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Benjamim Franco

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Benjamim Franco

Taubaté/SP

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O espírito da batata

Desde que minha filha Marília foi estudar na federal, ela ficou com uma série de hábitos estranhos. É óbvio que qualquer filho de cabeça saudável, e que vai estudar fora, não se priva da oportunidade de farrear. Por mais que eu não goste de imaginar os detalhes, gosto de pensar que fui um pai responsável e que criei uma filha precavida, sensata, e com impecável ética, que se divertiria muito e se esforçaria bastante. Até aí, tudo certo: Marília é excelente aluna, e me enche de orgulho. Mas não contava que a herdeira da Embutidos Alaor se tornaria...

“Vegana, pai”.

Não entendi no começo, especialmente porque, durante toda a sua infância, ela jamais ousou reclamar de nossos produtos – e inclusive, foi garota-propaganda em uma de nossas peças publicitárias mais famosas. Lembra do comercial em que o Papai Noel dá uma roda de queijo pra uma menina? Era eu o Papai Noel, e a menina, minha filha. E a roda era cenográfica: eu jamais exporia um produto nosso a um set de filmagem.

“E como é que você não... morre?” Os eufemismos me falharam. Francamente, eu estava pasmo, perplexo de não sentir o cheiro de nada que me apetecesse naquela minúscula cozinha. Especialmente porque enviava todo mês uma cesta com nossos mais estimados e bemsucedidos produtos para o seu novo domicílio.

“Dá pra viver muito bem sem carne! Leite, derivados...”

“Mas você está tão fraquinha”, eu disse.

“Eu estou ótima, eu juro!”, disse Marília. “E estou preparando algo que vai mudar a cabeça do senhor”.

A panela fervia em mil bolhas. No lixo, havia um mínimo de produtos rejeitados: sobras e talos eram desviados para compostagem, e mesmo as cascas tinham destino. Tal demonstração de zelo e de práticas de boa logística me tranquilizavam: pelo menos nisso, ela puxou o pai.

“O senhor tinha um ditado, certo? Sobre o porco...”

“Do porco, se aproveita tudo”, comecei.

“Principalmente o espírito”, ela completou. “Pois bem. A batata é parecida! Além de ser deliciosa e nutritiva, dá pra usar até a casca...”

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“Pra fazer adubo, sim?”

“Também, mas... hoje, o prato do dia é...”

“Torta de casca de batata?”

“Isso! Espere esfriar um pouco. Prova um pedaço. Deixa eu terminar o chá pra nós dois”.

O pedaço da torta parecia olhar em meus olhos. Eu francamente não entendia qual era a razão de ser de tal alimento. Meu lado empreendedor não podia deixar de admirar o bom uso de diversos materiais. Mas ainda assim, era aberrante constatar que, dentro daquela torta, não havia sequer uma lasquinha de frango, um grama de queijo. Apenas batata, por dentro e por fora. Nem sequer imagino como é que ela fez essa massa sem usar ovos.

“Já tomou chá de hibisco, pai?” O líquido roxo tinha um cheiro suave, suave até demais. Minha vontade era de tomar um refrigerante.

“Bonito”, eu disse. Constatei que seria minha primeira refeição sem algum produto Alaor desde minha internação no hospital.

“Prova a torta, pai”. A torta se desmanchava no garfo. Não precisei de coragem para mandar pra dentro: mas tive que engolir meu orgulho. E mal foi necessário mastigar: a casca foi uma boa sacada, pois não havia nada além dela que exigisse o uso de meus novos dentes. Carne, só se eu mordesse a língua. Precisei de um gole do chá de hibisco para fazer a massa descer.

Marília me olhava, sorridente, como se lembrasse de uma piada suja. “E aí, pai? Gostou ou não?”

Não tive coragem de dizer a verdade. “Sim, sim! Muito bom”

Estava faltando sal.

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