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Gislene da Silva Oliveira
Gislene da Silva Oliveira
Paragominas/PA
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Desenlace
Comecei a fumar aos dezessete anos. Ainda recordo com exatidão o primeiro maço comprado. Estava de férias na Ilha do Cotijuba-PA, na companhia de amigos, pedi um trago, mas eles, todos fumantes, recusaram-se a ser mal exemplo e não entregaram em minhas mãos o objeto do desejo adolescente. Ainda ouvi um sermão, fundamentado no que minha mãe poderia falar.
Fiquei chateada, ofendida até. No ego da minha imaginada adultice, ferida como uma criança. E foi então que, tal uma criança malcriada, fui até o bar mais próximo e cheia de pose: “Moço, venda-me uma carteira de cigarro, por favor!”. Acho que nunca mais na vida usei o verbo vender com a mesma entonação. Era o poder da compra do desejo negado.
Naquele tempo, as propagandas de cigarro eram convidativas ao poder e à liberdade e não havia leis de restrições de vendas para menores. Quando criança, ia com frequência a tabernas e quitandas comprar cigarros para meus pais. E até sabia as marcas mais conhecidas Minister, Continental, Hollywood, Malboro e Cônsul. A que comprei não lembro, mas sei que voltei para a roda de amigos de cabeça erguida, exibindo o troféu em forma de carteira de cigarros, acomodei-me junto ao grupo, que tocava violão e, cerimoniosamente, acendi meu primeiro cigarro.
A tragada inicial veio adocicada pelo gosto da realização, mas foi seguida pelo ardor fumegante que me rompeu o peito e sufocou a garganta de tal forma que os amigos vieram ao meu socorro, pois eu padecia de uma tosse engasgadora, falta de ar e uma incontrolável vontade de expulsar pela boca todos os órgãos internos do meu corpo. Humilhada e lacrimejante, eu parecia um vulcão prestes a entrar em erupção, soltando anéis de fumaça pelos sete buracos da minha cabeça.
Depois do auxílio inicial, é lógico que os meus amigos, não iriam perder a oportunidade de terminar o sermão e fazer aquela chacota básica que somente os bons e verdadeiros amigos sabem fazer. Fiquei suando frio, pálida, resfolegante, ouvindo-os cantar em minha homenagem “A tonga da Milonga do Kabulete”, especialmente os versos: “Você que fuma e não traga... E que não paga pra ver”.
Não me dei por vencida. Acordei cedo para caminhar na praia, peguei a bolsinha de crochê e, pasmem,
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coloquei dentro a caixa de fósforo e a carteira de cigarro, orgulhosamente adquirida na anoite anterior. Juntei-me aos amigos e, lá fomos caminhar pela praia do Vai Quem Quer, na época praticamente inabitada. Um mundão de areia e água, um paraíso exclusivamente nosso. Em meio a conversa animada do passeio, acendi o segundo cigarro da minha vida. À primeira tragada, nada de sufoco, tosse ou o desespero da tentativa anterior. Soltei a fumaça educadamente pela boca, com o glamour cinematográfico dos anúncios dos anos 80. É verdade que ainda não sabia tragar, mas já me sentia tão charmosa com o cigarro aceso nas mãos, que nem percebi quando a praia começou a rodar e areia fugiu aos meus pés. E de repente, não mais que de repente, tudo escureceu.
Segurada pelo amigo que estava mais próximo, não cheguei a cair, porém faltou-me a visão e a noção de espacialidade por alguns segundos. Sentei-me na areia, a cabeça rodava e o enjoo da noite anterior reapareceu. Eu não conseguia entender por que nas propagandas ninguém passava mal ou não havia uma legenda dizendo que não se deveria fumar muito cedo e em jejum. Pensei com meus botões, talvez o cigarro não seja para mim ou eu não seja para o cigarro.
Abandonei-o sem culpa, afinal nossa relação não tinha começado muito bem. Como nunca fui propensa ao amor à primeira vista, meses mais tarde entre um gole de cerveja e outro (vício também recém iniciado), sentia-me novamente atraída pelo seu charme, sua elegância, seu cheiro. Ao som de Beto Guedes, Flávio Venturini, Ney Lisboa e Raul, tentei equivaler-me ao espetáculo do momento, desapercebidamente, pedi um cigarro ao companheiro do lado. Não digo que o contato tenha sido propriamente uma calmaria, veio um tanto áspero, unhando a garganta com pequenas garras afiadas. Segura de mim, pigarreei uma ou duas vezes e logo, embalados pela música e ativados por mais goles de cerveja, vieram outros e mais outros que já não eram sentidos pela língua amortecida. Enveredei pelo vício e me tornei uma fumante perita.
Levei-o comigo, durante anos após o reencontro. Inúmeras foram as vezes que busquei o desenlace. Os motivos eram variados, cuidados com a saúde, algum namorado mais implicante, duas gravidezes, filhos que detestavam cigarros. Tudo inútil. Até conseguia passar algum tempo distante, contudo a reconciliação era certa. Estar longe dele três ou mais dias era como tentar degustar um prato cujo sabor é indefinido e de tempero incerto. Nesses pequenos períodos de abstinência, minhas mãos desajeitas iam mecanicamente aos lugares onde costumava guardálo e pareciam ociosas, pois lhes faltava algo. A vida perdia a graça.
Convivi bem com ele durante 27 anos. Chegava a fugir daqueles que o abandonaram. Vias de regra, não há humildade na fala de ex-fumante,
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pois, do alto de um pedestal, trazem um sermão tão pronto que beira a chatice. Oh, coisa chata é papo de ex-fumante! Nossa convivência era tão dependente, que pela manhã só conseguia coordenar as ideias, fazer-me produtiva e inteligente, após o primeiro cigarro. Sem nenhuma intenção de fazer apologias, ele me relaxava, era fiel e confidente escudeiro nas horas más. Tê-lo entre os dedos era como um talismã da sorte que daria segurança aos planos e às grandes decisões.
Com ele vivi horas certas do meu dia e intensas madrugadas. Papos com amigos, trabalhos da graduação. Correção de provas. Projetos e dissertação de mestrado. Internação de parentes e amigos. Momentos em que se fazia presente, como companheiro mais assíduo e tolerante ele sempre estava lá. Contudo, como disse o poeta, “que seja eterno enquanto dure”. Foi intensa, porém há três anos nossa relação chegou ao fim.
Um dia tomei a decisão de desvencilhai-me dessa dependência. Fumei a última carteira que tinha em casa (sempre adquiri em maços) e disse a mim mesma que não compraria nenhuma mais. Hoje convivo com amigos fumantes com tranquilidade, já não sinto as gengivas doloridas e perdi o cheiro constante, que sequer percebia em mim. Os alimentos desfrutam de mais sabores e não me irrompe uma frequente rouquidão. Como exfumante não carrego sermões nem receitas prontas. O cigarro é uma paixão do passado, que não mais arde em meu peito. Se me perguntam como deixei de fumar, recorro ao personagem Chicó, conto minha breve história e, sorrindo, termino “Não sei, só sei que foi assim”.
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