André Ferraz Caco ISHAK Claudia Schroeder Daniel Seidl Delfin Demétrio Panarotto Diego Grando Everton Behenck Florisvaldo Mattos Homero Gomes Jader Barbosa KÁtia Borges Laurindo santarrita Luciano Lanzillotti Marcelo Sandman MÁrcio-André Nydia Bonetti Ramon Nunes Mello Reinaldo Ramos Ricardo Pozzo Roberto Andreoni Roberto Bozzetti Sandro Ornellas Tagore Suassuna Waldecy Paulo Pereira Wilmar Silva
ANO 01 / # 04
REVISTA DE POESIA
REVISTA DE POESIA
© 2014 PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 2014 COM O TÍTULO NERVAL REVISTA DE POESIA Nº 4 /// COPYRIGHT DA SELEÇÃO © 2014 FLAUBERT REVISTA DE CONTOS /// todos os poemas desta edição são copyright de seus respectivos autores © André Ferraz // Caco ISHAK // Claudia Schroeder // Daniel Seidl // Diego Grando // Delfin // Demétrio Panarotto // Everton Behenck // Florisvaldo Mattos // Laurindo santarrita // Homero Gomes // Jader Barbosa // Katia Borges // Luciano Lanzillotti // Marcelo Sandman // Marcio-André // Nydia Bonetti // Ramon Nunes Mello // Reinaldo Ramos // Ricardo Pozzo // Roberto Andreoni // Roberto Bozzetti // Sandro Ornellas // Tagore Suassuna // Waldecy Paulo Pereira // Wilmar Silva ///
os colaboradores asseguram seu direito moral de serem identificados como os autores dessa obra.
Todos os direitos desta edição reservados a
NESTA EDIÇÃO:
10 André
Ferraz
Me deram formas de intervir Nas minhas más tendências.
20 Caco
ISHAK
se acabou numa traição (autotraição, autoboicote) recomeça-se tudo outra vez
35 Daniel Seidl
Depois de foder a mulher amada o homem é sempre menos do que era.
53 DEMÉTRIO
PANAROTTO
do alto o carcará observa voa também
59 DIEGO
GRANDO
Foi só chegar aqui já deu pra ver que as traças perdem o apetite (tu também?) justo nas roupas que não servem mais.
71 Florisvaldo Mattos
Quando ele partiu a primavera galopava nos rosais.
82 JADER
BARBOSA
Que vale consumir os nossos dias satisfazendo as ambições vazias, e se encolher à noite em mil receios?!
92 KÁTIA
BORGES
Já nem ouço, se é o Destino que chama, futuro oco numa bola de cristal.
25 Claudia
Schroeder
Dá pra ver um filme ruim e chorar feito um lobo na lua cheia.
47 DELFIN
O balanço vem E foi A rapidez é o sinal dos tempos
61 Everton
Behenck
Você sabe que dinheiro Carros, ternos, móveis Não são garantias nenhuma De humanidade
81 HOMERO GOMES
Da janela, brotam pingos de pó, Mas as pálpebras se fecham.
97 LAURINDO
SANTARRITA
no lusófono parnaso oitocentista. Todo poeta quer assim resista
NESTA
EDIÇÃO: 104 Luciano
Lanzillotti
Nada a contar, a não ser o resto de fruta dentro da xícara.
122 Nydia
Bonetti
trocar o fardo milenar das culpas pelo pós-moderno fardo do vazio
133 Reinaldo Ramos
Às vezes uso a ideia pra dar rumo à palavra.
154 Roberto
Bozzetti
O que não se tatuou foi corpo de nascimento.
169Tagore
Suassuna
Eu era uma ilha perdida no mundo desfeita em areia sem sombra ou remorso
114 Marcelo
117 MÁrcio-André
Sandman
Sim, certeira, a bala de borracha, no olho da repórter.
um homem fala diariamente ao cão o cão compreende até onde o afeto permite
130 Ramon Nunes Mello
levante vá até a janela antes de mergulhar
143 Ricardo Pozzo
São ríspidos caminhos que nossos passos percorrem rumo à desilusão necessária.
144roberto
Andreoni
só o corpo existe; com suas veias enraizadas na cena.
162 Sandro
Ornellas
Acordo e questiono o que resta de dignidade matutina em mim
174 Waldecy
Paulo Pereira
Nas próximas distâncias me encontrará longo de idéias, sorvido de livros, orgânica biblioteca.
178 Wilmar Silva
eu o ajno de luz com a sdee do mnudo asdeeemmnihalínuga
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EXPEDIENTE EDITOR MARIEL REIS [MARIELREIS@IG.COM.BR] /// CONSELHO EDITORIAL ANDRÉ TARTARINI [A.TARTARINI@GMAIL.COM] // JD LUCAS [JDLUCAS.CONTATO@GMAIL.COM] /// EDITORES REGIONAIS RIO GRANDE DO SUL ALESSANDRO GARCIA [SEVEROGARCIA@GMAIL.COM] // CEARÁ ANDERSON FONSECA [AFCONSULTORIAEDITORIAL@OUTLOOK.COM] // RIO DE JANEIRO ANDRÉ TARTARINI, JD LUCAS // PARANÁ DANIEL OSIECKI [TROOPER_OSIECKI@YAHOO.COM.BR] // BRASÍLIA MAURÍCIO DE ALMEIDA [MAURICIODEALMEIDA@GMAIL.COM] // SÃO PAULO DELFIN [DELFIN.K@GMAIL.COM] /// PROJETO GRÁFICO ALESSANDRO GARCIA DIAGRAMAÇÃO STUDIO DELREY
os personagens e as situações dos contos aqui publicados são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opiniões.
ANO 01 / # 04 BRASIL 2014
EDITORIAL A
revista flaubert desdobra-se em nerval. Ninguém poderá ter a palavra final sobre o fenômeno da poesia: embora a multiplicidade de sua manifestação, enxergamos legitimidade em algumas representações. Em outras, percebemos um equívoco de perspectiva devido à reprodução de um modelo pertencente ao século passado, cujo êxito, diretamente ligado às circunstâncias históricas em que se desenvolveu, não poderá ser repetido, tornando-se a prática um jogo beletrista que provará mais a erudição de quem (re)produz uma sintaxe já experimentada. Aquele que a lê, sem o repertório para interpretá-la, julgando-a original, provará a sensação de incapacidade de ligação com o tal moderno que verá ali exposto, crerá de que sua percepção acerca do fenômeno é um logro quando a verdade é contrária. O pós‑modernismo, o verdadeiro sururu, confundiu os parâmetros para apreciação de poético, eliminou balizas importantes; a carnavalização parece a democratização do espaço poético a ponto de confundi-lo com as linhas diretivas de mercado, promovendo a facilitação do gênero e sua conspurcação. Entretanto, a afirmação anterior, em determinados círculos, parecerá elitista em tempos de populismo e adaptação de clássicos para a compreensão da massa; em tempos em que a cultura acomoda-se como um produto para ser vendido, exposto nas prateleiras do mercado. A degradação cultural em nome do liberalismo é um crime perpetrado embaixo de nosso nariz e não esboçamos reação para detê-la. A reação possível, caro leitor, é a nossa revista. A nossa revista e muitas outras que se opõem, com a publicação de vozes comprometidas na busca de uma identidade poética que não se espelha — copia — a ação passada, seus vícios, mais propriamente do que suas virtudes. A revista nerval propõe-se a descobri-los para um público maior, assim espero, porque seus continentes estabelecidos não entraram no radar das entidades oficiais que dizem o que é ou não é a cultura brasileira, a poesia brasileira ou a prosa do país. Cada um dos poetas aqui não ignora o aspecto político de sua representatividade dentro do campo de sua atuação;
espertos desenham estratégias para uma ocupação efetiva de um território aristocrático e feudal. Meu querido leitor, perdoe-me o cerebralismo embutido em minhas linhas. A cultura, como uma representatividade de poder, é uma das minhas preocupações; estabelecer uma divisão equânime desse espaço dirige minha visão, sabendo que saneá-lo, abri‑lo, reorganizá-lo — redimensionando suas discussões — é escolher recair sobre si o epíteto de fariseu, cobrir-se de cristo e ser preterido por um barrabás. nerval, o nosso herói, provou do cálice de fel. Eis a nossa reação, plural. Leitores, meus queridos leitores, adentrem as veredas. Diverti-los com malabarismos hermenêuticos, com o signo ígneo e com a imagem. O sangue do poeta são as imagens, li em algum lugar. Ei-las reunidas aqui caleidoscopicamente para alegrá-los das inúmeras possibilidades da poesia brasileira. Há uma poesia com bolor vendida como iguaria fina por inúmeros grupos, esta não nos interessa. E esta outra, que não quer se polarizar, debruçarse em maniqueísmos. Prefiro uma poesia que não dependa de tecnologias exteriores para a validação de seu fazimento. Para terminar, uma provocação: um aluno, poeta moderno, ligado à tecnologia verbal, mostrou-me uma poesia de amor. As disposições dos signos e a ocupação gráfica da folha animavam-no. Pediu-me, ao final da aula, uma opinião. Disse a ele para se espelhar em Vinicius de Moraes, porque a gatinha não entenderia a intenção do poema. Cobriu-me de injúrias, alegou o alto grau da instituição de ensino em que estávamos e a compreensão privilegiada de todos os integrantes do corpo discente. Calei‑me. Na semana seguinte, a menina procurou-me. Mostrou-me o poema altamente tecnológico, e disse: “Acho que ele quer sair comigo, professor”. “Eu também acho”, respondi. É uma anedota, não há dúvida, embora real, ocorrida em uma escola de ponta do Rio de Janeiro. Mas não é, em certo sentido, uma alegoria de certa “poesia” brasileira? Boa leitura.
MARIEL REIS // EDITOR
amanhecer
andré ferraz Pássaros cantam na alvorada E eu sanhaço contente Observo você ainda cochilando. Querendo beliscar mamão. E com o biquinho derramar Água sobre seu colo. Dona das minhas asas. Respira em mim seu hálito de beija-flor. Para mim sanhaço, Ave de perpetuação do escândalo. E do aviso de nova esperança Ao amanhecer.
10
santo
andré ferraz Para qual finalidade o cristianismo Me repele o corpo, Se foi dele que fui gerado. Eu também andei sobre as águas Dentro do ventre de minha mãe. E porque não haveria santidade Quando beijo a água que brota Da vulva de minha mulher, Se ela me sacia a sede e aplaca a fome. O rosário que oro de frente ao cu Com os dedos, São tão santos quanto o anjo Que através do espírito santo Fecundou Maria. Glória, Glória Maria Minha mãe, amando-se Com meu pai. Eu provo por todo o seu corpo O cheiro forte do amido Nos seus lábios.
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negociação
andré ferraz A boneca rodeia ao fazer o preço. Mas, eu quero mesmo conversa. Quero um pau que me dê paz, Conversa; e dormir no colo dela. Aguentar o silêncio do quarto E da voz que vêm dela, Enquanto meto. Queria que ela fosse o amigo, Que nunca faltasse nas noites tristes. O quadro em branco da minha viagem Ao paraíso dos levianos, E meninos de bordel.
12
transcrevendo uma entidade andrĂŠ ferraz Oriundo da responsabilidade de quem escreve, [ de quem se assume. A leitura passa a ser de quem entende, [ e de quem duvida.
13
pela boca da imaculada andré ferraz Pela sua boca recebe o óleo Que brota bendito: o segredo da vida, Dele são gerados todos os frutos Da criação e dos filhos de Adão. Ela engole e sente-se purificada.
14
cigarro
andré ferraz Matizes de branco em vermelho Na tosse seca. Onde os pulmões põem sangue Na relação em que se maltrata E se sente prazer Quando se encontra Nos lábios a frase: - Me ame ou me deixe em paz.
15
cozinha
andrĂŠ ferraz Os odores do alho em suas mĂŁos: -Minha bruxa de cachos... Torceram a minha mente Abrindo receitas de como Conviver sem azedar.
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cama no escuro
andré ferraz Eu beijo o mamilo às cegas, E tropeço entre suas pernas. “Morena, no escuro.” “É, breu!” É dente no birro, É pau fora da caçapa, E um gostinho de quem Veste as mãos de veludo Quando toca a pele trêmula.
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matemática do abandono andré ferraz Eu já sei que tua transcendência, Não corresponde a minha transgressão. E que o meu ódio queima Buscando entender sua paz. Me deram formas de intervir Nas minhas más tendências. E insisti por corresponder Na causa da minha famigeração. Queime por dentro orgulho idiota. Apresente-se ao Juiz. Nas sentenças menos bravas O quadro de impressão que deixei À Deus não permitia piedade. Mas teu amor mesmo quieto, Me degenera a ponto de também Amar-te em silêncio. No entanto a credibilidade não sustenta A imperfeição que minha mente ainda detém. Por isso nos teus lábios mudos Eu aprendo a conquistar viver Sem culpa.
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roxane
andré ferraz Ela molhando as plantas, E não me dirigindo a palavra. Me fez enxergar o sol Por entre a varanda. Acalentando meu rosto com raios Ultravioletas naquela tarde. Amortecendo o vento quente de primavera, Que a gente sufoca no dia a dia, Preocupado com as compras, as dívidas Que eu não dou muita importância. Buscando o violão, os versos certos. Os livros resenhados, as notas boas Na escola de música. Mesmo com trinta e três anos E menos de um salário mínimo do meu pai. Uma vida sadia na natação Carboidratos que você Não come pra, não engordar. E tentar não comandar a vida de ninguém. Só apreciar o sol e seu bumbum empinadinho Enquanto desliza a água nas plantas Da frente da casa de seus pais Na maior delicadeza e amor que me emprestara.
ANDRÉ FERRAZ é poeta, músico e compositor. Vive no Rio de Janeiro. Publicou dois livros de poemas: Boxe de Poemas e Meridianos.
