Alessandro Garcia Alexandre Nobre Cezar Tridapalli Delfin Eric Novello Flávio Izhaki Ivan Justen Santana Jardel do Amaral Junior João Paulo Vaz Luís Dill Mariel Reis Maurício de Almeida Mores Nelson Rego Nilto Maciel Paula Izabela Paulo Bullar Pedro Gonzaga Ricardo Calazans Rui Werneck de Capistrano
ANO 01 / # 03
REVISTA DE CONTOS
REVISTA DE CONTOS
© 2014 PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 2014 COM O TÍTULO FLAUBERT REVISTA DE CONTOS Nº 3 /// COPYRIGHT DA SELEÇÃO © 2014 FLAUBERT REVISTA DE CONTOS /// sentir © Alessandro Garcia // na casa de minha avó © Alexandre Nobre // mimosa pudica © Cezar Tridapalli // 104 tentava entender. mas ele conseguirá? © Delfin // palco © Eric Novello // a palestra © Flávio Izhaki // o rato era ela © Ivan Justen Santana // depressão © Jardel do Amaral Junior // os meninos © João Paulo Vaz // favela movie © Luís Dill // surrealismo © Mariel Reis // adentro © Maurício de Almeida // safra humana © Mores // platero e o mar © Nelson Rego // o menino e o lobo © Nilto Maciel // assim seja o apocalipse © Paula Izabela // galé espanhola © Paulo Bullar // a caixa © Pedro Gonzaga // meteoro © Ricardo Calazans // o sósia © Rui Werneck de Capistrano ///
os colaboradores asseguram seu direito moral de serem identificados como os autores dessa obra.
Todos os direitos desta edição reservados a
NESTA
EDIÇÃO:
9
Alessandro Garcia
E você é só a câmera sóbria que todos sabem que não devem encarar.
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Alexandre Nobre
Chamava-se casa de minha avó porque meu avô tinha morrido faz tempo, quando eu ainda não me lembrava das coisas.
17 Eric
19 Flavio
É ela quem deve se inebriar com minhas histórias, engasgar-se com o ar no susto de meus tormentos.
O escritor pensa muito nessas coisas em momentos como esse, em que está prestes a falar para 400 pessoas.
24 João Paulo
26 Luis
Novello
Vaz
Satisfação, desejo de poder eram sentimentos que ninguém ali experimentava havia tempo.
34 Mores Ela era gostosa pra caralho. Ruiva de olhos azuis. Pernas malhadas, daquelas que as coxas se roçam. Bunda honesta. Peitos naturais.
43 Paulo
Bullar
Havia dois anos que Ahmed era escravo na galé espanhola. Dois anos longe de casa e da família. Longe de Argel.
Izhaki
Dill
Jorge apanha a mochila do falecido e a abre. Ali dentro estão maços e mais maços de dinheiro.
37 Nelson Rego
Que travessuras e sentimentos Inocência contaria para mim e Lara em seu retorno?
45 Pedro
Gonzaga
Mesmo tanto tempo depois, sentindo a areia fofa nos pés descalços, remetido a uma inocência infantil, sentia-se um profanador.
12 Cezar
Tridapalli
Quando a vi pela primeira vez, a chave dos seus olhos ligou o meu motor.
21 Ivan Justen Santana
Ela abriu um guarda chuva ridículo, grotesco, cor berrante, numa palavra: estapafúrdio.
15 Delfin Tinha mesmo um talento especial para se deparar com o incrível e o inusitado. Por isso mesmo, em algum momento, todos o abandonavam.
22 Jardel do
Amaral Jr.
Na mão direita do amigo há algo que atrai a sua visão. É um revólver calibre trinta e oito com cano curto.
30 Mariel
31 Mauricio de
Dali acanalhou o inconsciente e o colocou nas gôndolas dos supermercados.
A BR 319 é um traço infinito que se estende como quem não possui tempo, moroso rumo a lugar algum em meio ao nada – nada.
41 Nilto
42 Paula
Reis
Maciel
Banhou-se pelo resto da noite, até que o Sol surgiu enorme, límpido, feito um disco d’ouro.
48 Ricardo
Calazans
– É, gatinha, é duro entrar no punk rock.
Almeida
Izabela
A vida se desatava em suor, urina e fezes. O odor jorrava vermelhos que se azulam.
51 Rui
Werneck de Capistrano
Não sei o que tem meu rosto pra que tanta gente me confunda com alguém que conhece ou conheceu há tempos.
CONTATO REVISTAFLAUBERT@GMAIL.COM /// ISSUU.COM/REVISTAFLAUBERT /// FACEBOOK.COM/REVISTAFLAUBERT
EXPEDIENTE EDITOR MARIEL REIS [MARIELREIS@IG.COM.BR] /// CONSELHO EDITORIAL ANDRÉ TARTARINI [A.TARTARINI@GMAIL.COM] // JD LUCAS [JDLUCAS.CONTATO@GMAIL.COM] /// EDITORES REGIONAIS RIO GRANDE DO SUL ALESSANDRO GARCIA [SEVEROGARCIA@GMAIL.COM] // CEARÁ ANDERSON FONSECA [AFCONSULTORIAEDITORIAL@OUTLOOK.COM] // RIO DE JANEIRO ANDRÉ TARTARINI, JD LUCAS // PARANÁ DANIEL OSIECKI [TROOPER_OSIECKI@YAHOO.COM.BR] // SÃO PAULO DELFIN [DELFIN.K@GMAIL.COM] /// PROJETO GRÁFICO ALESSANDRO GARCIA DIAGRAMAÇÃO STUDIO DELREY
os personagens e as situações dos contos aqui publicados são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opiniões.
ANO 01 / # 03 BRASIL 2014
EDITORIAL A
s mulheres são um mistério. A revista flaubert quer compreendê-las; não imediatamente, porque sofreríamos uma overdose: aos poucos esperávamos deslindados o rico mundo interior das escritoras em nossas páginas. A frequência ambicionada não surtiu o efeito desejado e entristecidos resolvemos abrir espaço no editorial para a discussão da presença feminina em nossa publicação. Os editores esforçaram-se para tê-las conosco; aderiram umas poucas, mas boas vozes desse conjunto maravilhoso de narradoras brasileiras contemporâneas. Desejamos uma crescente tomada das páginas da revista por essas muitas vozes de todas as estaturas para dá-las ao público que se enriquecerá por ter imaginários em interseção com o seu, ampliando-o em sensibilidade estética e em cabedal humano o próprio espírito. Lamenta-se que Nilto Maciel tenha-se retirado desta parte do mundo; transladado para o lado de lá, cá nos deixa sua extensa obra onde se debruçou sobre quase tudo e com muita competência. Anderson Fonseca, editor das paragens de Iracema, trouxe-nos uma pequena mostra da narrativa de Nilto Maciel entrada para patrimônio da literatura brasileira desde já. E não admite-se negativas quanto a isto, porque aquele que contatado com a contística produzida por este autor, reservará a si o espanto por não vê-lo incensado ou divulgado com maior insistência pela claudicante imprensa cultural do país – ocupada quase sempre por nulidades ou escritores menores que não possuem a menor pecha para o ofício, mas contam – todos – com bom relacionamento, bom tráfego nas redações e amigos sempre dispostos a levá-los a acreditar em seus delírios megalomaníacos e perigosos. O público terá que acostumar-se as novidades. E a boas novidades, porque, tratando-se de excelência, a revista está a
passos largos em suas escolhas para os elencos de suas edições. Está outra, não há adjetivo para qualificá-la adequadamente ao público leitor. A medida será a seguinte: tamanha inveja tive dessa edição que lhe resolvi macular com uma pequena página de minha autoria, incluída pelo conselho editorial, não por compaixão, mas exortada por suas qualidades intrínsecas. Desconfiei de todos quando me falaram nesses termos qualidades intrínsecas. O que se pode fazer? Fechar os olhos e acreditar. Foi o que fiz. Entretanto, passem logo à outra narrativa, sempre é a melhor a seguinte, creia-me, leitor. Ajuízado isto, se entristecido por ter fim a publicação, sairá com o espírito fecundado de nossas ilusões, senão todas magníficas, engastadas terrivelmente por seus criadores na ficção, vivendo paralelamente a nós, na ante‑câmara da esxistência, lá , nesse endereço, deve estar Nilto Maciel em conversa fiada com suas criaturas como certa vez se pegou um tal Dostoievsky. Lamentei a falta das escritoras, a morte do contista Nilto Maciel, escrevi linha por linha o editorial no LibreOffice Writter; tudo parece no lugar, creio. Ah, os leitores; sim, estes para os quais a flaubert é feita, não se acanhem. Adentrem o território, marquem-no com suas impressões pessoais sobre cada autor e se sentir impelido por lhe ter a narrativa motivado, procure o escritor para uma conversa sobre os caminhos e descaminhos desta ou daquela ficção. No próximo número dedicado à prosa, espero ter notícias felizes em relação ao aumento da contribuição de escritoras. Indiquem-nos, caros leitores, de modo geral, onde tê-las, porque as colheremos com mãos bondosas. Muitas felicidades a todos. Sejam bemvindos. Está no ar a terceira edição da revista flaubert, campeoníssima sempre com o afeto de todos. MARIEL REIS // EDITOR
SENTIR
alessandro garcia
I.
E, veja, dobrar os braços para ostentar os músculos inchados sob a manga da camisa, como Martim está fazendo agora, ainda provoca as mesmas risadas excitadas nas meninas, como desde sempre. A casa está repleta de personagens — inverossímeis como figurantes de séries adolescentes oitentistas. E você é só a câmera sóbria que todos sabem que não devem encarar. Eles gravitam ao seu redor como se você não existisse, as mãos com design sob medida para aparar a bagana que queima o tetrahidrocanabinol ao mesmo tempo que suspendem pesados copos de bebida amarela tilintando gelo, e é claro que os pais de Vicente não se importarão, o que são algumas garrafas a menos? Todos, com exceção de você, dominam as técnicas-de-conversação-aleatória — estão sempre prontos a enfileirar piadas-internas com agressividade incontrolável, mesmo aqueles que só se sustentam em pé porque desafiam a gravidade, em solenes acenos de cabeça para ninguém, talvez para o retrato da parede em frente —, mas parece que ninguém está interessado em exercitar estas técnicas com você. Então você permanece sendo câmera.
Pioneirismo científico experimental, você pensou. E sentiu algo. Que foi muito distante do que se deve sentir ao cheirar a pele de uma menina bem de perto. Que foi muito distante do que se deve sentir ao tocá-la naquela dobrinha macia entre a axila e o seio. Mas é o que há para você sentir; então você relaxou e seu corpo moldou-se ao courino marrom da poltrona do reduto, o seu reduto, este espaço escuro e subterrâneo onde você é deixado em paz — somente alguns metros abaixo do que é o caminhar de pés arrastados do seu pai, àquela hora já provavelmente movido à Jim Beam; longe o suficiente para não ter que ouvir a TV ininterrupta, do quarto cheirando a mofo e à angústia, bordões humorísticos informando à sua mãe quando já é hora de rir, então ela devia estar rindo. Por baixo do aconchego do edredon, por baixo do calor do chambre, por baixo do torpor do cloridrato de sertralina, ela devia estar rindo —, e então você abriu o pote de vidro, acordou-o de sua sonolência sobre o pedaço de colchão e pôde permitir que um dos cimex lectularius cumprisse o que é parte de seu ciclo de desenvolvimento, sentindo-o em sua pele, um clique sem som penetrando na sua mão. Sentiu também o gosto do buço, salgado. E depois foi somente um pequeno eritema em sua mão esquerda, naquela região gordinha entre o indicador e o polegar, onde ninguém irá perceber, isto se alguém perceber você em casa de Vicente. E depois, por que motivo você iria se preocupar?
III.
Sua lente, e é claro que esta é mais uma das informações novas que chegam a você na velocidade em que se descortinam, enquadra uma daquelas personagens secundárias que, cedo ou tarde — como em qualquer série adolescente oitentista — acabam ganhando destaque na trama. E você sabe, sim, que é por que os efeitos do tetrahidrocanabinol já estão impregnando seus receptores canabinóides de euforia (e por isso ela levanta os braços em sua direção, com a receptividade de quem reencontra uma velha amiga), sensação de bem-estar (e por isso falar e tocar em você parecem coisas capazes de fazê-la sentir-se realmente plena de prazer) e de distúrbios da memória (e por isso ela o abraça, de tempos em tempos, como se realmente o conhecesse), que é por isso que ela age como age. E você tem sensibilidade para praticamente ver sua atual incapacidade crítica, desibinição extrema e sociabilidade aguda — adicionados pelo líquido amarelo que protagoniza presença tilintante no pesado copo que, também ela, suspende em uma das mãos —, atuando como se fossem entidades físicas, grudando-se a ela como tentáculos, da mesma forma como
II.
Seria só porque depois desta noite eles irão falar de você e do que você fez, como se fala de alguém que já morreu (e alguém lembrará de ter notado a estranha marca na sua mão)? Mas isso você ainda não sabe. Também não sabe como então será difícil entender aquela espécie de ritual, mas talvez se assemelhe mais a uma cerimônia memorialista em que cada atitude é relembrada com o carinho que se tem ao recordar os feitos de amigos que já se foram. Só que será sem carinho. Mas isto será depois. Depois desta noite. Por enquanto, mesmo umas três horas após você já ter chegado, todo mundo está apenas fingindo ser o que não é. 9
ela agora se gruda à você, logo você, fazendo-o sentir o eriçamento dos pêlos clareados à parafina de seus braços, fazendo-o sentir seus longos cabelos claros chocando-se com sua própria pele e seu volume sob a calça elevar-se, tão perto ela está, tão perto como nenhuma outra menina jamais esteve. E é estranho que, agora, todos pareçam ter descoberto sua câmera (e alguém pareça ter notado a estranha marca na sua mão). Os rostos voltados em sua direção carregam expressões que revelam diferentes graus de habilidades de atuação, o torpor como um elemento comum. Mas há algo que você sente em todos, como uma grande interrogação que alguém desenhou em tinta fluorescente e só se revela agora, sob ação da luz negra com que eles estão mais ou menos sacudindo seus corpos. O que ele está fazendo com ela ali? É isto o que você sabe que todos ainda possuem capacidade de questionar, todos estão questionando, de uma forma violenta que não é preciso outro componente para revelar. E é por que você sente esta violência no ar, por que o ar está impregnado desta violência, e é por que você sabe que há coisas melhores para sentir, que você a conduz pela mão, abrindo a porta da casa de Vicente que dá para a rua e, em apenas alguns segundos, nenhum dos dois está mais ali. Você jamais esteve ali.
bem de perto e então afivela suas mãos na poltrona de couro com seu cinto, quando você prende suas canelas com silver tape, você sabe que ela continua relaxada; ela só balbucia seu nome tantas vezes, por vezes parecendo que quer gritar, na ansiedade de querer entender, afinal, qual é a sensação. Mas você não fala. Você só abre o pote de vidro, colocando o percevejo sobre a maciez de que é feita a mão dela, permitindo que ele cumpra seu ciclo. E então você deixa que ela possa — assim como você — sentir.
IV.
Porque é como se você nunca tivesse saído do seu reduto, sua silhueta eternamente marcando em suor o courino craquelado da poltrona que é seu trono. É como se você nunca tivesse estado em casa de Vicente. Qual o motivo para você estar lá, afinal? Ser o estranho experimento deles? Por isso você está novamente em sua casa. Os ruídos acima já cessaram por completo. E este é o som que se escuta de alguém tentando não fazer barulho — é você, adaptandose ao fato de não estar só, conduzindo a sua, ainda que levemente, relutante convidada. Ela fala coisas que você não entende, distanciando-se um tanto da euforia que a dominava até tão pouco tempo atrás. Você também fala coisas que os outros não entendem, quando resolve falar, quando tenta traduzir sua satisfação em ser parte do experimento com os percevejos. Mas seu pioneirismo científico sobre a alteração do ciclo reprodutivo dos cimex lectularius nunca é do interesse de ninguém. Então você permanece sendo só e sentindo o que só você sente — esta sequência aprimorada de apertar de dedos do pé, arrepios percorrendo sua coluna cervical — sentindo o poder e o prazer de se deixar morder por um dos seis insetos que você retira com cuidado do pote de vidro. Mas não é possível que alguém mais não possa sentir com você. Ela está disposta, você sabe. Letárgica, pulsação relutante, mas você sabe que ela está ali com você para sentir algo mais do que as habituais tragadas a fazem sentir. Porque aquilo é o que todos sentem, e ela, como você, está disposta a sentir algo a mais. Você sabe. E ela não impõe resistência. Quando você cheira sua pele
ALESSANDRO GARCIA é autor de A Sordidez das Pequenas Coisas, finalista do Prêmio Jabuti e segundo colocado no Prêmio Fundação Biblioteca Nacional. Tem contos traduzidos para o espanhol e inglês. É colunista da Last Call for Beer! e editor regional da Flaubert. Prepara o lançamento do livro infantil Números São Muitos Mundos e do romance A Zona da Invisibilidade. www.alessandrogarcia.com
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na casa de minha avó Alexandre nobre
N
a casa de minha avó, havia um quintal antigo e comprido, salpicado por uma constelação infinita de árvores. Chamava-se casa de minha avó porque meu avô tinha morrido faz tempo, quando eu ainda não me lembrava das coisas. À direita, a casa estendia-se até quase a metade do terreno. Depois, havia o quartinho de guardar ferramentas e uma goiabeira quase esquecida, lá no canto, longe de tudo. Mais para o fundo, ficava o rancho dos empregados e um cercado onde moravam galinhas, marrecos, patos, e um papagaio trepado num camarote de galhos. O papagaio tinha uma correntinha que o prendia à árvore. No quartinho de guardar ferramentas eu não entrava nunca, pois vivia com medo do barulho dos bichos e das coisas que se moviam por lá. Do outro lado, à esquerda, havia um universo híbrido e multicolorido de árvores: pés de laranja, mexerica, manga, goiaba, jabuticaba e uma outra com a cara carregadinha de amoras. Entre esses dois corredores contínuos, abria-se um caminho de terra batida, coberto por cascalhos, onde agora dormiam os carros, mas antes havia os cavalos e a charrete de meu avô. Na frente da casa, uma varanda e um jardim de flores. Duas cadeiras de ferro, dessas de fitilho plástico, estavam sempre prontas para o descanso após o almoço ou o jantar. Uma cadeira era verde; e a outra, vermelha. Eu estava sentado numa das cadeiras, as mãos em V, apoiando a cabeça, olhando para a rua vazia. Era um desses dias quentes, de início de verão, perto das duas horas da tarde. Tudo estava muito quieto, as janelas estavam fechadas, e não havia ninguém andando pelas ruas. Até os cachorros pareciam ter desaparecido. Eu devia ter seis ou sete anos de idade e costumava olhar para a rua deserta, sem nenhum pensamento certo, como se adivinhasse que qualquer coisa importante ainda iria demorar muito a acontecer. O sol forte castigava o telhado das casas, e do asfalto subia uma fumacinha quente, mas não havia nada que eu observava em particular. Apenas olhava para a lentidão daquela tarde silenciosa. Então, vindo de uma das esquinas, começou a crescer um som arrastado, de borracha grudando no asfalto pegajoso. Logo apareceu um menino, pedalando uma bicicleta. Era um menino forte, um pouco maior do que eu, e vinha pedalando muito lentamente a bicicleta, parecendo derreter sob o duro sol de começo de verão. Vestia short, estava
descalço e sem camisa, e muito, muito sujo. Mesmo o short que usava era velho e cheio de furos. Ele veio passando pela rua devagar, observando-me com os olhos firmes, enquanto atravessava em frente a casa. Não sei bem por que, levanteime e me aproximei do portão olhando por cima do muro baixo. O menino pedalou por mais uns dez metros e então parou. Fiquei olhando para ele e ele também olhava para mim. Não havia nada de especial a ser visto, apenas dois meninos encarando-se numa tarde quieta e tranquila. Então ele se abaixou, pegou uma pedra e disparou-a lá de longe, em minha direção. Fiquei imóvel, vendo o movimento da pedra no ar. A distância era muito grande, mas a pedra veio voando bem alto, fez um meio círculo para baixo e caiu com toda a força sobre minha cabeça. Levei a mão até onde a pedra havia batido, perplexo, sentindo muita dor. O menino permaneceu me olhando de onde estava. Quando percebeu que não haveria contra-ataque, calmamente montou em sua bicicleta e continuou pedalando pela rua. Permaneci ainda alguns minutos parado no portão da casa, sem entender direito o que havia acontecido. Depois atravessei o jardim e a varanda, entrei pelo corredor comprido, e fui me trancar dentro do banheiro para chorar sem que ninguém percebesse. Quando saí, o mundo tinha mudado.
ALEXANDRE NOBRE é paulistano, mas reside em Ribeirão Preto, interior do estado. De São Paulo. Ex-guitarrista de bandas de blues e rock, lançou em 2013 o livro de contos “A mangueira da nossa infância”, que reúne contos premiados em diversos concursos literário do País.
