo querendo ter um homem pra ela... E o pior é saber que qualquer um, que logo percebe essa vontade, pode se deitar com ela. Tudo que ela tem é essa vida de poeira e lona de circo, e tudo que eu fiz foi ajudar a mocinha a se deitar com mais um homem. Tudo que eu fiz foi me valer dessa fraqueza dela. — Pra alimentar a sua. — É, padre. Estou ferido de culpa, porque via que ela sempre se confessava; eu via quanto ela queria sair dessa lambança; todo dia eu via e, mesmo assim, bastava dar uma e meia da tarde, e lá ia eu. Ela até falhou dois dias, e, no lugar de eu ficar alegre, fui lá de noite, na gradinha da bilheteria, dizer coisa, assanhar sua fera e a minha. Isso me mata por dentro, porque eu sei que lá adiante, onde o circo tá agora, alguém já olha pra ela e logo vai ver que é possível se deitar mais ela num beirario. E isso eu ajudei a fazer nos quase trinta dias do circo por aqui. Amanhã, ela é uma mulher, e Deus sabe se ela vai arrumar o homem que tanto quer, porque ela se deitou com meio-mundo de homem, sonhando com um que pudesse ser o seu. Deus sabe se ela vai arrumar esse um. Bonita daquele jeito, quem não vai querer? 20


Mas, aí, ela sorri no olho do primeiro e ele carrega ela pro areião e depois vem outro... Mas nenhum segue no circo. O senhor perguntou qual o meu tormento... pois é isso, padre. Porque ela é de uma beleza de matar por dentro... — Matar de parte a parte, não é? — Sabe o que mais me dói, padre? É saber que, se o circo voltasse, eu ia lá de novo, mexer com ela. O senhor acha que Deus me perdoa por isso? — Sem arrependimento, como pode haver perdão? Sem renovação? A carne só traz desespero e morte, filho. — Pois é, padre. Estou assim, consumido, mas não sei se arrependido. Talvez eu possa esquecer essa moça um dia, mas se ela voltar, não sei... — Melhor abrandar seu desejo, porque, como toda perdição malcurada, passado um tempo, o circo pode voltar. — Preciso de conforto, padre. — Vá em paz. — E eu rezo o quê? — As orações são as mesmas; a humanidade já conhece. Reze as que preferir. E o homem se foi. “Hoje não tem mais confissão. Voltem depois.” E o padre voltou pra sua caverninha de mogno. Uterozinho de madeira; o padre lá sozinho com seu segredo, sua vergonha. A dor veio com aquela escuridão maior. O sangue correu em silêncio, tingindo mãos, pulsos e a presilha de madrepérola, agora caída no chão. “O pecado sobrevive em nós. Não podemos querer que ele suma da Terra, se o abrigamos em nossa carne.”

10

O céu era de um azul atrevido e convidava todos a entrar em suas águas, mas naquela manhã nada inspirava inocência, a não ser o ipê-amarelo da beira do rio e os sanhaços, que trinavam no beiral da igrejinha.

dênisson padilha filho

(1971) é baiano, escritor e roteirista de audiovisual. É mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia. O presente conto integra seu livro mais recente, O herói está de folga (contos, 2014). Publicou também Menelau e os homens (contos, 2012), Carmina e os vaqueiros do pequi (romance, 2003) e Aboios celestes (contos, 1999).

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cordeiro

elieser cesar

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Essas cordas me arrebentam. Na quarta-feira estarei com as mãos esfoladas, os dedos inchados pelos socos que dou; os olhos roxos pelos murros que recebo. Já estou acostumado. É sempre assim, pancada que vai, pancada que vem. Ninguém liga para o que acontece nas cordas, salvo quando a confusão é com os mauricinhos e as patricinhas que ficam do lado de dentro. Se eu não ficar atento, apanho de folião pipoca - desses frouxos, do lado de fora, que batem e saem correndo, e só batem quando estão em grupo. Sou cordeiro. Não desses cordeiros amansados pela religião que apanham e dão à outra face à porrada. Faço parte do enorme lumpesinato do carnaval e, muitas vezes, me comprazo em bater em meus semelhantes, os lenhados que se espremem para brincar fora das cordas e sonham com os camarotes. Não me importo com o trabalho. Preciso ganhar alguns trocados e é só. Não há lugar para falso moralismo com o estômago vazio e as contas a pagar. Já perdi muito na vida, empregos, mulheres, dinheiro, oportunidades que só se repetem para que a gente falhe novamente e fique ainda mais azucrinado. Só não perdi, por pura sorte, a vida e o gosto de viver. No fundo, é o que conta. Vivo puto da vida, mas vivo. No ano passado, perdi seis dentes, defendendo uma loira de um bloco pra lá de caro do assédio de um grupo de travestidos. E o que ganhei em troca? Nada. Nenhum obrigado, valeu cara, foi massa, bacana mesmo, cê é dez. Nada disso. Até parecia que eu era o segurança particular da vadia. Estudei pra isso? Estudei, no vou negar. Cheguei à faculdade. Porém, as más companhias, as farras, o álcool, a maconha e, depois, as drogas pesadas, me afastaram do caminho promissor de um pequeno burguês assalariado, com mulher e filhos, um monte de contas a pagar no final do mês e a certeza anestesiante de que aquele era um exemplo a seguir. Porém, os sonhos e os projetos abortados da juventude ficaram para trás, com os livros e o papo cabeça com os intelectuais de meia tigela; aliás, de meia, não, de um quarto de tigela. 22


Não faço mais plano nenhum. Não projeto futuro algum. Vivo o presente, sem ilusão como um condenado à véspera do pelotão de fuzilamento. E o meu presente é este, o de cordeiro, batendo, apanhando, empurrando, sendo empurrado, com sede, com fome, de água, de pão, de mulher gostosa, dentro e fora das cordas, mais dentro do que fora. Estudei pra isso? Não importa. Preciso de trinta reais, por dia; cento e oitenta em seis dias de folia, numa festa que não é minha. Não me queixo. Estou vivo. Se tive e perdi, mereci! Meus companheiros são simples, carentes e brutais, como Joaninha Mão de Homem, também cordeira, que sabe bater de soqueira, quando o caldo entorna, e Tavinho Pavio Curto, capoeirista e boxeador nas horas vagas, meus dois amigos nas cordas e fora delas. Joaninha é sapatão e mora com uma estudante, uma dessas feministas tabacudas, que abominam o domínio do macho, mas se deixam explorar ainda mais por um gigolô do mesmo sexo. Tavinho ganha a vida como segurança de clubes GLS e também sabe explorar, sem piedade, toda a fauna carente de veados, lésbicas e simpatizantes que não são mais do que bichinhas enrustidas, gravatas coloridas no armário.

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Só um pacote de biscoitos e um litro de água. Foi tudo que nos deram até agora, neste calor dos infernos. Enquanto isso, os bem-nascidos se esbanjam na cerveja, no uísque e na cocaína que rola farta em um dos carros de apoio. Pra disfarçar o consumo, o cara finge que vai ao banheiro, de onde volta a mil, disposto a engolir a folia. Muitos ladrões se empregam de cordeiros pra roubar. Roubamos babacas e escapolem com mais dinheiro do que ganhariam em pequenos bicos durante seis meses. Eles vêm em turma. Quando o bloco passa por um local mais apertado, um deles sai das cordas e arma uma briga. Os demais aproveitam a confusão e saem distribuindo socos e pontapés, roubando relógios, correntes de prata e de ouro, carteiras de cédulas, telefones celulares. Depois vão para o fundo das cordas como quem não fez nada. O golpe funcionava melhor antes da polícia instalar câmaras eletrônicas pelo circuito da festa. A prática se tornou mais difícil depois que os telejornais divulgaram imagens das gangues que agem dentro das cordas, o que levou a direção dos blocos a exigir atestado de antecedentes criminais dos candidatos a cordeiros Sem falar nos policiais à paisana dentro das cordas, contratados para dar segurança aos barões. Mas, a medida não foi suficiente para acabar com o crime, pois a maioria dos cordeiros tem bons antecedentes e, como se sabe, a ocasião faz o ladrão. O cordeiro autêntico tem uma vontade enorme de estuprar as gostosinhas que passam toda a festa numa chupação desenfreada, num esfrega-esfrega vertiginoso, numa bolinagem impetuosa, inflamadas de desejo e com o sexo em chamas. A cada momento, elas são bolinadas, comidas, violentadas, requestadas, cobertas de sêmen e torturadas na cabeça destes homens rudes. Não vou mentir: também quero tirar a minha lasquinha nas grã-finas. Pior do que a sede e a fome é suportar o barulho; a música feita para entorpecer o espírito, para a perpetuação da estupidez, a disseminação da burrice, a hegemonia da mediocridade e para encher o bolso de uma indústria que sobrevive de fazer os bestas rebolar e requebrar, quebrar e rebolar durante o ano todo, numa orgia permanente e galopante de batuques e molejos. Será que essa gente não sabe que vai envelhecer e que a carne rija vai virar canjica, o sorriso murchar na flor nos 23


lábios emurchecidos e a euforia passageira se converter em triunfante depressão? Tenho uma recaída pelo intelectualismo filosofante do passado e cedo ao arroubo existencial em meio ao barulho ensurdecedor. Ao menos tento preservar minha individualidade ou o que restou de minha sensibilidade de outrora, se é que meu espírito ou o pouco que dele restou, não foi contaminado pela miséria do meu tempo. Logo me convenço de que não vale á pena lembrar o passado. Que o pagode arrebente meu cérebro, estoure meus tímpanos, entorpeça minha mente, embote meu raciocínio, tome conta de tudo. Ò siririco, ò siririco, vá tomar em seu furico. Porra de vida!

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Até mulheres grávidas (claro, sempre as negras), trabalham nas cordas. Já vi uma levar porrada e abortar na rua mesmo. Fui falar com um segurança, que falou com um diretor do bloco e ouviu que o problema era com o SAMU. Não estivesse em desvantagem numérica, teria quebrado a cada do filho da puta. Mas, logo relaxei. Afinal, ser cordeiro não é moleza, muito menos trabalho para mulher prenha. Li no jornal que no carnaval são mais de 50 mil cordeiros, 50 mil peões, 50 mil lascados, ou seja um cordeiro para cada grupo de 20 foliões, contando um milhão de foliões, incluindo os mauricinhos e as patricinhas que, na avenida, esbanjam dinheiro e e felicidade o tempo todo, como se fosse possível ser feliz todo o tempo e não ficar louco. E agente aqui se esfalfando para garantir a alegria de todos eles; a bebida, a orgia de droga e de sexo, a histeria e a euforia alucinada das mulheres. Se uma delas, tropeça e machuca o dedinho do pé, há quem fique com pena da periguete. Vadia! Depois da festa é mais uma humilhação para receber o pagamento. A merreca só sai quando todos vão embora e quando muitos de nós já não agüenta mais em pé. Tome, aqui, e suma. Nenhum obrigado ou um simples até amanhã. Só:, não se esqueça, logo cedo no batente. Tá bom, chefe! Estou cansado, de saco cheio, mas de olho em uma coroa oxigenado, mignon, fogosa, tudo no lugar, recauchutada de academia. Saí sempre às dez da noite para o Estacionamento de São Raimundo, no Politeama, para apanhar o carro, um Uno de segunda mão. No último dia, vou segui - lá. Aí, sim, faço meu carnaval. Depois..., depois... talvez use uma corda.

elieser cesar é jornalista e escritor; autor de O azar do goleiro (Contexto), A guerreira da Lapinha (Casarão do verbo), Os cadernos de Fernando Infante (poesia) e A garota do outdoor (contos), dentre outros livros.