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demasiado sueño caco ISHAK “lo siento pero es poeta no es un rockstar” dice entre tangos llorados arriba de la escalera tampoco pinto techos de amarillo o rayuela un tonto, turista en nuestro sueño latino americano de papas fritas fermentado a 5,2% y el orto rogando por más un cigarillo no fumado u olvidado con la rosa en tu vaso
heil heil, carnívoro pero soy forastero no me encantan más las telenoveleras anarquistas ni una ventana del messenger yo soy poeta no soy un rockstar no me encantan más las tours mundiales de cama en cama y pulsos sangrando yo soy poeta no sé bailar acá fixo territorio arriba de la escalera que construí para escapar de mi sueño latino americano to be a rockstar
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cumplicidade em versos soltos caco ISHAK prometi não escrever uma linha palavra que fosse sobre a gente que este seja apenas o primeiro posto que passa o que não acaba então, que dure até um novo poema embrulhado se acabou numa traição (autotraição, autoboicote) recomeça-se tudo outra vez agora, sim, eu sei nada mais é necessário
a dor de memorandos e etiquetas e esgrimas e contas pagas e teu coração numa forquilha que eu julgava nossa
(das expectativas que tive até hoje prefiro a de quem já não se engana e bota a ansiedade pra dormir)
essa dor não vale a tranquilidade de uma página virada atrás da outra e a seguinte não vale cada ponto final dum parágrafo sou o que já não quer mais representar o anti-herói na orelha de best-seller que seja muito menos duma série na tevê então, que dure e durma e acorde sem sonhos ou pontas de facas senão entre o dormir e o acordar simplesmente carregando o abandono cotidiano nas costas no colo então, que dure como um poema em versos soltos na cumplicidade de sempre reescritos 21
spotless
caco ISHAK o segundo passo é sempre o mais custoso é sempre um susto que arrasta o primeiro às vezes, nos joga pra trás às vezes, nos leva ao terceiro e mesmo quando já não sobram solas e até os calos ficaram pelo caminho às vezes, é sempre um susto sempre o custo de a cada segundo ressincronizar pra que um descompasso não bifurque as pegadas que deixamos faz pouco junto às lembranças que o rastro das nossas caldas tratou de apagar
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now
caco ISHAK lambo privadas como quem lambe o amor degusto rezando a areia dos gatos gargarejo a água suja dos papéis que assumimos a camisa que visto é unissex as calças, os sapatos, tudo unissex até as cuecas ela usa e, portanto, unissex virginia woolf e eu uivávamos juntos era eu quem escrevia a revolução com pagu quem embarcou no trem com donatella respeitem meu século vinte não estou atrás de uma costela nem a frente, por cima ou abaixo todo enroscado num rabo de saia a guerra está vencida e agora é catequizar a parte chata da brincadeira opção a) minha mulher só quer andar na rua com seu shortinho apertado e suas coxas grossas que eu adoro e todos podem adorar desde que num silêncio ritualístico opção b) minha mulher só quer sair com as amigas e não ser estuprada pela vadia que está sendo ao pintar as papas da língua de vermelho e humilhar com seu contra-falo intelectual opção c) minha mulher não é minha que a guerra cesse, portanto, também na cama que a cama passe, portanto, também a jogral mas, querida, abre o champagne ‘cause boys also wanna have fun 23
manual de sobrevivência dos desafogados caco ISHAK o passo é sempre em falso nem por isso pretende-se menos seguro ~ aprendi a amar na rede oscilo vícios de conexão ~ o que eu digo não importa tanto assim let me sneeze e assoar o nariz na barra da calçada ~ não se doam mais como se doíam antes ~ se encaixa quebra cabeça
CACO ISHAK é jornalista e tradutor literário. Nasceu em 1981, em Goiânia, embora tenha sido criado em Belém. Teve textos publicados em sites e revistas literárias como Modo de Usar & Co., Poesia Sempre, Paralelos, Cronópios, Musa Rara, Ornitorrinco, Machado, Rosa, entre outros; e nos projetos Blooks: Letras na Rede, Ruído e Literatura, Orquestra Literária e Na Tábua. Pela 7Letras, publicou Dos versos fandangos ou a má reputação de um estulto em polvorosa (2006) e Não precisa dizer eu também (2013), cujos poemas estão sendo traduzidos para o inglês e o alemão. Ainda em 2014, lançará seu primeiro romance, Eu, Cowboy. www.ciaocretini.org
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poesia instant창nea claudia schroeder Quando uma palavra inspira eu espirro um mont찾o de outras para fazer companhia.
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verdade
claudia schroeder Vou ter que resolver esta história do sexo. Que o sexo é frágil ou é feio ou é automático ou não é. Que o sexo só é bonito quando sacanagens não são ditas e que tem que ser com penetração para ser consumado (os telessexos são mais sexuais do que muitos casais).
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ela
claudia schroeder A tristeza tem lá os seus benefícios: me faz não sorrir em vão não deixa eu gargalhar alto e ninguém vem te pedir ajuda. Você pode pedir receitas azuis para calmantes proibidos pelas farmácias hipócritas. Dá pra lembrar dos amores quebrados pra alimentar os sentidos já negros dá pra deitar na penumbra fechar a porta passar a chave não atender o telefone o interfone o chamado para jantar à mesa. Dá pra ver um filme ruim e chorar feito um lobo na lua cheia. Dá pra ficar feia dá pra ficar suja e sem escovar os dentes por eternidades. Dá pra emagrecer economizar na pizza e se endividar no vinho. É. A tristeza tem lá os seus.
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filho
claudia schroeder Nunca fui nada nem ninguém. Era seca e oca não sabia não criava não alimentava não sentia. Tinha pedras no peito uma rispidez no jeito uma alma sem graça. Não tinha conhecimento de que dentro me havia um espaço intacto e virgem reservado em teu nome. Antes antes, nada. Depois de você um tudo que me transborda.
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pequena morte claudia schroeder Quando morro um pouco falho me escureço na íntegra e o mundo se desintegra inteiro e rápido. A alma negra envolta em pensamentos ruins questiona o tempo o vento eu mesma. Perdoe a falha. Depois eu volto.
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sorry
claudia schroeder Não decido sentir não decido. Sentir é contra a minha vontade de não. Não decido teus sentires nem os meus. O cheiro vem e eu sinto a fome chega e eu percebo o amor morre e eu pressinto. O gosto amargo na boca vem mesmo depois do doce. A dor no peito pós-quebra-de-prato é dura e invencível. O frio na alma atordoa o fato de seguirmos vivos insistindo em sentir. Não decido não sentir não decido.
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chapéu
claudia schroeder Meu poema sobrevive no céu de estrelas próprias nos meus fios brancos de vivências tantas se esconde pelas mechas que o vento mal alcança que o sol não consegue queimar e que o sereno molha quando anoitece o meu pesar. Meu poema se esconde onde vive o meu pensar.
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a minha idade x a sua claudia schroeder Queria poder segurar os anos não deixá-los somar à idade para ter uma coluna forte e ereta músculos mais rijos nos dois braços finos ossos das pernas sem a ameaça da osteoporose a memória mais plena o olhar sem astigmatismos que me tiram o foco os passos bem rápidos as mãos mais ágeis e macias. Tudo para que você meu filho tivesse mais de mim todos os dias.
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a poesia que me vem claudia schroeder Não nego mais a poesia que me vem. Ela é insistente, sempre está me batendo às portas: se cerro a da frente, ela bate nos fundos se ignoro os fundos, ela fica à espreita nas janelas aguardando que eu abra uma fresta para o meu gato sair. E entra. Então não nego mais a poesia que vem. Ela traz versos ruins e eu apenas deposito no papel e os guardo no fundo de um armário feito presente dado pela tia-avó que nunca sabe os nossos gostos e prazeres. A poesia que me vem não fica sabendo se foi lida publicada lapidada ou amassada. Nem tem ideia se ficou amarelecida e corroída às traças num papel qualquer ou se perdeu-se num lixo eletrônico de um computador velho. A poesia quando me vem passa a ser minha e não mais dela e se sai da gaveta ou da tela já é do outro e se para nas livrarias pode passar a ser de uma multidão, é fato. Então não nego mais a poesia que me vem. Abdico da preguiça de anotar tanto verso que me parece ruim e me alivio tiro o peso da culpa de pensar: não anotei a poesia ruim que me veio. E se ela fosse boa? 33
ausência
claudia schroeder Eu chego a ficar curva antes da idade. Chego a ficar triste antes da morte. Chego a ficar morta antes da oração. E então não chego mais.
CLAUDIA SCHROEDER é publicitária e poetisa. Nasceu em Santo Ângelo, em 1973. Aos 14 anos, publicou seu primeiro livro de poemas e pequenos contos, e aos 17 anos, lançou o livro Elevador Panorâmico. Foi classificada no Prêmio Off Flip de Literatura. Em 2010, lançou o livro Leia-me Toda que ficou em terceiro lugar no Prêmio Biblioteca Nacional 2011. Um de seus poemas fez parte de uma antologia de poesia de língua portuguesa com o tema da gastronomia (A Poesia é para Comer), junto a nomes como Hilda Hilst, Ferreira Gullar e Chico Buarque. Também é diretora de criação e revela que ainda vai publicar livros infantis para o seu filho ler.
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soneto de apresentação daniel seidl Quem quer que eu seja que não sei e o que quer que eu tenha sido e o que eu ainda não serei e aonde quer que eu tenha ido e como quer que eu tenha vindo eu algum dia lembrarei quando tiver já esquecido que nunca sou quem saberei. Quem quer que eu seja eu nunca rio e normalmente estou calado nos retratos que são meus. Eu sou a fumaça do navio. Eu sou um anjo mutilado. Eu sou a lágrima de Deus.
35
autorretrato
daniel seidl O meu rosto não tem definição. Às vezes sou fumaça de cano de descarga outras vezes sou dissimulação. Meu rosto é neutro, oco e sem função. Sou pigarro barro sou fumaça de cigarro eu sou a garrafa espatifada contra o chão.
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táxi
daniel seidl Bate um taxímetro em meu peito que aumenta a todo instante o custo do meu itinerário. Entre o ponto de partida e o de chegada empobreço imóvel passageiro.
37
humores
daniel seidl Há dias em que sou o homem-festa. Há dias em que sou o homem-cemitério. Há dias ainda em que sou o homem-festa-no-cemitério a mão imóvel com a gilete a meio caminho entre o pulso e a barba.
38
ego
daniel seidl Metade do tempo não somos ninguém ou melhor somos o que nos convém ser. A outra metade não somos também ou melhor somos quando ninguém nos vê ser.
39
amor-próprio
daniel seidl Ardilosamente me seduzo e sem nenhuma resistência eu faço amor comigo. Depois acendo um cigarro e onipotente sozinho clichê pergunto se foi bom pra mim.
40
a gata
daniel seidl A gata arrasta-se lânguida pelos cantos da casa deitando-se de barriga para cima e rolando de um lado para o outro. A gata ronrona de leve esfregando o pescoço lentamente nas quinas dos móveis. A gata atravessa o jardim sem pressa rebolando fêmea. Olhando a gata penso se o seu pequeno útero felino seria capaz de gerar um filho meu.
41
gênero
daniel seidl Depois de foder a mulher amada ao homem não resta muito: uma sombra na parede uma poeira no chão uma vertigem. Depois de foder a mulher amada o homem é sempre menos do que era. A mulher depois de fodida pelo homem que a ama engenha idiomas fabrica ventanias reinventa o calendário. Depois de fodida pelo homem que a ama a mulher é sempre um instante à frente e um tanto além. O que Deus sussurra à mulher depois de fodida pelo homem que a ama homem nenhum nunca vai saber.
42
epifania
daniel seidl Que de súbito um trovão de sol um sonho, uma ressaca uma bala perdida acerte em cheio minha vida e me traga — se não uma resposta — ao menos a esperança de haver uma saída.
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bangue
daniel seidl O vento da madrugada explode em meus ouvidos feito um grito feito a urgência que me arde quando deito feito o susto de saber-me deste jeito feito o pânico de meu álibi desfeito. A luz da manhã explode em meu rosto feito um tiro.
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bonança
daniel seidl Minha boca é um cemitério de navios. Meus olhos capitulam em tempestades. Não há descobrimento que mude a geografia do meu rosto. Com uma âncora no bolso e um arpão atravessado no peito naufrago.
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não morto, mas dormindo daniel seidl Eu não guardo agenda com endereços de amigos e ninguém sabe o meu nome para fazer-me de inimigo mas serei achado mesmo assim. Não sou remetente nem destinatário e nunca fui recenseado e minha carteira de identidade está vencida há muito tempo mas eles hão de me encontrar. Não tenho a imagem registrada no circuito interno de câmeras de bancos nem em fotografias de viagens nem nos arquivos da polícia mas mesmo assim eles virão. E do lado de dentro de uma porta trancada sem campainha ou maçaneta é assim que me verão: não morto mas dormindo um punhado de centavos num bolso e uma caneta sem tinta no outro a televisão ligada o fio do telefone arrancado. E é assim que eles me enterrarão: imóvel e em silêncio não morto mas dormindo. E quando abrir os olhos eu não reclamarei.
DANIEL SEIDL é jornalista na teoria, produtor editorial na prática e escreve poemas desde 1993, mesmo ano em que descobriu Tom Waits, a quem continua ouvindo obsessivamente. Seu livro preferido é Memórias de um gigolô, de Marcos Rey, e ele acha o cineasta François Truffaut o maior poeta de todos os tempos.
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o homem ao nada delfin No mundo das mentiras O duro não é ser honesto Mas, sim, dissimular E fingir que a própria dor Não é mais que passageira Como se qualquer cataflan Pudesse fazer ela sumir. Algum som muito alto Estouraria os tímpanos Mas talvez somente assim É que se possa vencer As palavras que usam E manipulam de tal forma Que, no limite, é o desprezo. Cada volta dos ponteiros É um número a se somar Na conta dos meus dias A esperar a sua volta Que só vai acontecer Quando eu não esperar E quando eu for necessário.
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pesadelo
delfin A morte tem várias faces E age de várias formas A morte é paciente E nunca se conforma A morte nunca desiste E parece um ser humano A morte tem face alva E um pensamento insano A morte é desafiadora E nos convida a jogar A morte é muito bela E assim vem nos matar Desse modo, A morte veio me ver Saindo de seu covil Eu estava sem esperança E ela tinha seu ardil A morte se fez de vida E me deu sua mão fria A morte me fez alegre E então me deu o senão Atingindo o que eu acredito Sem que eu duvidasse dela A morte, assim, me tornou escravo preso em sua cela.
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everlasting
delfin Uma das escadas circulares Toma o velho pelas mãos O que seria? O velho desce E o chão cede Espaço para seus pés O velho suspira aliviado E a velha mira vesga Um pote de beijos Guardados com as compotas Tempera o armário O velho olha a velha Como ela ficou tão feia? O balanço vem E foi A rapidez é o sinal dos tempos A velha voa Mas não existe estilo O chão aberto luta Contra o céu fechado A resposta é direta De direita Mas o velho beija o lustre E, se há alguma moral, É a de que o trem vence a nau.