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mimosa pudica cezar tridapalli
F
oi por causa da enxaqueca que aprendi a flertar com a escuridão. O escuro não permite que sejamos distraídos pelos olhos. Ou traídos pelos olhos, num trocadilho fácil. O que surge do escuro são imagens que não brotam de outro lugar que não seja de uma cabeça momentaneamente sem janelas. Ela, a enxaqueca, também exige silêncio. Dos cinco sentidos, ela é inimiga de quatro: visão, audição, olfato, paladar. Não como nada durante uma crise. Cheiros me engulham o estômago. Os sons altos são bombas de ar que inflam o crânio. Luzes me cegam e agulham as pálpebras. Os pequenos monstros que me visitam – chamo-os de monstros, embora não os veja direito – não surgiram, portanto, por acaso. Eles chegaram tateando (o tato não é inimigo da enxaqueca) o ambiente obscuro, bateram a canela nos móveis, gritaram de dor, riram da situação inusitada, ai, bati meu dedo, o que é isso aqui no meio da sala? E se instalaram. O que resta a alguém privado dos sentidos são esses seres de memória e imaginação. Uma aponta para trás, a outra pode apontar para a frente, uma frente feita de inexistências e um atrás feito de pedaços emendados por costureiros infiéis. Apaixonei-me por Ana aos vinte e cinco anos. Ela contava dezessete. Lembro-me das mãos adoráveis. Como eu gostava de pegar naquelas mãos. Seria bom para ela pegar nas minhas? Agora, no escuro, agarro minha própria mão (o tato), mas me perco entre a mão que sente e a que é sentida. Sujeito e objeto a um só tempo. Minhas esperanças eram burras. Eu queria que minhas mãos ásperas alisassem o comportamento áspero de Ana. Asperezas com asperezas fazem nascer o improvável, eu pensava: lixa na parede arisca origina lisuras insuspeitadas (a lixa se desgasta, a parede se alisa). Esse era meu raciocínio e também minha esperança. Porque Ana, apesar das mãos lisas, era uma parede áspera. Um desdém de quem aceitava o flerte por comodidade, por ter preguiça de ter que ir embora. Pescadora que fisga o peixe, mas não o recolhe nem o devora. Falta fome. Deixa-o se debatendo com o anzol escarafunchando as gengivas. Ela soube até o fim como me manter apaixonado: tratandome com indiferença, lançando uma ou outra migalha que eu sempre quis entender como carinho. Fomos morar juntos uma semana depois de meu aniversário de quarenta anos. Fiquei quinze anos apaixonado por Ana até ela resolver morar comigo. Depois, continuei
apaixonado. Ela não. Nunca foi, nem antes nem depois. Não houve magnetismo. Fui seu ímã, ela apenas parede fria. E áspera. Eu tentava me agarrar, mas caía o tempo todo. A paixão nasce de um tranco. Um flash. Quando a vi pela primeira vez, a chave dos seus olhos ligou o meu motor. Mas meu olhar não ativou nela ignição alguma. Até hoje julgo ouvir o barulho de um carro afogado fazendo aquele nhenhenhém que, agora sei, não iria a lugar nenhum. Essa foi a minha tentativa de fazer seu motor ligar por mim: um inútil nhenhenhém. Como apertar o botão de um elevador parado, sem energia. Ele jamais vai até você, não importa se você aperta o botão uma ou mil vezes. Comprei anel, ela achou muito antiquada a atitude. É démodé, disse. Então propus, moderninho vacinado, casar só no civil. Ela deu uma risada e perguntou em que século eu vivia. Segurei pra valer a lágrima que queria descer dos olhos quando entramos pela primeira vez no apartamento que dividiríamos. Comprimi os lábios, fingi um cisco, a lágrima se recolheu, contrariada. Ana acreditou no cisco e quase se ofereceu para soprar meus olhos. Senti mesmo que ela quase se ofereceu. Eu lia o quase como uma manifestação de carinho dela e isso me bastava para ser feliz. Insinuei uma viagem e ela tirou sarro – uma lua de mel? Mas aceitou ir ver o mar. Quinze anos apaixonado. E ela se apaixonou em quinze segundos pelo homem sentado no banco da praça, que via o mar. Não ser apaixonado é condição básica para ser apaixonante. Isso é o que dizem esses seres que habitam meu escuro. Que eu chamo de monstros, repito, sem saber bem por quê. Parecem ter se acostumado à escuridão e já não esbarram nas coisas com tanta frequência. Conversam de modo confortável, acendem cigarros, tomam café, dão suas risadas. O homem via o mar. Além do mar, a linha que o divide de um céu. Apesar do olhar perdido, resolvi abordá-lo, dizendo boa tarde, estou perdido, você sabe onde fica a igreja? Ele disse que fazia sentido eu querer rezar porque eu tinha muito a agradecer. Mas disse isso olhando para Ana, e sorrindo para ela. O motor deu a partida, o elevador carregou-se de energia e atendeu o chamado, o sorriso de Ana para o homem que via o mar era diferente da risada que ela dava de mim. A boca não fazia nada muito diferente do costume, distendendo-se, mas os olhos sorriram junto. E nada mais revelador do que 12
olhos sorridentes. A lágrima que contive quando mudamos para o apartamento me perguntou posso sair agora? Eu inspirei fundo, como se sugasse o ar com os olhos, a lágrima novamente tragada pra dentro de mim. Na frente do homem que via o mar, Ana propôs que eu fosse à igreja sozinho. Ela queria outras imensidões. Eles falavam comigo, mas se olhavam entre eles. Vai, José, vai procurar a tua igreja. Vai, José, você precisa mesmo rezar para agradecer. Pus a mão no ombro de Ana, mas minha mão pousou em falso. O ombro dela descia junto com o resto do corpo, que se sentava no banco. Os costureiros infiéis da memória e a imaginação que projeta inexistências (ou: os seres que habitam meu escuro e conversam na sala de estar e ser da minha cabeça) me sugerem reconstruir o outrora agora. Ana, dê licença, deixa eu olhar o homem sentado no banco, me deixa observá-lo longamente, ver detalhes, os cabelos grossos e lisos, como o nariz se encaixa no rosto, qual o desenho da boca, se as orelhas são simétricas, a barba sem redemoinhos, de que modo o pescoço sustenta a cabeça, como o ar vibra nas cordas vocais, se trejeitos com as sobrancelhas, um maxilar protuberante, o que tem ele que faz você soltar esse sorriso de rosto inteiro, despenteado e chacoalhante. Homem do banco, fale comigo, quinze anos contra quinze segundos. Olhe pra mim e diga se meus cabelos não são mais bem cuidados que os seus, se meu nariz não harmoniza melhor com a minha boca. Está vendo esse pomo de Adão? É ou não é mais viril? Minha voz é mais aveludada que a sua. (Quando adolescente, esforcei-me por parecer fracassado para fazer um amigo sobressair. Fiquei feliz por alimentar nele a mesquinharia. Ele ficava bem por me ver menor e poder me pisar. É ou não uma atitude nobre?) Puxei Ana pelo braço e a levei para o hotel, em frente à praça do banco e do mar. Depois pedi desculpas. À noite, disse que precisava passear sozinha. Da varanda, o escuro ampliou-me as imagens. Vaivéns de vultos, casais indistintos, qualquer um poderia ser Ana e o homem do banco da praça do mar. Todos eram Ana e o homem do banco da praça do mar. Os beijos molhados à luz amarelada e frágil da praça eram de Ana. À sombra das luzes, na rua paralela, Ana também se deixava agarrar. No outro canto da praça, Ana era quem agarrava com força nunca vista. Enquanto eu observava a oitava Ana da noite, ela entrou pela porta do quarto, tirou a roupa e me esperou. O escuro a esconder o olhar e a tornar imagináveis todos os olhares. A dúvida de mil torturas, de tanto doer, amorteceu. Homem do banco, como tornar-me outro? Eu precisava tornar-me outro para merecer uma Ana inteira, sem metades nem metades de metades, migalhas. Eu precisava me apagar, começar de novo meu jeito de ser visto pelo olhar viciado de Ana, que só enxergava em mim o rosto de sorriso suplicante, a mão áspera querendo alisá-la sem jeito. No dia seguinte, fiz semblante sério e decidi falar com firmeza. Esperei-a para o café e as palavras já estavam prontas para sair, duronas, Ana, cansei desse lugar, vou embora. Ensaiei inspirado em ator de novela, em galã. Antes de dizer o Ana, porém, a lágrima de sempre, aquela tantas vezes recolhida, impediu qualquer voz, tornou-a sua refém,
estrangulou a garganta e só deixou sair o silêncio. Cansei desse lugar, vou embora, foi Ana quem disse. Voltamos para a cidade. Mas ela trouxe uma lembrança perene da praia. Na noite das muitas Anas, ela engravidou. Duas vezes retornamos para ver o mar, ela pedira, e dava seus passeios pela praça à noite enquanto eu, da varanda, via meus monstrinhos povoando o escuro. Algumas vezes vomitou nas minhas mãos em concha. Outras vezes grudava a concha aos ouvidos para evocar o barulho das ondas. Enjoava como se estivesse em altomar. Mas estava em terra firme, e talvez isso a nauseasse. Minhas perguntas sempre covardes. Você está bem, quer alguma coisa, um travesseiro a mais nas costas? As perguntas corajosas sob a tocaia da lágrima contida e ameaçadora. As perguntas corajosas tinham medo. Enquanto a barriga crescia, vi Ana desaparecendo. Em plena luz do dia e sem enxaquecas, ia fechando as janelinhas e se recolhendo dentro de si. Com a frágil ponte entre nós ainda mais enfraquecida, rompeu-se a corda. Viramos pedaços de ponte sem ligação. Ou lagos, sem rios. Fluxos interrompidos. Poças que não se comunicam e vão secando. Demos até de falar sozinhos. Eu era atacado por crises de enxaqueca e me entocava no quarto escuro. Ana não se mexia muito, dava um pequeno espaço na cama e permanecia lá, a barriga crescendo, ela diminuindo. Lado a lado, ouvia seus sussurros consigo mesma enquanto eu ruminava minhas próprias incompreensões. Mas não estávamos loucos. Não se tratava do caso de alguém arrombar a porta do quarto com duas camisas de força, injeções ou choques. Qualquer eventual visita que aparecesse, levantávamo-nos, oferecíamos um café, um cigarro, ríamos um pouco sobre as coisas que nos prendiam à vida. A enxaqueca não é inimiga do tato, repito. Sinto o menino aqui comigo, deitado de lado, ressonando já há mais de uma hora. Sua cabeça está aninhada na minha axila esquerda, meu braço e tórax servindo de guarida. Minha mão direita percorre seu corpinho de dois anos. Tateio seus pés descalços, aperto-os com gosto e carinho. Toda a palma da mão atenta, sensível ao contato, buscando a máxima área de toque. Vou subindo até tocar sua bundinha redonda já livre das fraldas, toda a barriga e peito crescendo e não mais cabendo no diâmetro da minha mão que, quente, passeia agora pelo seu rosto, bochechas. Tudo é muito delicado. Tenho um metro e noventa e seis. A altura disfarça minha silhueta rechonchuda. Se eu encolhesse mantendo a proporção das medidas atuais, seria um bebê perfeito, bonito e engraçado. No escuro, os monstros me ditam a imagem: que tamanho deveria ter um ser que envolvesse meu corpo de adulto em seus braços da mesma forma como abraço os noventa centímetros de meu menino? Estampa-se então na câmara escura um ser imenso a me acocar em sua axila esquerda, circum-navegando-me. Quanto ele mede? Três metros, três metros e meio? Quatro? Meus pés sentem a palma de uma mão enorme envolvendo-os e apertando-os com força e carinho. Essa mão gigantesca e vigorosa sobe pelo meu corpo, me arrepia, passa por entre as coxas, bate de leve e 13
acaricia minha bunda. Carinho, só carícia, sem malícia, só delícia, a mão continua seu passeio enternecido, dedos descomunais em torno de meu queixo e pescoço, bochechas rutilantes tocadas por essas mãos em concha, oceano de pele, unhas e ossos abrindo picadas entre meus cabelos. A mão gigante não é predadora, mas seu toque me encolhe. Mais trocadilhos fáceis: me escolhe, colhe, recolhe, me acolhe. Meu corpo é a planta dormideira, a mimosa pudica. Encolhimento não é fuga, é aconchego de feto em útero. Quanto a Ana: transfundiu-se no menino. Vida que se foi aos poucos passando de um corpo a outro. É da norma termos um filho e ensinarmos a ele algumas coisas sobre o mundo antes de morrermos. Veja, meu filho, eis alguns caminhos possíveis, agora me vou, adeus. Mas Ana preferiu não esperar, preferiu passar-lhe o bastão da corrida sem instruções. Vai, meu filho, segue você porque eu cansei. Morreu quando ele nasceu. Não sei com que requintes de exatidão, mas assim foi. É bonito pensar que foi o último sopro de Ana que insuflou os pulmões do menino. O último gemido deu a ele a voz. Ana sempre foi meu labirinto. Sem João nem Maria, na floresta em que me perdi, as migalhas jogadas pelo caminho serviram para me desorientar mais. Pena não terem surgido passarinhos para sumir com as migalhas atiradas ao chão. Eu poderia ter me achado. Poderia ter erguido o olhar e visto adiante. A cabeça baixa, porém, sempre foi meu vício. É que o caos tem seus métodos. Ele desarruma e propõe na desordem. Mas não sei ler desordens. Se estou aqui junto ao menino e ao ser imenso – que me encobre com as mãos em concha – cerzindo um passado aos pedaços mergulhado na infidelidade da memória, à frente tenho um futuro inexistente, página em branco prometendo um devir escuro. A imaginação não consegue projetar. Um dos monstros talvez tenha cochilado, não me sugere nada, não me dá pistas sobre que caminhos preciso desenhar no compasso do tempo. O menino acorda, eu desperto. Também o ser imenso que me impunha as mãos com a força de dez touros. Acariciamonos, eu ao menino, o gigante a mim. Encolhemo-nos, o menino e eu. Daqui a pouco, os sentidos todos voltarão a funcionar e eles vão me distrair. Alegro-me. Preciso ser distraído, beber as cores do mundo e ouvir o rosto do menino descabelado e sonolento. O gigante sumirá e talvez não volte mais à minha lembrança, ou talvez retorne apenas como um resíduo distante da memória. Rirei dessa imagem criada durante o tempo em que os sentidos ficaram desmaiados. Onde já se viu? O que o torpor é capaz de produzir, conversarão os sentidos entre si, de volta ao controle. A culpa é da enxaqueca, dirão eles enquanto, abismados, expulsam os seres que haviam tomado posse da sala escura. Saiam pra lá, malucos. Hora de abrir as janelas, deixar a casa arejada, limpar os cinzeiros, espanar poeiras, colocar a consciência no sol, pendurar as lágrimas no varal. O fim da enxaqueca vai me dar fome. Também eles devem estar famintos – quanto não deve comer esse sujeito de quatro metros? Mas ele, daqui a pouco, vai sumir. Sim, ele vai sumir, não me dará despesas de nenhuma ordem, nem desordens. Restaremos somente nós dois, meu menino.
Tua mãe, os monstrinhos, o gigante, eles serão apenas seres longínquos abafados pela força colorida e violenta da vida que entrará pelas nossas portas e janelas escancaradas. Sorriremos de verdade, com pipoca e macacos no zoológico. Você pegará na minha mão, ela me parecerá gigante. Mas não vou me encolher. As inexistências que nos perdoem.
CEZAR TRIDAPALLI nasceu em 1974, em Curitiba, cidade onde sempre morou. Na Universidade Federal do Paraná, estudou Letras e também fez mestrado em Estudos Literários. É autor do romance Pequena biografia de desejos (7Letras) e O beijo de Schiller (Arte & Letra), vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2013.
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104 tentava entender. mas ele conseguirá? delfin
P
orque o fundo do mar era cada vez mais fundo e tudo o que ele queria agora era afundar, cada vez mais. Seria como colocar em prática os sentimentos de pressão e depressão que estava sentindo desde que ela o deixou. Dizer que 104 estava triste seria amenizar um sentimento que ele mesmo não conseguia descrever. No dia em que decidiu abandonar seu nome e se tornar um número, 104 rompeu com toda a sua vida anterior. E descobriu que o mundo era cheio de maravilhas inexploradas e absurdas. Ele agora fazia parte disso, do processo aleatório de catalogação de itens que não eram parte de nenhum acervo, nem conhecidos de qualquer enciclopédia. Tinha mesmo um talento especial para se deparar com o incrível e o inusitado. Por isso mesmo, em algum momento, todos o abandonavam. Com ela não foi diferente. Eis porque ele decidiu mergulhar. Apontou um local remoto no oceano, deu um jeito de chegar até lá e, como sempre fez, se lançou ao desconhecido. Afundar estava entre as coisas fáceis. Respirar e suportar a pressão à medida em que afundava eram questões mais complicadas. Mas lembrou-se de que um traje cheio de um líquido similar ao amniótico poderia lhe prover todo o sustento de que necessitava, pelo menos por algum tempo, além de ajudar muito com a questão atmosférica. Os filmes sempre salvam a minha vida. 104 acreditava realmente em conceitos frágeis como esse. O fato é que ele também iria arriscar se perder na Fossa das Marianas ou em lugares realmente profundos. Por estranho que pudesse parecer, tudo o que ele queria era arejar suas ideias. Nada que um quilômetro ou dois abaixo da superfície não resolvessem. A descida foi rápida e, então, não demorou muito para que tocasse o solo marinho e, com as luzes acesas em seu traje especial e suas botas com solado destacável de chumbo, começou a caminhada em seu novo pedaço de mundo. Antes de uma viagem de tal porte, por mais que ela apenas servisse para curar uma ressaca emocional, 104 tinha o hábito de pesquisar as lendas. Não aquelas que são públicas, mas as histórias contadas pelos anônimos, pelos desqualificados e pelos loucos. Eram esses os relatos que normalmente continham alguma verdade ou, às vezes, toda a realidade. A técnica já funcionara várias vezes. Por que não agora? A cada passo, ele prestava atenção aos detalhes do fundo do mar.
Segundo seus cálculos, ele tinha cerca de cinco horas de submersão para poder, com toda a lentidão e segurança, retornar ao navio que o esperava, são e salvo. Cinco horas era pouco tempo para expiar quaisquer sentimentos dos quais quisesse se libertar. Porém, se as histórias estivessem certas, seria mais ou menos naquele ponto específico do universo que ele poderia encontrar o triban. Ouviu poucas, mas boas histórias sobre o triban. Não entendeu se era um aparelho ou um objeto. O fato era que apenas marinheiros que naufragaram naquelas águas falam sobre isso, em bares e portos, sempre com o total descrédito alheio. Porém, não há pessoa que consiga explicar o motivo de todos eles possuírem um sorriso sempre sincero no rosto, quase como se a alma deles tivesse sido lavada. Se o triban é uma lavanderia de mágoas, 104 precisava encontrá-lo. Só que não conseguiu, e isso foi um fracasso completo, qualquer descrição. Portanto, não sabia como encontrar o triban. Decidiu se aventurar por causa de uma frase, dita pelo mais novo e bêbado dos marujos com quem conversou: “a gentch não prucura a felichidadje, a felichidadje é que encontra a gentch”. Pois agora ele estava, ao andar no fundo do oceano calçando botas com solado de chumbo, olhando para o chão traiçoeiro e cada vez mais triste. O fluido que o envolvia como a um embrião era confortável, apesar da estranha sensação de estar respirando um líquido. Não sentia o frio que deveria sentir àquela profundidade, nem o impacto da força-G. Nada como ter um traje que nenhum civil deveria ter. Era a única coisa que o confortava naquelas horas. De resto, sua mente continuava afundando, seguindo sua rota direta a um lugar sem volta. O mais provável era que não conseguiria retornar sem concentração. O que era cada vez mais difícil. 104 estava tão perdido que já imaginava estar ouvindo música. Ela vinha diretamente de uma pedra estranha. À medida em que se aproximou, percebeu que não era uma pedra, mas um ser vivo. Era parecido com uma pedra, mas tinha três tubos em cima, que soltavam bolhas. Pegou a pedra na mão: podia ver que a textura era semelhante à dos corais. Olhando à altura do rosto, reparou bem, a pedra estranha tinha um rosto. Ou seriam dois? Eram três olhos de cada lado, que piscavam, mas apenas uma longa e enorme boca, que não se mexia. A música parecia sair dos tubos na cabeça. Mesmo com dificuldades para falar, 104 balbuciou: “É um triban.” 15
Continuou o escrutínio. Olhava de cá, de lá, não entendia bem o que fazer, se aquilo fosse o que ele imaginava. Pensou em esfregá-lo, como se fosse uma lâmpada aladinesca. Mas a superfície era áspera e quase rasgou a proteção palmar do seu traje. “Um daqueles caras disse que o triban era mágico.” “E sou.” Aquela voz não era sua. Ela estava dentro de sua cabeça. 104 tomou um susto, mas continuou segurando com firmeza o triban. Que foi direto ao assunto. “Eu posso fazer você se esquecer de três tristezas.” Ele começara a imaginar como o triban sabia a sua língua, mas a última frase tomou sua atenção. E tragou sua mente de volta à superfície: aquilo era real e estava acontecendo. Existia um jeito de se livrar de toda a tristeza e todo o mal. “Esquecer? Tipo pra sempre?” “Você nem vai se lembrar de que se esqueceu.” Era necessário pensar. Não era como ter três desejos, mas quem tem a chance de se livrar de tudo o que deu errado em seu passado? Naquele momento, não era como se a vida inteira de 104, mesmo antes dele se tornar um número, passasse toda diante de seus olhos. Mas era desse modo que ele percebia o que estava acontecendo. Também sabia que o triban, se podia falar em sua mente, podia ver toda a confusão que era seu raciocínio agora. Por isso mesmo houve paciência. Checou o cronógrafo e ainda tinha algum tempo. Usou-o com sabedoria, fazendo com que sua mente se acalmasse, se focasse até que os maiores objetivos ficassem claros. “E as experiências? Digo, aquelas que a dor ajuda a moldar em cada um?” “Você nunca saberá que foi uma dor que gerou sua experiência, se for esse o seu desejo.” “E qual é o preço? A pegadinha?” “Você é desconfiado. Eu vou repetir: posso fazer você se esquecer de três tristezas. É muito simples.” Então, resolveu colocar em prática o seu plano. Começar das coisas amplas e complicadas. Mesmo que tudo fosse muito simples. Depois, particularizar. “Já sabe o que quer esquecer?” “Sim.” Foi assim que ele começou. “Quero me esquecer dos meus inimigos.” Para 104, a partir daquele momento, não havia mais inimigos, de nenhuma espécie. Ele sequer se deu conta. “Quero me esquecer de todos os meus fracassos.” Então a vida de 104 era feita apenas de sucessos e, quando muito, de oportunidades nunca aproveitadas. Novamente, ele não deu sinais de estar ciente de que o fracasso foi eliminado de sua vida. “E eu quero me esquecer da mulher que me traiu.” “Está feito.” Pela primeira vez em muito tempo, 104 estava plenamente feliz. Conferiu o tempo e conseguiria retornar à superfície com sobra. Bastava tirar os suportes de seu calçado e iniciar a flutuação. “E agora?” “Agora, deixe-me aqui.”
E 104 começava seu trajeto de volta quando pensou nela. No primeiro beijo, nas boas transas, no seu rosto lindo à luz do amanhecer, dos olhos castanhos, da voz que gostava tanto de escutar quando era sussurrada em seu ouvido. Então ele se tocou, voltou sua cabeça para o triban e, enquanto emergia, ficou um pouco indignado. “Ei! Mas eu continuo me lembrando dela!” “Você está errado.” A voz do triban já era quase um sussurro. “Eu disse que faria você esquecer as tristezas. Mas não posso fazer nada quanto às alegrias.” Que tristezas? 104 tentava entender. Mas conseguirá?
DELFIN procura há muitos anos o uniuáipe, que pode varrer todo o rancor para debaixo do tapete. Enquanto isso, cuida do Studio DelRey de produção editorial e participa de coletâneas de contos, como Geração Subzero (Record) e Portal 2001 (organizada por Nelson de Oliveira).