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a morte de ágatha fabio ulanin

Apenas às quatro horas contamos para Rosa que Ágatha morrera. Ela nos encarou um a um, em silêncio, com aqueles seus olhos vagos e terríveis, e voltou a fixar a parede cinza. Reunimo-nos por muito tempo, como sempre fizemos, para definir qual o momento preciso para a notícia. Nunca sabíamos ao certo qual seria a reação de Rosa (e pior: quando ela ocorreria) e quais os efeitos catastróficos que desencadearia sobre nossa família. Discutimos, ponderamos, levantamos prós e contras, erguemos hipóteses, defendemos pontos de vista, sempre com a esperança de que seria possível, afinal, adiar o instante de contar que Ágatha, a nossa Ágatha, estava morta. Cogitou-se, inclusive, nada dizer (terá sido Jorge quem deu a ideia? ou Paula? eu, decerto, não fui, já cansado de tantos anos circunavegando o mesmo território), mas a posição inflexível de Flávia nos venceu a todos: era ela a arraigada defensora da verdade e da clareza, dizendo que era isso que caracterizava toda nossa estirpe. Silenciamos frente à dura realidade: seria, mesmo, cruel para com Rosa negar-lhe a informação. Afinal, o que mais restava? Acontecesse o que acontecesse, a notícia deveria ser dada. Mas quando, mas como? A última crise ocorrera fazia três anos, por um descuido de Jorge. Estávamos à mesa de jantar (sempre levávamos Rosa de seu quarto cinza para a sala de jantar quando a mesa já estava posta, de modo a minimizar os riscos) quando Jorge, esquecido em sua felicidade, disse: Fui promovido a gerente de contas e A frase ficou ali, pendente de seus lábios junto com o fio de sopa. Flávia arregalou os olhos, encarou Jorge, feriu meus olhos com seu ar assustado, olhou para Rosa; Paula congelou sua colher a meio caminho da boca, sem estremecer; Ágatha soltou o talher, ergueu a mão sobre a boca e engoliu um soluço de choro; Jorge tinha ainda pendente a frase fatídica, o sorriso transformando-se em máscara trágica, a culpa estampada na face; eu baixei a cabeça, tentando encontrar na sopa algum caldo primordial que me explicasse as coisas e como evitar a catástrofe. Rosa parou de comer, olhou cada um de nós com seus olhos cheios de indiferença e voltou a jantar. Mas era tarde: agora era só uma questão de tempo. Ninguém (com exceção de Rosa, é importante que todos os fatos fiquem claros) conseguiu terminar o jantar. Após a sopa, o pato dourado tão laboriosamente 25


preparado por Paula foi esquecido, a salada verde, abandonada, o pudim de ameixas deixado de lado. Rosa, como sempre, devorou sua parte, no seu mutismo habitual, e esperou que a levássemos de volta ao seu quarto cinza, à sua poltrona cinza, sobre o tapete cinza, para que ali ficasse (sob a vigília que vem de 20 anos) quieta (mas que pode saber?) até a manhã seguinte. Aquela noite, lembro-me bem, Flávia teve uma discussão terrível com Jorge enquanto eu tentava consolar Ágatha que soluçava sobre sua cama azul e dava socos no travesseiro creme, tentando desvencilhar-se da incompreensão. O mal está feito, eu disse, não nos resta outra coisa... Em toda nossa história com as crises, em todo o aprendizado em como lidar com Rosa, por todos os quase 30 anos que percorremos juntos os seus vaticínios, nada era mais difícil do que a espera. No começo, a reação de Rosa era quase que imediata. Uma frase, uma notícia (boa ou má), uma imagem, um som, despertava em Rosa essa espécie de transe e seu discurso. De início eram curtos, como quando papai entrou no quarto carregando um Jorge de dois anos que caíra e ralara o joelho e Rosa discorreu sobre os benefícios da água oxigenada por 40 minutos completos. Nunca soubemos de onde ela havia tirado aquelas informações (nunca soubemos, aliás, de onde ela tirava tudo aquilo: Rosa não lia; Rosa nunca estudou; Rosa não fazia ideia, mínima que fosse, de coisa alguma sobre o que falava em suas crises). Depois, com o passar dos anos (papai havia desistido e mandava, a cada três ou quatro meses, uma carta onde dizia estar tudo bem; nunca perguntou por Rosa e nós nunca lhe informamos), a reação foi se esparçando, lentamente, até que pensamos, um dia, com alívio quase alegre, que não haveria mais crise alguma. Engano: uma semana após notificarmos que Nicolau, o gato da casa, havia sido atropelado, Rosa discorreu sobre felinos por 83 horas e 27 minutos, para desespero de Flávia e de Paula que estavam responsáveis pelos cuidados de Rosa enquanto Jorge e eu trabalhávamos. (Ágatha fazia o quê nessa época? As informações que acumulei sobre todo nosso caso familiar são tantas e tão complexas que acabo com esses lapsos de memória. Ou eu estou sofrendo de um mal oposto ao de Rosa, esquecendo aos poucos as coisas que efetivamente sei e tenho resgistradas como o cronista desse livro da revelação de nossa família?) A frase de Jorge se revelava, então, um perigo para os dias seguintes àquele jantar, assim como a notícia da morte de Ágatha poderia despertar quaisquer memórias (se é possível chamar memórias a algo que não conhecemos) das mais imprevisíveis. “Promoção”, “gerente” e “contas” como apenas sugestões ínfimas para a fatal interpérie: quaisquer combinações dessas palavras, ou significados outros que não aquelesexatos pretendidos:o possível na nebulosa na qual Rosa mergulhava, oracular. Anos terríveis. Um dia, após o banho, Rosa desencadeou a falar sobre perfumes e seus métodos de fabrico (passamos a usar sabonetes e produtos sem perfume a partir de então); noutra ocasião, após o telejornal, Rosa falou por mais de três dias sobre o processo de fissão nuclear e suas fórmulas (tiramos, óbvio, a tevê do seu quarto); deu uma aula insuportável sobre Chopin, seu método de composição, sua biografia (dois dias e meio; excluímos o rádio); discorreu sobre aquarelas, barcos, escolas pictóricas (retiramos os quadros das paredes e pintamos o quarto de cinza 26


e trocamos os móveis por horríveis blocos soviéticos – o cinza, descobrimos, é a mais inócua das cores); falou por quase uma semana sobre as diferenças de tecidos, procedimentos de tingmento, entrelaçamentos de fios (a partir de então as suas roupas foram eximidas; a nudez de Rosa, com os anos, deixou de ser um incômodo).A frase de Jorge resultou numa lista interminável de datas, percentuais, taxas de juros e coeficientes financeiros referentes aos últimos sete anos, pelo menos, uma semana e três dias. O que poderia desencadear a morte de Ágatha? Claro que procuramos médicos. Atendiam, todos, em casa (depois da primeira experiência, um tratado sobre administração hospitalar de oito dias, 15 horas e18 minutos, acreditamos ser mais seguro Rosa permanecer em casa). Quando muito balançavam a cabeça, sem compreender o mal que ali se nos impunha, insidioso, presente, prenhe, tentacular. Medicamentos pouco (ou nada) adiantavam, mesmo porquê o menor dos comprimidos, a mais simples aspirina, era fatalmente seguida pela imensidão das bulas. As mulheres foram as primeiras afetadas. Os homens, afinal, tínhamos de garantir a sobrevivência da família. Mas ainda assim era uma solução insuficiente: mesmo com as três revesando-se nos cuidados e nas vigilâncias, a fina corda que as sutinham nesse infindável cotidiano de expectativas mostrava-se frágil: seus tons desafinavam, discussões explodiam nos piores momentos (ainda que qualquer momento se mostrasse pior: uma voz erguida um decibel que fosse poderia ser escutada por Rosa mergulhada em seu universo cinza), a tensão minava nossa convivência. Primeiro Jorge largou o emprego para se dedicar a Rosa; poucos anos depois foi minha vez. Acreditávamos que apenas com nós cinco ali, com nossa presença na velha casa, com nosso silêncio de espectros, com a marca de nossa permanência insistente (ainda que muda, ainda que etérea), conseguiríamos domar aquela voz ancestral com seus vaticínios para nós incompreensíveis. Não é preciso dizer que nenhum de nós se casou. Como explicar aquela sacerditosa de olhos mortos, nua, mergulhada no cinza de sua cela monástica, isolada de qualquer convivência humana a não ser a nossa? (Chegamos a duvidar, um dia, de nossa humanidade?) Como levar para a casa um possível compenheiro, uma mulher que partilhasse conosco desse destino? Nunca discutimos o assunto: nós sabíamos que a saída de um de nós daquela redoma, assim como a incursão de quaquer pessoa nos corredores tumulares em que vivíamos, era impossível e inapropriado. Ágatha, a pobre Ágatha, tentou escapar desse destino, para horror de seu candidato a noivo (usava sempre uma bela gravata verde com deltalhes, cactos talvez, amarelos): a sua presença à mesa, na hora do jantar (sete ou oito anos se passaram?), desencadeou uma crise imediata. Imagino o que o pobre Fernando sentiu e pensou ao se deparar com Rosa disparando um longuíssimo discurso sobre Maximiliano I, Imperador do México (talvez Fernando, que, óbvio, era mexicano, ficasse agradavelmente surpreso com o conhecimento da velha Rosa, não fosse sua nudez à mesa do jantar). Ágatha chorou, convulsa; sempre foi a mais frágil. E agora o que sua morte poderia desencadear? Qualquer previsão (ou sua tentativa) é impossível. Contar a Rosa era nosso dever, e nos preparar para o espectro que se erguerá, não importa o tempo que leve, uma necessidade: Paula cuidará dasrefeições; Jorge, Flávia e eu vamos revesar nossa atenção, vamos perscrutar o oceano cinza em busca do menor sinal, da mais sutil ondulação que revele a chegada do leviatã (nosso temor é que tudo seja inútil, afinal). Mantemos, assim, o suspense de nossa existência entre o pó de nossa casa. 27


Sim, era inevitável, por maior que fosse o desejo de silenciar. Sabemos o que nos espera: Ágatha sucumbiu. Cada um de nós a seguirá ao seu tempo. E a areia do tempo da voz de Rosa ecoará nos cômodos vazios da casa, entre suas paredes cinzas. Depois de dois anos de meio buscando uma solução, às quatro horas da tarde informamos a Rosa que Ágatha morrera.

fabio ulanin nasceu em São Paulo, em 1968. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, professor de ensino superior há 20 anos. Publicou os volumes de poesia Animaquia e Kether. Bemidbar E 20 [&] um [poemas extremos] está no prelo.