49
as esperanças
delfin Catala, catala E a dança continua Catala, catala E a doença se espalha Vola, vola E estes estúpidos vermes Afrouxam as gravatas Sentando no meio-fio Os famas correm E não param para olhar Catala, catala Olhando para a frente, sempre Mas de longe Como distinguir Os famas e os cronópios disfarçados? Olhando tudo, As esperanças se preparam Para amar os cronópios E casar com um rico (cronópio nunca cronópio)
50
de grão em grão delfin Eu conheço vinte irmãos Todos gêmeos entre si De destino triste ou incerto. E vão todos morrer um dia, Afogados ou queimados. Mas ninguém vai chorar por eles. Ao contrário, vão culpá-los Pelos males da humanidade. Mas que culpa eles têm? Vivem cegos e lacrados Em seu mundinho isolado E, como diz a Bíblia, As pragas só se espalham Se romperem os lacres. Quando a vida os liberta, O que se há de fazer? Uns se divertem com eles, Outros se aconselham E a maioria nem liga. Mas, sempre que eles morrem, Deixam suas marcas. Um dia os assassinos serão mortos Pois não importa quantos morram Sempre surgem outros vinte Prontos a lhes vingar.
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fim do mundo do fim delfin Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim da esperança Todos acreditaram Enquanto só eu sabia Que os padres fugiriam E os guardas correriam E que todos veriam o céu E a terra E o fim do mundo E no final não há guerras Nem paz E no final não há menos Nem mais Mas com ela à minha frente Correndo arrependida O que meus braços dirão?
DELFIN tem volumes e mais volumes de poesias e letras de música. Um dia ele teve parceiros e, juntos, compuseram mais de cem canções. A maioria nunca verá a luz do dia, pois não há mais amizade envolvida. Ainda assim, a poesia vive dentro dele. Apenas decidiu manifestá-las na vida e não mais nas palavras. Um dia tudo isso verá a luz do dia. Antes que chegue o fim do mundo do fim. www.studiodelrey.com.br
52
poemapagão
demétrio panarotto
I poema coito casto coitado castigado foi só aí que percebeu que algo escorria nas suas suadas pernas carregar a cruz menstruado imprimia outro tipo de relação com o corpo com a cruz com o espaço maria enxugou as lágrimas josé enxugou os poemas
53
II
III
poema coito casto carpe carpido as carpideiras ainda choram trevas trava línguas e os poetas seguem carpindo boceta na Getúlio o poema não é sujo o poema não é sujo o poema não é sujo a ladainha do rosário se repete se repete se repete e as bandeirinhas tremulam nas mãos cheias de rugas rusgas rezas
poema carma carmim carmém carmina corpo cuspido não há refrão pestaneja prega refrão é penitência e o dardo atravessa a folha rasga rocha racha e dafne corre para não ser coitada refresco poesia no cunilíngue dos outros é gozo gasta gosta e regozija coito cuspe cupido
54
IV
V
poema ciranda cama coma comido cantigas antes crivadas cravadas ocre duas vezes ocre árvore seca sertão chuva e tudo floresce e os pássaros cantam cortejam se acasalam orfeu e exu ali ali ali bem depois de onde tu enxerga ali
poema corvo curva curral curvado kamiquase carcaça de um animal currado carcomido cortiço cortiça vinho tinto seco no ser tão seca a gruta umedece e do alto o carcará observa voa também plana se diverte observa tudo sim observa
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VI
VII
poema cabaça corpo cafuné cafundó atrás da moita monta e corcoveia bicho carpado salto carpinteiro quer bater palmas e não consegue coordenação negada trama rima e chora no final soluça soluça soluça quer pedir música soluça
poema cava ciúmes cumes conversas quer um broto de alfafa brotoeja brota bruta pele chafurda na lama lema limo nada gurgumilho a sinopse entrega o filme fausto gravata eterno e ele deixa o set sinestésico silvícola sertão silvo
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VIII
IX
poema cravo cravado cruzes credos de tudo encardido mendigo mandinga lenga lenga lenga de novo não tem sopa sapo sopapo mas tem mexilhões rasgados no vinho branco seco ignoto ignoro champagne as taças fazem tim tim e tim tim faz hergé hergé
poema cabrunco caatinga cafuso cabideiro dependurado que nem charque carne de sol de ponta cabeça e o sumo supra suga segue a correr pelas pelos suas pernas biscoito fino umbigo pescoço boca e a língua longe o sente sumo vísceras viscoso
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X
XI
poema cabeçalho cabeceira cabeça cabeludo black power aquilo que se esconde mostra aquilo que se deixa ver esconde vejo vivo o mesmo dia duas vezes sem me dar conta que já é hoje ou amanhã puxa vida puxo puxa vida puxo de novo e ela não vem faz tempo que não vem
poema cova.
DEMÉTRIO PANAROTTO é músico, poeta e professor universitário (UFSC). Autor de Mas e isso, um acontecimento (2008) e 15´39” (2010, Editora da Casa); Qual Sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé (2009, Lumme); Crônica para um defunto, dengo-dengo cartoneiro (2013); mais uns discos, uns filmes e dois filhos, Lorenzo e Antônia.
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CORTEJO
DIEGO GRANDO Os nossos tios estão morrendo, meu irmão, num paquepaque de peças de dominó indo e caindo e isso faz sentido, sinto muito. Foi só chegar aqui já deu pra ver que as traças perdem o apetite (tu também?) justo nas roupas que não servem mais. E o que dizer então das nossas faces duplas faces que parecem incompatíveis com as lembranças dos outros? São dez da manhã, domingo de missa e de agosto de lábios com vincos e olhos de lado. Será maior nossa coragem algum dia que o constrangimento ou acabaremos apenas ovelhas perdidas cada vez menos perdidas? Em questão de minutos veremos sorrisos e o repetido capítulo dos abraços: só assim pra todos se encontrarem, dirão alguns e repetirão nos próximos dias e sem mágoas, que ao menos teve isso de bom.
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E como não haverá mais por que ficar nem brigar pelo banco da frente rumaremos para o carro em silêncio fiéis ao nosso jeito de fazer parte.
A poeira se dissipa (evasivas, balas de goma) na ressaca do passado e já estamos no aeroporto (aqui saem por sete e cinquenta os trinta primeiros minutos).
É preciso validar o tíquete descobriremos por dois e cinquenta (até quatro horas) e esse fato não sei se nos deprime ou diverte ou só nos põe a falar do frio que faz do sono do gosto ruim do café da máquina de fazer café ruim dos que bebem com gosto o café da máquina e de como continuam feios e iguais aqueles caminhos (nisso teremos toda a cautela de não enumerar responsáveis) os caminhos sem viço e acostamento que percorríamos na infância.
Quem dirige, quem viaja quem distorce e quem imita quem nos tira esse abandono de mais uma despedida? E se não temos respostas não perguntemos inventemos apenas a pena de um novo penúltimo abraço. Fico, e de onde fico, sei e tu e sabem a chave e os documentos que tento acomodar nos bolsos também sabe o tíquete a ser pago no guichê do saguão do terminal um que se sabe a piso de cera e sabe que naquela cena do aceno no portão de embarque continuaremos os dois pensando nos tios que nos restam.
DIEGO GRANDO (Porto Alegre, 1981) é autor de Sétima do singular (2012) e Desencantado carrossel (2008), ambos publicados pela Não Editora.
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UM POEMA DE ESPERANÇA SECA EVERTON BEHENCK Você já sabe Que irá morrer Talvez em breve
Você já sabe Que o amor nasce E morre
E que será Praticamente inevitável Um tanto de dor Prática e física
Pelos mais diversos Motivos E que geralmente As pessoas oferecem O que não possuem
E tubos nas narinas Você já sabe Que atrás dos olhos Está e sempre esteve Irremediavelmente
Enquanto exigem O que você não tem E que até perceberem isso Serão felizes
Só Você já sabe Que o amor É uma intenção E sabe que isso É muito bonito
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Você sabe que a fé Foi feita Para que você não acredite Cegamente
Você sabe Você sabe que dinheiro Carros, ternos, móveis Não são garantias nenhuma De humanidade
Nisso tudo que sabe A natureza criou a fé Para garantir que você faça A sua parte Até que chegue Cedo ou tarde
E se você não sabe Descubra antes que seja tarde Você já sabe Que não voltará Ninguém que lhe salve
Com mais Ou menos alegria Aos tubos nas narinas
O parto é sempre um ato De abandono implícito
Você sabe Que algo te move sempre em frente
Viemos a esse mundo Com um propósito bem definido
E é exatamente o mesmo Que move um cão Uma vaca ou uma ave
E nunca voltaremos Aproveite sua estada Da melhor forma possível
Mas agradeça Porque eles não sabem
E não se cobre tanto
Já você Bem
Todo mundo sabe o quanto É difícil
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o amor não nos deve nada everton behenck O amor não irá nos salvar O amor é forte Mas ainda não é força
O amor não é suficiente Para que as pernas se movam Ele é o motivo Não é o motor
O amor não supera nada O amor
O amor é só um aceno Quem corre somos nós
Só mostra que existe o outro lado Para que você salte sozinho
Quem precisa ser forte É a carne não o amor
O amor não é o ponto de partida Nem o ponto de chegada
Quem precisa vencer as barreiras São as mãos no exercício do carinho
O amor é o caminho São as palavras na dicção da delicadeza O amor não justifica nada
E sobre ele Só anda quem não teme perder de vista O amor não é um lugar para pedir abrigo O amor chove do lado de dentro
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O amor é só um vento Mesmo sendo capaz de mover e revirar
O amor não precisa de nós O amor não nos deve fidelidade Não nos deve respeito
O amor não vai soprar Em vão por muito tempo
O amor não nos deve nada O amor é muito sutil e muito ingenuo O amor pode ir embora Quando bem entende
Quem precisa gritar somos nós Para multiplicar a voz
E o amor não prende o amor nos dentes Somos nós
Nós precisamos dizer através do amor O amor não falará uma palavra
Com nossa pouca imensidão Que temos de crescer
Ele não fará nosso trabalho Árduo
Nós que só rezamos ao espelho É que devemos ter fé e doação
O amor virá morar conosco Mas somos nós
O amor não é o santo Nem a oração. Nem o milagre
Com as mãos vazias Que devemos construir a casa.
O amor só aponta o dedo e pergunta da porta: E agora?
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Minhas ilusões de amor Essas que hoje se espalham
Essas pequenas pedras De matéria sutil
Na invenção da memória
Minhas ilusões
Essas que estão Perdidas pela cidade
Que vem em ecos Que vem escondidas em músicas Que escuto sem querer
Na gaveta de alguém Em um papel de presente
Na rua
Em uma rolha de vinho
Minhas ilusões Desqualificadas pelo clichê
Minhas pequenas ilusões De amor
Ao chamar assim
E que hoje Me fazem tanta falta
Ilusões Mas eram minhas E eu as amava E era tão bom o que faziam comigo Minhas pequenas Ilusões de amor Espero que um dia Sejam encontradas Por outro poeta Ainda garoto E espero que isso Traga alívio E quem sabe Ele rescreva Todos os meus poemas
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o sanatório da esperança everton behenck Doutor Procure cura
Ela não sabe doutor Que está doente
Para a mulher deitada Em sua cama
E o que sente É o sintoma Da sua enfermidade
Que muito ela chama E ninguém responde
Seu pensamento A morde doutor
E a dor se esconde Em seu travesseiro
E ela não pode Lutar contra isso
Mande remédio Doutor
Sem perder litros e litros De seu brilho
Que a menina Mesmo desprezada
E ela já brilhou muito Doutor
Luta consigo Para tirar alívio Dos olhos aflitos
Venha acudir Que ela se refugia Na raiva vazia E são muitos os perigos No lugar desconhecido Onde esta Que a prende Lhe arranca os dentes E os cílios Não é bonito de ver doutor
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Então venha O mais brevemente
Por favor
Porque ela Já está perdendo as forças
Mande remédio Porque é muito sério Que uma mulher tão linda
De tanto lutar com essa outra
Fique fraca e cinza
De tantos braços E bocas que falam
E que não se perceba mais Aquela
E ouvido que inventam E respiram
Que espera dentro dela Como um pássaro azul
Não imagino Que tipo de medicamento
Ela organiza as coisas Tentando organizar a si mesma
Pode arrancar alguém
Mas é como um castelo de areia Vem sempre a onda
De dentro Quantas vezes é possível Começar tudo do início
Sem que esse Não se despedace
Existe remédio para isso? Em mil partes Fúteis como a tarde
Quanto sacrifício Transformar a dor em ofício
Preciso saber doutor Mande quem sabe Tratamento
Se ela sobreviveria A anestesia
Unguento para seu tormento Mande um remédio Preciso curá-la Porque a amo E já não posso mais amá-la
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Por favor Doutor
Quantas vezes Ela desapareceu
Pesquise
Os olhos e a respiração Respirando escuridão
Se a medicina Já entende
O rosto Desfigurado
Como se faz nascer gente De gente adulta
Quanto estrago
Não há luta mais dura
Quem já viu Algo capaz de causar isso A uma pessoa
A vida é uma carnificina E vai devorar a menina
Não ser capaz De suportar o amor
E morrerá nela Essa mulher Que nunca nasceu
Não ser capaz De suportar a paz
Quantas vezes Ela correu aos olhos
Onde mais posso encontrar Alivio para ela
Para ver lá fora Encontrar quem passa Apaixonar um homem
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Traga remédio doutor
Doutor Não fuja da sua responsabilidade
Que morrer de amor Há muito não se usa
Mande remédios Urgentemente
E enlouquecer é simples Para um vulto Que arde em febre
Não é possível viver assim Por tempo indefinido
Para mantê-la leve Não é possível Para que ela desperte Suavemente
Se perder pelas cores De algo invisível
E acorde o amor na gente Me pergunto O que acontece com seus olhos
Mande remédio Que ela merece
Buracos negros Absurdamente sólidos
Saúde
Sugando tudo com sua gravidade Olhos negros de verdade
E se remédio lhe sobrar Doutor Mande remédio para mim Everton Behenck
Homenagem ao poetinha e o seu Desespero da Piedade 69
aos protetores dos animais EVERTON BEHENCK Vocês não tem pena Desse bicho Sozinho Perdido no abismo Da autoconsciência Atado à presença da morte Vocês não se comovem Com esse animal Que sabe somente o suficiente Para entender Que não entende Como pode um cão Despertar mais compaixão Se é o homem Quem mais precisa de amor Vocês não se compadecem Dessa espécie Que simplesmente Não consegue Vocês não percebem Que é preciso Dedicar todo o carinho Para tirar o homem De dentro do bicho
EVERTON BEHENCK nasceu em 1979 em Porto Alegre. É poeta, redator, vocalista e compositor da Casamadre. Duvida da vida mas acredita cegamente na poesia. Em 2010 publicou o livro Os Dentes da Delicadeza pela Não Editora. www.apesardoceu.wordpress.com
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alerta
florisvaldo mattos A nenhuma parte levarĂĄ o caminho. NĂŁo ouves o canto das nuvens nem a pedra tombada a teus pĂŠs. Defines-te em teu enigma. Em busca de outro limite vagueias na penumbra das inconclusas auroras.
