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Antônio Rúbia

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Roberto Schima

Roberto Schima

Antônio Rúbia Retirolândia/BA

A Graça Do Mundo Nascente

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ABRIU OS OLHOS E, POR UM INSTANTE, PENSOU DE VOLTA ESTAR AO ÚTERO. Mas não

fora no útero da mãe que pensara, em vez disso, no útero universal, no ventre de Deus, naquelas nuvens estelíferas de pó espacial em cujas tempestades fabulosas colunas de fumaça cintilante colapsam a formar novas estrelas, dando à luz novos chamejantes corações gasosos. Pois o que vira à abertura das pálpebras fora uma lúcida escuridão penumbrosa, radiante, o ar grávido de arcos-íris, úmido e esticado como a pele de uma mulher parturiente, suando cores suaves. Um xamã ou um profeta diria: Eis que nesta manhã começa o mundo. Sentia-se como pai de humanidade, o primeiro entre os homens, e mesmo em suas roupas sentia-se absolutamente nu, bem como pressentia uma nuidade na própria natureza, e uma tal como à de criança que ainda não reconhece o estado da própria nudez. Ora, ele podia muito bem ter sido o primeiro dos hominídeos a levantar a pupila das chãs perspectivas planas e elevá-la à soberba grandiosidade das nuvens vagantes, do sol magnífico, este fogo gentil, e à noite ocorreria o primeiro encontro dum coração humano com a lua e as estrelas — quiçá, seria ele também aquele a tornar-se o primeiro poeta, cogitou, mediante tal encontro. Havia um pudoroso silêncio à toda volta: as cigarras engoliam seu canto; os grilos olhavam atentos do interior dos seus estalidantes corpos secos; os pássaros temiam trazer os céus abaixo com o fragor do seu canto e por isso espremiam a nota prima entre os bicos; os cães pendulavam as cabeças, nervosos, ganindo apenas interiormente, aterrorizados, com medo da futura acusação de terem sido aqueles a ousar quebrarem a placidez primordial. Caso nascesse uma criança naquele exato momento, ela própria poria, censuradora, o dedinho

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nos lábios da mãe. A Vida dormia; um grande e vasto coração mantinha consigo, encolhendo-se, contraindo-se, prendendo a própria respiração, quiescente, a próxima batida, qual seria feito o violento despertar de um vulcão milenar, submarino. Sem se distinguir da natureza, compreendendo-se de imediato tão animal quanto os cães e até mesmo os grilos, ele levantou-se com igual cuidado, pisando com tamanha lentidão que nunca antes o chão provou sê-lhe tão sólido, pois jamais sentira a própria pegada com tanta inteireza — ele pisava, e sobre um chão, e, de alguma forma, instintualmente sabia que lho ampararia também o próximo passo. Era então um aventureiro, um desbravador de mundos, qual os peixes a deslocarem-se do leito oceânico às terras secas, tal como os primeiros humanos a migrar da África ao restante das terras do globo, e em igual medida experimentava preventiva insegurança e insana coragem. Descobria que sobre tudo havia ainda uma placenta irisada, e, embebidos em líquido amniótico, banhados do nutrimental fluido, os organismos da Natureza revelavam-se à sua visão. Lágrimas fulguravam nas lâminas da relva — e poderiam ser tanto os doloridos vazamentos da mãe que com gritos e contrações abre dentro de si caminho para que rasteje para fora o que, nela, é dela, e, a um só tempo, também ela, pois indissociável embora singular parte da própria mãe são os bebês, quanto as garoas de felicidade que emanam dos seus olhos sem nublá-los quando a euforia de segurá-la nos próprios braços é tanta que para expressar-lha tão somente poderiam sorrisos e lágrimas —, e ele quis tocá-las, muito embora soubesse que lhe seria impossível tal ato, pois somente um homem que acabara de nascer ou um que se encontra prestes a morrer poderiam tocá-las; os pássaros arrepiavam e afundavam-se dentro de si mesmos a um só tempo, abrindo parcialmente as asinhas, e cegamente imitou-os, buscando experimentar, desse modo, igual aconchegar-se dentro de si; as frutas pendiam dos galhos como oferendas, cada uma delas sagradas, e mesmo numa árvore só, de alguma forma, teriam entre si gostos completamente singulares e inauditos, primeiríssimos, de rica novidade,

