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Renata Ferrari

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Renam Timbó

Renam Timbó

Renata Ferrari Amparo/SP

Por cima do muro

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— Tem alguém aí? — Pronto! Na escuta. — Não aguento mais. — O quê? — O isolamento social. — Eu também, sinto falta dos passeios longos. — Não é isso. Aqui é grande, tem quintal. Mas a casa sempre cheia está me enlouquecendo. É isolamento para quem? — É mesmo? Achei que você fosse do tipo que apreciasse uma companhia. — Eu gosto, mas não durante as vinte e quatro horas do meu dia. Já tenho certa idade, só quero descansar. Antes, todos saíam por horas e horas, a casa ficava em silêncio. Agora todo mundo está sempre aqui, eu nunca fico isolada. — Sinto um pouco de preguiça de recepcioná-los quando eles voltam de uma saidinha rápida, você também? — Sim. Eu pergunto: “Já voltou?”, mas eles não entendem e ficam felizes com qualquer pulinho. — Aqui está igual. Eu não posso nem comer salada fresca do jardim mais. — Pois é, cadê a nossa privacidade? Minha irmã é quem gosta de gente, e até demais. — Por que dizem meu santo nome em cão, digo, em vão? — Sua irmã dizia que você gosta de gente. — Eu amo. Estamos sempre juntos, em todos os cômodos e às vezes até no banheiro. — Ouviu isso? Minha irmã é exagerada.

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— Eu só aprecio a oportunidade que tivemos de reconectarmos nossos corações nesses últimos meses. A correria da rotina antiga fazia eu me sentir sozinha, mas só agora eu pude perceber isso. — Eu entendo os argumentos de vocês duas. Do lado de cá, também acontece superlotação de cômodos. Nessas horas, tem sempre um oportunista que aproveita para se aliviar e aí a culpa é de quem? — É nossa, eu sei. — Um passarinho! — Um passarinho! — Um passarinho! — Olha, ele jogou algo aqui. — É preto e branco. E saboroso! Dizem nas redes que faz bem para o pelo. — É mesmo? Vou deitar em cima. — Aqui desse lado não caiu. Cuidado com substâncias sem comprovação científica para fins específicos, viu? Pode causar efeitos colaterais inesperados. — De repente, você se tornou tão sábio. — Voltando ao assunto, agora a inspeção tem que ser ainda mais rigorosa quando eles voltam para casa cheios de sacolas. — Sim. Quando eles chegam, eu respiro todo o ar em volta das sacolas e dos pés deles, tentando evitar que eles se contaminem. Às vezes, decido que é melhor fiscalizar item por item dentro das sacolas. De vez em quando, encontro até brindes. — Por falar em brinde, lembra quando a gente ouviu o Rex tomando bronca por comer o jornal? — Ele achou que fosse brinde. — Aliás, vocês sabem do Rex? Rex? — Rex? — Rex? — Deve estar supervisionando o trabalho na cozinha da casa dele, com certeza. — É verdade, isso requer muita agilidade para os casos de desatenção durante o manuseio da comida.

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— Sabe, eu só sinto saudades de quando meu pai chegava em casa, me levantava no colo e encostava a testa dele na minha. Agora ele chega de máscara e vai direto para o banheiro. — Isso é o indicado, irmã. Assim como ficar em casa e só sair em casos extremamente necessários. Eu reconheço a importância, mas começo a suspeitar que eles estão ficando ansiosos sem poderem sair. — Agora eles conhecem a sensação de ficar sem o passeio. — Por aqui, teve um dia que eu vi minha mãe chorando e fiquei ao lado dela durante a noite inteira. — No final das contas, eles precisam mais de nós do que o contrário. — Definitivamente. Vivemos tempos difíceis. — Temos que nos manter firmes no nosso papel de melhores amigos. Ou amigas, no caso de vocês. — O carro do gás! — O carro do gás! — O carro do gás! — Chega de barulho, Branca e Pituca, venham para dentro. — Chico, para de latir!

@palavraplantada

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