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Oriana Tosini

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LiteraAmigos

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Oriana Tosini

São Paulo/SP

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Pensão Canina

— Aconteceu agorinha, mês passado. disse o porteiro a Dona Etelvina, a senhorinha aposentada que vivia num dos apartamentos do edifício. - Eles se separam e o Sr. Rodrigo levou a cachorrinha escondida. Agora o caso está na Justiça. — Mas Seu Ezequiel, que barbaridade! Aquela moça amava a cachorrinha como se fosse um filho! Deve estar desolada a coitadinha! — Está mesmo Dona Etelvina. Nem sai de casa, passa os dias chorando pela cachorra que o ex-marido levou. Virou a fofoca do mês, abastecendo de assunto os desocupados e matreiros do Edifício São Leopoldo na Vila Mariana. Ora, não se trata apenas do roubo da cachorrinha, desde o início o surgimento da criatura foi meio esquisito, ao menos para a população mais idosa dali, aqueles que nasceram numa época em que as pessoas tinhas filhos das próprias entranhas ou adotavam outros nascidos de mulher se fosse o caso. Resumindo bem, para os velhinhos do Edifício São Leopoldo, era tudo muito estranho. Antes as pessoas criavam pessoas, e ultimamente casos como esse da cachorrinha se multiplicavam, ou seja, de gente tendo diversos tipos de filho, não necessariamente gente, e filhos que se tornavam outra coisa que não gente. Havia também a classe de criaturas que jamais saia da casa dos pais, como aqueles herdeiros de antigamente que viviam das terras, a aristocracia latifundiária rural? Agora temos a aristocracia blogária digital, pois muitos deles são blogueiros, vivem com os pais até a mais avançada das idades, mas isso quando são gente. Temos os casos dos filhos que vivem numa aristocracia canina, felina, botânica, e a lista continua. Não é gente que tem cachorro entende? Estou falando de gente que tem filhos e por acaso também é um cachorro, um gato, uma planta, um pokemón. Os dois se mudaram para o edifício logo após o matrimônio, reluzentes de esperança e iludidos por expectativas irreais, inocentes de que as discussões sobre o seriado de TV pudessem ser um entrave insuperáveis para a vida a dois. Conheceram-se através de relacionamentos em comum e depois de muitos anos engataram um romance morno, insosso, mas cheio de objetivos em comum, afinidades banais, respeito mútuo e daí

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amavam-se fluídos e excreções carnais a cada lua cheia por insistência da moça. Depois de dois anos, Heloísa decidiu que queria ser mãe. Estava resoluta, discutia com o marido horas a exaustão exigindo um rebento, e aparentemente chegaram a um acordo. Numa tarde de domingo o casal entrou no estacionamento do prédio com o carro abarrotado de itens para bebê. Via-se um berço desmontável, um carrinho importado, de um modelo caríssimo que quase não se vê no Brasil. Caixas e caixas de roupinhas, fraldas, brinquedinhos e alguns outros itens um pouco inusitados eram descarregados do automóvel, chamando a atenção dos condôminos. Os comentários eram os mesmos: Cadê a barriga da moça? Será que adotariam uma criança? Aparentemente não estava grávida, e nada do bebê aparecer. Um belo dia entraram no prédio com um pacotinho emaranhado de cobertas, feito protetores antibomba, e ninguém pôde espiar o pequeno. Na outra semana o casal passeava com o carrinho pelas calçadas do bairro e então foram abordados por Dona Etelvina. — Meus queridos! Fiquei sabendo que adotaram esse pequeno! Meus parabéns! Como se chama? É menino ou menina? Imediatamente Heloísa pregou um sorriso imperioso e abriu o cobertor que revelando a pequena criatura e respondeu na sequência. — É uma menina: Mel. Tem quatro semanas de vida, ainda está aprendendo andar, abriu os olhos há pouco tempo. Essa semana começou a comer ração. A cachorrinha se mexeu, gemendo baixinho e Dona Etelvina sorriu acanhada, esforçando-se para empenhar um contentamento a sua decepção, arrebatada por um estranhamento indisfarçável, ela que nunca tinha visto um bebê cachorro, e se perguntava o que havia mudado de sua época, se os cachorros se tornaram muito humanos ou os humanos que estavam muito cachorros, ou se era ela que estava inadequada a esse mundo por não poder responder aquela pergunta. — Ora, então se trata de uma cachorrinha... mas que bacana, bacana... espero que sejam muito felizes com ela. O rapaz talvez ainda conseguisse manter a percepção que a pequenina criatura não era exatamente descendente do homo sapiens, mas Heloísa não tinha dúvidas: a cadelinha era sua filha legítima. Tinha uma suíte decorada só para ela, roupas feitas sob medida por uma costureira do bairro, frequentava os melhores restaurantes, recebia aulas de adestramento e de yoga para cães, ganhava festas de aniversário de seus meses de vida, e a lista continua. Houve um período que Heloísa considerou a filha um pouco melancólica e não pestanejou em pagar caríssimas sessões de terapia ocupacional canina. Como era de se

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esperar, a bichinha desfrutava de redes sociais muito efervescentes. Heloísa fazia questão de manter as postagens sempre atualizadas com fotos das atividades da pequena e ultimamente seus seguidores se multiplicavam exponencialmente, de forma que a moça lançou a filha enquanto blogueira, dando dicas de moda, atividades e beleza do mundo canino. Veio então a notícia que o jovem casal estaria se divorciando. Numa madrugada, revoltado com a esposa, o rapaz fugiu levando Mel e Heloísa entrou em desespero. Foi a Justiça reaver a guarda da cachorrinha e iniciou-se uma longa batalha judicial. De um lado, ela argumentava que o rapaz nunca fora um pai presente na vida de Mel, ele por sua vez alegava que a moça mimava muito a cadelinha, o que poderia prejudicar o futuro da criatura, além de ser emocionalmente instável e inapta para criá-la. Depois de alguns meses, e várias recorrências por parte do rapaz, finalmente a guarda da cachorra ficou com Heloísa. Mas ainda não foi o fim. A moça entrou com novo processo exigindo pensão alimentícia da cachorra, que afinal gerava despesas na casa dos milhares de reais e Rodrigo pagou as pensões durante treze anos até a morte da cadela. Rodrigo casou-se novamente com uma jovem enfermeira e depois de ponderarem muito, finalmente o casal decidiu ter um filho. Naquele mesmo ano compraram um vaso de samambaia e a batizaram de Júlia. Após completar três aninhos a samambaia ganhou um irmão: Leonardo, um lindo vasinho de manjericão. Mas esse infelizmente teve um fim trágico, morreu poucos meses depois, num domingo, triturado no molho pesto da macarronada.

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