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Reinaldo da Silva Fernandes

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LiteraAmigos

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Reinaldo da Silva Fernandes

Brumadinho/MG

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Paixão de uma vida Inteira

— Pai, o Lula é o 13? – gritou lá de dentro da cabine de votação.

A presidenta da seção eleitoral fez aquela cara de quem não sabia o que fazer, no que foi seguida pelo pai que a olhava em busca de socorro.

Ele o acompanhara e estava à porta da seção, com uma fila quilométrica naquela hora do dia.

Como a presidenta não se decidia, por xingar ou por autorizar a resposta, ele arriscou, meio tímido: — É, filho, Lula é o 13.

Segundos depois o pai ouviu o “tlin, tlin, tlin, tlin, tlin” da urna após o “CONFIRMA”. O menino saiu de trás da cabine e correu para abraçar o pai, como se acabasse de realizar uma grande façanha, vencer uma São Silvestre, ganhar sozinho na Mega-Sena da virada ou receber o título de “Doutor”.

O “menino” completara 18 anos. Mas continuava um menino. Os olhos oblíquos, num rosto arredondado, circulado por cabelos pretos, lisos, repartidos do lado, a franja quase chegando aos olhos, meio gordinho. Não passava de 1,65 m, com certeza.

O pai o recebeu com um sorriso maior ainda, cheio de amor. Os olhos –do pai - brilhavam um brilho que não pude entender se só de amor ou se mesclado com certa angústia – feito um Luis da Silva, de Graciliano -, certa incerteza no futuro.

“É Lula! É Lula! É Lula”, pôs-se a gritar o menino. O pai abraçado a ele, meio desconcertado, olhava o olhar da presidenta da seção, como a dizer: “Não tenho culpa, ele é assim!” — Diz a ele que não pode fazer boca-de-urna aqui, interpelou o 1º mesário da seção, este já parecendo menos compreensivo do que a presidenta, cara fechada de autoridade.

Enquanto ordenava, o mesário estendeu a mão ao pai para entregar o comprovante de votação que o menino, eufórico ao cruzar a linha de chegada da São Silvestre, não se preocupara em pegar. Ele, pendurado no pescoço do pai, feliz feito eu em dia de chuva; o pai, com aquele sorriso orgulhoso de quem bate no peito e diz: “É meu filho!”, generoso na tonicidade do “meu”.

O menino era sempre assim: diferente. Não tinha apenas cromossomos a mais em cada célula, tinha amor a mais em cada célula, carinho a mais em cada célula, sorriso a mais, leveza a mais. Inocência demais. Pureza.

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Lembro-me bem do dia do casamento da prima Bruna. Neste, digamos, quesito, Rafa não era diferente de nenhum de nós: seu primeiro amor também fora (acho bonito esse Passado Mais do que Perfeito do Indicativo: é perfeito!). Voltemos: seu primeiro amor fora uma prima. Primeiro, único e último.

Bruna era aquela menina boba. Não bobinha. Sim, é diferente. Bobinha não é diminutivo de boba. E nem “boba” é palavra de cunho negativo. Bruna era aquela boba que acha graça em tudo, que ri de tudo, até de piadas contadas pelo tio Wilas (sabe aquele tio tipo piada do “é pavê ou pra comer?”, “o tiozão da internet”?, pois é...). É o tipo de garota que todo rapaz apaixonado quer ter como paixão: a conquista será certa porque, quando convidá-la para um passeio, e ela topar, vai rir de tudo, vai achar graça em tudo, vai ficar maravilhada com toda besteira que o rapaz falar. Foi o que aconteceu com Jamil.

Jamil, convenhamos, não era o que se pode chamar de belo (ironia: Jamil, em árabe, significa “formoso”). Ah! Mas Jamil tinha um senso de humor como poucos! Era praticamente um palhaço! (Cuidado, de olho na gramática: substantivo “palhaço”, profissão, o que faz rir; não o adjetivo palhaço, idiota, besta... embora besta também possa vir a ser elogio: “alegre”, “brincalhão”, “engraçado”, do tipo: “Nooooooooosssa! Você é muito besta!”. Diferente de: ”Deixa de ser besta, seu otário!”)

Pronto, novamente estou eu em um tapete mágico, viajando, fugindo do assunto! O palhaço, digo, o Jamil, era todo dentes!

Jamil se apaixonara (olha o mais que perfeito de novo!) por Bruna quando a viu como Isolda numa peça de teatro no Festival de Talentos da escola. Nunca se soube se apaixonara pelos talentos teatrais da menina ou se por aqueles olhos negros e grandes. Ou por aqueles tantos cabelos pretos cacheados. O nariz quase bolotinha e os lábios carnudos e avermelhados, como se de batom estivessem vinte e quatro horas por dia.

Ou se pelos dois aspectos, o que era bem possível. A verdade é que se apaixonara, a levara para um passeio, se declarara e ganhara o coração de Bruna, como tínhamos previsto anteriormente. Daí, para o casamento ser marcado, foi um pulo.

Aconteceu dali a cinco anos, ela com vinte e três, ele com um ano menos e Rafa com dezenove.

Os pais de Bruna não eram ricos. No máximo, classe média-média, para usar uma categoria do IBGE. Mas fizeram questão de “gastar algum” no casamento da filha. Era filha única, vocês sabem...