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a cabra
florisvaldo mattos Talvez um lírio. Máquina de alvura sonora ao sopro neutro dos olvidos. Perco-te. Cabra que és já me tortura guardar-te, olhos pascendo-me vencidos. Máquina e jarro. Luar contraditório sobre lajedo o casco azul polindo, dominas suave clima em promontório; cabra: o capim ao sonho preferindo. Sulca-me perdurando nos ouvidos, laborado em marfim – luz e presença de reinos pastoris antes servidos teu peito residência da ternura onde fulguras na manhã suspensa: flor animal, sonora arquitetura.
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claro
florisvaldo mattos Pelas tardes de fogo homens pedras movem com capacetes de sombra mergulhados em ruas de verão e sal. Nada me diz que as coisas se passam como me dizem além da parede de vidro que nos divide aquém das algemas de sono que nos unem. Sou como posso fiel a meu projeto mesmo que de pronto não o achem meus olhos – anônimos minhas mãos – rachadas meus lábios – rebeldes nos espaços burocráticos nas relações de amizade nos desertos duros da fome. Liberdade é meu ser e tempo. É meu nome. razão – o meu sobrenome.
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galope amarelo florisvaldo mattos Quando ele voltou a moça do portão estava casada o prefeito era uma cruz e uma placa as aves mudaram de itinerário como os ônibus o irmão mais moço tomava ópio para esquecer. Quando ele voltou o empregado da esquina respondera a um processo onde perdeu a esperança e os dedos o pai fuzilara um estudante a mãe fugira com um mascate.
Quando ele partiu a primavera galopava nos rosais os campos de begônia floresciam o gado esturrava nos currais a terra desafiada vicejava como uma égua na véspera do galope.
Quando ele voltou o ministro citava o arquiteto com a pretensão de restaurar o tempo à revelia dos relógios o muro substituía o horizonte autoridades sonolentas distribuíam o passaporte dos homens para o sanatório.
Quando ele partiu o alimento dos olhos era verdura de paisagem além da cerca as goiabas enchiam os cestos as mulheres voltavam com os meninos os velhos falavam de assombração a lua espreitava o pátio e o quintal.
Quando ele voltou as leis se haviam tornado ainda mais fósseis as oligarquias muito mais poderosas os poderosos mais astutos o ministro lembrava “a pá sob os escombros” o menino relia as manchetes da guerra os preconceitos rimavam com a economia. Quando ele voltou havia uma encruzilhada e um alto-falante a moça do portão estava casada o irmão caçula era um soldado velho. Quando ele partiu a primavera galopava nos rosais. Quando ele voltou O céu era só um galope amarelo. 74
banhadas de lágrimas estão as pedras “Nós somos um caos irisado.” Paul Cézanne
florisvaldo mattos Ver a força do dia romper, vibrando Entre um crepúsculo e o outro crepúsculo, Ver surgir da terra um ranger de músculo; Nada tenho a dizer, estou chorando. O dia amanhece, quando amanheço, Estático, no espaço da varanda. Preso a formas e cores, não esqueço A mão universal que isso comanda. Afasto da mente a mediocridade Que navega de um pólo a outro do dia. Cá me defronto com outra realidade, Não tenho hora para a melancolia. Natureza é tudo, me diz Cézanne. Cá estou para ver, o resto se dane!
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estrela súbita florisvaldo mattos Nunca te vi dizer-me que me queres. Eu queria te ver tocando flauta, Sem a sabedoria das mulheres, Na varanda distraída, como incauta. Na de lusos pensei história antiga, Ao pressentirem ninfas entre arbustos. Se o vento manda que o perfume as siga, A vibração começa pelos bustos. Vens de um país de renovadas auras. Como ninfa te portas, se proponho Mover os muros que entre nós instauras. Do vento ouço o ruflar de suave escolta. Marinheiro que agora sai de um sonho, Cogito que eras tu que estás de volta.
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tarde na várzea com chuva florisvaldo mattos A chuva há de passar. De quando em quando, Um alarido vem pelo ar, fugidio. Na tarde bruxuleante, além do rio, Teles e Caboclinho estão jogando. Não posso ver; a chuva me atrapalha. Vestindo sedas, clamo aos ares, rogo. Avanço a rua. Minha tia ralha (Nada me ajuda): “Pare aí, é só um jogo!” Raiva. Bato três vezes na madeira. Será que vai chover a tarde inteira? Digam lá como estão os litigantes. É agosto, sim, e chove sem parar. Dentro, o menino quer comemorar Logo. Atlanta e Palestra, dois gigantes.
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memória de boi esfolado florisvaldo mattos Soltei o livro. Olhei pela janela, espesso azul e nuvens, e lembrei: faz setenta anos que morreu Soutine de uma úlcera rompida nas entranhas, como as do boi esfolado da pintura, um retrato convulso de sua arte. De novo olho a paisagem; ainda o céu de cores baças, sons da rua larga, prédios e casas, em frente à varanda, sem pasto ou campo, só distantes verdes, que suplicam o olhar de voz opaca. E eu aqui a pensar em ChaïmSoutine pintando, dia e noite a dentro, pensos quartos de boi comprados nos açougues.
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tempo belo
florisvaldo mattos Logo, fecho o caixão e fecho o tempo das almas arbitrárias que vivi. Amante e amado fui e conheci a dor que é de meu tempo passatempo. Rebenta, alma insensata, o teu passado e vai por outras dores comezinhas; segue por tua senda, a que caminhas, rio em que tua margem é o outro lado. Estás ausente em ti para o meu gesto, simples estado neutro de passar, de olhar, sentir e perceber funesto o súbito negar da primavera, mais que breve e raro, cumprimentar o prazer de passar que a vida era.
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everest
florisvaldo mattos A mulher de gelo suspeita Que sou um dragão na noite, Aquele que na caverna Desconhece o ferro e o bronze. A mulher de gelo desfaz A cabeleira solar. Voltada para a janela, Ao vidro faz confidências. A mulher de gelo passeia O delgado corpo de ausência, Não sabe que a branca nuca Mira um revólver de sonhos. A mulher de gelo confia Em coisas que sejam mudas. Mas, sendo mulher, não pode Morrer à míngua de excesso.
FLORISVALDO MATTOS
é poeta, jornalista e professor aposentado da UFBA. Nasceu em Uruçuca (BA) e reside em Salvador (BA). Exerceu cargos em vários jornais, entre os quais os de editor-chefe de A Tarde, de Salvador, e de chefe da sucursal do Jornal do Brasil, na Bahia. Obras publicadas: Reverdor (1965), Fábula Civil (1975), A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior (1996), Mares Anoitecidos (2000), Galope Amarelo e Outros Poemas (2001), Poesia Reunida e Inéditos (2011) e Sonetos elementais – Uma antologia (2012).
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pó nas pálpebras homero gomes Luz na janela pingando pontos de pó nas pálpebras, pingando pontos de luz, enquanto sentado espera o peso do corpo sumir. O vaso de papoulas ao lado, o cheiro de mofo que sobe dos pés e a alegria de ainda possuir cigarros. Se distrai olhando as voltas da fumaça, olha o ar com olhos embaçados de tempo. Não procura resolver enigmas. Dos seus problemas não espera iluminação. Fuma o último fumo e espera o ar transparecer. Da janela, brotam pingos de pó, Mas as pálpebras se fecham. Enrolado, o pescoço enruga com a pressão. A corda estica e o peso consuma o fim e some. O tempo cessa.
O pó descansa.
Este poema foi musicado por Bárbara Eugênia para o Reversos, em 2012.
HOMERO GOMES
reside em Curitiba, é escritor. Publicou em 2013 o livro Solidão de Caronte (poemas), pela editora Patuá. Em 2014, publicou o livro de contos Sísifo Desatento, finalista do Prêmio Sesc de Literatura de 2007, pela editora Terracota.
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lux in tenebris JADER BARBOSA Quando a sublime luz do claro dia partindo se despede vagarosa, no calmo entardecer que prenuncia o repousar da força numinosa. A mente fraca teme e se angustia, pois crê que a noite densa e rigorosa tenha findado a chama que luzia na vastidão eterna, esplendorosa. Contudo a mente forte, o ser desperto, que do temor da noite está liberto, se nega ao insensato padecer. Pois sabe que naquela imensidão, da noite a mais intensa escuridão precede o glorioso alvorecer...
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retorno
JADER BARBOSA Um jovem peregrino caminhava por entre estradas ermas e sombrias, do firmamento as luzes contemplava na solidão daquelas noites frias. Sozinho os pensamentos elevava buscando reviver antigos dias, quando a visão humana desvelava da nona esfera as altas harmonias. E quando, enfim, chegou o grão momento de receber o vigoroso alento, que os mestres do saber tanto buscaram, o jovem peregrino retrocede, e à mente universal, sorrindo, pede: “- Deixai-me ir buscar os que ficaram...”
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homossapiens
JADER BARBOSA Tal qual um marinheiro naufragado, quando a brutal tormenta o barco vira, sozinho na amplidão do mar irado fitando um horizonte negro, expira. Tal qual um andarilho degredado, que pela selva inóspita se atira, e quando a noite cai, chorando o fado, por seu perdido lar em vão suspira. Assim padece o Ser enquanto hiberna na triste escuridão da vil caverna, que a mente lhe criou, padece mudo... E o homem que não busca libertá-lo sofrendo segue a dor do grande abalo, que lhe privou do Ser... de si... de tudo...
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ponderações
JADER BARBOSA Que vale ter na vida fama e glória, gozar do vulgo aprovação constante, se o que nos move em nossa trejetória for um desejo egóico e degradante?! Que vale ter escrito a nossa história nas páginas de um mundo intolerante, se tanto quanto a vida é transitória se mostra o ser no proceder errante?! Que vale consumir os nossos dias satisfazendo as ambições vazias, e se encolher à noite em mil receios?! Não há valor algum em tal medida, e o ser humano desperdiça a vida perdido na ilusão dos seus anseios.
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quem dera
JADER BARBOSA Quem dera qual Camões ter a grandeza, o brilho excelso de um versar sublime, para assentar da vida a sutileza, nos tons sutiz que a própria vida exprime. Quem dera qual Bocage ver acesa a chama da paixão, que ardor imprime, para cantar dos homens com clareza as frustrações que só o amor redime. Quem dera qual Antero - o mestre amado tivesse o meu pensar tão elevado, p’ra interrogar os céus e o Ser divino. Mas sendo a minha lira fraca e rude, de lhe externar os sons penso, ámiude, que seja um gesto vão... um desatino...
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... soneto!
JADER BARBOSA Ó cárcere bendito à vós me rendo, e à vós adentro o culto consagrado! Dos grandes Bardos o labor revendo distinguo o vosso lume imaculado. Enxergo a néscia turba mal dizendo teu singular rigor qual duro fado, porém quão mais te aviltam mais entendo como és sublime... Ó cárcere adorado! Em vós, doce prisão de poucos versos, cujo esplendor supera os mais diversos dos concebidos pelo engenho humano, em vós confesso estar minh’ alma presa, nos teus sutiz grilhões contemplo acesa a chama do versar mais soberano.
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“os fins nunca justificam os meios” (Gary L. Stewart)
JADER BARBOSA Não justifica a força soberana do pensamento, quando concentrado, ser dispersada em busca leviana, mesmo que nos agrade o resultado. Não justifica agir de forma insana tentando se alcançar um bem visado, mesmo que favoreça a raça hamana os frutos desse agir inadequado. Não justifica a Luz que nos inspira, se o buscador à nobres fins aspira, seu brilho ter manchado em devaneios. Se os fins são revestidos de nobreza, os meios devem ter igual grandeza. Não justificam Nunca os fins os meios!
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refletindo sobre os postulados de um homem nascido na áustria em 1856 JADER BARBOSA O ser humano, em suma, é tão somente, assim dizem os “grandes postulados”, um todo desejos malogrados, de repressões de um cego inconsciente. A vida é um clamor, quase indecente, forjado em mil complexos. Letrados afirmam pelos textos embasados do “grandioso mestre onisciente”. E o homem segue triste a tosca vida com suas frustrações de parricida, no desejar da vulva genitora. Mas eu nada sabendo ‘inda acredito que o ser humano é mais: é o infinito que abarca em si o que o pensar ignora.
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ísis
JADER BARBOSA Do templo oculto a luz mantenho acesa. A luz da antiga chama que perdura iluminando a senda íngreme e dura, que leva ao entender da natureza. Da vida eu guardo a força e a beleza, conheço a lei do fado e da ventura, desfaço a negra sombra que perdura em limitar do Ser toda a grandeza. E enquanto o pleno despertar espero do ser humano, ao buscador sincero concedo as chaves dos portais do céu. Porém meu fogo eterno ao vil consome, e assim nenhum mortal sabe meu nome, mortal nenhum ergueu meu grosso véu...
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reflexo
JADER BARBOSA “ - Escuta buscador a voz que brada no fundo de teu ser, cresce e se agita, transcenda essa ilusão que te limita do pensamento a força, e a caminhada. - Aceita o sacrifício da jornada para encontrar a luz, que é infinita. Não temas o porvir, triste alma aflita, a busca há de ser recompensada.” Assim falou-me a voz de um ser oculto, que revelou-se como um tênue vulto, no negro espelho visto em noite escura! Quem era? - meu pensar se questiona Quem sabe um mestre? Um D’us? Outra Persona? Quiça meu próprio ser que a luz procura.
