LiteraLivre Vl. 5 - nº 30 – Nov./Dez. de 2021
Oriana Tosini São Paulo/SP
Pensão Canina — Aconteceu agorinha, mês passado. disse o porteiro a Dona Etelvina, a senhorinha aposentada que vivia num dos apartamentos do edifício. - Eles se separam e o Sr. Rodrigo levou a cachorrinha escondida. Agora o caso está na Justiça. — Mas Seu Ezequiel, que barbaridade! Aquela moça amava a cachorrinha como se fosse um filho! Deve estar desolada a coitadinha! — Está mesmo Dona Etelvina. Nem sai de casa, passa os dias chorando pela cachorra que o ex-marido levou. Virou a fofoca do mês, abastecendo de assunto os desocupados e matreiros do Edifício São Leopoldo na Vila Mariana. Ora, não se trata apenas do roubo da cachorrinha, desde o início o surgimento da criatura foi meio esquisito, ao menos para a população mais idosa dali, aqueles que nasceram numa época em que as pessoas tinhas filhos das próprias entranhas ou adotavam outros nascidos de mulher se fosse o caso. Resumindo bem, para os velhinhos do Edifício São Leopoldo, era tudo muito estranho. Antes as pessoas criavam pessoas, e ultimamente casos como esse da cachorrinha se multiplicavam, ou seja, de gente tendo diversos tipos
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de filho, não necessariamente gente, e filhos que se tornavam outra coisa que não gente. Havia também a classe de criaturas que jamais saia da casa dos pais, como aqueles herdeiros de antigamente que viviam das terras, a aristocracia latifundiária rural? Agora temos a aristocracia blogária digital, pois muitos deles são blogueiros, vivem com os pais até a mais avançada das idades, mas isso quando são gente. Temos os casos dos filhos que vivem numa aristocracia canina, felina, botânica, e a lista continua. Não é gente que tem cachorro entende? Estou falando de gente que tem filhos e por acaso também é um cachorro, um gato, uma planta, um pokemón. Os dois se mudaram para o edifício logo após o matrimônio, reluzentes de esperança e iludidos por expectativas irreais, inocentes de que as discussões sobre o seriado de TV pudessem ser um entrave insuperáveis para a vida a dois. Conheceram-se através de relacionamentos em comum e depois de muitos anos engataram um romance morno, insosso, mas cheio de objetivos em comum, afinidades banais, respeito mútuo e daí