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proibido fumar maria clara mattos

Eram amigos desde a faculdade. O primeiro encontro foi na biblioteca, os dois tentando saber mais sobre Anatomia 2. Achavam estranho nunca terem se falado em sala de aula. O fato é que estudaram juntos naquele dia e nos outros a partir dali, rodeados de cerebelos, tendões, artérias, corações, diabetes, derrames, melanomas, dores de estômago; ficaram amigos. Amigos o bastante pra compreender que unir fluidos e amizade – sexo – nunca é boa ideia. Se a pessoa trepa e depois fica amiga é uma coisa. E, normalmente, até um divórcio, uma briga em lugar público, peças de roupa e outros pertences jogados pela janela, funciona. Mas não se for o contrário. Por isso, nunca pensaram na possibilidade de qualquer coisa acontecer entre eles. Natasha ficava nua na frente dele só mesmo em nome da pesquisa científica. Já que a amizade é uma estrada de mão dupla, ele fazia o mesmo por ela, feliz. Estudaram o corpo um do outro, meticulosamente. Ela sabia quando ele estava prestes a ter uma ereção, ele conseguia antever o momento em que ela começaria a respirar mais pesadamente enquanto observava o endurecimento do seu membro. A questão é que faziam assim, e nunca pensaram em fazer diferente. Ela casou com um grande cientista, homem de excelente comportamento. Uma pessoa de laboratório. Nem um pouco parecida com ele, médico relaxado que às vezes nem se dava o trabalho de lavar as mãos quando a visita do paciente era só revisão. Nojento. Trinta e muitos anos, nada de casamento, solteiro que morava sozinho num apartamento bacana, acompanhado de boas bebidas, comida que gostava de cozinhar (vai entender, médico relaxado, panelas limpíssimas), mulheres esporádicas, namoradas jamais. Pais falecidos, irmãs vivendo em outro país. A de Londres, escritora. Nicarágua, paramédica. 29


O nome dele é Franco (nome péssimo, francamente), e agora ele encarava Natasha, dormindo profundamente na sua cama, usando sua calça de pijama e a camiseta da noite anterior. Tinham dormido juntos? Não dormido-trepado juntos, dormido juntos lado a lado. Irmão e irmã que dividem um colchão. Essa era a pergunta. Mas isso também seria estranho, porque, como mulher casada, ela deveria estar abraçada ao travesseiro de outra pessoa. Ou parte do corpo. Ele se livrou do lençol – ainda bem que estava de cueca – e foi pegar um cigarro. Nossa, como fumaram. Só três sobrando no maço. E olha que ela nem fumava. E daí? Eles se embriagaram, disseram coisas, riram e fumaram juntos, provavelmente era só isso. Tragou como só quem está de ressaca sabe. Depois, apagou o cigarro, num gesto mecânico. Coisa imbecil, essa de não poder fumar mais em lugar nenhum. A gente acaba fazendo o que não quer, tipo apagar um cigarro no meio, dentro da própria casa. Ok, fumar pode ser fatal. Como se um acidente de avião não fosse. Ou alguma doença que não tem nada a ver com a ingestão de fumaça tóxica. Ele, que era médico, estava mais que acostumado a diagnósticos bem distantes da nicotina, do tabaco, ou de qualquer uma das milhares de substâncias que a pessoa ingere numa tragada. Tinha vários pacientes não fumantes com problemas de coração. Abriu a geladeira, procurando alguma coisa pra substituir o café, ausente na casa desde ontem, porque não tinha deixado bilhete pra secretária do consultório pra que ela, na hora do almoço, fosse ao supermercado cuidar das suas necessidades domésticas. Encontrou água. E cerveja. E presunto estragado. E aspirina. Finalmente, alguma coisa. Ele gostava de cozinhar, não de comprar ingredientes. Ficou ali bebendo água, observando Natasha. Estranho esse negócio de sentimento. Como é que você pode conhecer alguém há tanto tempo, ser íntimo de um jeito que amantes às vezes não são – porque amor é uma categoria completamente diferente de intimidade – e, de repente, se sentir bizarramente constrangido só de pensar na amiga acordando na sua cama e te vendo de cueca? Foi isso que aconteceu naquele momento. E com a mesma urgência mecânica com que tinha apagado o cigarro minutos antes, flagrou-se vestindo o jeans da noite anterior. Do jeito que os cachorros fazem quando acordam, ela abriu os olhos. (Só os amantes de cães vão saber do que estou falando, mas... não me ocorreu imagem melhor. O Google pode ajudar). “Oi,” ela disse e cobriu a cabeça com o travesseiro. “Oi,” ele respondeu, quase corando, como se ela pudesse ver como se sentia esquisito só de olhar pra ela vestindo sua calça de pijama. “Onde você tá indo todo vestido?” “Todo vestido é a calça jeans?” “É, se a pessoa tá de ressaca.” “Ok.” “Tem aspirina?” “É só o que tem.” “Dá pra mim.” “Num caso típico, essa fala seria minha…” “Cala a boca.” Ele calou e deu a aspirina. Natasha rolou e rolou na cama. Ele não podia fazer nada a não ser olhar. “Vou tomar uma chuveirada,” falou, louco pra sair do único, mas grande, quarto da casa. Vida moderna. Lofts. Pra não ter a possibilidade de dividir. Nada de quarto. 30


Só a sala impessoal, onde, eventualmente, se dorme numa cama. Realmente, lofts não são uma boa escolha para casais que pretendem uma vida inteira juntos. “Vem cá, eu falei mal do Felipe, ontem?” Ela perguntou, antes que ele pudesse fugir. “Honestamente? Não lembro.” “A gente…?” “Honestamente?” “Merda.” Ele riu. “Acho que não.” Ela suspirou e ele achou que gostaria de ter respondido “sim”, mesmo que fosse mentira. Afastou o pensamento, indo finalmente até o banheiro. “Eu tomo um banho e a gente sai pra comer.” Natasha pulou da cama e pegou o celular na bolsa jogada no chão. Digitou os números e encontrou a caixa postal. “Oi, Felipe, sou eu. Me liga. Beijo.” Desligou o telefone e pegou um cigarro. Ela não fumava, mas e daí? Também não era mentirosa e estava na casa do melhor amigo, o marido achando que ela estava em Oklahoma. Por que a mentira? Não era muito mais fácil dizer o que estava acontecendo? Nunca. Nunca é mais fácil fazer isso. Seres humanos gostam das próprias interpretações de fatos simples. Você diz que precisa de um tempo pra pensar, significa que você quer sair fora. Talvez seja verdade, e a pessoa que precisa de um tempo só esteja interpretando a própria vontade de sair fora. Ela estava casada há três anos e a parte divertida já tinha acabado. Desde o mês cinco. Como podia? Ela achava que amava aquele homem, aquele cara inteligente, de laboratório. Foda isso. Bem, foi por aí que as coisas começaram a dar errado. Não que não fosse bom. Trepar com ele. Só que era chato. Franco reapareceu no quarto, banho tomado, cabelo molhado, mesmo jeans, sem camisa. Natasha olhou pra ele. “Você acha que a gente devia…” Ela não completou a frase, mas ele fez questão de imaginar. “Acho.” “Não. Vamos nessa.” Ele levantou ligeiramente as sobrancelhas como quem diz não custa tentar. Ela vestiu a saia da noite anterior e tirou a calça do pijama depois. Ele não viu nada. Nem um pedaço da coxa. “Posso usar sua escova de dente?” *** Foram andando pelo Leblon, que não era Notting Hill mas parecia ter uma espécie de placa invisível dizendo: aqui a gente é cool. Caminharam dois quarteirões, mãos nos bolsos pra ele, penduradas ao lado dos quadris pra ela. E fora o silêncio esquisitíssimo entre eles, que era, em si, fato extraordinário, alguma coisa estranha estava acontecendo na cidade, ele tinha certeza. As ruas estavam atipicamente vazias pra um sábado de manhã. Ele também estava vazio, mesmo com a cabeça tomada de pensamentos descontrolados, até mesmo inclassificáveis. Aqui e ali viam alguém olhando pra baixo, envergonhado. Nada cool. Pensou em usar isso como assunto, como se precisassem disso, como se o silêncio não tivesse sido sempre confortável entre eles. Mas desistiu, movido por uma espécie de constrangimento. 31


De repente, viram um casal dando um amasso. Se agarrando mesmo. Ela tinha cabelo azul. Ele, vermelho. Natasha riu. Uma risada nervosa. E os outros dois começaram a tirar a roupa. Como assim? Ouviram a garota dizer alguma coisa do tipo bollocks e falaram juntos: “ingleses”. Voltaram a caminhar, virando o pescoço de vez em quando, desacostumados à cena de peitos e pau a céu aberto numa manhã de sábado do mundo dito civilizado. Logo adiante, outro casal, agora transando de verdade, agora nada de ingleses, nacionalíssimos. Paulo e Cristina, gente do bairro, gente que ele via todos os dias na farmácia, correndo na praia, passeando com a cachorra Maritza. Eles estavam “fazendo sexo” – por pura educação - na esquina das duas ruas mais movimentadas do bairro, escarrapachados na calçada. Que dizer de uma coisa dessas? “Sou só eu ou...“ “Uau, eu tava achando que era efeito colateral do absinto de ontem.” “Talvez seja.” Mas Paulo cumprimentou os dois enquanto se mexia em cima da mulher, e Franco foi obrigado a um “E aí? Fala, Cristina.” Ela não respondeu. “A gente foi dormir em 2011 e acordou, sei lá, em 3045?” Natasha riu. “Socorro.” No restaurante cool, ela pediu um sanduíche aberto com dois ovos estalados em cima, presunto e emmental derretido. Ele pediu uma torrada de salmão defumado com cream cheese e cebola. E uma cerveja. Talvez fosse melhor assim, porque o dia já tinha começado louco. Comeram em silêncio, na parte externa do lugar moderninho. Um casal, numa mesa quase colada na deles, terminou de comer e acendeu um cigarro. O que fez com que ele conferisse seu maço e visse que só tinha mais um. Natasha comentou: “Foi mal, fumei quase seu maço todo.” “E olha que você nem fuma.” “Pois é.” Aí, o casal da mesa quase colada terminou o cigarro e começou a se agarrar, preliminares de um sexo saudável de sábado de manhã, pós café e cigarros, sem a pressa dos dias de semana e das noites cansadas. “Sério, que porra é essa, Franco?” “E por que eu deveria saber? Porque é o meu bairro?” “Exatamente.” Ele calou a boca, honestamente confuso com o desenrolar dos acontecimentos. O garçom apareceu com o pedido de uma outra mesa e Franco fez sinal. O cara passou pela mesa do casal transando, num mix de nojo e voyeurismo, e quase deixou a bandeja cair. “E aí, Chico? Que porra é essa acontecendo aqui?” “Você tá falando aqui-aqui, ou aqui no mundo?” “Aqui… Sei lá. Como assim?” “Não tá sabendo? Agora já era.” “O quê?” “Você não lê jornal, não vê TV, não vive no planeta Terra?” “Sério, do que você tá falando?” As pessoas esperando comida acenaram e Chico se apressou. “Foi mal, cara. Tenho que ir lá. Só espero que eles não comecem a se pegar e comer ao mesmo tempo. As pessoas gostam de umas coisas bem esquisitas. Já volto.” 32