JADER BARBOSA nasceu em 1982. Aos oito leu Alma minha gentil que te partiste... de Camões, cuja beleza o impressionou profundamente. Dos doze em diante passou a compor versos, até cruzar com Bocage, aos dezessete, e Antero de Quental, aos dezenove. Estuda métrica, rítmica, escreve sonetos. Aos 24 se inicia nos estudos de misticismo, no que a sua produção adquire certos aspectos. Aos 30 conhece a psicologia profunda de C.G. Jung. Jader Barbosa é autor de Luzes de Outono e Prometeu, ambos a sair.
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mitologia
kátia borges Tarde aprendi que não era, nunca fui, poeta. Meus escrito não atendem aos cânones. Meus poemas não se enquadram nas regras. Bom mesmo é dar a alma por lavada, assim como Ana Cesar. O resto é adolescência tardia e críticas à falta de rigores com a métrica. Em São Salvador da Bahia, valem mais os gregos e troianos para enfeitar, ou enfear, a poesia. Na simplicidade da linguagem da minha gente, onde Homeros e Ilíadas são piadas, encontro guarida. Passo a noite repousando a cabeça no colo de Mãe Menininha. Esta sim, lendária e mítica, minha Helena de Tróia.
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samba
kátia borges Meu tio mais querido, negro e sabido, tocava violão como ninguém. E sua morte vive em cada canção que escuto. Não há como ficar indiferente, por exemplo, a este samba. Sobe mais de mil e oitocentas colinas Em meu coração E desce na primeira canção em inglês que ouvi no rádio de meu avô. Nos domingos, a rua ficava repleta de sons, o futebol promovia uma festa de gritos de alegria e xingamentos. E o samba, o samba, sincopava as emoções.
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absinto
kátia borges Sábado de junho e aqui, onde me escondo, a tristeza roça sonhos e escombros. Já nem ouço, se é o Destino que chama, futuro oco numa bola de cristal. Abro meus olhos, e o que vejo é quase parte do que sinto: a noite tristonha desenha-se como um deserto, onde meninos enjoados de broa e absinto vagam despertos e prestes ao suicídio.
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mulher “No teu cabelo negro, brilham estrelas.” Elizabeth Bishop
kátia borges Há uma mulher chamada nome cujo rosto desconheço. Sempre que chego, dizem: “oh, ela saiu daqui agora mesmo. Ah, essa jovem senhora sabe a autora, tece com finos dedos fios de ouro envelhecido, seus cabelos, manto amarelo. E o universo inteiro cede a um encantamento que ninguém consegue nominar. Há uma mulher chamada espelho.
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um bom dia para morrer “Volto pálido para casa...” Drummond
kátia borges Um dia bom para morrer é sempre hoje. A alvorada nos engana, hoje é o dia. Ir ao bar com alguns amigos, sorrir de qualquer coisa, recitar, solene, uma poesia. Nada nos leva até a aurora pela mão. Vamos seguindo, sós, como vimos, sóis nos dirão.
KÁTIA BORGES, 46, é jornalista, professora e editora da revista semanal Muito, do jornal A Tarde. Publicou os livros de poesia De volta à caixa de abelhas (2002), Uma Balada para Janis (2010) e Ticket Zen (2011). Na prosa, o livro de contos Escorpião Amarelo (2012). Integrou as coletâneas Sete Cantares de Amigos, Concerto Lírico para 15 vozes, Roteiro da Poesia Brasileira - Anos 2000 e Traversée d’Océans – Voix poétiques de Bretagne et de Bahia, edição bilíngue.
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everest
laurindo santarrita Do negro cisne o terno triste canto dança em alvo-gelado cume como alto elevado lume no lusófono parnaso oitocentista. Todo poeta quer assim resista o seu estro ( sem um negrume obnublando-o, ou tal qual vagalume de brilho intermitente); lançálo, então, além do verme e da traça.
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homilia
laurindo santarrita dizes o fiat lux e pela palavra própria és criado (da palavra) não que não possas enforma(r) e ar te livre mente teu próprio estro em pregar (se) da água veio a vi da no veio com sol tem sal só suor na poética pia do ver so outros sim não podes negar (a vagem) tua linguagem (linhagem?)
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nova pasárgada Para Tamara Laurindo
laurindo santarrita Vou-me embora pra Paquetá, pois lá, posso andar de bicicleta, correr na grama do parque por toda a vida, brincar, um tanto exibida, no barco de pedalar. Vou-me embora pra Paquetá! É que lá não tem ziquizira, eu curava a minha alergia com cem mil banhos de mar! O sol brilhará para sempre, não fica de tarde, nem de noite! Parar para estudar, nem no açoite e, em casa, a ducha é bem quente. No almoço, só teria batata frita, ovo, farofa, guaraná e pizza; pra brincar, minha ideia fixa, meus irmãos sem hora restrita a toda hora, em todo lugar... lá seria meu refúgio perfeito, não teria dever, só direito, vou-me embora pra Paquetá!
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a tristeza de eurídice Para Flavia Gomes
laurindo santarrita Faltou-me, então a lira destemida para ao inferno em trevas juntar-me, eu, pobre poeta menor, à minha Eurídice. Eurídice sim, ela é a mesma, desde Orfeu, desde sempre desde o sempiterno tempo do mito, incontável, mas o estro, eu sei, meu estro é menor. Menor, apropriado ao tempo, (não aquele de Sêneca, ouro fúlgido) meu tempo de pequenezas desavergonhadas e hecatombes shopincenterianas para o nada. O nada, este Deus cruel camuseano arregaçando a linha das fronteiras entre os homens. Traçando as Tordesilhas do ignoto, do ignoto não, do recusado, do outro perigoso que não quero em minha mesa (ou lembrança). Falta-me, então, a lira destemida para ao inferno em trevas juntar-me eu, pobre poeta menor, à minha Eurídice. Não falta nada, que o inferno é o medo, Nietzsche já o sabia, alegremente, e sabendo disso, dançava lépido sobre pianos. O medo é muito grande. Eurídice, eu e você ficaremos sozinhos, sozinhos demais, sozinhamente.
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a gorda margot laurindo santarrita Nas breves alças da noite eu galgo e, célebre, evolo, temerário em sua nua alma. Seus olhos clamam por cometimentos terríveis sobre a seda encardida deste lençol. Entrego-me absorto, compassivo, como um santo.
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gps
laurindo santarrita No coletivo, o motorista consulta, pio, inequívoco, a caixinha que, quieta queda, sobre a direção; e que ela, então, desvele, quem sabe, um caminho que leve, revele-se, bem reto ao coração.
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mariel ressureto laurindo santarrita Eu sou Madalena. Eu vi Mariel ressurreto em seu corpo glorioso com sua filha manipulando livros e reclamando dos preços de romances medíocres no odor sepulcral da Livraria Cultura no Passeio. Primeiro a divisar sua glória, fui contestado por Anderson, seu amigo Tomé. Nem o palpar das chagas o convenceram, Supertomé, incrédulo. Viveu Mariel, então, mas precisamos impedir sua ascensão seu Mar da Galileia. Sem Mariel, aguardando sua volta, profeta ácido dos arrabaldes de Jerusalém, banido dos fariseus e escribas, indispensável a sua rebelião, sua eterna repulsa aos vendilhões homiziados no templo. Senão, quando retornará Mariel? Ou seria, então, um Pentecostes maldito quando todos, cheios também de vinho doce soltaríamos, de nosso lábios serrados, virulenta, sua língua de fogo?
LAURINDO SANTARRITA é carioca da Ilha, professor da rede pública, autor de Dinâmicas Paragens, no prelo.
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luciano lanzillotti Preencho ficha no banco. Desejam saber sobre a saúde, as dívidas, os sonhos. O homem de terno digita sem parar. A roupa com vinco parece ter sido comprada ontem. Sei que por detrás da aparente calma há alguém que curte música, praia, cinema e desejaria não estar ali. Assino tudo e volto para casa. A saúde, a vida e os sonhos devassados. Mas a poesia íntegra e a plenos pulmões.
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luciano lanzillotti Esse silêncio que se aproxima de mim, nessa quinta feira de maio em redemoinho. Não o conheço e tento examiná-lo, como se disso dependesse a existência. Sei que certas vezes ele recai sobre mim. Procuro respostas, tenho perguntas? E talvez brote daí esse silêncio cercado de arames farpados e espinhos: por onde tento seguir, algo de mim permanece preso. Um braço uma perna. Embora a manhã se dê ao ensolarado, tenha título, casa e conta bancária. Esse silêncio surge como sinal de alerta de que nada está pronto: é preciso cavar ainda.
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luciano lanzillotti Nada a contar, a não ser o resto de fruta dentro da xícara. O inverno começa com calor, mosquitos, barba por fazer. A cidade se movimenta como sequer existisse: são pessoas, cães e bicicletas em passo acelerado de silêncio. Fico para trás, por um tipo de aproximação só possível na distância. Há egos, imortais, banqueiros e caixeiros viajantes: todos vão rumo ao mesmo fim, mas quem dá por isso?
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luciano lanzillotti Ledo engano achar que me importo com tua conta corrente com teu carro do ano ou aquela viagem por lugares distantes. Quero um milhão de vezes mais do que tudo isso. Quero infindáveis galáxias, marés e ventos.
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elegia suburbana luciano lanzillotti Caminho com os pulmões repletos de monóxido de carbono. Carros importados tomam conta da paisagem: japoneses, chineses, americanos. Cercas elétricas, câmeras, barricadas. Há algum lugar onde ler e ser feliz por aqui?
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luciano lanzillotti Desapego livros. Carrego histórias inteiras na retina. Máquina sem molas ou chips, recordo aquele dia aquele texto, aquela rima, tal qual o conto de Borges. Reverbera a lembrança do jamais conhecido, a experiência do impossível e do não-vivido que permanece em mim como um órgão que teima em não aparecer naquela tomografia computadorizada.
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luciano lanzillotti Acordei mudo. E o mundo verborragicamente barulhento. Então,enverguei a cabeça, como os girassóis no inverno. Até que algum sol possa derreter a neve, que não é do tempo, é da vida.
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luciano lanzillotti AlĂvio, fim de amor: Dois saquinhos de chĂĄ na mesinha da cozinha, tudo acabou.
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luciano lanzillotti Os sonhos antigos se fecharam em um ciclo, onde sequer se lembram de mim. PaĂs do nunca mais, do volto logo, do atĂŠ breve, do quem sabe um dia. Mas, frase feita, tudo passa. Inclusive a borboleta amarela que insiste em pousar nesse girassol de plĂĄstico.
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lições da contracorrente luciano lanzillotti Caminho ao lado de pessoas com fome, sem casa ou título. Lutam pelo pão de cada dia, pelo remédio caro da farmácia, por um lugar no chão. Nada sabem sobre ti, Walt Whitman. Nem de tuas armas e escravos, Arthur Rimbaud. E atravessam a rua como se houvesse algum tesouro ali na esquina.
LUCIANO LANZILLOTTI
é professor da rede pública, mestre e doutor em Letras pela UFRJ com pesquisas sobre as poéticas de Manuel Bandeira e Ruy Espinheira Filho.
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jogos de azar
“What a wonderful world!” (de Bob Thiele & George David Weiss, na voz de Louis Armstrong, é claro)
marcelo sandman
1.
2.
MOLOTOV
luz, câmera... ação! (depois é confiar no editor)
Arremessou o artefato contra o ônibus lotado. Juntou-se, em seguida, aos demais. “Façam suas apostas”.
Sim, certeira, a bala de borracha, no olho da repórter. Certeira, no olho da repórter, a bala de borracha, sim. No olho, sim, certeira, da repórter, a bala de borracha. De borracha, sim, certeira, no olho, a bala, da repórter.
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3.
4.
escravos de jó
no ponto errado
Uni, duni, tê, salamê minguê,
Quem são os pais dessa menina?
três mindingo colorê, o escolhido foi...?
(Cadê os pais dessa menina?) É isso essa menina? Cadê?
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5.
6.
pega, mata e come (o primeiro alexandrino a gente nunca esquece)
direto ao assunto Aqui é sempre conversa franca. Aqui ninguém enrola: é curto e grosso. Aqui a gente joga gasolina
Um jeito cheio de trejeitos ao caminhar.
e taca fogo.
Um certo requebro, quem sabe ostensivo, ou se instintivo, quem sabe o quê? Um modo de dizer a que se veio ou não se veio, enfim. Foi-o-bas-tan-te-pras-qua-ren-tae-três-fa-ca-das.
MARCELO SANDMAN
nasceu em Curitiba, em 1963. É professor de literatura portuguesa na UFPR, compositor e poeta. Publicou os livros de poesia Lírico Renitente (2000), Criptógrafo Amador (2006), Na Franja dos Dias (2012) e A Fio (2014). Lançou os CDs Cantos da Palavra (1998), em parceria com Benito Rodriguez e interpretações de Silvia Contursi; No Silêncio da Canção (2014), junto com o grupo ZiriGdansk, com quem vem colaborando nos últimos anos; e Conselho do Bom (2014), em parceria com Cláudio Menandro e Benito Rodriguez.
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TODA MATÉRIA É LEVE QUANDO DITA LEVEMENTE MÁRCIO-ANDRÉ poderia ter nascido em cada cidade do mundo com uma roupa diferente em uma casa diferente e poderia ter tido os mesmos amigos com outros nomes e falar tudo outra vez em diferentes línguas para chegar àquele mesmo instante vindo de distintas trajetórias: há tantos infinitos dentro do infinito e tantos nomes para a infinita possibilidade de ser quem se é que o infinito não se reduz a semântica de infinito: num café de cada cidade o mesmo grupo de gente repetindo-se em outras caras cumprindo os mesmos gestos diante das mesmas piadas: por mais distantes ou alheios os lugares permanecem lá à espera do jeito que sempre foram na nervura luminosa da noite suportando em si a mecânica de se vivê-los
sair de casa sem o idioma e voltar ao mundo pelo caminho mais curto sair da cidade e sair do nome à espera que da ausência de antônimos surja uma qualquer semântica de afetos selvagens toda fronteira é mais verbal que física: no perímetro da língua todo um contorno de corpo e os pensamentos só existem enquanto pensados na erosão do limite da expectativa do som pelo mínimo dialeto das máquinas: serão as máquinas nossa única herança as únicas que nos rangerão versos de amor até o fim com sua devoção aos mantras tentarão compor obra maior que a vida sem entender que a única tarefa razoável do poeta é noticiar o fim do mundo
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esquecer a própria língua e assimilar todas as outras para encontrar no mal falar destas a pronúncia exata daquela para chegar ao idioma máximo somatório de todo o intraduzível no confronto das discrepâncias uma palavra que é a mesma em tantas línguas inventa aquela que não está em nenhuma: foi preciso seguir o português de trás para frente no caminho inverso até sua origem me apaixonar mais por fonemas que por gente descobrir que a língua está mais nos palavrões que nas gramáticas: e agora da raiz de toda deslembrança buscar pela fala sem origem de um idioma sem origem para viver fora de qualquer lugar como as vezes a vida parece vivida fora de nós: porque a história de nossa língua é a história dos nossos amores e entre eles e o esquecimento das palavras praticamos o sotaque dos banguelas
um homem fala diariamente ao cão o cão compreende até onde o afeto permite – o homem se humaniza com o que há de humano no não compreender dos cães como se preexistisse animal no fim do animal ou fosse canto de outro canto no anti-dizer do latido ainda perto de onde estamos quando somos o outro no oráculo dos afetos: as cidades não estão somente no espaço estão no tempo e nós no tempo delas aprendendo sobre o mal: no limite do pátio o cão mija num limoeiro dourado fazendo celeste o seu entender de onde começa o cão de onde acaba o homem
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como a transparência na água o esquecimento carne do que não se vê fazendo cintilar o que oculta – o que foi esquecido volta para fora do tempo: mas é difícil esquecer quando há tanto por lembrar compras no guanabara jantares no habbib’s seu biquíni azul contra o azul do azulejo da piscina a bicicleta abandonada na mudança do antigo apartamento: temos em nós um templo onde habita toda ausência e amamos as pequenas paixões para amansar essa paixão enorme para voltarmos a viver na casa que deixamos: hoje eu sei o que você sempre soube que tudo pode ser justificado e engrandecido sem méritos que nascer é colocar o nada ao avesso que o amor dura mais que os amantes e ainda assim eu poderia hoje ter dito fomos o princípio e o fim de uma vida dentro da vida imensa: fomos sobretudo um lugar estranho no mundo integrais no poema incompletos na totalidade dos dias
mulheres de cabelo curto diante da multidão malévolas como o destino pelo que sua essência têm de nebuloso em nossa existência: mentimos o amor para que se torne real ao retirar da ficção o que há de verdade: mulheres de cabelo curto permeiam o pensamento como as moscas sarram nas vacas o jeito de fazer o ar parar a volta delas de equilibrar o queixo sobre a linha do horizonte afagando a faca de meia face dessa lua inox com a arquitetura dos próprios filamentos em que a complexidade da nuca tem igual simetria a singularidade do ocaso: essa mania abominável de serem únicas ao extraírem do múltiplo a singularidade que faz um ser tão único que somente este pode ser este: não é possível aplacar a paixão por mulheres de cabelo curto ao existirem fora do pensamento e como erva e como mulheres e com o cabelo curto
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filha não sei quem é seu pai: naquela noite era um estrangeiro e os estrangeiros não têm nome viajam do esquecimento para dentro e só quando tento recordá-lo vejo estes seus olhos e em seus olhos vejo todos que por um dia amei todos aqueles rapazes em seu cabelo e coração: filha naquela noite partimos sem nos despedir ali não sei onde sobre o pacífico entre hemisférios onde você foi feita filha e eu ilha da filha: todas as ruas já têm nome é preciso mudar de país para percorrê-las a primeira vez eu percorri você muitas vezes minha filha até encontrá-la você é o fruto mais sincero do meu amor por você poesia de partidas na simetria dos acidentes
ao estar aqui não desejo estar noutro lugar a isso chamam felicidade: num sebo em budapeste aprendi que fumar é o mais extraordinário dos atos humanos até o ministério da saúde adverte: a alma-flor do fumante pelos dedos fumar e ser feliz e invejo cada fumante e livreiro que reconhece no vagabundo o anjo que busca em si mesmo: mas apesar de toda poesia contida no tabaco seguimos firmes sem ela nascemos para dominar o mundo com delicadeza mas fomos educados a matar qualquer inseto que nos suba pelo braço: nenhuma piedade para os que partiram só de ida estar vivo é a forma mais banal de estar no mundo e corremos por ele como topônimos de nós mesmos: tantas vezes dormindo na beira dos rios em casas de desconhecidos que o mundo ficou simples há algo de galáxia e estrela nas teias de aranha nas capitais formadas de dentro para fora até a extremidade de cada habitante as cidades que nos contém contidas no mapa de todos os subúrbios
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biblioteca – prisão de livros por tornar o próprio livro presídio museu – prisão de coisas por nos aprisionar fora delas: que livros e coisas estejam ao ar livre que sejam roubados destruídos queimados – nada que não possa ser queimado vale durar: a revolução não existe as coisas já são revoltas em si mesmas basta acioná-las em sua revolta tanger o coração-coisa ali onde repousa no próprio azeite: não a revolução dos acadêmicos com facebook seus likes revoltados acomodados no pensamento dos que pensaram antes: é preciso intervir em toda forma de tempo é preciso outra taxonomia para o destino dos homens não submetida ao medo dos homens no que a vida cumpre dos búzios cumpramos da fúria: é preciso sim esse aparato da ira para afastar-se perante uma ida que será antes um retorno buscar em novas frases a explicação do óbvio: o livro é somente uma coisa que guarda a chance de ser aberto
mudar de país já não faz diferença os feriados são os mesmos com datas distintas os sotaques são os mesmos para outros ouvidos a burocracia é a mesma com outros nomes para os papéis: se pudéssemos morrer somente uma parte – essa que é infeliz – seria sim possível partir de um lugar a outro como se fosse mera questão de deslocamento espacial mas é preciso levar todos os deuses dentro de si ante o trânsito das horas: o que demarca as etapas da vida são as mudanças do numero de telefone e delas herdamos apenas as infinitas possibilidades de uma chamada por engano: nenhum lugar cabe totalmente em nós com suas pedras e suas pontes com seu ar cheio de cor a volta das borboletas ao viver na convergência das línguas conhecemos a dinâmica entre os acentos: mudar de país já não faz diferença as vidas ali são as mesmas em outras pessoas
MÁRCIO-ANDRÉ é escritor, performer, artista visual e sonoro, nascido no Rio de Janeiro em 1978. Seus poemas foram traduzidos para mais de dez idiomas, aparecendo em publicações como Neue Rundschau (Alemanha), Rattapallax (EUA), Action Poétique (França), Poesia Sempre (Brasil), Tuli & Savu (Finlandia), Avocado (Reino Unido), Ambrozia (Hungria) e Téchne (Itália). Sua poesia também inspirou o curta-metragem The Gospel According to the sea e uma peça coral de Jean-Pierre Caron. Escreveu sobre poesia em veículos como O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de Minas e El País. Atualmente vive na Espanha.
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nydia bonetti
1 procuro no escuro – a palavra nova tateio espaços risco rasgo não posso vê-la tento tintas outras – tons texturas na minha pele escrita caneta tinteiro mata borrão borracha papel de arroz tão fino requer cuidado
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era manhã bem cedo e se julgava pássaro
escarpas
quando caiu a tarde se viu pedra
onde crescem begônias
(e sua cota era apenas um dia)
intocáveis plenas
vida de pedra deveria ter vivido
inacessíveis não viveu sonhando asas
(meus olhos vagos
pássaros — teriam pousado e feito ninho as recriam) no vaso sobre a mesa cultivo begônias inventadas
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teu rosto no retrato / os olhos fundos perdidos como quem busca vida distantes como quem sabe o tempo verdes em sépia na fotografia grafada face / sagrada grafia lábios cerrados como quem pressente o grande silêncio
no território imperfeito em que habitamos a pele é fronteira afetos são águas que fluem / em fios ou caudalosos rios ausências / profundezas abissais memórias são trilhas / que a mata densa e invasiva da vida cotidiana encobre lentamente
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o poeta mergulha no inferno do seu mundo real e silencia quando voltar ao paraíso inventado (em cápsulas) o poema retorna com suas verdades sempre tão relativas (precárias) a durar o tempo do espanto dos olhos
o tempo insiste em arrastar móveis pesados há sempre um piano que não passa na porta notas suspensas cordas frágeis que sempre ruem antes que o piano toque a rua em áspero ruído
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quando a noite me olha, na sua hora mais escura e o silêncio me encara com seus olhos de pedra e murro paraliso pela vidraça chuva negra de ferpas e granizo estilhaços de vidro e vento tentam furar meus olhos aquários vazios onde o último peixe morreu de sede e medo do gato imaginário - olhos de fogo e faca - fera que jamais existiu
e o homem se curva - parece ser sina trocar o fardo milenar das culpas pelo pós-moderno fardo do vazio há que se ter um peso a ser carregado a leveza parece não ser humana não se sustenta. enquanto barro:-pesa
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fogo apagou! gritava o pássaro da minha infância pressagiando as cinzas que viriam
se a tua fome for feito a minha de palavras e (in)quietudes faz como eu então bebe os silêncios em goles profundos e o verso:- rumina lentamente
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permeio entre mundos - e sub deixo pedaços de mim por todo canto trago pedaços de outros tantos do mundo das formigas trago a terra na costas do mundo das estrelas o brilho nos olhos do submundo o medo, a nóia, a faca no meu pequeno mundo cabe um universo onde em cacos me perco e me refaço
plenos de nada meus espartanos olhos esperam (aspiro o pó de Atenas) caminho pelas vinhas dragas que me formaram lacônicos pântanos arco / flecha e em minhas mãos — maçãs
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a poesia fez de mim uma ilha onde pássaros pousam queimam os pés — e partem
que o sangue escoe quente viscoso fosco no humano fosso (indecifráveis cantos) que fragmente a bomba e fira olhos e bocas e que se rasguem bandeiras — inúteis tecidos fronteiras tudo parece arder — então por que poetas só ousam tocar nos visgos dos corpos do fogo das suas próprias peles (devassa inocência) e dormem — imersos em seus silêncios
NYDIA BONETTI
foi publicada em 2012 pela Coleção Poesia Viva do CCSP, na antologia Desvio para o vermelho (Treze poetas brasileiros contemporâneos) e, pelo Projeto Instante Estante, de incentivo à leitura, Minimus Cantus (Castelinho Edições). Lançou seu livro Sumi-ê (2014, Patuá). Tem poemas publicados nas revistas Zunái, Cronópios, Musa Rara, Eutomia, Germina, Mallarmargens e outras. Faz parte da coletânea Qasaêd Ila Falastin (Poemas para a Palestina), pelo selo Zunai, e da antologia digital Vinagre.
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antes de mergulhar Ramon nunes mello
I olhar o mar e n達o pensar tudo o que sei fazer
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II
III
isso quando vocĂŞ nĂŁo aparece rodopiando rodopiando aparece entre as espumas
estranha eternidade daquilo que amamos em ondas repetimos gestos de nossos antepassados sem saber onde começa onde termina a verdade o desejo
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IV
V
ouço o balanço longe daqui enquanto você rabisca uma ilha colorida num amassado pedaço de papel
levante vá até a janela antes de mergulhar mire a felicidade dos pássaros acima das pedras nus
Rio de Janeiro, abril/maio de 2014.
RAMON NUNES MELLO (14/02/1984), natural de Araruama (RJ), é poeta, escritor, jornalista e ativista dos Direitos Humanos. É autor dos livros Vinis mofados (Língua Geral, 2009) e Poemas tirados de notícias de jornal (Móbile, 2011), contemplado pelo Edital de Autores Fluminenses 2010/2011.
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mareio
reinaldo ramos Onda de pedra e peso valor sem marca de preço massa de mar e tempo move o intento e o medo nasce por onde não penso age por onde me esqueço.
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noite da criação reinaldo ramos Há uma triste garoa há um réquiem de muitos silêncios há uma homenagem solene para uma revoada de melros mortos Há alguns suicídios por tédio há a gênese de novos tumores há escolha para síndicos de prédios para uma revoada de melros mortos Há uma dança macabra há um cortejo fúnebre há amigos de muitas solidões para uma revoada de melros mortos Há um chorar condoído há rumores apocalípticos há adágios para o nascer do dia para uma revoada de melros mortos Há glaciares se derretendo há muitos olhares incrédulos há destinos se precipitando para uma revoada de melros mortos Há uma bandeira à meio-mastro há transatlânticos ancorados no porto há rancores multiplicados entre nuvens para uma revoada de melros mortos Há canções para o morrer da noite há tremores de mais asas débeis há impenetráveis cegueiras vivas para uma revoada de melros mortos.
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engenho
reinaldo ramos A engenharia é grande perto da poesia que não serve pra nada perto da vida que não tem sentido a engenharia que é desabrigo.
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poesia + vida
reinaldo ramos Eu quis percorrer uma linha reta entre René Descartes e Waly Salomão mas a linha saiu torta linha sem viagem certa de única mão Entre a estação de Tóquio, a lua, o amor perfeito e outros lugares que eu não conhecia restou a Penha, a rua, a eterna procura e a estação de Olaria daqui, eu me via A linha que quis percorrer em viagem de ida constrita feito aneurisma na aorta caminho que eu já sabia Escrita sem volta linha poída.
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nuvem
reinaldo ramos Massa d´ågua que flutua e imprime com sombra seu rastro na rua.
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eidos
reinaldo ramos Às vezes sacrifico a rima pra rimar a ideia. Às vezes sacrifico a ideia pra rimar a palavra. Às vezes uso a palavra pra arrimar a ideia. Às vezes uso a ideia pra dar rumo à palavra. Às vezes amarro palavras às ideias e ideias a coisas (mas é muito às vezes). Mas aí vem o vento e desarruma tudo.
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chuva
reinaldo ramos Pingo d’ågua da chuva fria molhando fino fio preto pendurado se reflete luz fica fåcil brilho feito fagulha e embola na imagem do barulho da vista.
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o vento
reinaldo ramos O vento trouxe e espalhou as nuvens... estacionaram alguns dias, alguns quilĂ´metros acima de mim foram meu teto e me emprestaram seus documentos. passei entĂŁo a me chamar nuvens e a tocar o corpo caloso do cĂŠu e suas trincas.
