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Joalison Silva

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LiteraAmigos

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Joalison Silva

Solânea/PB

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Dia de Vacina

Saiu de casa cedo. Cinco horas, o sol ainda dormindo. Deduzia: porque assim acaba mais rápido. Chegou no posto de saúde minutos depois, pegou uma ficha e, estava só e o tédio consome o solitário, passou a observar quem chegava. Muitos já chegados, uma mulher alta, bonita, rosto oculto pela máscara, e era bonita de verdade, ficou nela, ignorou o resto até um casal num Corsa cinza, todos os Corsas eram cinzas? Não, uma vez viu azul. O casal parou perto, bem ao lado na calçada, saíram e se encostaram no carro. Moveu-se, de pé há horas, lembrou, as pernas doíam de ver o casal encostado, voltou a fitar a mulher alta e bonita, a mais alta, dúvida se a mais bonita também, cabelos pretos e que corpo, um mulherão! Outros mais chegaram. Começou a chover, acuando um grupo acumulado de vontade: vontade de ir embora. Uns entraram no posto de saúde, aglomeração. Foi para o outro lado da rua onde tinha espaço de sobra. Foi seguido pelo resto. Encostado na casa, questionou se valia a pena. A vida vale a pena? Um homem parou de moto atrás do Corsa, não era o do casal, apesar de igualmente cinza, pintura padrão talvez, o azul era símbolo de rebeldia, e o homem vestido de trabalhador entrou para pegar a ficha, errou o caminho e entrou na sala visada, o local de desejo. Vontade de ir embora. Voltou com um tufo de algodão no ombro: os trabalhadores tinham prioridade? São privilegiados, precisam retornar ao posto, ganhar dinheiro, o privilégio dos privilegiados. Um princípio de revolta pulsou dentro dele, forte como a vontade. Ouviu um murmúrio contido na entrada do posto. A revolta ligeira se espalhava. As fichas seguiam nas mãos, seus números ainda nas bocas. Outra vez, apareceu trabalhador. Uma

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jovem de uniforme na garupa de uma Honda, o piloto filho do dono de um supermercado, gente importante, portanto, ela era bonita. Buscou a mulher alta, bem mais bonita, viu a jovem entrar no posto e trincou os dentes. O grito irrompia do estômago. Ela errava o caminho, saiu rápido. E a coisa toda degringolou: a massa de trabalhadores aumentou, tanta gente tinha trabalho naqueles tempos? Os não privilegiados exigiam tratamento igual. Encostado na casa, esperava o número, um dos primeiros porque não fora o primeiro, enquanto ao longe, lá no longínquo universo da rua oposta, as pessoas diminuíam, quem chegara antes e depois. Precisava e largou o conforto da parede, entrou no posto: disseram que o lugar virou um cabaré, esqueça a ficha, agora é na fila. Entrou na fila, esperou. Vontade de ir embora e mais tarde voltar, controlou. Se fosse, não voltava. Entediou-se. Novamente, se pôs a olhar. Reclamação na ponta da fila: se usassem as fichas estariam todos em casa, a loira que chamou o posto de cabaré dizia. Encontrou a mulher alta três pessoas a frente, e nem era tão alta, tinham a mesma altura, nivelados a perfeição, mas era bonita. Um mulherão! Uma agente de saúde, bem menor, saiu da sala desejada, viu a fila: aglomeração. Jesus! Vamos organizar, santa incompetência! Viva a burocracia! Metade entrem nessa sala: entrou dez, menos da metade. Sentou aliviado. Esquecera, mas as pernas doíam. Os dez sentados não falavam nem se viam. Fitavam a porta quando uma senhora de idade entrou acompanhada dum rapaz, moço tímido, ficou encostado na parede. Sentado, sentiu simpatia pelo rapaz de cabeça baixa. A agente lembrou das fichas, não, foi alguém, ouviu alguém, a moça loira da boca suja é um cabaré, foi ela quem avisou e a agente berrou quem tinha ficha, quem tinha ficha, quem tinha ficha, todo mundo tem? Tem! Quem é o número menor? Número um? Quem é o número um? Não tem, já foi, próximo, pularam para o dez. Era o onze. Saiu da sala e ficou na porta desejada, mas de longe, duas mulheres nos lados, a alta a direita. Evitou olhá-la. Como era bonita! Faltava uma pessoa para se separar dela e até nunca mais. Sentiu-se triste, chegando em casa, antes do dia acabar, ficaria com a cabeça nela.

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Pensando então, a agente menor chegou mansinha: tem um menino especial, vocês entendem, não é? Assentiu, assentiram. O garoto não tinha privilégios, que fosse primeiro, embora não o primeiro. Depois, a mulher do lado e entrou, finalmente. Os três agentes de saúde de caras lisas faziam anotações. A enfermeira no canto, jovem e entediada olhava o nada porque não havia gente para se ver ali. Pediram cartão, deu. Nome da rua, deu. O braço a mostra, mostrou. Doeu, não muito, pouquinho. Sentiu-se mais homem pela dor, estufou o peito e para a mulher alta, sairia como um vacinado, era homem forte vacinado livre e o agente, único homem de saúde do posto, invejoso e portador das más notícias, avisou que voltaria em três meses, noventa dias de liberdade. Saindo da sala abatido, nem fitou a mulher feita de sonhos. Apenas andou. Ouviu já fora a loira desbocada reclamando. Noventa dias, de novo. No caminho de volta, tarde para o almoço, o braço pesou, ombro dolorido, encontrou um amigo: ia tomar a vacina também e perguntou se tinha muita gente. Não mais. Já tomasse? Já. E aí? Vi uma mulher lá, respondeu desanimado e animou-se. Homem, fiquei doído. Foi mesmo? Se tô dizendo... só tu vendo, homem, só vendo mesmo. E se animou de verdade. Veria ela de novo. Em só noventa dias, era um mulherão!

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