Ele olhou pro casal trepando, depois pra Natasha, que devolveu o olhar como quem diz: “Que foi? Eu não tenho nada a ver com isso.” Chico voltou com o jornal e leu: “’... a partir de 27 de março de 2012, o sexo fica proibido dentro de lugares fechados, não somente em ambientes públicos, como o cigarro, mas também na privacidade dos lares’. Pronto, taí. Eu não sei, cara. Talvez seja mais uma maneira de controlar a vida das pessoas. Coisa louca.” E agora sim, ele tinha algo palpável pra digerir. Sempre tinha pensado no sexo como a coisa mais natural do comportamento humano. Feito beber água, comer, defecar, urinar, respirar. Mas isso... isso era nojento. Não o sexo em si, mas a céu aberto. A gente sabe que acontece, mas não precisa ser obrigado a assistir. Não é que nem pornografia. Filme pornô. Isso a gente paga pra ver. Ok, existe pornografia gratuita. Mas viva e em qualquer lugar? Feito o cigarro, antigamente? Muito pouca escolha para os não fumantes. Voltaram para casa em silêncio. Ela, olhando em volta, interessada no que estava acontecendo na rua. Flower Power de novo. O que não fazia o menor sentido, hoje em dia, com facebook, mensagens de texto, vídeo conferências, arquivos compartilhados e toda essa baboseira da vida virtual. Com toda a cafonice de avatares e sites de encontro. Ele ia de cabeça baixa, se achando um adolescente cheio de vergonha dos beijos e de tudo aquilo que acontece na sequência. Tanto tempo que ele não parava para pensar em nada. Nada mesmo. A vida era trabalhar, se divertir, comer, viajar, e, claro, trepar o máximo possível, mas sempre entre quatro paredes e sem significado real. O prazer era uma das coisas que ele enxergava como parte importante da vida, quase a razão de viver, mas vinha com o resto do pacote. A pessoa tem que fazer isso, aquilo e ter prazer na vida. Algumas colocam o prazer no fim da lista de prioridades, outras logo no começo. Só isso. Quando chegaram na porta do prédio, ele pegou a mão dela. Foi um gesto involuntário, como acontece com as pessoas que perderam um braço, uma perna, mas o cérebro continua respondendo com reflexos. “Que foi?” Ela perguntou. “Nada. Sei lá. Vou comprar cigarro. Toma.” Entregou as chaves de casa. “Entra.” Ele se afastou, precisando de um tempo sozinho. Parecia vinte anos mais novo, e não no bom sentido. Tudo aquilo de quando tinha dezessete, dezoito, dezenove. O constrangimento com os temas relacionados ao sexo e com tudo que tinha a ver com... a vida. Sentia-se inapropriado, amador, destalentado pra viver. Foi quando encontrou a medicina. E o contato com órgãos, matéria, a solidez das vísceras, fez com que relaxasse. Era tudo tão palpável que ele não tinha mais motivo pra ter medo. Nervos, circuitos, conexões. Era só isso. E ele desistiu de toda e qualquer coisa que não pudesse tocar ou sentir. Com as mãos, não com o coração. Agora isso. Pessoas trepando por aí, no meio da rua, e não era uma rebelião, era lei. Comprou dois maços de Marlboro e correu para casa. Passaram o dia na cama, como faziam na época da faculdade. Só que na época da faculdade eles liam livros sobre doenças, agora assistiam TV ruim. Às seis e vinte, o marido ligou; Franco tem certeza disso, porque foi ele quem entregou o celular e conferiu a hora em cima do nome “Felipe”, que apareceu no visor. Ela agradeceu e foi pro banheiro. Quando voltou, disse “Vou nessa”, deu um beijo no rosto dele e foi embora. O que restava do sábado continuou assim: TV ruim e telefonemas não atendidos. Ele não queria falar com ninguém. Quando ficou com fome, pediu China In Box 33


(TV ruim, comida pior). Não queria sair e ser obrigado a ver pessoas trepando de verdade. Comeu, bebeu meia garrafa de uísque e apagou. No domingo, pediu comida em casa de novo. Nem se preocupou em abrir as janelas. Quanto menos indícios do mundo lá fora, melhor. No dia seguinte, teria pacientes. Problemas de coração, hipertensão, veias entupidas, artérias... não era engraçado ele ser cardiologista? Dizia que gostava de cuidar de corações porque eles batiam. Parecia música. E como ele não tinha talento pra tocar guitarra nem bateria, decidiu ser outro tipo de rei do ritmo. Mas, de noite, não conseguiu resistir. E estava sem cigarro de novo. Andava fumando demais, coisa que não se coloca nas paredes do consultório, junto com diplomas de medicina. Na rua, não viu nada. Ninguém trepando nas calçadas, nada de casais se lambendo, nenhum vestígio do Planeta dos Macacos. Entrou num bar onde não costumava ir, frequentado por gente muito mais jovem que ele, e sentiu-se em casa, domesticado, livre. Bebeu e paquerou. Conversou com pessoas desconhecidas, fumou na varanda, e até beijou uma garota a céu aberto. Por um segundo, teve medo que isso levasse ao tipo de coisa que tinha visto nas ruas no dia anterior, mas foram só beijos. O nome era Patrícia, “mas todo mundo me chama de Pat”, e ela perguntou se ele queria ir pra algum outro lugar. Pensou em perguntar sobre a tal lei, mas desistiu e continuou com os beijos, fingindo que a resposta seria sim. Mas acabou dizendo “vou nessa”, e foi mesmo. Bêbado e de pau duro; saudável. Em casa, já na cama, encontrou seu celular, esquecido debaixo do travesseiro, assim com esquecida estava a lembrança da Natasha e das horas estranhas que tinham passado juntos tão recentemente. No celular, três ligações perdidas dela e uma mensagem de texto: “Sorry, ontem. Realmente tive que vazar. Love.” Ele respondeu: “Ok”. Tirou a roupa e desejou dormir rápido. No dia seguinte, acordou às sete, como sempre. Cinquenta minutos de esteira. Incrível como era capaz de fazer isso depois de toda a fumaça e todo álcool ainda no sangue. Nada de TV nem noticiário nem nada. Não queria saber o que estava acontecendo lá fora. Já, já estaria na rua, pra que se antecipar? Tomou banho, ligou pra a secretária. Queria ter noção do que o esperava no consultório, com quantos pré-mortos teria que lidar. Do lado de fora do prédio, conferiu as esquinas, tudo parecia normal. De repente o coração acelerou quando viu dois homens encostados no seu carro, aquele punhado de lata e motor que tanto amava. Estavam nos finalmentes, gemendo, um olhando pras costas do outro, suando a tinta preta do seu Range Rover. Cento e tantos mil reais sendo socados daquela maneira. “Ei!” Gritou, sem perceber. E o cara acariciando seu capô respondeu: “E aí, beleza?” O outro acelerou o ritmo, Franco pensando em quanto estaria seu batimento cardíaco. Pronto. Fim. “Valeu. Bom dia”. Ainda ouviu isso. Sentiu um pouco de enjôo. O que tinha acontecido com o domingo normal, passado de hoje? Talvez domingo fosse mesmo o dia do descanso de Deus. Acendeu um cigarro e entrou no carro.

maria clara mattos é roteirista, escritora, tradutora e atriz. Escreveu para séries dos canais Multishow e GNT. É redatora do programa Tapas e Beijos, da TV Globo. Publicou na revista americana Out Of The Gutter. Traduziu diversos livros para a Bertrand Brasil. O Céu Pode Esperar Mais Um Pouquinho (Dublinense), seu romance de estreia, foi finalista do Prêmio Açorianos 2013.

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apólogo

mariel reis

Atravessei uma situação adversa em 2013, em relação à saúde. A recuperação, em casos semelhantes, parecia dificultada pela área afetada: o cérebro. Curiosamente, a medicina, colocada por Deus sobre a Terra para auxiliar os homens, havia feito tudo ao seu alcance para me por fora de perigo, dentro de um caso clínico lesivo como é um acidente vascular cerebral. E no entanto, não se havia feito tudo ainda. Numa das noites, no CTI, paralisado, adormeci, aceitando resignado o acontecido, elaborando estratégias para viver com minhas futuras limitações, quando deslizei para o sono profundo. Nele se desenvolveria a outra etapa da minha cura. Em um longo galpão, inúmeros doentes revezavam-se em tratamentos, nenhum deles me parecia conhecido ou familiar. À minha chegada, João saiu da multidão, alegre, com uma expressão urgente, recebeu-me: — Mariel, você veio! Que bom. Tem uma pessoa lhe esperando, vamos? Minha cadeira de rodas girou até o desconhecido que aguardava. — Aqui está o Mariel. Não ficarei para acompanhá-lo, estou com muito trabalho. E João se foi. Encontrá-lo naquele lugar confortou-me. João existia também fora do meu sonho: era pai de um dos meus amigos e espírita. Em minha frente, o desconhecido espreitava minhas feições, adivinhando minha angústia. E me tranquilizou: — Não se preocupe, Mariel – ele apalpava meu braço paralisado - estou aqui para ajudá - lo. A propósito, onde você está encarnado? Eu respondi naturalmente: — No Brasil. A resposta produziu nele uma surpresa. — O que você deseja? Respondi que paralisado em todo lado esquerdo, gostaria de movimentar meu braço e minha mão. Sofri agrafia decorrente do derrame. E minha higiene íntima, a cargo da equipe de enfermagem, me constrangia. O desconhecido aquiesceu. Em um CTI, um paciente é monitorado vinte quatro horas, porque se vive ali uma luta constante contra a morte. Os enfermeiros do plantão confirmariam, mais tarde, a movimentação desordenada de meus membros. O desconhecido terminou minha “operação”. João retornou, perguntando se eu estava feliz. 35


— Se conseguir limpar a minha bunda... Ele riu. Também ri. Avisou-me que não poderia me dispensar, porque ainda havia alguém que viera me visitar. E o avistei. Escoltado por dois homens, meu falecido tio Zezeco, irmão de meu pai e meu padrinho. Um homem decente; conduziu-se, enquanto vivo, com discrição, embora não estivesse livre de contradições. — Marel – pronunciava, em vida, meu nome com a omissão da vogal “i” – não tenho muito tempo. Então guarda essas palavras, meu filho. A enfermidade é a porta por onde Deus renova o homem. E o afeto reverbera além do universo. Você vai melhorar, torcemos muito lá para que um de nós pudesse visitá-lo. Tenho que ir. A escolta de meu tio acenava, indicando o fim da visita. João se reaproximou, advertindo-me : — Agora você precisa também ir embora. Na manhã seguinte, além dos relatos do corpo de enfermagem de plantão, a fisioterapeuta, sorrindo, elogiou-me: — Você recuperou todo o braço esquerdo. E saiu, alegre, do meu quarto. As visitas não tinham programação, portanto nunca se sabia quem iria aparecer para fazer uma horinha com o doente. Somar-se-ia às coincidências, exatamente no dia de meu renascimento, o aparecimento de meu primo Alexandre, filho de Zezeco. Não resisti e lhe contei toda a história.

mariel reis é escritor e editor da revista flaubert.

