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Renato Massari

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Renata Ferrari

Renata Ferrari

Renato Massari Rio de Janeiro/RJ

O Amigo

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A passos rápidos, a tarde caía cinzenta e a chuva forte que sempre invadia o muquifo em que moravam, na periferia da grande cidade, prometia não demorar. O pai então pediu à filha e à mulher mais agilidade no trabalho de remoção dos objetos que fatalmente iam perder se a água subisse muito. Esperavam ansiosos pela volta de Saul, o filho mais velho que levara Estrugue (cruza de vira-lata com dobermann) para mais um combate. Se fosse vitorioso, como sempre era, o cão da família traria preciosos trocados para a compra do angu com salsicha do dia seguinte.

Os primeiros pingos grossos já salpicavam os vidros sujos da única janela do muquifo, mas Saul ainda não chegara. Nem poderia. Seu carro de trinta anos, quase um monte de ferrugem sobre quatro rodas, tinha se envolvido num acidente com o veículo estalando de novo de um homem muito rico. Por contingências da sorte ou da desdita, o dono desse automóvel encantou-se tanto com Estrugue que não reclamou da lanterna traseira esquerda reduzida a pó nem dos fartos amassados na lataria. Enquanto seu motorista, que mais parecia um matador de aluguel, encarava Saul com olhos de morte, ele tinha olhos somente para o cachorro. Mirando-o embevecido, foi logo dizendo:

“Parece um campeão”.

“Ele é”, respondeu Saul sem titubear.

“Como é que chama?”

“Estrugue. Mais fácil do que falar Struggle”.

Lentamente a enxurrada baixava, rindo perversamente dos poucos pertences salvos pelos familiares de Saul. Com jeito de quem tivesse andado nas nuvens, ele de repente apareceu. Antes que lhe dissessem poucas e boas, contou radiante a novidade: conseguira um ótimo

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patrocínio para Estrugue e tudo na vida de todos ia mudar. Com animação alheia ao rastro de destruição disposto à sua frente, explicou aos parentes perplexos e com cara de velório que conhecera um homem muito rico, amante de rinhas, especialmente as que envolviam cães. O sujeito batera em seu carro e se recusara a pagar pelo prejuízo, mas conversa vai, conversa vem, ambos descobriram o gosto comum por aquelas disputas. Tomado subitamente de amores por Estrugue, ele marcara um combate contra o seu melhor lutador para o dia seguinte.

“Se nossa fera ganhar, estamos feitos”, disse Saul fitando uma ratazana que, surgida do nada, buscava abrigo num caixote que a água arrastava com rapidez para fora do muquifo.

Estrugue estraçalhou o rival em menos de três minutos, deixando o candidato a mecenas eufórico. Pouco tempo depois, a vida de penúria da família de Saul se tornou coisa do passado. Tendo caído nas boas graças do milionário, ele conseguiu fazer do pai o mordomo e da mãe a governanta do lar. Já a irmã, que nenhuma experiência tinha em cuidar de crianças, virou baby sitter do filho superdotado do homem. E todos, inclusive ele, passaram a morar na meia-água construída nos fundos da mansão de luxo em que o seu mais novo amigo e sócio residia.

Tudo corria às mil maravilhas –Estrugue era mesmo invencível – até o dia em que o pai de Saul misteriosamente sumiu. Depois dele, a mãe e, por fim, a irmã também despareceram sem deixar vestígio algum. O rapaz, de vinte e cinco anos incompletos, sentiu-se amedrontado, uma aura fúnebre parecia brilhar nas paredes frias dos amplos salões que o afrontavam toda vez que interpelava o amigo sobre o estranho sumiço dos seus parentes. Certa manhã em que o vento uivava como lobo faminto, descobriu duas portas ocultas atrás de um painel de caçada colocado na parede principal da sala de jantar. Ao abrir a mais larga, deparou-se com uma escada em caracol que conduzia a um quarto subterrâneo. Lá viu inúmeras prateleiras de pedra com cabeças humanas conservadas em redomas de vidro. Três delas continham, respectivamente, as cabeças do pai, da mãe e da irmã.

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Aproximando-se um pouco mais, o estômago embrulhado quase saltando pela boca, reparou que na frente das redomas havia plaquetas com inscrições vermelho-escuras sobre fundo branco. Ao lê-las, viu que eram nomes próprios seguidos da menção a diferentes raças caninas e a datas que remontavam aos últimos anos.

Paralisado pelo pânico e pela náusea, Saul custou a perceber que não estava só no ambiente. Quando caiu em si, o milionário e dois guarda-costas o olhavam de modo impassível, feito esfinges. Nenhuma palavra teria para lhes dizer, mas o amigo, ao contrário, já ordenava aos brutamontes que o acompanhavam:

“Levem ele e tratem de lhe dar boa comida. Vai estar no confronto principal do programa de amanhã”.

O adversário, como Saul veio a saber, seria Ching pitbull, um chinês de mesmo peso, altura e idade, afinal o amigo se reputava como homem justo que prezava pelo equilíbrio de forças entre os combatentes. Soube, ainda, que para continuar vivo depois da rinha humana só havia duas possibilidades: vencer ou vencer.

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