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ouviste a moça? Para Jorge Tufic
reinaldo ramos Meu caro Jorge, sabes bem que quem trabalha é que tem razão mas hoje talvez sintas umas brisas adventícias de cepa egípcia e possas andar sem camisa rabiscar uns poemas cantados pra repartir sem remorso e sem ânsia arriscar uns penteados bonitos e cantar o mesmo mantra diuturno feito faz, assim assaz bem-feitamente, o bem-te-vi E por nisso falar, ouviste a moça louçã da província marítima e cabeça vã? Sabias da sintaxe dos sabiás dos otorrinos e dos taxistas que sabiamente nos ouvem e têm na moela o alpiste-palavra debulhado pelas moendas dos cata-ventos de moto-contínuo e um bom bocado de orações insensatas que o sol nos derreteu da moleira? Se debalde desexplicamos com as papas da língua espalhando letras em bons lençóis de renda em tropéis de lustrosos alaúdes e com eles e elas serigrafamos poemas benfazejos nestes brejais santos e neste céu defronte a água eu cá te deixaria, a granel uns poemas dedicados rústicos e delicados feito ambrosia e rapadura Olimpo e o Cariri talhados num alfarrábio de granito, à graveto na entrada da casa do tempo. 141
heteronomias
reinaldo ramos Ninguém sabe meu tanto não sabido e é porque dele só sei eu mesmo que dele tanto bem zelo Para que ninguém o veja e eu me proteja do que de mim os outros demais puderem pensar Que lhes dê de saber somente o tanto que minto quando sou verdadeiro e que no uso desta atribuição não me falte nunca a necessária altivez que dá fiança aos meus perjúrios Que lhes seja sempre propícia só a mesma verdade-metade que também me convém E que por fim, da crença fiel a que me depositam seus titulares eu recolha seus os justos juros e faça da usura e do blefe meus mais distintos e caros recursos de autopreservação.
REINALDO RAMOS, carioca de 1978,
é da classe média suburbana, tem inteligência mediana e é, seguramente alguém bem pior que você.
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alvéolos de petit pavê ii ricardo pozzo São ríspidos caminhos que nossos passos percorrem rumo à desilusão necessária. Mas, o fardo luminoso da consciência em conhecer a tênue diferença que há entre cada um dos seres humanos, leva-me à compreensão de que nossa igualdade seja tão significativa quanto a variabilidade da espécie.
RICARDO POZZO nasceu em 1971 em Buenos Aires. Mora em Curitiba desde 1975. É o curador do projeto Vox Urbe, do WNK Bar e editor assistente do Jornal RelevO.
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metafísica da presença nas flores ROBERTO ANDREONI há presença na ausência das flores; nos botões das flores, também. presença outrossim na ausência dos mesmos ditos botões. presença, seja na ausência do florescer, ou no fluir do florir. árida presença nas pétalas secas. apenas a primitiva presença onde jaz a estiagem de findas flores. presença nos ciclos soterrados. na impermanência das flores, o substrato, a presença metafísica.
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filosofia aquática ROBERTO ANDREONI Zeus troveja sobre os homens. deságua. Tales de Mileto mira o céu, contra os pingos da chuva; não vê o deus por trás das nuvens. só água. a tempestade trasborda as margens do rio. Heráclito é tragado pela correnteza. até esbarrar na barragem construída por Platão. o rio não flui, o mundo se divide. de um lado a pele molhada, do outro a pele das peles. Santo Agostinho, no alto da barragem, denuncia o mal nos homens que livremente banham-se no rio sensível. Spinoza afoga Santo Agostinho. Afoga Deus, os homens. Submerge tudo. Benze a água. o ato libera o rio sob o aval divino. o mundo se reconcilia. a substância aquática transborda ao infinito. o desejo de Schopenhauer atrai uma torrente arrastando todos.
Schopenhauer busca no ruído do rio uma música pra aliviar a dor de ser por ele tragado; pra ver algo além da representação do rio. Nietzsche ri da rabugice do velho Schopenhauer. mergulha no rio, nada de costas enquanto solta esguichos de água pela boca. o rio vira um oceano de redemoinhos interconectados. Nietzsche da uma bomba. a água espirra em Freud que se sente culpado. [a mãe o proibira de se molhar] Deleuze zomba Freud: “Spinoza, Nietzsche, vejam isso, Freud teme o nado, e põe a culpa na mamãezinha”. 145
samudaya: da natureza ao sofrimento ROBERTO ANDREONI sentado na beira do rio. isso bastaria. mas a vara pensa poder algo real fisgar. no aço do anzol a luz do sol reflete na retina; sentado na beira do rio. isso bastaria. mas há aquela expectativa sobre os peixes cartesianos. o olhar fixo na outra margem, na imagem rija da árvore.
sentando na beira do rio. isso bastaria. mas o teso corpo aproxima-se, pestilento e sólido.
sentado na beira do rio. isso bastaria.
só o corpo existe; com suas veias enraizadas na cena.
mas lá no alto há um corpo que o rio traz em sua fluidez.
sentando na beira do rio. isso bastaria.
uma emoção cristaliza-se. some o rio, rui a árvore.
o corpo se distancia, perde-se no horizonte. as coisas à existência retornam. na linha uma fisgada alerta. a imagem do corpo enrosca-se em aço, no anzol. sentado na beira do rio. isso bastaria. 146
homo taxatórios ROBERTO ANDREONI por favor, não diga quem sou. se eu estiver de bom humor, pode dizer quem acha que és, mas não mais me diga quem sou. ando exausto de tanto ser; já fui filho dos deuses gregos que deixaram meu céu negro, com raios, trovões e tempestades. já tive nas minhas entranhas, o fogo que a tudo transforma e, sempre a mim muito estranhas, outras tantas perenes formas. também fui filho do pecado e até hoje sofro este fado; fervoroso orei ao meu deus pai, mas não sei se hoje estou perdoado. outros tempos muitas rasuras; de bom selvagem, máquina, fui tábua rasa e razão pura; vários homos e até macaco. depois vinguei como desejo; síntese de ocultos poderes. o adeus àquele pai estranho deixou-me neste mar de seres. poderia até estar certo, Sartre, mas não me diga que sou livre, caso contrário me contradigo, e esse poema – já preocupado – perderia todo seu sentido.
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toque místico ROBERTO ANDREONI profundos os homens do sagrado toque; aqueles que discretamente arrumam os quadros tortos em retas paredes. são seres essencialmente sensíveis à dinâmica dançante dos opostos: tanto à fria escuridão na ânsia por sol, quanto à queda de Lúcifer ao inferno. parte, deles, uma teleologia do encaixe; o fim sexual é apenas um exemplo. a vontade de solucionar é metafísica, pois habita o inconsciente destes homens um indomável aracnídeo ontológico a compor em teias a sinfonia divina que harmoniza todos os elos simbólicos e dá o tom holístico ao universo.
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poema existencialista ROBERTO ANDREONI a rua da minha casa passa a existir. na calçada a flor prensada pelo passo apressado. entristeço por ela; somos tudo que existe no irromper do momento. um gato se aproxima, cheira a flor. o gato floresce em mim, como o saldo da cena pensada. o gato e a flor são eu. os pensamentos, o ser, o signo, sou o sim da consciência. a existência divaga-me, eu divago com ela. fecho a porta! a rua inteira entra comigo, sem pedir licença.
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vício cibernético ROBERTO ANDREONI A tela, parto de plástico, rompe um processo catártico. Ela, meu espelho e desejo, meu holograma e meu ensejo. Nela sou um filho de mim. Do real concreto um login. Nela sou além da carne e osso, mas muito menos que posso. Um espírito apreendido; na rede, apenas vestígio. A verdade é deletéria nesta inércia da matéria. Aquém: um zumbi que é pútrido. Ali: uma foto, um músculo. Há paixões, gritos no vácuo. É a vida num pote parco.
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passarinho anarquista ROBERTO ANDREONI passarinho anarquista à moral dá seus piolhos. voa por voar, sua conquista. canta o canto libertário. corta o céu [o bico afiado] das vãs desigualdades. sua acrobacia, um peteleco nas amarras da gravidade. dá de asas frente à ameaça dos fios da rede elétrica. parado, ou mesmo voando, caga livremente: seja neste operário ou naquele empresário. passarinho anarquista, à moral dá seus piolhos.
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seres
ROBERTO ANDREONI é preciso crescer, estremecer as barreiras. ondas entre ondas; mergulho, salto, enfrento. é preciso espatifar a cara; quebrar-se em mil pedaços; recompor-se, reconfigurar-se. uma rasteira, um susto. reajo sagazmente como um samurai certeiro num contragolpe. é preciso ter espelhos e olhos de águia. ser mestre zen, yoga; respirar o universo, ser fluido, ser o fluxo. fazer da correnteza impulso. ter pulso firme. equilibrar-se sobre o fio da liberdade. é preciso deslizar sobre a superfície áspera; purificar o ar denso; acender estrela por estrela, centelhas na escuridão; penetrar no âmago das coisas; ser pedra, flor, rio. e mesmo dormindo, é preciso agilidade; ser raio que rompe sonho, monstro e medo.
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umbanda
ROBERTO ANDREONI a vida é uma bússola que não cessa de girar. não há norte, não há sul, ou porto para aportar. sigo a essência do girar; no horizonte tudo passa, passa Oxossi e passa mata, vejo Iemanjá e vejo mar. a mistura vira branco; do cerne a luz de Olorum imergindo todo Santo no rio sublime de Oxum. neste interior lampejam caboclos e preto-velhos, que profunda paz despejam o preparo para o prélio. o caminho não é o outro; não é o destino da flecha; é o centro que reluz o ouro, do fogo divino a mecha.
ROBERTO ANDREONI nasceu em 1984, em Araraquara (SP). Graduou-se em História pela UNESP. Atualmente cursa mestrado na área de Teoria da História e se dedica a pesquisar a produção historiográfica sobre a escravidão no Brasil. Conciliando seu trabalho de pesquisador com a prática literária, o autor também se dedica à poesia. Em 2013 teve sua poesia Compasso da Incerteza publicada na antologia editada pelo 13º Concurso de poesias da UFSJ.
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a voluptuosa
roberto bozetti me des abotoava de alto a baixo e em cada beijo entreme dizia: só curiosidade (mais o desejo que (ela não dizia (entre /meteu a mão as beijo)sim/ retilínea e ín greme infrene foi até o fim entre colando língua olho glande -cortando sedosaesguiame des
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bar mondego (um exercício de cubismo lupicínico) “mas o homem espia o homem, inexoravelmente” (Cyro dos Anjos)
roberto bozetti falas baixo – sim? – assim te vigio quase acaso encostada no ombro passas num braço (que nem um pedaço tudo aceso para mim teu caso o mar inteiro diviso do basculante do banheiro noturno cartão-postal do Rio de Janeiro felinas pupilas mijando bebendo milhares) não ouço quem ouve é outro sucede que o outro é sucedâneo.
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suspeita
roberto bozetti - aqueles dois, eles são gays? - um só. o outro é ambos.
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obvers達o
roberto bozetti farsas existem. um pelo-sinal um beijo nos ombros um gemido tudo pode ser ou n達o ser pegar a muque gozar a entre beijar a dente pode ser n達o ou tudo ser como converter.
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meritocracia à brasileira (no quartel de abrantes)
roberto bozetti de fato ele é o melhor para posto que o outro também concordo. ainda que a contragosto acontece que a gente não pode só se saírem as novas normas saírem que eu digo é: se vierem por escrito como é pouco provável vai tudo continuar como antes por aqui ao passo que lá em cima eles também não vão ter por que me - crau! lógico que tem um lá em cima ou você acha que sou eu que dou as cartas aqui manda quem obedece
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diadorim
roberto bozetti Tivesse de fato sido e se teria sabido. São artes de inventivo engenho de fabulador. Fronteira do fabulado se atravessa manhã cedo. Chega a noite continuo ficto assim assim nu. Quando lavarem meu corpo esquecerão o encardido. Alguns dir-se-ão: ponte, extravio, ter sido ponto de amarração sem volta, pouso, sentido. O Letes me embalsama por quem não sabe do Letes mas sabe como se lava como se cuida e se esquece. O que não se tatuou foi corpo de nascimento. Diadorim, à margem vamos parceiros de invencionice. Você atravessa o rio eu o esquecimento.
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guaratiba
roberto bozetti Lapas e mangues e trilhas, mais um fino artifício para não dizer: nada; nada, cidade e restinga, península e o mais do que se viu se viu no rosto e não era nada que mangue algum urdisse que lapa alguma ocultasse, que trilhas conduzissem a passo ou sabor – não ver o rosto por ser o rosto, melhor, por estar dentro dele, ali mas querendo (por poucos minutos) estar morto.
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ilha baixinha
roberto bozetti Uma ilha estrábica e suas reentrâncias golfos, angras, scylas, caribdes me suga abismo sulco o mar mexido o saco de ânsias onde estive quase por sorver-me lembro-me: chegavam noites e passavam dias sem amanhontem sumiam em travesseiros passavam golfinhos cabelos onças famélicas e um desfile mondo monde mundo o que rodei o que vou rodar para perdê-la de mim ilha e suas promessas a que não eu soube chegar por mar e da qual despeço-me de longe em sobrevôo ela lá ilha baixinha lá embaixo a que não habitei
ROBERTO BOZETTI (03/03/1956) tem dois livros de poemas publicados, ambos pela Oficina Raquel (Rio): sua produção dos anos 1980/90 saiu em A tal chama o tal fogo (2008); no ano seguinte publicou Firma irreconhecível. Além do blog individual que também se chama Firma irreconhecível (robertobozzetti.blogspot.com.br), é mallarmago, isto é, autor fixo da revista de arte e poesia contemporânea Mallarmargens (www.mallarmargens.com). Professor de Teoria da Literatura na UFRuralRJ, em Seropédica.
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rimbaud estava certo sandro ornellas não se é sério aos 17 anos e se mora defronte ao mar com suas sereias seviciantes; não se é sério nem eterno no carnaval, junto a lolitas e odaliscas; não se é sério nunca quando se descobre que meninas adoram poemas românticos; no entanto me apaixonei aos 25 anos por uma femme fatale e sigo sonhando com casa crianças e emprego estável.