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a urdidura do adeus paulo roberto farias

Os corredores do prédio eram fundos, duros, gelados. Os estalidos secos dos saltos contra o ladrilho envelhecido não quebravam o calor almofadado do abraço da mãe que aos dois filhos envolvia. O cheiro bom e quente da mãe, os olhos vítreos de boneca. A menina tinha o coração branco e crispado de espanto de ver o outono prematuro dos cabelos dela. A mãe acalentava os filhos, sabedora de que a saudade sempre engole calendários e que ela já iniciara sua gula irreversível muito antes da missa de sétimo dia a que assistiram há pouco. Indiferente à brancura que lhe ia turvando os cabelos, a mãe ninava as crianças num novo nascimento, ainda que sob a insígnia da perda. Medrava nela um arrevesado sentimento de orfandade, como se pudesse tornar-se órfã dos próprios filhos. A pior viuvez seria de fato perder os filhos de quem urdira cada um dos fios da vida, amálgama de ossos e peles tramada na sua terra mais íntima. Porque para ela fora concedida a graça da criação. Mas não a da morte. Tão indolor seria agora se o ato de criá-los tivesse sido solitário como fora o de Deus. E ela se perguntava como se manter boa e mãe assim imiscuída pelas vestes austeras do luto. Sem prévio aviso, as roupas negras tomaram o lugar das outras, desbotando tecidos sequer imaginados. E fazia sete dias apenas. O apartamento continuou escuro ainda depois de o interruptor acionado tingir de amarelo-sujo a mobília e as paredes. Apesar do dia, a noite já era insistente. Os olhos se feriam na luz que não vinha. A mãe largou a bolsa sobre o aparador, e enquanto ouvia os passos rápidos da filha na direção da sala o elevador se abriu do lado de fora do apartamento – o filho que se demorava ainda. Ele decerto deixara qualquer coisa caída num dos corredores. Mas talvez fosse tarde demais para recuperar o que quer que fosse. Ele entrava agora pela porta da cozinha e olhava a mãe parada diante dele: havia uma ponta de lágrima afiada submersa no olhar de ambos. Embora desde a morte do pai o olhar do filho estivesse também cheio da responsabilidade do macho. Mas a mãe era mulher de carinhos superlativos, as manchas da pele sulcando o rosto. Ele comungava piedosamente da hóstia dos seus olhos à maneira que um dia alimentou-se do branco do seu leite. Ele tinha o coração inflado do seu leite antigo, e enchia-se de ternura ao ver a maturidade chegando aos seus cabelos despreparados. Para ela aquele olhar do filho era como beijo dado em hora certa, flor madura colhida e depositada sobre a palma perplexa da mão. E ele já rompia a película que os velava 37


e que os tinha feito relutarem muitas vezes no calor da adolescência. Abraçaramse. E no abraço sussurraram pelo lado de dentro da casca das palavras – cuidando para que elas não gangrenassem na compressão dos seus afetos. Os olhos feriramse, dessa vez pela luz vermelha do estúdio no fim do corredor que definitivamente não mais se acenderia. O estúdio do pai para sempre fechado. Contudo, quem teria podido prever que o redimensionamento dos afagos estivesse presente desde sempre nos planos da morte? Sentiam que se tivessem demorado por mais tempo não teriam podido voltar do abismo de amor que o abraço os lançara. Mas depois de se descolarem um do outro – ainda os ligando o cordão de lágrimas pendurado pelos olhos – eles estavam finalmente prontos. Estavam prontos, e ouviam. Da sala vinha o estardalhaço de criança e bicho. O riso excedendo-se em corrupção, extravasando-se contra paredes e chegando até eles numa rede elétrica que era a carne idêntica neles e na menina. Sacudidos e assustados pelo riso que era uma espécie de choro transfigurado. Os dois avançaram na penumbra. Entre um cruzar de corredor e a entrada na sala toda aberta em halos de sombra dissipada, surpreenderam em flagrante atropelo de asas e penas: a menina e o beija-flor. Deram-se conta, então, de que não se passara mais que alguns poucos segundos do abraço à sala descoberta. Apesar de chegados de olheiras cansadas, tendo atravessado de um cômodo a outro a distância de uma cidade subterrânea: recém entravam no apartamento. Cegos um do outro, não ouviram a menina que fora ao encontro do beija-flor, preso ali na sala. O beija-flor capturado pela própria sede de proteção. Alguma janela descoberta em frestas convidando ao abrigo da chuva. E fora a pequena quem desde o primeiro atravessar de portas pressentira: infância que atrai infância. Porque não passaria de um bebê beija-flor. As asas curtinhas se debatiam em voos perdidos, já moles de cansaço. Ela não saberia nomeá-lo jamais pelas asas plenamente visíveis. – É um beija-flor – foi o irmão quem primeiro o revelou pelo nome da espécie. Extenuado, meio morto, ele não ousava pousar. A menina era o seu perigo. E agora o medo redobrado pela chegada do irmão e da mãe. Antes que qualquer um dos dois ousasse, ela sentiu-se fortalecida. Ela não era mais só ela mesma, era também a mãe e o irmão engrandecidos pela visão de força bruta que tinha dos dois adultos. Oscilou na extremidade de dois arriscados pés, tremeu no alto do próprio corpo imaturo, para depois cair em guizos de risada do cume dos seus cinco anos. A mãe e o irmão recolheram os soluços, secaram um fio de lágrima, agora perdido nas conchas das mãos. Era já um princípio de esquecimento. E a menina só sabia do beija-flor. E ele era já dela. Continuaria preso ainda muito tempo depois que janelas se abrissem. Ela ria. O beija-flor voava. Ele jamais chegaria a rir, mas ela quase alçava voo. Os seus olhos quebrados no riso. Havia um silêncio de vidro nos três pares de olhos partidos. Mas partidos porque riam. O riso consentido nos três rostos refletindo-se pelos fragmentos dos olhos. Escândalo de asas, o beija-flor era um pequeno sol emplumado inaugurando calores no inverno dos dias. De braços já erguidos, e entrelaçados, perguntavam-se se a natureza humana deveria de fato tocar a natureza alada da ave. E sem que caíssem numa brincadeira errônea de quem o pegaria primeiro: os três o buscavam juntos. Seriam todos responsáveis se alguma coisa se esfacelasse ao alcançálo. O animalzinho não percebia que avançavam ao seu favor. A pior porém única saída seriam aquelas mãos atônitas – seis mãos atônitas e erguidas contra ele. Mesmo que ainda não tivessem pensado o que fazer dele depois de capturado. O beija-flor não tinha mãe, o que fazia dele um ser sem privilégios de existir. E sem mãe, precisava, com a urgência amorosa de afetos e alimentos, arranjar uma. A menina perguntava, fingindo não ter formulado a resposta muito antes da pergunta: 38


– Que vamos fazer com ele depois? – E respondia ágil, ela própria, antes que outro respondesse. – Vamos colocar o beija-flor numa gaiola. E enquanto falava, o beija-flor, exaurido, pousara como pluma que se sopra – sobre o lustre da sala, perigosamente próximo às lâmpadas quase acesas àquela hora já tardia. Ofegante, ele respirava como devem respirar os menores seres: cheio de vida mal contida nos órgãos minúsculos. O irmão tivera a ideia. Fora à cozinha e de lá trouxera uma vassoura de duras e prepotentes cerdas espetadas. E a mãe, vendo o resultado eminente da engenhosidade do irmão, dera a resposta um pouco retardatária: – Imagine, uma gaiola! – Se o apartamento era pouco para ele, imaginasse uma gaiola. Lentamente então, enquanto a menina sonhava com gaiolas e futuros filhotes, a vassoura foi erguida, o cabo suspenso nas pontas dos dedos. As cerdas tocaram sem farfalhados as penas exangues. O beija-flor simulou ainda uma rapidez de patas, cabeça projetada em voos. Mas foi arrebatado no cruzamento de duas paredes. As asas, de fadiga, perdiam os ossos. E assim, a vassoura levada outra vez para baixo, ele desfalecia. Quente e palpitante na sua fragilidade de plumas, ele foi colhido dentre as farpas numa carícia pela mão do irmão. Que quentura de existir ainda alentava aquele coração privado de voar! E diante dos gritos da menina de “quero vê-lo”, o irmão obrigou-se a depositá-lo entre as suas mãos abertas em concha como na brincadeira do passa-anel. A mãe recobria com as próprias mãos as mãos da menina evitando que o deixasse escapar, ou que o sufocasse de amor. Era preciso desintoxicar de purezas o seu coração insondável de ave. A menina arrastava o indicador pelo bico pontudo quase se esmagando contra ele e se perfurando toda – mas era amor. Um amor de ganas, sem requintes ou polimentos. Macerara um dia, na casa da avó, a cabeça de um filhote de uma gata brasina, e fora castigada por amar demais. É na parte mais ferida do corpo que o coração bate com maior intensidade. O coração dele palpitando para o coração dela era como um carro que passando na rua abalasse a arquitetura de uma cristaleira. A chuva já não batucava na vidraça, e ela adiava a janela aberta. De puro susto, de pura raiva incontida, da falta de outro gesto mais nobre, ela então deu um beijo em cada olho do beija-flor a ponto de roer através deles o seu coração congestionado de pétalas. Os olhos dele serviam era para serem beijados. Mas por não serem doces, ela mentiu: – São amargos. Se o segurasse um pouco mais, se o apertasse um pouco melhor, enfim. Deixá-lo sufocar seria a prova suprema do seu amor. Pequena demais para não saber. Sendo criança demais para precaver-se de amar. Da perfeição perigosa do seu amor brotava a asfixia do beija-flor. O amor era lúcido porque ela não aprendera a acreditar nele. O amor ainda não tinha contornos, era líquido e sem casca. O que fazia dele um fluido sem controle. O beija-flor não exigia para si nem merecia tanta imensidão. Ela o colocava de perfil, e de viés descobria: uma patinha retorcida como um graveto seco. Ele era, portanto, manco. Tinha um defeito que lhe dava novos privilégios de saúde. Decerto nascera de um amor anterior, a sua doença. O que lhe dava firmeza de chãos eram as suas asas. O importante era não ser manco de asas. – Será que ele é manco de asas? – perguntou. A não-resposta era um modo de dizerem que nas mãos dela o beija-flor estava manco das duas asas. Por não ter descoberto o ódio e a indiferença, ela amava tudo. 39


Descobrindo o amor, saberia depois que podia ser mais difícil não amar. Por pura distração o beija-flor caíra naquilo que para ela não tinha controle ou casca e que ela insistia, por falta de precedentes, de chamar apenas de: gaiola. Um ser feito só de plumas fora uma apoteose não planejada. E do cerne mole daquelas plumas, fechando os olhos, ela saberia transformar em genuína abstração o seu calor. Como crer cheias as mãos que sempre estiveram preenchidas? Se o soltasse, aquilo a que chamava gaiola nunca mais teria grades. – É de muitos rios que se faz o mar, filha. Também o beija-flor, de muitas asas constrói o voo – disse a mãe. – O mar é bom – disse a menina. – Tanto quanto uma gaiola pode enferrujar as asas de qualquer pássaro – disse a mãe. – Sim – disse a menina, e com isso quis dizer que não entendia. – Olha como as tuas unhas se lascam – disse a mãe. – Mas ainda chove – disse a menina, e era mentira. – Minhas mãos não têm calos – disse o irmão, e mostrou-as. – Não é da chuva que vai nascer a tua gaiola – disse a mãe, enrouquecida pela insistência da menina. Ela que nunca fora tão dura no seu amor. – Sim – disse a menina, desobediente, mas sem ingenuidade. – É na chuva que brotam os primeiros raios do sol – disse a mãe plenamente consciente da sua viuvez. Há sete dias que estava viúva. Há tão pouco tempo viúva e já tinha dois filhos da sua própria viuvez. Houve então um grande silêncio. E eles se sentiram agigantados, muito mais que silenciosos. – O nosso amor seria para ele a morte – disse a mãe, enfim sóbria. – Se o amamos de verdade devemos deixá-lo partir – e tremeu. Os três tremeram numa rede elétrica que era a carne idêntica neles. A mãe falava do beija-flor? ou do pai? E silenciaram numa compreensão tácita. Agigantados pela compreensão. O irmão puxou as persianas. A mãe abriu as vidraças. O beija-flor fazia do apartamento uma casa cheia de voos e ventos de xaxins e samambaias. O beija-flor era uma realidade. E por isso mesmo um absurdo. Da casa o beija-flor roubara tempo demais. Então, o irmão que era dado à lógica, o tomou de volta, sem explicações ou promessas. A menina não teve nenhum gesto de negação. Ninguém ali na sala conhecia ainda as profundezas da sua tranquilidade. E eles espreitavam os silêncios. E então aconteceu: o irmão abriu uma mão, abriu outra. O beija-flor abriu outra asa, abriu uma. A menina se abriu. O beija-flor só servia mesmo era de páginas abertas, como um livro. O beija-flor pavoneava-se, grande como um pavão. O voo lerdo do pássaro foi acompanhado da janela – já não tinha nome de beijaflor do lado de fora da casa. Pousara numa arvorezinha vergada pela chuva, sacudira as penas. – Já é hora – disse a menina, estupidamente sonolenta. – Vamos para a cama. – E fechou de vez as persianas.

paulo roberto farias é ator e integra os grupos Ato Cia. Cênica e Oigalê. Em 2013 lançou A tessitura da noite (Multifoco), finalista do Prêmio AGES, categoria Narrativa Longa.

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silêncio familiar O demônio se esconde nos silêncios familiares.

petê rissatti

Raíssa podia ter todos os defeitos, menos um: ela sabia se entregar. De bandeja, como o bandido sob tortura. Só achava estranho, até nojento, o gosto que seu pai lhe deixava na boca. Como um doce rançoso, velho. A menina já se conhecia mulher. Raíssa não se via naquele pai. Sua irmã não falava, grunhia. Aos 21 anos ela grunhia. Mas Raíssa reconhecia nos grunhidos a mesma dor que sentia. Não ligava de ficar assada. Não ligava do corpo que doía. As marcas. As pontas de cigarro ardendo na pele. Até que um dia ela se sentiu mãe. Pegou sua irmã e fugiu. Seu pai a procurava há quinze dias. Sentia falta. Aquela falta vergonhosa que muitos pais sentem, mas que não revelam para ninguém. A dor de Raíssa não passava. O gosto estranho de seu pai foi trocado por outros gostos, tão amargos quanto. Qualquer tentativa de fuga era inútil. Não tinha mais pra onde fugir. Depois de tanta dor e sofrimento e de ver a própria irmã degolada, pois não quis se entregar naquela noite, Raíssa encontrou Débora. Os olhos de Débora faiscavam de ódio, mas não era ódio da menina. Mas ódio do que havia sido feito de Raíssa até aquele momento. Débora sabia que era apenas um abraço na vida da garota, pois tinha seus limites. O sistema, as leis. Tudo era limite. E Débora lutava com as armas que tinha. E todas armas eram pesadas para Débora, pesadas para Raíssa, até mesmo para a irmã da garota que não tinha mais peso nenhum. Raíssa havia chegado ao abrigo no dia 7 de outubro com data marcada para ir embora. Aos 17 anos, seu corpo coberto das escaras da rua. Era uma menina bonita, de sorriso fácil, apesar de tudo. O suficiente para Joca se apaixonar. Joca trabalhava no abrigo. De longe se namoravam sem ninguém saber. Apenas Débora sabia e avisava: aqui não, com ela não. Não antes dos dezoito. Por milagre, o bebê de Raíssa nasceu saudável. Um menino forte, sadio, de sorriso fácil como a mãe. Raíssa fez dezoito anos. Nesse momento Joca via o caminho livre, a possibilidade de fazer aquela moça feliz. Deixou um bilhete na cama da menina, 41


um pedido de casamento, a promessa de uma vida linda ao lado dele, humilde, mas linda. A casinha comprada há pouco precisaria de umas reformas, mas ele daria um jeito em tudo. Mas ninguém leu aquele bilhete.

PETÊ RISSATTI nasceu no Dia Nacional do Livro. Tradutor, escritor, leitor crítico, compositor diletante e professor. Participou das antologias BLAblablogue – Crônicas e Confissões e Todos os portais: realidades expandidas, de Nelson de Oliveira, e Assim Você me Mata (Terracota Editora). Em 2012, lançou o primeiro romance, Réquiem: sonhos proibidos. Mais em www.peterissatti.com.br

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a hora mais clara antes do anoitecer plínio camillo

4:45

Mato a saudade de minha vida. Choro de morder o travesseiro, por não ter tempo de melhorar. Choro de soluçar por não poder ter de novo. Choro.

9:33

— Alô? É da polícia? Não, não posso falar mais alto: estou escondido! Sabe o que foi? Fui raptado! Não… sou um menino, verdade, mais alto para minha idade, verdade! Sou um menino sim. Juro por Deus: posso ver a minha mãe morta atrás da porta se estou mentido! Sabe, estava indo para a minha escola. Sabe, a minha professora, a Ana Francisca, tem cheiro de gosto de lápis de cor e é muito bonita! Então, comprei uma pipoca e acho que colocaram “tochico” nela! Foi! Verdade! Daí… não sei… acho que desmaiei, sei lá, e acordei em uma casa estranha! Cheia de gente esquisita! Me chamam de pai... avô e o escambal! Verdade, moça! Até colocaram uma máscara em mim que pareço um velho! Juro! Sou um menino! Moça manda alguém vir me salvar, por favor!

4:40

Tudo parece um grande quebra-cabeça com peças faltando. Sonho visto por alguém míope.

10:03

Soninho depois do café. Esses remédios dão um sono!! — Chocolate me dá gases, desculpe?

4:41

Nem sei o que dará no final. Não sei como começar.

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4:55

Nas pequenas e ultimas claridades vespertinas, escrevo recomendações, que com certeza não vou seguir. Enquanto não escurece: rezo pelos meus netos e oro pela minha filha, a mais querida ao sul do Rio Pecos.

7:45 — Café puro ou chocolate, pai? — Prezada senhora, agradeço esta deferência de chamar-me de pai, porém lamento informar que não sou pai e nem de ninguém. Pretendo um dia ser, mas agora sou jovem, solteiro, desimpedido e tenho uma vida longa pela frente. Pretendo ser escritor, ator e sambista … — Chocolate ou café puro, pai? — Tem leite?

5:00

— Acordar cedo me dá gases, desculpe.

4:42

Nem sei para que terminar. Nem sei... Nem.

13:36

— Pai, peloamordeus, sai deste carro? — Tá bom... moça? — Filha. — Filha?!? — Filha! — Tá bom, filha … tá bom … mas sabe de uma coisa? — Digam mas saia! — Preciso fazer uma coisa na cidade, não me lembro mais o que era. Bem… deixa pra lá … então, viu... demorei muito para achar as chaves do carro. Depois de muito custo: achei! Entrei e liguei, mas não consigo lembrar como se dirige? — Pai, você nunca soube dirigir! — Não diga?!? Sei andar de bicicleta?

4:45

Está duro de me agüentar!

18:00

— Sabe onde a mulher tem o cabelo mais crespo? 44


— Vô! Presta a atenção: esta pegadinha é muito preconceituosa, racista e dá até cadeia sabia?! — Você sabe? — Vô já sei… já contou mil vezes — O que? — Onde a mulher tem o cabelo mais crespo? — Onde tem? — Vô! Peloamordedeus! — Carambola!! Nesta casa ninguém me conta nada!

14:00

Soninho da beleza do depois do almoço. — Feijão me dá gases, desculpe

21:00

— Onde já se viu? A novela das oito começar as nove?

6:30

Um alivio, sensação boa, seguido de vergonha. Faço no pijama Uma moça, que desconheço completamente, bate na porta entra e me manda tirar a roupa.

17:00

— Já tá na hora do Circo do Arrelia?

4:05

Reencontro o espelho. Susto: estou assim?!?

4:06

— Ainda tá lindo, papai. — Filha... esqueço... mas não sou cego.

4:10

Pedimos desculpas pelos descuidos, rimos dos desacertos, deslizes, erros e lapsos que tive.

20:05

— Siaquinevasseusavaesqui — Que é isto, pai? — Inglês 45


— Desde quando sabe inglês? — Desde sempre… e quem é você? — Sua filha, pai! — A mais velha ou a mais nova? — A única. — Nossa como você cresceu!

11:05

Acho que já fiz isto!

21:30

Soninho depois da janta! — Leite me dá gases, desculpe!

4:04

Sempre desejei ter uma filha. Sabe, filha é muito melhor que filho. Verdade: menina faz tudo o que menino faz e ainda dá para por vestidinho e laço de fita. Vou dançar com a minha filha no supermercado quando ela crescer!

9:27

— Sabe para que serve as redes na janela? — Não … — Para a filhota do papai não tentar voar!

4:01

Primeiro vem o gosto do sonho.

4:02

Devagar, depois alguns nomes, o meu nome, minhas coisas e onde estou.

4:03

O coração começa a desacelerar neste instante.

6:56

Leio um bilhete e não reconheço a letra: “Bom dia, tome a pílula amarela com meio copo de água e na dúvida; sorria sempre!”

7:10

Outra moça mais nova que a outra que diz ser minha filha me faz levantar. Ela 46


jura que é uma neta minha. Diz que eu a chamo de a neta mais linda ao oeste de Colorado! Finjo que reconheço, sorrio e obedeço. Dou um longo gemido misturado com um bom dia. Mando um beijo de despedida. — Não se esquece de levar uma blusa, tá frio lá fora!

12:30

Almoço no meu silêncio. Todos se falam. Comentam. Fico me sentindo em um jogo que não sei as regras. Riu conforme a expressão do freguês. Concordo sem saber. — Feijão me dá gases, desculpe!

7:18

— Socorro! Tem uma mulher no banheiro! — É a sua neta, pai...

4:03

A hora mais clara antes do anoitecer. A melhor hora! Revejo, confirmo tudo o que não recordei.

4:50

— Sabe para que serve as redes na janela? — Não… — Para o papito da filhinha não voar

4:57

— Lembrar me dá gases, desculpe

4:59

Quase na última luz, dou um grande beijo em minha filha. Sorrio torcendo para que logo a reencontre.

plínio camillo nasceu em 1960 em Ribeirão Preto. Reside em São Paulo desde 1984. É autor do romance O Namorado do Papai Ronca e da coletânea de contos Coração Peludo. Possui os blogs Outras Vozes, Bombons Sortidos, Coração Peludo e O Namorado do papai ronca.

