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Plinio Cesar Giannasi

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Roberto Schima

Roberto Schima

Plinio Cesar Giannasi Regente Feijó/SP

Táxi

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(Um conto em bandeira 2, devido ao avançado da hora)

Madrugada.

Choveu quase a noite toda, e agora que trens e ônibus pararam de circular, restanos recolher os incautos que, sob os mais ridículos argumentos, acenam e se safam de pernoitar no trabalho.

Cuidado com desajustados sociais, noctívagos que vagueiam por aí neste horário, olho clínico para não ser surpreendido. Mas, hoje é quarta-feira, espero que meus habituais clientes já estejam prontos.

Sempre estão. Sem trânsito e num horário neutro, posso seguir com calma até a casa deles. Bairro chique, só alguns minutos e lá vem o casal. Ele… Fraque, cartola e bengala compondo o traje, seria ridicularizado por aí durante o dia vestido assim. Ela... Longo à Pompadour, chapéu à Mary Stuart e bolsa Chateleine, não passaria despercebida nem em baile carnavalesco. Mas é um belo casal, atravessaram décadas, séculos assim. Bodas de quê?

O cumprimento habitual, pois já nos conhecemos desde quando meu pai me passou esta incumbência, junto com o alvará e o táxi. Para entrar no banco de trás, a Baronesa encontra dificuldade devido ao volume do vestido. Já o Barão, basta tirar a cartola. No caminho, os mesmos comentários de sempre, horrorizados com aqueles corpos femininos seminus nas calçadas, e mais

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uma vez explico que não são mulheres, e mais uma vez o casal não compreende. Homens travestidos em tão poucas roupas.

Eis o Teatro Municipal. Qual será a ária de hoje? Na volta eles me contam, sempre, e eu demonstro que estou entendendo. Aqui fora, encontro colegas de ofício, com o mesmo encargo. Carros modernos conduzindo nobres de passado longínquo. Daqui é possível ouvir a orquestra desenvolvendo carinho aos ouvidos refinados dos convidados. Para nós, simples mortais, uma mistura de sons harmoniosos.

Passam-se as horas numa madrugada fria, como se fosse normal o que está acontecendo. Estamos trabalhando e não nos interessa o que fazem nossos clientes.

Na avenida aqui em frente, os seres noturnos de sempre, viaturas patrulhando (e estranhamente não nos abordam), um ou outro bêbado, “mulheres” vestidas de modo a ruborizar a Baronesa, é a madrugada da metrópole. Nossas conversas passeiam entre o cotidiano dos homens comuns, jamais tocamos no assunto que nos conduziu até aqui.

Sabemos que eles precisam de nós, e nós deles.

Alguns trovões prenunciam a chuva que ameaça recomeçar. Lá dentro do teatro, os aplausos de um final brilhante, quase cinco minutos de salva. Os colegas se recompõem, abotoam camisas, guardam os drinques, e quanto ao cheiro de cigarro, deixam estar. Estes nobres do passado se agradam com o cheiro, o politicamente incorreto de hoje encaixase nos costumes daquela época.

Aos casais, vestimentas conhecidas apenas de filmes ou romances, todos saem e se despedem com certa brevidade. A chuva que nos acenava está aqui, começa tímida e pretende se intensificar. Até a próxima quarta.

Barão, Baronesa. Dificuldade com o vestido dela, ele de cartola na mão, retornamos ao palacete da Alameda Prado Gonçalves. No caminho, quase deserto, os comentários são sobre o espetáculo, é sempre assim. Serenata lúdica do século XVIII, o compositor, o maestro, todos lhes são conhecidos. A chuva se torna torrencial conforme nos aproximamos do casarão, que não tem garagem, construído numa época em que não existia automóvel para ser guardado. Penso em um modo de levá-los, secos e em segurança, até dentro de casa. Algumas manobras de vasta experiência, aliada à sorte de ter amenizado a chuva, entro danificando o belo gramado do jardim até a porta da frente, protegida por um avarandado estratégico. Desço para abrir a porta do lado direito, assim não vão se molhar. O casal se despede

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de mim. Bandeira dois, quase quatro horas à disposição.

Basta que entrem para que o temporal retorne, mas estou liberado, tudo tranquilo. Daqui até a Zona Leste em meia hora, sem trânsito. Chego em casa antes de amanhecer, minha mãe nem nota. Às vezes ela nota… É claro que meu pai dizia o que fazia todas as madrugadas de quarta-feira. Mamãe sabe. Tanto sabe que, alguns dias antes de morrer, papai insistia no assunto do casal Barão/Baronesa, mamãe apenas balançava positivamente a cabeça. Eu só observava, sem entender. Já em estado terminal, ele me deixou o endereço do casal, dia e horário para o atendimento, bastava estar lá. Eles já estariam prontos. Sempre estão. Agora, um banho reconfortante, e cama.

Meu próximo cliente será apenas às duas da tarde, do Aeroporto Internacional até um bairro próximo de onde deixei o casal na madrugada. Um desvio mínimo e poderei ver se a Prefeitura ousou cortar aquela árvore centenária defronte o casario. Tombadas pelo patrimônio histórico, muitos tentam remover aquelas construções, cortar o mato absurdamente grande, mas encontram entraves jurídicos para modificar qualquer coisa naqueles palacetes.

Um verdadeiro museu ao ar livre. Chamam de ruínas históricas.

Que a Baronesa não ouça…

facebook/pliniocesar.giannasi.9

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