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palco
eric novello
H
á algo naquele olhar que me entristece. No diminuto espaço de suas pupilas, o reflexo do palco, holofotes desligando. Enquanto os clientes esvaziam o bar, enfileirados no caixa para afiar cartões, ela permanece ali, sentada, pernas cruzadas sob a saia, como se me conhecesse. Não um conhecimento bisbilhoteiro, ocasional, um esbarrão de porta de edifício, e aí, como vai, mas que chuva, demais, demais. Aqueles olhos grandes e castanhos veem o que ninguém mais vê, sabem que não há nada a ser visto depois que a luz se apaga. Cochicham numa piscada, quando os cílios se confrontam como espadachins, que este não é o meu lugar. Tenho vontade de puxar conversa, confrontá-la, mas me controlo. Sou eu a atração da casa, cão que se alimenta de aplausos. O garoto trazido dos mortos por um insone paranoico para contar sua vida no Neon Azul. Sou eu que um dia fui filho, que fui conforto e abandono. Que um dia morri no para-choque de um motorista desatento ao meu desejo de partida. É ela quem deve se inebriar com minhas histórias, engasgar-se com o ar no susto de meus tormentos. É por gente como eu que gente como ela se arrasta até aqui. Ela, porém, não se abala. De queixo levemente para cima, bebe um resto de caipirinha como a criança que lambe a tigela do bolo que acaba de ir ao forno. Puxa entre os lábios o álcool e a deselegância que acusa o meu não pertencimento, como se de mim esperasse um sinal de confissão. Volte para o seu caixão, ela parece dizer. Olhos de raio-x esmiuçando meu vazio. Tudo o que faço é desatar as asas. Desafivelar a tira que roça meu peito e fere, me fere de maneira inescapável em seu atrito. O ardor que resta depois que as solto é um alento. O suor que invade a pele cortada, o meu atestado de vida. Mais do que as luzes, mais do que a música e os sorrisos alcoolizados, é a dor que me ancora. Sem ela, sem o sibilo entre dentes cerrados, seria incapaz de encarar a mulher que com desdém me analisa. Como de costume, Gabriela desce as escadas tropeçando. Rindo alto. Seu ritual de final de expediente. Vê no Neon Azul alegria por trás das notas, nos entremeios das carteiras, na fricção dos gemidos. Nada como um peixe cintilante entre os predadores, sobrevivendo de seu mimetismo indiscreto. Fora o homem que me contratou, é a única a conhecer minha história, meu ponto de chegada, minha linha de partida. Debocha numa careta da mulher que me observa. Bebe
logo esse negócio e levanta que a noite acabou, querida, diz batendo em suas costas. Agora é trabalho pesado – esfregar chão, limpar banheiro, lamber ferida. Sua atitude me faz rir, me alivia. Aproveito para descer do palco. O corte abaixo da linha do peito parece arder com mais vontade, um sentido-aranha sugerindo que me entrincheire em barricadas seguras. A mulher que se distraíra com Gabriela pede mais um drinque. Puxa na ponta dos dedos uma nota velha de cinquenta. Sua bolsa brilha na mesma cor da sombra em suas pálpebras, do esmalte fosco que lhe borra as unhas. Gabriela não gosta do desaforo. Grita para o barman: e vê se anda que a cachaceira tá com sede. Vai embora. A mulher se volta para mim. A essa altura, o misto de suor e maquiagem mais evidencia do que disfarça. Há sulcos em seu rosto, papadas em seus olhos, rugas nas quais cigano algum leria a sorte. Deve ser uma mulher bonita em algum lugar sob o pó verde e dourado. E no esforço de espaná-lo de meus pensamentos eu a reconheço. A princípio, a imagem me escapa. Desde o retorno, tudo aquilo despido de amargor desvanece. O relance das paredes das bancas de revistas, o anúncio no percurso da escada rolante, o rosa da pipoca na esquina do metrô. Sinto então o gosto de sangue que transborda da boca, os dentes arrancados na batida contra o asfalto, a carne esfolada como o amor que restou em mim. É da mulher a mão a amparar minha cabeça após o atropelamento. A me erguer entre os cabelos e dizer, se acalme, vai ficar tudo bem. É ela a mulher que contraria o clichê e não me beija, que não sorve de mim a última lembrança que me prende à vida. Ela e somente ela sabe em que nome penso enquanto o mundo escurece. Sopra-me no ouvido para esquecê-lo e me abraça como um sonho bom. Sente-se aí, garoto, diz ela. Sua voz um arrepio manhoso em minha nuca. Sem dizer palavra, eu a obedeço. Acaricio sua coxa como quem responde e aí, dona morte, que saudade. Meu corpo está frio, a pele arrepiada. Pronta para o jogo de ligar os pontos. O calor do palco, do público, há muito desapareceu. Sinto nas costas nuas o vento do ar condicionado que deveriam ter desligado. Espano o medo num sacolejo e incorporo o personagem. Meus olhos se estreitam, meu viço se revigora. Ela é só mais uma cliente, minha plateia, e por ela faço o meu melhor. 17
A mulher se inclina para trás, geme alto, assim que a acaricio mais fundo. O barman larga o drinque sobre a mesa sem saber como agir. Com uma piscada, eu o liberto da dúvida. Digo vá, vá logo, ou se junte a nós de uma vez. Às pessoas na fila, lhes resta a prisão. Algumas se espantam, outras se arrependem de ter ido embora tão cedo. Ainda há tempo, elas pensam, sem saber que o tempo é areia que não volta. Minha distração não passa despercebida. Sinto unhas se cravarem no meu braço, me puxarem mais a fundo, nossa disputa pelo papel principal. Dentro dela, redescubro algo que havia se perdido. Algo de mim fragmentado em cacos invisíveis, eternamente desencontrados em meu retorno. Tateio entendimentos, faço de seu gozo a cola que me conserta, recupero DNAs que transbordei nas mais diferentes camas para mapear minha velha identidade. A proximidade da antiga vida me deixa forte, mas também revigora o desalento. Quando percebe meus olhos acesos, o pau que luta sob a costura da calça, ela liberta os meus dedos dos seus e bebe seu drinque. Bebe e bebe e engole, rios escorrendo dos sulcos de seus lábios, marcando a base de seu rosto, até que nada reste no fundo do copo. Sinto como se me esfregasse algo na cara, uma esponja abrasiva que arranca gorduras, cravos, carnes e peles enquanto me diz em voz de comercial de beleza: veja só o que perdeu ao me trocar por isso aqui. Ou quem sabe esse seja apenas o meu orgulho refletido. Quem sabe a morte também seja só uma andarilha sem destino, solidão sem cura em busca de uma boa companhia. Enquanto espero que fale algo, que me preencha de sentido, ela abre a bolsa e saca uma bic azul. Em um guardanapo amassado, escreve um telefone, nada mais. Você não foi feito para esse palco, garoto, é o que ela diz e, sem nenhuma surpresa, se levanta e me dá as costas. O segurança me olha sonolento e sinalizo para que a deixe passar. Sob a mesa, há dinheiro o suficiente para cobrir as bebidas e uma noite de goles fartos. Contando-o entre os dedos, me pergunto por quantos donos passaram aquelas notas, de quantos acidentados, enfermos e suicidas elas foram recolhidas. Separo o que é da casa e guardo o meu no bolso, enrolado junto ao telefone. No alto do mezanino, vejo Armando me espreitando. Está quieto, não pisca, nada se move além do peito sob o terno. Em seu olhar não há dúvida, julgamento. Nem um sinal de receio ou desconfiança. Deve achar a velha louca, eu penso, mas então não. Não! É outra a verdade. Ele sabe, é claro. Por baixo das rugas, do pó dourado, da fantasia de senhorinha despudorada, ele sabe quem é ela e o que veio fazer aqui. Penso em tomar meu banho, ir para casa, celebrar o fim do dia. A curiosidade, porém, não vitima só os gatos. Sou adepto dos agoras, nunca fui de deixar pra depois. Após pendurar as asas no encosto da cadeira, reúno fôlego e subo a escada. Deixo a porta aberta para escapar o ar gelado e me sento junto ao homem que me devolveu à vida para me oferecer emprego no Neon Azul. Aquele homem que dizem não dormir, que passa as noites de olhos arregalados, me sorri e me cumprimenta após um bocejo. Você quer mesmo saber?, ele pergunta, ciente da resposta. Não há nada de mim que não entenda, pensamento que não possa decifrar.
Ela é uma cliente? Não seria nossa primeira cliente singular. Concorrente. Nos tirou algo muito importante, uma vez. Duas. O chefe nunca se recuperou da trapaça. E então me arrancaram dela. Me trouxeram de volta para dar o troco. Não foi uma questão de vingança, Ícaro. Está aqui por talento. Não se diminua. O gerente insone me estica a mão. Dessa vez não há cadáveres nem flores, apenas a decisão a ser tomada. Penso e repenso no segundo que me é dado e alcanço no bolo de dinheiro o guardanapo rabiscado de azul. Sem ler o que está escrito, ele o rasga no cinzeiro e risca o fósforo. A chama consome as perguntas, decompõe as respostas. Vejo a última beirada branca tornar-se chama e virar pó. Por um instante, sinto saudade do fogo. Do pingo da vela. Do atrito rascante dos lençóis. Seria a hora de pedir um aumento? Um afago?, eu pergunto. Recebo em troca somente um tchau, me enxotando. Sem compartilhar a dúvida, pergunto-me se atraí-la não foi desde o início a intenção da casa. Um ex-garoto de programa de pé no palco, seduzindo o público ao relembrar orgasmos e grilhões, contar entre suspiros como escapou da morte. Não há muitos garotos aptos a um número desses por aí. Não só pela chance de retorno, mas pelo domínio da língua, pela enciclopédica erudição dos corpos. Estou prestes a fechar a porta quando o gerente se levanta. Uma última coisa, ele diz. Uma última coisa, eu repito, curiosidade transmutada no mais honesto cansaço e vontade de dormir. Não se preocupe demais com essa história, ele fala como quem oferece o último tarja preta da cartela, ela está só irritada. Vai passar. Ou interessada nos meus talentos, eu respondo. Nem tudo na vida é vingança afinal. Armando me entrega um sorriso sincero, me enxota novamente. Assim como sabemos que voltarei a ele, ela também voltará a mim um dia.
ERIC NOVELLO é autor e tradutor. Os personagens desse conto estão presentes nos livros A Sombra no Sol e Neon Azul. Seu próximo romance, Exorcismos, Amores e Uma Dose de Blues, será lançado em agosto, na Bienal do Livro de SP. http://ericnovello.com.br
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a palestra
flávio izhaki
O
auditório lotado, 400 pessoas. O escritor tem o almoço na barriga, o blazer pesando nos ombros, muito calor. Estaca na porta, a vista da maioria, esperando ser anunciado. O público nota sua presença, burburinha. Uma jovem afoita levanta de sua cadeira e filma o escritor com um celular de última geração, legenda o que está gravando com uma narração jornalística improvisada. Ele está constrangido, mas não esboça reação; alguém bate em seu ombro e diz: “Vamos?” Ele entra. Não que quisesse aplausos, mas esperavaos. Costuma ser assim. Mas não desta vez, a recepção é apenas o aumento do burburinho, um zumbido de 400 vozes, nem o silêncio respeitoso que algumas vezes recolhe sua sombra quando ele passa. O escritor tem uns pensamentos esquisitos e pensa numa gangorra de parquinho infantil: o burburinho significa que o respeitam ou o admiram mais? O escritor pensa muito nessas coisas em momentos como esse, em que está prestes a falar para 400 pessoas. Acomoda-se. Ao seu lado, duas professoras-doutoras especialistas em sua obra, as carreiras pautadas em sua carreira. A da direita, de quem não sabe nem o nome, bebe água sem parar. A da esquerda, que conheceu na noite anterior no jantar em sua homenagem na embaixada, de quem deveria saber o nome mas não lembra, testa o microfone. Uma das professoras, a da esquerda, que agora que abriu a boca e revelou o sotaque do país do escritor ele lembra o nome, lê os principais prêmios que ele recebeu, cita todas as obras, cronologicamente, não esquecendo a data de publicação. O escritor olha para o último dos presentes, fileira Z, mas seu olhar não alcança; não olha para ninguém. A primeira pergunta o desconcerta pela imbecilidade. Ele bufa. Responde, como sempre faz, contando como começou a escrever. A resposta, ensaiada por anos, contém uma piada-teste; todos riem. O autor já deu palestras suficientes ao redor do mundo para saber que daqui em diante o público estará em seu bolso e nada do que for dito importará. Termina sua primeira resposta com seu mantra: “O importante é o livro, não o autor”. Acredita piamente nessa assertiva. Mas sabe que o público está lá por ele, que a maioria não leu seus livros, nenhum dos 17. Precisa do mantra para que o público leia na resposta sua frustração. A professora da direita, da qual ele não sabe o nome, gagueja-lê uma longa pergunta dividindo seus livros, e novamente os 17 são citados com data e tudo, em ciclos,
apoiada em uma teoria de um crítico do país do escritor, e pergunta para ele sua opinião sobre. Ele refuta. Pergunta, irônico, como pode responder aquilo que lhe é perguntado. Agora, sim, o silêncio. Ele continua, ataca os críticos literários, faz uma piada, o auditório, cheio deles, ri, alto, amarelo. O escritor pensa na gangorra e chega à conclusão definitiva: admiram-me. Confiante, continua: “Quando escrevo”, diz, “O que escrevo”, corrige-se, “vem de uma região que não entendo ou conheço”. O escritor quer encerrar a resposta com uma frase definitiva, busca agora os aplausos, a consagração. Respira e vaticina: “O escritor tem que estar à frente do seu tempo”. Os aplausos não vêm, plateia difícil, mas os olhos vidrados significam sua vitória. O público o reverencia. Mesmo os que não o leram — e ele não esquece que devem ser a maioria — o temem, o admiram; neste caso, sinônimo. Ele encerra a resposta, mas ninguém ousa falar nada, as duas professoras olham para ele com olhar de adoração. Forçosamente, ele continua, a mesma-outra história: “Uma única vez fui a um congresso sobre minha obra. Escutei de um especialista o que se passava na minha cabeça quando escrevi meu famoso livro. Assustei-me. Não era nada daquilo. Mas me deu uma vergonha, por mim e por ele, e nada falei. Assenti, placidamente, e fui para casa entendendo minha obra ainda menos”. A pergunta seguinte, lida de uma folha de papel amassada, repetia exatamente tudo que o escritor negara na resposta anterior. No passado, o escritor bufava da estupidez alheia, agora sorri. Começa a citar histórias, passagens, memórias, e então, com toda desfaçatez que acumulou, fulmina: “O que a senhora me perguntou mesmo?” A professora ensaia repetir a pergunta, falando devagar para ele compreender, julga-o surdo. Mas ele se antecipa: “Se você me pergunta como funciona minha vesícula, também não saberei responder. Mas de todo modo ela funciona”. A professora se constrange, o público se constrange. Não o escritor. “Só a um autor pode ser perguntado o que ele quis dizer com aquilo que escreveu. E só ele pode responder: Não sei. É impossível responder”. O público concorda com outro silêncio. A professora de quem ele supostamente sabe o nome avisa que o tempo terminou, só uma última pergunta, da plateia. Uma senhora levanta a mão, no meio da sala, e berra sua pergunta de lá mesmo. O escritor não entende, e pede para que a professora repita para ele: “Ela pediu para que o senhor 19
fale um pouco do seu país”. O escritor faz cara de sofrimento. Sofre verdadeiramente. “Não peça coisas assim. Eu não fiz coisa alguma para a senhora.” O escritor levanta, a palestra termina. A multidão avança em busca de autógrafos e dedicatórias, livros em punho, a jovem do celular entre eles. O escritor procura o ouvido de uma das professoras. Ela avisa, ao microfone: “O autor fará um intervalo de 10 minutos, depois vai assinar seus livros, apenas seus livros”. O escritor acena e sai da sala. Logo mais ainda jantará com o cônsul e a esposa.
FLÁVIO IZHAKI
é autor dos romances Amanhã não tem ninguém (Rocco, 2013) e De cabeça baixa (Guarda-chuva, 2008). Como contista, já participou de quase uma dezena de antologias, entre elas Prosas Cariocas (Casa da Palavra, 2004), Primos (Record, 2009) e Wirsind Bereit (Lettrétage, 2013).
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o rato era ela ivan justen santana
D
escia a pé a Treze de Maio desde o viaduto, o céu cada vez mais escuro e olha que nem eram três da tarde, parecia quase noite. Mas eu nem pensava nisso. Pelo menos eu não tinha pulado de cima do viaduto dessa vez, era o que eu pensava, tentando me manter ligado pra desviar dos buracos na calçada. Tinha pulado fora era da faculdade, me candidatando a vagau em tempo integral. Eu me sentia mais um rato, nem podendo imaginar que (é estranho mesmo) o rato era ela. Ela vinha subindo, nossos olhos se encontraram sorrindo. Aéreo, eu mal percebi que a tempestade já ia começando, com aquelas gotas grossas estalando que nem traques. Ela abriu um guarda chuva ridículo, grotesco, cor berrante, numa palavra: estapafúrdio.
de todo pateta acordou: a reação máxima foi soltar um dos braços e dar um passo pra trás, no que ela aproveitou pra dar dois à frente e fazer menção do terceiro, em busca do guarda-chuva... aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaiiiii!!!!!!!!! O grito foi mais ou menos assim, estilo fã enlouquecida cruza com atriz de horror B: do bueiro que jorrava um rato foi ejetado (sem aviso) num pulo de meio metro junto com o jato de água escura. Ela (a garota, não a água escura) deu um salto quase equivalente ao do rato, caindo nos meus prontos braços (heroi!), eu milagrosamente recuperando o poder de reação e me controlando pra não cair chorando de rir. Calculei que conseguiria carregar a mocinha na subida no máximo por duas quadras, mas daí era só mais uma até o cine Bristol. Foi lá que retomamos com grande intensidade os trabalhos vencidos do amor.
Aonde você vai (quo vadis, ela perguntou com todo o seu latim)? Não sei, eu disse, e ela já se encostou mais em mim a título de não tomar tanta chuva. Aí pronto, num relâmpago já estávamos no maior malho. Comigo é assim, ou pelo menos tem que ser, já que fico todo pateta se a conversa estica e quase sempre perco a oportunidade de agarrar a mulher: mas nunca achei uma que beijasse mal.
The end Como é? Não posso terminar este trecho shakespearizando? Azar... O quê? Vocês querem saber qual filme estava passando? Bem, o terceiro dos Aliens, que a Ripley (Sigourney Weaver) está de cabeça raspada. Por sinal, duas coincidências aí: o alien que pula de dentro da própria boca era a cara do rato saltitante, e aquela garota uma vez raspou a cabeça feito a Sigourney só porque eu disse que ela ia ficar mais bonita careca. Quem me lê até pensa que sou isso tudo... Mas as devidas e maiores explicações ficam pra depois, que agora eu vou dormir.
Ai, assim você me tira o fôlego... Quarenta e cinco segundos e eu já cortaria um braço por ela: um pateta, sempre um pateta. A tempestade ia na mesma medida: a sarjeta já era uma torrente, um bueiro começou a jorrar feito uma fonte. Aproveitei o escândalo do clima pra encaixar melhor o corpo dela no meu, começando a ter flashes das três ou quatro vezes que a tinha visto, uma vez agarrada num dos meus melhores amigos. Mas daí eu nem pensava mais em nada, virando ela contra a parede e atacando alucinadamente a criatura. Aiiii, hmmmmm......................
IVAN JUSTEN SANTANA
Vuushhhhhhhh: o guarda-chuva rocambolesco foi pelos ares sem que eu pudesse piscar, mas ela deu um gritinho sensualíssimo (na minha modesta opinião), só que era também um pedido de socorro, e o herói que existe dentro
nasceu em Curitiba, em 22/03/1973. Formado em Letras pela UFPR em 1996. Mestre em Letras pela USP em 2002. Bloga poemas e traduções em http://ossurtado.blogspot.com desde 2004.
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depressão
jardel do amaral junior
— A
Fábio dá dois passos para trás e Carlos entra. A porta se fecha e o homem barbudo segue o amigo logo atrás. O apartamento é um quatro e sala, com um corredor que comunica todos os cômodos. Carlos se lembra de que, logo após da porta de acesso, tem à esquerda uma pequena cozinha, que naquele momento constata estar com a porta fechada, depois há a sala, o quarto e o banheiro. Fábio pára no meio da sala, com o amigo ao seu lado. Carlos olha tudo ao seu redor. As paredes brancas e sujas; um rack de madeira com uma televisão cinza desligada; à esquerda uma janela de alumínio aberta; à direita uma poltrona de tecido preto de três lugares contendo vários rasgos e atrás uma poltrona de dois lugares não muito diferente que a primeira, tudo empoeirado. Ele decide se sentar na poltrona de três lugares, enquanto Fábio senta na de dois, cruza a perna direita sobre a esquerda, coloca a arma à sua direita, colada na coxa e olha para cima, vê um ventilador de teto com bocais para três lâmpadas, ocupado só por uma que ilumina mal o ambiente. Observa que no meio da sala há uma mesa de centro, com superfície vidro e base de madeira; sobre ela há um cinzeiro transbordando de lixo, uma caneca branca, um isqueiro vermelho e um maço de cigarros. — Que pocilga! — Não sinto vontade de manter isso aqui limpo. Desculpeme se sujo a sua roupinha branca. Essa camisa abotoadinha até o punho e essa calça que chega a brilhar. Veja esses sapatos. Você os comprou hoje. São tudo de marca se lhe conheço bem – disse Fábio, exibindo um sorrisinho – Mas tem uma coisa destoando. É a sua barba por fazer. — Você é um porco! Se veja no espelho. — Carlão, no momento, é melhor eu ver você, que está muito bem. Rosto redondo, óculos com armação moderninha, cabelos penteados para trás, cheios de gel e tão pretinhos... Acho que os pintou? Está muito mais gordo desde a última vez que o vi. Você sempre foi mais alto que eu e rotundo do que jeito está parece ter uns dois metros. Um Ogro. Rá, rá, rá. — Minha altura é um metro e oitenta e cinco. Ser chamado de Ogro por você não me ofende – disse Carlos, ainda impassível – Eu não vim aqui para ser sacaneado. Você me ligou dizendo que está morrendo. Na verdade, por que me chamou aqui à essa hora da noite? — Estou em depressão. Acho que vou me matar.
briu? Abriu? — Sim – gritou Carlos, ao empurrar a porta. Ele fecha a porta e entra no prédio, a passos rápidos. No corredor - que dá acesso as escadas-, ouve o som grave gerado pelo impacto de seus sapatos no solo; logo começa a subir as escadas, apoiando a mão direita no corrimão, enquanto seus calçados brancos vencem os degraus de piso acinzentado. Carlos é médico cirurgião geral e vai ao encontro do seu melhor amigo, Fábio, que também é da mesma profissão, porém na especialidade de anestesia Os dois são íntimos desde o primeiro ano de faculdade, quando se conheceram, ambos com dezoito na época e agora, vinte anos depois, vão se encontrar para uma nova conversa. Carlos, após subir dois lances de escada, pára diante de uma porta de madeira envernizada com o número 302 fixado nela. Toca a campainha. O olho mágico tem o centro branco escurecido e a porta é aberta. Fábio aparece. Carlos o olha dos pés a cabeça e vê um homem descalço, de pernas finas, de um pijama azul claro surrado com manchas na camisa; mais magro que na última vez que o tinha visto. Seu rosto fino exibe uma barba espessa e negra, os cabelos pretos compridos desgrenhados. Na mão direita do amigo há algo que atrai a sua visão. É um revólver calibre trinta e oito com cano curto. — Por que está com essa arma? — Não é nada, Carlão. Não se sinta ameaçado. — Só vou entrar se me der esta arma – disse Carlos, impassível – Me dê – esticando a mão. — Deixe-a comigo. Nada acontecerá com você. — Concordo que estou seguro. E você? — Mas? Eu também estou seguro – disse Fábio, pouco convicto. — Dê-me, senão vou embora. — Está bem – disse Fábio, resignado e entregando a arma. Carlos, com o revólver nas mãos, nota um pouco de ferrugem difusa por todo o metal. Esfrega o cano com o dedo indicador direito e o aproxima dos olhos. Abre o tambor, constatando que está completamente carregado e o fecha. — Agora que já apreciou a arma, vamos entrar? – indagou Fábio. — Sim. — Vamos nos sentar na sala. 22
— Quem está para se suicidar, faz. Não consegue bancar o engraçadinho fazendo piada sobre a aparência do melhor amigo. — Augusto Cury, aquele nosso colega de profissão, psiquiatra que também é escritor, disse: Nunca despreze as pessoas deprimidas. A depressão é o último estágio da dor humana. — Não estou desprezando a sua situação, só não acho que vá se matar. — Agora você virou psiquiatra? — Não. Posso ir embora, pois preciso ficar só. — Você está mal humorado hoje. Só fica com essa cara de sério. Nunca foi assim antes. Está sentindo algo? — Fábio, você não me chamou aqui para saber o que eu sinto. — Não, mas .... — Então. Diga o que você está sentindo? – indagou Carlos, interrompendo o amigo. — Vivo desanimado; não tenho prazer em fazer nada. Estou sempre fadigado, não consigo dormir ou me concentrar. Hoje passei o dia todo pensando em me matar e liguei para você. Eu não quero ficar só. — Você é sozinho. Seus pais morreram faz poucos anos, é filho único, têm dois casamentos fracassados; uma filha, no interior de Minas, e um filho no interior de São Paulo. Também há o processo que cassou o seu Diploma no conselho regional de medicina e ainda lhe fez réu na justiça comum. Realmente têm motivos para estar deprimido. Mas repetindo, não acho que vá se matar. - Você sabe que roubei os psicotrópicos do hospital para uso pessoal e não para traficar. - Sim, já conversamos sobre isso. Fábio leva as mãos à mesa, pega um cigarro e o isqueiro. - Amigo, a minha vida é uma merda. Eu sou um fracassado! – disse Fábio, acendendo o cigarro, dando uma baforada e recolocando o isqueiro onde estava – Dói muito, só à morte servirá como um analgésico forte. - Você precisa ir a um psiquiatra urgentemente. Tem o telefone da Simone da nossa turma? - Tenho, mas não tive coragem de ligar – disse Fábio, dando uma tragada longa no cigarro e soltando a fumaça em forma de círculos – Se eu marcar uma consulta você vai comigo? - Creio que não será possível. - Por quê? - Você saberá em breve. - Cara, você realmente está esquisito. Acho que têm problemas. Não quer conversar sobre isso? - Não. Eu quero que você me prometa ir ao psiquiatra e tire da cabeça esse negócio de morrer. - Prometo. Mas eu não estou bem. - Eu sei. - Como estão sua esposa e família. - Não quero falar sobre isso. Vou embora – disse Carlos, ficando de pé. - Sente-se! Por favor. - Só por mais cinco minutos – disse Carlos, voltando a sentar do mesmo modo e mantendo o revólver colado na sua coxa direita.
- Vou te contar uma coisa interessante. Sabe aquele colega lá de São Paulo, que fala naquele programa jornalístico do domingo. Ele já abordou obesidade, hipertensão, tabagismo e diabetes. Qual o nome dele mesmo. — Marcos Capella. — Sim, isso mesmo. Ele, no último programa, falou sobre depressão. Nele enumerou nove sintomas. Eu entrei na internet li e decorei tudo. Existe uma classificação da doença em relação aos sintomas. De dois a quatro sintomas depressão leve; três a quatro sintomas depressão crônica; cinco ou mais depressão maior. O meu deu cinco. Os nove sintomas são: O primeiro é se sentir deprimido quase todo o tempo; o segundo é o interesse diminuído em realizar a maioria das atividades; o terceiro é o ganho ou perda de peso; o quarto é o distúrbio do sono; o quinto é agitação ou apatia psicomotora; o sexto é a falta de energia; o sétimo são os sentimentos de culpa e inutilidade; o oitavo é dificuldade de concentração e o nono são idéias suicidas – disse Fábio, a seguir apagando o cigarro na borda cinzeiro e lá o depositando – Entendeu? — Sim – respondeu Carlos, com o olhar perdido na direção da janela – Sabe, meu amigo, eu também conheço esse teste e já o fiz. O meu deu nove. Quem quer se matar não avisa a ninguém, apenas age. Carlos olha para a arma e a pega com a mão direita, puxa o cão gerando um click, encosta a boca do revólver na têmpora e aperta o gatilho. — Não! – gritou Fábio, tendo o seu grito abafado pelo o estrondo do disparo.
