LiteraLivre Vl. 5 - nº 30 – Nov./Dez. de 2021
Benjamim Franco Taubaté/SP
O espírito da batata Desde que minha filha Marília foi estudar na federal, ela ficou com uma série de hábitos estranhos. É óbvio que qualquer filho de cabeça saudável, e que vai estudar fora, não se priva da oportunidade de farrear. Por mais que eu não goste de imaginar os detalhes, gosto de pensar que fui um pai responsável e que criei uma filha precavida, sensata, e com impecável ética, que se divertiria muito e se esforçaria bastante. Até aí, tudo certo: Marília é excelente aluna, e me enche de orgulho. Mas não contava que a herdeira da Embutidos Alaor se tornaria... “Vegana, pai”. Não entendi no começo, especialmente porque, durante toda a sua infância, ela jamais ousou reclamar de nossos produtos – e inclusive, foi garota-propaganda em uma de nossas peças publicitárias mais famosas. Lembra do comercial em que o Papai Noel dá uma roda de queijo pra uma menina? Era eu o Papai Noel, e a menina, minha filha. E a roda era cenográfica: eu jamais exporia um produto nosso a um set de filmagem. “E como é que você não... morre?” Os eufemismos me falharam. Francamente, eu estava pasmo,
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perplexo de não sentir o cheiro de nada que me apetecesse naquela minúscula cozinha. Especialmente porque enviava todo mês uma cesta com nossos mais estimados e bemsucedidos produtos para o seu novo domicílio. “Dá pra viver muito bem sem carne! Leite, derivados...” “Mas você está tão fraquinha”, eu disse. “Eu estou ótima, eu juro!”, disse Marília. “E estou preparando algo que vai mudar a cabeça do senhor”. A panela fervia em mil bolhas. No lixo, havia um mínimo de produtos rejeitados: sobras e talos eram desviados para compostagem, e mesmo as cascas tinham destino. Tal demonstração de zelo e de práticas de boa logística me tranquilizavam: pelo menos nisso, ela puxou o pai. “O senhor tinha um ditado, certo? Sobre o porco...” “Do porco, se aproveita tudo”, comecei. “Principalmente o espírito”, ela completou. “Pois bem. A batata é parecida! Além de ser deliciosa e nutritiva, dá pra usar até a casca...”