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dulçor ou azedume como nunca antes e infinitamente melhor do que outra alguma vez, além disso, não se precisava ter pena, podia-se pegá-los, decisivamente arrancar-lhes dos galhos com força, mordê-los com os marfins duros e a saliva espumosa, e engoli-los com uma careta de prazer cruel, faminto, pois caso se lançasse uma semente à terra dali nasceria, e imediatamente, uma planta semelhantemente bela, florida, viçosa e sazonada, os frutos sumarentos. Não havia, fosse no ar, n’água ou na terra, pistas da estação na qual se encontrava: alguém que procurasse pelo frio naquele momento imediatamente começaria a tremer e entrechocar os dentes: aquele que buscasse a primavera veria um relâmpago cor-derosa florescendo na planície do céu naquele exato momento: quem à procura do verão estivesse suspiraria com cansaço e satisfação enquanto limpava uma testa aquentada e reticulada de salgado orvalho: aquele que ansiasse pelo outono pisaria numa folha seca antes mesmo que novamente respirasse o seguinte fôlego do infinito fluxo. Embora soubesse, muito bem, muito embora somente dês que abrira os olhos, de todos os segredos, nunca ousaria adentrar nos mistérios; os animais, que, como adivinhava, deviam eles próprios naturalmente viverem nesses instantes de graça nos quais o que é vivo vive sem a dolorosa experiência do Tempo fatiado em menores horas, minutos e segundos e dos despenhadeiros da razão que busca compreender incidindo sobre a vida, só vendo o que é há para ver, vivendo o que há para viver, e sendo o que se é no mais essencial à alma da própria natureza íntima; todos prontamente ao nascer iniciados, convivendo, imperturbados, lado a lado com os mistérios, enquanto aos homens apenas se desvelariam, e à porfia, determinados segredos. Percebendo-se, olhando e olhando com mudo espanto amalgamado a temerosa dúvida, perguntou-se com um movimento interior, precipitado por um sobressalto mental, se estava a sonhar; ou se morrera; ou se apenas agora vivia, e tudo até então fora prelúdio ou de fato pesadelo do qual tão somente agora acordava. Não… não … Estou agora sendo quem sou

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quando não tento ser eu mesmo, estar-se, ser-se, e encontrar-se formulou consigo, toco agora a minha acompanhado de outras coisas que raiz. Tudo possui sua própria raiz, estão, que são, e que compartilham concluiu na sequência, dirigindo-se da mesma origem, do mesmo agora ao que lhe cercava, bem como há princípio delongado, precioso, vital, uma linfa transluzente e iriada fluindo cosmologicamente raro, e, em tudo, mesmo nos homens, grilos e compreendendo sucessivamente que nas pedras, inclusive nas estrelas. E as tal instante é bênção fugaz, e, por existências soam, todas elas eufonizam isto mesmo, inestimável, como quem suas próprias músicas, das abelhas aos acorda à cama e encontra o dia ainda anéis de Saturno. Tudo o que vive é um de olhos fechados no exterior das longo e animado fio prateado da grande janelas, aprofundando-se assim ainda e veludínea teia da Vida, e suas músicas mais gostosamente no morno sono, são o som emitido ao toque dos dedos ele, qual os pássaros, aconchegou-se de Deus. Notara, então, que vivia de si, pestanejou as asas, e abriu o simplesmente instante no qual se coração à graça da Natureza que experimenta a graça de ser vivo e de nascia, nascia, nascia. https://medium.com/@antoniorubia https://www.instagram.com/_relicarium/

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