JARDEL DO AMARAL JUNIOR é médico e escritor. É autor de dois romances: Aconteceu em Monte Castelo e Mudança de Rota. Vive no Rio de Janeiro.
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os meninos
joão paulo vaz
N
enhum de nós sabe com precisão como e quando os meninos começaram a aparecer. Mas foi durante uma daquelas tréguas que podiam se estender por semanas ou meses. As tréguas eram cada vez mais longas e sempre bemvindas. No início, descansávamos, lubrificávamos as armas, remendávamos uniformes. Deitávamos na sombra, e a satisfação de continuar vivo nos engordava. O tédio e a preguiça vinham depois. Foi numa fase assim que me dei conta da presença constante dos meninos. Nem é preciso dizer que isto aqui não é lugar para crianças. Na verdade não é lugar para ser humano algum, só nós mesmos, que não temos outra escolha e já não somos exatamente humanos. O normal teria sido expulsá-los. Mas o comandante não se mexeu e ninguém se sentiu na obrigação de tomar a iniciativa. Iniciativas de qualquer tipo eram cada vez mais raras entre nós. A série infindável de pequenas vitórias e derrotas sem consequência havia acabado com a esperança e o medo que nos faziam bravos. Ninguém mais esperava vencer esta guerra que se diluiu no tempo, na inutilidade dos tiros sem alvo visível, na falta de sentido das mortes aleatórias. O fato é que, mais por inércia nossa do que por qualquer outra coisa, os meninos foram ficando. Dormiam junto à porta da cozinha, comiam os restos da nossa comida, faziam pequenos serviços – apanhavam água no poço, lavavam as panelas, matavam ratos. A matança de ratos foi o que primeiro me fez prestar atenção neles. Passavam horas imóveis, atiradeiras nas mãos, espreitando a caça. Então um deles esticava devagar a borracha, soltava e, de algum canto escuro, um guincho anunciava a precisão da pedrada. Lembro bem da tarde em que eu me debatia num sonho especialmente mórbido. As imagens eram as de um filme antigo, mudo, em preto e branco. Estávamos num pântano, cercados pela fuzilaria inimiga. Balas e granadas silenciosas nos arrancavam pedaços, mas ninguém morria nem se importava muito, apenas continuávamos a chafurdar na massa escura, onde já não era possível discriminar o sangue da lama. De repente, um silvo intermitente de alarme de bombardeio quebrou o silêncio do sonho. Acordei assustado. A meu lado, aos guinchos, uma ratazana arrastava desesperada a coluna partida e os quartos traseiros paralisados. Antes que eu acabasse de entender o que acontecia, um dos meninos
surgiu na minha frente e esmagou a cabeça do bicho com uma pedrada de misericórdia. O que me surpreendeu naquele dia foi a expressão, no olhar do menino, de satisfação com o próprio poder. Durou talvez uma fração de segundo, e imagino que só a percebi porque, mal acordado, eu estava ainda naquele estado de semiconsciência em que a intuição ainda não está submetida à razão. A surpresa não foi tanto pela expressão em si, mas por reencontrá-la justo no olhar de um deles. Satisfação, desejo de poder eram sentimentos que ninguém ali experimentava havia tempo. E, nos olhares dos meninos, até então, eu só tinha percebido a fragilidade da fome, a humildade com que esperavam os restos das nossas refeições, a subserviência com que lavavam as panelas. A trégua se prolongou além da nossa capacidade de contabilizar o tempo. Durava tanto que, embora ninguém admitisse nem a si mesmo, já começávamos a dar a guerra por encerrada. Prova disso era o desinteresse pelas armas empoeiradas, amontoadas num canto. De vez em quando, alguém lembrava que era preciso lubrificá-las. E ficava nisso. Até que um dia, ao acordar de manhã, dei com um dos meninos desmontando o fuzil do Gomes. “Ta fazendo o que aí?” – perguntei. “O Gomes mandou”. Estranhei. Ninguém podia mexer em arma de ninguém. Aquilo mostrava a que ponto tinha chegado nosso desleixo. Decidi falar com o Gomes ou com o comandante, mas, como os dois ainda dormiam, fui tomar café e acabei me esquecendo do caso. Nos dias seguintes, alguns meninos desmontaram e lubrificaram outros fuzis. “O meu pode deixar que eu mesmo faço” – avisei. Mas continuei adiando a tarefa e, mais tarde, quando percebi meu fuzil tão limpo quanto os outros, não me animei a reclamar. Na verdade, meu interesse por ele, àquela altura, era nenhum. Pouco tempo depois, num final de tarde, eu acompanhava o percurso de uma ratazana, à espera da pedrada que a abateria. Atrás da cozinha, há um muro baixo sobre o qual se ergue outro mais estreito. A ratazana vinha pelo degrau formado entre o topo de um e a base do outro. Protegida pela sombra, dava alguns passos em direção ao latão de lixo da cozinha, parava, fareja o ar, dava mais alguns passos. Sentado ao lado do latão e encostado no muro, aproveitando ele também a proteção da sombra, o Batista se masturbava. A ratazana vinha pouco acima dele. “Vai cair na cabeça do 24
Batista” – pensei quando ela parou, levantou o focinho mais uma vez e eu esperei ouvir a retração do elástico de uma atiradeira. Mas o que se escutou foi um tiro de fuzil. O impacto da bala jogou a ratazana contra o muro. O corpo despedaçado caiu na cabeça do Batista, que, no susto, saltou de onde estava e saiu tropeçando na calça arriada. Aquilo tinha ultrapassado qualquer limite. A única atitude razoável era expulsar todos os meninos imediatamente. Mas o batalhão inteiro explodiu de rir com a cena do Batista, aos tropeções, cara e peito salpicados do sangue da ratazana, sem saber se segurava o pau ou a calça. Nossas gargalhadas desarmaram sua fúria e ele não fez mais que arrancar o fuzil das mãos do menino e berrar meia dúzia de palavrões. É curioso o modo como as mudanças acontecem. Embora, entre o início daquela última trégua e agora, o batalhão e a própria guerra tenham mudado radicalmente, não é tão simples entender como e quando o processo se deu. Mas ter permitido o acesso dos meninos às armas foi, sem dúvida, um divisor de águas. Desinteressados de um poder que não nos levava a lugar algum, deixamos que os meninos o exercessem. O poder das armas. No que passaram a andar de fuzil a tiracolo, eles foram mudando de atitude. Não esperavam mais os restos das nossas refeições. Comiam junto. Não lavavam mais as panelas, não apanhavam água no poço. Promoviam caçadas coletivas em que alguns meninos revolviam o lixão enquanto os outros alvejavam as ratazanas em fuga, e nós éramos obrigados a buscar proteção contra a fuzilaria. De vez em quando um de nós protestava, mas sempre esperando que os outros tomassem alguma atitude, e a reação não passava disso. O comandante não dava ordens havia tanto tempo que ninguém mais tomava conhecimento dele. Quando, durante uma das caçadas, uma bala ricocheteou no muro e atravessou sua cabeça, encaramos o fato como um acidente, nada mais. Enterramos o corpo sem qualquer cerimônia especial, exceto por uma salva de tiros que os meninos insistiram em disparar. Hoje entendo que, num ambiente como o nosso, as armas – sejam elas atiradeiras ou fuzis – são a principal fonte de virilidade e energia espiritual. Sem elas, chafurdamos no pântano da indolência. Não acho que isso explique tudo. Mas o fato é que, dias atrás, quando a trégua afinal terminou, continuamos lavando panelas. Da guerra se encarregam agora os meninos.
JOÃO PAULO VAZ (www.joaopaulovaz.com.br) é contista e engenheiro eletrônico pós graduado em ciência da computação e filosofia contemporânea. Tem cinco livros publicados – três de contos e dois infantis. Recebeu, entre outros, os prêmios Mario Quintana, Josué Guimarães e Off-Flip. Coordena oficinas de contos na Estação das Letras.
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favela movie luís dill
U
Jorge (off) E contudo não faltaram a esta senhora ímpetos de estrangular Sofia, calcá-la aos pés, arrancar-lhe o coração aos pedaços, dizendo-lhe na cara os nomes crus que atribuía ao marido...
m filme ambientado em uma favela brasileira.
[Favela movie. Os gringos adoram. A temática parece nunca sair de moda. Outro dia descobri que aquela história de que os mexicanos inventaram o termo “gringo” é pura balela. Eu tinha como certa a versão de que no começo do século XIX os mexicanos gritavam “Green, go!” para as tropas dos Estados Unidos, cujos uniformes eram verdes. Gringo é uma palavra espanhola registrada já no século XVIII para designar estrangeiros. Uma corruptela de “griego”.]
[Um dia, se minhas finanças melhorarem, vou repor boa parte do meu acervo. A edição que tenho de “Quincas Borba” é de bolso, da Edições de Ouro, com umas poucas ilustrações do Poty. O livro está em estado detestável, a capa quase solta, as páginas internas amareladas e tomadas por pontos que parecem ser mofo ou fezes de traça.]
Vôo panorâmico sobre um morro tapado por casebres, vielas e pequenos estabelecimentos comerciais. Cachorros, pessoas e motos transitam em aparente tranquilidade. Ou seja, o cotidiano de uma dessas comunidades. Começa a anoitecer. No interior de um desses casebres está nosso herói. Ele – vamos chamá-lo de Jorge – está deitado em sua cama estreita. Lê “A metamorfose”, do Franz Kafka.
O espocar e toda a movimentação externa cessam. Jorge para de ler e volta a prestar atenção nos ruídos do mundo exterior. Ele começa a se erguer quando um barulho muito alto o faz se deitar no chão novamente. Parte do teto precário do seu casebre desaba e um homem despenca sobre sua cama. O homem está coberto de sangue, olhos abertos, respiração fraca. Junto a seu corpo, uma mochila. Gritos e nova sinfonia de estampidos invadem o ambiente. Jorge está apavorado, segue fitando o homem nos olhos. O homem tenta falar, mas não consegue. Aí aponta o indicador para Jorge, tenta sorrir.
[Podia ficar bem legal algum trecho do livro em off. O trecho em que os pais resistem à ideia de entrar no quarto e enxergaram seu filho Gregor Samsa naquela situação. Isso dá uma boa pista a respeito da personalidade do personagem central. Um leitor. Espera. Melhor um autor nacional de peso e já em domínio público para evitar gastos e eventuais questões jurídicas.]
[Acho interessante colocar algo inusitado em um momento tão dramático. Como no filme Os suspeitos, do Brian Singer. A certa altura, durante o ataque ao navio onde deveria estar o carregamento de cocaína, Stephen Baldwin aparece e diz: “A coisa mais esquisita” ou “A coisa mais engraçada”, algo assim. Diz isso em meio a chamas e tiroteio. Aí caí de cara no convés e vemos que tem um punhal enterrado na nuca. O roteiro do Cristopher McQuarrie mereceu o Oscar de melhor roteiro original. O inusitado mesclado ao dramático: o sujeito agonizando, mas sorrindo? E aquele dedo apontado? Boas interrogações para os expectadores.]
Jorge está deitado em sua cama estreita. Lê “Quincas Borba”, do Machado de Assis. Jorge (off) Não vades crer que a dor aqui foi mais verdadeira que a cólera; foram iguais em si mesmas, os efeitos é que foram diversos. A cólera deu em nada; a humilhação debulhouse em lágrimas legítimas.
Depois de um tempo a situação volta a se acalmar na comunidade. A noite cai, as vielas estão pouco movimentadas, moradores espiam por vão de portas e janelas. No interior do casebre de Jorge, o homem agonizante está morto. Jorge apanha a mochila do falecido e a abre. Ali dentro estão maços e mais maços de dinheiro.
Ouvem-se estampidos do lado de fora. Jorge para de ler e presta atenção. Mais estampidos, gritos abafados e sons difusos de correria ali próximo. Ele se deita no chão junto à cama. Não demonstra medo ou grande alteração de ânimo. Torna a abrir o livro e segue lendo. 26
[Muito bom, isso excitará a audiência. Um bolo de dinheiro cai do céu, ou do teto. Bem na casa de um cara que, ao que tudo indica, é uma pessoa bacana, mora na favela, mas não tem qualquer envolvimento com o crime. Um dilema moral se estabelece. O que ele fará a seguir?]
mais apelo comercial. Por outro lado, não identificar a cidade pode passar a mensagem de que esta história poderia se passar em qualquer lugar do país.] Jorge está passando o esfregão em algum corredor. Aí aparece uma senhora carregando uma pilha de livros. Ela pergunta como está a leitura do Quincas Borba. Ele responde que está supimpa. Ela ri e diz para ele não esquecer a data de devolução.
O dia amanhece. A comunidade parece ter superado o combate da noite anterior. Crianças e suas mochilas descem para a escola, trabalhadores seguem com suas rotinas. Jorge está vestido com roupa de trabalho, toma um copo de café preto. O homem morto segue em sua cama. Ouvimos batidas na porta. Ele vai atender. É uma vizinha que começa a tagarelar sobre o episódio da noite passada, conta como morreu de medo, diz saber que o conflito foi uma tentativa de “tomada de boca” por um grupo rival de traficantes, que há vários mortos. Jorge diz estar ciente e escancara a porta de seu casebre. A vizinha então vê o corpo do homem sobre sua cama. Ela se espanta, faz o sinal da cruz. Neste momento chega uma dupla de homens armados com fuzis. Dizem que estão procurando por invasores. Jorge aponta o morto, eles entram e constatam que aquele definitivamente era um dos “bandidos”.
[Pronto, uma cena rápida para esclarecer alguns pontos a respeito do Jorge. Espera. Mas isso pode ser encarado como preconceito: o favelado só lê livro porque trabalha em uma biblioteca? Ele não poderia simplesmente gostar de ler e pronto? Puta merda. Pensar a respeito.] Começa a anoitecer. A movimentação de sempre na comunidade. Jorge está consertando a telha quebrada de seu casebre. Um pelotão de traficantes fortemente armados aparece aos berros e apontando suas pistolas e fuzis. Arrebanham os moradores da viela de Jorge e os colocam em fila. O chefe do bando chega e começa a falar que no ataque da noite anterior o quartel general do tráfico teve subtraído de seus cofres uma quantidade significativa de dinheiro em espécie. Ele diz que um dos ladrões morreu baleado dentro da casa do morador Jorge. Pergunta se alguém ali sabe se o falecido carregava o dinheiro roubado. Ninguém se pronuncia. O chefe do bando diz que o dinheiro ainda não apareceu e que o bicho vai pegar se a grana não aparecer. Pergunta de novo. Ninguém se pronuncia. Ele manda seus homens entrarem e revistarem todas as casas da rua. Os comandados entram e começam a revirar e destruir o interior de todos os casebres da vizinhança.
Jorge: E eu faço o que com o corpo? Traficante: Gostou? Fica pra ti. Os dois homens armados vão embora. Jorge e sua vizinha ficam se olhando mudos. Corte para o corpo do homem chacoalhando num carrinho de mão. Jorge, mochila às costas, está descendo as vielas com o falecido sem provocar muito espanto dos moradores. Alguns até fazem piada. Chega na entrada da comunidade e o desova na calçada. Volta com o carrinho de mão até um mercadinho ali próximo, pede a mangueira emprestada e lava de modo superficial o sangue de dentro do improvisado rabecão. Pede para um menino levar o carrinho de volta até uma obra lá em cima. Vai para a parada de ônibus, olha para o corpo jogado na sarjeta. Há mais pessoas ali, mas ninguém demonstra preocupação ou consternação diante da cena. Seu ônibus chega e ele embarca.
[Esta pode ser uma cena bem interessante, ótima para indignar o expectador e para fazê-lo pensar no que nosso herói fará.] Os soldados do tráfico voltam e relatam ao chefe não terem encontrado nada nos casebres. O chefe começa a andar diante dos moradores perfilados, vai encarando cada um deles. Diz que não pode voltar sem nada nas mãos. Engatilha sua pistola e aponta para a cabeça da vizinha de Jorge. Ela fecha os olhos, começa a chorar. Chorar e rezar.
[Uma sequência que pode provocar alguma polêmica, o que não é de todo ruim para um filme de baixo orçamento. A famosa banalização da violência. Ninguém parece se importar com o cadáver abandonado. Estão acostumados. A polícia que recolha o corpo.]
[Pistola se engatilha? Não seria “destrava a pistola?” Pesquisar. Ah, merda, a falta que uma mocinha nerd toda tatuada me faz. Ainda vou ter uma assistente.]
Jorge entra em um prédio barroco enorme, cinzento, coberto de pátina. É a biblioteca municipal. Cumprimenta algumas pessoas, é cumprimentado. Desce para uma sala reservada, o vestiário. Checa se há mais alguém lá. Não há. Abre seu armário metálico, retira o uniforme, troca de roupa, abre a sua mochila e passa os dedos sobre os incontáveis maços de notas. Fecha e chaveia o armário.
Chefe: Se ninguém falar onde tá minha grana, a tiazinha aqui vai levar um tiro nas ideias. [Hmmm...] Ninguém se pronuncia, Jorge permanece rígido, olhando para o chão. O chefe dispara na testa da vizinha de Jorge. O corpo desaba sem vida. O atirador reforça que não vai parar enquanto não souber onde está seu dinheiro. Neste
[Ele pode ser o faxineiro da biblioteca. Boa. É uma maneira de explicar porque é leitor. Talvez fosse interessante ambientar a história no Rio de Janeiro, na Biblioteca Nacional. Pode ter 27
momento, um dos seus soldados recebe uma mensagem pelo rádio e diz que tá acontecendo um problema no quartel general e que precisam dele lá. Antes de sair ele adverte que vai voltar e quer ver seu dinheiro. Aproveita para pegar um menino de dez anos.
[Acabo de ter uma ideia. Às vezes é assim: no meio da coisa toda aparece uma ideia. A cena de abertura podia ser outra.] Fade in. Final do expediente. Jorge, já sem uniforme deixa o exemplar de Quincas Borba no balcão da bibliotecária e se despede. Vai até os fundos do prédio, um bequinho, onde está um grande container de lixo. Ele se certifica de que ninguém está por perto, começa a revirar na montanha de lixo seco e retira de lá um saco plástico preto. Abre-o. Ali estão os bolos de maços de dinheiro. Coloca tudo na sua mochila e vai para o saguão de entrada da biblioteca, mas não sai do prédio. Fica observando a movimentação de uma janela. Carros, motos, ônibus e pessoas circulam com intensidade. Tudo parece em ordem. Jorge faz menção de sair de seu canto de vigilância quando percebe os mesmos soldados do tráfego junto a uma banca de revista. Ele congela, o medo é visível em seu rosto. Jorge se afasta lentamente. Corre pelo interior do prédio, por entre dezenas de prateleiras de livros, até alcançar outra saída do prédio. Pega um táxi.
Chefe: Se a minha grana não aparecer até amanhã de manhã esse daqui já era. E sai deixando pais inconsoláveis, moradores assustados e um Jorge retraído e quieto. Jorge volta para seu barraco e segue arrumando a telha quebrada. [Muito exagerado? Uma criança como refém?] Manhã seguinte. Junto à avenida, no pé do morro, está estacionada uma caminhonete do Instituto Médico Legal. Dois daqueles gavetões horríveis estão ali junto a um monte de lixo. Os técnicos de aventais brancos e luvas se preparam para realizar o transporte. Dentro dos gavetões estão a vizinha de Jorge e o menino levado na noite anterior. Ambos com furos de bala nas testas. Jorge observa a cena sem demonstrar muita coisa, embarca no seu ônibus e parte.
Jorge Pro aeroporto. Rápido! [Claro, a cena de abertura tem de mudar. A nova cena de abertura do filme é o amanhecer na margem tranquila do rio Amazonas, a água, a vegetação densa, os pássaros, e um barquinho deslizando muito calmamente. Depois corta para a tomada aérea da favela. Isso. Bem melhor.]
[Jorge é algum tipo de psicopata? Melhor colocar alguma reação no rosto dele diante do assassinato dos dois moradores. Uma lágrima furtiva, por exemplo. Isso manteria o expectador ao lado de Jorge. É aquele negócio do Psicose, do Alfred Hitchcock. Quando o Antony Perkins empurra o carro com a Janet Leigh morta no seu interior para dentro do pântano e o automóvel para de submergir, todo mundo fica sem respiração. Aí o carro afunda e todo mundo se sente aliviado, ou seja, estão torcendo pelo Norman Bates. Aqui seria bom deixar o expectador em dúvida. Qual é afinal o caráter de Jorge? Ok, colocar uma lágrima furtiva. Furtiva? Odeio essa palavra.]
Um avião aterrissa na pista. A fumacinha quando os pneus tocam o solo. Jorge é um dos primeiros a desembarcar, ele e sua mochila. Corte. Ele no hotel. Corte. Ele perambulando pela cidade, percebe-se que é uma cidade amazônica pela vegetação, pela transpiração ou então por um letreiro estrategicamente enquadrado. Corte. Ele compra um barco. Corte. Jorge comprando livros em livrarias, sebos e distribuidoras. Corte. Um indígena ensinando Jorge a pilotar. Corte. Jorge de barba, cabeça raspada, moreno de sol, atracando seu barco em uma pequena comunidade junto ao Amazonas ou um de seus afluentes. Várias pessoas se aproximam. Jorge acena, apanha uma caixa de papelão e começa a doar livros infantis para a criançada. Na lateral no barco está escrito Quincas Borba. Corte. Uma moça loira muito bonita com um microfone na mão vai narrando o percurso que a biblioteca flutuante Quincas Borba faz pela região distribuindo livros para a população carente. Jorge aparece dizendo que sua ideia é dar oportunidade às pessoas. Quer que as pessoas tenham a chance de ingressar no fascinante mundo da leitura.
Ao chegar na escadaria da Biblioteca, dois soldados do tráfico estão esperando por Jorge. Perguntam educadamente se ele não viu nada. Jorge nega. Eles insistem, afinal um dos assaltantes caiu sobre a cama dele. Jorge diz que o cara não levava nada consigo. Eles dizem que estão de olho, que não vão parar de procurar até o dinheiro aparecer. Um deles retira a mochila do ombro de Jorge e a abre para checar. Jorge permanece firme. Os homens resolvem então revistar o armário onde Jorge guarda as suas coisas. Jorge fica quieto e os conduz até lá. É possível ver as armas por baixo das camisas dos homens. Jorge está suando, deixa cair a chave na hora de abrir o cadeado, mas finalmente abre a porta metálica. Os dois homens olham o interior do armário e só encontram o uniforme de faxineiro.
[Pode funcionar. E se ele casar com uma nativa? Não, não. Melhor focar no Jorge, isso daqui não é novela.]
Jorge: Satisfeitos?