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serpentário
sandro ornellas a serpente dos meus dedos beija o rosto que mantenho no sem fundo dos espelhos onde a luta é meu desejo a serpente dos meus dedos cria mundos sem inícios curvas sobre precipícios duro pacto do difícil a serpente dos meus dedos no vislumbre de uma aurora que anuncia a incerta hora sobre si mesma se enrola a serpente dos meus dedos inaugura junto à vida gritos danças alegrias lancinantes dores frias a serpente dos meus dedos traz a força dos venenos que com a noite correm lentos e com o dia tornam denso o meu corpo em combustão
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pós-escrito
sandro ornellas nenhuma lição a tirar desta viagem nenhuma impressão que caiba em livro nenhuma anotação competente sobre minhas gavetas nenhuma meditação sobre o cultivo de jardins apenas esse esgotamento, esse cansaço essa redundância de álcool e éter na varanda onde troco a fumaça do cigarro pela vigília dos altos prédios apenas essa repetição narcótica de tudo definitivamente de agora em diante comprometida com a incerteza do que experimento
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(clandestino)
sandro ornellas atravesso e trago a barba na face por fazer: metade na ausente precariedade de pêlos metade na presente visibilidade de pêlos ela é meu horóscopo meu ouro meu ori meu faro meu anjo meu tesouro repito meu destino assim em mim sem fim forço fronteiras não me detenho não confio nem sou confiável de mim desconfio de mim me desvio cruzar fronteiras é meu ofício minha dupla vida única minha única dupla morte e toda vida toda morte todo ofício é trabalho do corpo indeciso à difícil superfície da pele com a qual recuso ao dia e à noite qualquer proteção do convívio com os bons os maus e com a tempestade
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(travessias)
sandro ornellas arrasto o que rasga essa história atravesso estradas que se estendem à minha frente atravesso olhos alheios para os lados atravesso portas que se trancam a cadeados atravesso o campo de guerra dos doentes atravesso o avesso de cada um desses versos e canto os restos recolhidos da ressaca canto os risos e acolho o que passa por cima e por baixo lugar sem assento círculo sem centro sensação de dívida que divide a vida e dilacera adultera violenta a quimera que em meu peito mora eu que nunca fui inteiro eu filho de imprevisto destempero eu dádiva do ponto cego eu banido destino zero de afeto entre contrários opostos simétricos que apostam e se metem em contrato incompleto puro ato desejo reto resposta do futuro meu discurso sem uso (in)certo passo da dança teatro de encontros entrecortados no arquivo que sou sinto vivo
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teoria romântica sandro ornellas Uma canção me alcança na rua Uma premonição sempre afiança a força gravitacional do corpo Uma premonição a afetos e gentes E me deparo com o risco de crime o risco do mote que nada diz o risco que nada fala ao labirinto de sonho e violência desse país Escrever poesia não traz salvação ela é só antessala do que existe apesar de a thing of beauty que em algumas insiste ela é só um rumor de sombras ou a vida lançando suas bombas ela não professa nenhuma fé atriz de si mesma é parte da ralé atriz de si mesma lança-se em heráldico balé Mas toda poesia é forno crematório por isso amigo repito é falida a verdade dessa dádiva Acordo e questiono o que resta de dignidade matutina em mim a vida se acostuma à terra em festa e imita o voo dos insetos pelo jardim como sem-tetos abrindo asas Mas nós é que moramos em casas sem cheiro do que fora se passa No canto mais sórdido das grades despejamos resíduos que nos ardem e esperamos que deus ou a vida orgânica elimine essa exasperação pânica Só o que existe (talvez não seja ruim) rasteja aí a começar por mim que risco essas folhas brancas de carmim Mas merda! sempre penso num pequeno canto no fim do mundo só um pequeno canto no fim de tudo e não me pergunto como estão as coisas todas se desfeitas feias rotas como estão as coisas aqui nos confins desse país (aos dezessete de outubro de dois mil e onze) como se costuma ver o mundo daqui 167
com tanto risco e pouco viço Mas merda! a sua vida poeta e não há quem não repita parece uma fuga de casa para viver na palafita Ouvi dizer que são tempos de mudança em que a vida dança na mesa como barco à deriva no oceano insano da própria cabeça Ouvi dizer que são tempos de guerrilha como o ar que se respira que o importante é ser ilha pedaço de terra cercado de guerra por todos os lados Mas essa vida anestesia como a fome ela é pesadelo que perdura nos fundos dos bolsos insones É migalha sem fatura a poesia poeta? Falo da pequena vida com seus acidentes vida que passa vida em que passa um casal sem parentes vida que sai no vento e se perde vida que sai no vento e percebe um crepitar de espinhos ao relento e isso fere o meu desespero pois a vida é sempre muito rente e não tenho mais a ânsia de outrora de plantar qualquer semente Mas que se exploda! minha sanha é mover-me contra mim mesmo preparar minha própria carne para o braseiro deixar ir meus dedos juntos com os anéis
com que edulcoro estes papéis olhos presos no abismo sob meus pés (essa dor aguda fere quem vive muito junto) Mas há sim ainda o colo de uma mulher me envolvem o sorriso de seda os pelos de linho a saia de cambraia E ergo brindes à alegria! e me toco porque evoco a poesia e luto por seu luxo de maravilha Me toma essa imensidão me abraçam esses braços vãos me alça a violência da paixão onde pasto meu poema e onde visto vastidão Então acostumado ao crime largo o martelo na pedra e no ferro desse chão largo o martelo que me torna este cego largo o martelo ao seu próprio inferno e me alimento dos amantes eternos Todo martelo é fim dos dias quentes todo martelo grita alto e frenético e desfaz destrói humanidades com o brilho de falso brilhantes Mulheres encostam os filhos às pernas e abrem o espírito amorável pés pisam na sarça que dança e me fazem animal de confiança Só assim espero vir me destruir o verão com sua violência de amor
SANDRO ORNELLAS nasceu em Brasília (DF) em 1971 e publicou os seguintes livros de poemas: Simulações (1998), Trabalhos do corpo (2007) e Formas de cair (2011, assinado Sandro So). Atualmente mora em Salvador, prepara um novo livro para o próximo ano e é professor de literatura na Universidade Federal da Bahia.
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tagore suassuna
I
II
Deus vive em mono os homens, em histĂŠrico.
No abismo da agonia poesia era masoquismo
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III
IV
Santo Drummond
Demora o sol pra dar um mergulho mesmo com o mar aberto e molhado chamando com vento e nuvem despida.
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V
VI
Pode ser da vida virar um ruĂdo distante da velha quebrar seu primeiro brilhante diamante seu corpo jĂĄ nĂŁo pode ser
Uma bolsa de dentes e nenhuma gengiva uma grande ogiva vai gerar doentes que de pacientes merecem saliva da boca explosiva das altas patentes
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VII
VIII
De braço cruzado fitava o tédio olhar recheado de sobrancelha e aquele garoto, que tipo de defeito? – Médio!
Eu era uma ilha perdida no mundo desfeita em areia sem sombra ou remorso levava na costa um mar de segredo corria sem medo do fim do crepúsculo era tão minúsculo via o céu tão próximo
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IX
X
Amor não rima com alegria Amor não rima com beleza Amor nem sequer tem certeza Amor, amor é caso de sina Amor é posto de gasolina Amor é China, Rússia e calor Amor, só rima com minha dor Amor é pura tarde londrina
Morris morreu arte e ofício dedo e orifício coito plugado
Amor não rima com harmonia Amor não rima com destreza Amor nem sequer tem leveza Amor, amor é caso de fibra Amor não se converte em libra Amor é Piccadilly no calor Amor só rima com minha dor Amor é pura tarde londrina
TAGORE SUASSUNA
é músico e compositor. Vive em Recife mas recentemente iniciou uma turnê pelo sudeste com sua banda Tagore. Seus autores favoritos são livros de Krishnamurti e Herman Hesse.
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itinerário manuscrito waldecy paulo pereira Um jeito mudo de dizer adeus aquele mar que grita atrás dos olhos não sou eu vaga alma vazia de tantos quantos pereceu. Nas próximas distâncias me encontrará longo de idéias, sorvido de livros, orgânica biblioteca. Fachos de luz desconstruirão nossas sombras invertebradas. No final de um raro arco – íris geminado encontraremos nossos tesouros; bulas e manuais. Dias largos logo virão. Diálogos se construirão. Menos pólvora, mais poesia. Num futuro do presente simples, andaremos descalços sobre a terra que eu gramarei. [ Gramoterapia.
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depois da guerra waldecy paulo pereira depois da guerra o que nasce não é níveo é plúmbeo. Ferro retorcido e drama. Disforme chama aquece corações frios. Algumas almas sem par permanecem doentes trincam – se dentes. No solo regado a lágrimas nada brota. Guimbas de cigarro adubam o mesmo solo.
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surreal non sense waldecy paulo pereira Um plural de chão me tira do ar. Viajo non stop de mar em mar sem parar. Poucas são as virtudes na terra sem rei. Sem lei, pequei. Minha vida é viajar Benin, Paris, Nova York, Irajá. Sorry senhor, não sei sambar please, meu fluente português ne me quite pas.
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um homem
waldecy paulo pereira Um homem acordou de um sono secular sem lança, sem caneta, sem tatuagens, sem som de tambor. Um homem desperto de um sono lisérgico num quarto e sala em Todos os Santos. Ele era negro, era branco, era indio também. Ele era brasileiro, e nisso absolutamente não cabe nenhum talvez. Despido em plena segunda -feira de todas as suas metáforas, culpas e carnavais, um homem de lágrimas e sorrisos. Pleno. Com suas crenças e sua fé. De vida desimportante, anônimo, antônimo e quase gigante, um homem, aguardava sentado na janela de seu quarto e sala, aguardava um som ser posto em palavras numa metrópole sitiada.
WALDECY PAULO PEREIRA, carioca, é poeta, cronista e tradutor. Formado em Português–Francês (Uerj). Participou das atividades da FLUPP e de diversas oficinas literárias. Prepara-se para o lançamento de seu primeiro livro de poemas.
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réquiem
WILMAR SILVA DE ANDRADE meu chão é o gado pastando na margem do rio paranaíba remoendo capim verde e traçando nas pisadas fortes a infância de meus pés crianças o menino de estilingue que não matou passarinhos o menino de calça curta a galopar na velha égua pampa e buscar na manga da vargem do rio os bezerros e as vacas leiteiras mansas ou doidas daqueles matagais daquele sertão paranaíba oh meu chão minha terra paranaíba onde tantas tardes de vento puro e livre esperei uma cigana para ler e até mesmo inventar os traços marcados em minhas mãos oh chão da minha vida águas sensuais do virginoso rio da minha Paranaíba guarda para mim a infância dessa lonjura de lá
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cachoeiras
WILMAR SILVA DE ANDRADE Chorei de tanto mirar o corpo de meu pai, O corpo sozinho quente esfriando de meu pai, O Corpo quente esfriando sozinho, Chorei Arrasado Devastado Comido Bebido por um E por todos Abandonei meus sonhos meus Pés Chorei me Desesperei frente a todos, Eu E o cavaleiro ladrão de vento Orgair, Eu E a maior Antônia, eu E a menor Elenice Eu e a que chegou condor Maria Que depois Perdeu um Angel Mãe, isso não é um nome nem um chamado, É um grito, o grito mais alto ao mais altoaltar o Altar sem Andor
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menino jesus é rei WILMAR SILVA DE ANDRADE Alvez eu screva um oemaepois do atal E alvez eu screva um oemaepois da assagem E ode ser que o oema ale de uzes e ão de rzes E do eregrino que asceu na strebaria e ndou Luminado elo undo de elém e epois Orreu na ruz ara alvar os omensAlvez Eu screva um oema que ale de az Alvez A az eja um írculo de strelas adentes Aindoozinhas ao éuhuviscam a oite Que é iva e ediviva de aga-umes Leluia, eninoesus é eiÉ ei, É ei, Ér Rei.
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o miserável
WILMAR SILVA DE ANDRADE A todos eu pudesse escrever os poemas Como se escreve Tijolos Paredes Fogo Camas Tecidos Os corpos que vivem As casas Onde os corpos andam e param como fossem A mesa O campo de arremessos As bocas Que falam As palavras mais quentes e Também As mais frias A todos eu pudesse escrever Os poemas invioláveis a estranhos mundos Mesmo que fosse a você A miserável Eu Pudesse escrever os poemas A palavra casa Que fosse mais que casa pernas andando lá Dentro Rudes como As pedras líquidas Que evaporam A todos eu pudesse escrever Os poemas e depois me abandonar
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sudário
WILMAR SILVA DE ANDRADE çimjeusscsritoivevedntro de mmi eeldromeemmnihacsaaemmnihacmaa eueoajno de lux msorto os ohlos de lúzifer ejeussbiejamnihabcoa os libáoscehios de erestlas eu o ajno de luazvvio de parzservvio e fmoe fmoe e sdee de sxeojeussum jeuss de ohlosmohlados ohlandoosm e usohlosmohlados eu o ajno de luz com a sdee do mnudo asdeeemmnihalínuga o ajno de luz teprdaonacurz osbulime o ajnoridevvio de lu z abra
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lenda
WILMAR SILVA DE ANDRADE abriu a laranja com os olhos nas mãos o nariz nas unhas a boca nas sementes engoliu uma duas três quatro cinco seis sete vezes a árvore na pedra de jade e Jade não nãonãonãonãonãonão e o pai sim um galho na orelha sim um galho na orelha sim um galho no olho sim um galho no olho sim um galho no nariz sim um galho no nariz e a laranja na boca
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nume
WILMAR SILVA DE ANDRADE Eu sussurro O seu nome na floresta Mas eu ssuussuurroo O seu nome e o seu nume E a floresta sussurra comigo E o sussurro sussurra comigo O seu nome e o seu nume E eu sussurro O seu nome floresta E eu sussurro O seu nume floresta Nome floresta eu sussurro Nume floresta eu sussurro Eu floresta sussurro você flor -esta flor -esta flor -esta flor -esta flor -esta flor -esta flor -esta A caminho do sétimo céu o Sussurro sussurra comigo lume
WILMAR SILVA DE ANDRADE, poeta, performer, editor, curador, multiartista, natural de Rio Paranaíba, Triângulo(MG), 30 de abril de 1975. Ensaísta/criador/curador do projeto de pesquisa de poesia de línguas neolatinas Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua, antropologia de uma poética (Anome Livros, 2009). Fundador/ editor da Anome Livros, prêmio Jabuti/2009. Criador/curador do Encontro Internacional de Leitura, Vivência e Memória de Poesia Terças Poéticas (Belo Horizonte/MG). Poesia traduzida e publicada em espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, finlandês, húngaro.
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AISEOP ED ATSIVER