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Renam Timbó
Renam Timbó São Paulo/SP
Lados Baixos
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Gorducho, uns vinte e dois quilos acima do peso ideal, ainda não tinha dado o estirão e nem parecia que iria. A voz em fase de transição, não sabia se era rapaz nem menino. Não sabia um quinhão de coisas, na verdade. Sabia, entretanto, que circular requeria cautela e isso o colégio o ensinou desde a mais tenra idade. Foi obrigado a aprender, foi obrigado a não definhar. Cabelos pretos, penugem nascendo sobre o bigode e, inconscientemente, era fascinado por universos que não o agredissem tão diretamente, já que, de alguma forma, tudo parecia fazê-lo. O silêncio dos livros e o feminino eram asilos para alguém que fora disso tinha que arrotar altivez ou estaria morto por dentro. Cada aula tinha cinquenta minutos, era a última do dia, começando às 17hrs e, então, estaria livre. Tinha uma predileção pelas humanas, mas amava biologia. A professora de biologia era um desses docentes carismáticos, chamava-se Rose. Até parece que os alunos das várias turmas da mesma série não se falavam e não sabiam o anedotário de cor e salteado. - Olha, meu nome é Rosemary, mas pode me chamar de Rose. E vocês já devem estar se perguntando: “Rose, cadê o Jack?”, eu já respondo logo: “Virou picolezinho.”. E, assim, ela havia se apresentado no primeiro dia de aula fazendo alusão ao infeliz fim do Leonardo Di Caprio no Titanic. Ela despejou isso como quem diz “não sejam ordinários”, porém de uma forma que cativou uma galhofada em grupo. Engraçado, como se repetir isso em todas as turmas não fosse tão ordinário quanto. A aula já corria seus vinte minutos, a sala formara um círculo e, claramente, podia-se ver os focos de afinidade ao redor. Só fico me perguntando quantos adjazem a essa relação de simbiose com a sociedade até acordar e dar-se conta do peso da solidão. Começaram a colar fotos cortadas de revistas em um papel de cartolina, cada grupo uma cor, assim seria possível diferenciá-los com mais facilidade. Atividades em grupo sempre o deixavam retesado, nunca saberia o que iria sair dali. Rose já havia orientado que cada grupo seria um continente e, então, formariam o planeta ou o que aquelas revistas velhas permitissem acontecer com o futuro da Terra. Louvável a forma com a qual ela conseguira transformar seu comportamento ignóbil em aula de biologia. A professora pediu para que cada um
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de cada grupo fosse até o centro e colasse a sua figura na cartolina do seu respectivo grupo. Ele só conseguia pensar o quanto toda aquela dinâmica era imprevisível. Bufonaria! Parece que aquele estratagema infundado estava funcionando e os alunos até esqueceram do relógio, incluindo ela mesma. Ele também. A necessidade daqueles alunos de corresponderem à altura a toda a patifaria foi ganhando corpo. Ia perpassando com os olhos todo o círculo de cadeiras e contando regressivamente a hora em que vestiria a capa rija de autoconfiança e sobrevoaria o arcabouço de desventuras que naquela idade já marcavam. Ouvira que meia dúzia de meninos estavam puxando um coro, enquanto um dos alunos levantava para colar sua figura na cartolina no centro da sala. - CDF...CDF...CDF!, bradava o grupinho acostumado a sentar-se no fundo da sala. “CDF” era o alcunho dado aos nerds. O mais inesperado foi dar-se conta de que aqueles indivíduos estavam começando todos a se comportarem da mesma forma, mesmo sem uma orientação de Rose. Não foi culpa dela. Ou teria sido? E o próximo dirigira-se ao centro: - Vereadora, vereadora, vereadora!, o número de vozes no coro começou com o mesmo grupinho e foi aumentando à medida em que os demais sentiam a mesma necessidade de gritar para que o sino batesse logo. Assim fora o brado para como o grupinho decidira batizar a menina que conhecia a todos. - Milionário, milionário, milionário!, conseguira perceber que já não havia um só quidam que não tivesse se juntado àquilo. Ele também. O rapaz estava sendo indiciado por ter desfrutado de conforto e segurança desde o berço, pela pose de janota. Coitado! Ele conseguiu, entre um coro e outro, convir naquele passatempo, mas mais por incompetência de fazer as conexões necessárias para prognosticar dali três cadeiras. Só o acompanhava um resquício de sofreguidão que é sedimentado, típico dos que anfemeramente sofrem. Continuava ouvindo, todavia, ao fundo daquela muralha, uma questiúncula de qual seria seu alcunho ululado em coro. Engraçado notar que a vida pode ser tal qual um desses transtornos de dois polos, como quem está triste sentado escorado na muralha, sente um afã e pula o muro, lá em cima sente a brisa, alenta e, logo depois, desequilibra-se e despenca para o outro lado. Aquele fôlego que ele estava sentido preenchia todo o trilhão de células que, mesmo em tiros curtos, já se sufocam e precisam emergir. Logra-te do alto, aproveita o momento único, pois os lados baixos são dois. - Viadinho, viadinho, viadinho!, o coral tilintava nos ouvidos dele. Despencou do alto da muralha e podia até se ver caindo de uma construção de oitenta andares, de costas, flutuando com os dois braços e as duas pernas abertas,
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a roupa se debatendo para cima pelo vento que vem de baixo. Naqueles momentos finais da vida, onde segundos de queda livre te obrigam a assistir a própria história toda projetada. Chegou à cartolina e sentiu o peso daquele coro nas costas o empurrando e ajoelhou-se, batendo com os dois joelhos no chão, os olhos já iam cheios d’água. Não podia permitir que as lágrimas também caíssem. Não teria nem como enxugar embuçadamente, já que numa mão havia cola e noutra uma fotografia qualquer que nem biologia era. Era tudo uma grande tolice. Nessa hora, só conseguiu pôr um pouco de cola na ilustração e colar na cartolina verde. Insultou mentalmente o grupo original que houvera iniciado tudo isso. Eram os grandes culpados. Ao levantar-se, se deu ao trabalho de olhar para Rose, que ria. Rindo, ela estava rindo. Uma indignação ultrajante o tomou, quiçá mais que seu alcunho. Voltou para sua carteira e sentou-se. Pronto. Estava na segurança do seu grupinho. - Não fica chateado, eles são uns idiotas. - Não estou, eles não me atingem. Eu não estou nem aí!, ao virar-se, para que a amiga não visse os olhos inundados, elas escorreram. Teve de enxugar. Sentiu uma mão de carinho em suas costas. - Como não atinge? Isso machuca!, arreliou-se a amiga. Só conseguira se perguntar como alguém daquela idade conseguia ser tão sensível, pois todo e qualquer outro pensamento acerca do ocorrido deveria ser bloqueado. Ouviu embaciado mais três formações de coro ao fundo. O sino tocou. Estava sentado, do outro lado, escorado na muralha mais uma vez.