O barco biblioteca Quincas Borba ancorado às margens de uma prainha exuberante. A flora e a fauna incomparáveis. Jorge está deitado, lendo o livro “Memórias póstumas de Brás Cubas”. O ruído de um motor potente desperta sua atenção. Ele sobe até o convés e vai espiar. É uma lancha moderna,
Um dos traficantes fecha a cara e diz que só vão ficar satisfeitos quando o dinheiro aparecer. O outro traficante diz para Jorge não bancar o espertinho com eles. 28
potente, barulhenta. Três homens com varas de pescar acenam. Jorge devolve o aceno. Eles se aproximam. Usam os trajes típicos de turistas pescadores, coletes e chapéus expedicionários. Um deles diz: Permissão para ir a bordo. Jorge sorri, vai responder e congela. É o chefe do tráfico. Ele agride Jorge que cai. Os outros dois homens sobem e o espancam. Chefe: Tu fica muito bem na tevê, espertinho. Seguem chutando Jorge. O chefe manda pararem, senta na amurada, abre uma cerveja, olha para o barco. Chefe: Roubou meu dinheiro pra isso? Distribuir livros neste fim de mundo? Jorge: Foi minha melhor ideia. Os homens seguem batendo em Jorge. Ele está coberto de hematomas e sangra em abundância. Levam-no para baixo e o jogam sobre a cama. Chefe: Gastou todo meu dinheiro? Jorge apenas sorri. O chefe também sorri, bebe mais um gole de cerveja. Chefe: Tenho que admitir. Tu teve coragem. Joga a lata de cerveja pela escotilha. Chefe: Então, boa sorte com teu negócio. Tenho um churrasco pra ir. Jorge volta a sorrir. Faltam-lhe dentes e o olho direito está fechado pelas pancadas. Ele sangra. O chefe se retira e os homens começam a despejar gasolina no interior e no tombadilho do barco. Um deles risca um fósforo e as chamas nascem furiosas. A lancha arranca e se vai. O fogo começa a consumir milhares de livros. Jorge agonizante, olhos abertos, aponta o indicador, sorri. A biblioteca flutuante Quincas Borda é engolida pelo fogo na quietude da selva. Fade out. Créditos.
LUÍS DILL é de Porto Alegre. Tem mais de 40 livros publicados e alguns prêmios. Para saber mais: www.luisdill.com.br
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SURREALISMO Para Anderson Fonseca
mariel reis
O
era uma novela, energúmeno. Novela; quer saber mais do eu? Corpo Çanto é um tal José, abilolado por santidade, por querer enrabar os anjinhos, coitado. Era homem sério. As más línguas dizem que ficou assim porque viu o pai morrer. Era estudado. Poeta, dramaturgo, jornalista e gramático de uma língua só dele. Tamô falando do Corpo Çanto. Para de falar merda, não é da novela ou de um personagem dela. Se bem que... Mais uma cerveja. Um queijinho pra petiscar. Como sei dessa porra toda? Estudei no estranja, cumpádi. Fróid, Sartri, Bevoar, Troteski... Porra, troca a cerveja aqui, tá aguada, tá uma merda. Quase tive distensão na língua. Comer aquele estrupício é que é foda. Vai dizer que não? Como tu agüenta? Isso que eu fiz, não faz não, tá. É errado. Misturar tu, você e o escambau. A patrulha dos pilantras das gramáticas coloca em cana. É trabalho de escola, é? Deu pra entender? Sem maldade, pô... Sem maldade. Diz pra sua mãe que não vou cobrar nada, tá certo? Corpo Çanto não era francês, não falava ingrês, nem latim. O dos cachorros? Latim é uma língua morta, meu filho. Como se mata uma língua? Se é de tiro? Vai ser burro assim lá na casa do cacete. E pede pra sua mãe me esperar mais tarde.
buraco é mais embaixo. O sujeito, emputecido, amassa os papéis. Surrealismo de cu é rola. Corolário da conversa. Isso é Darcílio Lima assinado por Dali. É o que é. Não vale tostão. E enxota o vendedor de raridades. Os putos, em 1920, inventaram a porra e rende dinheiro até hoje. Não é? Absurdo do mundo é o caralho! Virou grife, franquia, um Mcdonalds do inconsciente, morou? Cheio de fórmulas e o cassete a quatro. Eu não compro. Não vem que não tem. No meu cu é que não botam. Surrealismo. À puta que pariu. Dali acanalhou o inconsciente e o colocou nas gôndolas dos supermercados. Você chega e pede ao açougueiro: me vê aí meio quilo de pá, de acém e de surrealismo. Reforça o embrulho que é pra viagem. Estado de fantasia supernaturalista, disse um escritor meio viado. Traduz, né? É bonito pra intelectual. E nós? A graça dos franceses, qual era a graça deles? Me deixa lembrar... Peraí... Dali era francês? Ou espanhol? Ou catalão? Só um pouquinho mais... Breton. Foi ele que despirocou o Fróid. Não o Fróid em pessoa, não me entenda errado, não foi o que eu quis dizer. Escangalhou com os escritos do Fróid. Isso não se faz. O livro? O tal livro dos sonhos. Aí a coisa ficou feia. Muito marmanjo escreve um monte de merda e diz fiz um livro surrealista. Não serve nem pra limpar a bunda. Junta um monte de merda sem pé nem cabeça, narra que nem um zé bocó e faz pose de intelectual para vender o próprio peixe. Eu não compro. Sou estudado. Comigo o buraco é mais embaixo. Não levo gato por lebre pra casa. E quer saber de uma verdade? Quer mesmo? O Brasil foi que inventou essa merda. O quê? País surrealista? Não, não foi isso que eu quis dizer. Foi outra coisa. Saca? Comer aquele estrupício é um exercício surreal. Nem com toda a pica, mermão. Sem sacanagem, cara. Surgiu aqui, nos trópicos, no duro. Antes de vinte. Bem antes. O cara não batia legal da cuca, tá certo. A cachola dele era prejudicada tinha uns pinos a menos. Mas, dai a César o que é de césar, ele era o cara. Quando? No dezenove. Século, entende? Século dezenove (escandindo as sílabas). Corpo Çanto. José Joaquim Leão. Você assistiu? Como? Na extinta tevê Manchete? Aquilo
MARIEL REIS
é escritor, crítico literário e editor geral da flaubert. É autor de Bordel de Bolso, que será lançado no primeiro semestre de 2014 pela editora Oitava Rima.
30
adentro
maurício de almeida
1.
e fecha caminho, um trator movimenta o pasto – as árvores monumentais ao fundo da paisagem parecem indiferentes ao nosso carro. A continuidade quase hipnotiza e eu mesmo moroso remoendo transtornos sem o susto de curvas ou o perigo de ultrapassagens. O balanço monótono e o ronco constante do motor não me derrubam num sono, mas me confundem pensamentos, longilíneo absurdo fazendo florescendo impossíveis sentimentos que me expõem: tudo em mim é contundente apesar de confuso e cheio de curvas e percalços. Ao meu colo, o mapa como se o ninasse (e talvez o nine) enquanto aos poucos me confundo em sonos antigos, o sorriso ainda quente de minha mãe avisando chegadas, Elizabeth me sorrindo despedidas pouco antes do avião partir com pressa – a BR 319 é um voo reto e firme e muito plano no qual nada pode acontecer.
Desço a escada do avião e ao meu redor há pouca coisa além do sentimento de desterro e agonia por me encontrar numa terra estranha, a solidão muito própria deste primeiro momento num território que é pátrio e tão estrangeiro. Percebo também árvores tentando evitar um horizonte infinito e quente até o momento em que meus olhos encontram a estrutura de concreto e vidro e letras prateadas muito geométricas que identificam porto velho sem maiores anúncios ou avisos. Mapas nunca prenunciam concretos ou vidros, mapas não sonham nada. Alguém teria de conferir a venda de madeira em Santo Antônio do Matupi, e, muito embora não tenha me oferecido, tampouco vacilei quando fui convocado à viagem. E, por me atirar quase ao acaso em aventuras muito mais por necessidade que pelo gosto mesmo de aventurar-se, continuo interessado em tudo que se me presenta para lidar com este vazio de se estar num lugar ainda estranho, mas apenas o calor forte me abraça sem rodeios e ao meu redor nada ainda me significa e fatalmente nunca significará. A esteira rolante começa a se movimentar com a preguiça muito própria da mecânica e à minha frente passam malas, caixas e embrulhos, malas, caixas e embrulhos: pego a mochila preta que suspendo nas costas e observo as pessoas cruzarem o limite da porta sem receio. Tentando premeditar surpresas, abro um mapa e o analiso como quem examinasse a anatomia de um corpo (nem que fosse meu corpo!): deduzo que até o Matupi teremos de alcançar Humaitá e depois seguir, mas não tenho certeza, pois os músculos e os ossos desses lugares estão ainda envoltos pela grossa pele do desconhecido. Apanho o celular no bolso – nenhuma ligação, nada. De que me adianta pensar em Elizabeth agora tão distante? se tudo que posso fazer é ir.
3.
No entanto, acontece: sem avisos ou anúncio, a BR 319 se desnuda finita e morre aos pés da Transamazônica – mítica Transamazônica aberta numa violência tão distante que sequer causa dor, muito embora ainda seja possível ouvir máquinas em potência de óleo diesel colocando abaixo qualquer coisa sob o olhar atento e matemático de topógrafos, uma transversal tentando cruzar o país que morreu como se nunca tivesse existido. Desperto e lógico, desdobro o mapa no qual procuro qual quer indício desse acontecimento que é a Transamazônica e que se coloca à frente, mas não encontro nada além de um traço tímido escalando incerto o Amazonas e o Pará e o Maranhão e o Piauí. Todavia, a Transamazônica estende-se à esquerda e à direita numa linha transversal que, ainda em surpresa, não coloca muitas questões ao imperativo de seguir – e o carro continua impassível num ímpeto de caminhada rumo ao vazio que de repente é suspenso pelo balé circular de urubus que ascende e desce no céu quente e úmido de Humaitá. É possível um vazio maior que este?
2.
A BR 319 é um traço infinito que se estende como quem não possui tempo, moroso rumo a lugar algum em meio ao nada – nada. A BR 319 é um igarapé de asfalto no qual floresce em sua margem alinhavados postes, impossíveis quilowatts viajando por fios suspensos e indiferentes a qualquer luz. Nesse marasmo – um rebanho de novilhos atarantados abre
4.
Paramos, por enquanto. Caminho pelas ruas de Humaitá que desconheço, assustado por bicicletas que surgem aos 31
enxames e somem em pedaladas dentro da noite quente. Caminhar numa cidade estranha deveria arejar meus pensamentos, pois estar em trânsito proporciona perspectiva e quase nenhum procedimento, no entanto me irrita a excitação de não saber rumo, desconfiar de esquinas, sentirme constantemente sob a vigia de olhares furtivos que me identificam desconhecido e me estudam. Sempre é possível um vazio maior do que o anterior. Amanhã sairemos cedo, mas, deitado numa cama de hotel, não sinto sono. Não sei o que é isso que se ausenta em mim numa saudade, estranho vazio que não incomoda, mas que me remete a um sorriso (agora mudo, noite), a um olhar (agora calmo, mormaço), o rosto de Elizabeth me prometendo paraísos que retribuo com abandonos. Envio a ela uma mensagem dizendo que estou bem e, ainda que não espere resposta, mantenho o celular nas mãos. Não sei o que é isso que se ausenta, porém me assola numa insônia nesta noite aflita, o desejo açoitando o corpo numa hora morta e solitária, a necessidade de sentir-se seguro. Não sei o que é isso que me assombra e que solidão é essa que me assusta, mas que nunca me impedem de estar só num fim de mundo que nunca acaba. Elizabeth me liga. De certa forma, é como se a distancia me protegesse daquele algo que ela me promete em sorrisos e que desconheço e temo. Não entendo meu medo e esta necessidade de fuga à qual me entrego, pois ela me devota cuidados, algo como música em palavras calmas, Elizabeth desde sempre a me observar num silêncio diurno. Ela me liga, mas não atendo.
não reconheço os sons que se desfazem em vozes e sorrisos, Elizabeth distante me prometendo coisas que não posso aceitar, muito embora não entenda exatamente a razão de minha negativa. Repete-se uma voz baixa como um sopro Cecília e me transtorna de uma forma que não sei se incômodo ou prazer. Cecília a noite inteira.
6.
Numa noite anterior a esta viagem, deitada ao meu lado na cama, Elizabeth sorria e, ainda que eu perguntasse – o que está havendo, B? ela nada me respondia. Sei que deveria amá-la e que aquele sorriso deveria me inflamar numa espécie de euforia ou me postar numa calma muito profunda, entretanto me assustava (e ainda me assusta). Por isso eu insistia – o que está havendo? mas ela apenas me devolvia aquele sorriso, Elizabeth se divertindo com meu espanto sem se dar conta do meu desespero. Melhor que ela não tenha me respondido, pois eu mesmo não saberia explicar o que me atormentava.
5.
7.
A Transamazônica é tão imperativa que sequer o rio Madeira é capaz de impedi-la: uma balsa traça o rio de uma margem a outra como se uma continuidade sobre as águas marrons até que finalmente o marrom da terra batida impondo acidentes numa infinidade de buracos e atoleiros, inúmeras pontes providenciando caminho não importando rios, declives ou aldeias, não importando nada. Não sei onde estou, mas o calor úmido é infernal e ao meu redor são índios me contando histórias e todas as histórias são a mesma história de desolação & abandono. Em meio a tantas pessoas, uma mulher me observa com curiosidade. Aproveito a dispersão para alcançá-la e me apresento, ela diz um nome
O dia outra vez e muito cedo: há uma névoa sobrepondose ao horizonte, mas não demoro reencontrar as árvores centenárias que aos poucos recobram a imponência. Colocando as coisas no carro, descubro Cecília frente a um quadro-negro desvendando o abecedário e algumas crianças observam pouco atentas ao que ela diz numa voz firme mas delicada que escapa daquela estrutura de madeira coberta por grandes folhas secas entrelaçadas num artesanato. Sinto-me tentado a perguntar a ela o que temo no sorriso de Elizabeth – mas o que ela poderia me dizer? se sei que na verdade Cecília e eu temos em comum uma necessidade de fuga por acreditarmos que, seja quais forem, as possibilidades impõem o imperativo de aproveitá-las e vivê-las em intensidade e descontrole. Acima de tudo, sei que para ela também a desolação e o abandono forjando perspectiva e pouco procedimento é muito provavelmente uma forma colocar-se num ponto cego que justifica a incapacidade de escolha ou decisão. Do contrário, o que faria ela aqui? Precisamos continuar a viagem, por isso me desfaço da atenção que dedico à Cecília, os índios me agradecem balançando a cabeça em afirmativas e entro no carro. Em poucos instantes, estamos novamente na monotonia às vezes acidentada desta estrada. Não me despedi de Cecília – rapidamente descobre-se que não é possível apegar-se a nada neste lugar, que, apesar de tão cheio de árvores, não permite raízes, certezas ou paradas: tudo é passagem.
– Cecília e sua voz é muito baixa apesar dos lábios grandes, o rosto redondo e os olhos esquivos deixam entrever muito pouco. Cecília me interessa numa curiosidade, entretanto trocamos poucas palavras – o que haveríamos de falar? – e ela se despede justificando ser horário de aula. Ela é professora desta aldeia na qual pernoitaremos. Meu corpo suspenso numa rede tenta sono, mas barulhos estranhos assolam a escuridão de árvores que ao menos neste momento escondem-se: não as vejo ainda que force os olhos. Tento discernir dentre morcegos e pernilongos os muitos sons que desconheço, pois no meu íntimo também 32
8.
está havendo?), mas uma espécie de sono ainda assim, pois meu corpo cansado estiola e se encolhe aconchegando-se no ventre inóspito deste lugar e adormeço numa vigília, confundindo em delírio sons e sorrisos mas sabendo que devemos continuar, que vamos continuar.
Ao longo do caminho, percebe-se rios que nascem e morrem e desembocam em outros rios que nascem e morrem sem que saibamos exatamente esta razão de ser – para nosso mais íntimo horror, afronta irremediável à lógica. A mata é densa e sinto na boca este gosto quente e úmido do desterro: onde estamos? Não encontro mais o mapa entre minhas coisas e os caminhos abrem-se impassíveis à nossa frente sem que percebamos e assim adentramos um espaço (picada, aldeia ou vilarejo, pouco importa) estranho que provavelmente sequer existe – para nosso mais íntimo horror. E para nosso mais íntimo horror, pressente-se que há uma espécie de imperativo inexplicável que cobra a continuidade ainda que não se saiba a razão, como se, por haver caminhos, devemos caminhar.
9.
Por mais que se prossiga, a estrada persiste em estenderse indefinidamente e se perpetua abrindo um caminho. A Transamazônica nunca terá fim tal foi o ímpeto deste rasgo aberto com tanta voracidade, a mata pesada e fechada ao redor jamais conseguirá impor-se novamente sobre o faixo aberto no qual o carro se atrapalha em buracos, mas prossegue. Meu corpo pesa em suores. Sinto-me à beira de algo que não compreendo, mas devemos prosseguir e continuar, ainda que exposto ao perigo de uma queda. Impossível manter-se numa constância – a monotonia intermitente do carro forja uma segurança que não existe, nunca existiu. No entanto, um cansaço repentino e insuportável me baqueia. O celular não tem sinal, mas encontro os fones de ouvido, procuro música e sem querer me descubro dormindo para então me deixar ao sono.
10.
A Transamazônica é um sonho que nunca acaba, minha vida um delírio que tento (quero?) controlar e não consigo.
11.
Acordo num calor de febre e não me reconheço embrenhado neste lugar ao qual não pertenço – e as árvores denunciam que esse mundo muito próprio nunca deveria ter sido devassado. Ao meu redor nada me significa e sem anúncios ou avisos o rosto turvo de Cecília ensimesmada, Elizabeth sem qualquer resposta prometendo sorrisos que não me interessam, pois um frio se alastra numa Transamazônica tão glacial que não consigo me recostar e esperar a chegada, tampouco sonhar retorno neste caminho de buracos cada vez maiores, espaços cada vez menores, cada vez mais estranhos. Tento evitar a claridade que me incomoda e, nesses grandes silêncios repentinos que interrompo aos sustos, o sol pende (o que está havendo, Cecília?) e some por entre árvores imensas (o que está havendo, B?) que inventam noites e algo diferente de sono pesa sobre meus olhos (o que
MAURÍCIO DE ALMEIDA. Campinas, 1982. É autor de Beijando dentes (Record, 2008), livro vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2007 na categoria contos. Participou das coletâneas Como se não houvesse amanhã (Record, 2010), O Livro Branco (Record, 2012) e outras publicações. Mais em: www.mauriciodealmeida.blogspot.com
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safra humana mores – Essa porra vai te fazer mal, broder. – Foda-se. E largou o nariz.
o Terrível, atrás da mesa do gerente. Moldura em madeira folheada a ouro. Ivan de lado, com seu olhar severo, barba preta longa, entremeada de fios brancos, veste uma casaca de pele. Elie, o nome do gerente. Perguntei onde ele conseguiu aquela moldura. Ele me olhou nos olhos. Fixamente e por uns vinte segundos. E voltou a fazer o que estava fazendo. Retorno a cabeça para o apartamento. O verme para de falar merda e entra no banho. Preparo um macarrão. A campainha toca. Deve ser mais um viciado na fila do movimento. Abro:
Sábado, sete da noite. Minha perna ainda tinha areia da praia. Abri uma Brahma. Tava cansado do futevôlei. O cara ainda dava aquela aspirada nojenta que deforma o rosto dos viciados que não querem perder um grão do cimento misturado na pasta trazida da Bolívia. Uma merda ter que dividir o apartamento com aquele verme. Mas fazer o quê. – Essa porra não te broxa, não, broder? – Broxa. Dá um gole aí.
– Você que é o autor amigo do broder?
Passo a cerveja ao cretino. Ele cheira e fala pra caralho. É vendedor da Redley. Imagina o teor da conversa. Ainda bem que não é maconheiro, ou filosofaria. Aí não dava. Eu só registro. Tento dar alguma trela, ver se consigo extrair alguma coisa para esse conto. Difícil. A casa é um jogo de interesses: sempre quis ser escritor, vagabundo e morar no Leblon. Vim de Caxias. Sei jogar bola. Conheço uma rapaziada que vende umas coisas. Arrumei umas coisas para vender com essa rapaziada. No futevôlei da General Urquiza conheci o broder. Ele é limítrofe, mas me chamou pra dividir esse apartamento na Selva de Pedra, conjunto de espigões erguidos no coração do bairro do Manoel Carlos. Consigo pó pra ele de graça – pro broder, não pro Maneco. Ele paga mais no aluguel e ainda me deixa no quarto com ar condicionado, com vista para o campo do Flamengo. Ele me incomoda, mas foda-se. Aliás, toda aquela galera da praia me incomoda, mas foda-se. Eu jogo minha bola, dou meu mergulho, almoço e janto com as duas mãos, leio meus livros numa cama king size e ainda moro no Leblon. Pra mim, tá bom. Melhor do que herdar minha padaria no Gramacho. Falta só virar escritor. Isso vai ser foda. Difícil que a rapaziada do circuitinho inteleque aceite um preto traficante da Baixada vagabundo do Leblon. Eles são muito letras. Muito Negroni (olha a ironia). Eu sou Brahma. Na mesa da sala, o folheto convidando para um concurso de contos patrocinado pelo Banco Safra. Gosto do Joseph Safra. Um homem bom. Judeu. Empreendedor. Democrata. Libanês e paulista. Um brasileiro a ser copiado. Uma vez entrei em uma agência do Banco e me deparei com um quadro-retrato, no estilo renascentista, do czar Ivan,
Fico quieto. – Te imaginava diferente. Te imaginava um João Ubaldo ou um Suassuna. Não um Cruz e Souza. Quis mostrar erudição, a menina. À erudição, o meu desprezo. Ela era gostosa pra caralho. Ruiva de olhos azuis. Pernas malhadas, daquelas que as coxas se roçam. Bunda honesta. Peitos naturais. – Senta aí. Ele tá no banho. Volto pra cozinha. Pico cebola e vejo o macarrão amolecer na água fervendo. – Tem uma cerveja? Você se incomoda que eu fume um cigarro? Faço que não com a cabeça. Aponto a geladeira. Ela abre uma Brahma. Posta-se ao meu lado na bancada. – Você escreve sobre o quê? Questões sociais? Adorei o último do Paulo Lins. Aquela reconstrução do Estácio foi demais, não? E Nei Lopes, curte? Adoro um sambinha. Sabe, eu sou psicóloga e adoro a literatu... – Querida, posso te oferecer drogas, ar condicionado no máximo, uma cama confortável, eu e hipoglós pras tuas coxas. Quer? 34
– Porra! Que isso? Tu é grosso pra cacete. – Então senta ali. Ele tá no banho.
– Um litro e meio, por favor. Não me engana.
A menina vai para o sofá emburrada. Não fala mais nada. Como o macarrão na cozinha. Ela valia uma pirocada, mas eu não aguentava aquele papinho. Cruz e Souza? É a cabeça do meu pau com bigode. Questões sociais? Vendo drogas pra viver escritor, querida. Rotula aqui essa pica preta. O verme sai do banho e vocifera algumas palavras pra mim. Não escuto e não respondo. Eles saem. Bebo sozinho como gosto. Embriago-me. Penso na vida de Edmond Safra. Um sujeito daqueles morrer sufocado pela fumaça em sua cobertura de Mônaco. Não pode. Deus, se existir, fez merda. O Edmond não merecia o sofrimento e a surpresa na hora da morte. Um homem bom. Cuidou dos metais preciosos de todos que lhe confiaram. Emprestou dinheiro a juros. Acumulou riqueza. Seguiu, até o fim da vida, os mandamentos de seu pai Jacob e sua mãe Esther. Porra, eu preciso escrever a caralha do conto. Mas bate dez da noite e vou para a rua. A juventude está seca para aproveitar mais uma noite brilhante no Rio de Janeiro e carrego comigo a alegria. A rua, minha colheita. Sento no Bar do Silveira, na João Lira com a Humberto de Campos. Peço minha Brahma. Não demora e uma loirinha vem ao meu lado. Médica, diz ela. Hoje tem plantão – cocaína. Dez minutos e chegam três veados. Estamos indo pruma rave em Vargem Grande – ecstasy e cocaína. Se você quiser, te dou uma mamada de brinde. Não rio nem fico puto. Eles saem. Um professor de capoeira para crianças. Branco, careca e alto. Amado pela comunidade. Enquanto dividimos uma linguiça acebolada, uma senhora passa e diz: “Beto, meu filho adorou a aula de ontem.” “Obrigado, Dona Marli.” – maconha e pó. O senhor idoso vende rosas, carregadas em um balde. Lembra o Barbosa à beira da morte. Barbosa, aquele frangueiro da Copa de 50. Seus olhos fundos não disfarçam a catarata avançada. Diz a lenda urbana que possui uma senha própria: alguém lhe pede três rosas brancas e, com essas mágicas palavras, recebe um papelote. Baboseira pura. Resolvo testá-lo:
– Adoro sua estátua de Santa Bárbara. Minha padroeira. Dá um sorriso metido a simpático ao garçom, que segue o caminho. Tamborila os dedos no balcão. Eu só olho. Daqui a pouco ela vem. Não me engana. Mira a TV, ri pro Zorra Total e vira pra mim. – Meu filho, você pode me dar uma inform.. – Cinquenta reais e já está aqui separado, senhora. Que Deus lhe guie nessa jornada divina. E levanto pra mijar. Não fode. Chega o que mais gosto, o Miséria Humana. Filho de um advogado desses que estão sempre discursando na TV. Era jiujiteiro, mas já tá magro que nem Cazuza. Marrento, o rapaz. – Preciso de uma parada forte, mas tô sem dinheiro. – Então não tenho nada, querido. – Mermão, eu sei que tu tá cheio de parada aí. Já deixei uma fortuna contigo. Me dá uma de cinco que amanhã te pago. – Não tenho nada, querido. – Porra, filho da puta, tou vendo no teu bolso que tu tem pó pra caralho aí contigo – falava baixo, só pra mim, mas com aquele olhar dos que já perderam o amor há tempos – Me vende essa merda senão eu acabo com tua vida. Tu é um merdinha, rapá. Tu é um caxiense. Tu acha que se cria no Leblon? Amanhã eu mando a polícia explodir tua casa e tu vai escrever é verso pro Racionais lá de Bangu, teu vacilão. – Não tenho nada, querido. – Silveira – o Miséria grita – ô Silveira, explica aqui pra ele quem eu sou. – Meu velho, tudo que tá aqui eu já vendi prum fazendeiro goiano. O cara tá vindo buscar. Ele é veado, fera. Tá doido pra meter num cu. Gosta muito de dar pó pra quem libera o cu pra ele. Tá na pilha? Era mentira. Tinha cocaína pra caralho ainda no varejo. Mas ele titubeou. Pensou em liberar o rabo ao fazendeiro fictício. Continuei bebendo minha cerveja. Pensou melhor. Puxou um Rolex de ouro do bolso.