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O TERNO BRANCO roberto gomes

Ele já não tinha nome. Era conhecido pelos apelidos, que eram muitos, dependendo de onde estivesse, dos amigos a sua volta, se era madrugada e estava numa boate, se anoitecia e estava num boteco. Só não tinha um apelido para as manhãs, quando passava dormindo, roncando demasiado alto para seu corpo pequeno, produzindo um estardalhaço sonoro que parecia capaz de quebrar vidraças. Acordava pontualmente às duas da tarde, a boca queimando, os olhos vermelhos, que dizia infestados por espinhos, não tem mesmo um espinho neste olho?, perguntava, abrindo as pálpebras com dois dedos em alicate. Saía da cama gemendo, ia ao banheiro, enfiava a cabeça debaixo da torneira e, num mesmo gesto, esticava a mão para apanhar a garrafa de conhaque que deixava no armário ao lado. Bebia no gargalo e estalava os beiços. Sempre vestido de preto. Uma calça e duas camisas pretas e puídas, que fediam a mil noites e muitas mulheres da vida. Só permitia que fossem lavadas às segundas-feiras, quando não acordava às duas horas da tarde e seguia roncando pelo resto do dia. Saía da cama quando já era noite. Pedia um café embora soubesse que ninguém o atenderia e, cruzando o corredor rumo à cozinha, declarava: — Segunda-feira é mesmo um dia que não presta pra nada. Tomava café frio, olhava com desinteresse para a televisão, diante da qual a mulher e a filha estavam plantadas como duas samambaias. Ia ao banheiro com algum estrondo, empestando os ares da casa, batia portas, deixava cair os sapatos quando tentava calçá-los, atrapalhava-se com a camisa do pijama, que enroscava nos braços. Depois desta encenação que repetia com uma precisão de relógio, dizia puta que o pariu que ninguém fala comigo nesta casa! e, parado no meio da sala, decretava, com ênfase: — Segunda-feira é mesmo um dia que não presta pra nada! E voltava para a cama, onde se punha a fazer cálculos na tentativa de descobrir há quantos anos ninguém o ouvia, há quantos séculos não tinha notícias da filha, que estava lá plantada no sofá, como era mesmo o nome da desinfeliz?, há quanto tempo não conversava com o filho, que cuspia para o lado quando cruzava com ele? E a mulher, quem era ela? 48


Depois, dormia aos solavancos até mergulhar num sonho onde havia uma mulher que lhe dizia: vem. Ele ia, sentava-se à mesa, contava casos, anedotas, pregava apelidos em quem estivesse por perto e fazia com que todos rissem muito e batessem nas suas costas dizendo que era mesmo um sujeito admirável, uma figura. Acordava na terça-feira, às duas horas da tarde, pontualmente. E recomeçava. No mais, terminava certas noites emborcado numa calçada, acordava com dois policiais cutucando suas costelas com o coturno. Noutras, abria os olhos numa casa desconhecida, no meio da madrugada, diante de uma cortina de plástico que era um escandaloso campo coberto com flores vermelhas e amarelas. Ou era erguido por dois braços fortes e jogado na rua, onde quebrava um dente contra o meio-fio. Ia até a farmácia, passava mercúrio cromo na boca, nos braços, na testa, pregava alguns esparadrapos pelo corpo e entrava no primeiro boteco. Foi assim até o dia em que chegou em casa num domingo à tarde, provocando alvoroço na vizinhança, o que ele fazia em casa àquela hora?, o que estava acontecendo? Atravessou a curiosidade daquela gente cretina sem se deixar abalar e entrou em casa com um pacote muito jeitoso debaixo do braço. Cumprimentou a todos, não recebeu resposta alguma, a filha na frente da televisão, a mulher fabricando os biscoitos com os quais sustentava a casa, o filho cuspindo para os lados como se fosse um preto velho de macumba. Entrou no quarto e, como sempre, deixou a porta aberta. Todos viram quando abriu o pacote com cuidado e dele retirou um terno branco, claríssimo, e uma camisa também branca. Viram quando estendeu o terno sobre a cama e dependurou a camisa num prego ao lado do armário. Despiu-se, jogando no chão o terno preto e a camisa preta, e estava nu, pois não usava cuecas, uma de suas implicâncias. Viram sua exibição inocente de carnes flácidas, a bunda murcha, o sexo desatento entre as pernas. Então ele vestiu a camisa branca, as calças brancas, o paletó branco. Olhou-se no espelho balançando a cabeça e, quando se virou para a porta, a mulher, a filha e o filho fizeram de conta que não estavam olhando e mergulharam de novo na tela da televisão. Ele veio até a sala, perguntou se ninguém ia lhe oferecer um café. Não teve resposta. Foi à cozinha e tomou um copo de água, derrubou uma caneca e, quando retornava ao quarto, disse: - Amanhã é segunda-feira e segunda-feira não serve mesmo pra nada. Quando entrou no quarto, os três observaram o modo cerimonioso como ajeitou o terno branco no corpo, acomodou os punhos da camisa, aprumou o colarinho, alisou os lençóis, afofou o travesseiro e se deitou na cama. Ficou muito reto, parecendo maior do que era, as mãos sobre o peito, os sapatos apontando para o teto, o nariz muito fino interrogando contra a janela ao fundo. Logo estava roncando aos arrancos. O filho fechou a porta do quarto, a filha aumentou o volume da televisão. Estranharam quando ele não acordou ao anoitecer da segunda-feira, pedindo café e reclamando que segunda-feira não serve mesmo pra nada. Só às duas horas da tarde de terça-feira abriram a porta do quarto. - Acho que não roncava desde as dez horas de ontem, a filha explicou ao médico que foi chamado às pressas. roberto gomes

nasceu em Blumenau. Reside em Curitiba. Escritor, professor universitário, editor, tradutor, publica crônicas no Caderno G do jornal Gazeta do Povo. Publicou Crítica da Razão Tupiniquim (1977) e os romances Alegres memórias de um cadáver (1979), Os dias do demônio (2001), Júlia (2008), O conhecimento de Anatol Kraft (2011).

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uma puta chamada esperança rodrigo rosp

— Tira a máscara, quero ver a tua cara. — Só no fim da festa. — Sem essa! Tu tem um pescoço lindo, deixa eu ver teu olhos. — É a regra. A pele bronzeada da nuca me deixa atordoado. Aproximo o rosto do pescoço dela. — Se não posso beijar a boca, só me resta essa parte — e toco os lábios na pele convidativa. Ela cala. Consente. Passo a beijar mais forte. Eu a abraço por trás, ansioso sanguessuga. Grudo a mão na coxa esquerda. O vestido longo não me permite avançar mais. Colo o corpo no dela para que sinta minha ereção. Ela não me impede. Eu sigo violentando o pescoço. — Tira a máscara, quero beijar tua boca. — Não posso quebrar as regras. Além disso, sou casada. — O que é isso, quer me deixar com mais tesão? Ela ri. Coloca as mãos para trás e agarra minhas pernas. Sem dúvida, quer me deixar com mais tesão. — Tem mais. Meu marido tá aqui na festa. — Puta merda. Eu te amo. Subo as mãos desesperadas até os seios grandes. Aperto bem, quase sinto os mamilos através do vestido. Ela geme. Viro a mulher de frente para mim. Ficamos cara a cara, os dois mascarados. Grudo meu corpo no dela de encontro à parede. Sinto o atrito das pernas, seu peito sólido contra o meu. Ela desliza a mão na minha calça e percebe o quanto me agrada. — Para com esse jogo. Eu te quero demais. Ela ri de novo. Pega minha mão e faz passar pela coxa dela, de baixo para cima, até desviar e tomar o rumo da bunda. Apalpo com força, já um tanto de raiva. Volto a beijar o pescoço. Nossos corpos grudados, eu ofego inquieto. Ela coloca a mão na minha calça. Segura meu pau duro, esfrega com vontade. Fecho os olhos e 50


aproveito o gesto de carinho. Mas logo ela me afasta. Nossos corpos separados, fico surpreso. A mulher dá dois passos para trás antes de sentenciar: — Para. Já é o suficiente. — Tu tá louca? — Nem um pouco. Tenho que voltar pra festa. — Espera. Acha que vou te deixar sair assim? — Quem escolhe sou eu — e vai embora sem ver meu olhar patético debaixo da máscara. Fico parado, zonzo, sozinho na varanda. Uma leve brisa ameniza a temperatura do ambiente, mas não a minha. Estou possuído. Meu corpo não sabe ficar insaciado. Dou mais uma volta pela festa, mas com tanto tesão não vou conseguir manter uma conversa com nenhuma mulher. A única saída é sair. Tiro a máscara e vou embora. Preciso de uma esperança, uma puta, sexo de qualquer forma. Sei o caminho. A Rua da Revolução é o endereço do baixo meretrício da cidade, ironia suprema com os heroicos combatentes que lutaram pela liberdade do povo. A brava revolução agora é homenageada por drogados, prostitutas, travestis e pervertidos em geral. Chego e percebo que o movimento é baixo, todo mundo já se arranjou. Não vejo nenhuma puta nas esquinas. Diminuo a velocidade e dirijo junto à calçada. Avisto uma criatura de pernas longas e encosto o carro. Ela curva o dorso em direção à minha janela, enquanto mantém as pernas esticadas. Abaixo o vidro do passageiro para iniciar um diálogo. — E aí, rola um boquete? — Claro, dez pila. Excelente, preço justo. Abro a carteira e sou contemplado por uma solitária nota de cinco. — Aceita cheque? Cartão de crédito? — Que é isso, bonitão? Tá querendo me gozar? Ela vê minha expressão e completa: — E sem piadas! Não há motivo para rir. Em segundos, revisto todos os orifícios do carro em busca de moedas. Junto mais três. — Oito! Faz por oito, por favor! — meus olhos arregalados são patéticos. — Não sei, tu parece meio louco com esse desespero todo. Procura outra. — Tá brincando? Não tem mais ninguém na rua. Tu é minha última chance. — Era — e dá as costas exibindo um traseiro volumoso, que se despede de mim com irônico rebolado. No caminho para casa, a tensão resiste. Entro na garagem, estaciono, subo. Abro a porta do apartamento, atiro os sapatos no chão. Tiro a calça na sala, ansioso por liberdade. A ereção permanece feito uma fome que só cede depois de saciada. Dou dois passos e vejo na mesa um brilho que me chama a atenção. Duas reluzentes moedas de um estão ali, atiradas, indiferentes, quase por acaso — um simples sinal divino de que minha noite ainda não terminou. Recoloco a calça e os sapatos com pressa. Corro até o carro, vou voando até a Rua da Revolução. Vejo a esquina onde conversei com aquela puta chamada Esperança. Nenhum sinal dela, apenas a triste calçada vazia. Encosto o carro à espera de qualquer coisa. Fico em silêncio, não há resposta lá fora. Abro a calça e visualizo a ereção interminável que ainda me acompanha. A solução está ao alcance das mãos. Pego a nota de cinco e a enrolo no pau. Utilizo 51


a mão esquerda e faço movimentos contínuos. O dinheiro me excita ainda mais: estou fodendo todo o mundo capitalista no meio da Rua da Revolução. Gozo na cara desse general que está sério na cédula. Relaxo. O coração ainda bate rápido, empolgado pelo orgasmo meia-boca. Recolho meu membro murcho e aliviado, enxugo suas últimas lágrimas. Abro o vidro e atiro a nota suja de branco no meio da rua, um singelo tributo àquele pedaço de papel sem valor e à ausência da Esperança.

rodrigo rosp

nasceu em 1975 e vive em Porto Alegre. Fez pós-graduação em estudos linguísticos do texto na UFRGS e cursa mestrado em Escrita Criativa na PUCRS. É escritor e editor da Não Editora e da Dublinense. Lançou os livros A virgem que não conhecia Picasso (2007), Fora do lugar (2009) e Fingidores — comédia em nove cenas (2013, semifinalista do Prêmio Portugal Telecom). Organizou a antologia 24 Letras por Segundo (2011), todos pela Não Editora.

