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Juliana Moroni
Juliana Moroni
Ibaté/SP
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Consumida pela Existência
Entrou no corredor apressada, passos largos e ofegante como se estivesse atrasada para algum evento, que seria mais um em sua triste existência. Corredor escuro, as luzes haviam queimado e o síndico ainda não tinha providenciado a solução do problema. Pensava em cuidar dessa questão, mas também não tinha tempo suficiente para se dedicar a este contratempo. Tentava encontrar o buraco da fechadura da porta do seu apartamento tateando a chave pelo trinco da porta, até que se lembrou de usar a lanterna do celular. Conseguiu! Estava em casa. Acendeu as luzes. Que bom eram as luzes. Era uma sensação de alívio e segurança. Colocou a bolsa no sofá e foi até a cozinha. Pegou uma maçã e começou a comer, olhando pela janela da sala; a noite estava a cobrir toda a cidade. Encaminhou-se para a sacada do apartamento. O olhar se perdeu na imensidão da cidade e a sua vida foi tragada pela vaguidão dos seus pensamentos. A picada de uma formiga em sua mão, que estava encostada no batente da janela, trouxe-a de volta à sua condição de existência. Esfregou a mão, lavou com água que fluía continuamente da torneira da pia e aproveitou para lavar a louça do seu almoço. A louça tinha ficado à espera de um vácuo na correria habitual que demarcava a sua vida em relação à outras possibilidades perdidas, através de ações sistematicamente e minuciosamente planejadas e do tempo absurdamente cronometrado. A água jorrava pela torneira, fluía, escorria pelas suas mãos, lavava os copos, pratos, talheres e a sua vida. Lavava os seus erros, a imagem que criara de si mesma, as suas personas, os seus desejos e as suas rejeições. A água lavava mais do que àquela louça, ela purgava a sua desesperança, os seus ressentimentos, as suas dores
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causadas pelos arranjos tão planejados da sua existência mecânica e brutal. Aquela mesma água que lavava a louça, também purificava os seus medos e trazia verdade ao seu sorriso. De repente sentiu quando a faca cortou seu dedo levemente. Sangrava. Estava viva. Vermelho, extasiante, pungente. Deixava a água cair no corte enquanto olhava o sangue diminuir. Fechou a torneira e fez um pequeno curativo no dedo. Era como estancar o sangue das feridas reabertas ou multiplicar o número de chagas que a atormentavam todos os dias.
Pegou um copo de vinho e foi para a janela. Bebericou-o. Acendeu o cigarro, olhando por alguns segundos as luzes da cidade e, por fim, sentou-se na sua poltrona favorita. Tragava o seu destino e bebia a sua existência. Os olhos procuravam um sentido para uma vida erma, sorvida por contratos de aluguéis, apertos de mãos burocráticos e rostos ansiosos, satisfeitos ou descontentes, possuídos pelo que ela chamava de “instinto de lar”. Bebeu mais um pouco de vinho e olhou para fora: céu estrelado, lembranças vagas de vidas longínquas, esquecidas nas ruas de cidades ligadas por um fio de memória inquebrantável e indissociável de suas divagações. Bebeu mais um gole de existência, tragou a verdade. A verdade que só ela conhecia de uma vida aparentemente tão perfeita, serena e comum. As aparências que acobertavam as suas frustrações e também açoitavam os seus desejos sinceros.
Enquanto tomava o vinho, pensava no significado de sua vida, nas consequências de suas escolhas, em tudo que fizera para rejeitar a intensidade de sua essência, tão enigmática para alguns e tão explícita para outros. Mas e para ela? O que ela via em si mesma? Como ela sentia a si mesma? Quanto tempo fazia que não colocava os pés na rua sem horário, sem compromisso? Quanto tempo que não sentia aquela liberdade que os filósofos e poetas discorriam em seus escritos e discursos? E aquela liberdade de senso comum? Por que nunca mais sentira essa liberdade? O que havia feito de sua vida? Eram tantas as perguntas que ela suspirou e tragou mais uma vez as suas desilusões e dúvidas numa noite de
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questionamentos profundos, de especulações absurdas e de respostas genuínas. Nessa noite, o sangue que saiu do corte do seu dedo foi o gatilho que acionou as bombas de realidade que explodiram os muros que ela havia construído entre suas máscaras e sua essência. A intensidade dessa explosão lhe causou um estranho desconforto, uma necessidade de sentir o vento nos seus cabelos, o cheiro de chuva misturada ao cheiro de terra, de seguir por estradas sem rumo, sem horário marcado ou ponto de chegada. Essa intensidade que voltava a tomar conta do seu corpo trazia seus sonhos de volta, resgatava a si mesma, perdida nos gestos disfarçados e nos sorrisos forçados. Essa sensação de procurar a liberdade vinha de sua espontaneidade que tinha se perdido em abraços indiferentes e relacionamentos arranjados por medo da solidão. Naquela noite em que seria somente mais uma entre tantas habituais, seu sangue vermelho-vida a resgatou da incoerência entre seus desejos e seus gestos, arraigados numa rotina insignificante e sem sentido. Naquela noite em que bebia a sua vida em pequenos goles e tragava seus sentimentos, ela foi consumida pela sua existência.
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