– Você vende pó, amigo? – Como? – Farinha. O senhor vende? – Não estou entendendo. – Pó. Pê Ó. Paulo Otávio. Você vende? – Que isso, menino. Me respeita! – Então me vê uma rosa.
– Esse aqui era do vovô. Ouro maciço. Não atrasa um segundo. – Sobraram dois gramas. – digo, na maldade. O cara esperneia, quase chora. Levo um Rolex por trinta reais. Ainda passa um porteiro que deixa o soldo, um pai de família que me dá a aliança, um playboy que leva todo o carregamento de maconha, menininhas que oferecem um boquete por uma narigada e la nave va. Uma e meia, pontualmente, encosta a viatura. Salta o Bigode pra buscar o arrego.
Ele vende, contrariado. Dez reais. Sai balbuciando palavras ininteligíveis, ditas em um dialeto que reputo africano. Jogo a rosa no lixo. A tal da Dona Marli retorna. Quarenta e tantos. Três filhos, todos no Santo Agostinho. Católica fervorosa. Chega ao bar com sua roupa de jogging. Pede uma água mineral pro Silveira. 35
como minha pica fica pra essa vagabunda. Pra ela, sobe.” Metia com força, o danado. E a velha botava o dedinho cheio de anel naquela buceta, humilhada e com tesão. Eu ria. Hihi. – Você não existe, Ingrid. – Quem não existe são os homens, reizinho. A humanidade. Deixe-me ir que tenho uma vida pra ganhar.
– Dia bom hoje, fita? Não falo nada. Passo um barão pra ele e peço a conta. Deixo quinhentos de gorjeta pro Silveira e rumo pra Copa. La Dolce Vita. Encosto no Nogueira, bar da Prado Junior que congrega todas as putas que saem das zonas da redondeza. Trazem consigo os moscas que vêm atrás de um programa mais barato e mais merda. Vou direto pro reservado, um lugar atrás do espelho e com ar condicionado no máximo, de onde vejo todo mundo, mas ninguém me vê. Adoro aquele canto. Tomo um White Horse oito anos, duas pedras de gelo. Não preciso lidar com o público. O Baixinho, garçom lendário do recinto, me pede a branca fina e leva pra quem quer ser feliz. Agora, só eu e meu gabinete. Um sofá em formato de U, com mesinha de madeira no meio. Puxo do bolso uma página de revista com a foto de Lily Safra. A gaúcha de fibra. Uma filantropa. Com certeza teve a ideia do concurso de contos. Ela não tem rugas, apesar de seus oitenta anos. Respeitada no jetset europeu. Deve sentir falta do Edmond. Tem que sentir. Aquele homem era bom. Entra o Sucupira. Policial civil. Está todo dia no Nogueira. Gosto muito desse cara. Bebemos sempre nosso whisky. Ele dá uma pulseirinha de ouro pra toda puta que é agraciada com sua escolha:
Sorri, enquanto finalizava meu scotch. Peço a conta pro Baixinho e vou pra casa. O ar já está no máximo. Ligo o computador. Preciso de inspiração. Preciso de um personagem. Não consigo pensar em nenhum. Acendo um cigarro e olho pela janela. Vejo o amor de Lily por Edmond. Vejo a bondade de Joseph. Vejo a felicidade reconstruída da família Safra em sua cobertura de Mônaco. Amanhã é domingo. Dia de visitar minha mãe. Odeio Caxias.
– Elas adoram ouro, nego. Ouro e polícia. Mistura mortal para as vagabundas. E sempre sai com uma ou duas, cambaleando. O Sucupira é decente. Combate o crime. Pai de família. Ajuda a manter o Rio de Janeiro nos trilhos. Eu não como puta. Mal falo com elas. Só gosto da Ingrid. Paulista de Rio Claro, loira cavala, buço levemente marcado pelos raios solares. Uma das favoritas do meu amigo civil. É manicura em um salão na Tijuca. Suas unhas estão sempre benfeitas. Adoro mãos. – Oi, reizinho. Está cada dia mais bonito, hein. Veja aqui a foto do meu filhotinho no aniversário. Tá lindo, né? Aquela ali é minha mãezinha. – Uma senhora nojenta, que com certeza empurrou a filha para a vida. – Muito carinho, muito amor. – Ingrid, eu preciso escrever um conto. – Lindão e intelectual, hum.... Adoro conto. Adoro ler. Meu preferido é o Vilela. – Ela sempre me surpreende. – Um dia escrevo sobre minhas experiências na pista. Você sabe que saio, volta e meia, com aquele desembargador, né? – O Desembargador. Sujeito correto. Evangélico. Responsável, quando juiz, pela Vara de Infância e Juventude da Capital Fluminense. Linha dura com os jovens bandidinhos. Um disciplinador. – Dia desses, ele pediu para eu ir até sua casa. Conheci sua senhorinha. Daquelas que tomam chá na Pérgula do Copa toda quinta, sabe? Cabelo duro de laquê. Hihihihi. – Odeio onomatopeias, mas adoro sua risadinha – Você acredita que o velho ficou me metendo enquanto a mulher olhava? E ele mandava assim: “olha, Velha. Olha
MORES é carioca e trabalha com as leis. Este é o primeiro conto que publica.
36
platero e o mar nelson rego
1.
nos formulamos essa pergunta na noite que precedeu a manhã em que Inocência, na poltrona dianteira da caminhonete dirigida pela arquiteta, com os meninos no banco de trás, foi.
Num fim de tarde de verão, após dias sendo assediada por um grupo de meninos de onze e doze anos, Inocência cedeu a seus pedidos e ficou nua na extremidade recôndita da praia. Dias antes, quando a arquiteta, acompanhada pelos meninos, lhe fez o convite para passar algum tempo no chalé, Inocência captou uma intenção oculta, algo que pressentiu nos sorrisos do grupo. Aceitou o convite, deliciando-se com a artimanha que estaria reservada para ela e contra a qual fingiria resistência. Inocência contou seu pressentimento para mim e Lara. Na noite que antecedeu sua ida, caminhamos pela areia, conjecturando sobre os acontecimentos que se sucederiam para Inocência, lá, onde ficava o chalé da arquiteta, na outra extremidade da praia em que estávamos. Que travessuras e sentimentos Inocência contaria para mim e Lara em seu retorno?
3.
Após o meio-dia, jogando cartas no chão de madeira da sala, Inocência pensava em como o convite dirigido exclusivamente a ela parecia ter por objetivo isolá-la de mim e Lara, para com mais facilidade desfechar o cerco. Restava a Inocência esperar pelos próximos lances. Usava seu vestido de tecido leve e branco, um pouco acima dos joelhos. Podia sentir, como um formigamento, o olhar dos meninos em seu decote discreto, quando ela se curvava para apanhar uma carta no centro do círculo por ela e eles formado sobre o chão. Quase podia visualizar, como bolhas de sabão suspensas no ar, uns pequeninos suspiros que os meninos soltavam. Esses suspiros engordavam quando os movimentos de Inocência eram os de modificar os modos de se sentar sobre as próprias pernas cruzadas, e a bainha do vestido deslizava em direção às virilhas. Os dois meninos sentados à frente chegariam a entrever sua calcinha? O sol forte do início da tarde passou, chegando a hora em que eles poderiam ir à praia. Inocência foi ao seu quarto trocar de roupa. Quando apareceu junto à porta do alpendre, foi como se aquela fosse a primeira vez que os meninos a vissem de biquíni. Ela foi envolvida por exclamações, sorrisos e olhares que percorreram as curvas de seus quadris e as linhas do corpo. Detinham-se, os olhares, sobre o tecido lilás estampado com florezinhas. Inocência bem sabia como o tecido, ao encobrir apenas um pouco, intensificava o prazer da visão de quase todo o corpo desnudo. Ela riu, perguntou se estavam malucos, parecia até que nunca a tinham visto assim, nem que a praia estava cheia de moças e meninas do mesmo jeito (mais ao longe, na direção do centro). Não conseguiu decifrar resposta alguma no meio da algazarra de risadas. Apenas entendeu o gesto feito com o braço pela arquiteta, chamando todos para a praia. Inocência desceu os degraus sabedora de que o motivo da algazarra estava no fato de que eles a tinham ali, na armadilha, com os próximos dias pela frente. Inocência desceu os degraus fingindo-se de perplexa, cercada por risadinhas e por “uau!”, e “oh!”, e “ah!”, e “ai, meu Deus!”.
2.
Naquele verão, a pintora nos hospedava em seu sobrado e ateliê na praia. Parecia-me misteriosa e semelhante às cores que vestem as flores uma nuance do brinquedo entre o prazer e o recato. Lara e Inocência mostravam-se nuas para o olhar da artista e seus convidados, às vezes eram desenhadas amando-se, ou me amando, em gestos vagarosos. Porém, ao descerem para a praia, seus biquínis eram dos menos reveladores entre os usados pelas tantas moças e meninas passantes pela areia. A artista tinha seus amigos no balneário, que se tornaram nossos conhecidos. Entre eles, estava a arquiteta. Seu filho de doze anos e quatro amigos mostravam-se atraídos por Lara e Inocência. Gostariam de assistir às sessões de desenho, mas isso não lhes era permitido. Os meninos iam ao mar com Lara e Inocência. Jogavam com elas o praiano tênis de bolinha de borracha e raquetes de madeira, ou ficavam sentados à sua volta, conversando com elas seus assuntos de meninos. A arquiteta fez o convite num fim de tarde, rodeada pelos cinco meninos e por suas risadinhas. Até onde iria, na outra extremidade da praia, o pacto de malícia entre a arquiteta e os meninos? Eu, Inocência e Lara 37
Manifestara-se no modo caprichoso como lhe preparou o jantar, no cuidado de perguntar se sopa de legumes, salada com cogumelos e suco de laranja seriam de seu agrado. Manifestava-se essa ternura no modo como se quedara a alisar e entremear os dedos nos cabelos de Inocência, que, após o jantar, deitada no sofá, a cabeça repousada sobre a coxa da arquiteta, quase adormecia. Não falavam, escutavam o murmúrio do mar. Inocência observava, através das frestas das pálpebras, as estrelas além da vidraça. Ouvia a conversa dos meninos no canto da sala, em tom baixo, jogando cartas. Vislumbrava, com o canto do olho, que eles mal prestavam atenção nas cartas, olhando a todo momento em sua direção. Adormecia, narcotizada pelo cafuné da arquiteta. Discernia, mesmo assim, quase apagada sua consciência, que o olhar dos meninos fixavase em seus joelhos, ela sentia ali uma comichão, que subia meio palmo pelas pernas, até onde estavam descobertas pelo vestido. Sentia esses olhares e pensava nisso – olhavam como se poucas horas antes não houvessem visto mais, com ela quase nua à sua frente, coberta apenas pelo biquíni molhado e aderente ao corpo. Depois, a anfitriã levou num abraço a sonolenta até a porta do quarto. Despediu-se de Inocência com um beijo de boa-noite na testa.
Eles queriam entrar logo no mar, mas Inocência resolveu ficar sentada sobre a toalha na areia, adiando e torturando a impaciência deles em vê-la molhada e com o tecido, mais próximo da transparência, colado ao corpo. Indecisos sobre o que fazer, os meninos foram se refrescar no mar. Inocência ficou na areia entretida em conversas com a arquiteta. Outros assuntos que não o desenrolar da cilada, as duas fingindo não saber que o sorriso era por aquilo. Inocência conversava, mas pensava em outra coisa. A arquiteta pelo jeito também, pois a conversa foi diminuindo. Restou o silêncio sonoro do oceano, um pouco de vento, o murmúrio dos poucos vizinhos pela praia, nem próximos, nem distantes. Inocência perguntava-se pelos motivos da paixão sentida pelos meninos. Não seria por ela ser excepcionalmente tesuda, pois isso não corresponderia à realidade – ao menos, não corresponderia ao padrão dos corpos com grandes bundas e seios, consagrados pelas revistas masculinas e alguns programas de tevê. Ainda que de corpo firme pela ginástica e seus vinte e três anos, mais para magra do que para forte, não enxergava em si maiores semelhanças com esses outros corpos. Pensava no modo como gostava de si mesma, no tempo que passava na frente do espelho. Apreciava o cabelo castanho-escuro desenhando sinuosidades sobre a pele clara, seus olhos castanho-claros admiravam o próprio brilho. Sentada na areia, ela pensava em mim e Lara. Antecipava o prazer do reencontro, quando nos contaria sobre o desenrolar do jogo e a alegria das infinitesimais percepções que lhe ocorriam. Admirava o grande sol vermelho em seu desaparecer lento no horizonte.
6.
No dia seguinte, uma moça desnudou os seios. Isso às vezes acontecia na extremidade pouco frequentada da praia. Foi a faísca no pavio ligado aos barris de pólvora que os meninos precisavam. Vieram ligeiros do mar, até onde Inocência estava, sentada na areia, cercando-a, esparramandose em torno dela, perguntando-lhe se não faria o mesmo. Perguntavam e tornavam a perguntar, em voz alta, engasgados em risos, abafando a resposta negativa como se a algazarra pudesse converter o não em sim. Inocência foi para o mar. No meio das ondas, o cerco continuou. “Por que não, Inocência, hein?”. Ela respondeu, tentando fingir seriedade, que achava deselegante a apresentação do corpo com apenas uma porção colorida de tecido, um pouco abaixo da cintura – duas áreas coloridas equilibravam melhor a apresentação. A resposta deixou os meninos embaralhados, mas só por uns instantes, logo um deles encontrou a maneira de voltar ao ataque. “Então, por que não tira tudo?”. Os outros concordaram num uníssono de vozes altas e risos. Rogaram que ela se desnudasse das duas partes, pois, segundo a lógica por ela mesma expressa, ficaria a apresentação do corpo equilibrada não por duas áreas coloridas, mas por nenhuma. Inocência respondeu que não, não e não, eles insistiram que sim, sim e sim e quiseram saber o porquê do não. Inocência respondeu que ninguém ficava pelado por inteiro na praia. Eles replicaram garantindo-lhe que, de vez em quando, algumas das moças que faziam topless ficavam por completo nuas, quando havia pouca gente na praia, nos fins das tardes (Inocência sabia que era mentira). Ela disse que não gostaria de se expor desse jeito e que, se eles bem observassem, veriam que o seu biquíni não chegava a ser diminuto. Eles quiseram saber o motivo de
4.
Eu concentrava minha atenção no reflexo do poente nas vidraças. Adiava o momento em que soltaria o jato no céu feito de seda na boca de minha amada. Lara chupava devagar, olhos fechados, eu acariciava seus cabelos de leve. Sentia meu ventre aquecido pela carícia de sua respiração cadenciada. Um rodopio de imagens de Inocência e Lara misturava-se à quentura. Recitava em silêncio os nomes amados, Inocência, Lara, Inocência, Lara, ondulação que viajava de minha mente para o espaço além das vidraças. Às vezes, olhava para o olhar da artista percorrendo a linha sinuosa do corpo de Lara e para a imagem de nós dois a tornar-se volume, luz e sombra sobre o cavalete. Recordava a conversa com Inocência e Lara sobre nos sabermos espalhados no mundo por esculturas, pinturas, desenhos e croquis; memórias de nós três para além da breve reunião de átomos em corpos jovens. O olhar da pintora acelerava meu prazer, voltava a concentrar a atenção no último brilho do sol nas vidraças, adiava o jato. Pensava em Inocência, o que estaria fazendo minha querida, lá, na outra extremidade da praia?
5.
À noite, Inocência percebeu que a arquiteta apresentava uma mistura de carinho maternal e erotismo difuso. 38
tanto recato, e que ela explicasse a contradição entre posar nua e se recusar a atender ao pedido, sem desnudar-se nem ao menos da parte superior do biquíni. Inocência tentou explicar que uma coisa era uma coisa e que outra coisa era outra coisa, mas, cercada de vozes e risos, ela própria rindo, não conseguiu explicar isso com clareza. O sol foi embora, eles permaneciam no mar. Os meninos pedindo que sim. Ela, firme na recusa.
e mais alguns e outros tantos, observar os cinco semblantes atentos a compreenderem aos poucos que um poeta e seu amigo jumento contemplando o pôr do sol era muita coisa acontecendo. Voltou a jogar cartas no chão de madeira da sala. Conversaram sobre escola e estudos preferidos de cada um, seus planos de futuro. Conversaram sobre o surfe nas grandes ondas do Havaí. E sobre o Big Bang e as especulações sobre o destino do universo. Conversaram fazendo um caos de estrelas, buracos negros, quasares e galáxias, misturando tudo com tudo, os meninos fazendo perguntas para Inocência e a arquiteta, que desses assuntos também sabia alguma coisa. No decorrer dos dias chuvosos, Inocência passou a contornar os ombros dos meninos com seu abraço, e eles, a sua cintura. Quando os meninos cingiam seu corpo, seus toques vinham carregados de eletricidade sexual. Inocência podia sentir isso no modo como as mãos exerciam uma suave, mas incisiva, pressão em seus quadris e tateavam, sobre o vestido leve, as porções superiores de suas nádegas. Quando Inocência contornava seus ombros, procurava transmitir no toque um outro sentido, mais fraterno. As respostas ela sentiu em sua cintura, as mãos dos meninos manifestaram mudanças sutis no modo de tocar. Sem descartar o sexo, ela julgou perceber a ampliação do afeto. Veio enfim a manhã sem chuva, o céu ainda nublado, um pouco de frio. Os meninos não insistiram com banhos de mar, pareciam absorvidos em algo. Passearam pela praia, o vento balançava o vestido de Inocência, algum dos meninos de mão dada com ela. Assim foi aquele dia e o seguinte. Depois, voltaram o sol e o calor.
7.
À noite, percebeu uns cochichos entre a arquiteta e os meninos, risadinhas furtivas, perfume de conspiração no ar. Convidaram-na para ir ao núcleo urbano do balneário. Tomaram sorvete, percorreram as lojas de artigos de praia, abertas em varandas para a rua, seus artesanatos de vime espalhados sobre as calçadas. Dentro de uma loja, distraída com a delicadeza dos artesanatos, Inocência percebeu que os meninos haviam sumido. Ao seu lado, a arquiteta exalava o perfume conspiratório. Os meninos reapareceram com dois pequenos embrulhos em papel colorido. Disseram-lhe para abrir os presentes apenas quando voltassem para o chalé. Eram dois biquínis – minúsculos. Um todo branco e de um tecido finíssimo, ela anteviu a transparência que deveria adquirir quando molhado. Outro em tons castanhos (combinaria com seus cabelos), feito de duas sumárias peças em crochê delicado. A transparência estaria garantida antes mesmo da entrada na água, pelos próprios furinhos da tessitura em crochê. Olhando seus presentes sobre a mesa da sala, rodeada pela arquiteta e os cinco meninos, Inocência sentiu os cabelinhos de sua pele arrepiando-se. Tentou fingir ainda resistência diante da pergunta dos meninos, se usaria os biquínis: “Não sei... vou pensar”. Mas foi engolfada pelos protestos e pela imposição das vozes. Decidiram por ela, usaria no dia seguinte um dos biquínis. Poderia escolher qual.
9.
Inocência escolheu o biquíni da branca transparência. O outro, mais revelador, deixaria para o dia seguinte. Ela admirava o corpo no espelho do quarto. Observava como a sombra triangular dos pelinhos púbicos se delineava esmaecida por baixo do tecido, e o sulco entre as nádegas. As circunferências dos mamilos se desenhavam, destacando-se os bicos endurecidos. Era o prelúdio de um orgasmo, e sabia que mais sentiria, dali a pouco, antecipando as perturbações que causaria nos meninos. Desamarrou a cordinha na lateral de seu corpo, na parte inferior do biquíni. Deixou que ele escorregasse devagar. Só não caiu de todo porque o continuou segurando, apreciando a metade do sexo aos poucos exposto no espelho do quarto.
8.
Amanheceu chuvoso e assim transcorreu o dia e os dois seguintes. Mesmo com chuva e vento, os meninos lhe convidaram uma dúzia de vezes para ir à praia. Inocência se fez de rogada e pôs-se a ler, reler as breves prosas de Juan Jiménez no Platero e eu. Parabenizava-se pela espera lenta que impunha aos meninos, embora também se agoniasse com o tempo chuvoso que adiava sem previsão o reinício do jogo. Ela exerceu naqueles dias de chuva seu híbrido de afeição pelo brinquedo e maravilhamento pelos labirintos da família universal: intensificou seus laços com os meninos. Eles se interessaram pelos escritos de Jiménez. Ela leu alguns trechos para as suas escutas atentas e semblantes, primeiro, circunspectos, depois, algo pasmos e mesmo um pouco indignados, porque ela dava atenção para aquele livrinho chato e não para eles. “Qual é a desse cara, Inocência? O livro todo é assim? Só falando de um burrinho e de coisa nenhuma? Não acontece nada?”. Inocência amou fazê-los sossegarem e prestarem atenção de novo nos mesmos trechos,
10.
Inocência fingiu não perceber os pequenos volumes que se salientavam sob os calções dos meninos, enquanto ela e os cinco revezavam-se no uso das duas raquetes. Eles queriam ir logo para a água, mas Inocência estava disposta a adiar ao máximo esse momento. Por fim, ela percebeu que o sol e o suor já produziam o efeito de transparência que o mar haveria de fazer. Inocência não tinha mais como prolongar o tamanho da espera. Convidou os meninos para o banho de mar. 39
11.