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carmem

rodrigo westin

Eram 14:32 quando dois garçons quase bateram na casa de carnes que fervia no Flamengo. Digo casa para ser mais respeitoso com a formosa viúva que contribuiu involuntariamente com a bolsa para o quase acidente. Uma senhora tão distinta de 81 anos não frequentaria churrascarias. Múltiplas vozes de crianças eufóricas e familias reunidas regiam o baile naquela tarde. Bandejas abarrotadamente barrocas dançavam conduzidas por testas treinadas para que as gotas de suor atingissem somente o chão. Uma casa tradicional como esta imprime sua história nas paredes. Um detalhe de engenharia do tempo. Esse lugar sempre foi fino até o quinto copo. A sofisticada coroa folheava suas memórias ali todo domingo. Não tinha mesa preferêncial porque memória tem limite físico e emocional. O número de cadeiras pode ser muito nocivo. Ela demonstrava destreza com o passado e lembrava de tudo só pelo sabor. Talvez fosse por isso que passasse batom em volta da boca. A vaidade era comentada por todos. A exuberância, pela maioria; os cabelos azulados, pelas crianças e os adornos perolados com dourado, pelas senhoras mais competitivas. Já a silhueta frondosamente vivida, além de outras sortes, era altamente absorvida por Edgar, senhor de história similar, ainda anônimo nesta história por herança de timidez e princípios à sua falecida. A família da antiga beldade havia escoado pelos mundos. Recebia um postal de Lion, quinzenalmente da filha que ia e vinha em relacionamentos sem futuro. Para o vespertino almoção de domingo, convidava sempre a dona Simone, sua governanta do lar. Uma negra amadurecida de voz sorridente tão altiva que atraía admiradores nada secretos. Sem falar na emoção que despertava com os fartos contornos do samba que viveu. Sempre que chegavam, cumprimentavam a todos os trabalhadores do recinto pelo nome e eram recebidas com destaque. Seu Edgar sempre chegava sozinho 20 minutos antes e recusava mesa até elas se sentarem. Ficava lendo no bar com seu bloody mary acreditando que ninguém percebia sua estratégia. O vermelho e o álcool aditivavam a coragem da lasciva espera. Além do visual do copo ser complementar à echarpe verde chumbo rodeando o pescoço de galo nobre, ele vestia camisa social rosa chá com suas iniciais bordadas. 53


Sapatos lustrados severamente e calça acinzentada xadrez com vincos de rolo compressor. Tudo presente da neta, roupa de dia de festa. Pecava só num excesso. Emprestava cabelos da tempora esquerda para a direita. Aquilo atraía olhares debochados, além de permitir que alguns que refugiados ficassem bailando com o vento pela careca. Era hipnotizante. Ele sabia disso, mas alguns hábitos são tatuados. Compensava no perfume delicado e amadurecido da sua idade. O maître, atento ao suposto romance, oferecia sempre uma mesa com a angulação necessária para não ser óbvio. Seu Edgar apontava a capa do que lia para tentar gerar interesse. Levava poetas ou romancistas para o almoço pedindo ajuda naquele silêncio tão barulhento. A bela anciã reparava na presença semanal daquele aroma que não era carne, nem perfume de família. Só não enxergava bem. Edgar já desconfiava, mas como o futuro romance nunca pedia o cardápio, já que seu ritual gastronômico foi estabelecido há anos, não havia um mísero óculos para confirmar. Deus não ajudava tanto. A geriátrica donzela falava alto para poder escutar e Edgar fortalecia seu amor acreditando que era para ele poder ouvir. A hora de um contato se aproximava e sumia em zigue-zague no salão. Aquele frio na barriga adolescente era melhor que vinho para a aorta. No zigue, ele estufava o peito, sentia-se galã de novo e comprimia o olho direito com malícia para ativar a mira. No zague, lembrava da vida e do disperdício que poderia ser uma resposta negativa para os outros dias de mancebo apaixonado. Simone, a experiente do samba, percebia alguma constância naqueles almoços, mas estava mesmo interessada em absorver os olhares vizinhos e viver aquelas horas de igualdade social. As duas conversavam pouco. Havia cumplicidade na troca e um agradecimento mútuo pela companhia. A agitação do lugar inibia qualquer nostalgia e a melancolia ficava mesmo só para as sobremesas. Num desses zigues, Edgar levantou, depois de anos em estudo, passou pela mesa, esboçou um contato e parou no banheiro. Foram três minutos julgando pelo espelho a vergonha que acabara de proporcionar ao seu corpo. Por que não parou e perguntou ao menos as horas? Por que não acreditou na sua própria história e convidou-se para sentar? Porque não. Precisou vir encarar seu fracasso primeiro. Agora tinha um motivo a mais para tudo aquilo, afinal eram dois conscientes daquela derrota. Voltou para sua mesa, bebeu um café sem açúcar, xingou seu reflexo e pediu a conta. A semana passou e lá estava o Edgar de bloody mary com o Graciliano Ramos posicionado esperando o zigue. Chegaram as duas e sentaram. Meia hora depois, com a mesa já formada de batatas baroa, picanha salteada com abuso no alecrim e salada caprese, Edgar prometia para seus pés que a ordem seria clara. Ficou tão acanhado com o episódio anterior que nem o único amigo que sobrou dos tempos da Federação de Bocha ficou sabendo. E olha que esse amigo soube até da Solange Safadeza. Como ele já era viúvo, posso contar da vizinha de porta que gostava de safadeza na escada. A continuidade desse assunto é coisa desnecessária, principalmente em dedicação ao monumento histórico em destaque até aqui, que alíás não frequenta escadas e só usa salto alto. Voltando ao alecrim da mesa, Edgar bebia água e media todos os movimentos daquela restaurada mulher. Pressentiu um zigue chegando e quando começou o processo de iniciar um levante, uma voz suavemente laminada rasgou aquela aurora boreal com experiência. Com licença senhor, percebo que almoças sempre só aos domingos. Silêncio, gelo e o fim da zona de conforto. Olhou para a voz e viu uma 54


senhora receptiva a qualquer sinal de fraternidade pela corajosa exposição. Não conseguiu julgar o potencial daquilo porque estava constrangido demais com a surpresa. Meu nome é Carmem. Posso me sentar? Edgar olhou para os lados procurando a ratoeira. Poderia ser algum programa de tv ocupado em ridicularizar pessoas em rede nacional por uma nota de cem merréis com direito a uma risada aflita no fim. Poderia ser uma alucinação enviada por sua falecida esposa. Poderia ser uma senhora interessante. Se pensasse em mais possibilidades a situação ficaria ridícula. Carmem continuou já um pouco murcha, sem menosprezar as plásticas bem feitas. Desculpe pelo incômodo. É que vejo o senhor sempre sozinho lendo e pensei que pudéssemos conv. Antes de continuar sua despedida, Edgar percebeu que não poderia manchar 86 anos de impecável conduta e, em um retardado ato cavalheiro, convidou-a para sentar. Viveram mais alguns domingos felizes para sempre.

rodrigo westin é artista visual e também trabalha em design de produtos, direção de arte, design gráfico e branding no seu atelier: Sabatico S.A. Geralmente escreve para exorcizar o que vê nas ruas. www.sabatico.me

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ave

sidney rocha

— As avezinhas? [Isto faz também qualquer avoante, a gaviã faz o mesmo com os bruguelos, a águia é useira e vezeira nisso, a gente vê nos filmes antigos da Disney, mas gaviã eu já vi de perto quando também menino: ela dá no filhote no ninho um golpe doce de asa, e fica olhando ele ganhar os corrimãos do abismo. É normal. Não tem maldade qualquer a natureza. O gaviãozinho abre as asas e pronto. Começa a nova vida. A maior­zinha perguntou: pai, a gente tá indo pra onde, pai? Crianças têm direito de perguntar, a gente se envolve com o jeitinho de ave dos inocentes, sim, quisera qualquer um de nós poder recuperar um pouco o brilho daqueles rubis. A maior­zinha perguntou: pai, a gente tá indo pra onde, pai? Crianças têm direito de perguntar, a gente se envolve com o jeitinho de ave dos inocentes, sim, quisera qualquer um de nós poder recuperar um pouco o brilho daqueles rubis. A mais nova era uma pombinha assustada, as pálpebras transparentes, coloquei-a para dormir anteontem, eu podia sentir as pupilas brincando dentro das pálpebras fechadas, sonhando voos, sonhando outras aves, talvez, sonhando, enfim, o mister da inocência é sonhar. A maior seguia no braço. A menor gostava de indicar caminhos, sugerir direções; ia a pé: seria da estrada, acho, deus se afeiçoando seria engenheira, cigana, ou profissão mais de mulher: astronauta, talvez. Era um GPS a menina, a voz de mel no seu “vem por aqui” quase nunca se podia desatender. Mas naquela hora, não, desconversei, arremeti, caminhei mais. “Nós já passamos por aqui hoje, meu pai”, disseram. “Já”, “ ”, pensei, não era problema andar em círculos, repetir o branco da paisagem, que os urubus fazem isso o dia todo também contra o céu de carne azul. O importante é mudar a vida. Quando menino, aprendi o truque: para entrar na ducha fria, ligava a torneira, e deixava. Nalgum momento, me tomaria a mim mesmo de assalto e me empurraria assustado pra debaixo da catarata. É preciso treino para driblar a si mesmo. É truque que só crianças conseguem. Mas há uma réstia de menino em mim. A coragem dos meninos vem de estar livre para se compreender dois meninos ao mesmo corpo. Luziene e Luciene, aqueles dois sóis, parei. Usando nesgas do truque, arremessei 56


pela ponte Luziene, que era o sol no colo. Depois, num truque dentro do truque lancei pelo beiral da ponte Luciene que era o sol transparente. A águia faz assim. Vi a gaviã. Mais tarde soube dos bombeiros, da ponte, das menininhas lá embaixo. A polícia. A multidão. O que fazem na minha porta?] — Não, não eram as minhas. As minhas voaram — repeti, repeti.

sidney rocha é autor do romance Sofia (Iluminuras, 2014). Publicou Matriuska (contos, Iluminuras, 2009) e O destino das metáforas (contos, Iluminuras, 2011), com o qual recebeu o Prêmio Jabuti e de onde este conto foi retirado.

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apoio


SOTNOC ED ATSIVER


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