A igreja lotada de convidados. Piano, quarteto de cordas, violino e flauta transversal para a marcha nupcial. O altar cheio de anjos. As mais de dez daminhas de honra. Os parentes de Governador Valadares. Todas as colegas da Faculdade de

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Artes Cênicas. Alguns penetras de olho na festa que seria num sítio que amigos do casal bondosamente ofertara. Jamil num terno marrom impecável e gravataborboleta. E Rafa. Rafa?

Sim, o menino recebera o convite. O pai lhe empetecara num terno azulceleste, sua cor preferida, camisa branca e gravata também azul-celeste.

Ao lado do pai, na primeira fileira de bancos – reservada aos convidados especiais, conforme informara Eliete Rinco, da “Casamentos Felizes Buffet”. Mas era um Rafa diferente, mais sério, mais quieto, pensativo.

Ali estava seu primeiro amor, por quem era apaixonado desde os sete anos. E estava de mãos dadas com outro, pronta para dizer o “sim”. Ansiosa para se entregar a outro.

A cerimônia transcorria. Do rosto do pai, corria. Lentamente, um suor frio. Olhava de soslaio para o filho, pressentindo algo. Seu coração estava inquieto. Como alguém sentado na frente da TV assistindo Psicose ou Janela Indiscreta, de Hitchcock. Absorto em seus pensamentos, quase caiu para trás quando Rafael gritou: — Eu! Eu! Eu!

A igreja inteira se voltou para o menino que não parava de gritar “Eu! Eu! Eu!”

Padre Pedro Paulo Pereira perguntara se naquele recinto havia alguém contra aquela união e que falasse agora ou se calasse para sempre.

Cheio de amor, o pai lhe abraçara forte, prendendo-o a si.

Agitado no início, agora Rafa parava de se debater nos braços do pai. O grito foi baixando, baixando.

O grito deu lugar ao choro. Estrondoso no começo, as lágrimas caindo na gravata azul-celeste. Depois baixinho, como um cãozinho recém tirado de uma chuva torrencial.

Calmamente soltou-se do abraço do pai. Caminhou rumo ao altar, os convidados abrindo passagem. Eu observava a cena como que atrás de uma câmera de Alfred ao som da trilha sonora de Bernard Herrmann. Pensei que, a qualquer momento, fossem cair pássaros mortos do céu.

O padre, Bruna, Jamil, ninguém sabia o que fazer. Ninguém, a não ser o pai, sabia daquela paixão de uma vida inteira.

Bruna e Jamil ficaram assim, de mãos dadas, um de frente para a outra, como que petrificados. Lembrei-me de Capitu, em “Laços de Família”, ao ver que Maurinho descobrira seu grande segredo.

Rafa aproximou-se dos dois. Separou suas mãos. Pôs-se de costas para Jamil, de frente para Bruna, como se fosse o próprio noivo. De repente, transfigurou-se, e sorria para ela, como se fosse o próprio noivo. De onde eu os via, pareceu-me que a felicidade tomara conta de si. — Eu aceito, sussurrou, com seus olhos oblíquos fixos nos olhos negros e grandes de Bruna.

“O que você disse?”, perguntou o padre, despertando de sua hipnose.

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— Eu aceito! – repetiu ele.

A igreja toda em silêncio. Rostos espantados. Expectativa. Se de algum lugar se produzia algum som naquele momento, o que os músicos tocavam era a cantata The Storm Clouds. Pelo menos, era o que meus ouvidos ouviam.

Antes que qualquer palavra pudesse sair da boca do padre – se é que o padre conseguiria dizer algo -, Rafa moveu seu corpo lentamente para mais perto de Bruna, sempre sorrindo, como se fosse o próprio noivo. Ficou na ponta dos pés, beijou-lhe suavemente a fronte. Seus lábios ficaram ali, alguns segundos.

Afastou-se tão lentamente quanto se aproximara, olhou o rosto da noiva, sorrindo um sorriso suave, contemplando-a como se fora, Bruna, um ser de luz, divina. Sempre lentamente, soltou-lhe as mãos. Foi virando-se devagar. Seus olhos se fixaram nas figuras dos anjos.

Deve ter ficado assim por quase dois minutos, olhos fixos nos anjos, de costas para os convidados, balançando, em gestos comedidos, a cabeça para a esquerda, para a direita, como se estivesse tentando entender os anjos, decifrar suas formas, absorver sua essência. Depois desceu do altar. E começou a caminhar pelo corredor central, no tapete vermelho de casamento, rumo à saída da igreja.

Seguiu assim, as pessoas se virando aos poucos quando ele passava, para acompanhar sua caminhada, tal qual fizeram quando da entrada da noiva.

No meio do caminho, parou. Girou devagar o próprio corpo. Olhou mais uma vez para Bruna, que continuava lá, no altar, no mesmo lugar. Seus olhares se encontraram. A mim pareceu-me que Bruna olhava-o ternamente, com piedade, com pena. Talvez com amor, não sou capaz de garantir. Também para mim, Bruma pareceu-me enigmática. Talvez como quem se despedia?

Rafa sorriu: — Eu aceito!, disse mais uma

vez.

Virou-se e saiu correndo.

Ao chegar à escadaria que conduzia à saída da igreja, abriu os braços e atirou-se no ar. Fez um movimento como se batesse asas e foi subindo, subindo, subindo... até que o azul de suas vestes se confundiu com o azul do céu.

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