Na última noite em que passou no chalé da arquiteta, as lembranças daqueles dias misturaram-se umas às outras no luar através da vidraça do quarto. A cabeça repousada sobre a coxa da arquiteta, os meninos jogando cartas no canto da sala, os dedos em seus cabelos, as estrelas. Quase adormecida, isso lhe pareceu sinônimo de um poderoso despertar. O murmúrio mais calmo das ondas à noite. O biquíni branco, molhado, transparente, os olhares dos meninos, da arquiteta, dos vizinhos. Sorrisos por coisa alguma, como se não fosse por aquilo. Tesão de estrear o outro biquíni, os pentelhinhos saindo pelos espaços vazados da tessitura em crochê. As lojas de artigos de praia, abertas em varandas para a rua, seus artesanatos de vime esparramados sobre as calçadas. No mar, a mão que roçou e depois repousou em sua bunda. Os dias chuvosos. Carícias misturadas às palavras. Nuvens. A cor da areia. Os passeios de Jiménez acompanhado pelo burrinho. O passeio com os meninos pela praia. As cores do céu. A persistência dos meninos para que fizesse o topless, ela fingindo que não faria. O colar de conchinhas com que lhe presentearam para que, desse modo, ficasse equilibrada com simetria, um pouco abaixo de sua cintura, a porção inferior do biquíni; em cima, o colar. Ela dizendo não. A tarde em que todos pensavam ser causa perdida e com ela mostravam-se um pouco amuados, quando Inocência apareceu enfim junto à porta do alpendre assim como a queriam. Apenas a parte inferior do biquíni de crochê, o topless com o colar de conchinhas. O olhar dos que a cercavam, os mamilos intumescidos de Inocência. O silêncio da noite, quase adormecida, a dança das imagens no luar. Na beira do mar, o braço da arquiteta em torno de sua cintura, a arquiteta lhe desatando devagar o lacinho. Assim desse jeito, sem lhe pedir licença. Ou pedido feito apenas na própria demora do ato de desatar. O biquíni de crochê caído sobre a areia. A nudez completa como um ponto de exclamação sobre a extensão da praia. A primeira estrela que despontou no céu. O banho no chuveiro externo, para tirar a areia do corpo antes de entrar na casa. Os meninos lhe ensaboando o corpo, as mãos roçando em seus mamilos, as mãos repousadas em seus mamilos. A carícia pela extensão inteira da pele e, por fim, as mãos acariciando o sexo. As estrelas através da vidraça do quarto. Prosseguiriam ainda as imagens, se não adormecesse.
12.
Última noite daquele veraneio, sentados sobre a duna – Inocência contou sobre os acontecimentos e flutuações de sua alma para mim e Lara. Ao longe, a fogueira do luau oferecido pela pintora aos seus convidados. As ondas calmas da noite, algum pássaro em voo rasante chamando outro. Praia deserta. Alegria com o tamanho do céu estrelado.
NELSON REGO
é autor de Daimon junto à porta, livro vencedor do prêmio Açorianos de Literatura em 2011 no gênero conto, e de Tão grande quase-nada, livro de biografias ficcionais. É também autor de aforismos, minicontos e outros textos brevíssimos, publicados em blogs literários e jornais. Site do autor: www.nelsonrego.art.br
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O MENINO E O LOBO NILTO MACIEL
D
a janela de casa, avistou um menino, à beira do lago, o silêncio da noite. Um lobo se abeirou das águas, olhou para o céu e venerou a Lua. Sedento, abaixou a cabeça e bebeu o claro círculo. Súbito o mundo escurejou. Atônito, o animal se contorceu, gemeu, se pôs a expedir clarões e se arrojou às águas. Banhou-se pelo resto da noite, até que o Sol surgiu enorme, límpido, feito um disco d’ouro. No lago o lobo ainda se debatia, como se garras o puxassem para o fundo. Tentava emergir, respirar, e mais se afogava. Voltava à tona, avistava nesgas de luz e suplicava ao Sol socorro. Em vão, porque nuvens de chuva se ajuntavam. Desesperava-se, sem forças já. Iniciava-se a chuva. O lago se revolvia, inflava. Peixes em festa saltavam em todas as direções. As águas se avolumavam mais e mais. O lago avançava sobre as terras e se confundia com riachos, rios, correntezas. O dilúvio, talvez. O mundo escurecia, repleto de
águas. O menino, debruçado à janela, observava tudo com apreensão. Quando as águas desceriam para o mar? Quando o Sol voltaria a aquecer a Terra? Quando reveria as árvores, os animais, as pessoas, o chão? Aos poucos, porém, a chuva se abrandava, as nuvens sumiram, as águas baixaram e o lobo reapareceu à beira do lago, a uivar feito um deus. A Lua brilhava de novo. O animal se abeirou do lago, olhou para o alto e venerou o disco dourado. O menino transpôs a janela, correu na direção do lago e espantou o lobo. À beira da água, avistou a Lua a tremeluzir. Sedento, abaixou-se e bebeu feito um lobo. Súbito o mundo se cobriu de trevas. Apavorado, o menino sentiu náuseas. Como se tivesse engolido todo o fel do mundo. Contorceu-se e se pôs a vomitar restos de luas. No alto da colina, o lobo olhava para ele e o lago, como se entendesse de dores e desejos, como se pudesse impedir a tempestade e o desespero.
NILTO MACIEL (1945-2014,
Baturité/CE) é escritor e antologista. Estreou com Itinerário, contos, 1974. Um dos criadores da revista O Saco. Tem 23 livros publicados. Alguns prêmios nacionais e estaduais.
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assim seja o apocalipse Pela passagem do fantástico Nilto Maciel, amigo e mestre
paula izabela Eram tempos de mula preta no reino da princesa cega. Uma ventania na madrugada de primeiro de maio cravou um punhalzinho no peito da donzela.
— Ave Maria, meu amor! Na casa de Deus há salvação: lá a serpente não entraria. Tirou a sorte pela internet: seguir ou voltar?
— Bom dia, meu anjinho! Chocolate ou precipício? — Eternidade sem fronteiras, Nettó... Sem medo de ser imortal!
Ao leste da morte, Astrolábio sobrevivia às profecias de cada manhã.
Domesticado coisa nenhuma: o instinto falava mais alto. Filho da solidão gemia sonhos genesíacos. Agarrou-se a vida que girava, girava, fugia, fugia...
— Tire esse balaio da cabeça. Trate de pular fora! Antes do dilúvio... O translúcido Ascânio se perturbou e caminhou para o banheiro com olhos de passarinho sem rumo. A vida se desatava em suor, urina e fezes. O odor jorrava vermelhos que se azulam. Não tinha forças para recolher seus fragmentos no assoalho verde. O mal invisível se alastrava pelas sombras de Alfred Hitchcock.
— Era 69 quando saltou da torre da matriz. Estaca zero: Requiescat in pace no fogo doméstico do crematório. Espalharam as cinzas por Matacavalos para serem pisadas por Capitu. — Foi para o paraíso encontrar Gabo.
— Já terminou a plantação de vento no Império Jenipapo? E não voltou. Na última noite de Helena, o pescoço de girafa exibia uma rosa gótica. Pela flor de Rosana quase perdeu a língua sobre o corpo róseo. Enquanto Pedroca e Anna se lambuzavam, Rosinha absorveu Baturité. — Você está aqui para escrever e não para participar do treinamento dos guerreiros do Monte-Mor. E se as borboletas estiverem à sua espera? Anna Karenina quase quebrou a espinha para convencêlo a se mudar para Moscou. Não aceitaria nem as mil e uma noites com Scherazade. Réstia de sol, borboleta amarela ou nada. Jamais diria a Carmen: “eu vou esquecer você em Paris”. Não deixaria Fortaleza nem por Paris – tanger pulgas em Panaplo era viagem para meio metro. — Quer saber como é o inferno? Entre gaiolas, algemas e campos de concentração, as insolentes patas do cão flutuavam em busca dos luzeiros do mundo. Matava animais para contar quantas tripas eles tinham: gato preto, vinte e sete.
PAULA IZABELA DE ALCANTARA (1978)
nasceu em Juazeiro do Norte (CE), onde reside. É professora de Literatura e produtora cultural. Escreve contos, crônicas e poemas para coletâneas, revistas e sites. Assina o blog e a fanpage viver me despenteia.
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galé espanhola paulo bullar
Mediterrâneo, século XVI
de esperar pelo salvamento mais óbvio, porém improvável: um ataque de corsários muçulmanos, que tomariam a galé espanhola e o libertariam. Escutou barulho de líquido contra líquido: o remador à sua direita urinava. Fechou os olhos e sentiu a temperatura da água subindo e aquecendo seus pés com certo prazer. Por causa da água acumulada no assoalho, teriam que dormir nos bancos, recostados uns nos outros ou encolhidos em posição fetal. Quando quase todos já dormiam, um dos parceiros de remo de Ahmed, o que ficava encostado na amurada, pegou um objeto no chão encharcado e murmurou baixinho: “Ahmed. Ahmed.” Ahmed virou o rosto e vislumbrou a lâmina. O remador que estava entre eles dormia profundamente, todo encolhido no banco. “Ahmed, eu vou matar aquele filho da puta.” “Qual deles?” “O de bigode.” Ahmed refletiu por um instante. “Onde você conseguiu essa lâmina?” Não houve resposta. O remador da amurada olhava para o mar. Tinha colocado a lâmina de volta no chão, imersa na água podre, e pisado em cima dela. Estava cada dia mais louco. Algum tempo depois, Ahmed era o único que permanecia acordado. Se agachou no chão, enfiou a mão na água e tateou o assoalho ao redor dos pés do remador da amurada até sentir a consistência metálica. Voltou para a posição inicial no banco. Examinou a lâmina, longa e afiada. Olhou em volta para se certificar de que ninguém havia acordado, respirou fundo e começou a cortar o mindinho esquerdo. Pensou na filha, na mulher. A pior parte foi cortar o osso. Pediu a Alá para não deixar escapar o grito de dor. Jogou o mindinho no mar e começou a cortar o segundo dedo. Ao cortar o terceiro, já havia estabelecido um método: cortava toda a carne ao redor do osso e só então iniciava a parte mais difícil e dolorosa. Quando o sol surgiu no horizonte, Ahmed não tinha mais dedos na mão esquerda.
Ahmed enfiou o pé esquerdo na poça de água, urina, fezes e sangue e apoiou o direito no banco da frente. Segurou o enorme remo com as duas mãos e começou a trabalhar. Era o remador do meio em seu banco, que ficava na fileira da esquerda. Dois companheiros de cada lado, todos nus. Entre as duas fileiras, na altura da cintura de quem remava, ficava a ponte, um corredor elevado que ligava a proa à popa. A ponte era o local de trabalho dos dois contramestres, que se revezavam. Ahmed olhou para o contramestre de bigode preto, que tinha acabado de assumir o posto. Zanzava de um lado para o outro regulando o ritmo e distribuindo chicotadas e murros, um enorme crucifixo sobre o peito cabeludo. Havia dois anos que Ahmed era escravo na galé espanhola. Dois anos longe de casa e da família. Longe de Argel. As séries com os remos costumavam durar de duas a dez horas, mas às vezes se prolongavam por doze, quinze, vinte horas a fio. Ahmed tinha começado a remar por volta do meiodia, e já havia anoitecido. Comera um pão velho molhado no vinagre, acompanhado de um copo d’água com gotas de banha. Chovia. Um remador três bancos à frente desmaiou e caiu para trás. O contramestre de bigode preto desceu da ponte e enfiou um pedaço de pão com vinagre na boca do desfalecido, que despertou e, após dois tapas na fuça, voltou a remar. Durante meia hora, recebeu atenção especial do chicote como forma de incentivo. Recuperou o ritmo e remou normalmente por um tempo, mas terminou desmaiando de novo. Desta vez não teve pão, o contramestre foi direto no murro. O remador não voltou a si. Foi desacorrentado e jogado ao mar por cima da amurada. Abalados com o espetáculo tenebroso, os remadores diminuíram o ritmo. O outro contramestre apareceu para ajudar a pôr ordem na casa e a recuperar a velocidade inicial. A galé ancorou na enseada de uma ilha pequena, aparentemente deserta. A chuva tinha cessado e o céu pululava de estrelas. Por fim, Ahmed pôde sentar. Começou a orar em silêncio, assim como a maior parte dos escravos. Fez de tudo para não pensar na filha e na mulher. Precisava se concentrar, elaborar um plano de fuga. Estava cansado
Muçulmanos e cristãos acordaram com os gritos do argelino. O contramestre de bigode preto veio correndo pela ponte, desacorrentou Ahmed e o levou para uma saleta vazia na popa. Uma abertura estreita rente ao teto impedia 43
a escuridão total. Surpreendentemente, o contramestre não o agrediu. Saiu e trancou a porta. Ahmed não gritava mais. Via o sangue escorrendo pelo braço e sorria na penumbra. Certa vez, um dos remadores havia perdido uma das mãos num acidente. Fora transferido para terra firme. Fugir de uma galé era quase impossível, mas em terra a história era outra. A porta se abriu e três homens entraram: o contramestre de bigode preto; o médico da galé, um velho de olhos claros e rosto bexiguento que trazia uma bolsa de couro; e o capitão, um sujeito alto e magro de olhos miúdos. Nenhum dos três disse uma única palavra. O capitão e o contramestre seguraram Ahmed com firmeza pelos braços, e o médico, com um ar taciturno, retirou um pequeno serrote da bolsa. Ahmed tentou se soltar, mas levou um murro no pé do ouvido. O médico começou a serrar o pulso esquerdo do argelino, que berrou de forma medonha. A amputação foi rápida. O médico, sempre calado e sisudo, retirou uma garrafinha da bolsa e despejou vinagre na ferida. Mais berros. O contramestre saiu da sala e voltou com um ferro em brasa. O médico pegou o ferro pelo cabo de madeira e deu início à cauterização, provocando urros sinistros. Após a hemorragia ser devidamente estancada, fez um curativo com um pedaço de pano velho e se retirou. O contramestre e o capitão permaneceram na sala por um instante, observando em silêncio o maometano, que se contorcia no chão feito um cão raivoso. Saíram e trancaram a porta. Ahmed passou dias trancado na saleta, inteiramente nu. Recebia a mesma ração de sempre, mas ninguém lhe dirigia a palavra. Não lhe permitiam sair para nada. As fezes e a urina se acumulavam, o fedor era sufocante, mas ele permanecia imóvel, catatônico. O médico lhe fez duas visitas silenciosas. Na primeira, examinou a ferida, refez o curativo e se retirou. Na segunda, alguns dias depois, proferiu uma única palavra: “Cicatrizou.” Deu dois tapinhas no ombro de Ahmed e saiu. O capitão, o contramestre de bigode preto e o ferreiro da galé entraram na saleta. Este último segurava um objeto de ferro com quatro pares de ganchos grossos e articulados numa das extremidades. “Escravo”, disse o capitão, sorrindo para o argelino encolhido no canto, “a gente trouxe um presentinho. Hoje é seu dia de sorte. Nosso ferreiro é um mestre de primeira linha, um verdadeiro artista, desenvolveu uma mão nova especialmente para sua função. Agora você vai poder voltar a trabalhar com a eficiência de sempre.” Piscou para o ferreiro e se dirigiu à saída. Ao abrir a porta, olhou novamente para Ahmed. “E lembre-se: o trabalho dignifica o homem, mesmo que ele seja um animal ingrato e sem educação.”
O calor era escaldante no verão mediterrâneo. Nenhuma terra à vista. Nenhuma nuvem no céu. A galé espanhola cruzava a planície azul-marinho em velocidade constante, sem nenhum obstáculo. O suor escorria dos corpos nus e bronzeados. Ahmed olhou para a prótese de ferro, enganchada no remo com firmeza. Depois para o mar. Para o sul. E pensou na filha. E pensou na mulher. E viveu infeliz até morrer.
PAULO BULLAR nasceu em Salvador em 1980 e vive em São Paulo desde 2003. Em 2002, publicou o livro de contos Húmus pela editora Livros do Mal. Após mais de uma década sem escrever ficção, deu início ao projeto Piratas: ficções históricas, que deve ser concluído até o fim do ano. paulo@bullar.com.br
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a caixa
pedro gonzaga
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Enquanto voltava a sentir o contato do cabo de madeira nas mãos, a mulher deu um grito. Ele se voltou com rapidez e viu um gambá instalado no meio do pátio. O bicho foi se aproximando do lugar onde ele estava, a passos lentos, como se houvesse entre os dois algum tipo de cumplicidade. Ao cravar a pá no solo, para firmá-la, escutou um estalido de madeira. Saiu do buraco com o objeto nas mãos e foi em direção ao gambá, que lento se afastou, sumindo de baixo da casa. No caminho, seus olhos encontraram os da mulher.
O buraco já ia à altura dos joelhos e, pelos cálculos que havia feito, antes de chegar à linha da cintura encontraria a caixa. Sentia o suor escorrer pelo corpo, o sol queimar a pele, e era uma sensação agradável. O silêncio da tarde era rompido apenas pela constância dos golpes da pá. Apanhou um copo que estava próximo, cheio até o topo de gelo, suco de limão e vodca. Percebeu o farfalhar da grama produzido por uns passos às suas costas. Sabia quem era. Quase pôde ver o biquíni amarelo que ela usava, o corpo intacto mesmo depois de dois filhos. Desta constância, vinha-lhe a estranha impressão de que dez anos não haviam se passado, de que tinha também os catorze do primeiro verão em que ela e o marido ocuparam a casa ao lado. Um jovem casal, naquela época, que logo fez amizade com sua mãe, mantendo uma conversa diária e animada sobre o muro baixo. Por várias vezes, ensandecido pelos hormônios, ficou a observá-la estendida na esteira, quase nua, deitada de costas em busca de um bronzeado sem marcas. Depôs o copo e continuou a cavar. Logo encontraria o que procurava. Três passos da base do varal, o ponto exato em que seu irmão o fizera enterrar a caixa. Passou a mão na testa, um gesto mais cênico do que necessário. Não tinha mais dúvidas de que ela estava junto ao muro só para vêlo. Dez anos e os papéis haviam se invertido. Basta uma oportunidade. Cedo ou tarde vai arranjar um modo de fazer o marido sair com os filhos. As mulheres são assim, ficam ainda mais loucas quando precisam fazer essas arquiteturas, pensou. Voltou a golpear a terra. Lembrou do dia da aposta, de abrir o buraco que ia à altura do peito, enquanto o irmão gargalhava, sentado numa banqueta, a caixa no colo, o prêmio obtido pela vitória, que os dois combinaram jamais desenterrar. Mesmo tanto tempo depois, sentindo a areia fofa nos pés descalços, remetido a uma inocência infantil, sentiase um profanador. Tomou mais gole da bebida. Com um canto de olho, avistou o volume da coxa direita da mulher. Pensou na promessa que rompia, a golpes de pá, naquela tarde. Fez menção de se virar ainda mais e obrigá-la a dizer alguma coisa por olhá-lo tão impunemente.
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As casas fechadas têm sempre o mesmo cheiro, como se as coisas tivessem uma umidade, os móveis, as cortinas e os tapetes ficassem suando no escuro. São como uma tumba, pensou. A porta rangeu um pouco ao ser aberta. Ninguém entrava ali havia dois anos. Depois do que acontecera, a mãe havia perdido por completo o gosto pelo veraneio. As rigorosas faxinas que começavam em dezembro já não mais se repetiam. Ele tratou logo de abrir a janela da frente. A luz da rua revivesceu as partículas de poeira que antes bailavam mudas na escuridão. Nunca estivera sozinho naquela casa. Passou a mão sobre a mesa de jantar, deixando as trilhas de seus dedos gravadas sobre o tampo. Puxou uma cadeira e se sentou na varanda para esperar os homens da companhia elétrica ativarem o disjuntor. Viu o vizinho chegar numa camionete azul, a mulher ao seu lado, dois guris no banco traseiro. Ao descer, o casal lhe acenou e ele não deixou de reparar nela, no corpo que o vestido florido realçava. Duas horas depois, pôde enfim acender as lâmpadas e ligar a geladeira, um velho modelo arredondado, verdehospital, carcomido pela ferrugem, equipado com maçaneta. Entrou no quarto da mãe, abriu as gavetas da velha cômoda, cheia de roupas esquecidas. Seguiu até o banheiro, testou a descarga, as torneiras da pia, o chuveiro. Por último, entrou no quarto que dividira com o irmão, deitou numa das camas de solteiro, coberta por uma colcha que fora bordada pela bisavó. Seus olhos vagaram pelo teto. Da luminária de plástico ainda pendiam os resquícios de um mobile. Logo seus olhos alcançaram a parte superior do armário rústico, cujas portas eram tramadas com pequenas varetas de bambu, deixando à
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vista o que guardavam. Lá estavam as raquetes de frescobol, uma bola murcha de borracha e dois frisbees. Depois de se levantar, impregnado pelo cheiro da colcha, foi até a sala e acionou o toca-discos. As caixas responderam com um retumbar que lembrava uma explosão longínqua. Na parte de baixo do móvel, a maior parte dos LPs era da mãe. Retirou uma pilha, foi passando um a um, até encontrar um dos seus, um disco dos Titãs. Ele e o irmão sabiam todas as músicas de cor. Colocou direto em Flores. Sorriu de leve ao lembrar que ali estava o justo motivo da aposta. Naquela escalada de tom só possível em disputas entre irmãos, resolveram que o perdedor haveria de pagar pesadamente. O conflito estava ligado ao que dizia a letra do refrão. Sorria agora mais uma vez diante de sua insistência para que fosse o choro tem gosto de lágrimas. O irmão dizia que era o soro tem gosto de lágrimas. Não tinham o costume de conferir os encartes. O vencedor teria o direito de escolher as três coisas que o perdedor mais gostasse e enterrá-las numa caixa no meio do pátio. Para piorar, ao perdedor caberia ainda abrir o buraco, como um daqueles capangas de filmes americanos encarregados de enterrar os corpos.
Parecia um gato. Ou uma ratazana. Apanhou uma pedra solta, em que recém havia topado e jogou-a contra o animal. Nunca tivera boa pontaria, mas dessa vez acertou em cheio. O bicho emitiu um lamento agudo e caiu de lado, arfando. Logo notou se tratar de um gambá e respirou aliviado. Lembrou de uns amigos da faculdade que davam de beber a um gambá que morava no forro do centro acadêmico. Diziam que o bicho se sentava e apanhava o copo improvisado numa tampinha de álcool entre as patas, embriagando-se com a cachaça que lhe davam.
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Ainda suja de terra, a caixa estava sobre a mesa da sala. Anoitecia, e ele tratou logo de tomar um banho. Antes de ele entrar, junto à cerca, ela lhe dissera que o marido ia passear com os filhos em Tramandaí e que daria um jeito de ficar em casa, aceitando o convite feito no dia anterior. No chuveiro, lavou bem as partes, cada setor, faria com que ela o percorresse por completo, como tantas vezes fantasiara na juventude. Teriam pouco tempo, um drinque e depois direto para a cama da mãe. Toalha na cintura, foi até a cozinha e se serviu de uma dose de vodca. Não conseguiu evitar a lembrança da imagem do gambá, seus dentes retorcidos e os olhos miúdos. Ontem, depois de atingir o animal, deixara uma tampinha cheia de bebida perto da soleira da porta. O fato de estar vazia pela manhã não prova nada, muito menos a veracidade da história dos colegas. Mas por que o bicho veio se aproximar de mim agora à tarde? Vestiu apenas uma bermuda e uma camiseta. Foi até a porta da cozinha, que deixou entreaberta e espreitou a noite. Depois foi se sentar na sala, o encarte do disco nas mãos. O soro tem gosto de lágrimas. Do ponto onde estava, tinha um bom ângulo para ver se a pequena criatura iria beber o trago que ele acabara de deixar. Dois olhinhos brilharam no escuro quase no exato instante em que o barulho de um motor de carro chegou a seus ouvidos. Ao voltar os olhos para a cozinha, o animal já havia sumido. Minutos depois, três leves batidas soaram na porta da frente. Era ela. Vinha com um vestido branco, muito leve, os cabelos soltos e molhados. Descortinou para ele os dentes, ajeitou a franja que lhe cobria os olhos. Ele, sem dizer nada, puxou-a para dentro, prendendo-a pela cintura, erguendo-lhe o corpo, buscando diretamente a boca que se oferecia. Ela o enlaçou com os braços ao redor do pescoço, envolvendo-o também com as pernas. As mãos dele entraram por debaixo da saia, apertando tudo a seu alcance. Depressa, ela disse. Te quero agora. Enroscados, os dois avançaram para o quarto. De passagem, ele percebeu que ela olhara para a caixa sobre a mesa. Lançou-a na cama, subiu o vestido. Mais alguns dias e a cor da pele estará perfeita, pensou. Estava sem sutiã e os mamilos acobreados se destacavam no retângulo de pele intocado pelo sol. Tira minha calcinha. Encontrou-a sem pelos.
