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Fernando Fardin

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Roberto Schima

Roberto Schima

Fernando Fardin Vitória/ES

O milionário solidário

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Era março de 2020 no calendário gregoriano. Dois milênios e alguma coisa após o advento do salvador. Auge da medicina moderna. Ápice da desigualdade social. Barões da tecnologia deitando e rolando. Gente por aí enchendo a pança com farofa de milho. Nem só de pão viverá o homem, afinal. Um período tradicionalmente chuvoso nas tropicais terras brasileiras. Mar revolto e ressacado. Água misturada com areia. Peixes em fuga. Naquela época, eu li e ouvi a respeito de um vírus supostamente surgido num mercado de animais silvestres em território chinês. Uns conspiracionistas falavam na hipótese de criação do patógeno em laboratório. Arma biológica e o diabo. Outros, mais moderados, sustentavam a tese da fuga do vírus. Sim senhores, a figura microscópica calçou botas de rodeio, colocou um cinto de fivela, enfiou na cabeça um chapéu de boiadeiro e saiu por aí, ávido para conhecer o mundão. O problema, no entanto, era outro. O vírus assanhado cruzou o Oceano Atlântico e desembarcou em Vitória. Descobriu o Brasil. Nada de gripezinha. Esse colonizador veio armado até os dentes e tínhamos apenas alguns estilingues. O governador decretou o fechamento da economia. A televisão tecia loas e loas ao isolamento social, única forma de contenção do vírus. Cada vadio deitado na sua cama vinte e quatro horas por dia seria alçado à condição de Winston Churchill, o protetor perpétuo da liberdade. Oh, tenha você seu dia de herói! Salve uma velhinha e adquira seu lote celeste de frente para o lago azul, com direito a setenta virgens disponíveis e voluntariosas! Eu também queria isso, especialmente a parte das virgens. Deitar no sofá, comer um hambúrguer e assistir ao filme do Rambo, lançando flatos na atmosfera. Tragam-me a medalha da liberdade do Congresso Americano,

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mas não esqueçam das imaculadas hein, de preferência catalãs! Os ônibus em circulação foram drasticamente reduzidos. Precisava-se urgentemente reduzir a movimentação de pessoas por aí. Nada de ver o pôr do sol na praia, flertar nas praças, brincar de pega-pega. Fornicação, nem pensar. Eu trabalhava como jardineiro numa mansão grã-fina na Ilha do Boi, bairro abastado da capital. Pegava todo santo dia um ônibus lotado até o destino. Ia sempre em pé, trocando cotoveladas com outros miseráveis. Gente tão fedorenta quanto eu, de camisa regata e mau humor. Volta e meia um grandalhão esfregava seu sovaco suado na minha cara. Aquilo não era transporte público, nada disso. Não passávamos de bois entulhados numa carreta velha. Com a redução das carretas em circulação, a situação se tornou ainda mais periclitante. Tinha mais gente apinhada indo para o serviço que torcedor do Flamengo na final do Brasileirão de 1992. Queda do alambrado, pessoas caindo da arquibancada superior, uma tragédia. No “busão”, sempre que uma porta de saída abria uns cinco caíam com as fuças na calçada. O sujeito ia de cara colada no vidro, esmagando nariz, testa e queixo, empurrado pela multidão. Cheguei na labuta, amassado, tristonho diante do opróbio. Meu patrão tratou logo de enunciar não breves palavras aos criados. Além de mim, havia cozinheira e arrumadeira. Conhecia-as bem, especialmente a segunda, digamos. — Todos nós precisamos contribuir nesse momento de dificuldade nacional – disse. – A situação de emergência exige gotas de suor, de sangue, lealdade à pátria, à humanidade! Genaro, não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer pelo seu país! — Nos momentos mais dramáticos da história humana, os grandes heróis se apresentam e saem em missão. – A missão de vocês é guarnecer essa casa, usando o melhor de suas habilidades para que essa família, nós, todos nós, possamos combater o vírus com o necessário e imperativo isolamento social – arrematou. O patrão nos deixou para cumprir seu dever patriótico. Inicialmente, deu algumas ordens – por telefone – aos seus diretores no conglomerado de

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supermercados de sua propriedade. Exigiu com fervor o controle de horário dos empregados, impedindo assim que aproveitadores lhe passassem a perna sob a justificativa da pandemia. Após, aproveitou o farto café da manhã, coisa de hotel cinco estrelas. Levantou alguns pesos na academia particular e correu na esteira. Era preciso cuidar da saúde. Uma sauna caiu bem. Melhor ainda um mergulho na piscina de borda infinita com vista eterna para o mar. Champanhe abasteceu o mártir. Nem só de pão viverá o homem. Lagosta para o almoço. Soneca na companhia de lençóis de fios egípcios. Maratona de séries na TV com tela de cinema californiano. Lanche vespertino. Ricota e bacon. Uma massagista profissional chega em sua moto. Uivos. O jantar vem na bicicleta do entregador. Foto para as mídias sociais. Uma vitória é anunciada. Mais um dia de isolamento social cumprido com louvor. Tragam noventa massagistas para esse mártir. Retornei para casa tarde da noite. O jardim precisava ser mantido impecável, ainda mais nessa época de “isolamento ostentação”. Paladinos da ética necessitam de belas imagens ao fundo, emoldurando sua áurea incorruptível. O ônibus, ou melhor, a carreta, novamente apinhada de gente. Faxineiros, jardineiros, pintores, cozinheiros, motoristas, estoquistas, açougueiros, verdureiros, técnicos de TV a cabo, pedreiros, caixas de supermercados, técnicos de enfermagem, personal trainers, toda essa gente ali, circulando, prejudicando o isolamento social, disseminando o vírus. Genocidas insensíveis, macabros, irresponsáveis, torpes e indignos do “troféu Madre Teresa de Calcutá”. Setenta flexões para esses terceiromundistas. A avareza corrompe a moral humana. O dinheiro é antitético à vida. Meu patrão era a favor da vida. Contra a morte. Salvou uma senhorinha de Caruaru, dona de uma bela dentadura regional. Outra de Bento Gonçalves, já nonagenária. Isolou-se por amor. A solidariedade nos salvará a todos.

@fernando.m.fardin

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