3 minute read

Saideira

Next Article
Capa

Capa

O inverno demorou um pouquinho para ir embora, mas aos poucos ele está indo e, com os dias bonitos e mais quentes, a movimentação aumenta. Esses dias fui ao mercado e vi algumas crianças brincando na rua, igualzinho como eu fazia com meus amigos há alguns anos – com exceção da criançada de máscara, claro. Curioso como aquilo despertou o sentimento de nostalgia, a fase das descobertas e de como a gente se relaciona com o mundo.

Na minha ida eles estavam brincando de esconde-esconde e na volta conversando na calçada. Depois de perceber nas semelhanças, comecei a notar e pensar nas diferenças das brincadeiras. A começar pelos esconderijos, confesso que está bem mais difícil de achar um lugar para se esconder agora.

Advertisement

A rua hoje tem casas maiores, está pavimentada, todas têm muro e quase não tem mato para se esconder.

Na volta, quando eu vi que eles estavam conversando e brincando, percebi também como eles se respeitam bem mais do que a gente fazia antigamente. Primeiro que na época quase não tinha menina brincando, era clube do bolinha, como se meninas não pudessem jogar bola ou brincar de esconder. Segundo que a gente pegava muito no pé uns dos outros, escolhia uma característica física e colocava como defeito – não existia a palavra, mas acho até que aquilo era bullying mesmo. Longe de reclamar daquele tempo, foi ótimo, as reflexões não eram tanto quanto atualmente, mas que bom que as coisas estão melhorando.

Imagino que todo mundo tem algum sentimento desses que não é tão legal de lembrar, imagino que as crianças e adolescentes de todas as gerações passaram por isso, mas é muito louco pensar como aqueles estereótipos da pegação de pé influenciam em quem somos. É como se o mundo dissesse como ele vê você ou pelo menos como ele espera que você seja. Eu era um dos que mais pegava no pé deles, mas também pegavam muito no meu pé. No meu caso, sempre fui um dos poucos negros da galera, então muitos dos adjetivos e expectativas eram apoiados nisso.

Aprender a jogar bola, a gostar de basquete, a sambar, a tocar pagode, a ouvir rap, a ser engraçado etc. Tudo isso foram coisas que eu aprendi com o tempo, às vezes aprendendo a gostar porque eu fazia, às vezes aprendendo a fazer porque eu gostava. Mas no geral, tem várias outras coisas que eu curtia muito, mas que não mostrava muito para o mundo: matemática, astrofísica, rock, política.

Hoje sou jornalista, viciado em esporte e música (principalmente rap e samba) e estou aqui conversando com vocês, mas quando era criança queria ser astronauta e cheguei a fazer engenharia elétrica, coisas bem diferentes do que se espera – pelo menos até o Neil deGrasse Tyson ficar famoso. Porém, para alguém que gostava tanto de exatas, faltou entender que 54% do Brasil é negro ou pardo e que, estatisticamente, impossível que mais de 100 milhões de pessoas sejam parecidas.

Essa ideia vale para mulheres (51% do Brasil), para os e as LGBTQIA+ (10%), para os obesos (20%), os indígenas (0,5%) e tantas características que viram estereótipos que tentam nos definir. O importante é saber que o mundo vai tentar te colocar em caixas de acordo com o que ele vê em você e vai tentar te definir, seja pelos estereótipos e piadinhas, pelos programas de TV ou séries, pelas bolhas da internet ou até mesmo pelos comerciais e propagandas. Porém, no fim das contas, quem decide é a gente e entender isso é a melhor coisa para você se sentir livre para ser quem quiser e da forma que quiser.

De um certo jeito diferente, aquelas duas brincadeiras retratam um pouco dessa relação nós e o mundo. Ao invés de brincar de esconde-esconde, tentando não mostrar quem você é de verdade para ser aceito ou aceita, acho que vale mais uma conversa divertida com a galera, entendendo que cada um é de um jeito e sempre com muito respeito.

This article is from: