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Maria Carolina Fernandes Oliveira
Maria Carolina Fernandes Oliveira
Pouso Alegre/MG
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Linha de sangue
Sou neta do estupro. Sou neta dos estupros em massa que as índias sofreram com a invasão portuguesa. Elas cantavam e teciam e se pintavam quando eles chegaram e se espantaram com tantos seios e genitálias expostos. Arte. Natureza. Não encontraram tabu algum sobre a nudez, e por isso impuseram sua moral gigantesca e rançosa por entre as pernas de cada menina e mulher indígenas. Neta do estupro. Sou neta dos estupros da escravagista sangria desenfreada que se repetiu nos navios negreiros, nas senzalas e nos algodoais. Ventres violados pela opressão branca. Úteros que geravam mercadoria. Reprodução forçada usada como fábrica de mão de obra. Seios negros que alimentavam meninos brancos, com o leite que floresceu da violência, resistindo. Do estupro. Sou neta dos estupros que ocorreram nos arredores dos latifúndios e nos fundos das fábricas. Terra vermelha. Esperança derretida em lágrimas dos olhos das campesinas imigrantes, que atravessaram a fronteira por um pedaço de terra e encontraram dor sob as
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anáguas rasgadas. Chão escarlate. Operárias colocadas em condição de escravas em frente às máquinas de costura e embaixo da corpulência nefasta dos patrões. Estupro. Sou neta dos estupros que tingiram de rubro vestidos de casamento na noite de núpcias. Moeda de troca. Meninas que se casaram para enriquecer os negócios da família; ou pagar dívidas; ou esconder um ventre circunferente. Obrigadas. E o agradecimento: lágrimas, quando resignadas; desonra, quando fugiam; morte, quando escolhiam outros lençóis. E-s-t-u-p-r-o. Sou vizinha dos estupros, nunca desmascarados, sofridos pelas trabalhadoras domésticas. Sou da mesma idade do sangue que escorre por entre as pernas e colore de rubro os morros da periferia. Sou contemporânea da violação dos pequenos corpos infantis empalados por padrastos, tios, avôs, pais. Sou confidente de estudantes violentadas pelos colegas de sala. Caminho por entre os corredores da universidade e há sangue nas mãos dos que convivem entre nós. Há sangue nos becos. Há sangue nos morros e nos grandes sobrados. Há sangue nas esquinas das avenidas de prostituição. Há sangue escorrendo por debaixo das portas das casas. Sangue. S-a-n-g-u-e. Não sou filha do estupro. Mas caminho nas ruas todos os dias, e todas as noites, em cada momento sozinha, com medo de que minha filha o seja.