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Ouviu uma batida na porta. Sabia de antemão que era ela, avançou, fez com que entrasse. Sentada na poltrona, não parava de cruzar as pernas. Ainda não estavam de todo bronzeadas, não tinham ao menos o tom de outros tempos. O cheiro da visitante invadiu a sala. Os dois se olharam em silêncio, depois falaram um pouco sobre a última vez em que tinham se visto e sobre como ele havia mudado. Mas ela continua igual, pensou. Resolveu oferecer-lhe uma bebida. Visita rápida, ela disse, vim dar as boas-vindas, as crianças estão me esperando, o convite fica para outra hora, e se levantou. À noite pensou nela e não conseguiu dormir. Foi até a cozinha e desensacou uma das garrafas de vodca. Encheu um copo com gelo, espremeu um limão, despejou a bebida. No escuro, a cada gole, o desejo recrudescia. Escutou uns ruídos na porta, como se alguém forçasse a entrada. Esperou paralisado, mas os ruídos não cederam. Abriu devagar a gaveta dos talheres e puxou uma faca comprida e larga, coberta de ferrugem, com cabo de osso. Aproximou-se do batente. Tentou espiar pelas basculantes acima da pia, mas não viu nada. Sentiu que ofegava. Os assaltos tinham se tornado comuns naquela praia. Quase todas as casas da vizinhança já tinham sido invadidas. Mas não estava disposto a ficar esperando. Resolveu sair pelo outro lado, pela porta da frente, esgueirando-se rente a casa, até chegar ao pátio dos fundos. A noite não estava muito clara. Voltou a cabeça, esticando o pescoços, para ter uma visão parcial da porta, não enxergou ninguém. Sentia nas costas a aspereza da parede sem reboco, costumava se coçar ali quando era criança. Apertou mais o cabo da faca. Foi naquela quina da casa que o irmão uma vez esfolou feio o joelho. Não viu nada. Talvez tivesse fugido, ao ouvir barulho na cozinha. Quando estava prestes a retornar, percebeu uma criatura que se movimentava ao rés do chão. 46
Vem, ela disse, tendo antes molhado na boca os dedos que cravou na carne, vem dentro de mim. Junto à porta do quarto surgiu o gambá, que começou a arrastar as unhas no assoalho sem sair do lugar. A mulher gritou e se encolheu. Ele se levantou e, com gestos, depois com um travesseiro, depois com um chinelo, tentou espantálo. O animal continuava parado, olhando de um lado para o outro, arranhando o chão, até que emitiu um guincho pavoroso. A mulher se cobriu com o vestido. Ele continuava nu, percebeu a calcinha que ela deixara sobre o tapete ao lado da cama. Desculpa, ela disse, isso foi um erro. Eu não devia... O gambá voltou a emitir um novo guincho. Esse bicho... Calma... Me solta! Espera. Vou dar um jeito nisso. Quando tentou se aproximar da criatura, ela fugiu. Ao se voltar, a mulher já avançava em sua direção. Ele quis dizer alguma coisa, mas ela fez um sinal para que se calasse. Ainda tentou detê-la, segurando-a pelo braço. Me solta, ela disse. Vamos, me solta. Acabou por afrouxar a pressão dos dedos. Por um instante ele ainda ficou parado, vendo-a se afastar, até sair da casa. Voltou para o quarto, deitou na cama. A calcinha seguia ali, ao lado, abandonada, parecendo a ele o fragmento de um acidente.
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De volta à sala, olhou para a caixa. Ali deveriam estar os três objetos que o irmão lhe tomara. Era certo que tinham combinado nunca desenterrá-los, que era promessa séria, mas quem poderia impedi-lo agora? Talvez ali estivessem a Ferrari de ferro, seu artilheiro de galalite, o ioiô profissional da coca-cola, aquele preto com as bordas douradas. Nunca soube ao certo, porque parte do acordo era deixar o outro escolher as coisas a serem enterradas apenas no último dia daquele verão. No ano seguinte, já não foi capaz de lembrar. Olhou uma vez mais para a cozinha. Nada da criatura. Ergueu a caixa da mesa, prendeu-a, apoiando-a contra o corpo e envolvendo-a com o braço esquerdo, forçou a tampa. Após um pequeno estalo, a madeira cedeu. O interior estava vazio.
PEDRO GONZAGA
é natural de Porto Alegre. Doutor em Literatura pela UFRGS, é prosador e poeta, tendo quatro livro publicados, sendo o mais recente Falso Começo (2013), ed. Ar do Tempo. Além disso, é tradutor e músico.
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METEORO
RICARDO CALAZANS
O
dia em que eu conheci Frisca era uma velha piada entre os meus amigos. Cada um contava a história de uma maneira diferente, mas o patético da situação estava sempre lá para recordar minha permanente condição de deslocamento.
empregado, via minha empolgação profissional ir para o brejo entre um gole e outro de cerveja e frases mastigadas de ressentimento e desesperança. Estava, portanto, inteiramente inserido no mercado. – Eles dizem que a gente tem que aguentar tudo e jogam na nossa cara o tempo todo que ter um emprego “é melhor do que nada”. – Lá isso é, não é? – É, e aqui estamos nós... – Nem conseguir sair da casa dos meus pais eu consigo. – E pra quê você ia querer fazer isso? – Outro dia eu pedi uma folga. O filho da puta ficou lá me olhando, com aquele ar cínico, e em vez de me dar a folga, deu conselho. Porra! “Você tem mais é que ralar para aprender, como eu fazia quando tinha a sua idade”. Putamerda. – Ué, mas ele é mais velho que você quantos anos? Uns cinco? – Odeio esse pessoal que justifica tudo com “é a minha carreira” e choraminga que “no meu tempo isso e aquilo”. – Tou cansado de apanhar no trabalho. – E o meu chefe ainda pensa que é gente boa... – Pelo menos a gente tá aqui, bebendo e xingando essa corja. – Eu não caio nessa de que “a pressão faz parte do jogo”. – Pra mim, o pior é que os caras fazem o que fazem e no fim do dia querem sentar na mesa com a gente e tomar um chopinho. – Na pressão. – Ai... – Peraí, nem todo mundo em cargo de chefia é horrível assim. – É, mas meio-babaca também não existe. Ou você conhece algum?
Era uma festa de faculdade. Assim de gente e eu, pra variar, quieto num canto, com a minha Itaipava, observando de longe a diversão dos outros. Começou a tocar algo mais agitado e imediatamente abriu-se uma roda de pogo, garotos (muitos) e garotas (nenhuma ou outra) se chocando, golpeando o ar com socos e chutes, chicoteando a atmosfera com os cabelos, braços, pernas, voando uns sobre os outros, enfurecidos e apaixonados. Varri o diretório de economia de um lado a outro com o olhar e dei de cara com ela: rabo de cavalo, óculos de grau, expressão perplexa, mas divertida. Para mim, ela acabara de chegar do set de “Juventude Transviada”, boquinha de chiclete, nariz arrebitado, saia acima do joelho... Decidi abordar Natalie Wood quando notei que ela começava a recuar para longe da roda e dos três acordes. Aproximamo-nos, eu e minha Itaipava. E disse, com ar protetor: – É, gatinha, é duro entrar no punk rock. (. . .) Na hora, a frase não me serviu de nada. Ou melhor, serviu para que eu conhecesse seu olhar desconcertante, que tantas vezes ela me lançaria anos mais tarde. Sem dizer nada, ela se afastou de mim. Acho que a vi dar um meio sorriso, mas nunca tive certeza. Pouco depois, ela deixou o diretório. Gotta get away from me. É que a gente nunca sabe ao certo em que coisas as coisas que a gente faz vão dar. Mas elas sempre dão em alguma coisa.
E assim estávamos. Como sempre. Frisca acabara de se juntar ao nosso grupo com meu amigo, o Elvis. Soube que se chamava Francisca e fazia pesquisa comportamental (seja lá o que significasse, fiquei interessado, mais por ela do que pela pesquisa). Fora apresentada a todos e, contra todas as probabilidades, lembrou-se de mim. E de minha infrutífera cantada de dois anos antes.
(. . .) Dois anos depois, reencontrei Frisca numa mesa de bar. Era uma daquelas deprimentes noitadas de sexta-feira, em que o pessoal do trabalho sai do escritório para beber e praticar o esporte nacional: reclamar da vida. Eu, jovem e recém48
– Ei, o garoto do rock punk, não é? DCE da faculdade. Eu me lembro de você. Acima daquele meio sorriso, os mesmos olhos desconcertantes de dois anos antes atrás das lentes de grau, e uma aparente simpatia pelo meu desconcerto. Fiz o que costumava fazer nesse tipo de situação: tentei estragar tudo.
Estamos livres e presos naquela velha caverna de desconforto existencial. Está bom desse jeito?
– Na verdade, é punk rock – disse, com o ar mais pedante que pude encontrar.
Mas eu nunca conseguia entender muito bem o que ela dizia, o que ela queria, para onde ela ia. É muito egoísmo achar que é possível de fato conhecer alguém? Claro que é, mas isso nunca impediu ninguém de sufocar o outro de acordo com seus próprios interesses.
(. . .) Eu adorava as teses comportamentais de Frisca.
Ela riu, desculpou-se divertidamente “pela ignorância”, o que me matou de vergonha, e terminou de me arrasar assim que o primeiro enxerido perguntou que história de rockpunk/punk-rock era aquela. Ela contou sobre nosso (des) encontro universitário de dois anos antes, a mesa inteira riu do meu mau jeito e eu me encolhi num canto, com três pensamentos:
Sufocar de amor, por exemplo. A sua respiração tem que ser pesada sempre, porque eu preciso ter certeza de que EU existo para você. É por isso que eu estou sempre em cima de você, eu não vou sair dali, nem que eu pudesse faria isso. Eu quero que você me note, que você pense em mim o tempo todo, que eu faça alguma diferença na sua vida, nos seus dias, eu quero aparecer na sua cabeça na hora em que você menos esperar, no banho ou na cama, na hora do almoço e na hora do jantar, em toda e qualquer procrastinação sua. Você precisa lembrar de mim bem no meio de sua risada mais despreocupada, lembrar que yo te quiero, mi corazón. Seu olhar mais perdido – está pensando em quê? – vai me encontrar, mais cedo ou mais tarde, no fundo do vale onde seu pensamento foi repousar por um instante antes de voltar para o mundo real. Sufocar de amor pode?
1) as mulheres são loucas. 2) como virar o jogo para o meu lado? 3) ela lembrava de mim! ela lembrava de mim! ela lembrava de mim! – Bom, se dois anos depois você ainda se lembra de mim, é porque alguma coisa boa ficou daquele dia. Bigmouth strikes again. – É. Uma cantada daquelas é inesquecível... A conversa, então, girou para o tema de sempre. Pela primeira e única vez na vida, um chefe me prestou para alguma coisa.
(. . .) (. . .) Eu sabia o que devia e o que não devia fazer. Só que eu não fazia o que devia e fazia o resto ao contrário. Se eu pudesse, diria isso para todo mundo, pediria desculpas e essa revelação simples teria poupado um monte de malentendidos e mágoas desnecessários. Mas como eu posso querer quer as pessoas tenham esta sensibilidade, se eu mesmo mal conseguia te alcançar?
Dois dias depois, tomei coragem e telefonei para ela. E no começo, obviamente, foi tudo lindo. (. . .) – Somos gente que não sabe o que fazer ou por que fazer, gente que faz as coisas só por fazer ou por ouvir dizer, gente que não quer fazer o que nos mandam fazer, gente que quer ir embora, gente que queria ficar mas acaba indo embora, gente que olha pra frente e não vê nada, gente que não quer ver nada, gente que tem medo, gente que vai em frente apesar do medo.
E não se engane, eu sei bem quando tudo mudou. Que dia da semana era ou que roupa você vestia não importa. O caso é que as coisas mudam, como no filme. É incrivelmente comum, mas sempre parece algo incrível quando acontece. Você simplesmente não enxerga nada durante o processo, e só pode olhar em retrospectiva, com todos os mal-entendidos e as mágoas desnecessárias que isso implica.
Nós somos assim. Nunca conseguimos saber, de verdade, de onde viemos, o que estamos fazendo aqui, para onde estamos indo. Não temos lugar nenhum para ir, não somos nada, não há futuro.
(...) “Deus!, que isto aqui hoje está um inferno. Sextas-feiras costumam ser dias bons. Estou sem ânimo algum. Esta sextafeira não está das melhores. Sou um homem sem razão nem razões. Nada vai me recuperar hoje. (go! go! go! Yeah yea! a moça diz. E eu aqui inerte, inepto) Não há pressa em meu corpo. Não tenho tido também nenhuma idéia excepcional, ultimamente. Nem ao menos
– Nooo fuuuture. Nooo fuuuture. Nooo fuuutur... – É sério. Escuta: não há para onde ir, e vagamos atrás de identidades que nos fixem ao mundo. Colecionamos várias, todos nós, o tempo todo, para tentar sustentar nossa leveza. E nunca sabemos muito bem o que fazer com elas. 49
sei se aquela vírgula ali antes do ultimamente fica bacana. Vou esperar um pouquinho mais. Onde é que tudo isto vai dar? Para onde a gente está indo? Metafísica não ajuda muito.”
Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. (...)
(. . .)
A janela tremeu. Um estrondo surdo finalmente me tirou da cama. Apavorado, subi a persiana, os olhos maiores que o medo. Uma fuligem vermelha havia coberto os vidros da janela. Não se enxergava nada, mas dava para ouvir bem os gritos na rua, as sirenes e esse zumbido que eu não sabia se vinha lá de fora ou daqui, de dentro da minha cabeça. Os meus vidros pintados de cobre, um barulho de caos cada vez maior lá fora e eu ali, imóvel, no meio do quarto. Apavorado, desci as escadas e comecei a correr pelas ruas vermelhas, sob o céu encarnado e a fumaça rubra do Juízo Final. E enquanto corria eu só pensava em saber dela se, naquelas que pareciam ser nossas últimas horas, eu voltara a frequentar seus pensamentos com tanta força quanto ela voltara para minha cabeça oca.
Frisca odiou meu e-mail, que chamou de auto-indulgente e cafona, e eu odiei que ela tivesse odiado meu e-mail. Não adiantava mesmo, eu jamais seria como pensava que ela queria que eu fosse. Não que ela houvesse me pedido nada. Mas eu não entendia. Houve ainda algumas idas e vindas. Cada vez pior. Então, escolhemos não dizer mais nada. E apagar o que aconteceu entre aquele dia no bar e a nossa última briga. Estávamos num duro silêncio havia muito tempo. Isso foi muito antes deste meteoro filmado, fotografado e reproduzido incontáveis vezes cair na minha rua. O fim do mundo não marca data. (…)
Ela certamente odiaria essa última frase, pensei, antes de desaparecer de vez.
Neste dia, acordei tarde de novo. Nada pra fazer. Olhei pro lado. Ninguém. (óbvio) Na hora em que o meteoro caiu, eu estava grudado na cama, em cima de um lençol áspero. E pensava, pela milésima vez, que quase não pensava mais nela. Ouvi uma freada de carro lá fora e movi os olhos lentamente. Pelos vãos da persiana entrava uma luz torta. Ao fundo, podia ouvir meu vizinho tocar “Dizzy Atmosphere” num trumpete altíssimo que me acordava sempre no melhor do sono. Eu não pensei nela. O ventilador de teto rangia como nunca, ou como sempre. Conferi meu relógio. Atrasado, sempre atrasado. Fazia um calor incômodo, mas eu mantinha a janela fechada. Queria abafar o volume das buzinas. E das freadas, das discussões, das risadas, dos latidos, dos erros, dos acertos, da inevitável culpa, do mundo lá fora. A rua parecia estar dentro do meu quarto assim mesmo. Mas não Frisca, e tanto fazia. Eu não pensava mais nela. A rua e o trumpete do meu vizinho, porém, estavam bem presentes. Dizzy na atmosfera e a persiana torta. Luz abafada. Ventilador vagabundo. Pensei em The Doors e Marlon Brando no Vietnã. O Coração das Trevas. The End. “Apocalypse now”. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca. Frisca.
RICARDO CALAZANS é jornalista. É um dos autores do blog “Amplificador”, sobre a nova música brasileira. Seu conto “Otário” integrou o primeiro volume da série Se7e (Ímã Editorial, 2012). Quando sobra tempo, também toca guitarra no grupo de rock Kelvin & A Banda Surda.
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o sósia
rui werneck de capistrano
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contece que sempre me confundem com outras pessoas. Alguém chega e me diz olha, você parece com Fulano. Você não estudou no...? Digo logo que não estudei lá. Geralmente é um grupo escolar do qual nunca ouvi falar. Aí, o alguém, pra não se dar por vencido, emenda puxa, você é bem parecido com ele. Era um cara muito legal, jogava futebol no time da escola. Uma vez... E tome história. Tenho que ser paciente. Aprendi a ser paciente, mas não foi fácil. Se fosse esporadicamente, tudo bem. Mas acontece sempre. Tive que me acostumar a ouvir tudo e achar evasivas cada vez mais rápidas. Às vezes até meio ríspidas. Não sou de ferro. Não sei o que tem meu rosto pra que tanta gente me confunda com alguém que conhece ou conheceu há tempos. Parece que não tenho personalidade própria. Por acaso, sou transparente ou feito daquela massinha que as crianças moldam de todo jeito? Pelo menos pra mim, olhando no espelho, não vejo nada de diferente. Sou parecido comigo mesmo e pronto. Mas, enquanto penso assim, já vem alguém, no supermercado, por exemplo, e me cumprimenta calorosamente. E aí, como é que você vai? Tudo bem? E a esposa? E as crianças? E o baralho? Sorrio, aperto a mão do curioso e tenho que dizer que não sou quem ele está pensando. Não sou mais casado, só tive uma filha e não jogo baralho. Ele se desculpa, constrangido, me bate nas costas e vai embora. Vai embora quase batendo nas outras pessoas que olham as gôndolas. E ri, é claro. Ri da própria mancada. Numa festa é comum que venham ao meu encontro com mão estendida e sorriso largo. Nas festas é comum isso. A gente quer dar a entender que não está ali de penetra. Qualquer um vira conhecido. Mas pra mim é diferente. A pessoa insiste em puxar conversa. Como vão os negócios? E o nosso time, vai ou não vai? Vai votar em quem? Dependendo do quanto bebi, fico apenas resmungando alguma coisa, olhando pra longe, fingindo procurar alguém. Ou fico quieto como se não entendesse. Aí, a pessoa fica sem jeito e sai pela tangente, falando do abafado, do salão muito cheio ou do tempo. Também respondo com monossílabos. Às vezes, quando a música é muito alta, a pessoa cola a boca no meu ouvido pra perguntar como vão as vendas, se já marquei a viagem a Londres e mais isso e aquilo. Geralmente finjo que não consigo escutar, faço gestos contra a música alta, sorrio e peço licença pra cumprimentar alguém lá adiante — que nem vi.
Tem aquele tipo que faz uma sabatina, quando vê que a primeira tentativa fracassou. Jogava basquete? Era da equipe de mergulho do Yatch Club? Trabalhou nas Casas Bahia? Tinha um cachorro branco, grande, chamado Bull? Morou nas Mercês? É filho do Heracles Meletti? A cada não meu, maior a aflição e mais difíceis as perguntas. Fez parte da junta médica que atendeu meu pai? Tem uma tia chamada Janice, casada com o Dyonatha, que tem um filho na Escolinha Céu azul? As negativas deixam a pessoa sem ação, porém com alguma coisa querendo explodir na garganta. E lá vai ela balançando a cabeça, vencida. Até para mais adiante e dá uma olhadinha pra trás, sorrindo, sem compreender. Já me confundiram com um ator de novela. Duas jovens, com todo aquele jeito elétrico diante de um ídolo, me pararam e pediram autógrafo. Assinei na manga da blusa de uma e no caderno de História da outra. Pediram até uma foto de nós três juntos, feita com celular. Saíram apressadas, conferindo a foto, rindo muito, se agarrando e se cutucando. Claro que um dia alguém, que havia visto o retrato-falado de um assaltante de banco no jornal, apontou pra mim e gritou É ELE! Eu estava comprando ingresso pro jogo de futebol e a polícia logo me pegou. Fui parar na delegacia, perdi o jogo e tive que chamar um advogado pra me soltar. Estou contando apenas algumas passagens da minha vida de sósia-mór. Daria um livro ou até mais que isso. Falou em mulheres? Sim, algumas me confundiram com outros homens. Uma delas, ao me encontrar numa loja, perguntou se eu não era Fulano, melhor amigo do marido dela. Olhei pra ela, não reconheci e disse que não. Ela não acreditou e engrossou. Claro que é! É o desgraçado que leva meu marido pra gandaia. Ele sempre me diz que estava com você — sempre. Até num dia em que descobri batom na camisa dele, ele jurou de pés juntos que estava com você. Jurou que estava no clube com você. Não tem vergonha? Só porque não tem mulher, precisa levar meu marido pra farra? Vá arranjar mulher. Não passa de um cafajeste. Nem preciso dizer que a loja toda parou pra ouvir. Tentei dizer que não era quem ela pensava, mas o fuzuê já estava armado. Quase parti pra cima dela, mas deixei pra lá. Saí da loja sem comprar nada — e o que eu queria estava com preço bem baixo. Óbvio que muitas vezes acontece de eu reconhecer um amigo num cara que me para na rua. Ele fala — e aí, tudo bem? Quanto tempo! — e eu vejo o piá que estudou 51
comigo no grupo escolar. O mesmo jeitão, só que de cabelos prateados. Havíamos sido muito próximos até o final do científico, que agora chamam de segundo grau. Só que depois do cumprimento e de algumas palavras afetuosas sobre nossa aparência — não mudou nada! Tá com cara boa, heim? — não existe mais nada entre nós. A vida impôs uma barreira que não vai cair só num encontro na rua. Aí, o que começou com um abraço e sorrisos, se transforma em vontade de ir embora. Velhos tempos, heim? Bons tempos! A gente se encontra um dia aí pra tomar umas. Lembranças pra família. Um atropelo de palavras pra quem não tem nada pra falar. Depois de um até mais, saúde, tudo de bom, cada um vai pro seu lado e só. Eu disse que já havia me acostumado com abordagens de todo tipo. Meia verdade. Numa noite, depois do cinema, fui a um café do shopping. Estava mexendo a colherinha, absorto, pensando no filme do Woody Allen — que eu tinha gostado muito — quando alguém me bateu nas costas. Quase derramei o café. Me virei e vi um sujeito com aquela cara de que já me conhecia. Ele me olhou firme. Ficou por um momento parado, como se esperasse alguma deixa de minha parte. Apenas tirei a colherinha do café e pus no pires. Quando tornei a olhar pro sujeito, ele perguntou Hamlet? A pergunta era quase uma imposição. Ele não aceitaria um não. Estava com os braços abertos, como se fosse me abraçar ou cercar pra não fugir e fez um sinal com a cabeça — reforçando a pergunta. Fiz um gesto como se não tivesse entendido a pergunta. Ele aproveitou e declamou ser ou não ser? Eis a questão. Aí, fez um gesto de apague tudo e repetiu com outra entonação ser... ou não ser? Eis... a questão. Apagou tudo e repetiu de outro jeito ser... ou... não ser? Eis a... questão. Eu sabia que meu café estava esfriando. Fui me virar pra pegar a xícara e o sujeito bateu no meu braço, como se dissesse ainda não terminei. Ele se concentrou e deu ênfase SER OU... NÃO SER? EIS A QUESTÃO! Vendo que não me entusiasmei, apagou tudo e sussurrou ser... ou... não ser? Eis a questão. Vi que ele mesmo aprovou a interpretação, pois, ato contínuo, declamou será mais nobre / para a alma sofrer pedras e flechas / com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja / ou insurgir-nos contra um mar de provações / e em luta pôr-lhes fim? Morrer... dormir: nada mais. Ele parou, extasiado, me olhou e perguntou gostou, Hamlet? Num segundo, pensei — só pode ser gozação. Brilhou na cabeça uma resposta à altura — não, não sou Hamlet, sou Virgulino Lampião! E preguei um tapa de mão aberta na orelha esquerda dele. Dormir... talvez sonhar, foi o que me ocorreu, quando ele caiu desmaiado. Deu polícia. Cheguei na delegacia e o delegado, me olhando firme, disse de novo aqui? Quando vai parar de fazer arruaça em bailão, cara?
RUI WERNECK DE CAPISTRANO nasceu e vive em Curitiba, depois de ter morado no Rio de Janeiro, São Paulo, Joinville e Florianópolis. Escreve desde sempre e já publicou mais de 30 livros, a maioria deles pelo Clube de Autores (www.clubedeautores.com.br) onde estão à venda sob demanda. Em 1988 ganhou o Concurso Nacional de Contos do Paraná com o livro Máquina de Escrever. E ganhou outros concursos pelo Brasil afora.
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SOTNOC ED ATSIVER